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Paulo Jacobina

CRÔNICAS DE UMA INVASÃO


2.9 – Por quem os sinos dobram

Copyright © 2012 Paulo Jacobina


Todos os direitos reservados.
Por Quem os Sinos Dobram
​ om o súbito desaparecimento do agente Robert
C
Lazar, a diretoria do FBI iniciou pressões a fim de fechar
o departamento. Uma sindicância foi realizada e os
agentes foram convocados a depor.
​No depoimento de abertura, o agente da
Corregedoria Nicolas Lapente apontou as falhas dos
agentes da Divisão Especial. Alegou que o grupo era
desunido e apresentava uma grave paranoia
conspiratória. Entrou em minúcias sobre problemas
comportamentais, como o modo de se vestir do agente
Lamartine, a longa cabeleira negra do Bilforg e o péssimo
hábito do jovem agente Magines de tomar saquê em
serviço. Contudo, também ressaltou algumas
capacidades dos agentes, como os conhecimentos
técnicos do agente Bilforg e as habilidades usadas pelo
agente Magines, quando este queria trabalhar.
​O depoimento seguinte foi o do agente especial
Terry Magines, que apenas respondeu às perguntas
dirigidas a ele e não se importou com a possibilidade de
o departamento ser fechado.
​Alex Lamartine, embora chamado a depor frente à
mesa da sindicância, não compareceu no dia marcado,
nem apresentou qualquer explicação.
​No último depoimento, Dustin Bilforg ressaltou a
importância da existência do departamento. Frisou que
eles possuíam uma alta taxa de conclusão dos casos, e
que dos últimos cinco casos investigados, três foram
concluídos com êxito e em tempo inferior à média do
Bureau. Apelou para a racionalidade dos integrantes da
mesa a fim de mostrar-lhes que sem a Divisão Especial,
inúmeros casos ficarão sem solução, além de servirem de
base para o desmantelamento de organizações
terroristas.
​ o final dos depoimentos, a mesa se reuniu e o
A
agente da Corregedoria Edgar Francis e o agente
especial Adam Smith votaram a favor do fechamento da
Divisão Especial, enquanto o agente especial Gabriel
Logan e o Diretor Assistente Seymor O’Hara Stone
votaram a favor da manutenção do departamento. O
último voto foi o pertencente ao agente da Corregedoria
Nicolas Lapente que, após ponderar muito, decidiu dar
uma chance aos agentes para mostrarem que
conseguem fazer o seu trabalho independentemente da
presença do agente Robert Lazar.
06 de fevereiro de 2002
Washington, DC
Escritório da Divisão Especial
08:34 AM (Hora do Leste)

​O agente especial Dustin Bilforg andava de um lado


para o outro no escritório da divisão. Irritado com os
últimos acontecimentos, Bilforg parecia que estava
preste a explodir. Quando alguém mexeu na maçaneta
da porta, o agente a observou por alguns segundos.
​Entrando na sala, Terry Magines para surpreso com a
expressão do parceiro.
​- O que foi, Bilforg? – pergunta Magines
tranquilamente.
​- Seu desgraçado! – Avançando subitamente em
direção ao parceiro, Bilforg pegara Magines desprevenido
e o atingira com um forte soco no rosto, fazendo-o
cambalear para trás. – Por que você disse aquelas coisas
no seu depoimento? – pergunta Bilforg colérico e
balançando a mão em dor.
​- Não tenho que te dar satisfações, Bilforg! – diz
Magines se recompondo. O agente estava impressionado
com a atitude do parceiro de confrontá-lo dentro do FBI. –
Eu falei o que tinha de falar! Isso aqui é uma bagunça. O
nosso chefe nem mais vem trabalhar e que você tem
ideias malucas sobre os casos. Ah, já ia me esquecendo,
também falei do modo como o Lamartine se veste e
atua. Ele é a maior piada que eu já vi.
​- Droga, Magines – berra Bilforg com o olhar fixo no
parceiro. – Por pouco a Divisão Especial não foi fechada.
Demos sorte.
​- Não enche, Bilforg – retruca Magines, percebendo
que o parceiro desistira de enfrentá-lo fisicamente. –
Você sabe que eu disse a verdade! Eu só cumpri a minha
função como agente federal, não como um fiel seguidor
de um maluco que acredita ser um clone mal feito de um
riquinho escocês que, por sinal, vive se metendo no
nosso trabalho – de uma só vez, Magines havia insultado
duas das três pessoas que o parceiro mais respeita na
vida.
​- Como você ousa falar assim? – Bilforg cerra os
punhos se segurando para não atacar o parceiro mais
uma vez.
​- Isso é a verdade, Bilforg. A verdade! Eu sei que
para você é difícil reconhecê-la, pois vive envolto em
ideias distorcidas do mundo. Acredita que existe uma
grande conspiração.
​- E que você faz parte dela! – berra Bilforg.
​- Eu?! – Magines demonstrava surpresa diante da
acusação. – Devo admitir que tenho conhecidos em
vários escalões do governo e em outros departamentos,
mas daí você achar que eu faço parte de uma grande
conspiração já é demais.
​- Você é o pior tipo de pessoa que existe, Magines! –
brada Bilforg apontando para o parceiro. – Você se faz de
amigo, de agente competente, mas no fundo você não é
nada, não colabora com as investigações...
​- Que investigações, Bilforg?! – interrompe Magines
levantando o tom de voz. – Procurar o Lazar?! Procurar
uma garota desaparecida há dez anos?! Proteger um
museu?! Nada disso é investigar, Bilforg! Nada! Nós
somos motivos de piada por parte de todo o FBI por
culpa do Lazar e, agora, por culpa sua e do Lamartine.
Nossas carreiras foram jogadas no lixo. Talvez você não
pense em mudar esta sua rotina. Ficar na Divisão
Especial para sempre e acabar que nem o Lazar, mas eu
não sou assim. Eu quero mais. Quero crescer aqui dentro
e, para isso, tenho de trabalhar direito, seguindo as
regras, seguindo a droga do manual do Bureau. Se
lembra dele?! Aquele livrinho de normas que diz como
um agente tem de atuar.
​- Você não me engana com este seu discurso,
Magines – Bilforg se contorce de ódio diante da
provocação do parceiro. – Eu sei que você trabalha no
Sector X...
​- É, maguinho de araque? – implica Magines. – Você
sabe, é? Nossa, que medo – comenta tremendo as mãos
em sinal de deboche.
​Surgindo na porta do escritório, o agente Alex
Lamartine olha assustado para o clima tenso que tomava
conta da sala e, pela segunda vez, impede que os
parceiros se confrontem fisicamente.
​- O que está acontecendo aqui? – pergunta tentando
colocar a mão no ombro de Magines que, com um rápido
movimento de corpo, desvia.
​- Nada, Lamartine – diz Bilforg se acalmando. – Não
está acontecendo nada.
​- Pois não parece! – comenta Lamartine entrando um
pouco mais no pequeno escritório. – Ouvi berros seus e
do...
​Virando-se para trás, Lamartine constata que
Magines havia deixado a sala.
​- Ué, aonde é que ele foi? – pergunta Lamartine
abrindo os braços.
​- Não sei – responde Bilforg se sentando e passando
as mãos na cabeça tentando se acalmar.
-​ Então nós deveremos investigar o caso sem ele –
comenta olhando para o parceiro. – Pelo menos, até ele
aparecer de novo.
​- Tomara que ele não vá ajudar – comenta baixo o
agente de cabelos longos.
​- Você disse alguma coisa, Bill?
​- Não – comenta Bilforg pegando sua valise negra. –
Vamos trabalhar então?
Charleston, SC
11:57 AM

​ pequena cidade de Charleston já foi palco de


A
grandes acontecimentos durante a Guerra Civil. Mas
esses tempos ficaram para trás e a terceira maior cidade
da Carolina do Sul se desenvolveu baseada na
agricultura, em algumas indústrias e no transporte de
cargas.
​Com cerca de cem mil habitantes, a cidade, que
devido as suas igrejas é conhecida por The Holy City, fica
situada no meio da costa do estado da Carolina do Sul e
na confluência dos rios Ashley e Cooper, tornando-a um
importante porto regional.
​Percorrendo as tranquilas ruas da cidade, o Chrysler
branco, alugado pelos agentes, parece mais um veículo,
dentre tantos. O que a população local não sabia é que
em seu interior, dois agentes do FBI estudavam os
acontecimentos que os levaram até aquela cidade.
​Segundo o dossiê preliminar, que o agente
Lamartine folheava, algumas pessoas foram dadas como
desaparecidas após entrarem no Charleston Center
Hospital.
​- Não vejo qualquer ligação entre essas pessoas, Bill
– comenta Lamartine folheando o dossiê com as
informações iniciais do caso. – Nenhuma característica
seja física ou profissional em comum.
-​ Já vi que este caso vai ser complicado – comenta
Bilforg com ar enfadonho, entrando manobra o veículo
até o estacionamento de um shopping. – Já investiguei
um caso parecido com este. Mas, no que eu atuei, as
pessoas reapareciam sem memória do ocorrido – ao
lembrar-se de seu primeiro caso pela Divisão Especial, o
agente sente um leve calafrio.
​- Uhn...
​Dando pouca importância para o comentário do
parceiro, Lamartine se alegra ao perceber que o parceiro
havia estacionado o carro e os dois entraram no
shopping em busca da praça de alimentação.
​- O que você tem, Bill? – pergunta Lamartine
olhando uma bela loira que passava. – Você anda meio
cabisbaixo ultimamente.
​- Não é nada, Lamartine. Pode ficar despreocupado –
responde Bilforg parando ao ver alguém do outro lado da
praça de alimentação.
​- O que foi, Bill? – pergunta Lamartine voltando para
perto do parceiro.
​Estático, Bilforg apenas observava um jovem de
cabelos brancos, vestido com um terno cinza escuro se
aproximar.
​- Então vocês saem num caso e não me chamam? –
comenta Magines encarando Bilforg em desafio.
​- Eu tentei te chamar, mas não te encontrei –
responde Lamartine sendo ignorado por Magines que
continuava encarando Bilforg.
​- Perdi a fome – comenta Bilforg olhando fixamente
para Magines. – Vou ao banheiro e já volto.
​Saindo, Bilforg deixa Lamartine sem entender o que
estava acontecendo entre os dois agentes.
​Cruzando os braços, Lamartine olha Bilforg se
afastar.
​- O que houve entre vocês? – pergunta passando as
mãos nos cabelos grisalhos.
​ lhando friamente para o parceiro, Magines cerra os
O
olhos e vai atrás de Bilforg.
​- Ei! Eu te fiz uma pergunta – comenta seguindo o
jovem parceiro.
× ​ ​× ​ ​×
​Entrando no banheiro, Bilforg caminha até a pia e se
apoia com ambas as mãos.
​- Mas que droga – reclama abaixando a cabeça. –
Agora eu entendo como Lazar se sentia.
​Abrindo a torneira, o agente pega um pouco de água
com as mãos e joga no rosto.
​- Eu preciso me acalmar. Estou muito tenso –
comenta se olhando no espelho.
​A porta de uma das cabines sanitárias se abre e o
agente pode ver um mendigo com barba longa e
desgrenhada, vestido com uma túnica desbotada sair.
​Arregalando os olhos, assustado, Bilforg se vira
rapidamente e encara o mendigo por alguns instantes.
Toda a tensão acumulada parece extravasar de uma só
vez fazendo-o chorar.
​- Não... – balbucia enquanto as lágrimas escorrem
por seu rosto. – Ela ainda é minha... Minha!
× ​ ​× ​ ​×
​Abrindo a porta do banheiro masculino, o agente
especial Terry Magines dá passagem para um mendigo
que estava saindo. Entrando no banheiro, o agente olha
espantado para o parceiro chorando sentado no canto,
todo encolhido, abraçando as pernas.
​- Ela é minha – choraminga Bilforg. – Minha.
​- O que está acontecendo aqui? – pergunta
Lamartine entrando e vendo Bilforg chorando no canto e
Magines o encarando.
​- Ela ainda é minha – soluça Bilforg.
​Rapidamente, Magines gira sobre seus calcanhares e
sai correndo do banheiro.
-​ Mas... – Lamartine se assusta com a atitude do
parceiro que acabara de sair.
× ​ ​× ​ ​×
​Correndo pelos corredores do shopping, Magines
procura inutilmente pelo mendigo que vira sair do
banheiro. Cansado de procurar, o agente para, dá uma
última olhada ao redor e leva o seu relógio-calculadora
até próximo à boca.
​- Magines falando... – comenta apertando um botão
no relógio.
Hotel Intercontinental
Quarto 104
02:23 PM

-​ Você ainda não me explicou o que foi que


aconteceu naquele banheiro, Bill – comenta Lamartine
entrando no quarto logo atrás do parceiro. – E o porquê
de nós termos saído de lá sem avisar ao Magines.
​- Não aconteceu nada – responde de forma seca.
​Com o semblante fechado, Bilforg coloca sua mala
ao lado de uma das duas camas. Os últimos
acontecimentos o deixaram com os nervos à flor da pele,
mas encontrar aquele mendigo no banheiro foi a gota
d’água. Para as outras pessoas, para os seus parceiros,
aquele homem que estava no banheiro poderia ser
apenas mais um morador de rua que fazia uso de
banheiros de shopping e de bibliotecas públicas, mas
Bilforg sabia a verdade. Sabia quem ele realmente era e
o que ele significava. Sabia que aquele mendigo era um
emissário. Um arauto daquele que havia comprado a sua
alma. Um lembrete de que o fim estava próximo e de
que, em breve, sua alma seria finalmente entregue ao
demônio. E era esta situação que o mais deixava
perturbado. Saber que o fim estava próximo e não poder
fazer nada para impedir. Saber que o fim estava próximo
e não saber de onde ele viria.
​ bservando o parceiro por um tempo, Lamartine
O
não precisava fazer muito esforço para constatar que,
desta vez, não conseguiria nenhuma informação. Então,
como uma criança que havia se cansado de uma
brincadeira, passa a observar o amplo quarto em busca
de algo que pudesse entretê-lo.
​- Nossa. Este quarto tem até poltrona – comenta se
sentando nela. – E é bem confortável – passando as mãos
pelos braços da poltrona, o agente sente a textura do
veludo que a recobre.
​Batidas na porta fizeram os agentes interromperem
o que estavam fazendo, mas, diferentemente do
Lamartine, que permanecia plácido, Bilforg sentia todo o
seu corpo se retesar.
​- Quem é? – praticamente berrando, Bilforg saca sua
Glock 17 para espanto do parceiro.
​- Serviço de quarto – responde alguém do outro lado
da porta.
​Sem compreender o comportamento do parceiro,
Lamartine calmamente se levanta e, dirigindo-se até a
porta, a abre permitindo que o entregador entre no
quarto.
​- Por favor, entre – comenta Lamartine dando espaço
para o entregador passasse com o carrinho de comida.
​- O que tem aí? – tenso e ainda com a pistola em
punho, Bilforg olhava, ora para a bandeja coberta sobre o
carrinho, ora para o entregador.
​- La... Lagosta, senhor – tremendo de medo ao ver a
arma, o entregador quase entra em prantos temendo por
sua vida.
​- Bill, fui eu que pedi isso – achando estranho o ar
paranoico do parceiro, Lamartine decide destampar a
bandeja e revelar a refeição que pedira quando deram
entrada no hotel.
​- Nãaaaoooo! – berrando, Bilforg corre em direção à
janela do quarto.
​ inda mais confuso e terminando de levantar a
A
tampa da bandeja, Lamartine apenas observa o parceiro
atravessar a janela com um salto.
× ​ ​× ​ ​×
​Caindo no beco lateral ao hotel, Bilforg, embolado
com a cortina, rola pela calçada a fim de diminuir o
impacto com o solo.
​Levantando-se com dificuldade, o agente agradece
por ter escolhido um quarto no primeiro andar. Sentindo
o corpo doendo em função do choque com o vidro, Bilforg
olha a janela do quarto onde estava.
​- Pelo visto era mesmo uma lagosta – comenta com
um leve sorriso envergonhado.
​O sorriso do agente logo desaparece quando uma
forte explosão ocorre no interior do quarto no qual o
parceiro ainda se encontrava. Assustando,
instintivamente se encolhe buscando se proteger dos
destroços que pudessem ser arremessados pela onda de
choque.
​Entorpecido, Bilforg se recupera da explosão e
observa a janela da qual pulara. Algumas labaredas
ainda pareciam ocorrer no quarto, fazendo o agente
abaixar a cabeça em sinal de luto pelo parceiro.
​Temendo por um segundo ataque, o agente
discretamente se afasta do hotel.
São Francisco, CA

