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SÉRIE: TERRA BRAVA


VOLUME: 4
TÍTULO: MATO, LOGO EXISTO
AUTOR: JOE MARSHALL
ILUSTRAÇÃO DA CAPA:
EDITORA: CEDIBRA
ANO DA PUBLICAÇÃO: 1973
PREÇO DA PUBLICAÇÃO: CR$ 2,00
PÁGINAS: 128

SCANS E TRATAMENTO: RÔMULO RANGEL


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MATO,
LOGO EXISTO
JOE MARSHALL

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Capítulo 1
Em Wichita, Kansas, James Solaris conheceu um
homem realmente honesto. Pior ainda, fez amizade com ele.
Em uma mesa dos fundos no Lullaby Saloon, Solaris,
como sempre, sentou-se de frente para a porta para jogar
seu pôquer. Craighton Banks estava sentado à sua direita,
de frente para a parede, onde havia um quadro com tampo
de vidro. Nolan, um próspero rancheiro dono de mais de
dez mil cabeças de gado, sentava-se à esquerda de Solaris,
de costas para a parede, e Burke, outro rancheiro, de costas
para a porta.
As apostas estavam altas e os jogadores hesitavam.
Esperando sua vez de jogar, Solaris olhou casualmente para
Banks e descobriu que ele observava com inusitado
interesse o quadro na parede. Craighton sorriu para si
mesmo, sem saber que Solaris o observava. Ao virar a
cabeça, viu os olhos fixos do mestiço plantados nos seus e
parou de sorrir.
Não era preciso ser muito inteligente para adivinhar que
ele vira as cartas de Nolan pelo vidro do quadro e ria de
satisfação ao pensar na fortuna que ia fazer essa noite. Foi
o que Solaris pensou.
Homem de reflexos anormalmente rápidos, Solaris
levantou-se.

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— Só dois minutos, senhores. Continuem essa mão sem
mim.
Saiu do bar quase com displicência. Na rua, correu
como um trem expresso para o hotel Paradise Look, onde
estava hospedado.
Em seu quarto, Solaris acordou o homem que dormia
em sua cama: Lin-tse Tung, chinês de um metro e sessenta
e cinco, rabicho, perito em lançar facas, e que bebia mais
do que Solaris. Era o único chinês de São Francisco que não
trocava os “rr” por “ll”.
Lin-tse acordou e Solaris disse:
— Estou no Lullaby, numa mesa do fundo. Há um
homem sentado do meu lado, à minha direita, de camisa cor
de abóbora igual à minha. Quero que você o tire de lá, seja
como for, e não o deixe voltar. Entendido?
— Perfeito, Sr. Solaris.
Solaris tomou a sair e voltou correndo para o bar. A mão
terminara. A poeira levantada por Solaris ainda não
assentara quando Lin-tse chegou.
— Convém o senhor olhar lá fora! — disse o chinês em
tom confidencial no ouvido de Craighton.
Craighton lançou-lhe um olhar de pouco caso.
— Estou ocupado.
Os outros jogadores nem olharam para ele. Além de ser
chinês e usar rabicho o homem tinha um tique nervoso,
repuxava o canto da boca o ao mesmo tempo piscava o olho
desse lado. Quando ficava excessivamente nervoso, um
movimento de cabeça, sempre para o mesmo lado,
acompanhava o repuxar do canto da boca. Solaris ficava
admirado de como ele conseguia puxar o gatilho de uma
arma ou lançar uma faca e acertar sempre no alvo
repuxando-se todo daquela maneira.
Lin-tse não se deu por achado.

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— Se o senhor for lá fora vai ver como não vai se
arrependei.
Solaris lançou-lhe um olhar contrariado, sem que os
outros percebessem. Craighton nem ouviu o chinês. Então
Lin-tse tirou-lhe o dinheiro que ele devia ter apostado nessa
mão e saiu correndo para a porta do bar. Eram duas notas
de cem dólares.
— Ei, volte aqui, seu... — Craighton levantou-se e
correu atrás do chinês. Lin-tse já estava lá fora.
Solaris respirou aliviado, isso devia resolver o assunto.
Casualmente, passou para a cadeira que Craighton ocupara.
— Tenho o palpite que ele não volta essa noite.
Os outros não se incomodaram. Mas Solaris ficou
espantado ao ver o que acontecera em sua ausência.
Craighton deixara de pagar a aposta de Nolan de duzentos
dólares e tinha trinca de damas, enquanto a de Nolan, como
ele acabava de mostrar, era de valetes.
— Ué, ele não pagou?
— Ficou com medo! — disse Nolan, recolhendo o
dinheiro das apostas anteriores.
Solaris ficou um pouco confuso.
— Mas ele tinha trinca de damas.
Nolan olhou para ele.
— E eu de valetes! — já dava cartas para outra mão,
enquanto outro jogador ocupava o lugar que fora de Solaris.
— Mas como ele podia saber? — e deu sua primeira espiada
no vidro do quadro.
Perto de duas horas da madrugado, Solaris voltou para
o hotel Paradise Look e entrou em seu quarto. Lin-tse Tung
dormia em sua cama, virara hábito. Craighton não aparecera
mais no bar.
Acordou o chinês.
— O que fez com ele?

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Acabando de acordar, Lin-tse apontou para debaixo da
cama com o polegar virado.
Solaris espiou embaixo da cama. Lin-tse fizera um
trabalho perfeito. Craighton estava com pés e mãos atados
e amordaçados. Solaris puxou-o de sob a cama e deixou-o
como estava, amarrado e amordaçado no meio do quarto.
Sentou-se na borda da cama e ficou espiando.
— O que houve? — Lin-tse estava intrigado com o
comportamento de Solaris. — Por que o olho desse jeito
como se nunca o tivesse visto?
Solaris estava pensativo.
— Não entendo.
— Que é que você não entende? — perguntou o chinês,
armando-se de paciência. Conhecia Solaris o bastante para
saber que com ele era preciso ter paciência.
— Ganhei três mil dólares.
— Ótimo. Passe para cá a minha parte. Quero a metade.
Solaris fez que não o ouviu. Continuava olhando
intrigado para Craighton caído no chão, amarrado e
amordaçado.
— Ele podia ter ganho esses três mil dólares que eu
ganhei.
— Claro. Mas você o tirou de lá! — disse Lin-tse. —
Que mina é essa?
— Mesmo que eu o deixasse lá ele não teria ganho esses
três mil dólares. — Solaris pensava na aposta de duzentos
dólares que Craighton deixara de fazer.
Levantou-se e tirou a mordaça de Craighton. Até esse
momento Craighton se limitara a olhar para ele com
expressão furiosa. Nada podia fazer. Agora pôde: falar.
— O que pensa que está fazendo? Assim que me soltar
vou direto ao delegado e conto tudo.
— Vou para o sul do Estado! — disse Solaris.

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— Parto daqui a pouco. Se quiser pode avisar a ele.
— Solte-me! — disse Craighton, tentando manter a
dignidade; mas era difícil para um homem amarrado e
jogado como uma trouxa sobre o tapete fazer-se de digno.
— Por que não ganhou aqueles duzentos dólares de
Nolan? — perguntou Solaris. — Você sabia que ele tinha
trinca menor que a sua.
Craighton deu um sorriso sinistro.
— Eu o conheço. Você é dos tais que aproveitam todas
as chances. Mas vou dizer tudo ao delegado. Sou um sujeito
honesto. E direi ao dono do bar que tire aquele quadro da
parede. Ouvi-o dizer a seu amigo que ganhou três mil
dólares. O delegado o fará devolvê-los.
Solaris olhou para Lin-tse. Lin-tse olhou para Solaris.
— Deve ser algum truque! — disse Lin-tse.
— Truque você vai ver quando eu contar ao delegado.
Ele vai fazer clique com a chave... e pronto, dois trapaceiros
atrás das grades.
Lin-tse, olhando fixo para ele, começou a repuxar o
canto da boca e piscar o olho para ver se o assustava.
Craighton não se assustou.
— Vamos, o que esperam? Tirem-me daqui.
Solaris soltou-o.
— Está louco? — disse Lin-tse. — Ele vai direto ao
delegado.
— Acho que não! — disse Solaris. — Ele não chegaria
lá.
O chinês deu um sorriso sinistro e repuxou mais um
pouco o canto da boca. O olhar frio de Solaris era
ameaçador. Craighton entendeu claramente a ameaça.
Mas disse:
— Vocês vão ver! — e saiu do quarto.

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Solaris encostou-se na janela e ficou vigiando a rua.
Craighton hospedava-se no mesmo hotel. Se ele saísse à
rua...
Lin-tse começou a passear pelo quarto, repuxando o
canto da boca mais do que nunca, sinal evidente de que
estava perplexo.
— Acha mesmo que ele é um homem honesto? —
perguntou por fim a Solaris.
— É — Solaris foi taxativo, olhando pela janela.
— Como sabe?
— Lá está ele! — apontou com um gesto de cabeça.
Lin-tse olhou também.
— Eu avisei. Vai direto para a delegacia. — lá! — disse
Solaris.
De fato, quando Craighton tentava atravessar um beco,
foi agarrado por dois homens e arrastado, enquanto um
terceiro ficava olhando.
— Nolan! — disse Solaris, e saiu correndo.
Era fácil entender que Nolan não se conformara com a
perda dos três mil dólares e estivera rondando o hotel com
seus dois homens, imaginando um meio de chegar a Solaris.
Julgara-se o sujeito mais afortunado do mundo ao ver
Craighton sair sozinho do hotel a essa hora tardia da
madrugada. Na obscuridade da rua só vira a camisa cor de
abóbora, confundindo um com o outro; de mais a mais, só
pensava em Solaris.
Solaris chegou ao beco e agiu rápido como uma
epidemia. Jogou-se por cima dos dois homens que já
iniciavam o espancamento de Craighton, sem saberem que
não era Solaris. Enquanto os três caíram — os dois homens
de Nolan e Craighton — o próprio Nolan fez menção de
puxar o revólver.
O Colt de Lin-tse surgiu como num passe de mágica.

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— Eu não faria isso — disse a Nolan.
Nolan nada fez. Limitou-se a ficar parado, vendo seus
homens apanharem. Agora via que cometera um trágico
engano de identidade, e o mestiço e seu amigo chinês os
tinham como queriam.
Um dos homens caiu de costas e puxou o revólver.
Solaris saltou sobre ele, chutou-lhe a mão armada,
desarmando-o, e chutou-lhe o resto com violência. A
cabeça do homem foi jogada para trás e bateu no solo. Em
menos de um segundo ele fora golpeado três vezes e, por
algum tempo, não viu mais o que acontecia. Solaris então
cuidou do outro.
O outro, ao invés de se defender de Solaris, por certo
pensando que seu companheiro daria conta do mestiço,
voltara a investir contra Craighton e o agarrara numa
gravata por trás. Solaris esmurrou-lhe o rim, depois o outro
e, ato contínuo, esmurrou-lhe a cabeça por trás.
Instantaneamente ele soltou Craighton, que caiu ao chão.
Ao ver seus dois homens perdendo o combate, Nolan
fez um movimento impulsivo, como se fosse sacar o
revólver.
— Estou olhando! — disse Lin-tse.
Ele olhou com raiva para o chinês. Lin-tse apontava-lhe
seu revólver e não tirava o olho dele, e por isso, não podia
ver a briga. Mas lançava olhares de soslaio, e Nolan pensou
que poderia pegar de surpresa aquele homenzinho da China.
Disfarçadamente, começou a aproximar-se de Lin-tse,
andando de lado como caranguejo.
Solaris tinha o segundo homem à sua mercê. Obrigara
o homem de Nolan a fazer meia-volta e castigou-lhe o
fígado e o baço, fazendo-o dobrar-se em dois, então o pôs
definitivamente fora de combate com um cruzado de direita
com a força de um coice de mula. O segundo homem

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estatelou-se no chão do beco, ao lado de Craighton, que já
se mexia, tentando levantar-se.
O outro homem de Nolan também se levantara e veio
para cima de Solaris. Nolan estava estarrecido vendo como
o mestiço tratava seus dois homenzarrões. Para Solaris, era
como se fossem dois bonecos de palha. No entanto eram
homenzarrões nutridos e parrudos, e sabiam brigar. Por isso
os trouxera. Teria trazido mais, se soubesse que a parada
seria tão dura.
Solaris desvencilhou-se de seu antagonista com a
agilidade de um gato e acertou-o no lado da cabeça com um
gancho de esquerda. Não deixou o homem cair, agarrou-o
pela gola e castigou seu estômago com uma sequência
rapidíssima de murros curtos. Todo o ar escapou dos
pulmões do homem e ele ficou parado na frente de Solaris,
incapaz de se defender, à espera do golpe de misericórdia.
Solaris não o fez esperar muito e o homem de Nolan foi
fazer companhia ao outro, ambos inconscientes.
Foi o instante escolhido por Nolan para tentar a sorte.
Com um gesto rápido do braço esquerdo, tentou golpear o
pulso do chinês, para desarmá-lo, ao mesmo tempo em que
com a direita tentava outra vez puxar seu revólver.
Foi outro erro de sua parte. Lin-tse estava alerta como
um galo ao alvorecer, tirou rapidamente a mão do caminho
e, com a canhota, agarrou agilmente o pulso de Nolan,
puxando-o e desequilibrando o rancheiro. Apesar de sua
baixa estatura, conseguiu acertar o homem no estômago
com uma joelhada. Solaris ficou olhando enquanto o chinês
punha fim à briga dando uma cutilada com a quina da mão
na nuca de Nolan, quase partindo-lhe o pescoço. Nolan veio
abaixo, perdendo os sentidos. Era um dos golpes favoritos
de Lin-tse Tung. Solaris nunca vira, mas ele afirmava que

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seria capaz de partir o pescoço de um homem e matá-lo com
um desses golpes que aprendera em São Francisco.
— Lá, nós chineses, não podemos comprar revólver! —
dissera certa vez a Solaris. — Temos que aprender a usar as
mãos.
Mas bem depressa, com Solaris, ele aprendera a usar
também um revólver.
Craighton viu os três homens desacordados a seus pés.
— Acho que lhe devo um favor! — disse o outro
homem de camisa cor da abóbora, igual à sua.
— Esqueça.
— O delegado o espera! — disse Lin-tse.
Craighton pegou seu chapéu que caíra no pó da rua. Pôs
o chapéu na cabeça. Olhou primeiro para o chinês, depois
para Solaris.
— Estou em dívida e em dúvida! — disse. — Preciso
pensar. Vou para meu quarto, no hotel e verei o que devo
fazer.
Solaris e Lin-tse nada disseram. Craighton fez meia-
volta e regressou ao hotel. Solaris e seu companheiro o
seguiram.

