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A ocupação, de Julián Fuks, e a reflexibilidade do verbo ocupar

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FUKS, Julián. A ocupação. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 134 p.

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Eduardo Ferrinha Alves Moreira


Faculdade de Educação - Unicamp

O paulistano Julián Fuks publicou A


ocupação em 2019, quatro anos após o lançamento de seu
prestigiado A resistência, que conquistara os prêmios
Jabuti e José Saramago. Cada um dos 41 curtos capítulos,
de aproximadamente três páginas cada, trata isoladamente
dos três mundos que compõem a rotina de Sebastián, o
narrador: ele interagindo com a esposa que tenta
engravidar, ou visitando o pai agonizante no hospital ou,
por último, frequentando o ambiente que dá título ao livro.
O lugar existe de verdade. Trata-se de uma ocupação no
extinto Hotel Cambridge, na avenida Nove de Julho, 210,
em São Paulo – o endereço é informado na página 13 – e já havia inspirado o longa –
metragem Era o Hotel Cambridge (2015), da diretora Eliane Caffé, sobre a luta por
moradia e o drama dos refugiados na metrópole.
Contudo, a história não começa no Cambridge. O primeiro capítulo mostra o
protagonista e sua companheira caminhando pelo arruinado e perverso centro da capital
paulista, quando são abordados por dois pedintes: primeiramente um homem desejando
um copo de aguardente e, depois, um garoto pedindo um suco. Essa introdução, episódica
e aparentemente desconexa dos demais eixos da história, na verdade apresenta as figuras
do velho e da criança que hão de alternar-se durante toda a narrativa.
Sebastián, desde a infância poupado de experiências fúnebres, pensa muito sobre
o fim da existência enquanto vela seu pai no leito do hospital. Relembra a morte da tia
paterna e do cachorro da família. As memórias, trazidas ao leitor em camadas, constroem
o perfil do pai: perseguido pelo antissemitismo, militante argentino que abrigou-se no
Brasil para fugir da ditadura em sua pátria. No decorrer dos capítulos, aprende-se a gostar
daquele pai, a ter saudade do que fora, a lamentar sua humilhante condição atual e a temer
seu aparente fim irremediável. Numa dessas visitas, o protagonista, herdeiro do ativismo
político, reflete sobre a condição do Brasil e “o retorno paulatino do país ao seu passado
autoritário” (p.20). A relação entre pai e filho e as agressões à democracia retornam no
final do livro, em duas tocantes cartas trocadas entre Fuks (não Sebastián) e Mia Couto.
Aparecem límpidos os paralelos entre o Brasil contemporâneo e Moçambique da infância
do escritor africano.
Nos episódios que abordam a ocupação, Sebastián – alter ego do autor, como
informa a contracapa – torna-se caçador e divulgador de depoimentos. Detalhes que
somente o discurso direto poderia trazer aos leitores, provocando-lhes genuínas comoção
e empatia. É como diz a epígrafe, de Mia Couto: “Não há sangue dos outros. Em cada um
que sangra todos nós esvaímos” (p. 7). Imagine seu parque preferido virando cemitério!
Sejam da Síria, sejam oriundas de algum barraco ao pé do morro, as personagens do
Cambridge soam “gente como a gente”, mas que de repente perderam tudo. Uma delas,
haitiana, até repreende o interlocutor - e a nós, leitores, por tabela: “Você quer que eu
conte do terremoto, não é?” “Quer que eu lhe empreste a minha comoção, a minha dor?”
(p. 71). A guerra e a miséria não deveriam ser produto de entretenimento para as pessoas
mais privilegiadas. Sebastián esforça-se em ser relevante para o movimento social, mas
não passa de um intruso. Pior, aproveita-se da ocupação como escape de seus próprios
dramas fora de controle.
Regularidade, ritmo e retomadas. Como rimas de um poema. Cada pequeno
episódio trata de apenas um dos já mencionados estratos da vida do protagonista, os quais
se reapresentam após determinado intervalo, à semelhança de um esquema de rima. Do
capítulo dois ao cinco, os temas são, respectivamente, pai (a), Cambridge (b), Cambridge
novamente e esposa (c): abbc. Na sequência, abca / abcb / cbba. E por aí vai… nota-se a
menor ocorrência de c, representante do amor romântico, confirmando a identidade
majoritariamente social e existencial do romance. Mas as três linhas narrativas possuem
igual relevância para o texto, e todas são conduzidas até o final com igual primor.
Ainda sobre o tema c, quando Fê, a esposa, protagoniza três capítulos
consecutivos, do 28 ao 30, o leitor encontra os momentos mais sublimes do livro, narrados
de forma lírica, intensa e pungente. Nada surpreendente para quem já fora agraciado com
a obra-prima que é o quinto parágrafo, onde o narrador discorre em menos de duas
páginas sobre a esposa que decidiu se tornar mãe, abandonando a convicção contrária de
mais de uma década. Sobre o vigésimo primeiro capítulo, quando o narrador acompanha
a mulher grávida no primeiro ultrassom, trata-se de um exemplo concreto de que a
literatura diz o que não sabemos expressar e fala com mais precisão o que queremos dizer.
E A ocupação é essencialmente isto: engendrar-se – ser ocupado – a partir de diferentes
discursos, que vêm não somente de outras pessoas, mas também da revisita absorta às
próprias memórias e das conjecturas sobre as possibilidades da vida.

REFERÊNCIAS

Autores do Grupo Companhia das Letras. Disponível em:


<https://www.companhiadasletras.com.br/autor.php?codigo=03491>. Acesso em:
19/set./2022.

Instituto São Paulo Antiga. Hotel Claridge/Cambridge. Disponível em:


<https://saopauloantiga.com.br/hotel-cambridge/>. Acesso em: 19/set./2022.

Ocupação 'Hotel Cambridge' vira filme e moradores sonham com fim do preconceito e
com casa própria. Portal G1. Disponível em: <https://g1.globo.com/sao-
paulo/noticia/ocupacao-hotel-cambridge-vira-filme-e-moradores-sonham-com-fim-do-
preconceito-e-casa-propria.ghtml>. Acesso em: 19/ set./ 2022.

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