​Um japonês alto e de cabelos longos e lisos entra


num quarto bem arrumado. Parando a poucos passos
depois da porta, ele olha o homem de cabeça raspada e
olhos de cores diferentes colocando roupas de frio
extremo numa mala.
​- Você está pronto? – pergunta o japonês sem
qualquer emoção na voz.
-​ Que susto, Ian – comenta Lazar levantando a
cabeça e fechando o zíper da mala repleta de roupas de
frio. – Você não faz barulho quando anda?
​Um leve sorriso de canto de boca é a única resposta
do japonês.
​- Estou pronto – comenta Lazar fechando uma mala
menor e com roupas para um clima mais ameno. –
Vamos, porque temos uma longa viagem pela frente.
​Pegando as duas malas, o agente segue seu fiel
amigo.
Charleston, SC
Ruas da cidade
03:46 PM

​ aminhando apressadamente, o agente especial


C
Dustin Bilforg entra num restaurante e se senta numa
mesa já ocupada.
​O ocupante da mesa, um homem aparentando
pouco mais de cinquenta anos e bem vestido, observa o
nervosismo do agente que acabara de chegar.
​- O cerco está se fechando, Belmont – meio
encurvado, como buscasse se esconder e olhando ao
redor em preocupação, Bilforg parecia perdido.
​Os olhos do senador Belmont pareciam distantes e,
ao passar a mão por seus cabelos de um branco quase
prata, não demonstrava qualquer sinal de preocupação
com a revelação feita pelo agente.
​- Explique-se, Saville – foi o que Belmont se limitou a
dizer num tom plácido.
​Fazia tanto tempo que Bilforg não era chamado por
aquele nome e, por um breve instante, achou que
Belmont estava se dirigindo a outra pessoa.
​Ser chamado de Saville remetia o agente ao seu
triste passado. Um passado no qual sua família morrera
diante de seus impotentes olhos e sua alma havia sido
vendida a um demônio. A única coisa boa a qual aquele
nome, seu verdadeiro nome, o lembrava era o irmão.
Bilforg devia tudo na vida ao irmão. Fora ele quem lhe
custeara a sua faculdade de belas artes, seu sonho de
infância. Fora ele quem o iniciara nos caminhos da magia
e o levara para a Astrum Argentum, uma das principais
Casas que compõem a Ordem Hermética. Também fora
ele quem o ordenara, há quase dois anos, para se infiltrar
no FBI e vigiar os passos do agente Lazar.
​Todas essas coisas, que seu nome o lembrava,
passaram em sua cabeça tão rápido quanto um piscar de
olhos, mas foi o tempo o suficiente para fazer sua voz
fraquejar.
​- Alguém tentou me matar agora a pouco – sussurra
Bilforg olhando o homem nos olhos.
​- Você imagina quem seja? – Belmont continuava a
não demonstrar qualquer interesse na situação vivida
pelo agente.
​- Desde que entrei para a Divisão Especial o número
de pessoas que podem estar tentando me matar se
multiplicaram – Bilforg não parava de balançar a perna
em sinal de nervosismo. – E o pior, é que meus poderes
ainda não voltaram totalmente. Nem a conjuração está
funcionando.
​Há cerca de cinco meses, Bilforg foi envolvido numa
estranha trama destinada a caçar um demonologista.
Durante o ocorrido, o agente foi contaminado por alguma
espécie de substância alquímica e, no embate final,
acabou por se transformar numa criatura com traços
demoníacos. Por sorte, a transformação foi desfeita
quando Magines, que também foi envolvido na trama,
atirou no demonologista e este caiu do terraço do prédio
no qual Bilforg morava.
​Aparentemente, a queda de uma altura de vinte e
um metros, matara o demonologista e interrompera o
ritual que ele fazia sobre Bilforg.
​ esde aquele dia, Bilforg tem apresentado
D
dificuldade em utilizar suas habilidades místicas,
fazendo-o acreditar que tenha sido uma consequência da
transformação que sofrera.
​- Isso é sério – comenta Belmont finalmente
demonstrando certa preocupação com a condição do
agente. – E desde quando você está assim?
​- Já tem algum tempo. Atualmente só consigo
realizar pequenos rituais, mas com um gasto muito
grande de energia – Bilforg se sente desconfortável ao
falar do assunto e decide mudar de assunto. – Mas, e o
cérebro? O que descobriram sobre ele?
​Em sua carreira na política nacional, Belmont
aprendera que deveria aproveitar todas as oportunidades
que surgissem e foi assim que ele conseguira alcançar o
cargo de Senador pelo estado de Nova Iorque. Desta vez,
a oportunidade não estava relacionada à política
nacional, mas a existente entre os membros de sua
Ordem e entre as Casas que a compõem.
​- O cérebro não está conosco – responde voltando a
sua aparente naturalidade.
​- Como não? – pergunta Bilforg espantado. – McMail
disse que tinha mandado para vocês.
​- Mas ele não mandou. E se mandou, nunca chegou
até a gente – agarrando a oportunidade com unhas e
dentes, Belmont prepara o terreno para a sua cartada
final.
​- Desgraçado – resmunga dando um soco na mesa. –
Bastardo filho da mãe. Ele está nos traindo. E bem de
baixo do meu nariz.
​- O que pretende fazer? – com uma simples
pergunta, Belmont fizera o agente tomar uma posição
em relação ao ocorrido.
​- Convoque um Conclave – diz imediatamente o
agente. – Irei expor a situação aos mestres.
​ m leve sorriso de satisfação surge no rosto do
U
senador ao constatar que atingira o seu objetivo. Sem
dizer mais nada, Belmont se levanta e se retira, deixando
Bilforg envolto em pensamentos.
Ruas da Cidade
05:43 PM

​ esorientado com os impactantes acontecimentos


D
que ocorreram em pouco tempo, Bilforg caminha pela
cidade pensando na trágica morte do parceiro e na
traição do escocês.
​O agente sentia remorso pela morte de Lamartine,
pois acreditava que o alvo era ele e não o parceiro. Assim
como sentia culpa por não ter percebido a traição de
McMail.
​Em estado quase catatônico, atende o celular que
insistia em tocar no seu bolso.
​- Dustin Bilforg falando – atende com a voz pesada.
​- Bill – diz a voz do outro lado da linha –, onde você
está?
​- La... Lamartine? – surpreso ao ouvir a voz do
parceiro que acreditava estar morto, Bilforg sente os
olhos se encherem de lágrimas.
​- É, Bill. Quem mais poderia ser? – brinca o agente.
​- Mas você morreu na explosão do hotel – comenta
relutando em acreditar que o parceiro havia sobrevivido
ao atentado.
​- Que explosão, Bill? A única coisa que eu vi explodir
foi à janela pela qual você pulou.
​- Você está aonde? – pergunta o agente se
acalmando um pouco e limpando as lágrimas que
escorriam.
​- No hotel, oras. Onde mais eu estaria?
​- Estou indo aí – diz Bilforg desligando o telefone e
fazendo sinal para um táxi.
Nova Iorque
Bronx
06:37 PM

A viatura com dois policiais se aproxima
silenciosamente de um prédio residencial abandonado.
​Enquanto o motorista desliga o giroscópio e
estaciona a viatura, o parceiro checa o endereço.
​- Bem, parece que é aqui – diz o policial mais velho,
um homem de trinta e seis anos, cabelos castanhos e
olhos da mesma cor.
​- Então vamos logo prender este hacker que invadiu
o sistema do banco – diz o parceiro desligando a viatura.
× ​ ​× ​ ​×
​Numa sala abandonada, um garoto de cabelos
negros crespos e pele branca marcada pela acne, vestido
com uma calça jeans, camisa do Iron Maiden e usando
um boné para trás, desliga apressadamente um laptop
da tomada.
​- Merda. Merda. Merda. Merda – diz afoitamente. –
Desta vez eu fiz merda.
× ​ ​× ​ ​×
​Após se separarem para cobrirem um perímetro
maior, os policiais procuram o hacker. O policial Joshua
Rice pensava em como o seu novo parceiro iria se
comportar nesta missão. Era algo considerado calmo,
não envolvendo muita emoção, mas era uma de suas
fontes de inspiração para os livros policiais que escrevia.
​Com a arma em punho, J.J. caminhava
tranquilamente pelo prédio. Parando um pouco, o policial
novato percebe um barulho vindo de um dos
apartamentos abandonados. Aproximando-se
cautelosamente, avisa ao parceiro pelo rádio e prepara-
se para entrar.
​Saindo da porta como um foguete, o garoto de vinte
e um anos corre desesperado na direção oposta à do
policial que, reagindo rapidamente, corre em seu
encalço.
​Ao passar pela porta de onde o jovem acabara de
sair, o policial é atingido por uma saraivada de projéteis,
caindo logo em seguida.
​Vultos passam pelo corpo desfalecido do novato.
× ​ ​× ​ ​×
​Joshua Rice chega ao ponto onde o parceiro disse
que estava e o encontra caído no chão, com várias
perfurações no corpo.
​- Como? – se indaga o policial diante do corpo sem
vida do parceiro. – Hacker desgraçado, eu irei te pegar.
​Após fechar os olhos do parceiro e fazer uma
pequena prece, o policial Rice saca sua arma e corre na
direção da escada.
​Descendo a escada correndo, Rice apenas pensa em
se vingar do hacker que matara seu parceiro,
esquecendo totalmente o motivo de estar ali.
​Chegando ao térreo do prédio abandonado, Rice vê
o garoto saindo do prédio. Correndo em seu encalço,
entra na pequena ruela ao lado do prédio que acabara de
sair.
​- Droga! – esbraveja o garoto ao se deparar com
uma parede no final da ruela.
​Virando-se, o jovem hacker vê um policial de Nova
Iorque de arma em punho ele.
​- Parado! – berra o policial. – Você está preso por
invadir sistemas bancários e matar um policial.
​- Não temos tempo para isso – diz o jovem
abraçando seu laptop. – Eu fiz uma merda muito grande
e temos de sair daqui.
​- A merda muito grande que você fez foi matar meu
parceiro, garoto! – berra. – Agora você vai para a cadeia –
diz nervosamente o policial se aproximando.
​- Eu não matei ninguém. Por favor – suplica –, me
deixa sair daqui antes que algo pior aconteça.
​ policial ignora as súplicas do garoto e pega suas
O
algemas. Aproximando-se do jovem, Rice não vê o vulto
que surgira na ruela tomar a forma de alguém vestido
com uma armadura high tech negra com detalhes em
vermelho, segurando um rifle futurista.
​- Droga – reclama o jovem abraçando seu laptop
ainda com mais força. – Eles já estão aqui.
​Instintivamente, o policial se vira e vê o homem de
armadura.
​- Você tem algo que não te pertence – diz o homem
de armadura com uma voz metálica que fez o jovem
lembrar do Darth Vader de Star Wars.
​Tomado pelo desespero, o jovem hacker tenta fugir,
mas um rápido disparo do homem de armadura o acerta,
fazendo-o cair.
​- Vo... Você está preso – diz Rice apontando sua
arma para o homem de armadura.
​- Alvo eliminado – diz –, mas tenho testemunhas.
Seguirei os protocolos recomendados.
​- Com quem você está falando? – pergunta Rice
andando para trás enquanto o homem de armadura
caminhava em sua direção.
​- Isso, você nunca vai saber – responde
ironicamente.
​- Você está preso – diz o policial apontando sua arma
para a cabeça do homem de armadura – pelo assassinato
de um policial e de um prisioneiro.
​- Você vai me prender? – debocha apontando o rifle
para o policial.
​Sem reação, Rice fecha os olhos esperando o
disparo que irá matá-lo, porém se surpreende ao não o
ouvir. Parecendo não acreditar, abre os olhos aos poucos
e vê o homem de armadura caído e o jovem hacker
batendo violentamente em sua cabeça com o laptop.
​- Olha – diz o hacker dando um último golpe –, eu sei
que você quer me prender, mas eu não posso ser preso
neste momento. Esses caras – aponta para o homem de
armadura caído no chão –, que mataram seu parceiro e
quase nos mataram, estão atrás de mim porque eu
descobri alguma coisa que eu ainda não sei bem o que é.
E essa coisa está aqui – diz apontando para o laptop
danificado pelo tiro –, mas não tenho como descobrir isso
agora, até porque eu pretendo sobreviver. Assim eu peço
para nós sairmos daqui o mais rápido possível –
percebendo o dilema em que o policial estava, o jovem
continua. – Os amigos deste cara logo estarão aqui e vão
nos matar, você não quer vingar a morte do seu
parceiro? – diante de uma resposta afirmativa – Então
vamos logo embora.
​O policial e o jovem hacker deixam o local correndo
e adentram a noite da cidade.
Charleston, SC
Hotel Intercontinental
09:03 PM

