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Romance Espanhol
“THE PAINTED VEIL”
Romance Espanhol
© 1987 para a língua portuguesa
EDITORA NOVA CULTURAL
Todos os direitos reservados, inclusive o direito de
reprodução total ou parcial, sob qualquer forma.
CAPÍTULO I
uma disciplina rígida para lutar contra tudo o que a impedisse de realizar
suas metas. E pressentia que aquele homem poderia perturbá-la. . . Ele
era muito, muito atraente...
Não demorou muito para desfazer a mala, pois trouxera poucas coisas de
uso pessoal. Há anos gastava todo o seu dinheiro em material de pintura.
As tintas eram caras e tinha de usá-las com economia, mas desde que
começara a vender algumas telas, a situação melhorara. E o novo emprego
poderia significar sua afirmação definitiva como artista. Era muita sorte
estar num lugar tão bonito e inspirador como a Espanha. Queria utilizar
todo o tempo disponível para pintar. . .
Ainda tinha muito a aprender com Luís Kirkpatrick, pensou ela, e
arrependeu-se por ter sido tão áspera com ele.
O quarto ao lado fora transformado num amplo ateliê onde Sheila
arrumou todo o material de pintura. Observando o ambiente, presumiu
que fora Kirkpatrick. que o preparara, pois era ideal para trabalhar: bem
iluminado, com paredes brancas.
Depois de deixar todas as suas coisas em ordem, Sheila decidiu sair para
explorar o lugar onde passaria todo o verão. Desceu para o jardim, depois
entrou no pomar. Não conseguia entender como um artista famoso como
Luís Kirkpatrick podia dividir aquele paraíso com um bando de turistas,
mesmo que só por alguns meses. Pelo tamanho da propriedade ele deveria
ser rico. Que motivo poderia levá-lo a montar os cursos de férias?
— Ei, você! Por acaso é a nova assistente de Luís nesta temporada?
Sheila ficou séria. O rapaz que se aproximava devia ser parente de
Kirkpatrick. Os traços do rosto lembravam os de Luís, mas nem por isso
ele mostrava a mesma determinação.
— Estou aqui para lecionar. Quanto ao resto...
— Luís me disse que você pretende pintar também, mas não vai
conseguir. Não sobrará um segundo quando os turistas chegarem,
querendo conhecer tudo sobre a Espanha e sua arte. Só quero preveni-la!
— E por que Luís os recebe?
O rapaz começou a rir ao perceber que Sheila continuava séria.
— Ele tem o desejo veemente de fazer com que as pessoas sintam como o
mundo é belo. Luís é louco! E não vai desistir nunca.
— É mesmo?
— Ele também disse que você é uma ótima pintora. É verdade?
— Bem, não sei. . . É difícil fazer uma avaliação justa do próprio trabalho.
— Gostaria de saber mais a seu respeito.
— Você se interessa por pintura?
— Meu interesse é puramente financeiro. Sou Tiago, o irmão mais novo
de Luís. Eu cuido dos negócios dele.
Sheila olhava-o agora com mais respeito. Somente alguém como ela, que
tinha de resolver tudo sozinha, sabia das dificuldades de montar uma
exposição ou correr atrás dos pagamentos de quadros vendidos.
— Sou Sheila Hardy — apresentou-se estendendo a mão.
— Ah, já a conheço de nome. Vi seus quadros na galeria onde montei
importante.
— Você vai se acostumar — disse Tiago. — Se Luís conseguiu, qualquer
um consegue.
— Depende do quanto você precisa realmente do dinheiro — acrescentou
o irmão. — Eu necessitava dele com urgência quando abri a escola de
verão.
Os irmãos trocaram um breve olhar e Sheila notou que havia um
entendimento entre eles que a excluía. Deveria ter achado normal, mas de
alguma maneira sentia-se incomodada. Esse sentimento não era novo para
ela. Conhecera-o bem enquanto vivera com a família. Eles apreciavam
muito seu talento, mas no fundo não era exatamente o que tinham
sonhado para a filha. Quantas vezes escutara a mãe dizer em tom de
desculpa: "Devemos dar uma chance a Sheila. Faríamos o mesmo se
tivesse escolhido outra profissão. Algumas pessoas acham que ela é
brilhante!".
Algumas pessoas sim, mas seus pais olhavam para as telas e o único
sentimento que expressavam era desconforto. Onde alguém poderia
pendurar um quadro tão grande?, perguntara sua mãe um dia.
Ela só adquiria quadros que combinassem com a decoração da casa e
simplesmente não entenderia se alguém agisse de modo diferente.
— Este lugar é ideal para pintar — disse Sheila, afastando as
recordações. — Nunca vi tantas cores, tanta luz. . . Quero conhecer o
máximo que puder enquanto estiver aqui.
— A começar pela Semana Santa? — provocou Tiago.
— E por que não? Tudo me interessa.
— Você ficará fascinada com a festa. Estaremos exaustos depois, mas
vale a pena — interferiu Luís.
Os dois irmãos sorriram e saíram dizendo que tinham coisas a resolver.
Sozinha, Sheila voltou ao quarto. Queria pôr em ordem suas impressões
sobre aquele estranho país que visitava pela primeira vez.
A Espanha era uma das nações mais antigas da Europa, e o modo de
vida dos habitantes não era nada parecido com o de outros lugares onde
já estivera. Sentira-se atraída pela região desde que chegara a Málaga; a
viagem ao longo da costa fora cheia de surpresas. As casas de campo
tinham um ar acolhedor, as flores cresciam por toda parte, caindo em
grandes cachos dos telhados ou colocadas estrategicamente em vasos de
cerâmica de tamanhos variados e espalhados pelos pátios.
Sheila ficara maravilhada com os velhos sobrero que ladeavam as
estradas. Eram árvores típicas da região mediterrânea, com suas pequenas
flores em pêndulos, e cuja casca grossa era retirada para a fabricação da
cortiça.
Por outro lado, parte da região litorânea tinha sido totalmente devastada.
Sheila não gostava das urbanizações modernas, onde matas inteiras eram
colocadas abaixo sem qualquer critério, deixando sempre a impressão de
serem projetos inacabados e fora de lugar. Qualquer vila, por mais antiga
ou pobre que fosse, tinha muito mais charme. Nada se comparava àquele
CAPÍTULO II
com curiosidade.
— Perdóneme, que tengo prisa — Mercedes havia se desculpado,
preparando-se para sair.
Ela realmente parecera estar muito atarefada mas, tão logo viu os
desenhos que Sheila fizera na tarde anterior, pareceu perder toda a
pressa. Lançou um olhar crítico sobre cada um deles e de repente seu
rosto se iluminou com um sorriso.
— Ah! Señor Luís!
Sheila tomou o desenho das mãos dela e começou a examiná-lo
minuciosamente.
— Como você sabe que não é o señor Tiago?
Mercedes sacudiu a cabeça e uma torrente de palavras saiu de seus
lábios. Não era preciso muita imaginação para entender que em sua
opinião aquele só podia ser Luís, já que Tiago era jovem demais para que
uma mulher como ela, ou mesmo Sheila, se interessasse por ele.
Agora, lembrando-se da cena, Sheila começou a rir de tal disparate.
Nenhum dos dois irmãos tinha nenhum interesse especial para ela, e
nunca teriam! Estava lá para trabalhar.
A cozinha estava deserta, mas o chão ainda úmido indicava que Mercedes
devia ter saído poucos minutos antes. Sheila parou, aborrecida. Era claro
que ela teria um papel a cumprir naquela casa, mas esse não incluía
cuidar do irmão mais novo dos Kirkpatrick. Ele já estava com idade
suficiente para preparar seus sanduíches sozinho. E era isso que ela iria
esclarecer na primeira oportunidade.
Assim mesmo começou a preparar o lanche, notando que o pão já estava
no fim. Talvez Mercedes tivesse ido comprar pães frescos, pensou. Lera em
algum lugar que os padeiros da Andaluzia estavam sempre trabalhando,
assim como faziam seus ancestrais. Ela realmente não podia se queixar,
pois raramente provara pãezinhos tão deliciosos. Quando retornou à sala,
Pablo estava envolvido numa violenta discussão em espanhol com o irmão
mais velho, que já havia chegado.
Finalmente, ele irrompeu em inglês:
— Eu não vou com vocês para Sevilha! Tia Inez pode ser muito amável
com você, mas não pára de me provocar. Ela quer que eu me case com a
prima Concepción!
Luís caiu na gargalhada:
— Não seja bobo, Pablo! Você não passa de uma criança.
Pablo estava desesperado e recorreu a Sheila logo que a viu entrar.
— Sheila, minha querida, você também não quer ir a Sevilha, não é
verdade? Diga a Luís que prefere ficar aqui comigo. Pense no tempo que
terá para pintar!
— Srta. Hardy. Eu. . .
— Ela pode falar por si mesma. Tenho certeza de que a Semana Santa
em Sevilha a deixará entediada e arrependida o resto do ano! Sheila, você
não pode. . .
— Não era ela que ia falar? — interrompeu Luís, calmamente.
— Mas foi você que fez a escolha, não é mesmo? — insistiu ela.
— Sim. Tiago sabe negociar com arte, mas para ele é um comércio como
qualquer outro. Eu, por outro lado, quero ensinar as pessoas que vêm aqui
ter aula comigo a ver e sentir o mundo por elas mesmas e a apreciarem a
própria sensibilidade. Não me interessa indicar-lhes em qual artista jovem
devem investir para lucrarem no futuro. . . Isso é trabalho para Tiago. . .
Sheila ficou impressionada e percebeu a grande responsabilidade que
teria no curso.
— Espero não desapontá-lo.
Luís a encarou com olhar ardente, deixando-a sem jeito ao ouvi-lo
responder, Sheila sentiu o coração acelerar.
— Estou vendo que não — disse ele com voz meiga. — Pode ter certeza
disso.
CAPÍTULO III
A casa dos parentes de Luís, em Sevilha, era bem maior do que Sheila
supunha. Mas nem teve tempo de ficar nervosa, pois a porta logo se abriu
e uma mulher baixa e de certa idade, que mais tarde se apresentou como
Inez, tia de Luís, saudou-os com um sorriso:
— Luís, meu querido, esperávamos você há horas!
— Tiago não ligou avisando que chegaríamos mais tarde?
— Aquele rapaz! Por que está atrasado? E quem é esta senhorita? —
perguntou ela, virando-se para Sheila.
— Sou Sheila Hardy! — apresentou-se ela, estendendo a mão.
Toda a agitação da mulher desapareceu repentinamente.