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Capítulo 2
A quarenta milhas ao norte de Wichita, Solaris tirara
toda a roupa do corpo e tomava banho num tanque formado
por um riacho entre as pedras. Era uma região
essencialmente rochosa. O riacho, um filete estreito de água
cristalina, escorria caprichosamente beirando o paredão
rochoso. As rochas, à esquerda do riacho, atingiam uma
altura de seiscentos metros — perdia-se de vista nas nuvens
— como se um gigante ocioso, sem nada melhor para fazer,
tivesse passado horas empilhando rochas enormes umas
sobre as outras. Ao olhar aquela imensidão de pedras
empilhadas, Solaris teve a impressão de que um solavanco
poria tudo abaixo.
Saíra de Wichita pouco antes das quatro horas da
madrugada, em companhia de Lin-tse Tung. Haviam
cavalgado o resto da noite e toda a manhã. Agora era meio-
dia e o calor abrasador. Solaris não permitira que Lin-tse
pulasse na água com ele e o obrigara a ficar na margem
montando guarda.
Não que temesse o delegado. Ao que parecia, Craighton
não o avisara, e. Solaris ficara sem saber se isso era
honestidade ou não.
Lin-tse lhe perguntara aonde ele queria ir a cavalo e ele
dissera que iria ao Nebraska, mas sua intenção era chegar a

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Junction City, um pouco para leste, a menos de cem milhas.
Conhecia o povoado, e queria ver como andavam as coisas
por lá.
Espantou-se quando um homem oculto entre as pedras
começou a atirar de rifle contra ele. Pensou que fosse senso
de humor de Lin-tse.
— Vá para o inferno, Lin!
Lin-tse não respondeu. O homem do rifle atirou outra
vez. As balas passavam perto e ele mergulhou para escapar
delas, mas logo chegou à conclusão de que se o homem
quisesse alvejá-lo já o teria acertado. Por ora estava só
brincando, e tinha muito boa pontaria.
— Lin! — gritou.
Lin-tse não respondeu. Solaris temeu que o atirador
misterioso tivesse apanhado Lin de surpresa, o que era
difícil, mas enfim...
— Defenda-se! — gritou o desconhecido, e jogou o
revólver de Solaris dentro da água.
Solaris mergulhou diversas vezes até achar o revólver.
O tanque, calculou, devia ter bem uns três metros de
profundidade. No terceiro mergulho, achou-o, Quando
Solaris voltou à tona empunhando o revólver e decidido a
fazer o engraçadinho tomar banho vestido, Craighton
apareceu sorridente, empunhando um Winchester
fumegante.
— Olá! — disse Craighton.
— É esse o seu senso de humor? — perguntou Solaris,
furioso, saindo da água. Nu e pingando água, encarou
Craighton, balançando o revólver em sua mão, sem saber
que atitude devia tomar em relação a Craighton. — O que
fez de Lin?
— Seu amigo? — sorriu Craighton. — Oh, pergunte a
ele.

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Solaris olhou em volta. Lin-tse estava sentado no
mesmo lugar onde o deixara, ao lado de suas roupas e do
cinturão agora com o coldre vazio, de onde Craighton tirara
seu revólver. A tranquilidade de Lin-tse era a mesma.
Segurava sua carabina sobre os joelhos e repuxou o canto
da boca e piscou o olho.
— Deu meu revólver a ele? — perguntou Solaris.
— Ele pegou! — disse Lin-tse.
— E por que deixou?
Lin-tse parou de repuxar o canto da boca.
— Vocês são amigos, não são?
Solaris olhou de mau humor para Craighton.
— Isso eu ainda não sei. O que faz aqui?
Craighton tirou do bolso da camisa um capei azul
dobrado, que deu a Solaris. De longe se via que era um
telegrama.
— Chegou ao hotel para você! — disse Craighton.
Solaris olhou para ele estupefato.
— E cavalgou quarenta milhas para me entregar um
telegrama?
Craighton sorriu. Era um sorriso afável, como se ele
estivesse sempre disposto a cativar as pessoas. Se não
tivesse tantos atritos com ele, pensou Solaris, e se não
tivesse sem concepções da vida tão diferentes, ele poderia
ser amigo desse simpático e risonho camarada chamado
Craighton.
— Eu lhe disse que era um sujeito honesto, Sr. Solaris.
Sempre pago minhas dividas.
— Dívida? — Solaris já até esquecera que salvara a
vida dele. Sim, com toda certeza os homens de Nolan o
teriam matado, mesmo ele não sendo o homem a quem
queriam. — Oh, sim! — lembrou-se. — Não lhe deram
mais trabalho?

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— Não têm nada contra mim. É a você que querem.
— Não gosto disso! — disse Lin-tse. — Nunca vi um
homem que repetisse a toda hora que só diz a verdade e que
só dissesse a verdade. Ele não faz outra coisa senão repetir
que é honesto.
— Tirou o quadro da parede? — perguntou Solaris.
— Falei com o dono do bar. Sugeri que um espertalhão
poderia usar aquele quadro com propósitos ilícitos. Ele me
agradeceu, disse que foi bem lembrado e o quadro não está
mais lá.
— E o delegado?
— Não disse nada a ele.
Solaris repetiu o que Craighton já dissera antes.
— Acho que lhe devo um favor.
— Esqueça. Eu lhe devo um maior. Creio que a estória
pode acabar aqui mesmo. Ou muito me engano ou nem o
próprio Nolan sabe que você viu as cartas dele pelo vidro
daquele quadro.
— É possível! — disse Solaris, distraído, caminhando
para debaixo de uma árvore para ler o telegrama na sombra,
e conforme andava ia desdobrando o papel azul. — Há
gente que não gosta de perder.
Nu embaixo da árvore, ainda pingando água tanto, que
molhou o telegrama, com o revólver debaixo do braço com
o cano para trás — não tinha outro lugar onde colocá-lo —
James Solaris leu o telegrama que Craighton lhe trouxera
de Wichita, tendo cavalgado quarenta milhas para isso.
“Amor. Chego trem das onze e quinze. Espere-me. Um
beijo. SS.”
— Stella Star! — murmurou Solaris.
Craighton aproximou-se com seu sorriso afável.
— Valeu a pena? — perguntou.
Solaris estava pensativo.

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— Hem? — Pareceu acordar. — Oh, não sei.
— Mulher?
— Essa mulher me persegue! — disse Solaris. Olhou
para Craighton como se ele pudesse responder sua
pergunta. — Como diabo ela soube que eu estou no Kansas?
Craighton encolheu os ombros. De súbito, virou-se com
extrema rapidez e puxou o revólver, apontando-o para Lin-
tse. Por certo queria fazer uma demonstração. Ele era
rápido, muito rápido, ainda mais se tratando de um homem
honesto, pensou Solaris, mas acreditou que Lin-tse teria
puxado seu revólver mais depressa, como ele lhe ensinara,
se tivesse preparado. Mas a essa altura, consideravam
Craighton como da família.
Lin-tse ficou nervoso. Tão nervoso que começou a
repuxar loucamente o canto da boca, e num instante
começou a bater também com a cabeça para o lado. Solaris
não pensou em usar seu revólver contra Craighton. Devia
ser ainda o senso de humor do homem honesto.
— Vire esse revólver para lá, está bem? — disse Lin-
tse.
— Deve-me duzentos dólares, lembra-se? — disse
Craighton. — Passe-o para cá.
Solaris riu. Lembrava-se de que Lin tirara duzentos
dólares da mão de Craighton no Lullaby Saloon, e depois
não ouvira mais falar desse dinheiro. Em sua ânsia de ir
contar ao delegado, Craighton se esquecera de cobrá-lo no
quarto do hotel. Bem, conjeturou, talvez ele não tivesse
vindo só para pagar uma dívida. Viera cobrar também.
Lin-tse olhou para Solaris.
— Jim.
Solaris deu-lhe as costas e, já que estava nu, urinou
sobre as rochas sem precisar usar a mão.

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Craighton agradeceu-lhe intimamente por não se meter
e deu dois passos em direção a Lin-tse.
— O dinheiro, vamos. — Apontava a arma firmemente.
Lin-tse não quis arriscar. Se o próprio Solaris não se
metia, pareceu-lhe conveniente devolver o dinheiro. E
assim fez. Craighton guardou o dinheiro no bolso, pôs o
revólver no coldre e buscou seu cavalo, enfiando a carabina
no coldre sob a sela. Montou. Lera parte do telegrama por
cima do ombro de Solaris, e disse:
— Se tem que estar em Wichita às onze e quinze, Sr.
Solaris, convém pelo menos começar a se vestir.
— Vou daqui a pouco! — disse Solaris.
— Adeus! — disse Craighton, e virou o cavalo.
— Espere! — disse Solaris.
Craighton virou-se na sela.
— Se bem me lembro — falou Solaris — eu lhe disse
que ia para o sul do Estado. Como me achou?
Craighton deu seu sorriso cativante e apontou o dedo
para Solaris.
— O senhor não é um sujeito honesto, Sr. Solaris.
Solaris olhou para Lin-tse. Lin-tse olhou para Solaris.
Craighton já se afastava a meio-galope.
Por fim, Lin-tse quebrou o silêncio.
— Miserável. Roubou-me duzentos dólares.
— Amor com amor se paga! disse Solaris, sentindo-se
um pouco filósofo devido à convivência com o fantástico
Craighton.
— E você deixou! — resmungou Lin-tse. — Lembre-
se de que ainda não me deu minha parte.
— Lembre-me para lhe dar cinquenta dólares quando
voltarmos a Wichita.
— Cinquenta dólares? — Lin-tse começou a repuxar o
canto da boca. Às vezes fazia de propósito e acentuava o

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tique nervoso, mas outras vezes era real. Solaris sabia
quando ele fingia ou não, às vezes não sabia. — Ganhou
três mil dólares às minhas custas — prosseguiu Lin-tse —
e me dá só cinquenta dólares? Cinquenta dólares?
— É bastante dinheiro para um chinês! — disse Solaris,
começando a vestir-se.
— Está bem. Quando voltar a São Francisco arrume
outro chinês para o meu lugar.
— Vai voltar para São Francisco?
— Vou voltar para Chungking, que foi onde eu nasci.
Meus pais me trouxeram de lá para cá quando eu era desse
tamanho. Antes não me tivessem trazido.
— Bem, já que vai fazer uma viagem tão longa — disse
Solaris acabando de se vestir, pondo o chapéu — dou-lhe
mais cinquenta dólares para a passagem. Lembre-me em
Wichita.
Lin-tse olhou com expressão sardónica.
— Muito obligado, Senhol Solalis — disse, de gozação.
Solaris já estava vestido e pronto para ir embora. Estava
parado na borda do tanque, agachado, segurando as rédeas
de seu cavalo, contemplando a água com expressão absorta.
Montado, Lin-tse aproximou-se.
— O que foi agora?
Solaris continuou olhando para a água por meio minuto,
então levantou-se e montou.
— Lembra-se que Craighton jogou meu revólver no
tanque e eu mergulhei três vezes para buscá-lo?
— Lembro! — disse Lin-tse, tocando o cavalo e
juntando-se a Solaris.
— Aumento para duzentos dólares se adivinhar o que
eu descobri lá embaixo.

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Lin-tse pensou um Instante. Os dois começaram a
cavalgar lado a lado, descendo ao nível da planície árida
ensolarada.
— Um cofre! — disse Lin-tse.
Solaris parou o cavalo. Lin-tse fez o mesmo.
— Como soube? — disse Solaris.
Lin-tse deu uma risada e tocou o cavalo. Solaris fez o
mesmo.
— Não soube! — disse Lin-tse. — Mas minha mãe, a
Sra. Si-ling Tung, sempre disse que eu era um sujeito de
sorte. Disse a primeira coisa que me veio na cabeça. Deve-
me duzentos dólares, certo?
— Lembre-me quando chegarmos a Wichita! — disse,
irritado.

***

Solaris e Lin-tse, montando dois cavalos estafados,


entraram na longa rua principal de Wichita às onze e cinco
da noite. A estação ficava do outro lado da cidade.
— Chegamos a Wichita! — disse Lin-tse quando
passavam pelo terceiro bar dos seis que havia em Wichita;
o próximo era o Lullaby.
— Lembro-lhe que me deve duzentos dólares.
— Temos dez minutos para chegar à estação! — disse
Solaris. — Lembre-me depois que tu tiveres dado as boas-
vindas a Stella.
Na estação, a primeira pessoa a quem Solaris viu foi
Craighton Banks, sentado placidamente num dos bancos de
madeira da plataforma. Solaris aproximou-se. Eram onze e
vinte. O trem das onze e quinze estava atrasado cinco
minutos.