​ agente Dustin Bilforg, após conversar com


O
Lamartine sobre a explosão do quarto que eles estavam,
sentou-se na poltrona e caiu em pensamentos tentando
compreender o ocorrido. Não faz sentido algum. Eu vi a
explosão, mas ela não ocorreu. Será que foi uma grande
ilusão? Talvez. Mas quem teria feito isso? McMail? É,
pode ter sido ele, afinal, ele é um grande ilusionista,
além de um traidor.
​Enquanto Bilforg estava tomado por pensamentos,
Lamartine apenas o observava tentando entender melhor
o parceiro e as recentes mudanças em sua própria vida.
07 de fevereiro de 2002
Hotel Intercontinental
07:11 AM


O agente especial Alex Lamartine acorda
despreocupado. Espreguiçando-se, se senta na cama e
esfrega o rosto com as mãos. Passa as mãos nos cabelos
e se espreguiça mais uma vez.
​- Bom dia, Lamartine.
​A presença do jovem agente do FBI fez Lamartine se
assustar. Jamais imaginara que, ao acordar, Magines
seria a primeira pessoa que veria. Na verdade, não
imaginava que o parceiro fosse entrar no quarto, pois ele
e Bilforg estavam se estranhando há algum tempo.
​- O que foi, Lamartine? – pergunta Magines sentado
na poltrona. – Levou um susto?
​Perguntando-se por quanto tempo o parceiro
permanecera ali, observando-o dormir, Lamartine engole
a seco e olha ao redor.
​- Cadê o Bilforg? – pergunta, observando que uma
bíblia estava na cabeceira de sua cama. Uma bíblia que
não se encontrava ali quando o agente fora dormir na
noite anterior. Será que é mais um sinal de minha missão
na Terra – questiona-se.
​- Desceu para tomar café da manhã num
restaurante – responde o agente com os olhos cerrados,
enquanto se levanta e caminha até a porta. – Ele deixou
o endereço para nos encontrarmos com ele.
​Por mais que soubesse que Bilforg jamais deixaria
um bilhete para que Magines fosse tomar café com ele,
Lamartine balança a cabeça em acordo.
​Dando mais uma espreguiçada, o agente pega a
bíblia e a folheia. Percebendo que havia alguma coisa
entre algumas páginas, Lamartine a folheia mais uma
vez até encontrar uma pequena folha dobrada.
​Contendo a curiosidade inicial, guarda a folha no
bolso do paletó prateado que estava pendurado na
guarda de sua cama.
​Parado a porta, Magines dá um leve sorriso ao ver
que o parceiro havia encontrado alguma coisa na bíblia.
​- Vê se não demora muito se arrumando – comenta
da porta. – O endereço está preso num post’it no espelho
do banheiro.
07:44 AM

​ ensolarado dia fizera Bilforg escolher uma das


O
mesas postas na calçada para tomar o seu desjejum,
mas a companhia do corregedor Nicolas Lapente, do
agente Lamartine e principalmente a do milionário
escocês Cian McMail tirava por completo o sabor de sua
comida.
​- Afinal de contas, vocês podem me explicar direito o
que vieram fazer aqui? – segurando uma xícara de café,
Lamartine olhava para o escocês e para o corregedor.
​- Soube que vocês iniciaram uma nova investigação
– comenta Lapente pegando um pouco de ovo mexido
com um pedaço de pão – e vim recolher alguns dados
sobre o agente Lazar. As informações passadas pelo
agente Bilforg sobre os motivos para o seu
desaparecimento não foram muito bem aceitas e eu
imaginei que vocês soubessem de seu paradeiro, afinal,
são os parceiros dele e deveriam ter conhecimento de
seus passos.
​- Lazar sumiu? – pergunta McMail acendendo um
charuto. – Interessante – comenta dando uma baforada.
​Enquanto Lapente e McMail conversavam sobre o
desaparecimento do agente Lazar e sobre outras coisas
de menor importância, Bilforg apenas encarava o
milionário escocês com raiva no olhar.
​Lembrando-se dos fatos ocorridos logo após o seu
despertar, Lamartine retira o bilhete, que encontrara na
bíblia, do bolso e o lê. Achando curioso o seu conteúdo, o
agente o lê mais uma vez e pega o isqueiro do escocês
emprestado.
​Colocando o bilhete num cinzeiro, Lamartine o
queima sob os auspícios do parceiro.
​ uando a folha se consome por inteiro, o agente
Q
cobre o cinzeiro extinguindo a chama e deixando apenas
as cinzas em seu interior.
​Limpando as mãos num guardanapo, Lamartine
percebe que alguém os observava do outro lado da rua e,
discretamente, avisa aos demais ocupantes da mesa.
​Sem traçar qualquer plano ou se comunicarem a
respeito de seu observador, Lamartine e Lapente se
levantam e caminham em sua direção no mesmo
instante que McMail faz sinal para um táxi que passava
pelo local.
​Sozinho na mesa e pouco se importando com o fato
de haver ou não um observador, Bilforg leva a mão até o
cinzeiro e recolhe o seu conteúdo. Esfregando as mãos,
deixa as cinzas caírem por entre os dedos à medida que
um filete de sangue escorrida de seu nariz.
​- Agora ele sabe – murmura o agente limpando o
sangue. Levantando-se, olha para o parceiro que
atravessava a rua correndo e respira fundo em dúvida
sobre o que poderia acontecer a Lamartine agora que ele
descobrira a verdade.
​Deixando as reflexões de lado, Bilforg deixa uma
quantia que acha ser o suficiente para pagar a conta do
café da manhã e corre atrás dos demais agentes.
× ​ ​× ​ ​×
​Entrando no táxi que lhe atendera, McMail pede ao
motorista que o leve até o outro lado da rua, mas tal
pedido é prontamente negado. Tentando uma nova
abordagem, o escocês decide indicar um caminho para o
motorista, solicitando que ele entrasse na próxima rua à
esquerda, mas sempre mantendo uma baixa velocidade.
​Assim que o táxi chega ao próximo quarteirão,
McMail pede ao motorista para encostar, pois estava
passando mal e precisava vomitar.
× ​ ​× ​ ​×
​ suposto observador indicado por Lamartine, ao
O
avistar três homens de terno vindo em sua direção, saíra
em disparada, forçando os agentes a correr em seu
encalço. Contudo, nenhum dos agentes parecia ser capaz
de acompanhar o ritmo do observador e este, cada vez
mais, se distanciava.
​Quando um estampido seco ecoa pelas ruas, os
agentes param e procuram por abrigo acreditando
estarem sob a mira de algum atirador, mas logo
descobrem o que ocorrera.
​Lamartine foi o primeiro a ver McMail caindo do táxi
e rolando pela calçada enquanto o veículo acelerava com
o motorista esbravejando alguma coisa.
​Retornando para socorrer o escocês, os agentes
sentem uma leve frustração ao perceberem que tanto o
observador, quanto o taxista escaparam sem que
pudessem ser identificados.
​- Você está bem? – pergunta Lapente referindo-se ao
escocês sentado na calçada sendo ajudado por
Lamartine.
​- Pode-se dizer que sim – responde McMail tentando
dar um sorriso e levantando-se com dificuldade.
​Exceto por Bilforg, os agentes pareciam realmente
preocupado com o que acontecera ao escocês, ajudando-
o a se levantar e a se recompor .
​Embora todos acreditassem que o taxista tenha
atirado contra o milionário escocês e que a pequena
ferida em sua perna seja decorrente de um projétil que o
atingira de raspão, não foi isso que havia acontecido.
​Quando percebeu a real intenção do escocês, o
taxista acelerou o carro fazendo o cano de descarga
estourar e emitindo um barulho similar ao de um disparo
de arma de fogo. Enquanto a ferida foi produzida pela
queda do arqueólogo ao deixar o carro.
​- Teremos de te levar a um hospital – comenta
Lapente observando a perna ferida do milionário.
-​ Então está decidido – diz Bilforg com frieza na voz.
– Lapente vai levar McMail para ver a ferida enquanto
Lamartine e eu vamos continuar a investigar – voltando-
se para o parceiro, o agente continua. – Vamos ao
hospital onde estão desaparecendo as pessoas.
​Antes que alguém pudesse dizer mais alguma coisa,
Bilforg se vira e sai caminhando de volta ao carro que
alugara quando chegara à cidade, deixando no ar a ideia
de que McMail deveria ser levado a um hospital que não
fosse o investigado.
Charleston Center Hospital
09:02 AM

​ entados na antessala do escritório do diretor do


S
hospital, Bilforg e Lamartine esperam para serem
atendidos. Entretanto, a fisionomia dos parceiros era
visivelmente contrastante. Não pelo fato de Lamartine se
vestir com um terno prateado e Bilforg se trajar de
maneira sóbria. Mas pela expressão facial de ambos.
Enquanto Lamartine estava sorridente, como se tudo
estivesse bem em sua vida, o parceiro não apresentava a
mesma euforia.
​Bilforg estava de cara amarrada, disperso, sem
prestar atenção no que acontecia ao seu redor.
Lamartine falava ininterruptamente por quase uma hora,
mas ele não fazia ideia do que o parceiro estava dizendo.
Na verdade, nem se dera ao trabalho de prestar atenção.
​- O que você tem, Bill? – pergunta Lamartine
tocando o braço do parceiro para conseguir sua atenção.
– Acordou de mau humor? Tá se sentindo bem?
​- Não é nada – de maneira evasiva, Bilforg dá um
leve sorriso amarelo e olha o relógio sentindo que o
tempo estava demorando a passar.
​Antes que Lamartine pudesse continuar com suas
perguntas, a secretária o interrompe e informa que o
diretor irá recebê-los.
​Entrando na sala, os agentes logo são recebidos
pelo diretor Alexander Jarnoshenko, um homem alto,
esguio, completamente careca, de olhos profundos e com
um forte aperto de mão que deixara Lamartine
impressionado.
​Terminando de cumprimentar o diretor, Lamartine se
acomoda na cadeira com um estranho pressentimento.
Ao apertar a mão do diretor, o agente sentira um forte
calafrio.
​- Em que posso ajudar o FBI? – pergunta o diretor
com uma voz rouca enquanto entrelaça dos dedos sobre
a mesa. O anel de platina com uma bela esmeralda,
símbolo da formatura em medicina, logo chama a
atenção do agente de terno prateado que o observa
atentamente, quase num estado hipnótico.
​- Recebemos informações de que algumas pessoas
que deram entrada no seu hospital desapareceram –
comenta Bilforg com uma estranha frieza na voz.
Normalmente, ele estaria preocupado com o destino
dessas pessoas, mas a traição de McMail martelava sua
cabeça e o impedia de se importar com outras coisas. – O
que o senhor poderia nos informar a este respeito?
​- Isso é de meu total desconhecimento, agente –
sem demonstrar qualquer mudança de humor ou em sua
expressão facial, o diretor responde à pergunta olhando o
agente nos olhos. – Contudo, providenciarei informações
sobre tal fato e, assim que as possuir, repassarei para os
senhores.
​- Agradecemos a sua ajuda – comenta Lamartine
entregando seu cartão ao diretor que, após examiná-lo
com cuidado, dá um leve sorriso de satisfação.
​- Em que mais posso ajudá-los? – o olhar do diretor
assume um ar malicioso ao se voltar para Lamartine,
fazendo o agente sentir um novo calafrio e um estranho
tremor em seu corpo.
-​ Por hora é só – responde Bilforg se levantando sem
perceber o que acontecia ao seu redor.
​Deixando a sala do diretor, Bilforg tem de chamar
pelo parceiro para que este pudesse acompanhá-lo.
Entretanto Lamartine demorara a sair, não por querer
fazer mais perguntas ao diretor, mas porque seu corpo
não atendia ao seu comando.
​Lamartine permanecera calado durante todo o
caminho até o carro. Uma estranha sensação de medo
tomava o seu corpo, despertando sentimentos malignos.
Sentimento que pareciam fazer parte de sua natureza.
​Acomodando-se no banco do motorista, Bilforg liga o
motor, mas estranha quando o parceiro, que já estava
sentado ao seu lado, subitamente abre a porta com uma
respiração pesada.
​- O que foi, Lamartine? – pergunta desligando o
carro.
​- Tenho mais algumas perguntas a fazer àquele
diretor – responde um tanto irritadiço. – Já volto.
​Um tanto confuso com o comportamento do
parceiro, Bilforg o observa atravessar a rua correndo em
direção ao hospital sem se importar com o trânsito.
Acostumado às atitudes estranhas de Lamartine, o
agente dá de ombro, abre o notebook e faz algumas
anotações relativas ao caso, o Arquivo 077. Porém, sua
mente logo viaja e Bilforg se pega pensando na traição
do escocês.
​McMail trair a Golden Dawn parecia inconcebível
para Bilforg e isso o incomodava. O agente não
conseguia acreditar que o milionário escocês, um dos
membros mais proeminentes da ordem de magia,
pudesse traí-los. Algo parecia estar errado. Tinha de
existir uma outra explicação para aquilo. Mas ele não
poderia se questionar a respeito disso naquele momento,
pois, do outro lado da rua, Lamartine é retirado do
hospital por três seguranças.
​ aindo do carro, Bilforg atravessa a rua com a
S
insígnia do FBI na mão e se aproxima da confusa cena
entre Lamartine e os seguranças.
​- FBI! – se identifica Bilforg. – O que está
acontecendo aqui?
​- Este homem – responde um dos seguranças
referindo-se a Lamartine, que era imobilizado pelos
outros dois – subitamente começou a quebrar as coisas
no hospital.
​Pegando as algemas, Bilforg prende as mãos do
parceiro para trás demonstrando aos seguranças que
Lamartine estava contido.
​Sem se manifestar a respeito do que Bilforg e os
seguranças conversavam, Lamartine apenas olha o
hospital com expressão de ira, como se, assim que
pudesse, voltaria para terminar o que estava fazendo
antes.
​- Eu me responsabilizo por ele – comenta Bilforg
conduzindo o parceiro até o carro do outro lado da rua
sob os olhares dos curiosos e dos seguranças.
​Colocando o parceiro, ainda algemado, no banco do
carona, Bilforg dá a volta e se senta no lugar do
motorista. Olhando uma última vez para os seguranças
do outro lado da rua, dá a partida e sai com o carro.
​- O que você estava fazendo, Lamartine? –
balançando a cabeça em claro sinal de reprovação,
Bilforg sente sua musculatura se contrair em função das
gigantescas responsabilidades que se encontram sobre
os seus ombros.
​Diante do silêncio do parceiro, Bilforg volta a
perguntar.
​- Pare este carro! – diz Lamartine de forma
autoritária e com olhar de ódio para o parceiro.
​- Do que você está falando, Lamartine? – Bilforg
jamais vira o parceiro agir daquela forma. Pelo contrário,
ele sempre se mostrou uma pessoa calma. – Você estava
vandalizando o hospital que estamos investigando. Você
está querendo sabotar o nosso trabalho?
​- Eu disse para você parar este carro agora! – berra
Lamartine colérico.
​Assustado com o berro do parceiro, Bilforg esboça
uma resposta, mas é interrompido por uma rápida
cabeçada que lhe atinge rosto e o faz perder o controle
do carro.
​Desgovernado, o veículo entra na contramão quase
colidindo com um ônibus escolar e provocando pânico
naqueles que viram a cena e já imaginavam que uma
desgraça estava para acontecer.
​Por pura sorte, se é que se pode dizer isso, o carro
dos agentes desvia de algumas pessoas que
atravessavam a rua e colide violentamente com um
poste. No interior do veículo, os air bags são acionados
evitando que os passageiros se machuquem ainda mais.
​Virando-se com certa dificuldade, Lamartine abre a
porta e sai correndo com as mãos algemadas nas costas
e deixando o parceiro para trás.
​Atordoado com a pancada que sofrera do parceiro e
com o acidente, Bilforg demora a se livrar do air bag e
sair do carro. Levando a mão a boca e sentindo o corte
no lábio arder, sente uma forte irritação e a tensão
acumulada em seu corpo estourar.
​Berrando um sonoro palavrão, Bilforg saca a arma e
corre atrás do parceiro.
​Na perseguição ao parceiro, Bilforg o chama
inúmeras vezes, mandando-o parar. Em todas, Lamartine
pareceu ignorar a ordem e continuava correndo em meio
aos transeuntes.
​Em sua vida, Bilforg se encontrou, por inúmeras
vezes, em situações nas quais teve de pensar bem antes
de agir para não se arrepender da escolha que tomara.
Esse seria um destes momentos.
​ eria, mas o estresse que lhe aflige e as pressões as
S
quais sofre o impediram de pensar com clareza e o
fizeram puxar o gatilho, atirando contra o parceiro que
insistia em fugir.
​Quando um grito agudo ecoa pela rua, Bilforg sente
como se estivesse diante de uma imensa onda de culpa
e remorso que está prestes a quebrar.
​Sob os olhares dos transeuntes que, aos poucos, se
recuperam do susto provocado pelo tiro, Bilforg,
diminuindo a velocidade dos passos, aproxima-se da
grávida caída na calçada e, ao ver a ferida provocada
pelo tiro, sente a onda se quebrar sobre o seu corpo.
​Em estado de choque, limita-se a contatar o Diretor
Assistente Stone, comunicando brevemente o ocorrido e
permanecendo calado enquanto o seu superior explode
em críticas.
​Perdido com o que acabara de acontecer e em
estado de choque, Bilforg se esquecera de guardar a
arma e permanecia com ela na mão, apontando para
baixo. Esse descuido, provavelmente, foi a melhor coisa
que lhe acontecera, pois intimidava a multidão
enfurecida que se aglomerava ao seu redor e lhe dirigia
palavras de escárnio.
​Avisados por transeuntes, uma ambulância e uma
viatura da polícia logo chegaram ao local para socorrer a
grávida e prender o atirador.
​Temendo o pior, os paramédicos aplicam os
primeiros atendimentos ainda na própria calçada,
tentando conter a hemorragia e salvar a vida da grávida
e de seu filho. Entretanto, a ferida causada pelo projétil
.9mm no ventre da mulher parecia grave demais.
​Terminando de ouvir a bronca do superior, Bilforg se
vê cercado por três policiais de arma em punho.
​- Você está preso! – diz um dos policiais irritado ao
perceber que Bilforg havia atirado na barriga de uma
mulher grávida. – Jogue a arma no chão.
​ penas segurando sua arma com um dedo no
A
gatilho, Bilforg a entrega para um dos policiais no
momento em que outro o algema sob os auspícios da
turba. O agente nunca fora algemado em sua vida, mas
sabia que o policial apertara as algemas mais do que o
necessário, quase cortando a circulação de suas mãos.
​Abrindo a porta traseira da viatura para Bilforg
entrar, um dos policiais coloca a mão na cabeça do
agente e a empurra contra o capô do carro.
​- Cuidado com a cabeça – diz o policial ironicamente.
​Com a testa sangrando, Bilforg entra na viatura e
observa a mulher sendo levada à ambulância. Por mais
que soubesse que os policiais estavam abusando de sua
autoridade e que, provavelmente, apanharia um pouco
mais na delegacia, o agente não parecia se importar,
pois se sentia culpado pelo o que ocorrera e deveria
pagar por seus pecados. Mais do que isso, Bilforg via a
sua própria mulher no rosto daquela grávida e sentia um
enorme vazio no peito ao se lembrar de como perdera
sua família.
​A viatura deixa a cena do crime com a sirene ligada
sob os xingamentos daqueles que se encontravam ali.
​Dirigindo-se à delegacia por um caminho mais
longo, os policiais se revezam ao volante a fim de
baterem no prisioneiro que se encontra imobilizado no
banco de trás da viatura e não esboçava qualquer
tentativa de se defender.
Ruas da cidade
11:28 AM