— Sheila Hardy? — repetiu em tom solene, e voltou a sorrir. — Minha
querida, entre! Estou feliz por recebê-la em minha casa.
Sheila subiu a escada obediente, maravilhada com os velhos pilares de
mármore que davam um ar imponente ao hall. Quem era aquela mulher?
Ela olhou em direção a Luís esperando alguma explicação, mas só
encontrou um ar zombeteiro nos belos olhos e um brilho que ainda não
conhecia. Ele parecia uma caixa de surpresas, sempre revelando algo
novo. . .
— Tia Inez, acho que Sheila não consegue acreditar que você realmente
tem alguns parentesco conosco, insignificantes Kirkpatrick — comentou
ele divertido.
— E não foi escolha minha! Nunca consegui entender o que minha irmã
via no seu pai, Luís. Imagine se casar com um estrangeiro e viver num
país tão frio e distante. Não me admira que tenha sentido falta do sol, da
alegria e da espontaneidade dos amigos daqui. Você não pode censurá-la
por isso, Luís!
— É claro que não.
Tia Inez inclinou a cabeça para o lado e observou o sobrinho pensativa:
— Não, acho que você não o faria. Como está seu pai?
— Bem, suponho.
Ela fez um pequeno movimento com os ombros. Devia ter sido bonita na
juventude, pensou Sheila. Sempre quisera conhecer uma espanhola
autêntica, daquelas que pareciam ter vitalidade suficiente para dançar a
noite toda dentro de um belo vestido rendado, com uma rosa vermelha
nos cabelos, e ali estava o exemplo perfeito. "Tia" Inez tinha um porte
elegante e era espirituosa. Impressionada com a extraordinária habilidade
da mulher em se vestir com bom gosto e estilo, Sheila não podia deixar de
admirá-la. Era o coroamento de um dia perfeito!
Tentou não pensar no que havia acontecido durante a tarde, enquanto
visitaram a adega. Juntos tomaram tantos copos de vinho que Sheila não
conseguira esconder as emoções profundas que Luís despertava nela. Sua
única esperança era que ele não tivesse notado quão perturbada ficara
nos momentos em que estavam próximos um do outro. E que não era a
bebida, mas sim, ele que a deixava fora de si. . .
Fora tão divertido o passeio depois do almoço! Ouvira todas as
explicações sobre as várias maneiras de se degustar xerez na região, e a
verdade era que nunca mais conseguiria tomar um xerez com a mesma
indiferença de antes. Aquele líquido precioso seria sempre algo muito
especial a partir daquela tarde, mesmo que não passasse de imaginação
achar que o gosto era bem diferente no país de origem e na companhia de
Luís.
Incomodada com os sentimentos que Luís lhe provocava, tentou prestar
atenção a todas as explicações que lhe ofereciam sobre a fabricação do
xerez mas, horas depois, as únicas coisas que conseguia lembrar era que o
Palermino era o xerez mais comum e que o Pedro Jiménez era a marca
mais adocicada.
Por outro lado, foi com desilusão que descobriu que, após a colheita, as
uvas não eram mais esmagadas com botas especiais como antigamente.
Agora usavam máquinas modernas para o processamento do xerez, o que
não era nada romântico. . .
— O vinho leva oito anos para ficar no ponto. E quem quiser ser um bom
conhecedor precisará de muito mais anos para saber apreciá-lo —
observou Luís ao saírem da adega, levando algumas garrafas. —
Entretanto, Jerez não é conhecida somente pelo bom vinho. Geralmente
trago meus cavalos aqui para participar de exposições. Este é o melhor
centro para criação de cavalos de raça há muitas gerações. E são famosos
no mundo todo.
Sheila sabia pouca coisa a respeito de cavalos. E nem estava interessada.
Mudou delicadamente de assunto:
— Quando você consegue tempo para pintar?
— Sempre que algum assunto ou objeto me atrai. Então fico mais
relaxado do que de costume e tudo sai bem. — Ele sorriu e continuou: —
Sou bom pintor, não me entenda mal, e gosto muito de pintar. Mas não
sou daquele tipo de raro talento, que deixa todo o resto de lado para se
dedicar com exclusividade à arte. Gosto de ser conhecido mas não deixo de
Sheila não queria falar sobre o assunto. Preferia que suas impressões
não tivessem nenhuma interferência de opiniões alheias.
— Fale-me sobre Sevilha — pediu ela sonolenta.
— Caminhar por suas velhas ruelas e a cada esquina encontrar coisas
inesperadas é o que mais me encanta. E isto sem falar da casa de minha
tia.
Agora que estava naquela casa podia entender o que Luís quisera dizer.
Em nenhum outro momento Sheila ficara tão entusiasmada. As pinturas
nas paredes eram originais, e, que pinturas! Eram dignas de um museu!
A única coisa que ainda a incomodava era que Luís voltara a beijá-la
quando ajudou-a a sair do carro e ela poderia tê-lo evitado, mas o pior
é que não o fizera. Seus lábios eram tentadores demais para serem
recusados. Sheila nunca sentira com tanta força o poder devastador do
desejo. Ficara ofegante e sem ação. Ansiando quebrar o encanto, tentou se
convencer de que Luís teria feito o mesmo com qualquer outra mulher que
passasse um dia tão agradável com ele, mas não queria acreditar. No
fundo, desejava que tivesse sido tão especial para ele quanto o fora para
ela.
Tia Inez tocou em seu braço, afastando-a daqueles pensamentos.
— Você pode olhar os quadros mais tarde com calma, minha querida.
Vou levá-la para seu quarto. Não — disse, dirigindo-se a Luís, que parecia
querer acompanhá-la —, não precisa ir com a gente. Vá cumprimentar seu
tio enquanto Sheila desarruma as malas. Nós duas teremos muito a
conversar estes dias.
— A srta. Hardy é uma artista séria, tia. Temo que não tenha muito
tempo para outras coisas.
— Que bobagem! Todos têm direito a se divertir. — E olhando para
Sheila, acrescentou: — Pensei que talvez preferisse ter ficado em casa com
Tiago. . .
— Eu não tive escolha — interpôs Sheila secamente.
— Mais acusações? — perguntou Luís.
— Ninguém teria me escutado mesmo — respondeu ela, suspirando.
— Venha — disse tia Inez subindo as escadas —, vamos conversar. Tenho
certeza de que chegaremos à mesma conclusão sobre os Kirkpatrick. Você
deveria ter escutado minha irmã falando deles.
— Mas ela se casou com um deles...
— E quem não o faria? Eles são homens tão atraentes! Você deveria ver o
seu Luís galopando. Nenhum dos irmãos se compara a ele. . .
Sheila começou a rir:
— Eu tenho horror a cavalos.
— Luís sabe disso?
— Não.
— Então não conte a ele, pois jamais entenderia. Na Andaluzia as
pessoas só utilizam veículos por conveniência. Andar a cavalo ainda é o
maior prazer.
— Não para mim.
— Você não terá medo se Luís estiver junto — tia Inez tentou consolá-la.
E olhando para o magnífico hall e para a escada dupla toda em
mármore, acrescentou.
— Não se impressione com esta casa, minha filha. Faz parte da minha
vida e não da de Luís. Ele só vem aqui uma vez por ano, na Semana Santa.
Nós não temos um filho homem e meu marido é velho demais para
participar das procissões. Luís é muito gentil. Dos três irmãos, ele é o
mais parecido com a mãe. Ela era uma boa mulher, mas não foi feita
para viver na Inglaterra com um marido tão sério. Um sujeito interessante
mas sem coração!
Sheila não sabia bem o que pensar da conversa e mudou de assunto:
— Já esteve na Inglaterra?
— Nunca!
— Mas o seu inglês é perfeito!
Tia Inez ficou embevecida.
— É para isso que aqui nos mandam estudar em conventos desde
criança.
Sheila olhou em volta.
— Você parece ter tido mais sorte que sua irmã — comentou ela, mas
logo se deu conta de que poderia ser mal interpretada e acrescentou: — Eu
não quis dizer. . .
— Você tem toda a razão — interrompeu tia Inez. — Talvez eu também
não tivesse resistido se tivesse conhecido um Kirkpatrick. Como você
consegue resistir Luís?
Sheila riu, esperando não parecer muito arrogante:
— Minha prioridade é a pintura!
Tia Inez continuou a subir a fantástica escadaria e seguiu por um
corredor enorme que mais parecia ser uma galeria. Finalmente parou em
frente a uma das portas e a abriu, revelando um magnífico quarto de
dormir.
— Espero que fique confortável — disse ela meio em dúvida.
— Mas é claro que sim! — exclamou Sheila.
Sheila tentou imaginar as pessoas que já tinham dormido ali antes. Não
se surpreenderia se entre elas estivesse alguma princesa, pois o quarto
parecia o cenário de um conto de fadas.
Tia Inez sentou-se numa poltrona que fora colocada sobre um lindo
tapete colorido em frente à janela. Sua postura era perfeita e Sheila não
pôde deixar de admirá-la novamente.
— Levei algum tempo para me acostumar a morar aqui — confidenciou
ela. — Minha família é antiga mas não chega aos pés da do meu marido.
Eles têm casas deste tipo espalhadas por toda a Espanha. Meu marido é
muito simpático. Você vai conhecê-lo. Ele tem um carinho especial por
Luís e ficou mais curioso do que eu quando soubemos que viria
acompanhado de uma jovem. — E sorrindo envergonhada, acrescentou: —
Nós somos muito conservadores aqui na Espanha.
— Eu vou dar aulas na escola de Luís durante o verão. E não tinha a
Sheila ficava revoltada, dizendo que preferia nunca vender nada a ser
obrigada a mudar seu jeito de pintar. Mas ao mesmo tempo era óbvio
que, se não conseguisse vender seus trabalhos, não iria ter como
sobreviver. . .
Passou meses e meses sem vender, até que um dia conseguiu!
Alguém visitara a escola, vira uma de suas obras e a comprara. Sheila
nunca soube o nome do comprador, mas depois daquele acontecimento
sua vida mudou. Foi escolhida para expor numa das galerias mais
conceituadas de Londres, e vendeu muito mais do que seus companheiros.
Porém, todo o seu orgulho desmoronou quando Bill ficou sabendo de seu
sucesso. . .
Esperava que ele ficasse contente, que começasse a ver seu trabalho
com outros olhos. Quase não acreditou quando ele a acusou de ter se
vendido por um momento de glória.
— A quem você se entregou para conseguir as vendas, a exposição e as
críticas favoráveis? — gritara ele. — De outra maneira nunca teria
conseguido! Ninguém aqui é ingênuo. Você dormiu com o dono da
galeria, também?