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Craighton, sempre polido, levantou-se para
cumprimentar Solaris.
— Por que não está no hotel dormindo? — perguntou
Solaris. — Cavalgou oitenta milhas hoje.
— Não me leve a mal, — disse Craighton — as gostaria
que me apresentasse sua amiga. Eu cavalguei oitenta milhas
para pagar uma dívida. Você cavalgou quarenta só para vê-
la. Deve ser uma mulher fascinante.
Solaris pensou que o delicado pedido de Craighton era
desnecessário. Assim que Stella o visse na companhia dele
lhe pediria que o apresentasse a ela. Stella resistia menos a
homens simpáticos do que ele a dinheiro. Não se importava.
Há muito tempo atrás, pensara que a amava. Hoje se julgava
incapaz de amar qualquer mulher.
— Você verá! — disse Solaris.
Craighton não tornou a sentar-se, porque a locomotiva
apitara a cem metros da plataforma e entrou resfolegando
na estação.
Wichita era uma cidade de muito movimento. Apesar
do adiantado da hora, havia diversas pessoas na plataforma,
ou esperando alguém que ia chegar no trem ou para
embarcar. Saltaram vários passageiros.
Craighton contou três mulheres, e duas delas lhe
pareceram bastante bonitas. Já se daria por satisfeito se
fosse a mais feia das duas, mas, de forma alguma, estava
preparado para o que viu a seguir, a quarta passageira que
desembarcou em Wichita.
Como sempre, Stella Star viajava cheia de malas. Um
carregador se aproximou correndo e ela deu-lhe uma gorjeta
de meio dólar.
— Hotel Paradise Look, por favor.
Viu Solaris em companhia de um homem simpático e
de um chinês miudinho. Dos três ela só conhecia Solaris,

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mas achou o homem encantador. Para o chinês não olhou
duas vezes.
Craighton estava embasbacado. Seria capaz de jurar
que estava olhando para a mulher mais linda do mundo. E
não era só ele; alguns homens tinham parado para olhar e,
dois ou três, vendo-a sozinha, perguntaram-lhe se ela não
queria companhia. Ela não respondeu. Mas os homens não
saíram de perto. Quando nada, podiam sentir seu perfume.
Depois, quando fossem para casa, ainda teriam nas narinas
o aroma do perfume daquela mulher fascinante.
Stella Star quase sempre fazia escândalo. Numa época
em que as mulheres se re- ousavam teimosamente a mostrar
os tornozelos, ela mostrava os joelhos. Pela amostra, os
homens adivinhavam o resto. As mulheres que a viam na
rua ficavam mortificadas.
Solaris viu que ela ficara irritada e já estava batendo
com o pezinho no chão porque ele não ia ao seu encontro.
Que diabo. Ele cavalgara quarenta milhas; ela agora podia
dar três passos até ele.
O carregador saiu com as malas. Stella Star continuou
no mesmo lugar, fazendo charme, fingindo que ainda não
vira Solaris. Craighton acabava de adivinhar que era ela, só
podia ser.
— Agora entendo porque cavalgou quarenta milhas! —
sussurrou, sem deixar de olhar para Stella Star. — Ande
homem, por que não vai falar com ela?
— Sou tímido.
Lin-tse sentou no banco que Craighton ocupara antes.
Já sabia, com Solaris era preciso ter paciência.
— Oh, está bem! — Craighton estava impaciente. —
Vou lá dizer a ela que Wichita a recebe de braços abertos.
E foi. Tirou o chapéu e fez discreta mesura diante de
Stella.

— 25 —
— Permita-me, senhorita. Craighton Banks a seu inteiro
dispor. Sou amigo de Solaris.
Por acaso, levei-lhe o telegrama em que a senhorita
anunciava sua vinda.
Craighton preferiu não contar que Solaris cavalgara
quarenta milhas para se encontrar com ela. Talvez com isto
o mestiço subisse um pouco mais no conceito desta mulher
sensacional, e isto não lhe interessava. Tinha seus próprios
planos. Era honesto, mas não era bobo.
— Stella Star! — disse ela, estendendo a mão
afetadamente. Craighton segurou a mão dela, fascinado, e
não a soltou mais, segurou com as duas. — Aquele grosso!
— resmungou ela.
Então aconteceu uma coisa curiosa. Solaris cavalgara
quarenta milhas para se encontrar com Stella Star. E agora
que se haviam encontrado, por uma questão de orgulho,
orgulho de Stella e de Solaris, Craighton saiu-se com a dele.
Isto é, saiu com a mulher de Solaris. Sim, sim, Craighton e
Stella saíram juntos da estação, deixando Solaris e Lin-tse
olhando para a cara um do outro na plataforma.
— Que aconteceu? — perguntou Lin-tse.
— Não sei! — disse Solaris. — Acho que sou um idiota.
As vezes pergunto a mim mesmo o que vim fazer de volta
aqui em Wichita.
— Pagar-me duzentos dólares, lembra-se?
— Deixe-me em paz! — disse Solaris — e saiu atrás
dos dois. Lin-tse acompanhou-o.

— 26 —
Capítulo 3
Craighton e Stella Star estavam passando defronte ao
Lullaby Saloon, que fervia de animação. A luz que vinha
pelas janelas e pela porta mostrou a Solaris um casal que
conversava com mais animação do que a reinante dentro do
bar. Sentiu-se furioso. De alguma forma, desde que
conhecera Craighton, ele estava sempre levando a melhor.
— Importa-se de me dar duzentos dólares agora? —
disse Lin-tse. — Enquanto você resolve seu caso com sua
amiga e seu amigo, eu bem poderia tomar um trago ou dois.
— Um trago com duzentos dólares?
— Claro que não. Tomo dois dólares de uísque, no
máximo. E guardo o resto.
Solaris deu-lhe dois dólares. Lin-tse começou a repuxar
o canto da boca histericamente
— Ouça uma coisa: você me deve duzentos dólares,
certo?
— Se eu lhe der duzentos dólares agora — respondeu
Solaris, sem prestar atenção ao chinês, pois olhava para
Stella Star e Craighton parados diante do bar, sempre
conversando. Pareciam ter mil coisas a contar um ao outro,
como se fossem velhos amigos. Ele e Lin-tse também
tinham parado. — Se eu lhe der duzentos dólares agora —

— 27 —
repetiu Solaris — você vai entrar nesse bar e beber até cair.
Eu o conheço.
— Bom, e daí?
— Preciso de você sóbrio. Temos trabalho lá naquele
tanque.
Lin-tse precisou pensar alguns segundos para entender
a respeito de que Solaris falava.
— Acha mesmo que há um cofre naquele lugar e
pretende tirá-lo de lá? — disse o chinês.
— Fale mais alto para que ele ouça! — disse Solaris.
Referia-se ao delegado. Acabava de sair do bar e olhava
espantado para a aparição ao lado de Craighton. Seria de
verdade aquela mulher ou ele estava sonhando?
Casualmente, olhou para o lado e viu Solaris. Então
esqueceu Stella Star momentaneamente.
— É com você mesmo que quero falar! — disse,
apontando o dedo para Solaris, e avançou em direção a ele.
Stella e Craighton não esperaram e saíram em direção
ao hotel.
— Boa noite! — disse Solaris ao delegado.
Julgando-se muito esperto, o delegado puxou o revólver
rapidamente e apontou-o para Solaris.
— Está preso.
Não sabia que se Solaris não quisesse, ele não teria
puxado o revólver, porque ele, Solaris, o teria impedido. Ou
Lin-tse. Mas Solaris não gostava de puxar seu revólver
contra uma autoridade.
— Acabo de chegar à cidade! — explicou Solaris. — O
que tem contra mim?
— Claro que acaba de chegar à cidade! retrucou o
delegado com maus modos. — Do contrário, eu o teria
prendido antes.
— O que tem contra mim?

— 28 —
— Você e este seu amigo atacaram o Sr. Nolan e dois
de seus rapazes.
Solaris considerou a situação, estudando o rosto do
delegado.
— Suponho que ele lhe disse isso.
— O Sr. Nolan me disse.
— Disse por que eu o ataquei?
— Ele não sabe por que você e seu amigo atacaram a
ele e seus dois vaqueiros, mas tem um palpite. Antes você
tinha ganho três mil dólares dele no jogo de pôquer.
Provavelmente pensou que ele tinha mais dinheiro e atacou-
o para roubá-lo.
Solaris deu um sorriso torcido. Para um homem como
Nolan, um fazendeiro de prestigio, qualquer pretexto servia
quando se tratava de mandar o delegado (que, pelo que ele
estava vendo, era mais um dos homens de Nolan) contra
seus inimigos pessoais. Era a estória mais absurda que ele
já ouvira. Igualmente Nolan poderia ter dito que ele lhe
roubara no jogo, e o delegado, já que Solaris voltara à
cidade, o prenderia da mesma forma, ainda que fosse outra
estória absurda, pois os dois outros jogadores, Burke e
aquele outro, poderiam testemunhar que ele não trapaceara
no jogo. E o engraçado de tudo isso, pensou Solaris com
ironia, era que afinal de contas ele roubara mesmo; graças
ao bom Craighton, o segredo fora mantido. O segredo é a
alma do negócio, refletiu.
Lembrando-se de Craighton, Solaris disse:
— Tenho uma testemunha que poderá afirmar que
ataquei Nolan para impedir que ele e seus rapazes
trucidassem Craighton.
— Craighton Banks?
Solaris balançou a cabeça.

— 29 —
— O Sr. Nolan e seus rapazes atacaram Craighton
Banks? Quem é essa testemunha?
Solaris, agora que pensava no assunto, conjeturou que
o próprio Craighton poderia ter dado queixa ao delegado
contra Nolan e seus homens. Mas compreendeu que
Craighton precisaria de uma testemunha. Talvez ainda
resolvesse dar queixa. Agora tinha uma testemunha:
Solaris.
Quanto mais tempo passava, mais Solaris ia vendo uma
série de razões para que Craighton o tivesse ido buscar a
quarenta milhas de Wichita. Sem contar que já levara Stella
Star.
— O próprio Craighton! — respondeu Solaris.
O delegado hesitou. Não se inclinava a dar crédito a um
mestiço forasteiro que andava em companhia de um reles
chinês contra um homem respeitável e conhecido em
Wichita como Frank Nolan. Mas agora o mestiço forasteiro
enfiara Craighton na estória. Craighton Banks não era tão
rico quanto Nolan, mas também era respeitável.
Observando a hesitação do delegado, Solaris começou a
pensar que talvez ele não fosse só um garoto de recados do
poderoso rancheiro.
— Onde está Craighton? — inquiriu o delegado. —
Quero deslindar essa estória.
— Acaba de entrar no hotel! — disse Solaris.
— Vamos lá falar com ele! — sugeriu o delegado.
Chamava-se Anthony Reed e gostava de agir rápido.
— Se me dão licença! — disse Lin-tse, e fez menção de
entrar no bar.
Reed o impediu:
— Você vem! — e o chinês não teve remédio senão
obedecer.

— 30 —
No hotel, Stella pedira um quarto e, se o recepcionista
fosse homem, teria conseguido uma refeição apesar do
adiantado da hora. Mas era mulher, e coube a Craighton ser
persuasivo. Segundo ele entendia, a ligeiramente gorducha
Srta. Samson era filha do dono do hotel. Passara da idade
de casar, e como não encontrara marido, o Sr. Samson,
cansado de sustentá-la, punha-a para trabalhar no hotel.
Elizabeth Samson gostava de Craighton e apressou-se a
levá-los para o refeitório, onde acendeu uma lâmpada,
acomodando-os a uma mesa, e prometeu servir uma
refeição fria à viajante faminta, apesar do adiantado da hora,
em consideração ao Sr. Craighton, que era muito boa
pessoa.
— O senhor é muito amável! — disse Stella, sentando-
se à mesa com ele, enquanto a gorda Srta. Samson
desaparecia na cozinha.
— Craighton é o meu nome! — disse ele com um
sorriso cativante.
— Craighton? — repetiu Stella. — Conheci um general
com esse nome, Craighton não sei o quê, começado com A.
Detestava esses homens pequeninos de pele amarela como
aquele que estava com Jim. Creio que foi o homem que
mais matou pequeninos de pele amarela na História. E nada
lhe aconteceu. Claro, havia gente muito mais poderosa por
cima dele.
— Quem é Jim? — perguntou Craighton, distraído.
— Jim; Solaris. Não é seu amigo? Estava com ele na
estação.
— Ah, sim. — Craighton ficou mais pensativo ainda.
— Um homem muito curioso. Se eu lhe contasse tudo que
aconteceu nas últimas vinte e quatro horas...
— É bom que comece a contar.

