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RESUMO
Neste presente artigo, pretendo compreender os Círculos de Construção de Paz (CCP)
mediante as emoções e sua ritualística. Essa ideia nasceu da minha experiência
profissional e acadêmica, a qual foi utilizada como pesquisa de mestrado1. Com os
resultados, fui instigada a considerar os CCPs como proposta de objeto de estudo para
meu doutoramento, agora em observância à questão das emoções que se me
apresentaram como um dos achados preponderantes na pesquisa de campo da
Dissertação. Em vista disto, busquei na proposta de objeto de pesquisa de doutoramento
a ideia de investigar as emoções reverberadas nos CCPs a partir de uma análise de
natureza sociológica. Parto do princípio de que os CCPs são compreendidos como uma
metodologia utilizada para facilitar diálogos coletivos; ou seja, trata-se de uma
estratégia usada como meio de organizar o diálogo grupal sobre o manejo dos conflitos
e como prevenção, dentre outras questões pertinentes, às várias formas de violência.
Desse modo, o objetivo maior é compreender as emoções dos sujeitos no processo de
interação face a face durante o ritual dos Círculos de Construção de Paz, observando
como as emoções influenciam na sociabilidade e no ajustamento da ordem social
escolar. Para tanto, busco entender a categoria de Círculos de Construção de Paz
segundo as idealizadoras Pranis e Boyes-Watson (2010; 2011; 2015); sobre de emoções,
conto com a discussão de Goffman (2010; 2011; 2014), de Elias (1993; 2001; 2011), de
Koury (2015; 2014; 2013; 2009; 2006; 2004; 2003) e, enquanto na visão de ritual, me
baseio no pensamento de Turner (2005; 1974). Com uma metodologia de cunho
qualitativo e sob uma perspectiva compreensiva, a ideia é aplicar entrevista em
profundidade, observação participante e, para robustecer a pesquisa, registros em diário
de campo. Como é uma proposta inicial de pesquisa, acredito que muitas reflexões e
considerações ainda serão agregadas durante a caminhada teórica e metodológica,
principalmente a partir do ingresso no campo da investigação. Deste modo, como não
tenho como falar em resultados ainda, trago algumas interpelações propositivas
definidas. Será que esses círculos são utilizados como ferramenta de enquadramento
social na escola? Em que medida os CCPs são mecanismos de revelação e
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A pesquisa de campo do mestrado ocorreu de julho a dezembro de 2019, em uma escola da rede pública
estadual, localizada em um bairro periférico na cidade de Fortaleza- CE. Defendida em abril de 2020,
com o título “Círculos de Construção de Paz: Experiência e Olhares na Escola Pública” pelo Programa de
Pós-Graduação da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
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silenciamento das emoções? Que emoções são reverberadas no momento do ritual dos
CCPs que influenciam o comportamento social no cotidiano escolar?
INTRODUÇÃO
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Conforme as Nações Unidas (2021, p. 03), a “justiça restaurativa tem como fundamento a crença de que
as pessoas envolvidas ou afetadas pelo crime devem ter participação ativa na reparação do dano,
amenizando o sofrimento que o crime causou e, sempre que possível, tomando providências para prevenir
a recorrência do dano. Essa abordagem também é vista como um meio de promover a tolerância e a
inclusão, descobrir a verdade, encorajar a expressão pacífica e a resolução de conflitos, construir o
respeito pela diversidade e promover práticas comunitárias responsáveis”.
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Então, como não se inquietar diante dessas questões? Sendo os CCPs um recurso
metodológico, estruturados por uma ritualística específica e por elementos simbólicos
que intencionam comportamentos contrários às condutas estabelecidas e legitimadas
pela a instituição escolar, que impacto geraria em cada questão?