— Eu nunca dormi com ninguém! — respondera ela, furiosa.
— Guardando-se para um momento especial? — Continuara ele. — Você
nunca vai conseguir alguém melhor do que eu! Sheila se afastara dele
de cabeça erguida. Ficara magoada, pois provavelmente teria feito amor
com Bill se ele tivesse desejado. Mas o pior fora a conversa que tivera com
o pai, depois.
— Espero que saiba o que está fazendo — advertia ele. — É tudo muito
fácil quando se é jovem e bonita. Mas o que será de você depois?
— Papai, eu não. preciso da minha beleza para pintar — respondera ela
com paciência.
O pai soltara uma gargalhada.
— Eu pensei que você ficaria satisfeito! — murmurara Sheila, quase
chorando.
— Satisfeito? Ora, não se iluda, Bill já me contou tudo. . .
— E você acreditou nas fantasias daquele doente?
— O dono da galeria só podia estar apaixonado por você.
A mãe de Sheila acompanhava a conversa em silêncio.
— E você também acreditou? — Sheila apelou para ela.
— E o que importa a minha opinião? — respondera ela, aborrecida.
Naquele instante Sheila compreendera que não havia mais nada a fazer
ali. Teria de cuidar da própria vida, e os outros que pensassem o que
quisessem.
Luís tocou-lhe o braço, trazendo-a de volta à realidade. Um senhor idoso
descia a escada. Tinha um sorriso tão sincero que Sheila começou a sorrir
também, esquecida de todas as lembranças desagradáveis.
Ele colocou o braço em volta dos ombros de Luís, piscando para Sheila.
— Minha esposa me contou que Luís trouxe alguém muito especial —
disse satisfeito, — Muito especial! Minha querida, deixe Luís de lado esta
noite. Você pode sentar perto de mim durante o jantar e contar tudo sobre
você.
— Eu gostaria muito! Mas só se o senhor retribuir depois, falando dos
seus cavalos e vinhos — respondeu Sheila.
— Hum, alguém andou se adiantando. O único vinho que fabricamos por
aqui é o xerez, minha jovem. E tenho certeza de que Luís já lhe mostrou
tudo. O que ele talvez não tenha lhe contado é sobre minhas plantações de
laranjas. Nós plantamos hectares de laranjas para exportá-las para os
ingleses. Lá, eles as transformam em geléia. Nós não temos muito proveito
para elas aqui. Por isso as plantamos nas ruas, pois ninguém teria
interesse em apanhá-las. O que você acha disso?
— Eu acho que espanhóis e ingleses parecem saber muito bem como
conduzir seus negócios,
— Uma boa combinação, não é mesmo?
— Sem dúvida.
O conde lançou um rápido olhar para o sobrinho:
— Espero que esteja prestando atenção, rapaz. Quem é esta jovem
simpática?
— Sheila Hardy, tio.
— Ah, agora entendo tudo. Minha esposa e eu ficamos lisonjeados com
sua visita, minha querida. Vamos jantar agora?
CAPÍTULO IV
Não era da conta dele, pensou Sheila, e ia abrir a boca para dizer-lhe
isso, mas mudou de opinião ao ver o semblante agressivo de Luís. Ele seria
bem capaz de querer provar que estava certo de uma maneira que não a
agradaria nem um pouco. Ainda se lembrava da última vez em que ele se
aproximara decidido. Emoções daquele tipo, a menos que fossem
disciplinadas e reduzidas a algo possível de controlar, não combinavam
com a atividade artística. Sheila sabia muito bem disso e tentou mudar de
assunto:
— Como você se veste para a procissão? Como um penitente também?
— Sim. A família de meu tio sempre participou do cortejo e ele ficaria
magoado se nenhum de nós continuasse a tradição. É claro que ninguém
enxerga quem está por trás dos capuzes mas, para meu tio, alguém
precisa representar a família.
Sheila tentou imaginá-lo vestindo um daqueles capuzes enormes e teve
certeza de que o reconheceria mesmo se estivesse completamente coberto.
Ela encolheu os ombros, tentando mudar o rumo dos pensamentos.
— E Tiago? Ele não poderia substituí-lo às vezes?
— Você preferia ter vindo com ele?
Sheila estremeceu. Não, jamais teria preferido a companhia de Tiago.
Afastou-se um pouco, mais determinada do que antes a levar a conversa
para outro lado e fazer de conta que ele não havia dito nada de
significativo. Mas ainda precisava responder.
— Eu preferia nem ter vindo!
— Oh, não! Isso não adiantaria. Você será uma pintora bem melhor,
Sheila Hardy, quando admitir que é um ser humano como todos nós e
não uma mulher fria e distante.
Sheila escondeu a dor que aquelas palavras lhe provocaram da melhor
maneira que pôde.
— Vou sair — anunciou. — Vou dar uma volta, enquanto a multidão se
dispersa. Não me admiraria se Shakespeare tivesse inventado a frase "O
mundo é um palco" aqui na Espanha. É a imagem exata que tenho dos
espanhóis.
— Ê mesmo? — Luís estava completamente à vontade, parecendo não
notar o tom de censura nas palavras de Sheila. — Vou lhe contar tudo
sobre os espanhóis. Sheila. Há uma expressão de uso comum que
esclarece o comportamento desse povo: sin verquenza. Pergunte a qualquer
um sobre isso!
— O que significa? — perguntou, sem conseguir resistir. Havia tantas
coisas em Luís Kirkpatrick às quais não podia resistir. . .
— Bem, eu acho que significa não ter vergonha, mas é muito mais. . . É
como se fosse, uma desonra alguém não ter orgulho nem vaidade da
própria aparência e das boas maneiras. Faz parte do jogo ter graça e
elegância, não importando qual é o papel de cada um na cena. O espanhol
é sempre o caballero, mesmo não tendo um centavo no bolso. O orgulho é
o seu patrimônio, concedido igualmente a cada pessoa que nasce aqui.
Sheila sabia que as palavras de Luís tinham duplo sentido, mas não
CAPÍTULO V
Na manhã seguinte Sheila tomou a decisão de não ficar mais a sós com
Luís. Seria perigoso demais. O melhor seria recusar todos os convites, em
especial aqueles para conhecer a cidade na companhia dele. Era só
lembrar o que acontecera na noite anterior!.
Pelo jeito, Inez também estava preocupada com Sheila e seu sobrinho.
Naquela manhã, assim que os encontrou, foi logo falando:
— Luís, acho que você não deveria chegar tão tarde com Sheila. Existem
outras maneiras de se cortejar uma garota, não precisa ter tanta pressa!
No meu tempo era tudo bem diferente. . . E não se esqueça de que ela é
minha hóspede!
— Não tocarei num fio sequer do seu cabelo — assegurou Luís. — A não
ser que ela queira. . .
Sheila ficou embaraçada:
— Para que toda essa discussão?
Tia Inez sorriu, mas o olhar estava distante, perdido no passado:
— As moças do meu tempo eram muito bem guardadas. Nunca saíamos
sozinhas com um rapaz, não importava qual a relação que tínhamos com
ele. Conversávamos no portão ou na janela. Em algumas famílias, o
namoro chegava a durar anos. . .
Um tanto desconcertado, Luís arrumou uma desculpa e foi para seu
quarto.
Aproveitando que estava a sós com Sheila, Inez voltou-se para a
garota:
— Minha querida — começou ela —, não é da minha conta, mas não
deixe Luís forçá-la a fazer algo que não deseja, está bem?
— É assim tão fácil perceber? — respondeu Sheila, chocada.
— Que você se sente atraída por ele? Sim. E por que evitá-lo? Você não
deixou nenhum outro rapaz esperando em Londres ou. . .
— Não. Claro que não — interrompeu Sheila, ansiosa. — Mas vim aqui
para pintar e não para me envolver com um homem.
Tia Inez não levou a afirmação muito a sério:
— Luís sempre viverá na Espanha. Acho que é uma coisa que você
precisa saber. Ele não vai querer uma ligação tão problemática quanto a
dos pais dele. E você, seria capaz de se satisfazer com um simples caso
de verão?
Era difícil saber. Luís tinha o poder de fazê-la sentir-se tão estranha que
já não possuía muita certeza do que realmente queria.
— Minha pintura vem em primeiro lugar! — insistiu, como se quisesse
convencer a si mesma. — Não sonho com um casamento ou outra coisa
qualquer além do meu trabalho.
— Isso você diz agora, minha querida. Quer que eu fale com Luís?
— Não é preciso, acho que posso dizer pessoalmente.
Na tarde seguinte, Sheila estava na ampla varanda em companhia de
dona Inez, que lhe explicava o significado de cada grupo religioso que
passava sob a sacada. Luís saíra logo após o almoço para participar de
um deles.
As procissões desfilavam pela cidade incessantemente. Estátuas da
virgem podiam ser vistas por todos os lugares com tantos nomes diferentes
que era impossível relembrar. O que mais interessava a Sheila era a beleza
das estátuas de santos carregadas pelos fiéis. A técnica utilizada era a
mesma dos tempos antigos e fora transmitida através dos séculos, desde
a Babilônia até o Egito, passando pela Grécia e Roma até os artesãos
espanhóis. Ela observara que as imagens raramente eram substituídas e,
quanto mais velhas fossem, maior veneração o povo lhes prestava.
A mais antiga, segundo Luís lhe contara, era a do Cristo de Burgos,
esculpido por Juan Baptista Vasquez em 1573. Entretanto, quando Sheila
a viu passar, podia jurar que era uma obra atual, por causa de sua
estruturação inovadora.
— Não está sendo um dia muito bom para Luís hoje — confidenciou tia
Inez a Sheila. — Ele finge ser fiel à Igreja para agradar meu marido, mas
não é um penitente verdadeiro. O caráter dele é outro, ele nunca seria um
penitente na vida real.
por um dos irmãos que portava uma espada, para lembrar os espectadores
de que aquele grupo se dedicava a defender a doutrina da Imaculada
Conceição, mesmo se isso custasse a vida, assim como os ancestrais deles
o fizeram por vários séculos.
Tia Inez encheu-se de orgulho:
— Aquela é a nossa confraria. É a segunda mais antiga da cidade!
Sheila ouviu a explicação, porém estava mais interessada em saber como
Luís conseguia agüentar aquele peso. Como conseguia se obrigar a
levantar a carga de novo, a cada pausa? Por que não colocavam as
imagens sobre rodas?
Estava prestes a interrogar a anfitriã, quando esta colocou um pequeno
frasco em suas mãos.