— 31 —
O Delegado Reed estava parado na porta do refeitório.
Olhando naquela direção, Stella e Craighton viram Solaris
e Lin-tse atrás dele. Reed aproximou-se.
— Com licença! — puxou uma cadeira e sentou-se.
Solaris encostou-se na parede à porta. Lin-tse
perguntou:
— Não vamos comer também? Não como desde meio-
dia quando fizemos aquela refeição fria lá nas pedras.
— Pensei que quisesse beber! — disse Solaris.
— E comer.
—Não é má idéia! — aprovou Solaris, lembrando-se
que também estava com fome. Calculou que se havia
comida para Stella a essa hora, bem poderia haver para ele
também e seu amigo Lin. Aproximou-se da mesa.
— Com licença! — disse Solaris, puxando uma cadeira
e sentando-se.
— Boa noite, Sr. Jim Solaris! — cumprimentou Stella,
irônica.
— Posso sentar? — disse Lin-tse, sentando- se,
também.
Elisabeth Samson chegou com dois aperitivos para
Craighton e Stella. De modo algum esperava encontrar
tantos convivas à mesa.
— Liz, minha amiga! — disse Craighton, de maneira
afável e cordial — se não for abusar de sua bondade, podia
servir uma refeição fria também para meus dois amigos?
Você os conhece, passaram alguns dias hospedados nesse
hotel.
A expressão de Elizabeth mostrava sua contrariedade.
— Se não fosse o senhor quem é, Sr. Craighton! —
disse ela, voltando a desaparecer na cozinha.
— Sim, se você não fosse quem é! — repetiu Reed. —
Acaba de me criar um caso, Craighton.

— 32 —
Craighton virou-se para Solaris.
— Acabo de contar ao delegado que fui atacado por
Nolan e seus homens e você interveio na hora H! — disse.
— Ele agora acha que está com um problema, pois se Nolan
souber que você voltou à cidade e ele não o prendeu... bem,
Nolan não vai gostar.
Craighton Banks era advogado, o melhor de Wichita.
Havia um outro, seu rival, e a diferença entre os dois era
que Craighton não se esforçava por defender clientes que
habitualmente contrariavam a lei. Este era o caso do outro,
Lucius Clay, que era advogado de Nolan. Mas tanto Nolan
quanto Craighton eram homens de peso na cidade, e
decididamente, entre os dois, Reed não sabia que partido
tomar. Mas era um problema insolúvel; com certeza, se
fosse posto contra a parede e forçado a decidir, não hesitaria
muito em optar pelo lado que tinha mais dinheiro, Nolan,
ainda que o outro fosse advogado. Afinal, Nolan também
tinha um advogado.
— Quer dizer que estou livre! — disse Solaris.
Elizabeth trouxera mais três aperitivos para ele, Lin-tse e o
delegado e as cinco pessoas à mesa beberam e
confraternizaram como se fossem todos bons amigos.
Reed levantou-se.
— Falarei com Nolan. Talvez ele concorde em deixar
tudo como está, já que Craighton faz o mesmo. Afinal,
Craighton também poderia dar queixa contra ele.
— Deixe meu amigo Solaris tranquilo e esqueço o que
aconteceu! — afirmou Craighton.
Reed se retirou, sem dizer mais nada. Solaris pensou
que, se além de dar queixa contra Nolan, Craighton
resolvesse acusá-lo também de ter trapaceado no jogo, seria
uma situação curiosa, ou pelo menos haveria bastante
barulho.

— 33 —
Antes que terminassem a refeição fria servida por
Elizabeth, Reed voltou.
— Não posso prendê-lo, Sr. Solaris! — disse.
— E Nolan sabe que não farei nada contra o senhor.
Mas convém que saia da cidade imediatamente. Nolan não
me disse nada, mas sei que ele tomará providências por
conta própria. Como aqueles dois com os quais o senhor já
travou conhecimento, há muitos outros no rancho de Nolan.
Creio que enquanto estiver em Wichita, não estará seguro.
— Creio que sei cuidar de mim mesmo, delegado! —
declarou Solaris, terminando sua refeição.
— Dei um aviso. Para o seu próprio bem! — disse
Reed, dando o assunto por encerrado. Dirigiu um boa-noite
a todos e saiu.
Solaris e Lin-tse voltaram a ocupar o mesmo quarto
onde haviam dormido por uma semana até a noite anterior.
Quando Solaris estava presente, Lin-tse dormia no chão
sobre o tapete. Ao chegar a Wichita ele preferira alugar um
só quarto para os dois, por medida de economia, pois ainda
não ganhara três mil dólares no jogo. E precisava ser o
melhor hotel para causar boa impressão.
Deitando-se de costas na cama, com as mãos sob a
cabeça e de olhos abertos na escuridão, sem nada ver,
Solaris estava sombrio e preocupado. Não que temesse
Nolan e seus rapazes. Mas não sabia o que pensar de Stella.
E quanto mais pensava, mais se convencia de que fora um
erro voltar a Wichita por causa dela. Maldito Craighton e
sua dívida, ele não estaria aqui agora. Mas depois achou que
sim, teria voltado da mesma forma. Agora pensava em seu
achado no fundo do tanque rochoso a quarenta milhas ao
norte de Wichita.
Stella e Craighton tinham ido para seus respectivos
quartos. Mas assim que cessou todo o movimento feito nos

— 34 —
corredores do hotel, pelos hóspedes retardatários, Craighton
saiu de seu quarto, sem ter tirado uma única peça de roupa,
e bateu no de Stella. Agora, quando ela abriu, ele tirou o
chapéu.
Possivelmente ele não teria vindo se ela não tivesse
deixado bem claro que gostaria que ele viesse. Não que
tivesse dito com todas as palavras; ele entendia o bastante
de mulheres para saber que elas nunca diziam nada com
todas as palavras.
De qualquer modo, Craighton estava temeroso e
hesitante. Só viera mesmo por ter sido incapaz de resistir à
tentação. Stella Star era uma mulher lindíssima, nunca vira
outra que se comparasse a ela. Mas era um homem
excessivamente escrupuloso. Criado em Ohio, filho de uma
família de quakers, seus pais se espalhariam se o vissem
atualmente em Wichita.
— Posso entrar? — disse quase com timidez.
Stella ofertou-lhe um sorriso maravilhoso.
— Entre. Fique à vontade.
Com o chapéu na mão, Craighton entrou e sentou-se
numa poltrona, cruzando as pernas. Pôs o chapéu sobre a
perna direita, cruzada sobre a esquerda. Para se sentir mais
à vontade, tirou um charuto do bolso do colete aberto.
— Importa-se que eu fume?
Stella começara a desfazer a maquilagem. Já soltara os
cabelos, preparando-se para ir para a cama. Sorriu da
mesma forma fascinante quando o vira na porta de seu
quarto. Para deixá-lo mais à vontade ainda, disse:
— Nunca conheci um homem que entrasse em meu
quarto e não fumasse um charuto antes.
Ele já acendera o charuto c engasgou-se com a fumaça.
Ela parecia uma mulher muito franca. Stella caminhou

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suavemente até a poltrona, debruçando-se sobre ele para
pegar seu chapéu.
— Sou uma mulher de negócios! — disse. —
Constantemente resolvo minhas transações num quarto de
hotel.
— Tenho visto alguns negócios em quartos de hotel! —
disse Craighton.
Ela tirou o chapéu do colo dele e o jogou sobre a
cômoda, por cima da qual havia um espelho.
— Quer se virar um instante enquanto troco de roupa
para deitar?
Agora Craighton não se engasgou com a fumaça do
charuto, mas, mesmo assim, tropeçou ligeiramente nas
palavras.
— Hã... só queria lhe dizer boa-noite antes de ir deitar.
Mas acho que é meio tarde...
Não que ele fosse realmente tímido. Mas com Stella,
todos os homens sentiam-se pouco à vontade; isso antes de
perderem a cabeça. Se Stella tivesse dito: “Está bem, vá
para seu quarto deitar-se. Boa-noite”, ele teria caminhado
até a porta e seria nesse exato instante que, ameaçado de
perder suas chances, teria perdido a cabeça. Então voltaria
e não diria nada, simplesmente a tomaria nos braços e a
beijaria, sem se preocupar com escrúpulos ou possíveis
consequências.
Mas Stella disse:
— Como tarde? A noite é criança.
Ele sorriu. Casualmente, tirou seu relógio do bolso e viu
as horas.
— O novo dia sim, é criança. Uma hora.
Enquanto tirava o vestido curto que ia pouco acima dos
joelhos, com Craighton dando-lhe as costas, ela
resmungava baixinho.

— 36 —
— Disse alguma coisa? — perguntou Craighton.
— Nada, benzinho. Termine seu charuto — Ela o
chamava de benzinho. Craighton, excitado, dava tremendas
baforadas no charuto.
Stella começou a tirar a combinação. Craighton ensaiou
alguns passos pelo quarto, mas tomando a precaução de não
olhar em direção a Stella, ainda que às vezes, em seus
passeios pelo quarto, ficasse um pouco de lado e poderia
olhar com o canto do olho se quisesse. Mas não se atreveu.
Ou tudo ou nada, pensou. Na última hora ainda poderia não
dar certo e ele não queria que lhe adoçassem a boca para
depois...
— O que há entre você e Solaris? — perguntou em tom
casual, entre uma baforada e outra.
— Jim? — Ela deu uma alegre gargalhada.
— Somos bons amigos.
— Só isso?
— Por que me pergunta essas coisas?
Craighton pensava no telegrama que levara a Solaris.
Ela o chamava de amor.
— Não são casados?
Ela deu outra risada.
— Que loucura. Por que achou que sou uma mulher
casada?
Craighton sentiu-se mais aliviado. Isto acalmava em
parte seus escrúpulos. Pelo menos ele não estava no quarto
de uma mulher casada; pelo menos ela e Jim não eram
legalmente casados.
Não respondeu. Stella ficou com vontade de perguntar:
“Tem medo de Jim?” mas achou que não valia a pena.
Gostava de lançar os homens uns contra os outros, mas não
sem antes ter deitado com um e com outro. Stella talvez não
fosse uma mulher de muito futuro, apesar de sua beleza

— 37 —
fascinante. Na verdade, ela ainda não chegara ao ponto de
considerar sua beleza meramente um capital, e assim não a
explorava com fins lucrativos e comerciais. Explorava, mas
nem sempre. Constantemente estava passando a noite com
um pé-rapado como Craighton, que era um advogado
competente, um homem de certo prestígio em Wichita, mas
não um potentado, como Nolan ou um outro boiadeiro da
comarca, um rancheiro chamado Cooper que possuía mais
terras e mais gado do que Nolan. Com qualquer dos dois
Stella teria feito bons negócios, e o capital de sua beleza
renderia altos dividendos.
Era uma mulher marcada pela fraqueza da carne. O
charme de um homem como Craighton, nessas horas, lhe
interessava muito mais. Era como certas meretrizes
modernas, algumas das poucas que não são frígidas por
natureza ou por força de seu ofício, que nunca se
estabelecem porque constantemente estão trocando noites
de negócios rendosos por noitadas de prazer.
Craighton virou-se, ainda segurando seu charuto, e viu
que Stella deitara-se na cama, cobrindo-se apenas como
lençol. Adivinhou que ela estava nua. Tanta franqueza,
tanta ação direta, realmente o desconcertavam um pouco.
Nem uma preliminar, nada. Mas lembrou-se de apagar o
charuto. Fez o possível para dar a impressão de que nada
nesse mundo o surpreendia. Era um advogado de muitos
casos, como se conhecesse todos os tipos de mulheres que
existiam. Sentou-se na borda da cama para tirar as botas.
Achou que era forçoso dizer alguma coisa agora. Esperou
que eia dissesse, mas ela não dizia. Lançou um olhar para
trás, enquanto descalçava a bota esquerda, e viu-a sorrindo
para ele. Mas ela não disse nada. Esse silêncio o
incomodava. Tornou a virar- se e começou a tirar a bota
direita.

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— Diga-me uma coisa! — lembrou-se de falar. — Não
pense que dou importância, é meramente curiosidade, só
curiosidade. E sei que não se deve perguntar isso a uma
mulher, mas... sinceramente, você é uma mulher como
poucas. Eu ficaria frustrado se não descobrisse. —
Intimamente, enquanto tirava o colete, ele pensou que
estava se saindo razoavelmente bem, dentre tantos homens
importantes de Wichita e alguns homens únicos, como Jim
Solaris, de Craighton Banks, o quase apagado, quase
obscuro advogado, o primeiro em Wichita a vir para a cama
com Stella. — Não se ofenda, entenda... e não é obrigada a
responder, claro, mas...
Elo ainda estava sentado e ela puxou a fralda da camisa
dele na parte de trás, enfiando a mão por baixo e arranhando
de leve suas costas com suas unhas compridas e pintadas.
Em breve parou de usar as unhas e usou as pontas dos
dedos. Aquilo tomou conta dela, e em menos tempo que o
diabo leva para esfregar um olho, ela corria a mão
espalmada pelas costas do homem. Não satisfeita ainda,
sentou-se na cama e enfiou a outra mão por baixo da camisa
dele, alisando agora as costas de Craighton com as duas
mãos. O lençol caíra, e se ele olhasse para trás, veria seus
seios empinados.
— Quer saber minha idade, não é? — ronronou Stella.
— Mas eu não vou dizer — ela debruçou-se por cima dele,
passando-lhe agora as mãos por cima dos ombros, e ajudou-
o a desabotoar a camisa. Disse ainda, fazendo-lhe cócegas
nos cabelinhos da nuca com os lábios em movimento: —
Acho que você não vai se importar...
Realmente, ele não tinha tanta curiosidade em saber a
idade dela. Só pensara em perguntar por não lhe ocorrer
nada melhor para falar. Parou de desabotoar a camisa,
deixando que ela a desabotoasse para ele, e usou as mãos

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para afagar os braços de Stella, de pele tão macia, cremosa,
aveludada. Por fim ela lhe tirou a camisa e o jogou para trás
na cama, deitando-o de costas. Inclinou-se sobre ele para
beijá-lo, e Craighton, usou as mãos nos seios da mulher,
descobrindo que ali a pele era ainda mais cremosa e
acetinada e os seios eram firmes e rijos. Respirou fundo o
perfume de Stella, ao mesmo tempo em que seus lábios
estavam colados aos dela.
Stella interrompeu o beijo para desarmar Craighton.
Tirou-lhe o cinturão com o revólver, e ia jogá-lo do outro
lado do quarto, mas Craighton o tirou das mãos dela e
pendurou na guarda da cama.
— Sou um homem prevenido e ainda não estou tão
louco assim! — disse.
Stella sentiu leve frustração, por ele ainda lembrar-se de
semelhante detalhe numa hora dessas. Mas não havia de ser
nada. Em breve ele estaria nas nuvens, do outro lado do céu.
Deitou-se de costas na cama e empurrou o lençol para baixo
com os pés.
Craighton, ainda que estivesse preparado, levou um
choque. Agora via a nudez de Stella em toda a sua
plenitude. Era um monumento de mulher.
— Acho que agora você pode fazer alguma coisa, não
pode? — disse ela displicentemente, querendo dizer que ele
ao menos podia tirar as calças por si próprio, sem auxílio
dela.
Mas Craighton estava de olhos vidrados, incapaz sequer
de piscar, olhando de um golpe de vista só, toda ela do
umbigo para baixo. Como um autômato hipnotizado,
estendeu as duas mãos, pousando-as nos quadris amplos e
macios de Stella. Ainda incapaz de controlar seus
movimentos, ele desceu as mãos pelos lados das coxas, pela
parte de fora, até meia distância dos joelhos. Deu um leve

— 40 —
apertão, sentindo a maciez da carne. Tornou a subir com as
mãos, e a descer. Parecia fascinado, como se pudesse comer
Stella com as mãos e com os olhos. Gradualmente,
enquanto a segurava pelos quadris e enterrava os dedos cada
vez com mais força em sua carne, conforme o desejo ia
aumentando dentro dele, começou a dobrar-se para diante,
com os olhos fixos num ponto particular. Continuou
descendo. — Oh, não — disse Stella — tire primeiro as
calças, benzinho, está bem?

