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O garoto era tão menino, mas tão menino, que não sabia sequer o que era luz
nem sombra. De manhãzinha ou no fim do dia, quase sempre caminhava até a
mercearia, a mando de sua mãe, para comprar carvão. Gostava de andar descalço
naquela areia fininha, branca como terra de rio, marcada pela chuva, que quando caía
fazia correnteza no beco em que ele morava.
Desconhecia a luz. Uma vez viu numa parede um sósia: as mesmas perninhas arcadas,
costelinhas nanicas e cabeça de Frigidaire. Rodopiou, foi imitado; coçou a testa, idem; virou-se,
novo remedo. Então, outra cópia saltou sobre o imitador.
E ao conhecer a luz e a sombra, o menino aprendeu a correr.
Um menino aluado
Nada no mundo o incomodava tanto quanto a sua sombra. Logo se deu conta
de que fugir dela não era tarefa fácil: onde quer que ele fosse, era por ela
acompanhado, imitado, perseguido. Por vezes a sombra desaparecia, mas logo
voltava ao seu encalço, destilando suas macaquices.
Uma noitinha, quando, mais uma vez, corria pela rua tentando esconder-se de
sua sombra, e já se encontrava a umas três quadras além da sua casa, olhou para
cima e viu a lua cheia. Ela parecia sorrir lá do céu. Era tão brilhante que o menino não
conseguia nem ver as estrelas. Então parou para ali, encantado. Como era linda!
As casas de duas águas, com uma porta e uma janela, naquele lugar, eram tão
altas, mas tão altas que ao olhar para cima o menino só via as paredes e o céu. As
vielas formavam grandes corredores; era como se estivesse dentro de um campanário
gigante. E o menino acreditava que se subisse num daqueles telhados poderia chegar
à lua. Tudo bem, mas, primeiro, teria que conseguir uma escada tão alta quanto
aquelas paredes, que terminavam no céu.
Resolveu voltar para casa, e ao chegar à rua seguinte, qual não foi sua
surpresa, ao reparar que naquele lugar também tinha uma lua... Tão bonita quanto a
primeira! Seguiu adiante, e na próxima rua, olhou para cima, outra lua! Quando passou
pela terceira rua e viu mais uma lua ele foi colhido por uma maravilhosa certeza: cada
lugar tinha a sua própria lua.
Ao chegar à casa, encontrou seu pai, sentado na calçada, que era mais alta
uns dez centímetros que o chão, também olhando a lua. Naquela posição, os joelhos
do homem ficavam quase na altura do peito e as pernas um tanto afastadas. O menino
sentou naquele pequeno pedaço de calçada, que sobrava entre as pernas do pai,
apoiou seus bracinhos nas coxas do velho, encostou-se, e, olhando para trás por cima
da cabeça, quis saber: “pai, o que tem lá na lua?” O homem apontou para umas
manchas enegrecidas no satélite e explicou ali morava São Jorge. Ele estava montado
num cavalo, matando um dragão, com uma lança. O menino não conseguia ver direito
a cena descrita pelo pai e saiu andando novamente, olhando para cima, na tentativa
de decifrar a imagem.
Então, teve uma grande decepção: só existia uma lua! E ela o seguia por todos
os lugares, como sua sombra. Entrou em casa, dirigiu-se até sua mãe, que estava na
cozinha preparando o jantar, e perguntou: “Mãe, a lua tem asas?” Não. Respondeu-lhe
a mulher. “Então por que ela me acompanha por todas as ruas?” Quis saber o menino.
E a mãe, com ar de estranheza, respondeu: Deixe de ser aluado, garoto!
Ao fugir de sua sombra, encantou-se com a lua cheia. As casas, como
campanários gigantes, o levariam ao céu. Escolheu uma das luas que havia a cada
rua; foi pegar a escada, quando notou: “só há uma lua e ela me segue!”
- Mãe, porque a lua me acompanha? Indagou.
- Para de ser aluado menino! Disse a mãe.
Um menino aluado
Ao fugir de sua sombra, encantou-se com a lua cheia. Acreditava que aquelas
casas gigantes o levariam ao céu. Escolheu uma das luas que havia a cada rua e foi
pegar a escada. Logo notou: “só há uma lua e ela me segue!”
- Mãe, porque a lua me acompanha? Indagou.
- Não seja aluado menino! Disse a mãe.
Uma mão pesada
Desconhecia o motivo, mas tudo era tão claro que lhe ofuscava os olhos, por
isso mantinha-os fechados. Quando os abria, somente enxergava duas grandes
montanhas: rosadas, lisas, cheirosas e aconchegantes. Como teria chegado até elas?
Também não sabia. Só sabia que lhe esquentavam o frio e lhe tranqüilizavam o sono.
E sempre disponíveis, era como se elas fossem ele, e ele fosse elas. Ou elas fossem
dele, e ele delas fosse. Não se sabe. Assim, não se dava conta do passar do tempo.
Até que um dia, à sensação de algo afiado, irrompendo em sua boca... Aquilo
que apenas deslizava, provocando leves e deliciosas cócegas, enquanto jorrava o
mais puro néctar, ficou retido entre dois dentinhos, que ao menino, também pareciam
estranhos.
Diante da novidade, apertou as mandíbulas até tremer. E sorriu, ao ouvir, não
tão distante, o som ininteligível de um grito. Era a mesma voz que o ninava e o fazia
dormir. Foi quando sentiu um grande impacto, e chorou de dor. Então, pela primeira
vez, sentiu raiva ao descobrir que ali não existia apenas afeto, néctar e sorrisos. Havia
também uma mão pesada!
Daquele momento em diante o menino manteve quase sempre seus olhinhos
bem abertos. Era como se a qualquer momento o mundo fosse desabar sobre ele. E
desabava, toda vez que buscava o seio da mãe. Então, assustado, aprendeu a
engatinhar. Sempre que podia refugiava-se embaixo da mesa ou da cama. Nenhum
chamado, por mais insistente que fosse, era capaz de tirá-lo dali... Exceto algumas
palmadas.