— Farão uma pausa agora — murmurou tia Inez. — Desça, querida. E dê
isto a Luís. Ele deve estar precisando.
Sheila ficou aturdida:
— Como vou achá-lo?
— Ele está carregando o andor. Está no grupo de El Silencio. Rápido,
menina, antes que eles prossigam.
Sheila deixou a varanda da casa e correu para a rua. A multidão a
empurrava, todos queriam aproveitar ò máximo daquela ocasião, o dia
mais importante no calendário da cidade. Ela sentia-se perdida no meio
dos fiéis, não tinha domínio sobre os próprios passos e estava aflita à
procura de Luís.
De repente, a agitação diminuiu, a irmandade que passava naquele
momento não era recebida com os mesmos gritos de exaltação. O único
ruído que se ouvia era uma estranha combinação de sons de delicados
instrumentos do século XVI e soava como um lamento.
Ao menos saberia de qual grupo se aproximar, pensou ela.
Os outros inspiravam uma série de comentários, mas somente aquele
Cristo humilde pregado à cruz era recebido em silêncio.
Só podia ser El Silencio, como tia Inez dissera.
O guia fez um sinal e o grupo parou para descansar. Sheila abriu
caminho naquela direção, mas era quase impossível saber qual daqueles
homens seria Luís: todos usavam enormes capuzes!
— Luís! — chamou em voz alta.
Os homens fatigados abriram caminho para que pudesse passar. Ela
quase nem teve tempo de olhá-los, pois Luís passando o andor para um
companheiro, puxou-a até as últimas fileiras segurando-a contra o peito
nu.
— O que você está fazendo aqui?
— Sua tia lhe mandou isto — falou ela em voz baixa, estendendo-lhe o
frasco.
Os homens riam e faziam muito barulho, até que Luís lhe disse algo
que os aquietou, pelo menos por alguns instantes.
— Volte para minha tia, Sheila! Isto não é lugar para você!
Sheila olhou ao redor:
— Só você?
Bill suspirou, como se estivesse tratando com os caprichos de uma
criança:
— Faça como quiser. Mas como aconteceu de você estar aqui com essa
boa aparência e descansada, enquanto eu, exausto e sujo da viagem, não
tenho sequer um lugar para dormir esta noite?
— Talvez porque eu organize minha vida melhor do que você —
respondeu Sheila, sem conseguir deixar de provocá-lo. — Como chegou
aqui?
— Consegui uma carona. E você?
— Vim com o meu patrão. Estamos hospedados na casa dos tios dele.
— Ótimo. Será que você consegue me levar, para jantar lá? Não como
nada desde ontem.
Sheila não sabia o que fazer. Não queria que ele a acompanhasse. Na
verdade, achava que não teria coragem de apresentá-lo como amigo em
nenhum lugar. Preferia ter evitado aquele encontro, mas era tarde demais.
— Pode me acompanhar. Se a dona da casa o convidar para jantar, você
fica.
— É justo.
O resto da tarde estava arruinado, ela desejara fazer parte daquela
multidão e deixar fluir as emoções com a mesma intensidade das outras
pessoas, entre a profusão de ruídos e as milhares de flores coloridas.
Porém, sentia-se tensa com aquele homem que nada mais representava
em sua vida, a não ser o incômodo de tê-lo ao lado numa ocasião como
aquela.
Queria ver as flores vermelhas quando o Judas passasse e participar da
euforia geral, mas a emoção coletiva não encontrava mais resposta nela.
Sentia-se inibida à passagem de cada um dos grupos. Não adiantava
insistir, perdera a oportunidade de vivenciar a essência dos sentimentos
espanhóis.
A procissão terminou e a multidão começou a se dispersar.
Sheila ainda tinha esperança de que Bill desistisse de ir com ela, mas
estava sem sorte. Ele colocou o braço ao redor da cintura dela de uma
maneira que parecia vulgar e familiar demais para os espanhóis, sempre
tão respeitosos.
Com um movimento rápido, afastou-se dele.
Mas Bill não desistiu e Sheila cedeu até que alcançaram a porta da casa,
quando então empurrou-o para o lado.
— Não acredito! — exclamou ele, enquanto Sheila lhe fazia um sinal para
entrar.
— Não se impressione. Tenho que trabalhar tanto quanto você.
— Mas é diferente para uma mulher.
Ele era tão inoportuno que Sheila começava a ficar de mau humor. Saiu
á procura de tia Inez, esperando que ela concordasse em conhecer Bill.
— Mas é claro, minha querida — respondeu ela amavelmente. — Onde
está seu amigo?
Ele se contraiu:
— Nunca tive certeza sobre isso. — E virou-se para dona Inez. — A que
horas vamos comer? Preciso tomar um banho antes e achar alguma
camisa folgada. Acho que o titio pode me emprestar uma. — Ele sorriu. —
Nunca me sinto tão inglês como neste dia do ano. E você, Sheila?
Ela retribuiu o sorriso:
— Estou seguindo o conselho que me deu. Vou parar de pensar tanto e
deixar as coisas acontecerem, sem interferir. Acho que conseguirei pintar
um quadro fantástico sobre tudo que vi hoje!
— Bom para você!
Luís tocou de leve na mão dela, que ficou trêmula de excitação e
aterrorizada por se sentir descontrolada com um simples toque. Deixou-se
ficar sentada, quieta, mas na verdade estava louca para correr atrás dele
quando o viu afastar-se em direção ao quarto.
— Acho que já entendi tudo — escarneceu Bill. — Eu devia ter
desconfiado que não era sua arte que a trouxe para tão longe!
CAPÍTULO VI
Bill não fez nenhum esforço para ser agradável com os anfitriões. Quando
estes se desculparam pelo jantar que fora simples por ser um dia de
abstinência, ele queixou-se em voz alta dizendo que não era católico e não
via sentido algum em deixar de comer carne.
A maioria dos empregados da casa tinha tido folga para assistir às
procissões, mas mesmo assim o serviço da mesa fora impecável. Porém,
Bill ainda aborreceu Adolfo, dizendo-lhe que deveria contratar tantas
pessoas quantas fossem necessárias para que sua vida corresse suave e
com a pompa que um palacete como aquele merecia.
Sheila ficou sem voz ao ouvir tais comentários, mas os outros não
deixaram transparecer que haviam ouvido algo impróprio.
O pior de tudo, entretanto, foi que ele não parou de falar sobre a pintura
de Sheila, depreciando sua obra com desdém,até que Luís não se conteve:
— De que exposições já participou, Bill?
— Geralmente dou apenas aulas.
— Talvez tenha tomado a decisão certa. . .
Bill se virou para ele de mau humor:
— E o que sabe a respeito disso? É preciso trabalhar muito para fazer
uma boa pintura moderna. É esta minha queixa sobre a exposição de
Sheila. Ela só o conseguiu devido à sua beleza e personalidade, e não por
sua habilidade como artista.
— Não concordo — interrompeu Luís. — Eu vendo muito bem minhas
telas, mas estou consciente de que Sheila é uma artista muito melhor do
que eu. Tudo o que lhe falta é um pouco mais de confiança. Ela ficou
muito tempo fazendo o papel de mera assistente de outros pintores ao
invés de se dedicar ao próprio trabalho, e agora está tendo dificuldades de
se afirmar, Não posso imaginar quem colocou tudo isso na cabeça dela.
Por acaso você sabe?
Bill sorriu com ar de superioridade:
— É isso que venho tentando explicar. Ela não teria freqüentado a escola
de artes se o pai dela não tivesse condições de pagar a mensalidade. Sheila
nunca conseguiria uma bolsa de estudos. As mulheres geralmente são
talentosas, mas o sucesso é reservado aos homens. Diga-me o nome de
alguma artista ou compositora que tenha ficado famosa. Não existe!
— Além de algumas escritoras famosas como Virgínia Woolf, poderia citar
ótimas artistas plásticas, como Artemisia Gentileschi, Angélica Hanffman,
Berthe Morisot, e mais recentemente Kathe Kollwitz, Barbara Hepworth,
Louise Nevebon. . . Talvez elas não tenham tido tanto sucesso quanto seus
colegas homens, mas sem dúvida foram excelentes artistas. Talvez alguns
fatores sociais, como o preconceito contra o trabalho da mulher, tão
presente em nossa sociedade, as impediram. . .
— Mas os homens também passam por dificuldades semelhantes e
muitos conseguem ultrapassá-las.
— Tem certeza? — retrucou Luís. — Até antes deste século é muito difícil
você encontrar algum artista de origem social humilde que tenha se
sobressaído nas artes. Não seria também uma forma de preconceito?
Foi Adolfo quem pôs um fim à discussão. Ele olhou carinhosamente para
a esposa e disse:
— Eu sempre achei que o homem e a mulher poderiam se complementar,
sem precisar estar sempre competindo. São duas metades de um ser
único. É claro que muitas das grandes obras do passado surgiram da
habilidade masculina. Mas posso imaginar as jovens da Pérsia e da
Turquia desenhando e tecendo seus tapetes, e ninguém duvidaria de que
eram obras de arte de fato. O que sei é que quando o valor das mulheres é
aceito da mesma maneira que o dos homens, aí sim surge algo realmente
grande. Sempre achei que este era o motivo do grande florescimento da
Grécia clássica, a Civilização Helênica, orientada pelos homens invadindo e
conquistando Greta e Micenas, sob orientação feminina. Quantas
maravilhas surgiram daquela união!
Tia Inez não escondia o riso irônico e Sheila invejou-a. Sua família teria
concordado com Bill, sempre fora assim.
Suspirou, imaginando como teria sido diferente se houvesse recebido
algum apoio de seus pais. Levantou o rosto e surpreendeu o olhar de Luís
sobre si. Ele a observava com olhos brilhantes e penetrantes. Embaraçada,
Sheila pigarreou e disse sincera:
— Tudo que sei é que desejo pintar, não importa quais sejam as
condições.
Bill se inclinou sobre a mesa para alcançar-lhe a mão e começou a
acariciar os dedos dela!
— Será um bom hobby para sua vida!
Sheila ficou pasma, pensando no que afinal achara de interessante nele
um dia. Mas isso não importava mais. Ela conhecera algo melhor e não
precisava que ninguém lhe dissesse como devia agir. Bill era um
empecilho no tipo de vida que escolhera para si.
Em seguida, Luís virou-se para ela, mas o olhar estava frio e distante:
— Se Sheila permitir que seu talento se transforme num mero
passatempo, seria realmente vergonhoso. Ela só precisa de tempo para
encontrar a própria identidade entre pessoas que a entendem. Pelo visto,
parece que nunca teve compreensão por parte de ninguém.