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Capítulo 4
Wichita amanheceu ensolarada. Eram sete horas da
manhã e o sol já se espalhava por toda a rua principal.
Solaris acabara de tomar seu café da manhã junto com Lin-
tse. Pagara a despesa da mais uma noite no hotel e agora
estava parado na sombra da varanda do hotel. Sua expressão
era pensativa. Lin-tse estava parado ao lado dele.
— Creio que agora vale a pena soltar Turk! — disse
Solaris, como se falasse consigo próprio.
— O que está falando, Jim? — perguntou Lin-tse,
encostando-se numa pilastra e olhando a rua batida de sol.
— De Nolan e seus homens. Se Reed estava certo, eles
vão atacar.
— Quem é Turk?
— Um amigo meu.
— Disse soltar? Ele está preso?
— Reed o prendeu.
Lin fez rápidos cálculos para entender a situação.
— Deixe ver. Seu amigo está preso. Você agora quer
soltá-lo porque Nolan e seus homens são uma ameaça! —
Lin-tse virou-se e olhou para Solaris. — Mas você ontem
estava a quarenta milhas de Wichita e ainda queria ir mais
adiante. Não pensou em soltar seu amigo. É esse o conceito
que tem de amizade, Jim Solaris?

— 42 —
— Reed quer quinhentos dólares de fiança para soltá-
lo! — revelou Solaris, como se isso explicasse tudo.
— E se está disposto a pagar quinhentos dólares de
fiança hoje podia ter pago ontem.
— Quinhentos dólares é justamente quanto Turk me
deve. Pago mais esses quinhentos dólares da fiança e ele
ficará me devendo mil. Nunca me pagará, conheço Turk.
— O que houve? — perguntou Lin-tse.
Solaris desceu os degraus da varanda e começou a andar
pela rua batida de sol. Lin-tse caminhou ao seu lado.
— É uma estória comprida! — disse Solaris.
— Lembra-se que me viu outro dia com um mexicano
bêbado?
— Lembro-me! — disse Lin-tse. — Você também
estava bêbado e os dois contavam pelo meio da rua. Não sei
como o delegado não os prendeu também.
— Aquele era Panchito, outro amigo. Ele me contou o
que houve com Turk. — Solaris ficou pensativo e começou
a recordar, enquanto caminhavam pela rua batida de sol, em
direção à delegacia. — Eu tinha uma quadrilha no Texas!
— contou Solaris, evocativo.
— Nada que fazíamos dava certo, e por isso nos
separamos. Isso foi há mais de ano, e de todos os meus
homens, de lá para cá só tive contato regular com Stella,
que você conheceu ontem. — Quando se referia à sua
quadrilha, Solaris sempre contava Stella como um homem
mais.
Continuou:
— Dos outros nunca mais soube, até que chegamos a
Wichita na semana passada. Panchito que fazia parte do
grupo, é um débil mental. Não sabe usar um revólver, como
você, mas também é muito bom com as facas, como você.
— Tão bom assim? — disse Lin-tse.

— 43 —
— Não me interrompa! — disse Solaris. Ele parou um
instante para falar melhor, e Lin-tse fez o mesmo. Ficaram
os dois parados no meio da rua sob o sol. — Como eu disse,
Panchito é retardado mental, ao contrário de você. Precisa
de alguém que lhe diga o que fazer. Não sabia que ele estava
no Kansas, aqui em Wichita. Nem Turk. Encontrei-os por
acaso. E Panchito, como eu não estava por perto para dizer-
lhe o que fazer, agora trata de cavalos na cocheira pública
por trinta miseráveis dólares por mês.
— E Turk?
— Turk fica para o fim, sua estória é a mais trágica de
todas. Além de Turk, Panchito e Stella havia um outro,
Paul. Paul era pregador, a igreja o excomungou. Ele juntou-
se a mim e durante algum tempo nós cinco agimos no
Texas. Mas nunca mais soube de Paul, desde que nos
separamos há um ano atrás. Agora Turk.
Haviam recomeçado a andar e agora estavam diante da
delegacia. Solaris encostou-se na barra de amarrar cavalos.
— Turk é muito bom com o revólver! — disse Solaris.
— O melhor que eu já conheci! — não disse que
considerava Turk o melhor depois dele. — Ele andou por
todo o Estado, alugando seu revólver, segundo Panchito, até
que veio parar nesta cidade. Estava num bar bebendo, e no
mesmo bar estava “Checkmate” Lou, o pistoleiro, você
deve ter ouvido falar. No Texas eu já tinha ouvido falar
dele, sua fama ia além das fronteiras.
Enquanto Solaris falava, encostado à barra de amarrar
cavalos, um grupo de garotos da escola formou uma rodinha
em volta. Olhavam fascinados para os enormes revólveres
pendurados nos quadris dos dois homens. Eles, os meninos,
não se enganavam; estavam diante de dois terríveis
pistoleiros e gostavam de vê-los de perto, de ouvir suas

— 44 —
estórias. E aquele encostado na barra, com cara de índio,
estava contando estórias terríveis e interessantes.
— “Checkmate” Lou era um sujeito terrível! —
prosseguiu Solaris, entusiasmando-se com a narrativa. —
Tinha fama de ser o gatilho mais rápido do Kansas.
— Foi o que eu sempre ouvi dizer! — falou Lin-tse.
Os garotos ouvindo. Já havia bem uns dez agora junto
à barra de amarrar cavalos, na frente da delegacia.
— Era um sujeito baixinho, pouco mais alto do que
você! — prosseguiu Solaris. — Tinha um metro e sessenta
e quatro, segundo ouvi dizer. Nunca o vi de perto, mas
cansei de ver a cara dele em cartazes de recompensa. Era
magro, moreno, barbudo e bigodudo, de cabelos pretos
compridos e lisos que escorriam por cima de sua cara de
cavalo. Tinha um dente quebrado na frente. Usava óculos
de armação preta de osso, creio. Tinha trinta anos. Era o
sujeito mais feio cuja cara eu já vi. E metia medo em todos.
Todos tinham medo dele. Menos Blue Eyes.
— E Turk.
— Não me interrompa, Lin! — disse Solaris, querendo
extrair o máximo efeito de sua narrativa. Sabia que tinha
uma plateia atenta, os garotos, e falava para eles também,
não só para Lin-tse. — Tal como “Chekmate” Lou,
ninguém nunca soube o nome verdadeiro de Blue Eyes.
Mas ao contrário de “Checkmate” Lou, ele não tinha trinta
anos, tinha dezoito, e não era feio, era um rapaz bonito
como querubim, segundo contam, e por isso o chamavam
também de Angel Face. Quando meu amigo Turk entrou no
Lullaby...
— Você disse que ele já estava lá bebendo! — observou
Lin-tse.

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— Certo! — disse um dos garotos. Era um menino
sardento, de seus oito anos, cabelos cor de palha, parecido
com Tom Sawyer.
— Turk já estava no bar bebendo.
— Como sabe? — perguntou Solaris.
— Porque eu estava olhando pela janela, ora! —
respondeu Tom Sawyer.
— Está bem. Turk já estava no bar bebendo. Blue Eyes
também bebia, os dois encostados no balcão. Blue Eyes não
era tão célebre quanto “Checkmate” Lou, mas também
tinha fama, e sua Ascenção foi meteórica. Aos dezoito anos,
já tinha matado diversos pistoleiros em duelos de rua. Você
sabe como eles são. Sempre lutando uns contra os outros
para ver quem é o melhor. Blue Eyes queria ser o melhor, e
veio a Wichita para decidir essa parada com “Checkmate”
Lou. Este sabia que ele estava aqui para isso, mas não deu
importância ao rapazinho novo de olhos azuis e cabelos
louros, e nisso cometeu um erro, porque se os dois
chegassem a duelar “Checkmate” Lou não teria chance. Era
rápido, muito rápido, como eu disse, porém Blue Eyes o era
mais. E assim, estavam os três no bar. Blue Eyes e Turk no
balcão bebendo, “Checkmate” Lou jogando xadrez numa
mesa com outro camarada, aquele jogo maluco que vocês
inventaram lá na China — disse Solaris a Lin-tse — e que
ele tinha mania de jogar. Blue Eyes esperava
tranquilamente que ele terminasse sua partida para então o
desafiar. Mas isso não chegou a acontecer. Turk, que estava
de mau humor, chegou perto da mesa onde “Checkmate”
Lou jogava sua partida de xadrez. Turk ficou olhando
aquele jogo maluco, que ele não entendia nada, e aí disse,
para “Checkmate” Lou:
“— Não gosto do seu nariz grande e de sua cara de
cavalo.”

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— Não! — interrompeu Tom Sawyer, ouvinte atento.
— Não foi assim. Turk disse, plantado na frente de
“Checkmate” Lou, como se ele fosse um qualquer, quando
todos tremiam na frente dele. Turk disse:
“— Não gosto do seu nariz grande e do seu cabelo
repartido no meio”. Porque “Checkmate” Lou sempre tirava
o chapéu para jogar xadrez — explicou o garoto — e Turk
viu o cabelo comprido dele, que aliás nem era no meio, mas
um pouco do lado.
— Ora, está bem, os detalhes não interessam! — disse
Solaris, quando ele próprio se esmerava no detalhe. O
problema era que Panchito, ao contar-lhe a estória,
escorregara um pouco nos detalhes. — Turk disse aquilo,
plantado diante da mesa onde “Checkmate” Lou, um sujeito
seguro de si, como todo homem que sabe que é ligeiro no
gatilho e atira bem, não deu importância, achando que Turk
era um qualquer. Só dava importância a Blue Eyes,
conhecia a fama do garoto, mas também, apesar de seus
trinta anos, contava como certo que a fama de Blue Eyes
terminaria em suas mãos.
Solaris mudou de posição, ainda encostado à barra de
amarrar cavalos em frente à delegacia, e continuou
contando:
— Mas aí Turk virou o tabuleiro de xadrez. E vocês
sabem, não há nada que irrite mais um jogador de xadrez do
que quando a posição é desfeita e eles não anotaram a
partida. Ainda mais que ‘“Checkmate” Lou estava
ganhando e, segundo eu ouvi, seu adversário
provavelmente teria abandonado o jogo nos próximos
lances. “Checkmate” Lou ficou furioso. Levantou-se,
fuzilou Turk com o olhar, e disse:

— 47 —
— Antes pôs o chapéu! — observou um amigo de Tom
Sawyer. Esse era moreno e mais maltrapilho do que o outro.
Devia ser Huck Finn.
— Pelo visto todos os garotos de Wichita frequentam o
Lullaby Saloon! — disse Solaris.
— Que vergonha. Não têm pais?
— Eu olhei pela janela! — disse Huck Finn. — Eu
também! — disse Tom.
— E eu, e eu — repetiram mais meia dúzia de garotos.
— Muito bem! — prosseguiu Solaris. — “Checkmate”
Lou, antes de levantar-se, pôs o chapéu. Aí levantou-se e,
fuzilando Turk com o olhar falou:
“— Eis aí um negro que não vai morrer pelo fato de ser
negro, porque eu não sou racista. Vai morrer por ser
estúpido e idiota.”
— Isso mesmo! — aplaudiu Tom. — Foi isso mesmo
que ele disse. Ficaram os dois parados um tempão olhando
para a cara um do outro, cada um esperando que o outro
puxasse o revólver. — Solaris deixou que o garoto
continuasse a narração. — De repente, Turk adivinhou que
o outro ia sacar sua arma. E adivinhou certo, porque
“Checkmate” Lou de fato puxou sua arma, com rapidez
fulminante. A mão de um e de outro se moveu no mesmo
instante, e se “Checkmate” Lou puxou o revólver numa
fração de segundo, Turk puxou na metade dessa fração de
segundo. A plateia estava eletrizada. Um frêmito percorreu
a assistência. Diversas pessoas soltaram um “oh!” abafado
e todos pensaram que Turk ia morrer nas mãos de
“Checkmate” Lou. Mas aconteceu o que eu e todos meus
amigos olhávamos pela janela já sabíamos. Turk era o mais
rápido. “Checkmate” Lou nunca chegou a puxar o gatilho
daquela arma. Tinha jogado sua última partida de xadrez.
Caiu fulminado pelo tiro certeiro de Turk.