​ aminhando tranquilamente pelas ruas da cidade,


C
Lamartine sentia uma pequena dor na testa, mas não se
lembrava de como a conseguira. Da mesma forma com
que o agente não se lembrava de nada que acontecera
após deixar a sala do diretor Jarnoshenko com o parceiro,
mas isso não parecia incomoda-lo.
​ a verdade, Lamartine não se lembrava de muitas
N
coisas de sua vida neste momento. Não se lembrava de
que era um agente corrupto em São Francisco, nem que
trabalhava para a Máfia fornecendo informações,
eliminando testemunhas e sabotando investigações
federais em troca de favores e dinheiro, muito dinheiro.
​ A vida do agente era suja, envolta e traições e em
situações completamente imorais. Contudo, após ter de
matar os filhos de uma testemunha para fazê-la se
recusar a depor num caso contra Antoni Tortelli, algo lhe
aconteceu. Parte de sua psique se transformou e uma
nova personalidade começou a surgir. Uma
personalidade inocente e que não tinha conhecimento do
que ele realmente era ou fazia.
​Desde então, Lamartine passou a sofrer de uma
espécie de dupla personalidade. Tendo o corpo habitado
por duas pessoas totalmente distintas e que não sabem
da existência da outra. Cada uma tendo suas próprias
lembranças, seus próprios gostos e formas de agir.
​Ao passar por uma loja de eletrodomésticos, o
agente tem a sua atenção atraída pela notícia da morte
de uma mulher grávida atingida por um tiro enquanto
andava pela cidade.
​- Nossa. Que mundo é esse no qual vivemos? –
comenta horrorizado com a notícia enquanto pega o
celular que tocava em seu bolso.
​- Lamartine! – berra Stone do outro lado da linha
assustando o agente.
​- Sim? – se preparando para outro berro, afasta um
pouco o celular da orelha.
​- O que deu em você para agredir o agente Bilforg?
​- Eu agredi o Bilforg? – pergunta Lamartine
aparentemente confuso, sem conseguir acreditar no que
o seu superior dizia. – Quando eu fiz isso? Onde ele está?
Ele está bem?
-​ Ele está preso! – berra Stone sem paciência com o
comportamento e o aparente descaso do agente. –
Depois que você o agrediu, ele bateu com o carro e você
saiu correndo. Ele mandou você parar e, como você não
o obedeceu, deu um tiro de aviso e acabou acertando
uma mulher grávida.
​- Então deve ter sido ele quem matou a mulher
grávida – constata Lamartine, unindo o comentário do
chefe com as notícias que tinha visto na televisão.
​- É! – responde Stone gritando. A situação já estava
delicada e o aparente estado de indiferença de Lamartine
deixava Stone ainda mais irritado. – Agora ele está preso
na Patrol South Secretary. Vá até lá e veja o que pode ser
feito até que as coisas se resolvam. Se for preciso,
lembre-os que eles não devem encostar um dedo no
Bilforg ou eles irão se ver comigo. Entendeu?
City of North Charleston Police Department
Patrol South Secretary
3401 Rivers Ave.
11:59 AM

​ único móvel a ocupar a sala sem iluminação é


O
uma cadeira metálica presa ao chão. Sentado sobre ela,
Bilforg estava de cabeça baixa. Suas roupas foram
rasgadas pela violência dos golpes que lhe provocaram
inúmeras feridas. Suas mãos, algemadas e colocadas
sobre o seu colo, estavam sem unhas e com alguns
dedos quebrados. Sangue escorria de seu nariz, da boca
e dos vários cortes em sua cabeça.
​Ao chegar à delegacia, fora levado até esta sala e
sofrera agressões de quase todos os policiais do local,
que estavam irritados com o fato dele ter matado uma
mulher grávida no meio da rua. Por seu crime, o agente
fora torturado por quase duas horas até os policiais
cansarem e resolverem parar um pouco com as
agressões.
​ creditando que iria morrer em breve, Bilforg já não
A
tinha mais esperanças de escapar daquele local e sabia
que nenhum dos policiais iria dizer que ele se encontrava
ali. Quando alguém do FBI fosse procurá-lo e conseguisse
ter acesso àquela sala, já seria tarde demais.
​Aceitando o seu fim, Bilforg dá um leve sorriso ao
sentir uma pequena energia percorrer o seu corpo. Uma
energia que não sentia há algum tempo. Juntando as
poucas forças que ainda lhe restam, leva as mãos até o
bolso da calça rasgada e retira um celular que, até então,
não existia. Digitando um número de telefone, o agente
envia uma mensagem de socorro antes de cair
inconsciente em função do aumento do fluxo do
sangramento de seu nariz.
01:05 PM

​Entrando na delegacia de polícia, o agente federal


Alex Lamartine procura pelo responsável, mas três
homens bem vestidos passam a sua frente para falar
com o delegado.
​- O que vocês querem? – pergunta o delegado, um
homem robusto e com pequenas entradas no cabelo
grisalho.
​- Somos os advogados do agente federal Dustin
Bilforg – diz um dos homens com tom autoritário. –
Queremos vê-lo imediatamente.
​- Não sei do que você está falando – comenta o
delegado com um pequeno sorriso. – Não temos nenhum
prisioneiro com este nome.
​- Escuta aqui – diz um dos homens colocando o dedo
no peito do delegado. – Nós queremos o Bilforg e
queremos vê-lo agora.
​- Escuta aqui você – diz o delegado se irritando. –
Com quem você pensa que está falando?
​ ando um tapa na cara do delegado o homem o
D
manda calar a boca, para espanto de Lamartine que
observava tudo calado.
​- Você não é nada – diz o homem que deu o tapa. –
Não passa de um simples inseto que eu posso facilmente
esmagar com o meu sapato.
​O delegado não sabia o que fazer. Seu rosto ardia
por causa do tapa, seus olhos se encheram de lágrimas e
ele se controlava para não chorar. Não um choro de
medo ou dor, mas um choro provocado pela ardência em
seu rosto.
​- Todo mundo erra – diz o homem dando um outro
tapa na cara do delegado. – E você já errou várias vezes.
Pensa que eu não sei que você tem atrações por jovens
garotos?
​As palavras pareciam entrar na alma do delegado,
provocando-lhe um terrível desespero capaz de fazê-lo
entrar em prantos. Sem forças para enfrentar a agonia e
o sentimento de culpa que assolavam a sua alma, o
delegado se agacha lentamente até entrar em posição
fetal.
​- Peguem o Bilforg – ordena para os outros dois
homens. – E, quanto a você – comenta voltando-se para
o delegado –, jamais comente nada sobre o que ocorreu
aqui com ninguém. Na verdade, você não faz ideia de
quem atirou naquela mulher e jamais irá encontrá-lo.
​Lamartine estava de boquiaberto diante do que os
advogados do parceiro acabaram de fazer. Olhava
espantado para o homem que esculachava o delegado
sem compreender como ele conseguia fazer isso e o
porquê de o delegado não esboçar qualquer reação,
afinal, qualquer um acusado de sentir atrações por
garotos não aceitaria tão facilmente, muito menos ficaria
sem se defender.
​Vendo os outros dois carregando Bilforg nos ombros,
Lamartine se choca com o estado físico do parceiro.
-​ Bill – chama o parceiro que estava sendo levado
para fora da delegacia. – Bill.
​Correndo atrás dos homens, Lamartine apenas tem
tempo de vê-los colocar o parceiro dentro de uma
limusine Lincoln negra com vidros fumê e irem embora
sem deixar pistas de qual seria o seu paradeiro.
​Parando com as mãos na cintura, Lamartine apenas
olha o carro ir embora sem entender nada. Sem entender
como o parceiro tinha ficado daquele jeito ou como ele
havia conseguido advogados como aqueles.
× ​ ​× ​ ​×
​No interior da limusine, os homens observavam
Bilforg se recuperando, enquanto o senador Belmont, que
estava sentado ao seu lado, passava um lenço
umedecido no rosto do agente retirando o sangue seco.
​- Ele sabe – balbucia Bilforg com dificuldade.
​- Quem sabe o quê? – pergunta Belmont num tom
afável.
​- Lamartine – diz Bilforg tossindo e sentindo o seu
corpo doer. – Ele recebeu um bilhete anônimo no qual... –
mais um acesso de tosse interrompe a frase – no qual
contava que eu era um mago e que McMail é um mago
da luz e tem asas.
​Levantando o rosto do agente pelo queixo, Belmont
o olha nos olhos.
​- Então você sabe o que fazer – comenta de maneira
peremptória.
​- Mas não há outra forma? – balbucia tentando
desviar o olhar.
​Toda pessoa tem o potencial para fazer tanto o bem,
quanto o mau. Basta receber os estímulos certos e se
deixar levar.
​- Faça da maneira que você achar melhor, mas saiba
que se algo vazar...
Hotel Intercontinental
Quarto 104
06:09 PM