Desta feita, os CCPs se constituem como objeto de meu interesse docente,
técnico e acadêmico, o que me instigou a esta pesquisa de mestrado, na qual investiguei,
por meio de entrevistas, observações e grupos de discussão, como os CCPs se
organizavam e eram experimentados na realidade de uma escola pública, e ainda a
compreender o que os sujeitos da instituição narravam sobre tais práticas. Por outro
lado, a inserção no campo e os relatos tecidos do imaginário social dos interlocutores
escolares apresentaram outros elementos que não puderam ser discutidos naquele
momento, sobretudo por conta do objetivo da pesquisa de mestrado, bem como do
tempo necessário para concluí-la.
Assim, as observações empíricas, aliadas aos estudos teóricos sobre o tema,
propiciaram outras incompreensões e insights, dentre os quais os significados sobre o
ritual e os elementos simbólicos utilizados nos CCPs, que nas narrativas dos
interlocutores apresentavam reflexões diversas. Outra questão que também foi revelada
na pesquisa de mestrado foi a efervescência de muitas emoções reverberadas nas
interações dos participantes dos CCPs como a vergonha, o medo, o constrangimento e a
pertença, somente para citar algumas. Enfim, as falas de cunho emotivo me instigaram a
investigar as emoções para além do campo teórico da psicologia, da neurociência e da
visão holística que permeiam as discussões sobre os CCPs.
Nessa acepção, fiquei tentada a sentir e a compreender o que aflora ali no ritual
dos CCPs a partir das narrativas dos professores e dos alunos. Será que esses círculos
são utilizados como ferramenta de enquadramento social nas escolas? Em que medida
os CCPs são mecanismos de revelação e silenciamento das emoções? Que emoções são
reverberadas no momento do ritual dos CCPs que influenciam o comportamento social
no cotidiano escolar?
Por esse ângulo, o principal objetivo do presente estudo consiste em
compreender as emoções que emergem dos sujeitos no processo de interação face a face
durante o ritual nos Círculos de Construção de Paz nas escolas públicas estaduais do
município de Fortaleza, no Estado do Ceará, observando como as emoções influenciam
na sociabilidade e no ajustamento da ordem social escolar.
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face a face dos interlocutores revelaram diversos sentimentos, tal prática conclui-se
como algo positivo no processo de intermediações.
Neste sentido, introduzo ao conceito dos CCPs a visão de Goffman (2011, p. 97)
sobre “encontro social”, “uma ocasião de interação face a face, começando quando os
indivíduos reconhecem que foram movidos para a presença imediata uns dos outros e
terminando com uma retirada aceitável da participação mútua”. É nesse viés que os
CCPs acontecem como verdadeiros encontros de interações entre os participantes.
Até aqui, dialoga-se com Boyes-Watson e Pranis (2011) que afirmam que os
CCPs são espaços de interações dialógicas, nas quais os indivíduos, cada qual ao seu
tempo, tem seu momento de fala e escuta, favorecendo um espaço seguro. Porém,
seguindo o raciocínio de Goffman (2011), esses encontros sociais podem ocasionar,
dependendo do propósito e do quantitativo de pessoas, momentos constrangedores e
vexatórios. Ainda, para serem aceitos, assumem “fachada”, mesmo inconsciente, para
permanecerem no encontro, o que Goffman (2011) atribui como “manobras protetoras”
que defendem a fachada de si e do outro nas interações.
Na interação face a face, o indivíduo pode ficar acanhado, resultando certo
constrangimento, mas com função social, na qual o “[...eu projetado de um indivíduo é
ameaçado durante a interação, ele pode, com prumo, suprimir todos os sinais de
vergonha e constrangimento...]” (GOFFMAN, 2011, p. 107), que não interfere no fluxo
do ritual, o que possibilita a interação fluir sem quaisquer pormenores.
Estes aspectos, portanto, não são considerados por Boyes-Watson e Pranis
(2015, 2011), mas que no campo empírico, tanto na experiência como docente e quanto
como pesquisadora, pude observar em algumas narrativas e situações alguns
constrangimentos e, ao mesmo instante, certa preservação da fachada no sentido
„goffmaniano‟ de entender.