Era a pura verdade, pensou Sheila, já de volta à casa de campo de Luís
olhando para a tela vazia à sua frente no meio da varanda de seu ateliê.
Mas sabia que não mudara muita coisa, desde aquele dia. Não tinha
certeza do que queria alcançar. Talvez o melhor fosse possuir uma
felicidade tão simples e pura como ã de tia Inez.
Porém algo dentro dela pedia mais. Voltou a fitar a tela em branco sem
alcançar a concentração necessária. Uma leve dor no coração a deixava
inquieta.
— Pensei que estava se preparando para a chegada dos hóspedes,
amanhã.
Ela sorriu para Tiago, pensando em como os três irmãos eram gentis,
enquanto ele estava na varanda do ateliê.
— Estou pronta para qualquer coisa!
— E por que fica olhando para a tela vazia? — Sentou-se ao lado dela. —
Você nem disse que sentiu minha falta em Sevilha. É verdade, não é? O
que achou de lá?
— Bem, Luís quase se matou naquela procissão. . .
— Ele é um masoquista! Não tenha pena.
— Luís substituiu o sr. Adolfo. Se não fizesse isso, seu tio . .
— Tio Adolfo se aproveita da bondade alheia. O que você achou deles?
Sheila acomodou-se melhor na banqueta.
— Nunca encontrei alguém como seus tios. Espero que tenham gostado
de mim também.
E depois de uma pausa, continuou:
— Apesar de ter certeza de que eles não gostaram nada de um amigo meu
que encontrei na cidade. — Estava pensativa e desconfiava que Luís já
contara tudo sobre Bill aos irmãos.
— Era homem? Neste caso, não teriam gostado dele mesmo. Você merece
alguém muito especial.
Sheila mudou de assunto:
— Seu tio está muito doente, não é? Mas sua tia ainda é bastante ágil.
Ela deve ter a mesma idade dele.
Tiago sorriu divertido:
— Eles são mais velhos do que você possa imaginar. Você deveria ter
ouvido as histórias que minha mãe contava sobre a Guerra Civil
espanhola. Qualquer um que tenha sobrevivido àquela violência tem de
ser muito forte!
— Eu os admiro. E admiraria qualquer um que saísse ileso de uma
situação como a que a Espanha enfrentou nos anos negros. Li muito sobre
Sheila soube o que era ciúme. Quando a moça se fora, sentira-se insegura
e completamente desamparada. . .
Tiago apontou para a tela, tirando-a das amargas recordações:
— Perdeu a inspiração?
— Acho que sim. Não via a hora de começar a pintar enquanto observava
as procissões. Agora, quando nada me impede, perdi o ânimo.
Tiago olhou-a de soslaio:
— Luís tem algo a ver com isso?
— E por que deveria?
— Não sei. Você se altera toda vez que o nome dele é mencionado. Além
disso, não trocaram nenhuma palavra ontem à noite. Nem sequer se
olharam. Não era assim antes de vocês partirem para Sevilha. Até Pablo
notou.
— Não precisamos gostar um do outro. Sou uma mera professora
contratada.
— Foi isso o que ele disse?
— Não. São os meus amigos que ele desaprova. Talvez ele também não
me aprove! — acrescentou com provocação.
Tiago pareceu aliviado:
— Se é só este o problema, conseguiremos sobreviver por todo o verão.
Para ele era fácil, pensou Sheila, enquanto observava Tiago se afastar.
De longe, parecia-se muito com Luís, mas não era a mesma coisa quando
estava perto dela. Sheila tentara ser agradável na noite anterior, mas tudo
que sentia era tristeza, e não conseguira disfarçá-la por muito tempo.
Tiago tentara se aproximar com olhares lânguidos, porém logo desistira
quando notara que aquilo não levaria a nada. Ele flertaria com qualquer
mulher que lhe atravessasse o caminho. Não era justo. Luís só precisava
lançar-lhe um rápido olhar para que um leve tremor percorresse todo o
seu corpo. Como agüentaria passar o verão inteiro ao lado dele?
Ficou com tanta raiva daquela situação que resolveu tomar uma atitude.
A tela não poderia ficar branca para sempre. Colocou algumas tintas sobre
a paleta e começou a pintar com determinação.
Criou uma obra que só poderia ter sido feita por alguém de muito talento!
Soube então que Bill Diamond saíra de fato de sua vida, não precisava
mais provar nada. A própria obra demonstraria do que era capaz!
Nem notou quando o sol começou a se pôr. Só ao não conseguir
diferenciar o marrom do vermelho é que parou, afastando-se um pouco
para poder apreciar melhor o trabalho.
— Oh!
Sheila reconheceu a voz de Luís, virando-se furiosa para ele.
Seus olhos flamejavam de raiva.
— O que você quer? Faz tempo que está aqui?
— Esperava você acabar.
— Já não há luz suficiente, terei de deixar para amanhã. Detesto ver
uma tela inacabada. Sempre acho que não conseguirei terminá-la depois.
Você está me atrapalhando — acrescentou, ocupada em guardar suas
coisas.
— É mesmo? Nem cheguei perto de você!
Nem ela desejava uma aproximação. Mas mordeu o lábio e tentou não
pensar em quão agradável seria sentir as mãos dele acariciando-a. Por que
fora até lá? Não tinha nenhuma responsabilidade e nenhum motivo para
querer ajudá-la a sair daquela situação que ele mesmo provocara.
— Minhas telas são muito pesadas. Tenho medo de sujar a tinta molhada
se tentar removê-la. — Olhou-o ainda se perguntando qual o motivo de
aquele homem exercer tanta atração sobre ela.
— É uma indireta para que eu a ajude a carregá-la para dentro? — Luís
sorriu com um ar maroto.
Será que era isso? Sheila ficou paralisada, fora de si, olhando para a
tela.
— Não, não foi. Sempre fiz tudo sozinha. Não quero incomodá-lo.
— E acha que é tão forte quanto eu? Realmente acredita que não há
diferença entre nós?
— Não, é apenas porque as pessoas nunca se oferecem para me ajudar.
— Sheila estava séria ao constatar aquele fato real.
— Estudantes nunca são muito cavalheiros. — concordou Luís,
enquanto erguia a tela.
— Está se referindo a Bill?
Luís a encarou. Uma leve tensão surgira no rosto dele.
— Se você acha. . .
— Não! Você está sendo injusto com Bill. Ele é tão bom que o convidaram
para lecionar antes mesmo de terminar o curso!
— Isso não prova que seja um bom pintor!
Sheila fez um sinal em direção ao ateliê. Luís segurou o quadro com força
e entrou no ateliê com passos largos. Sheila desviou o olhar, pois a
energia daquele homem a deixava fascinada.
Temia perder a cabeça.
— Obrigada — disse sem fitá-lo, enquanto encostava a tela na parede.
Luís deu um passo para trás analisando a pintura.
— Bill não tem muito a ver com isto, não é verdade? — perguntou
triunfante.
— Bill não faz parte do cenário espanhol!
— Tem razão.
Luís não se mexeu, mas os pensamentos voaram:
— Suponho que ele fazia parte do seu mundo em Londres.
— Ele concordava com a opinião geral de que o melhor para mim era ser
uma boa assistente para o resto da vida.
— E estavam certos?
— Não!
Ninguém podia convencê-la. Na verdade, sabia que tinha mais do que
talento. Suas obras prometiam muito. Não importava a opinião alheia.
Tentara se conformar com o exemplo de Van Gogh, que nunca vendera
nenhuma tela enquanto vivera. Ser melhor que Van Gogh nisso não era
nenhum mérito, mas fora encorajador ter vendido quase tudo em sua
primeira exposição.
— Então por que não esquece todos eles e começa a ter uma vida
independente? Bill era assim tão maravilhoso que você não consegue
trabalhar sem pensar nele?
Sheila ficou chocada e deixou-se cair na cadeira mais próxima.
— Sempre achei que conseguia controlar a minha vida sozinha. O que o
faz pensar o contrário?
Luís continuou a olhar a tela. Sheila começou a se lembrar de como se
sentira quando ele a tomara nos braços e a beijara.
Parecera-lhe estar vivendo uma nova dimensão que nunca sonhara antes.
Sua imaginação começou a funcionar. . . Viu-se deitada na cama com
Luís, seu corpo colado ao dele, o contato desencadeando uma reação
intensa de desejo e procura. Como seria sentir as mãos dele sobre sua pele
nua? Suspirou profundo e tentou afastar aquela fantasia. Será que Luís
queria fazer amor com ela?
— Eu não sei — disse ele finalmente. — Quando olho suas telas, posso
sentir a violência de uma paixão e uma sede de viver intensa, só pelas
cores que você utiliza. Não acredito que tenha adquirido muita experiência
de vida até agora. Se não a conhecesse um pouco, suporia que você é tão
tímida quanto uma adolescente. Mas isso não importa.
— Pois para mim, sim!
— Sim? — Ele pareceu interessado. — Por que você perde seu tempo a
agradar gente como Bill?
Sheila ficou tão perdida que lhe contou a verdade:
— Bill é o tipo de pessoa que meu pai gosta e aprova.
— Mas você tinha de aceitar a opinião dele?
— As discussões na minha família me deixaram esgotada a ponto de não
conseguir mais trabalhar. — Falou rápido e, num suspiro desanimado,
terminou: — Era mais fácil concordar. . .
Luís se aproximou e ficou ao seu lado. Não queria levantar os olhos para
vê-lo e sentia-se intimidada pela situação. Envergonhada, fitou as
próprias mãos. Só quando percebeu que o nervosismo era mais do que
visível, desistiu de mostrar-se calma e deixou a raiva explodir:
— Vá embora!
Luís se inclinou e segurou-lhe as mãos. Sheila tentou tirá-las, mas ao
deparar com o olhar meigo dele e sentir seu contato quente e delicado,
deixou-se ficar e sentiu o corpo relaxar um pouco da enorme tensão.
— Bill foi seu namorado? — insistiu ele. — Quem você vai colocar no
lugar dele? Alguém que a leve até a lua, se for preciso, ou alguém que
tenha idéias medíocres a respeito de sua arte?
Um fraco sorriso apareceu no rosto de Sheila e, já mais calma,
perguntou irônica:
— Você está se candidatando?
— Talvez — respondeu, sentando-se ao lado dela.
— Por quê? — O tom de brincadeira sumira da voz. — Para me ajudar a
CAPÍTULO VII
trabalhando, ainda mais que tinha feito grande esforço para poder se
concentrar. Teria de abandonar todo aquele mundo de cores e voltar à
realidade. Por isto, estava muito séria quando saiu e "tomou seu lugar na
varanda ao lado de Tiago.