​ pós percorrer a cidade em busca do parceiro,


A
Lamartine decidira retornar ao hotel e aguardar por
algum contato.
​Entrando no quarto, tranca a porta numa tola
tentativa de impedir que Magines pudesse entrar
sorrateiramente e surpreendê-lo, como de costume. Mas,
quem surpreende o excêntrico agente de terno prateado
não é o jovem agente de cabelos brancos, mas o próprio
Bilforg, que saía do banheiro vestido com a calça negra
do terno, camisa branca e uma gravata prata.
​- Precisamos conversar – diz Bilforg friamente
jogando a toalha, que usara pra secar o cabelo, sobre a
cama e pegando o coldre de ombro com sua Glock 17
para vestir.
​- Bill – Lamartine tenta argumentar alguma coisa,
mas a presença do parceiro ali, sem nenhum ferimento
ou cicatriz que revelasse as torturas que havia sofrido, o
deixava sem reação, apenas sentindo um estranho
medo. Medo de ter se deparado com algo que não era
para ele saber. Medo de ter feito perguntas demais e que
estava num caminho sem volta. Nesse instante, as
constantes intervenções de McMail dizendo-lhe para não
se intrometer, que a ignorância, muitas vezes, é uma
benção, passam por sua mente.
​- Na cama – ordena Bilforg pegando o paletó no
encosto de uma cadeira.
​- Eu não quero morrer como uma puta! – berra
Lamartine sentindo uma pontada de desespero.
​- Sente-se na poltrona, então – comenta indiferente
ajeitando o paletó negro.
​Bilforg não parecia estar preocupado com a
possibilidade de Lamartine tentar fugir. Pelo contrário, o
agente demonstrava estar dominando completamente a
situação, deixando o parceiro ainda mais nervoso.
​Sem saber o que fazer, Lamartine acata a ordem do
parceiro e se senta na poltrona. Sentindo suas mãos
tremerem diante do possível desfecho da cena, o agente
segura os braços da poltrona com força tentando não
demonstrar o medo que sentia.
​- Como eu disse – comenta Bilforg terminando de se
arrumar –, precisamos conversar.
​- Está certo – concorda Lamartine fazendo um leve
gesto de cabeça. – Mas eu gostaria de tomar um pouco
d’água antes de começarmos a conversa – comenta
fazendo força para que sua voz parecesse normal e não
falhasse.
​Caminhando tranquilamente até o frigobar, Bilforg
pega uma garrafa com água e enche um copo. Voltando
até o parceiro, o entrega.
​A calma do agente parecia estranha para Lamartine
que sempre acreditou que Magines seria aquele que
poderia fazer algo assim.
​Olhando o copo d’água por alguns instantes,
Lamartine respira fundo e toma alguns goles até deixá-lo
com três dedos de água. Com um olhar de satisfação por
acreditar ter encontrado uma forma de contornar a
situação, começa a passar os dedos da mão direita por
sobre a borda do copo.
​- E, então, sobre o que vamos conversar? – pergunta
Lamartine mais calmo.
​- O que você sabe? – pergunta Bilforg pegando a
toalha molhada que estava sobre a cama.
​- Sobre o quê? – pergunta um pouco confuso.
​- Sobre mim! Sobre McMail! Sobre a Divisão
Especial! Sobre tudo! – Bilforg parecia ter se irritado com
o fato de o parceiro estar se fazendo de desentendido.
​- Eu sei tudo – assustado com a reação do parceiro,
Lamartine se descuida e acaba se entregando. – Sei que
aqueles caras na delegacia não eram seus advogados.
Eles fazem parte da sua Ordem. Assim como sei que
você é um mago e McMail não é um simples arqueólogo.
​- Quem te entregou o bilhete?! – berra Bilforg ao
perceber que o parceiro, que sempre julgou ser alguém
inocente e que não representaria qualquer ameaça a seu
segredo, sabia de muitas coisas.
​- Que bilhete? Eu não sei do que você está falando –
responde gaguejando. O medo que sentia do parceiro
naquele momento dificultava seu raciocínio, fazendo-o se
esquecer do bilhete que encontrara na Bíblia.
​- O que você sabe sobre o McMail? – mais calmo,
Bilforg pendura a toalha numa cadeira.
​- Eu sei que ele não é apenas um arqueólogo –
responde se encolhendo na poltrona, temendo pelas
consequências de ter revelado coisas que sabia que não
deveriam ser ditas para ninguém. – Nada mais.
​- Sua vida está por um triz, Lamartine. Se você não
cooperar, poderá morrer – comenta Bilforg com os olhos
vermelhos e cheios de lágrimas.
​- Então vamos fazer um acordo – propõe Lamartine
percebendo que Bilforg estava relutante em deixar a
conversa ter um fim trágico.
​- Está certo – concorda Bilforg relaxando um pouco
mais ao perceber que o parceiro havia decidido cooperar.
– Quem é você?
​- Ora, Bill. Eu seu o seu parceiro, Alex Lamartine –
responde com naturalidade. – Agora é a minha vez. O
que você acha da Divisão Especial? Você está tentando
desmascarar tudo como é o desejo do Lazar?
​A pergunta pegara Bilforg de surpresa, fazendo-o
refletir um pouco antes de responder.
​- Eu trabalho na Divisão Especial – Bilforg esfrega os
olhos para evitar chorar – e pretendo ver o sonho do
Lazar se tornar realidade – comenta com um profundo
suspiro.
-​ Então, Bill – comenta Lamartine num tom amigável
enquanto coloca a ponta dos dedos no interior do corpo
–, você não precisa me matar. Eu sou seu amigo.
Estamos juntos nessa.
​O caminho que Lamartine havia dado para a
conversa estava surtindo efeito e deixando o parceiro
mais tranquilo, porém, quando colocou a mão no interior
do copo, deu tudo a perder, pois começou a pressionar
Bilforg a tomar uma atitude.
​- Você não entende! – esbraveja preocupado com o
que Lamartine poderia fazer com a mão dentro do copo.
Bilforg já tivera contato com muitas coisas que não podia
explicar e, a atitude do parceiro, o fazia acreditar que
algo estava para acontecer. – Você sabe coisas demais,
Lamartine. Coisas que não deveria saber. Coisas que
ninguém deveria saber. Você foi avisado para deixar isso
de lado, mas você continuou perguntando. Você
continuou se intrometendo.
​- Bill – diz colocando os dedos um pouco mais para
dentro do copo –, entenda, eu sou seu aliado. Você pode
confiar em mim.
​Por mais que quisesse acreditar no parceiro, Bilforg
sabia que Lamartine era um grande mentiroso e que não
poderia confiar em suas palavras.
​- Infelizmente – em tom de pesar, comenta
passando a mão direita pelo ar a sua frente –, não sei se
realmente posso confiar em você.
​- O que você fez, Bill?! – nervoso, por não estar mais
enxergando, Lamartine sente que o seu fim pode estar
próximo. – Por que não posso enxergar!? Você realmente
é um mago?! – até aquele momento, o excêntrico agente
acreditava que o parceiro fazia parte de uma espécie de
clube no qual os integrantes tinham muita influência,
mas não acreditava que realmente eles poderiam ser
magos ou possuir qualquer tipo de poder.
-​ Vou perguntar mais uma vez – Bilforg estava
disposto a dar uma última chance ao parceiro, mas,
mesmo assim, retira do bolso uma pistola com
silenciador. – Quem é você? E para quem você trabalha?
​- Eu já disse, Bill – nervoso, Lamartine coloca os
dedos um pouco mais para o interior do copo quase
tocando a água. – Eu sou o seu parceiro, trabalho para o
FBI.
​Erguendo a arma, Bilforg a aponta para o parceiro,
mas sua mão treme diante do possível desfecho. Os
gritos de desespero do parceiro, chamando por seu
nome, o confundem ainda mais.
​Tentando controlar a tensão, Bilforg segura à arma
com as duas mãos. O suor escorre por suas têmporas.
Exceto pela grávida que morrera acidentalmente hoje à
tarde, Bilforg jamais havia tirado a vida de alguém e se
encontrar nessa situação mexia com sua mente.
​- Bill!!! Eu te entendo, Bill! – em prantos e tremendo,
Lamartine clama pelo parceiro. – Bill! Você não precisa
fazer isso. Bill!!!
​Puxando o gatilho, Bilforg dá um fim à conversa.
​- Não – comenta com a voz pesada. – Você não me
endente.
​Guardando a arma no bolso, Bilforg olha o parceiro
sem vida sentado na poltrona e uma única lágrima
escorre por seu rosto.
​Depois de perder sua mulher e filha, a Ordem
Hermética se tornara a sua família e Bilforg não poderia
deixá-la correr qualquer risco. Mesmo que, para isso,
tenha de matar o próprio parceiro.
Ruas da cidade
06:12 PM

​ aminhando tranquilamente enquanto fala ao


C
celular, Cian McMail confere o endereço que lhe
passaram e verifica que já está perto de seu destino.
-​ Está certo – diz o escocês calmamente. – Bilforg
afirma que eu traí a Ordem e convocou um conclave para
amanhã a fim de me expor – após uma longa pausa, o
milionário volta a falar. – Não. Não há com o que se
preocupar. Eu tenho tudo sobre controle. Eu sempre
tenho tudo sobre o controle.
​Desligando o celular, McMail entra numa loja de
arma e munições.
​- Bem – comenta para si –, vamos ver no que isso vai
dar.
​As lojas de armamentos são proibidas de vender
armas para estrangeiros, mas um informante havia dito a
McMail que aquela loja costumava burlar essa regra.
Hotel Intercontinental
Recepção
06:38 PM

​ aindo do elevador com sua valise negra nas mãos,


S
o agente Dustin Bilforg caminha até a o balcão da
recepção.
​- Boa noite, senhor – atende uma cortês
recepcionista. – Em que posso ajudá-lo.
​Colocando a valise sobre o balcão, o agente olha a
recepcionista nos olhos e hesita. Respirando fundo,
finalmente fala num tom calmo e indiferente.
​- Estava tomando banho e, quando sai, encontrei
meu parceiro sentado numa poltrona com um tiro na
cabeça.
​- Oh, meu Deus! – levando a mão à boca, a
recepcionista demonstra estar mais abalada com a
notícia do que o próprio agente.
​- Por favor, chame a polícia para investigar o
ocorrido – Bilforg sabia que o caso deveria ser
investigado pelo próprio FBI, mas isso significaria que
Magines acabaria se metendo no caso e faria de tudo
para culpá-lo.
​ em esperar pela resposta da recepcionista, Bilforg
S
sai caminhando calmamente, como se nada de anormal
estivesse acontecendo, deixando para trás a
recepcionista que prontamente pega o telefone com o
intuito de ligar para a polícia.
Hotel Intercontinental
06:59 PM

​ escendo do táxi, McMail se espanta ao ver duas


D
viaturas de polícia paradas em frente ao hotel, mas,
dando de ombro, entra no saguão e logo avista o jovem
agente federal Terry Magines conversando com a
recepcionista.
​Andando um pouco mais rápido, o milionário se
aproxima do agente que acabara a conversa e se dirigia
ao elevador.
​- O que está acontecendo aqui? – pergunta o
escocês mexendo em algo no bolso do paletó.
​- Acabei de ser informado que houve um assassinato
no quarto no qual Bilforg e Lamartine estavam
hospedados – comenta friamente.
​Subindo até o primeiro andar, Magines se identifica
para o policial que vigiava a porta do quarto e entra na
cena do crime acompanhado por McMail.
​Não havia mais ninguém e a primeira coisa que os
dois percebem, ao entrarem no quarto, é a figura do
agente especial Alex Lamartine sentado numa poltrona,
com um copo nas mãos e a cabeça inclinada para trás.
​Aproximando-se um pouco mais, o jovem agente
observa atentamente a ferida na testa do parceiro e logo
a identifica como tendo sido provocada pela entrada de
um projétil de calibre .9mm disparado a mais de dois
metros.
​McMail, ao ver o corpo sem vida do agente, leva a
mão direita à boca em sinal de espanto. Sem muita
reação, o escocês cambaleia para trás e se senta na
cama, tentando imaginar quem faria uma coisa dessas.
​Ao entrar no quarto dando passadas firmes, Bilforg
logo chama a atenção do milionário e do parceiro.
​- Finalmente chegaram – comenta Bilforg com
seriedade repreendendo os dois. – Alguém matou o
Lamartine.
​Caminhando rapidamente até o parceiro, Magines o
encara por alguns segundos tentando analisar sua
expressão
​- Onde você estava quando isso tudo aconteceu,
Bilforg? – pergunta cerrando os olhos.
​Era óbvio que Magines queria acusar o parceiro de,
no mínimo, ter permitido que o assassinato ocorresse.
​- Estava no banho – comenta Bilforg se afastando do
jovem agente. – Quando sai o encontrei assim – aponta
para o corpo de Lamartine sem vida, sentado na poltrona
com um tiro na testa.
​Com uma agilidade felina e surpreendendo a todos,
Magines pega a mão direita do parceiro e a cheira
buscando vestígios de pólvora.
​- Epa! – reclama puxando a mão. – O que você está
fazendo? – assumindo um tom de revolta, Bilforg
continua. – Está achando que eu matei Lamartine?
​- Estou sim, Bilforg – responde Magines caminhando
até o banheiro. – Sua mão tem cheiro de pólvora e esta
história está muito mal contada. Deram um tiro aqui e
você não escutou nada? Conta outra, Bilforg –
complemente entrando no banheiro.
​Bilforg jamais imaginou que os ataques a sua pessoa
fossem ocorrer tão rápido e buscou apoio no escocês
sem saber que McMail havia sido informado que ele tinha
convocado um Conclave para expô-lo.
​Antes que Bilforg pudesse comentar alguma coisa
com o milionário, Magines sai do banheiro segurando
uma toalha seca.
-​ Quer dizer que você tomou banho e não tem
nenhuma toalha molhada no banheiro? – indaga Magines
mostrando a toalha.
​Antes de descer para a recepção após ter matado
Lamartine, Bilforg havia levado a toalha que utilizara no
banho de volta ao banheiro, pois, caso alguém fosse
investigar, seria estranho explicar porque o agente saiu
do banho, encontrou o parceiro morto, pendurou a toalha
sobre uma cadeira, se arrumou e, só então, foi chamar
ajuda.
​- Como? – Bilforg ficara surpreso com o que o jovem
parceiro dizia. Era impossível não existir uma toalha
molhada no banheiro. – Espera aí – percebendo que
deveria se tratar de um plano para incriminá-lo, o agente
muda o tom e começa a falar de maneira mais agressiva.
– Você está insinuando que eu matei Lamartine?
​- Ora, Bilforg – comenta Magines ironicamente. – Se
a carapuça serviu...
​- Isso é um absurdo! – berra o agente. – Vamos Cian,
diga para ele que eu não fiz isso.
​Até então sentado na cama observando tudo o que
acontecia, McMail olha para o agente, ergue os ombros e
balança a cabeça.
​- Bilforg – comenta o escocês chocado com a
situação –, você há de convir que esta história está bem
estranha.
​- O que? – Bilforg não acreditava que McMail
pudesse deixar de apoiá-lo. – Você não acredita em mim?
– diante do silêncio do escocês, o agente deduz o que
está acontecendo. – Você também está contra mim,
Cian? Você se aliou ao Magines, seu maldito traidor? – ao
chamar o escocês de traidor, Bilforg colocava ódio na
voz. – Estão todos contra mim! Estou sozinho nessa, mas
vocês vão ver! – apontando para os dois, Bilforg vai
saindo do quarto. – Vocês vão ver. Vocês não esperam
pelo o que está por vir. Não esperam pelo o que está por
vir!
​Vendo Bilforg deixar o quarto, McMail e Magines,
cada um por seu próprio motivo, sente um calafrio,
temendo que a ameaça pudesse tornar realidade.
Local desconhecido