Segundo Pranis (2010), os CCPs foram propagados em diversos contextos com
objetivos diferentes, estes passaram a ser conhecidos com tipologias diferentes:
“Diálogo; Compreensão; Restabelecimento; Resolução de Conflitos; Reintegração;
Sentenciamento; Apoio; Construção do Senso Comunitário; e Celebração” (PRANIS,
2010, p. 28). Então, para entendê-los, associo à noção weberiana de “tipos ideais" uma
forma epistemológica de entendimento mental para explicar a função que cada um
ocupa dentro da estrutura generalizante, para assim se construir uma formulação tipo
ordenada de compreensão e aplicabilidade de cada um dos conceituados a eles
determinados.
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Então, a interação face a face do ritual tem uma organização convencional que
estabelece a ocasião, que significa o “cuidado ritual” que Goffman acredita ser a própria
ordem do ritual que organiza as linhas de conduta, como um guia para a padronização
do comportamento. Essa lógica não seria o que acontece com os elementos estruturantes
e o passo a passo dos CCPs? Como não percebê-lo como ritual de interação? Aqui não
cabe essa discussão, mas os CCPs entendidos como ritual faz-nos refletir e inferir que
existem inúmeras reflexões que podem ser úteis para o entendimento das emoções que
reverberam durante sua ritualística.
Para o estudo das emoções, como objeto de investigação da sociologia, tendo
fundamentos na discussão do teórico brasileiro Koury, o conhecimento focado na
sociologia da emoção emergiu de forma consolidada a partir de meados da década de
1970, quando as
críticas e o novo compromisso e as formas de olhar para o objeto e às
formulações teóricas e metodológica da sociologia permitiram o
revigoramento de perspectivas teóricas novas que enfatizavam um processo
analítico da subjetividade como fonte e forma de expressão e construção
social (KOURY, 2004, p. 08-09).
Retomando aqui a discussão sobre o argumento das emoções, para Koury (2009,
p. 89), os sujeitos atuam por mecanismos subjetivos, manifestando interesses e valores
no processo de interação que seriam emocionalmente lançados projeções sociais e
culturais como códigos que influenciam o comportamento social, nas quais “as
experiências emocionais singulares, sentidas e vividas por um ator social especifico são
produtos relacionais entre indivíduos e cultura e sociedade”.
Ele compreende o papel das emoções que influenciam fortemente o
comportamento dos indivíduos e seus códigos sociais que estão imersos na interação,
como experiências emocionais subjetivas construídas no processo relacional, como
fenômenos ditos produtos do social.
Para agregar mais elementos ao debate, acrescento o pensamento de Elias (2011)
ao associar as emoções com o autocontrole no sentido de regulador do comportamento
social para que o indivíduo se ajuste no processo civilizador. Trata-se de certo
autocontrole emocional para manter-se no social, na teia de interdependência; ou
melhor, “o controle mais rigoroso de impulsos e emoções é inicialmente imposto por
elementos sociais” (ELIAS, 2011, p. 137).
Como todo tipo de racionalidade, este também se forma paralelamente a
determinadas coerções no sentido do autocontrole das emoções. Uma
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figuração social em cujo seio tem lugar uma frequente transformação das
coerções externas em coerções internas constitui uma condição para produzir
formas de comportamento cujos traços distintivos são indicados pelo
conceito de racionalidade (ELIAS, 2011, p. 110).
Para Elias, as emoções são algo que se constitui como uma racionalidade de
autocontrole que figura o social com formas de coerções sociais, e que condicionam os
comportamentos entre os indivíduos. É um tipo de controle emocional em prol de
atitudes calculadas e controláveis socialmente.
Koury (2002) assinala, nesta mesma lógica, que as emoções, deixam de ser pura
subjetividade e passam a ser moldadas pelo conjunto de compromissos morais e pela
incorporação do conjunto de normas e valores que norteiam as ações individuais. Isso
significa que as emoções são aprendidas no processo relacional; portanto, são
fenômenos sociais.