Não estava nem um pouco animada em conhecer aquelas pessoas, pois
sabia que a maioria delas tinha uma visão de arte que não combinava com
a dela.
O microônibus que levara o grupo do aeroporto até a casa tinha uma
faixa presa na parte lateral, trazendo o nome de Luís em letras grandes e
coloridas. Todos vestiam roupas demais para aquele clima e traziam
sacolas cheias de compras. Sheila começou a olhar cada um deles com
atenção, na esperança de encontrar pelo menos um ou dois com quem
pudesse fazer amizade.
Um homem, visivelmente entediado, estava de pé um pouco afastado
do grupo e mantinha o olhar distante. Ao contrário dos outros, que
falavam sem parar, ele não comprara nada na free shop do aeroporto. A
única coisa que trazia nas mãos era um estojo de pintura inteiramente
novo. Sheila teve vontade de rir. Aquele turista parecia tão perdido ali
quanto ela mesma!
As rápidas apresentações dos professores não foram ouvidas pela maioria
dos recém-chegados, e ficaram visivelmente aliviados ao receberem as
chaves dos quartos com Pablo. Atravessaram o pátio em direção à
escola todos juntos, tagarelando sem parar, menos aquele homem. Por
um momento, Sheila pensou que ele desistira, pois o viu caminhando
na direção do micro-ônibus. Mas logo ele voltou, trazendo uma jaqueta
elegante e de corte impecável.
— Quer que lhe mostre o caminho? — perguntou Sheila quando ele se
aproximou.
O homem olhou para ela e sem prestar muita atenção disse:
— Ainda não consegui entender o que estou fazendo aqui. De todas as
idéias que já tive, esta é a mais absurda! O que há de tão interessante
para se fazer num curso de iniciação à pintura em pleno verão?
— Talvez descubra um talento escondido dentro de si. — Ela sorriu. —
Estou aqui para lhe ensinar algo sobre pintura.
— Por Deus!
Sheila o fitou séria. Com certeza ele a tinha tomado por uma governanta
ou até mesmo como secretária. Mas teria mantido a elegância se não
visse do outro lado da varanda o riso irônico de Luís.
— Acredito saber mais de pintura do que o senhor. — Começava a ficar
irritada e a custo permanecia fria. — Alguma vez já prestou realmente
atenção numa pintura, sr. . .
— John Smith.
— Bem, ainda não me respondeu.
— Sinto muito desapontá-la, senhorita. Eu possuo vários quadros. É
mais fácil colecionar do que pintar, assim como acredito que deva ser mais
fácil dar aulas do que colocar-se na frente de uma tela em branco e criar
tantos lugares para conhecer! Talvez não tivesse tempo de visitar Granada
e Córdoba, e até o posto avançado do império inglês, Gibraltar, a deixava
curiosa.
De repente, escutou patas de cavalo se aproximando. Sheila tinha medo.
Eram animais tão grandes! Além disso, jamais poderia esquecer a cena
que um dia presenciara, quando uma criança caíra de um deles mas o pé
ficara preso no estribo e fora arrastada por alguns metros.
Levantou-se prestes a fugir, mas o animal já alcançara o platô.
Apesar do pavor, conseguiu admirar a bela figura que formavam o cavalo
e seu cavaleiro. À luz do luar, pareciam magníficos. O cavalo parou agitado
quando notou a presença dela.
Sheila estremeceu.
— O que está fazendo aqui? — perguntou Luís.
— Só queria respirar um pouco de ar fresco.
— Onde está John Smith?
— Como vou saber?
Luís relaxou os ombros e inclinou-se na sela. Sheila tremia de medo e
deu um passo para trás.
— O que está havendo? — Ele estranhou a reação dela. — O que você
está tentando esconder?
— Nada...
Ele desmontou e colocou as mãos sobre os ombros de Sheila, impedindo-
a de fugir.
— Mas você está tremendo! Não está com medo de mim, não é?
— Do cavalo — sussurrou ela. Podia ouvir as rédeas rangendo quando o
animal se movia. — Está tudo bem?
— Comigo sim; e com você?
— Desde que ele não resolva me derrubar. . .
Sheila sabia que estava sendo ridícula, mas preferia ficar longe do cavalo,
de maneira que pudesse observá-lo.
— Ele não lhe fará mal algum — assegurou Luís, abafando o riso. — Cães
e cavalos são os animais mais amistosos que existem.
— Eu gosto de cães.
Na verdade, ela nunca chegara muito perto de um deles, mas Luís não
precisava saber disso. Era normal que as pessoas gostassem de algum
animal. E era óbvio que ele os adorava. Luís podia se dar bem com todo
mundo, ela pensou.
— Venha, vou levá-la para um passeio a cavalo. Morando em Londres,
não deve ter muitas oportunidades. . .
— A rainha possui centenas de cavalos no centro de Londres —
interrompeu ela.
— Foi esta sua única aproximação com cavalos? Você nunca chegou
perto de um?
— Não, nunca.
Ela não sabia explicar como, mas enfim cedera. Luís ajudou-a a montar,
colocou-se às suas costas e passou o braço na cintura dela, segurando-a
CAPÍTULO VIII
John Smith contou para Sheila que a esposa tinha viajado para a
América a negócios. Sheila não conseguia entender por que aquela mulher
cruzava o oceano para resolver assuntos da empresa e não podia ir até a
Espanha para ver como passava o marido. Quanto mais argumentos
ouvia sobre a ausência da sra. Smith, menos vontade tinha de conhecê-la.
Apesar do estojo de pintura novo em folha, John Smith ainda não
esboçara nenhuma das paisagens que Sheila indicara para o grupo.
Passava o tempo todo lendo a seção de finanças no Times londrino, não
se importando com o fato de o jornal ter a data de dois dias atrás. Ele
assistira a todas as aulas de Sheila e de Luís, mas ela suspeitava de que
não ouvia uma palavra do que diziam. Ficava com os olhos fixos neles,
mas, com certeza, os pensamentos estavam em outro lugar.
Para animá-lo um pouco, Sheila convidou-o uma tarde para visitar Tarifa,
a cidade mais próxima. Um súbito interesse surgiu no rosto dele:
— É uma antiga cidade moura. Você está procurando outra paisagem
para pintarmos?
— Não. Só, quero sentar num café e descansar um pouco, vendo o
mundo passar. Nem quero pensar em pintura!
Era ela que estava falando? Sheila se surpreendeu consigo mesma.
Desde quando queria conversar sobre outra coisa que não fosse
pintura?. . . Depois de conhecer Luís, nos últimos dias percebera nela
uma tendência de ficar sentada em algum canto sonhando com ele.
Não, não podia aprovar tal coisa. Sempre desejara ter tantas horas
vagas para pintar como conseguira naquela temporada, mas tudo que
fazia era desperdiçar o precioso tempo. Se isso continuasse, chegaria ao
fim do verão sem ter produzido uma obra sequer.
— É um direito seu — respondeu ele. — Mas acho que você também não
teria nenhum interesse em falar de ações e fundos de investimento ou
algo parecido.
— Realmente, não.
— Já temia por isso. — John suspirou desanimado.
Após alguns segundos de silêncio, o rosto dele se iluminou.
— Que tal falarmos sobre compra e venda de arte moderna? Isto deveria
interessá-la. Nunca se deve comprar uma tela sem considerar o valor de
revenda!
— É assim que você faz? — Sheila sorriu divertida.
— Sempre. Você deveria visitar a sede de nossa empresa; um dia. Alguns
dos melhores exemplos da pintura moderna britânica estão lá, expostos
ao público.
Era um bom assunto, sobre o qual poderiam discutir amigavelmente.
Sheila descobriu que aquele homem tinha surpreendente conhecimento
sobre as tendências da pintura atual. Conhecia os artistas que vendiam e
os que não. Sucesso era ter dinheiro no banco, segundo ele. O pobre
61 Livros Corações – Projeto Revisoras
Bianca 380 – Romance Espanhol – Elizabeth Hunter
— E por que não? Não esqueça de Tom, Dick e Harry. E John. Até
você, Luís, ou prefere ignorar isso?
Luís estava visivelmente alterado e fazia força para se controlar. Com
cuidado para não tocar na tela molhada, pegou Sheila pela cintura, tirou-
a de cima da banqueta e colocou-a no chão. Ela ficou constrangida e não
agüentou mais:
— Escute aqui, Luís, você só pode fazer alguma reclamação se eu não
estiver desempenhando bem meu trabalho como professora. Já que estou
me saindo bem nas aulas, que tal dar o fora e me deixar sossegada?
— Para pintar ou passear com John Smith?
— O que você tem a ver com o que eu faço?
As mãos dele ainda repousavam em sua cintura, e a apertaram de leve,
num misto de carinho e arrependimento por tê-la provocado tanto.
— Tudo que você faz me importa, Sheila.
— Desde quando?
Luís a soltou tão de repente que ela quase perdeu o equilíbrio. Deixou
as mãos caídas ao longo do corpo, olhou para Sheila desanimado e
comentou:
— Meu Deus! Tanta discussão não nos levará a parte alguma!
Observaram-se em silêncio por alguns instantes. Sheila sentiu o coração
bater acelerado. Não conseguia entender como aquele homem podia atraí-
la a ponto de deixá-la quase sem controle. Porém, estava determinada a
não demonstrar suas emoções e achou melhor continuar o assunto.
— Onde você quer chegar?
Luís ergueu as mãos até roçar os cabelos dela, e brincando com eles
disse:
— Acho que ainda não chegou a hora de lhe falar.
— Tente.
Ele passeou os olhos pela sala. Sheila imaginou que talvez estivesse
tentando achar uma desculpa para voltar atrás, e sentiu-se melhor ao
constatar que Luís parecia tão nervoso quanto ela.
— A propósito — continuou —, que quadro meu você mostrou aos
alunos?
— Como? — Ele ergueu as sobrancelhas, mas em seguida ficou seguro
de si novamente. — Alguém lhe contou, não foi?
— Sim. Você deveria ter adivinhado que eu acabaria sabendo.
— Você havia saído com meu irmão para encontrar paisagens que
pudessem ser pintadas pelo grupo e Tiago prometeu que não a traria de
volta antes do entardecer.
— Ele não tinha o direito de me distrair só para você poder mostrar
meu quadro.
— E por que não? Há muitas vantagens em ser o irmão mais velho.
— É mesmo?