​ ma estranha claridade toma conta do local sem vir


U
de qualquer fonte de luz, mas, ao mesmo tempo, sendo
irradiada de todas as direções. O chão, coberto por uma
densa camada de névoa, impede qualquer um de ver
onde está pisando e dá ao ambiente um ar onírico.
​A única coisa existente no local é uma simples mesa
com um tabuleiro de xadrez em seu centro. As peças,
feitas de marfim, representam dois exércitos prontos
para se digladiarem, aguardando as ordens de seus
comandantes.
​Dois homens, vestidos com mantos cobertos por
runas, aproximam-se da mesa e, após um firme aperto
de mão, ocupam os seus lugares.
​Este é mais do que um simples jogo. Nele, almas
estão sendo apostadas, e o vencedor leva tudo.
​Com o simples movimento de um peão branco, o
jogo se inicia.
Periferia da cidade
08:46 PM

​ m caminhão-baú cinza entra num galpão, sendo


U
seguido por dois Alfa Romeo negros com vidro fumê e
sem placas.
​Descendo do caminhão, um homem de uniforme
militar cinza se aproxima de um dos carros negros,
enquanto a janela traseira do luxuoso carro se abre.
​- Senhor, o local é este. Quais são as ordens?
​- Montem a sala de tortura e preparem-se para caçar
– ordena o Homem Fino de dentro do carro. – Lazar está
sumido e o Dragão morto. McMail é difícil prender... Bem,
vamos ver o que aquele garoto realmente sabe.
08 de fevereiro de 2002
Interior de um café
09:02 AM

​ omando uma xícara de chá, Cian McMail termina de


T
acertar algumas coisas pelo celular quando é abordado
por três homens vestidos de com ternos azul marinho.
​- Senhor McMail, queira nos acompanhar, por favor –
diz o que parece ser o líder.
​- Posso saber até aonde? – questiona McMail com
um leve sorriso, guardando o celular no bolso do paletó.
​O líder do grupo retira a mão esquerda do bolso da
calça e mostra um anel com o símbolo da Ordem
Hermética.
​Ao ver o anel, McMail, prontamente, se levanta e sai
andando sem dizer nada.
​- O senhor não vai pagar a conta? – pergunta um dos
homens achando estranho o comportamento do
milionário.
​- Pague você – sem se deter, McMail responde
indiferente. – Afinal, eu ia ficar e consumir mais.
​Um dos homens tira cinquenta dólares do bolso e o
deixa sobre a edição do dia do Financial Times, que na
manchete de capa aborda o acordo entre a McMail
Corporation e as Organizações Internacionais para
pesquisas de genoma e cyber-tecnologia.
Ruas da cidade
09:12 AM

​ oucas coisas realmente têm a capacidade de deixar


P
o jovem agente Terry Magines feliz. Geralmente, essas
coisas envolvem banho de sangue, mutilações e muitas
mortes. Mas desta vez era diferente.
​ ealmente houve uma morte, a do agente Alex
R
Lamartine, mas não foi Magines quem puxou o gatilho.
Pelo menos é o que ele acha. Ao deixar um bilhete na
Bíblia para o parceiro encontrar, o jovem agente acabou
selando o destino de Lamartine, mas ele não sabia que a
morte do parceiro estava conectada ao simples bilhete
que deixara.
​Mas também não era a morte de Lamartine que
deixava o jovem agente feliz. O verdadeiro motivo de sua
felicidade, do sorriso que não consegue conter, de estar
tão desligado esta manhã, é o fato de que Bilforg, seu
grande desafeto, havia vacilado.
​Desta vez não tem como ele escapar – pensa para
si. – Farei de tudo para que ele seja responsabilizado pela
morte do Lamartine. Inebriado com a situação, Magines
mal nota o homem de aspecto cortês se aproximar
pedindo uma informação.
​- Por favor, meu jovem – comenta o homem de
forma educada. – Poderia me tirar uma dúvida.
​Magines não tinha o hábito de ajudar as pessoas na
rua. Na verdade, jamais fizera isso. Mas hoje é um dia
especial. Um dia que o jovem agente guardará para
sempre em sua memória.
​- Claro – com um sorriso no rosto e de bom humor,
Magines responde sem perceber que um furgão havia
parado atrás dele.
​- Você prefere entrar no furgão atrás de você por
bem ou por mal? – apontando uma arma para o agente, o
homem faz um leve movimento de cabeça indicando que
não havia escapatória.
​Magines não precisava se virar para perceber que,
de dentro do furgão, outros homens armados apontavam
para suas costas. Assim como sabia que, naquele
momento, não havia escapatória e só lhe restava seguir
as ordens daquele homem e entrar no furgão.
​ este momento de tensão, um único pensamento
N
passou pela cabeça do jovem agente. Um pensamento
capaz de mudar por completo o seu humor e fazê-lo
cerrar os olhos em ira. Maldito Bilforg!
Área Industrial
11:13 AM

​O carro, no qual McMail estava sendo transportado


para o Conclave, une-se a outros quatro e segue em
comboio até a pequena área industrial da cidade.
​- Para que tudo isso? – indaga o escocês olhando os
outros carros, impressionado com a forma que a sua
própria Ordem está lhe tratando em decorrência das
suspeitas de Bilforg.
​Embora seja uma Ordem de Magia que trilhe o
caminho do bem, sempre buscando proteger a
humanidade de perigos ocultos. A Ordem Hermética
como um todo e principalmente a Golden Dawn possui
uma política muito severa quanto à traição. Não
admitindo que seus membros se desvirtuem e
abandonem os ideais da Ordem.
​- O senhor logo saberá – responde um dos outros
três ocupantes do carro. – O senhor logo saberá.
​Ouvindo o comentário, McMail dá um leve sorriso.
Um sorriso que, o homem sentado ao seu lado, interpreta
como sendo de aceitação. Porém, o que nenhum dos
ocupantes do carro imaginava é que o escocês sabia
para onde estava sendo levado e por qual motivo.
​McMail tinha pleno conhecimento do que estava
acontecendo neste intricado jogo de xadrez e já se
encontrava com algumas jogadas à frente de todos os
demais jogadores.
Periferia da Cidade
11:16 AM
​ o interior de um galpão, o agente Terry Magines,
N
vestido apenas com a calça do paletó, tem os seus
membros amarrados ao ecúleo, um mecanismo de
tortura medieval utilizado para esticar o torturado em
todas as direções até que seus ligamentos e músculos se
soltem e ele morra.
​Inclinado num ângulo de sessenta e cinco graus, o
mecanismo de tortura possibilitava, ao jovem agente, ver
o ambiente em que se encontra.
​Ao seu lado, Magines conseguia ver um homem, já
na casa dos quarenta, vestido com um avental e máscara
cirúrgica, colocar instrumentos de tortura sobre uma
mesa. A mórbida tranquilidade que aquele homem
passava fez Magines engolir a seco, imaginando que ele
estava disposto a ir até as últimas consequências para
arrancar as informações que deseja.
​- Bom dia, senhor Magines – cumprimenta o
Inquisidor calçando um par de luvas de látex. – Espero
que aprecie o meu trabalho.
​Magines não precisava ver por de trás da máscara
cirúrgica para saber que o Inquisidor estava sorrindo. E,
pela primeira vez em sua vida, o desespero toma conta
de seu corpo fazendo seu coração bater mais forte e suor
começar a se formar.
​Sem conseguir ver uma possibilidade de fuga, o
jovem agente só pensa em se vingar da pessoa que ele
acredita ter feito isso com ele.
​Pressionando o maxilar com mais força, tenta ativar
um comunicador implantado em seu siso.
​- Matem o desgraçado! Matem-no agora! – berra,
tomado por um misto de desespero e vingança. – Não
deixem sobrar nada daquele bastardo filho da mãe!
Usem O Laser se for preciso, mas matem aquele
desgraçado!
​- Não sei se o senhor percebeu – comenta o
Inquisidor num tom desprovido de emoções –, mas já
retiramos os seus comunicadores. Não adianta berrar,
pois ninguém irá ouvi-lo e, muito menos, virá resgatá-lo.
Caso não colabore conosco, só há uma forma de o senhor
deixar este local. E é dentro de um saco preto.
​O olhar de pânico do agente faz o Inquisidor
gargalhar.
Área Industrial
11:28 AM

​ comboio que transportava McMail até o Conclave


O
para em frente a uma fábrica abandonada.
​Do interior do carro guia, o agente especial Dustin
Bilforg desce, acompanhado por mais três homens de
terno, e observa os ocupantes dos demais veículos
saírem.
​Vendo McMail sair do carro, Bilforg inicia uma curta
caminhada em sua direção. Por mais que o agente
estivesse irritado com o milionário, estava disposto a
conversar e resolver o problema antes de entrarem na
fábrica, onde o Conclave iria acontecer.
​Entretanto, a ideia de conversar com o escocês
desaparece quando o carro, no qual Bilforg estava,
explode provocando uma violenta onda de choque e
arremessando todos os que estavam ali ao chão.
​Um pouco atordoado com a violência da explosão,
Bilforg, aos poucos se refaz, abanando a fumaça que lhe
bloqueia parcialmente a visão, enquanto ouve outros
membros de sua ordem gritarem que estão sob ataque e
para todos se protegerem na fábrica na qual o Conclave
foi marcado.
​Instintivamente, Bilforg faz menção de seguir as
ordens, mas, subidamente, algo passa por sua cabeça e
o detém.
​Olhando para o céu, o agente pode ver, mesmo com
o sol a pino, um pequeno ponto brilhar como uma
estrela.
-​ Voltem! – berra em desespero.
​Poucos foram os que conseguiram ouvir o berro do
agente e tomar uma atitude antes do inevitável.
​Rasgando o céu, um grande feixe de luz atinge a
fábrica, mandando-a pelos ares e destruindo qualquer
coisa que pudesse estar em seu interior.
Periferia da Cidade
11:31 AM

​ m homem de roupa militar cinza deixar o galpão


U
no qual Magines está sendo torturado e caminha até o
Homem Fino, que se encontra encostado num Alfa
Romeo conversando com outro homem de roupa militar.
​- Como anda a coleta de informações? – pergunta o
Homem Fino ao homem que se aproximava. – Magines já
revelou alguma coisa relevante.
​- Por enquanto – responde em tom sério –, não
conseguimos quase nada. A única coisa que o alvo faz é
xingar o agente Bilforg.
​- Interessante – comenta o Homem Fino
impressionado com a rixa existente entre os parceiros. –
Sabia que Magines e Bilforg não se gostavam, mas não
tinha noção de que chegava a este ponto...
​Sentindo o seu celular vibrar, o Homem Fino faz um
gesto para os homens se retirarem e, apenas quando os
dois se encontram a certa distância, atende à ligação.
​- Agente Nicolas Lapente falando. Em que posso
ajudá-lo, senhor Stone? – aguardando alguns instantes
para que o Diretor Assistente Stone fale, Lapente volta a
falar em tom de surpresa. – O quê? Os agentes da
Divisão Especial estão em Charleston e o agente
Lamartine foi assassinado? Estou me encaminhando para
lá imediatamente a fim de resolver tudo. Deixe comigo.
​Desligando o celular, o corregedor Nicolas Lapente
olha para o galpão e sorri satisfeito.
​- Logo, tudo estará resolvido.
Área Industrial

​ nuvem de fumaça e destroços ainda toma conta


A
do lugar no qual, até agora a pouco, existia uma fábrica
abandonada.
​Levantando-se, Bilforg sente dificuldade para
respirar num ar com tanta poeira. Seus olhos ardem,
forçando-o a cerrá-los para evitar que mais partículas o
impeçam de observar o que acontecia ao seu redor.
​Bilforg estava há tanto tempo na Divisão Especial
que já imaginava o que tinha acontecido. Segundo Lazar,
o governo mantém uma série de satélites militares em
órbita, equipados com armas capazes de atingir alvos em
solo e, provavelmente, foi um destes satélites que
disparara contra o Conclave da Ordem Hermética.
​Mas uma dúvida ainda pairava sobre o agente, por
que o governo utilizaria uma de suas armas secretas
contra a Ordem Hermética?
​Ao ver uma imagem pairando sobre a fumaça,
Bilforg acredita ter encontrado a resposta.
​- Maldito traidor! – brada o agente sacando sua arma
enquanto corre atrás de McMail que se afastava
rapidamente. – Pensa que poderá fugir de mim?! –
puxando o gatilho, o agente dispara. – Eu vou te caçar,
maldito! Vou te caçar e te fazer pagar por seus crimes –
mais tiros são dados. – Vou pegá-lo, nem que para isso
eu tenha de ir ao fundo do Abismo! Farei de você o alvo
de minha cruzada pessoal, McMail! Não descansarei até
te encontrar!
​Parando de correr, Bilforg segura à arma com as
duas mãos e faz mira.
​- É uma pena que tudo acabe assim, Cian – comenta
colocando sua pistola no sistema manual. – Eu gostava
de você.
​Com o milionário na mira, Bilforg puxa o gatilho
fazendo sua arma disparar três projéteis em sequência.
-​ Desgraçado! – berra o agente quando McMail
desaparece em pleno ar. – Maldito ilusionista! – a revolta
quase o faz jogar sua arma no chão, mas Bilforg detém o
seu ímpeto ao perceber que sabia como encontrar o seu
alvo.
​Pegando as chaves com o homem que dirigira o
carro que trouxera o escocês até o Conclave, Bilforg
entra no carro e dá a partida. Fazendo a volta, segue na
direção que o milionário tinha ido.
​- Você não me escapa, maldito! – berra o agente
enquanto limpa o sangue que escorre de seu nariz. –
Também tenho os meus truques. Mesmo que você fique
invisível, eu posso ver o rastro de calor que você deixa
para trás!
Periferia da Cidade

​ epois de fazer uma pequena prece agradecendo a


D
fortuna em sua vida, o agente da Corregedoria Nicolas
Lapente guarda o seu terço no bolso do paletó.
​Desde que o ganhara de seu primo, o cardeal
Rosetti, Lapente jamais saíra de casa sem ele, alegando
que o pequeno presente lhe dava sorte. Contudo, isto
logo estaria para mudar.
​Correndo, um dos homens designados para vigiar o
perímetro do galpão aproxima-se do corregedor com
expressão preocupada.
​- Senhor – diz o homem –, detectamos
movimentação suspeita nas proximidades. Nosso sistema
de monitoramento indica que dois helicópteros e cinco
veículos terrestres estão se aproximando rapidamente.
​Cerrando o punho, Lapente olha preocupado para o
galpão. Quem será que está vindo? – indaga. – Será que
vieram resgatar o Magines? Voltando-se para o homem
que lhe dera a notícia, o corregedor ordena que todos se
preparem para um possível conflito.
Área Industrial