— 48 —
Solaris retomou a narrativa.
— Aí Blue Eyes, que assistira ao duelo na maior
tranquilidade, disse:
De novo Tom Sawyer o interrompeu:
— Primeiro Blue Eyes se desencostou do balcão. Como
poderia puxar o revólver contra um homem rápido como
Turk, encostado no balcão como estava?
— Isso! — disse Solaris. — Aí Blue Eyes desencostou-
se do balcão! — ele próprio desencostou-se da barra,
imitando o gesto que Blue Eyes devia ter feito. — Blue
Eyes, depois de se desencostar do balcão, disse:
“— Vire-se, negro.”
— Esperou Turk enfiar o revólver no coldre antes! —
lembrou um terceiro garoto, que devia ser Ben Rogers,
outro da patota de Tom Sawyer.
— Certo! — disse Solaris. — Esperou primeiro Turk
guardar o revólver no coldre. — Então disse:
— Vire-se, negro”. Turk já esperava. Virou-se
lentamente e viu o garoto louro de olhos azuis olhando para
ele. Os olhos azuis de Blue Eyes eram frios como o aço.
Turk não se intimidou.
— Pela segunda vez — lembrou Tom Sawyer — todos
pensaram que Turk ia morrer.
— Certo, todos pensaram! — confirmou Solaris. — Aí,
quando Turk se virou, Blue Eyes disse:
“— Eis aí um negro ordinário que vai morrer pelo fato
de ser negro. Não gosto de negros.”
— Certo! — disse Tom Sawyer. — Foi isso mesmo que
ele falou. Era racista. E tal como antes, ficaram os dois um
tempão olhando para a cara um do outro, cada um
esperando que o outro fizesse o primeiro movimento. —
Dei novo Solaris deixou que ele prosseguisse a narrativa. O
garoto sabia descrever um duelo como ninguém. — Mais

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uma vez o bar eletrizou-se. Passaram-se diversos segundos.
Então, de repente, Blue Eyes e Turk moveram a mão ao
mesmo tempo. Blue Eyes puxou o revólver com incrível
rapidez, muito mais rápido que “Checkmate” Lou. E foi aí
mesmo que todos pensaram que Turk não tinha salvação.
Mas tal como da outra vez, aconteceu o que eu e todos os
meus amigos que olhávamos pela janela já sabemos. Turk
era mais rápido. A primeira bala acabou com “Checkmate”
Lou. A segunda com Blue Eyes. É o homem mais rápido
que eu já vi.
— Claro que é! — disse Solaris, nunca fazendo
comparações com ele próprio. — Turk é o melhor do
mundo. Mas o delegado não gosta de gatilhos-relâmpago e
enfiou Turk na cadeia e exige quinhentos dólares de fiança
para soltá-lo e eu estou aqui para pagar.
— Você é amigo de Turk, Injun Joe? — perguntou um
dos garotos.
Solaris já subia à varanda da delegacia para entrar no
gabinete do delegado. Lin-tse o acompanhou.
— Tenho trabalho, rapazes! — disse Solaris
familiarmente aos garotos. Solaris era vidrado em crianças
e deu uma moeda de meio dólar a cada um, mas para o
último não havia moeda de meio dólar e ele deu ao garoto
um dólar de prata.
Antes de entrar na delegacia, Solaris ainda ouviu um
dos garotos gritar:
— Moço, o senhor é índio, moço?

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Capítulo 5
Ao sair da delegacia, às oito e meia da manhã, com o
sol já mais quente, Jim Solaris encontrou um monte de
gente à sua espera.
Primeiro havia os garotos. Sabiam que ele ia sair com
Turk Ambruster, o negro matador de Blue Eyes e
“Checkmate” Lou, e queriam vê-lo de perto outra vez.
Também gostavam de olhar para Solaris e seu grande
revólver pendurado no quadril e bater papo com ele. Já o
chinês, espiavam com certo receio e desconfiança,
principalmente por causa de seu tique nervoso.
Solaris não decepcionou os garotos, trouxe Turk.
Ambruster é que decepcionou os meninos, pois não se
mostrou um sujeito jovial como Solaris. E estava mal-
humorado por ficar devendo mil dólares a Solaris. Não
gostava de dever favores de nenhuma espécie ao mestiço.
Na verdade, ele se recusara a sair da cela. Reed lhe dissera
que ele era obrigado a sair, já que alguém pagara sua fiança,
e que se não saísse Reed o expulsaria. Então Turk
Ambruster recebeu de volta o seu revólver e saiu,
contrariado.
Solaris começava a ter impressão razoavelmente boa do
Delegado Toriy Reed, mas apostava como aqueles
quinhentos dólares da fiança só sairiam do bolso dele para

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suas despesas pessoais. Afinal, não havia queixa alguma
contra o negro; ninguém dera queixa contra ele e Reed só o
prendera porque o negro bobeara e lhe dera as costas. Não
havia necessidade alguma de prendê-lo, e talvez não fosse
sequer uma medida muito legal. Mas estipulara a fiança
arbitrária de quinhentos dólares, e já que alguém pagara...
Outra pessoa à espera de Solaris, para falar
pessoalmente com ele: era uma jovem braba como uma gata
com cria, mas linda como uma manhã de sol. A jovem tinha
a mão cheia de moedas de meio dólar, e uma de um dólar.
Eram dez moedas de meio dólar, e com o dólar de prata,
inteiravam seis dólares. As moedas que ele dera aos
garotos.
A jovem avançou com a mão cheia de moedas e
plantou-se na frente de Solaris, enquanto os garotos
permaneciam em plano mais retirado. Agora duas ou três
menininhas da mesma escola tinham se juntado a eles. No
conjunto, as crianças não sabiam se olhavam o negro alto
que matara Blue Eyes e “Checkmate” Lou ou se prestavam
atenção à discussão entre sua professora e o amigo dos
garotos, Jim Solaris.
— Aqui está seu dinheiro! — disse a professora.
Solaris ficou surpreso. Vendo o rosto pesaroso dos
garotos, compreendeu que era o dinheiro que ele dera a eles.
— Esse é o dinheiro que eu dei aos garotos! — disse
Solaris.
— Exato! — disse ela. — Tome.
— Dei de boa vontade! — retrucou Solaris.
— Veja a cara deles. Acha que eles não poderiam
comprar nada divertido com esses míseros dólares?
— Deus sabe como o senhor ganhou esses míseros
dólares.

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Ela falava com desprezo. Tinha péssimo conceito de um
homem como Solaris, que só podia ser um pistoleiro e
andava na companhia de outro notório pistoleiro, Turk
Ambruster, e mais aquele chinos de mau agouro.
— Sei o que está pensando! — disse Solaris.
— Ficaria espantada se eu lhe dissesse que sou amigo
de um sujeito importante nessa cidade e ele pode
testemunhar que ganhei esse dinheiro honestamente. —
Solaris mentia com a tranquilidade de quem faz tiro ao alvo
em latas vazias para treinar. — Jogando pôquer, é verdade,
mas honestamente. Craighton Banks pode lhe dizer.
Solaris notou que a jovem professora empalidecia
subitamente e depois corava. Na verdade, ela estivera
pronta para dizer que duvidava que ele conhecesse alguma
pessoa decente não só em Wichita como em qualquer outra
parte, mas conteve-se. Agora não sabia o que dizer. Ainda
duvidada da palavra dele, mas disse:
— Conhece Craighton Banks?
— Somos amigos! — disse Solaris quase com orgulho.
— É difícil acreditar, mas se o senhor diz... Eu poderia
perguntar a ele a qualquer momento.
Turk e Lin-tse esperavam encostados na barra de
amarrar cavalos. Aos poucos, os garotos tinham perdido o
medo e se aproximaram. As menininhas também.
Continuaram decepcionados com Turk Ambruster, porque
o negro teimava em ficar mal-humorado. Eles não sabiam,
mas Turk era um homem doente de ódio. Não via uma única
criança negra entre aqueles meninos de escola e isto o
enfurecia. Uma surpresa para as crianças foi que Lin-tse o
chinês de rabicho e aspecto ameaçador a quem tanto
temiam, não era nada daquilo que aparentava ser. Ao
contrário de Turk, falou com todas elas e contou casos.

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Chegou a ficar de cócoras e tirar o chapéu para que todos
vissem seu rabicho s o segurasse e o puxassem.
— James Solaris! — disse Jim, tirando o chapéu e
estendendo a mão. Disse-o com orgulho, acreditando que
fora um golpe para a garota saber que ele era amigo de
Craighton Banks. — Prazer em conhecê-la.
O que ela disse então foi um murro na cara de Solaris.
De modo algum ele teria ficado mais surpreso se ela o
esmurrasse de verdade. Quando ele pensava surpreendê-la,
ela vinha com uma surpresa maior. A jovem e bela
professora passou as moedas para a mão esquerda,
estendendo a direita. E disse:
— Carol Banks. Prazer, Sr. Solaris.
Solaris segurou a mão dela. Deliciou-se segurando a
mão macia, quente da professora. Disse a si mesmo que
daria de bom grado os três mil dólares que ganhara de Nolan
no jogo e tudo que houvesse dentro do cofre que ele achara
no fundo do tanque rochoso a quarenta milhas ao norte de
Wichita só para ter um pouquinho mais de intimidade com
ela, segurar-lhe os ombros, talvez, ou apertar os braços
rosados que apareciam por baixo da manga balão que ia até
pouco acima dos cotovelos. Não queria mais. No fundo,
talvez ele pensasse que não merecia. Ela era linda demais.
Beijar seu pescoço maravilhoso, por exemplo. Não, não era
para ele. Beijá-la no rosto ele nem pensou. E ainda que
quisesse entrar em seu pensamento a imagem mental de um
beijo na boca de Carol, sugar seus lábios vermelhos e
polpudos, ele teimou em repelir o pensamento.
— Banks? Parente de Craighton? — indagou Solaris.
— Irmã dele. Portanto, se estiver mentindo, Sr.
Solaris...
— Isto é o que eu chamo de uma agradável
coincidência. — Solaris acrescentou com certa malícia: —

— 54 —
Creio que Craighton hoje vai acordar mais tarde! — sabia
que ele passara a noite com Stella. — Mas assim que
acordar, pode perguntar a ele.
Desconcertada, ela tirou a mão que Solaris insistia em
segurar indefinidamente e olhou as moedas na outra mão.
— Talvez valha a pena dar a eles! — disse, guardando
as moedas no bolso da saia. — Depois darei a eles. Muitos
não têm dinheiro sequer para comprar merenda. Acredito
que tenha dado com boa intenção.
— Que má intenção poderia haver? — replicou Solaris.
— Não entendo.
— Pensei que fosse um dinheiro sujo! — disse ela. —
Talvez seja, ainda não sei. Mas o senhor... — ela olhou para
ele. Estava começando a ficar encabulada. Solaris já
enfeitiçara mocinhas antes, e conhecia os sinais. — Não sei
— prosseguiu ela — o senhor me causa boa impressão...
— Se fosse o senhor — disse uma garotinha — teria
matado Blue Eyes e “Checkmate” Lou como Turk fez?
— Crianças! — ralhou a mestra.
— Aposto como ele não atira tão bem! — disse outra
garotinha. — Mas Turk não quer atirar! — acrescentou ela
com pesar. — Nós pedimos a ele que atirasse para que
víssemos, mas ele não quis. Inclusive respondeu com maus
modos.
— Turk é assim mesmo, não liguem! — disse Solaris.
•- Passou uma noite desconfortável lá dentro. — Apontou
com o polegar para trás, indicando a delegacia. — Mas é o
melhor que existe com o revólver.
— Você não? — indagou um dos garotos. Solaris teve
a impressão de que era Tom Sawyer.
— Sou razoável! — disse Solaris.
— Mostre.

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— Crianças. Não sejam inconvenientes! — admoestou
a mestra.
— Está bem! — disse Solaris.
Afinal, era seu maior orgulho, atirar bem. Resolveu
fazer uma demonstração para as crianças, e também para a
professora, e também para Nolan. Acabava de ver Nolan e
alguns de seus rapazes na ponta da rua. Haviam desmontado
e permaneciam agrupados, olhando para o burburinho em
frente à delegacia. Solaris tinha essa vaidade infantil. Às
vezes gostava de mostrar que era bom. A ocasião era
excelente; podia impressionar as crianças, a jovem e bela
professora e Nolan e seus homens. Se fosse um pouco mais
sensato, talvez lhe ocorresse que a garota poderia não gostar
dessas coisas. Mas era um primitivo, e não pensou isso. E
acertou sem querer, porque na verdade Carol, como tantas
outras, admirava exibições de força, poder e valentia.
No terreno baldio ao lado da delegacia, Solaris ordenou
aos garotos que colocassem seis latas pequenas alinhadas.
Então, quando tudo ficou pronto, Solaris puxou o revólver
com a rapidez do relâmpago e deu seis tiros em rápida
sequência, derrubando as latas uma por uma, a mais de doze
passos, em pouco mais de dois segundos.
Foi uma exibição impressionante. Nolan, que trouxera
seus homens — agora eram cinco com ele — para dar
definitivamente uma lição no mestiço e seu amigo chinês,
começou a achar que o assunto devia ser melhor estudado.
Carol sentiu uma enorme admiração por aquele mestiço
amigo das crianças, que dava dinheiro aos garotos, sorria
sempre e tinha pontaria tão certeira e infalível. E as crianças
exultavam de entusiasmo.
Satisfeito com o rumo que as coisas tomavam, Solaris
foi lá, tornou a pôr as latas no lugar e disse a Turk:
— Vamos, Turk, mostre-lhes do que é capaz.