— Sim. Foi um grande favor que ele fez, pois assim as pessoas puderam
observar o quadro sem a sua interferência, que na certa os deixaria
constrangidos e incapazes de apreciá-lo por inteiro. — Desviou os olhos
dela e fixou-os na tela. — Sabe, esse vai ficar ainda melhor do que o da
catarata.
— Estou começando a me convencer. Geralmente fico muito tensa
quando estou pintando, mas desta vez é diferente. Até consigo tempo
para conversar com você!
Luís parecia satisfeito:
— Você não permitiria que John Smith chegasse assim tão perto de
você, não é?
— Por que continua a falar dele? John é tão desinteressante e solitário
quanto a empresa que dirige. Além disso, é casado.
— Ah, então você se lembra disso às vezes?
— Nem se quisesse, não poderia esquecer, ele fala muito de Penélope.
Deve ser a mulher perfeita para um homem como ele!
Luís olhava a pintura segurando o queixo, e demorava-se bastante
tempo no exame de cada detalhe.
— Ajuda muito ter um interesse comum — comentou ele. — Mas isso
não é tudo num casamento. John Smith pensou que talvez pudesse se
divertir um pouco com você.
— Acredito que ele não tenha nem interesse em se divertir. — Sheila
estava zangada. — Isso interferiria nos negócios. Além do mais, ele diz que
sou tão obcecada quanto ele. E acho que tem razão. Está satisfeito?
Toda a perturbação desaparecera do rosto de Luís. Olhava para ela com
um amplo sorriso.
— Não, não fiquei satisfeito. Estou longe disso. Você passa o tempo todo
dando aulas ou pintando. Ou tomando café com John Smith! Quero ficar
um pouco com você! Não posso ensiná-la a cavalgar porque tem medo de
cavalos. O que mais você gosta de fazer além de pintar?
Sheila lembrou as várias ocasiões em que preferira ficar com ele do que
pintar. A intensidade das recordações deixou-a envergonhada e, antes de
se sentir ainda pior, argumentou:
— Acho que você não tem direito. . .
— Direito?
Sheila olhou para ele, e na mesma hora desejou não tê-lo feito.
Algo naquele olhar enigmático a cativava. Não conseguia pensar direito
perto dele. Durante toda a tarde mantivera-se concentrada na pintura e,
quando Luís aparecera, ficara contente em poder conversar um pouco com
ele. Até gostara da interrupção! Porém, as emoções cresciam e tornavam-
se perigosas. Era um sentimento muito próximo da felicidade!
Mas Sheila tinha medo. Como conseguiria conciliar o trabalho com uma
relação afetiva?
— O que você quer, afinal? — Ela tentou ser fria.
— Quero passar mais tempo na sua companhia. Isso a deixa assim tão
surpresa?
— E. . . eu. . . não. . . estou surpresa.
Luís fitou-a sério, mas um sorriso começava a se formar nos lábios dele
e, em seguida, riu. Era um som forte e jovial, que enchia toda a sala.
CAPÍTULO IX
68 Livros Corações – Projeto Revisoras
Bianca 380 – Romance Espanhol – Elizabeth Hunter
luta para mim. Bill era uma das poucas pessoas que me davam atenção.
Quase ninguém ligava para minha pintura. Muitos professores não
entendiam o que eu fazia lá. Eu só queria continuar. Se não tivesse
certeza de que era melhor que a maioria dos meus colegas, eu não teria
sobrevivido.
— Mas a galeria cedeu um espaço para você expor. Isso deve ter-lhe
dado mais confiança.
— Sim, foi uma grande ajuda. Entretanto, Bill nunca foi ver minha
exposição.
— Não é possível!
— Mas foi assim. — Sheila riu. — Bill era o garoto-prodígio da sala. Ele
já dava aulas quando nós ainda nem dominávamos bem as técnicas de
pintura. Ele foi compreensivo comigo. Mas eu queria ter dividido a alegria
da exposição com ele!
— Parece que era um caso sério — murmurou Luís.
— Não era um caso.
Luís se encostou na cadeira com uma expressão enigmática no rosto e
depois falou, mudando totalmente de assunto:
— Bem, acho que conseguirei ensiná-la a montar, apesar de tudo. Os
cavalos estão precisando de exercício.
— Você terá de esperar até eu criar coragem e concordar em cavalgar!
Luís sorriu para ela com tanta intimidade que Sheila prendeu a
respiração e desviou os olhos.
— Sou um homem paciente.
— Que diferença faz se eu sei montar ou não?
— Para mim faz. E muita!
Sheila não sabia o que responder. Não podia se imaginar galopando
pelas colinas, como Luís fazia. Gostava de ficar com os pés no chão. Mas
tinha de concordar que vivera um prazer indescritível na noite em que
Luís a colocara na sela junto dele e saíram noite adentro. Fora um
momento mágico e ela duvidava que aquilo se repetiria. Não seria a mesma
coisa cavalgar sozinha.
O silêncio caiu sobre a sala do restaurante e uma grande expectativa
tomou o lugar dos risos e das conversas. Lá de baixo vinha o barulho das
ondas quebrando nas rochas ao longo da costa. Um pássaro solitário
soltou, um grito agudo que ecoou no ar. Sheila ficou tão excitada quanto
os outros, embora não soubesse o que esperavam. Então Mercedes surgiu
na porta, uma Mercedes vestida de maneira totalmente nova para Sheila.
Trajava um vestido debruado de dançarina flamenca com cauda longa.
Os cabelos foram enfeitados com um pente cravejado de brilhantes e
uma mantilha de renda. Trazia um leque preto na altura do rosto, abrindo-
o e fechando-o com um leve estalo enquanto caminhava entre as mesas.
— Mercedes! — sussurrou Sheila, pasma.
Mercedes virou-se e acenou para ela. Ela estava linda! Sheila quisera
poder guardar na memória as linhas extravagantes do vestido, todos os
gestos perfeitos e retratá-la num quadro. Era o espírito da velha Espanha
Ela sabia a causa: era frustração e todos aqueles pensamentos que não a
deixavam em paz.
— Mercedes nunca ficou tentada a levantar mais dinheiro para ambos?
Isso daria ao casamento um começo melhor.
— Melhor em quê? Eles são jovens e se amam. Tudo que querem é ura
ao outro.
— Mas devem querer mais que isso!
Luís encarou-a por alguns segundos, antes de voltar os olhos para a
estrada.
— O quê, por exemplo?
Tudo que Sheila sabia é que deveria existir algo mais que eles
almejassem. Ela mesma queria a segurança de seu trabalho, que
significava poder comprar tantas telas e tintas quantas desejasse. Mas
seria isso mesmo? Naquela noite, Sheila quisera que Luís não prestasse
mais atenção à dança de Mercedes e lhe assegurasse que ela era mais
importante. Como tão poucas semanas num país estrangeiro podiam
mudar toda a sua forma de pensar?
Sheila viu com alívio que já estavam chegando. Luís pegara o estreito
caminho que levava até a propriedade, subindo por entre as montanhas
até o vale.
—Venha cavalgar comigo esta noite — sugeriu ele, deixando-a novamente
confusa.
— Oh, não. Não posso! Como você mesmo disse, preciso lecionar amanhã
cedo.
— Eu também. — Piscou para ela.
Sheila ficou tentada a ir. Poderia sentir de novo o corpo másculo de Luís
junto ao seu enquanto corriam a galope pelas colinas. Na certa era
loucura, mas estava tentada a não dar ouvidos aos próprios receios por
ora e deixar que ele a levasse para onde quisesse.
— Por que não trouxe Mercedes, como sugeri? Ela teria ido com você!
Luís encostou o carro no acostamento. Segurou-a pelos ombros,
puxando-a mais para a frente, até onde o clarão da lua iluminava
diretamente o rosto dela.
— Você está com ciúmes, Sheila Hardy. Você realmente está com ciúmes!
— Não é verdade! — gritou. — Por que deveria ter ciúmes de Mercedes?
— Você mesma está dizendo.
Eles se olharam por longo tempo, até que Sheila não agüentou mais e
tentou sair do carro.
— Mas será possível que a música de Mercedes conseguiu fazê-la sentir
tudo que está perdendo na vida? Você está pronta para se livrar de todo
o medo e aprender a amar de verdade? É isso que você quer de mim,
querida?
Sheila sentiu um nó na garganta. Era verdade, cada palavra.
O ritmo flamenco ainda fazia seu sangue ferver, convidando-a a tomar
parte de todo mistério da vida.
— Você quer fazer amor comigo? — perguntou ele.
CAPÍTULO X
para a enorme pintura que pendia na parede oposta à cama. Era a tela
dela! A primeira que vendera antes de expor na galeria! A grande catarata,
a melhor pintura que fizera antes de ir para a Espanha. Mas o que a
pintura estava fazendo ali?
Fora Luís quem a comprara? Fora aquela que ele mostrara aos alunos? A
cabeça de Sheila parecia um emaranhado de perguntas sem respostas.
Mercedes largou a mão de Sheila e se aproximou da mesa de cabeceira.
Pegou uma folha de papel que havia sido deixada ali, acenando para John
Smith.
Sheila apanhou a folha das mãos dela e passou-a a John.
— O que diz aí?
— Que o pai de Luís adoeceu. Tiago e Pablo viajaram durante a
madrugada para a Inglaterra, e ele foi cavalgar para se acalmar um pouco
antes de começar as aulas.
— Então foi isso?
John assentiu e disse:
— Já é o suficiente, não acha? Se ele se machucou, alguém terá de
partir a cavalo para procurá-lo.
— Você sabe montar? — perguntou Sheila, desesperada.
— Eu? Nunca!
— Então eu mesma vou.
Ele ficou boquiaberto.
— Mas você me disse que tinha medo de cavalos!
— E tenho!
Mercedes percorreu com ela o caminho até os estábulos, dando conselhos
incompreensíveis. A governanta sabia como selar um cavalo e segurou a
cabeça dele enquanto Sheila montava.
Então Mercedes virou o cavalo e sussurrou-lhe algumas palavras doces
nas orelhas. Finalmente soltou as rédeas e, com as mãos na cintura, ficou
olhando Sheila se afastar, guiando o cavalo em direção às montanhas.
Uma pancada súbita nas ancas do animal fizeram-no avançar com
rapidez, e para surpresa de Sheila ele começou a galopar.
Mas não havia o mesmo conforto e a segurança que sentira quando
cavalgara junto a Luís. Agora ela tinha de agir por si mesma, sacolejando
numa sela totalmente desprotegida.
Sheila tentou seguir as trilhas marcadas por pegadas recentes,
esperando que Luís tivesse passado por elas naquela manhã.