​ arando bruscamente o carro, Bilforg olha para o


P
galpão que McMail acabara de entrar. Respira fundo três
vezes e sai do veículo deixando a porta aberta.
​- É agora, Cian – diz tirando o sobretudo e jogando-o
no chão. – Vou te fazer pagar por sua traição – sem
pensar duas vezes, o agente caminha até a entrada do
galpão limpando o sangue que escorre de seu nariz. –
Vou te mostrar o peso da Justiça.
​Abrindo a porta do galpão, Bilforg não precisa de
muito esforço para encontrar o seu alvo. Aparentemente,
McMail havia desistido de fugir e o aguardava para o
acerto de contas.
​O amplo galpão parecia o lugar ideal para o
confronto entre os dois magos e Bilforg sabia que
enfrentar o escocês não seria uma tarefa das mais fáceis,
provavelmente, seria o maior desafio de sua vida.
Entretanto, não havia mais volta e o agente estava
disposto a ir até as últimas consequências, ainda mais ao
ver como o arqueólogo parecia debochar de seu intuito.
​Do outro lado do galpão, Cian McMail se revelava
completamente. Sentado numa surrada poltrona de
veludo verde e com um sorriso malicioso, o escocês
transmitia uma imagem bem diferente do ar angelical
que suas imponentes asas lhe davam.
​Mesmo impressionado com a verdadeira imagem do
escocês, Bilforg o olhava com ódio, enquanto arregaçava
as mangas.
​- Nunca pensei que você fosse um traidor – o asco
na voz do agente transmitia a revolta que sentia pelo
milionário naquele momento. – Por que? Por que você
nos traiu? Por que abandonou os ideais de nossa Ordem?
– por mais que estivesse disposto a enfrentar o escocês,
Bilforg ainda busca compreender o que levara um
membro como ele a trair a sua própria Ordem.
​ om um sorriso sinistro no rosto, McMail se limita a
C
balançar a cabeça negativamente, deixando Bilforg ainda
mais irritado.
​- É tão desprezível que sequer tem palavras para
explicar os seus atos! – franzindo o cenho, Bilforg para a
alguns metros do escocês e ergue, na altura do peito, as
mãos abertas voltadas para cima. – A escolha foi sua!
Agora as Trevas serão o seu túmulo! – berra fechando as
mãos.
​As sombras no interior do galpão parecem ganhar
vida numa sinistra dança ao redor do escocês. Tornando-
se cada vez mais densas, elas se fecham num casulo de
pura escuridão comprimindo McMail à medida que Bilforg
fechava as mãos.
​De tão densa, a escuridão se tornara sólida,
impedindo que o escocês pudesse escapar de seu abraço
mortal.
​Desde que ingressara na Astrum Argentum, Bilforg
desenvolvera um grande interesse pelo caminho das
Trevas, fato que lhe gerara antipatia por parte daqueles
que se deixaram levar pelo senso comum cristão de que
as Trevas estão associadas ao mal e não, como de fato é,
um dos seis caminhos elementais juntamente com o
caminho do Ar, do Fogo, da Terra, da Luz e da Água,
todos os caminhos desassociados tanto do bem, quanto
do mal.
​Independentemente do que achavam de sua
escolha, Bilforg se dedicou ao extremo, tornando-se um
poderoso mago, chegando a alcançar níveis de poder tão
elevados quanto os de membros de graus mais altos da
Golden Dawn, como McMail.
​Mesmo sabendo de seu imenso poder e sendo
temido por muitos, Bilforg jamais enfrentara outro mago
em combate e, por isso, não possuía um real parâmetro
de comparação. Mas, ao ver o seu casulo de trevas se
comprimindo cada vez mais, o agente percebia a real
extensão de seus poderes e descobria o quão poderoso
ele é.
​Alcançando cerca de um metro de diâmetro, o
casulo de trevas deteve a sua compressão. Não pela
vontade do agente, mas devido à resistência interna
produzida pelo escocês.
​Cerrando os punhos com mais força, Bilforg já sentia
suas mãos doerem e, mesmo assim, o casulo parecia
solidamente estático.
​A pressão exercida no casulo, tanto pela vontade do
agente, quanto pela resistência do escocês já
demonstrava os seus sinais. Inúmeras rachaduras
surgiam e delas feixes de luz escapavam trazendo, pouco
a pouco, a luz de volta ao galpão.
​Como um ovo que se choca, o casulo de trevas é
rompido por um imenso clarão capaz de iluminar tudo ao
seu redor com a intensidade de um pequeno sol.
​Protegendo a vista da claridade, Bilforg esbraveja,
reúne forças e cria trevas para combaterem a luz.
​McMail se mostrava um valoroso adversário, mais
difícil do que Bilforg imaginava. O agente sabia que os
membros dos círculos mais elevados da Golden Dawn
eram considerados os mais poderosos dentro de todas as
Casas da Ordem Hermética, mas a imagem que o
escocês sempre transpareceu, de um homem
despreocupado, o fazia acreditar que McMail não
estudava as artes arcanas com tanto afinco. Ledo
engano.
​O combate entre Trevas e Luz parece não ter
vencedor. Cada centímetro conquistado por um lado,
logo é retomado pelo outro gerando um grandioso
espetáculo que faz um misterioso espectador sorrir
impressionado com tamanha manifestação de poder.
​O choque de energias opostas reverberava em todo
o galpão fazendo pedaços do reboco cair, alguns vidros
se quebrarem e pequenas rachaduras começarem a
surgir nas paredes e no chão. Parecia que toda a
realidade poderia se despedaçar caso o combate se
prolongasse por muito tempo.
​Um impasse de poderes havia se estabelecido e
Bilforg sabia que não poderia continuar neste duelo por
muito tempo, pois seu sangramento aumentara,
transformando-se em hemorragia e deixando-o mais
fraco.
​Juntando os punhos ao peito e fechando os olhos em
concentração, Bilforg repentinamente estica os braços na
direção do escocês criando cinco tentáculos de pura
escuridão que avançam sobre McMail como poderosos
chicotes que açoitam e destroem tudo em seu caminho.
​Diante do vigoroso ataque, McMail tem pouca
dificuldade em se esquivar dos tentáculos e, com grande
maestria, eleva-se no ar.
​Sempre focado em seu alvo, Bilforg se impressiona
com a facilidade com que o escocês desviara de seu
ataque e com a sua imponente aparência angelical
pairando no ar.
​Quando um halo se forma ao redor do milionário,
Bilforg sabe que caíra numa armadilha e não tem tempo
de se defender da explosão luminosa que emana do
corpo do escocês.
​Desorientado e urrando de dor, o agente sente seus
olhos em brasa.
​- Maldito traidor! – berra fazendo força para abrir os
olhos. – Utilizando-se de trapaças e golpes baixos,
McMail? Esperava mais de você, bastardo ingrato –
comenta com desapontamento na voz.
​Os olhos ardiam e Bilforg tinha dificuldade para
enxergar um estranho globo de luz que saía do galpão.
Não precisava pensar muito para saber que o globo, na
verdade, era McMail tentando se proteger enquanto fugia
sorrateiramente.
-​ Somente um covarde traidor fugiria assim –
comenta Bilforg sentindo o seu corpo fraquejar devido à
hemorragia. Seu sangue não mais escorria apenas de seu
nariz, mas de seus poros e em forma de lágrimas por
seus negros olhos. – Somente um traidor trapacearia
num duelo – levando a mão ao coldre de ombro, saca sua
pistola. – Você viveu em meio à traição, McMail – faz a
mira. – E, como um traidor – puxa o gatilho –, irá perecer.
​Com um único disparo, Bilforg põe fim ao combate.
​O tiro acertara o globo de luz, desfazendo-o e
derrubando o corpo sem vida do escocês no chão.
​- Não era para acabar desta forma, Cian – abaixando
os braços, que pareciam pesar uma tonelada, Bilforg olha
com tristeza para o corpo do escocês atingido na nuca
pelo disparo. – Não era para acabar assim... Por que você
nos traiu? – erguendo a cabeça, berra a plenos pulmões
em desabafo. – Por quê?!
​Bilforg sentia uma forte angústia por ter matado
McMail, uma pessoa a quem o agente sempre admirara e
nutrira um enorme respeito. Seu peito doía em agonia,
uma gigantesca dor que conseguia ser ainda maior do
que a tomava conta de seu corpo.
​Fraco, limita-se a balançar a cabeça negativamente
se questionando sobre o motivo do escocês ter traído a
Ordem Hermética. Afinal, McMail era um membro
proeminente da Ordem, respeitado e admirado por todos
como exemplo de bondade e justiça.
​Contudo, as indagações teriam de ficar para outro
momento, pois, de canto de olho, Bilforg percebera que
alguém o observava das sombras.
​- Aproxime-se com as mãos para o alto – ordena
apontando sua pistola na direção do misterioso
observador. Com os olhos ainda ardendo pelo efeito do
último golpe de McMail, Bilforg tinha dificuldade em
visualizar quem o observava. – Você viu o que eu sou
capaz de fazer.
​ ameaça feita por Bilforg era real. Depois de ter
A
matado Lamartine e McMail, o agente não se importava
se teria de matar mais uma pessoa para ocultar o
segredo de sua Ordem. Já havia ido longe demais para
recuar agora.
​Saindo das sombras, um homem com quase um
metro e noventa de altura e leves traços orientais,
vestido de forma elegante, olha para o agente e sorri.
​- Estou impressionado, agente Bilforg – o sotaque
inglês e o porte altivo dão ao Homem Alto um ar
refinado. – Jamais imaginei que você fosse capaz de
matar alguém como McMail.
​O conhecimento que o Homem Alto demonstrava ter
preocupava o agente e o fazia se questionar sobre quem
ele era.
​- Quem é você? – pergunta o agente tentando não
demonstrar que se sentia esgotado. – Como sabe sobre
mim e McMail?
​Com uma leve gargalhada, o Homem Alto observa o
agente por alguns instantes.
​- Bilforg – por fim comenta –, você já ouviu falar do
Hellfire Club? – diante do silêncio do agente, o Homem
Alto continua. – Somos uma sociedade secreta que visa
eliminar a influência de criaturas sobrenaturais que
possam prejudicar o plano terrestre.
​Por mais que tendesse a acreditar nas pessoas,
Bilforg sabia que havia algo a mais por de trás daquilo.
​- Eliminar a influência de tais criaturas e assumir o
seu lugar – comenta ironicamente o agente fazendo
menção para o Homem Alto parar de andar.
​- Oras, alguém precisa comandar o que acontece
neste planeta, não? – questiona retoricamente o Homem
Alto parando a seis metros do agente.
​- E por que vocês? Quem os escolheu? – indaga
Bilforg irritado com a petulância daquele homem. – Por
que alguém tem de controlar a Terra?
-​ A seleção natural nos escolheu – comenta levando
as mãos aos bolsos. – Nossos membros são os mais aptos
e fortes dentre todos e uma vaga acabou de ser aberta –
referindo-se a McMail que jaz morto.
​Bilforg estava em choque. Aquele homem pertencia
a uma sociedade secreta a qual o agente nunca ouvira
falar. Uma sociedade que só aceitava os mais poderosos
e, talvez, seja por isso que McMail tenha decidido trair a
Golden Dawn. Para se tornar ainda mais poderoso.
​- Então? – indaga o Homem Alto com um leve
sorriso.
​- Você está me convidando a fazer parte de sua
Ordem? – incrédulo, Bilforg tinha dificuldade em aceitar a
frieza daquele homem. Ele acabara de ver McMail, um
membro do Hellfire Club, ser morto e parecia pouco se
importar com isso. Na verdade, já pensava em seu
substituto. – Por que eu? – tenta entender a motivação do
Homem Alto.
​- Simples – comenta com naturalidade. – Seleção
natural.
​A resposta parecia lógica. Numa sociedade pautada
na ideia distorcida de seleção natural do inglês Charles
Darwin, apenas o mais apto e forte poderia integrá-la e
Bilforg tinha acabado de se revelar superior a McMail.
​- O que me diz? – o Homem Alto transparecia um
total controle da situação, como se não houvesse outra
opção ao seu convite que não fosse um sim. Porém,
quando Bilforg profere a sua resposta, o Homem Alto se
surpreende.
​- Jamais trairia minha Ordem – responde o agente
com escárnio. – Não sou um traidor e, diferentemente,
daqueles que integram o seu Clube, possuo princípios e
os sigo.
​A resposta de Bilforg soou como um tapa na cara do
Homem Alto, mudando completamente a sua fisionomia.
​- Como ousas falar assim do Hellfire Club? – mesmo
sem levantar a voz, o Homem Alto demonstrava
nitidamente que o comentário do agente o havia
indignado. – Você não tem medo da morte?
​Se o que aquele homem havia falado era verdade,
Bilforg sabia que se encontrava numa péssima situação.
O combate com McMail havia esgotado suas energias.
Seu corpo, embora não sangrasse como antes, doía e
estava fraco, mas o pior era o fato de que não sabia
absolutamente nada sobre aquele homem e,
provavelmente, ele é alguém extremamente poderoso.
​- Não temo a morte – comenta Bilforg com frieza. – E
se for preciso, a trarei mais uma vez até este lugar para
que leve a sua alma.
​O desafio lançado por Bilforg surpreendera mais
uma vez o Homem Alto fazendo-o retirar as mãos dos
bolsos e iniciar uma aproximação.
​- É uma pena que terei de matá-lo – comenta o
Homem Alto voltando a assumir um ar mais afável. –
Sinceramente, gostei de você. Mas não posso permitir
que você saia com vida daqui. Afinal, além de ofender o
Hellfire Club, você matou um de nossos membros e isso é
imperdoável.
​- Pare! – ordena Bilforg segurando a arma com mais
força e mirando no peito do Homem Alto.
​- Você realmente acredita que pode me matar? – o
Homem Alto parecia achar graça daquilo. – Então tente.
Puxe o gatilho.
​Bilforg não queria ter de matar mais uma pessoa e
volta a dar a ordem para o Homem Alto deter o seu
avanço.
​- Vamos! – ordena o Homem Alto empolgando-se
com a situação. – Puxe o gatilho!
​Sem opção, Bilforg atende ao pedido e não acredita
no que vê.
​ o invés de ferir o seu adversário, o projétil passara
A
pelo seu corpo sem deixar qualquer vestígio. Como se o
Homem Alto não passasse de um fantasma.
​A expressão de surpresa no rosto do agente apenas
serviu para fazer o Homem Alto sorrir e abrir os braços
em sinal de desafio, convidando Bilforg a descarregar sua
pistola no intuito de tentar feri-lo.
​Confuso, o agente volta a disparar até ficar sem
munição, mas o resultado continuou o mesmo.
​- Eu disse que você não iria conseguir me matar –
com um sorriso e se aproximando ainda mais do agente,
o Homem Alto inicia o movimento para golpear o peito
de Bilforg. – Agora, é a minha vez.
​Acreditando se tratar de uma ilusão, Bilforg não
esboça se defender do golpe, mas, quando a mão do
Homem Alto atravessa o seu peito, o agente sente uma
forte dor irradiar do local onde a mão havia entrado.
​- Como gostei de você – comenta o Homem Alto
mantendo a mão no peito do agente –, lhe darei uma
segunda chance para responder a minha pergunta. Você
aceita o convite para se tornar o um membro do Hellfire
Club? Ocupando o cargo outrora de Cian McMail e,
anteriormente, por Gregory McTarus?
​Contorcendo-se em dor, Bilforg mal tem forças para
compreender que, além de McMail, McTarus, outro
influente membro da Golden Dawn, também tinha feito
parte do Hellfire Club.
​- Jamais – balbucia o agente sentindo o gosto do
sangue que se acumulava em sua boca.
​- É uma pena – comenta o Homem Alto, com ar
decepcionado, retirando a mão de dentro do peito do
agente.
​O grito quase não sai pela boca do agente, que leva
a mão ao peito numa tentativa de se manter vivo. Uma
forte dor percorre todo o seu corpo como um tsunami
varrendo uma praia desprotegida. Sentindo todos os seus
músculos se reterem, Bilforg vai ao chão.
​Observando Bilforg caído aos seus pés, o Homem
Alto abre a mão e deixa o coração do agente cair ao lado
de seu dono.
​Ao mesmo tempo em que o coração do agente caía,
em algum lugar, um rei negro tombava num tabuleiro de
xadrez.
Área Industrial