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— E pensava também em Nolan e seus sequazes, mas
Turk estava mal-humorado, não queria dar importância às
crianças e ainda não vira Nolan e seus rapazes na ponta da
rua, e mesmo que os visse não sabia que Solaris tinha um
caso com eles.
— Outra hora, Joe! — disse Turk. Conhecera Solaris
num lugar onde todos o chamavam de Injun Joe, quando era
coisa recente ainda a convivência com os apaches
Chiricahuas, no Texas. Dizia a lenda que Solaris era fruto
de um cruzamento entre um guerreiro Chiricahuas quase
senil e uma prostituta branca, mas nunca se apurou a
verdade real.
— Vamos, Turk, os garotos querem ver! — insistiu
Solaris.
Solaris sabia a melhor maneira de provocá-lo.
— Eu seria capaz de apostar como você tem medo de
errar uma das latas! — disse Solaris.
Turk olhou para ele. Em sua raiva mórbida, achou que
era bem capaz que Solaris estivesse pensando que ele,
talvez por estar nervoso, pudesse errar uma das latas. Então
resolveu mostrar a ele, ainda sem dar importância à
professora, às crianças ou aos homens de Nolan no fim da
rua, aos quais não conhecia.
Plantou-se no mesmo lugar de onde Solaris atirara.
Então, veloz como raio, puxou o revólver e atirou seis
vezes, derrubando todas as latas. Sem cronômetro, qualquer
um diria que ele e Solaris haviam feito os seis tiros e
alvejado as seis latas gastando o mesmo tempo. Mas Solaris
sabia que por mais que eles atirassem contra latas ou o que
quer que fosse, ele levaria sempre alguns décimos de
segundo de vantagem sobre Turk. Um décimo de segundo
era talvez o bastante para decidir se um homem devia

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morrer ou matar num duelo de rua. Turk parecia pensar que
não havia essa diferença de tempo.
Lin-tse se animou e quis fazer também uma exibição,
mas errou uma lata e levou tanto tempo quanto os tempos
reunidos de Solaris e Turk. De qualquer forma, Nolan e seus
rapazes já tinham visto de sobra. Ao olhar para a ponta de
rua outra vez, Solaris não os viu mais. Não pensou que o
teimoso rancheiro fosse desistir, mas calculou que da
próxima vez ele voltaria com um número imbatível de
homens. Solaris anotou mentalmente que seria bom dar
também um pulo à cocheira e chamar Panchito.
A debandada foi geral. Com dificuldade, Carol tentava
levar a garotada para a escola, no que encontrou um mundo
de dificuldade, não só porque as crianças estavam excitadas
e não queriam saber de aula esse dia, como também porque
Solaris insistiu em ir com ela até a escola e, a seu pesar, ela
quis dar atenção a ele, era uma necessidade íntima.
Turk conhecia Solaris. Quase todas as professoras do
Texas o conheciam também. Por isso Turk pensou que ele
não ia voltar tão cedo e disse a Lin-tse:
— Se você não tem dinheiro, eu lhe pago um trago! —
começava a recuperar seu bom humor, não só por não ter
errado nenhuma das latas como também por estar livre
outra vez.
Lin-tse não entendeu esse tipo de pilhéria. Olhou fixo
para Turk e começou a repuxar o canto do olho e a piscar o
olho.
— Está brincando comigo? — disse Turk. que não
conhecia o tique nervoso do chinês.
— Eu é que lhe pergunto! — disse o chinês, sem parar
de repuxar o canto da boca e piscar a vista, — Está
brincando comigo?
Turk apontou-lhe o dedo gravemente.

— 58 —
— Por que me pergunta isso?
— Por causa do que você disse! — falou Lin-tse. —
Ora, se eu tenho dinheiro, eu é que pago um trago para você.
Isto é, se tiver vontade.
— Você não me entendeu! — disse Turk. — Eu quis
dizer que se você tivesse dois dólares podia me emprestar
dois dólares e eu ficava lhe devendo esse dinheiro, mas
qualquer despesa de bebida correria por minha conta. Agora
me diga. Por que pisca o olho para mim e torce o canto da
boca dessa maneira? É alguma piada?
Lin-tse começou a ficar nervoso. E quando ficava
nervoso, além de repuxar o canto da boca e piscar o olho,
batia também com a cabeça.
— Olhe aqui — começou a dizer, ficando furioso e mais
nervoso ainda, de modo que batia a cabeça e se repuxava
todo freneticamente — sei que você acertou em todas as
latas, mas...
Mas Turk Ambruster deu uma gargalhada.
— Eu devia saber! — disse.
— Que é que você devia saber? — perguntou Lin-tse.
— Para andar com Solaris só podia ser maluco. Afinal,
tem dinheiro ou não?
— Não! — disse Lin-tse, recordando o que Solaris lhe
dissera, que Turk lhe devia mil dólares e ele duvidava que
algum dia fosse receber essa dívida.
Turk voltou a se encostar na barra.
— Está bem. Vamos ficar aqui de garganta seca até
Solaris voltar. E se eu conheço Solaris, ele vai assistir aula
hoje.
Lin-tse refletiu, A tentação de tomar um trago foi mais
forte.
— Está bem! — concordou. — Tenho dois dólares.

— 59 —
— ótimo. Passe para cá! — disse Turk. — Solaris me
deve duzentos dólares e assim que ele me pagar eu lhe pago.
— Solaris lhe deve duzentos dólares?
— Claro que deve.
— E você deve quinhentos a ele de fiança.
— Acontece que ele me deve setecentos dólares! —
começou a dizer Turk. — Descontando o dinheiro da
fiança...
Mas Lin-tse o interrompeu.
— Oh, está bem, vamos tomar esse maldito trago. Mas
não se incomode, eu pago.
Entraram no Lullaby Saloon.

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Capítulo 6
A muito custo, com a ajuda de Solaris, Carol Banks
conseguiu tocar todas as crianças para dentro da escola e
agora elas estavam amontoadas na janela da sala de aula
espiando a professora conversar com o mestiço forasteiro
no portão. Já eram mais de nove horas e a aula ia começar
bastante atrasada.
— Foi muito amável por me trazer até aqui, Sr. Solaris!
— disse Carol Banks. — Agora tenho que entrar. Obrigada.
— Ela estava afogueada do esforço de levar os alunos e
também um pouco nervosa e alvoroçada. Solaris achou-a
ainda mais linda assim do que uma manhã primaveril.
Linda... linda como como um royal Flush, pensou.
— Gostaria de levá-la até a sala de aula — falou Solaris
— mas sei que não é conveniente. Mas vou esperá-la aqui.
Sei que tem pouco tempo para dar aula. — Consultou seu
relógio de bolso. — Nove e meia, olhe.
— Disse que vai ficar me esperando aqui? Não convém
— retrucou ela.
— Quero falar com você.
Ela brindou-o com um sorriso encantador, mas disse, de
forma a matar a última esperança de Solaris:
— Espero que o senhor seja sensato e que quando eu
sair não o veja mais aqui. Adeus.

— 61 —
Ela entrou precipitadamente na escola. Solaris falara
sério. Ficou plantado no portão esperando a aula terminar e
a professora sair. De vez em quando ela olhava
disfarçadamente pela janela e o via lá, e ficava mais e mais
preocupada. Não que temesse o mestiço; temia acima de
tudo a si própria. Mas Solaris não viu que ela olhava e
continuou encostado no muro da escola, junto ao portão.
Acendeu um cigarro agora, depois de o enrolar
cuidadosamente, com uma só mão em atitude pensativa e
sonhadora. Encolheu a perna direita, apoiando a sola da
bota no muro onde riscara o fósforo. E ali ficou, fumando,
esperando o tempo passar.
Enganara-se a respeito de Frank Nolan. Ele não voltara
ao rancho para buscar mais gente, só rodeara a cidade para
aparecer pelo outro lado e surpreender Solaris. Mas
instruíra seus homens.
— Vocês viram! — disse Frank Nolan. — Ele é rápido
como um raio com aquele revólver. O negro é melhor ainda.
— Em geral, todos tinham essa impressão, de que o negro
era mais rápido que o mestiço. Ainda mais que todos na
cidade sabiam que Turk matara Blue Eyes e “Checkmate”
Lou em duelo. — O chinês também é bom, embora seja o
mais lento dos três. Portanto, nada de lutar no terreno deles.
Usarão os punhos. Quero que deem uma surra em Solaris
de modo que, quando acabarem, nem a própria mãe dele o
reconheça. Isso basta. Se depois disso ele não sair correndo
de Wichita, pensarei numa lição mais eficiente, já que ele
gosta tanto de aulas e de professoras. — Não passara
despercebido ao arguto Nolan o interesse desmedido de
Solaris pela escola e pela professora. — Vocês são quatro!
— continuou. — Quatro contra dois. O chinês não conta.
Numa briga sem armas, um pontapé de Bang- a-gong o põe
fora de combate.

— 62 —
Bang-a-gong deu um sorriso de urso. Tinha certeza de
que o chefe falava a verdade. Era alto como um elefante,
parrudo como um gorila e inteligente como uma galinha,
mas Frank Nolan nunca o vira perder uma briga contra dois.
Uma vez, quando apostara mil dólares nos punhos de Bang-
a-gong, a luta terminara empate — mas fora contra três.
Antes de vir para seu serviço, Bang-a-gong trabalhara numa
feira da Carolina do Sul, enchendo os bolsos de seu
empresário que cobrava um dólar de quem se atrevesse a
subir ao ringue para lutar com ele, prometendo devolver três
se seu homem perdesse. Seu homem nunca perdera uma
luta, a não ser contra ele próprio, o empresário, na batalha
de esperteza. Cansado de ser explorado, Bang-a-gong viera
para o Oeste tentar a sorte. Sua sorte aqui não fora melhor,
pois Frank Nolan o explorava da mesma maneira.
— Deixe comigo! — resmungou Bang-a-gong,
balançando seus braços compridos e musculosos, como as
duas pernas saltadoras de uma enorme rã.
Deixaram os cavalos numa rua transversal e
continuaram a pé, surgindo na rua principal, a meia
distância entre a delegacia e a escola, por dois becos
diferentes. Nolan plantou-se na varanda do hotel e ficou
olhando. Dois de seus homens postaram-se diante da escola.
Solaris continuava encostado no muro da escola.
Aparentemente, não se dava conta do que acontecia ao seu
redor, mas o fato é que não perdera detalhe de toda aquela
movimentação em volta. Nolan considerara que, estando o
mestiço sozinho, convinha que um homem sozinho o
enfrentasse, para depois ninguém dizer que houvera
injustiça, mesmo esse homem valendo por três, como era o
caso de Bang-a-gong. Se aparecessem mais, então os outros
entrariam em ação. Conforme fosse, se mesmo seus quatro
homens não dessem cabo dos três, ele próprio daria uma

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mãozinha. Não se importava de sujar as mãos de vez em
quando. Já as sujara em inúmeras oportunidades anteriores.
De fato, outro homem se juntou a Solaris antes que
Bang-a-gong chegasse ao portão da escola. O chinês.
Lin-tse e Ambruster tinham ficado no bar bebendo.
Ambruster, como era seu hábito, contentara-se com duas
doses de uísque — nunca ficava bêbado. Mas Lin-tse, que
enxugava como uma esponja, rapidamente bebeu o restante
dos dois dólares. Com dois dólares bebia-se uma
quantidade apreciável de uísque, mas ele ainda não estava
bêbado nem satisfeito. Lin-tse disse a Ambruster:
— Sei que você deve dinheiro a Solaris. Deve-lhe mil
dólares, ele me disse, e não ele a você. Mas eu não devo
nada a ele, pelo contrário, ele é que me deve. Deve-me-
duzentos dólares, por um serviço que lhe prestei. Fique aqui
e me espere. Vou lá cobrar esse dinheiro e volto aqui para
bebermos o restante da tarde.
Ainda era manhã e ele fazia planos vespertinos.
Ambruster concordou. Se Lin-tse voltasse com
dinheiro, ele tomaria mais um trago, nem um a mais além
do terceiro, mas não foi por isso que ficou dentro do bar,
sentado a uma mesa lateral, quase junto à porta, e sim
porque não tinha nada melhor para fazer. Acabara de sair
da cadeia e dependia de Solaris. Calculou que Solaris ia
demorar, até resolver sua situação com Carol. Por isso ele
tinha que esperar. E para esperar, esse bar era tão bom
quanto qualquer outro.
Solaris viu o gorila aproximando-se. Viu também Lin-
tse, e Lin-tse chegou a quatro passos dele, quando o gorila
ainda estava a seis. Sabia que ia haver barulho. E antes, que
Lin-tse desse mais um passo, um outro dos homens de
Nolan que estivera parado na calçada oposta descolou-se da

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pilastra defronte à barbearia e começou a atravessar a rua,
vindo por trás de Lin-tse.
Lin-tse não viu o homem que vinha por trás dele, mas
notou o gorila. Quem não notaria? E viu que as intenções
dele eram fatais.
— Saia do caminho, baixinho! — disse Bang-a-gong.
Lin-tse não saiu. Olhou o gorila de alto a baixo. Nesse
Instante o que ele pensava era que nunca quebrara o
pescoço de um homem desse tamanho com uma de suas
célebres cutiladas com a quina da mão. Seria uma boa idéia
experimentar agora, e a perspectiva lhe pareceu excitante,
apesar de que o homem tinha duas vezes a sua altura e era
pelo menos oito vezes mais forte.
Lin-tse sorriu para si mesmo. “Ah”, pensou, “mas é que
ele não conhece o famoso golpe de mão que Madame Si-
ling Tung aplicou para ficar viúva e herdar a fortuna do
marido.”
Solaris percebeu de imediato que o pequenino louco
Lin-tse ia enfrentar o descomunal gorila. Seria uma briga
sensacional, pensou, mas não podia correr o risco. Julgou
que nesse momento, já que o gorila era quatro vezes maior
do que Lin-tse, a vida do chinês era responsabilidade sua.
Nesse caso, muito mais interessante seria que Lin-tse
cuidasse do outro, o que vinha por trás, enquanto ele,
Solaris, cuidava do gorila.
Solaris desencostou-se do muro.
— Atrás de você, Lin!
Traiçoeiro como uma serpente, o outro homem volteara
o braço no ar viciosamente, com o punho fechado,
pensando em pôr o chinês fora de combate logo ao primeiro
golpe. Lin-tse ouviu o aviso de Solaris e, sem olhar para
trás, abaixou-se, e o murro do outro homem passou
raspando.