Quando alcançou o platô onde ele a encontrara naquela noite à luz do
luar, começou a olhar em volta esperançosa. Havia um rastro de sangue
numa das rochas cinzentas e que desaparecia atrás de uns arbustos. As
flores silvestres já estavam murchas pelo forte sol de verão, não restando
nada a não ser uma grama dourada e alguns tufos de tomilho selvagem,
cujas pequenas flores perfumavam toda a área.
Ela teria de desmontar se quisesse investigar o rastro de perto.
Mordeu o lábio, tentando imaginar como subiria de volta na garupa
depois. Bem, teria de pensar em alguma saída e decidiu.
— Você acha que pode levantar com minha ajuda? — perguntou Sheila.
Luís sentou-se e levantou a perna que não estava ferida.
Sheila se inclinou um pouco, estendeu as mãos e ele conseguiu se levantar
com alguma facilidade. Ela deveria ter dado um passo para trás, pensou,
mas já era tarde. Luís colocou o braço ao redor da cintura dela, pousando
os lábios nos seus, num beijo rápido mas cheio de promessas.
— Oh, Luís — murmurou Sheila, lágrimas enchendo seus olhos, não
conseguindo mais se controlar.
Luís a abraçou e tentou puxá-la para perto de si, mas não conseguiu.
Uma dor profunda impediu-o de fazer qualquer esforço.
— Isto é só o começo — prometeu ele.
Sheila não podia deixá-lo ali de pé sozinho, nem via um meio de atrair o
cavalo para perto ou puxá-lo pelas rédeas.
Luís adivinhou seus pensamentos e deu um leve assobio, tentando chamar
a atenção do animal.
— Venha, menina — chamou ele —, você precisa vir até aqui.
Entretanto, a égua nem se moveu. Ela estava gostando do passeio às
montanhas, de ficar junto à grama tão verde, e só sairia dali obrigada.
Luís amaldiçoou-a e disse:
— Há uma subida ali na frente que leva até o platô. Ajude-me a chegar
lá. Depois traga a égua até a trilha que segue logo abaixo das rochas.
— Você pode cair — argumentou Sheila, não querendo abandoná-lo nem
por um segundo.
— Eu conseguirei! Não vou ficar aqui esperando sozinho, agora que você
admitiu que sente por mim algo diferente e muito maior que pelas suas
pinturas!
Sheila olhou-o pensativa. Talvez, se o deixasse zangado o bastante, ele
conseguiria vencer aquele obstáculo. Conhecia bem o que a raiva podia
fazer. Afinal fora o que lhe dera impulso para vencer as piores crises de
sua vida. Talvez fosse uma ajuda também naquele caso.
Eles caminharam lentos até o ponto mais alto que Luís indicara. Sheila
respirava com dificuldade quando finalmente chegaram.
— Outra coisa, Luís. O que o meu quadro está fazendo no seu quarto?
Como o conseguiu? Quem o vendeu?
— Eu o comprei há muito tempo. E sempre quis conhecer o autor.
— Aposto que você pensou que era um homem!
— E importa o que pensei? Gostei tanto dele que o mostrei ao dono da
galeria onde eu estava expondo os meus quadros. Ele não ficava andando
pelas escolas de arte procurando jovens talentos como você parece
acreditar!
— Você quer dizer que devo tudo a você? É por isso que pensa que eu
lhe devo um favor em troca?
Isso o deixou furioso de vez! Sheila se afastou, pois tinha certeza de
que ele agüentaria de pé até que ela pudesse, levar a égua para a trilha
abaixo de onde ele se encontrava.
— Isso não tem nada a ver com nosso caso! — gritou ele.
— É claro que tem. Ê por isso que me convidou a dar aulas na escola?
— Você me pareceu muito satisfeita quando recebeu a proposta!
— Antes de saber que perderia minha independência para você!
A égua estava relutante em abandonar o pasto, mas deixou-se levar sem
muita dificuldade. Sheila conseguiu deixá-la numa posição segura, e só
então voltou a atenção para Luís.
Sheila flagrou uma expressão de malícia naquele rosto bonito e
bronzeado e perdeu o controle, sentindo a face corar.
— Enquanto estiver doente — falou ele, num tom quente e amável —
você vai cuidar de mim, misturar minhas tintas e posar para que eu possa
pintar um retrato seu?
Sheila estendeu as mãos, ajudando-o a subir na garupa junto dela. Não
queria mostrar seus sentimentos para ele naquele momento.
Suspirou:
— É provável.
Sheila segurou as rédeas com firmeza e apressou a égua pela trilha em
direção à propriedade. "É provável", repetiu ela para si mesma, rindo da
situação. Aquilo era o que ela mais gostaria de fazer enquanto ele estivesse
se recuperando.
CAPÍTULO XI
Luís estendeu a mão para alcançá-la, não queria que ela se fosse, mas
Sheila conseguiu se esquivar e fugiu do quarto.
Quando voltou, trazendo uma bandeja com três xícaras de café quente,
tomou coragem e se aproximou da cama de Luís como se nada tivesse
acontecido. Durante toda a semana tinham surgido várias situações
constrangedoras entre eles, e uma série de discussões que não levaram a
nada. Sheila sabia que vivera sob uma máscara durante toda a vida,
escondida atrás das telas, e provavelmente teria continuado assim se Luís
não tivesse conseguido acabar com todas suas defesas. Agora ela ansiava
pela vida real, mesmo que isso a fizesse sofrer. Ela queria Luís.
— Hoje é o último dia. Eu não preciso mais vir aqui — anunciou o
practicante com um largo sorriso.
— Ótimo! — disse Luís. — Vamos tomar o café lá fora.
Havia um ruído alto de pessoas conversando vindo da escola. Sheila
pedira aos alunos para pintar uma natureza-morta por conta própria. Era
um dos exercícios mais reveladores, pensou, relembrando o quanto ficara
chocada quando John Smith escolhera um maço de notas e o Financial
Times para pintar, totalmente incapaz de perceber que era uma tarefa
difícil demais para ele.
Ele partira mais cedo durante a semana, prometendo escrever para
contar como os negócios e a esposa tinham passado em sua ausência.
Sheila imaginou que Luís não apreciaria nada se ela recebesse uma carta
dele.
— Estou exausta! — reclamou ela, deixando-se cair numa cadeira ao
lado dele.
— De quê? Tudo que você teve de fazer foi ficar sentada enquanto eu
pintava.
— E no resto do dia deixar os hóspedes satisfeitos!
— Mas eu dei conta de boa parte das aulas que me cabiam, não é? Você
não teve muitas aulas extras a dar.
Sheila pensou naquela semana atarefada, nos tabuleiros que carregara,
no tempo em que ficara posando e se dedicando ao patrão cada vez mais
exigente, tudo somado com as aulas dela e quase metade das de Luís.
Será que ele não conseguia reconhecer seu esforço?
Sheila lançou-lhe um olhar furioso e notou um ar zombeteiro na
expressão do rosto de Luís, que ele logo dissimulou. Não lhe tinha
ocorrido que pudesse estar querendo deixá-la descontrolada e começou a
enxergar a semana que passara com outros olhos. Ela concordara em
posar para Luís, sentindo-se feliz em ficar perto dele, carregando as
tintas e pincéis de um lado para o outro com a maior boa vontade. Mas
Sheila não estava preparada para aceitar o fato de que ele sabia de tudo.
Olhando para trás, notou que as tentativas de disfarce não serviram de
nada.
— Tenho de voltar para a escola — disse ela, virando-se para Luís. —
Mas nós dois precisamos ter uma conversa séria.
— Antes que um de nós perca a calma — assentiu ele, irônico.
Ela notou uma leve hesitação na voz dele, mas não resistiu a pressioná-
lo mais:
— Eu quero saber.
Luís ficou em silêncio por tanto tempo que Sheila achou que ele não ia
responder. Mas então ouviu-o dizer:
— Está bem, vou lhe contar tudo. Eu fui a Londres para organizar
minha exposição e. . .
— Pensei que esta era a parte de Tiago? — interrompeu ela.
— Só a parte comercial. Eu gosto de pendurar meus próprios quadros
para ter certeza de que eles se complementam num ambiente.
Sheila assentiu:
— Você tem uma queda pelos detalhes. Eu já tinha observado isso
antes.
— Passei por uma certa escola de artes, onde estudei no passado, e
entrei para relembrar aquela época. A catarata estava na parede de um
dos corredores. Depois de conversar com o diretor por algum tempo, fiz
uma oferta pela tela. Dizer que ele ficou surpreso é pouco. Perguntou se
eu não a achara grande demais, se as cores não eram muito violentas;
disse-lhe que aqueles tons verdes e azuis tinham um efeito calmante
sobre mim, e, que possuía o lugar perfeito para pendurá-lo. Concordamos
sobre o preço e prometi que voltaria mais tarde para pegar o quadro
se o artista estivesse de acordo.
— E como!
— Eu levei a tela para a galeria ali perto, porque não consegui convencer
nenhum motorista de táxi a transportá-la. Sorte sua, pois o proprietário
da galeria ficou tão impressionado quanto eu. Não foi difícil persuadi-lo a
incluir você numa exposição, logo que ele achasse outro artista que tivesse
um estilo parecido com o seu.
— Mas foi tão fácil assim?
— Eu vendi todos os meus quadros naquela galeria — lembrou ele
cinicamente.
— Fico agradecida. — Sheila corou. — Você sabe que estou! Mas gostar
de uma pintura não explica por que você queria que eu lecionasse na
sua escola. Você não estava se arriscando demais?
Luís se aproximou:
— Passei longo tempo observando o quadro. E nunca deixei de sentir
uma estranha excitação. Você tem algo muito especial a dizer e achei que
eu poderia ser a pessoa certa para ajudá-la nesta tarefa.
— Convidando-me a vir à Espanha?
— Isso é só parte do plano. Eu desejava conhecê-la. E achava que você
poderia se tornar uma verdadeira artista.
— Aqui na Espanha?
Ele deu um leve sorriso:
— Esperava que você se apaixonasse pela Espanha, mas não tinha
muita certeza. Nem todos gostam daqui, você sabe.
Sheila mordeu o lábio nervosa. Aprendera a amar aquele país, mas
Sheila não pôde falar mais nada, pois as palavras jamais seriam capazes
de expressar tudo que sentia.
Então, apenas estendeu os braços, acolhendo-o para sempre a seu lado,
como o homem de sua vida!
Fim
Edição 381
A Misteriosa Madame X
Joan Smith
Edição 382
Revivendo o Passado
Patrícia Wilson