​ lugar se transformara num verdadeiro campo de


O
batalha. Os homens da Bellatores Dei, liderados pelo
corregedor Nicolas Lapente, enfrentavam com bravura as
seguidas ondas de ataque dos soldados do
Departamento de Defesa.
​As baixas eram pesadas de ambos os lados, fazendo
os feridos continuarem a combater a fim de conceder a
vitória ao seu grupo, prolongando o tiroteio por tempo
indeterminado.
​De dentro de um furgão estacionado fora do local do
confronto, Thomas Mawhinney, conhecido no submundo
como Striker, observava o desenrolar do combate por um
conjunto de monitores.
​Sua presença no campo de batalha provavelmente
já teria posto fim ao conflito, uma vez que Striker é, sem
dúvida, o maior atirador do mundo. Todavia, ele parecia
relutante a deixar o conforto de seu centro de comando,
só o fazendo, quando recebe uma ligação em seu celular
pessoal.
​- Agora não tem mais volta – comenta para si,
sacando duas pistolas e saindo do furgão em direção ao
campo de batalha. – O que está decidido, está decidido.
​Striker parecia tentar se convencer de que, o que
estava prestes a fazer, era a coisa mais certa, mesmo
que as consequências de seus atos pudessem colocá-lo
em sérios apuros.
× ​ ​× ​ ​×
​Do lado oposto ao furgão no qual Striker acabara de
sair, Lapente se escondia atrás de um contêiner.
​Assustado com o combate e com o barulho dos tiros,
o corregedor procurava uma forma de escapar daquela
situação. Em todas as missões que estivera pela
Bellatores Dei, nenhuma envolvera um combate como
aquele e Luca sempre estivera por perto para auxiliá-lo.
​Embora não transparecesse, Lapente sabia que só
tivera oportunidades na Bellatores Dei por ser primo do
Cardeal Rosetti, líder da instituição, e só obtivera
sucessos em suas missões porque Luca deixava tudo
pronto, bastando que o corregedor apenas parecesse
liderar.
​Prevendo o desastre da missão, Lapente orava
pedindo que Magines tivesse algo de relevante para dizer
ao Inquisidor e que pudesse minimizar os danos sofridos.
​A decisão de capturar o jovem agente de cabelos
brancos para interrogatório partiu do próprio corregedor
e não foi informada à central da Bellatores Dei. Lapente
acreditava que seria algo simples e não previra
contratempos.
× ​ ​× ​ ​×
​Preso ao ecúleo, Magines luta inutilmente para se
soltar, enquanto ouve os sons do combate que corre do
lado de fora do galpão.
​Diante do agente, o Inquisidor parecia confuso.
Todas as tentativas para penetrar a sua pele mostraram-
se infrutíferas em decorrência do que parecia ser uma
resistente camada metálica localizada entre o tecido
cutâneo e o subcutâneo.
​Profundo conhecedor da anatomia humana, inclusive
sendo o responsável por alguns dos cyberware
implantados em soldados da Bellatores Dei, o Inquisidor
sabia que não se tratava de uma placa dermal
subcutânea o que o impedia de ter acesso aos órgãos e
musculatura do agente, mas algo que parecia ser
formado por milhões de pequenos micro-objetos que se
concentravam sob a pele toda vez que ela sofria algum
tipo de pressão.
​Intrigado com aquela tecnologia que lhe era
completamente desconhecida, o Inquisidor realizava uma
esmiuçada análise, ignorando por completo os gritos e as
ameaças proferidas pelo agente.
​- Desgraçado! – berra Magines em fúria tentando se
soltar do ecúleo. – Eu mesmo vou te matar, Bilforg! Acha
que eu não sei que você está por de trás disso?! Apareça,
maldito! Revele-se, covarde! Não adianta se esconder. Eu
vou te encontrar. Nem que para isso eu tenha de revirar
o mundo! Você vai ver, maldito! Não descansarei até te
encontrar e arrancar a sua pele!
​Esbravejando em pura ira, Magines, subitamente,
engasga e começa a tossir violentamente. O acesso de
tosse fazia seu corpo se contorcer e o agente sente que
suas entranhas poderiam sair por sua boca a qualquer
momento.
​Atônito, o Inquisidor se afasta do agente e observa o
que estava acontecendo.
​Magines não conseguia parar de tossir e, quando a
ânsia de vômito surge, começa a perceber que algo de
muito errado estava acontecendo.
​Um estranho muco branco começa a escorrer pelo
nariz do agente dificultando ainda mais sua respiração.
Ofegante, Magines sente como se algo estivesse
atravessando sua cabeça e querendo sair por suas
narinas.
​Durante todos os anos que atuara como Inquisidor e,
até mesmo antes disso, quando era apenas um
promissor ajudante, Andrea Rossi nunca vira nada assim.
O muco que escorria do nariz do agente era algo muito
diferente do que estava acostumado. Mas quando
Magines se contorce num último e violento espasmo,
eliminando algo esponjoso do tamanho de uma bola de
tênis pelo nariz, o Inquisidor se choca e apenas olha, sem
qualquer reação, para o agente.
× ​ ​× ​ ​×
​Fora do galpão, Lapente acabara de ser informado
que sua operação falhara por completo. Além de se
envolver num combate contra um inimigo desconhecido
e aparentemente superior, o agente que havia sido
capturado acabara de morrer misteriosamente sem
fornecer nenhuma informação relevante.
​Preocupado com a repercussão que isso traria,
Lapente ordenara a retirada de seus homens e, sem que
ninguém percebesse, afasta-se sozinho da zona do
combate tentando não ser visto pelos seus adversários.
​Passando por entre contêineres, Lapente sente uma
forte dor no abdômen que o faz se contrair e tombar ao
chão. Levando a mão à fonte da dor, o corregedor sente
o sangue escorrer pela ferida provocada por um tiro.
​Embora já tivesse escutado relatos de que a dor
provocada por um tiro era muito grande, o corregedor
não imaginava o quão aguda ela de fato era.
​Contorcendo-se de dor no chão, Lapente se
surpreende ao ver um elegante homem parado a sua
frente, observando-o atentamente.
​- Para quem você trabalha? – pergunta Striker com
uma incrível frieza enquanto aponta sua Desert Eagle
para a testa do corregedor.
​- Por... Por favor, não me mate – implora Lapente
levantando uma das mãos. – Eu sou um agente federal.
​Concentrado em seu alvo, Striker não percebe que
um dos homens da Bellatores Dei se aproximava e, antes
que o famoso atirador pudesse dizer qualquer coisa, atira
a queima-roupa.
​ tiro acerta a têmpora esquerda de Striker,
O
atravessando sua cabeça e fazendo com que, num ato
reflexo, ele desse um último disparo acertando o ombro
direito do corregedor.
​Atingido pela segunda vez, Lapente urra de dor e
sente os seus olhos começarem a lacrimejar. Em sua
vida, jamais havia se ferido em combate e agora, em
poucos segundos, levara dois tiros. Seus ferimentos
sangravam e sua visão começava a ficar turva. Não
precisava ser nenhum especialista para saber que sua
condição era crítica. Mas, por que o homem que matara
Striker não vinha ajudá-lo? Por que ele sentia que estava
agonizando sozinho?
​Acreditando que iria morrer, Lapente fecha os olhos
e reza pedindo piedade por sua alma e arrependendo-se
de todos os seus pecados. Em sua silenciosa oração,
sente estar sendo observado. Não por Deus, mas por
outras pessoas.
​Fazendo força para abrir os olhos, Lapente encontra
dificuldade para enxergar. Sua visão já estava falhando e
tudo lhe parecia um grande borrão. A única coisa que
conseguia ver com certa dificuldade não lhe parecia real,
fazendo-o acreditar que já estava delirando em função
da grande perda de sangue.
​Sua última visão foi a de um homem ruivo guardar
uma arma no paletó e olhar para ele com pena, pouco
antes de se virar e ir embora calmamente acompanhado
por mais alguém.
Palermo, Sicília – Itália

​ pós verificar a placa pendurada na maçaneta, a


A
camareira abre a porta e empurra, para dentro do quarto,
o carrinho com os seus instrumentos de trabalho.
​Deixando o carrinho num canto, caminha até a
janela e abre as pesadas cortinas que escureciam o
quarto. Observando a bela vista do mar Mediterrâneo, se
perde em pensamentos, demorando a perceber que
alguém estava sentado numa das camas.
​- Scuse, signore – diz a camareira recobrando-se do
susto.
​Encostado na cabeceira da cama, o homem parecia
ignorar a presença da camareira e mantinha o olhar fixo
na carteira que tinha nas mãos.
​Assustada, a camareira, aos poucos, se aproxima do
homem e, levemente, toca o seu braço.
​Por mais sutil que tenha sido, o toque da camareira
foi o suficiente para fazer o homem se mover e cair
deitado na cama.
​Nervosa com a situação, toca o seu pescoço
procurando sentir a pulsação, mas, ao senti-lo gelado,
constata o que temia. O homem estava morto.
​Pegando a carteira que estava nas mãos do homem,
a camareira procura por alguma coisa que revelasse a
sua identidade. Encontrando, liga para a recepção e
informa que o hóspede do quarto oitocentos e três,
Robert Feltre Lazar, estava morto.
Epílogo
​ epois de confirmarem se tratar do corpo do agente
D
do FBI Robert Lazar, rápidas medidas foram tomadas
para que ele fosse levado de volta a América.
​O Diretor Assistente Stone, acionando os seus
contatos, providenciou para que o corpo fosse enterrado
no Cemitério Nacional de Arlington, local onde os
grandes heróis nacionais passam a eternidade.
​Chovia muito naquele final de tarde em Washington,
quando o Learjet 60, vindo da Itália pousou, trazendo, em
seu interior, o caixão com o corpo do agente federal
Robert Feltre Lazar.
​Após taxiar, o Jearjet se aproximou de um pequeno
hangar onde dois homens vestidos com capas de chuva
esperavam pelo avião. Um deles, um homem baixo e já
na casa dos sessenta, com enormes entradas em seus
despenteados cabelos brancos e um nariz
desproporcionalmente grande, no qual apoiava seus
óculos, não parecia estar muito contente por ter de
trabalhar naquele lugar e sem as condições mínimas que
o cargo de médico-chefe do FBI exige. Mas o Doutor
Vincent está ali como um favor ao homem que lhe
acompanhava, o Diretor Assistente Stone.
​Dois funcionários, devidamente vestidos com
macacões da empresa de transporte aéreo, retiraram do
interior da pequena aeronave o caixão com o corpo do
agente. E, no próprio local, mesmo sem nenhum recurso,
o Dr. Vincent realizara uma rápida análise e logo
constatara a causa mortis.
​Segundo o registro do óbito assinado pelo Dr.
Vincent, a morte do agente fora causada por
hiperatividade cerebral, um estranho processo, no qual o
organismo deixa de alimentar o restante do corpo para
fornecer nutrientes para o cérebro, que trabalhava mais
e mais.
​Dr. Vincent mal havia terminado de assinar o laudo
da necropsia e o caixão já havia sido colocado no carro
funerário que estava estacionado no interior do hangar.
​Agradecendo a ajuda do médico-chefe do FBI, Stone,
acompanhado pelo motorista da funerária, entra no
veículo e parte imediatamente para o Cemitério Nacional
de Arlington.
​No cemitério, enquanto observava o caixão, com o
corpo do agente, ser colocado numa sua cova por um
funcionário local, o Diretor Assistente Stone conversava
com um homem alto, de traços orientais e de cabelos
longos, que se protegia da chuva com um sobretudo e
guarda-chuva negros.
​- Obrigado por trazer o corpo do Lazar da Itália –
comenta Stone com uma expressão triste e olhos fixos no
caixão.
​- Ele era um grande amigo – responde Ian friamente.
– Era o mínimo que eu podia fazer. Contudo – o japonês
alerta Stone –, ninguém mais deve saber que eu estava
naquele avião. Na verdade, ninguém deve saber que eu o
acompanhei em sua viagem até o velho mundo.
​Com um gesto de cabeça, Stone apenas concorda,
sem saber que Ian já estava manipulando a sua memória
para que não se recordasse dessas informações.
​- Os outros envolvidos com Lazar também foram
encontrados mortos – diz Stone observando o caixão com
a bandeira norte americana ser baixado. – Bilforg,
McMail, Magines, Lamartine e Lapente estão mortos.
​Embora soubesse da cruzada empreendida por
Lazar, Ianto Ken Kaketsu ou, como o agente gostava de
chamar, Ian, não se importava muito com ela. Era um
assassino da Yakuza desde pequeno, não um caçador de
verdades. Sob a alcunha de Dragão, Ian aprendera que
deveria cumprir suas missões e desfrutar dos benefícios
de seus contratos sem fazer muitas perguntas e sem se
importar com quem manipulava quem. Foi numa dessas
missões, quando a Yakuza passou a proteger um
renomado cientista, que Ian, utilizando de suas
habilidades telepáticas, assumiu o lugar do Dr. Shido
Miyamoto, protegendo-o das ameaças que pudessem
surgir.
​Observando o funcionário do cemitério colocar terra
sobre o caixão, Stone sente uma forte tristeza. Durante
muito tempo trabalhara para que a Divisão Especial
permanecesse aberta e as buscas realizadas por Lazar
sofressem o mínimo de influência externa. Mas agora,
tudo havia acabado. Não existiriam mais buscas pela
Verdade. Não existiriam mais tentativas de expor a
Grande Conspiração. Nem alguém capaz de solucionar
casos pouco usuais.
​Quando a última pá de terra é colocada sobre o
caixão, Stone comenta com pesar:
​- Parece que acabou.
​- É... – diz Ian entregando um CD ao Diretor
Assistente e indo embora. – Parece...
Continua...

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