Conforme Koury (2009), entender o estudo das emoções nessa perspectiva de
produto relacional significa dizer que os sujeitos estão imersos em sociabilidade cultural
emocional, nas quais ancorado na visão de Simmel e Weber, diz que a ação do
indivíduo é provida de significado e sentido, produzindo ação e reação mobilizadas por
condições emocionais. Em outras palavras, “as ações e as reações da relação, portanto,
são portadoras de sentido, estando sujeitas a um tipo de racionalidade social e a um
movimento subjetivo dos sujeitos [...]” (KOURY, 2004, 9. 33), nas quais as emoções
não podem ser desconsideradas nessa construção.
Segundo as considerações delineadas com respeito às emoções, promover essa
análise como estudo da compreensão dos CCPs a partir do aspecto emocional é partir do
entendimento que as experiências emocionais vivenciadas na interação no ritual dos
círculos são construtos da relação estabelecida entre os participantes; pelo menos essa é
a perspectiva que suponho como partida do estudo neste ensaio. Assim, as emoções que
emergem nos CCPs têm sentidos e significados que merecem ser refletidos, ou melhor,
parte do princípio de que as experiências emocionais singulares, sentidas e
vividas por um ator social específico, são produtos relacionais entre os
indivíduos e a cultura e sociedade. Elas traduzem as alianças produzidas
levando em conta as normas sociais, os costumes, as tradições e as crenças ou
convicções em torno das próprias emoções. Os conteúdos simbólicos e as
práticas culturais de contextos sociais específicos promovem, agenciam,
permitem ou ponderam, desta maneira, determinadas emoções ao mesmo
tempo em que negam, restringem ou impõem interditos a outras, a partir das
interações contínuas e constantes entre os sujeitos relacionais em trocas
determinadas (KOURY, 2004, p. 12).
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TRAJETÓRIA ALMEJADA
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“Política de Desenvolvimento de Competências Socioemocionais para a rede pública estadual”, esta é a
denominação dada pela Secretaria da Educação do Estado do Ceará (SEDUC) de uma política
implementada no ano de 2018, por meio de um conjunto de ações voltadas para trabalhar a formação
integral dos estudantes da rede estadual. Informações disponíveis em:<
https://www.seduc.ce.gov.br/2018/12/12/desenvolvimento-das-competencias-socioemocionais-ganha-
espaco-no-ceara-e-fortalece-perspectiva-da-educacao-integral/>Acesso em: 15 junho 2022.
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CONSIDERAÇÕES PERTINENTES
CCPs são mecanismos de revelação e silenciamento das emoções? Que emoções são
reverberadas no momento do ritual dos CCPs que influenciam o comportamento social
no cotidiano escolar?
À guisa de desfecho e conclusão, compreendo que tais questões como
interpelações provocativas iniciais merecem reflexões outras para além do que vem
sendo estudado (da visão holística, da neurociência, da psicologia), enfatizando caráter
de cunho sociológico, na noção da sociologia das emoções, sem desconsiderar
quaisquer estudos, pois não é essa a intenção, reconhecendo todos os demais ramos de
estudos que englobam os Círculos de Construção de Paz.
Por fim, não posso enunciar quais desafios e descobertas me aguardam, nem
posso aferir as potencialidades a partir dessa discussão que enquanto pesquisadora
poderei ainda conquistar. A única certeza é de que tenho uma curiosidade que ronda a
minha vontade de aprender cada vez mais e mais para contribuir em favor da Educação
e pela provocação de estudos posteriores sem jamais ficar detida a concepções e
conceitos inflexíveis, às vezes considerados ultrapassados para os dias de hoje.
BIBLIOGRAFIA
______. O processo civilizador: uma história dos costumes. 2. ed. Rio de Janeiro:
Zahar, 2011. v. 1.
Lindner, Evelin Gerda. O que são emoções? Tradução de: Mauro Guilherme Pinheiro
Koury. RBSE, V. 12, n. 36, dez. 2013.
Nações Unidas. Escritório sobre Drogas e Crime. Manual sobre programas de justiça
restaurativa. Tradução Cristina Ferraz Coimbra. 2. ed. Brasil: Conselho Nacional de
Justiça, 2021.