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Bang-a-gong teve uma inspiração luminosa. O chefe
não dissera que um pontapé de Bang-a-gong poria o
chinezinho fora de combate? Experimentou passar uma
rasteira. O chinês era ágil e veloz como uma bolinha de
roleta, um homem só o via quando ele estava parado, do
contrário não se sabia onde ele estava. Assim como
escapara ao murro por trás, Lin-tse escapou à rasteira de
Bang-a-gong e foi parar atrás dos dois homens, sem que eles
soubessem como.
Bang-a-gong parou de se preocupar com ele. Ainda que
o chinês fosse escorregadio como sabão, seu companheiro
poderia cuidar dele, enquanto ele próprio cuidava do
mestiço.
A janela da escola não tinha espaço para mais um único
rosto. Carol pelejou para que seus alunos lhe dessem uma
vaga, mas nenhum deu. Estava escrito que nesse dia não
haveria aula. Ela desistiu de lutar contra seus alunos e saiu
à porta da escola. Estremeceu de horror ao ver o
brutamontes avançar sobre Solaris, rindo
escarninhadamente, como se antegozasse o prazer de
trucidar o mestiço. Solaris tinha um metro e oitenta, Era um
homem alto e forte. Mas Bang-a-gong tinha dois metros e
não era mais um homem, era um mamute. Pobre Jim, ela
pensou, mas talvez não ficasse tão preocupada se tivesse
visto há um minuto atrás um homem ainda menor do que
Solaris, Lin-tse, disposto a enfrentar o homenzarrão. Não
sabia que Solaris estava tranquilo, convicto de que seria
preciso pelo menos dois mamutes como aquele para vencê-
lo numa briga a socos. Se bem, é claro, o gorila ia dar
trabalho. Ele próprio nunca estivera numa feira, mas se
tivesse estado, seu empresário teria ganho muito mais
dinheiro do que o de Bang-a-gong; ou pelo menos teria mais
segurança.

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As duas brigas começaram simultaneamente, se bem
Carol não visse a outra, a do chinês, que saltava como um
gafanhoto na frente de seu adversário, duas vezes maior do
que ele. Ali também ia haver uma matança, ela pensou (vira
com o canto do olho) mas o que lhe interessava mesmo era
a briga de Solaris. Lamentou não poder fazer nada, mas
iniciou uma prece silenciosa.
Solaris abaixou-se, sentindo que a manopla do
mastodonte produzia tanto vento passando rente a sua
orelha, quanto a pá de um moinho. Abaixou-se de novo,
saltou para o lado, fintou, jogou o corpo para trás e para a
frente, cansando o gorila, e finalmente deu o primeiro
golpe. Acertou em cheio o estômago de Bang-o-gong, que
mais parecia a couraça de um rinoceronte. O grandalhão
não sentiu nada. Solaris esmurrou de novo. Mesmo efeito.
Então pegou o gorila desprevenido e esmurrou-o no queixo,
com dificuldade por causa da altura. Ainda o mesmo efeito:
nulo. Mas ele sabia que o gorila poderia ter a altura de uma
torre e ser rijo como uma rocha e ainda assim teria um ponto
sensível, e foi lá que o pegou, com a ponta da bota,
desferindo um pontapé violento.
O gorila levou as duas mãos ao baixo- ventre e dobrou-
se para diante, soltando um urro de dor. Carol fechou os
olhos.
Que horror! Esses homens quando brigavam faziam
coisas do arco da velha. Se um trouxesse a mãe para ver a
briga, seu inimigo não teria dúvida, esmurraria a mãe do
adversário, porque era seu ponto mais sensível.
Cavalheiros. Puf!
Solaris aproveitou que o gorila não podia se defender e
esmurrou-lhe a cabeça seguidas vezes. Só conseguiu tonteá-
lo um pouco, mas o brutamontes ainda estava cheio de
vapor. E furioso por causa do golpe baixo. Partiu como uma

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locomotiva para cima de Solaris. O mestiço saiu do
caminho. Sabia que um único murro bem aplicado do
grandalhão poderia aleijá-lo e até matá-lo.
Nesse instante, Lin-tse, esquivando-se habilmente a um
cruzado de direita de seu oponente, enfiou o pé entre as
pernas dele e o desequilibrou. Socou-o no estômago e na
barriga, mas quando tentava aplicar um golpe- baixo como
o de Solaris, foi lançado a distância por um pontapé no
rosto. O terceiro homem de Nolan, que assistia a briga da
calçada e estivera pensando em intervir, respirou aliviado.
Agora estava vendo que seu companheiro, Obe, podia com
o chinês. Chegara a se assustar.
E se assustou mais ainda ao ver o que o chinês fez a
seguir. Plantado na frente de Obe, Lin-tse esperou o
adversário vir. O adversário veio. Então Lin-tse
arremessou-se pelo espaço e aplicou-lhe uma tesoura-
voadora no pescoço, jogando Abe por terra. Lin-tse também
ficara furioso, e decidira terminar a luta nos próximos
segundos. Vendo Abe caído, chutou-o no lado da cabeça,
deixando-o mais tonto ainda e, quando ele se levantou,
grogue, deu-lhe uma cabeçada no estômago. Endireitou-se
a tempo de ver Abe oscilar como um pêndulo na frente dele.
Deu uma bofetada de través no rosto do homem, puxou-o
ao seu encontro pelo peito da camisa, aplicou-lhe uma
joelhada no ventre e, quando Abe dobrou-se para a frente
como um canivete, o chinês o presenteou com uma pancada
seca e firme na nuca, desferida com a quina da mão. Abe
apagou, caindo ao chão como um cavaleiro de sob o qual se
tira o cavalo, e ficou prostrado aos pés de Lin-tse.
Lin-tse virou-se e correu ao encontro de Solaris e Bang-
a-gong, para dar uma mãozinha a seu amigo.
— Não se meta, Lin! — avisou Solaris.

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Mesmo que quisesse, Lin não poderia meter-se, pois o
terceiro homem de Nolan chegou correndo e já o injuriava
com uma torrente de golpes.
Da varanda do hotel, Nolan fez sinal para seu quarto
homem. Este chegou correndo ao cenário da luta e hesitou
um instante, sem saber a quem atacar, o mestiço ou o
chinês. Optou pelo chinês. Bang-a-gang, com todo o seu
tamanho, parecia estar tendo dificuldades com o mestiço.
Portanto, pareceu-lhe que o mais lógico seria ele e Danny
terminarem rapidamente com o chinês e depois os três, ele,
Danny e Bang-a-gong acabarem com o mestiço.
A essa altura, os lutadores tinham por plateia um
número considerável de espectadores. Mas
momentaneamente, o segundo picadeiro, onde lutavam Lin-
tse e seus dois adversários, ficou encoberto pela poeira que
os três homens faziam. Provisoriamente, ninguém soube o
que se passava por lá, e todos voltaram sua atenção para o
mestiço que enfrentava Bang-a-gong.
Bang-a-gong desferiu um murro que levava a
contundência de uma bala de canhão.
Seu punho chegou a zunir junto à orelha de Solaris.
Mais uma vez ele conseguira esquivar-se, mas precisava
terminar já com o grandalhão. Já estava com todos os
músculos fatigados só de se esquivar-se dos murros e
pontapés de Bang-a-gong. Começou a martelar
sistematicamente o lado da cabeça dele, um só lado, sempre
que o gigante lhe dava oportunidade. Em breve aquela parte
da cabeça dele começou a ficar arroxeada. Solaris
continuou o castigo. Queria provocar um derrame no
grandalhão. A coisa já fora longe demais. Agora era ele ou
o outro.
Bang-a-gong sentiu o perigo e começou a proteger mais
aquele lado da cabeça. Solaris então transferiu o castigo

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para o nariz do massa-bruta. Socou-o até ver o sangue
escorrer, e continuou socando. Um murro seu arrancou três
ou quatro dentes da boca do grandalhão, e mais sangue
escorreu. Em troca, Bang-a-gong conseguiu fustigá-lo com
dois ou três murros de raspão, entorpeceu seu braço
esquerdo com o qual ele cometera a tolice de aparar uma
das traulitadas do homem-búfalo e malhou-lhe também as
pernas duas ou três vezes com pontapés. E também por duas
vezes conseguiu jogar Solaris ao chão, chutando-lhe os
quadris. Solaris chegou a alegrar-se, porque se fosse mais
acima, ele estaria com quatro ou cinco costelas quebradas.
Ao levantar-se, Solaris reiniciou a tática de esmurrar
seguidamente o gigante no mesmo lugar, sempre que a
oportunidade se oferecia. Agora escolheu o olho direito do
brutamontes e, após o sexto murro, descobriu que Bang-a-
gang não enxergava mais nada com aquele olho, inchado,
arroxeado e gotejando sangue. Com toda certeza, se
sobrevivesse a pancadaria, Bang-a-gong ficaria cego
daquele olho.
Mas Lin-tse não estava levando boa vida com os dois
vigorosos vaqueiros de Nolan, que o haviam jogado ao
chão, e enquanto um comprimia seus ombros sobre o solo,
o outro, montado a cavalo sobre ele, esmurrava-lhe o rosto
sem piedade.
Que covardia, pensou Carol, horrorizada. Um
homenzinho daquele tamanho e juntavam dois brutamontes
contra ele.
A cocheira não ficava muito distante da escola, em cuja
frente aquele trecho de rua servia de palco à cena de
pancadaria. Finalmente, Panchito, que dormia sobre a palha
entre os cavalos, acordou com o vozerio. Ao chegar, viu que
seu amigo Solaris lutava contra um homem alto como um
campanário de igreja e parrudo como um tronco de sequoia.

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Mesmo assim, seu amigo Solaris estava dando o inferno a
ele. Em troca, aquele chinês miudinho a quem ele vira em
companhia de Solaris estava recebendo um terremoto das
mãos e pés de seus dois adversários. Panchito estimou que
o chinês precisava mais de seu auxílio do que Solaris, e
entrou na briga com a animação de uma faísca.
— Urra! — gritou, saltando nas costas do homem que
estava a cavalo sobre Lin-tse. — Como nos velhos tempos,
Jim!
Aplicou uma gravata no homem e tirou-o de cima de
Lin-tse. Lin-tse não teve mais dificuldade em libertar-se do
outro, que lhe aprisionava os ombros contra a terra, e daí
por diante, aparentemente, a luta seguiu igual por igual —
três contra três.
Solaris continuava tirando o inferno da alma de Bang-
a-gong com murros que tinham a potência de uma explosão
de dinamite. Lin-tse lutava pau a pau com o adversário que
sobrara para ele, mas o outro, Abe, voltou a si e juntou-se a
seu companheiro, Danny. Os dois caíram como um enxame
de abelhas africanas sobre Lin-tse, mas desta vez o chinês
levou a melhor sobre dois adversários. A luta desigual e
desvantajosa para ele só durou um instante, pois
rapidamente ele deu a Danny o que já dera a Abe: um golpe
seco com a quina da mão sobre a nuca, e Danny apagou.
Lin-tse continuou a luta contra Abe em igualdade de
condições.
Mas Panchito estava passando um mau quarto de hora.
Não era bom atirador e não sabia lutar: tudo que sabia fazer
em matéria de ataque e defesa era usar uma faca. E vendo-
se perdido, puxou sua faca, com a qual seu adversário não
contara, e enterrou-se no ventre do homem escarranchado
em cima dele. Lentamente, Jesse Polk escorregou de cima

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do mexicano, com a barriga aberta, e estrebuchou no chão
ao lado dele. Isso precipitou os acontecimentos.
Nolan, que até então não quisera meter- se na briga,
sorrateiramente aproximou-se do portão da escola, onde
estava Carol. Agarrou-a por trás e espetou-lhe a cinturinha
fina com o cano do revólver.
— Diga a seu amiguinho que pare! — disse em tom
ameaçador. — Diga, diga já!
Ela estremeceu de terror. Sentiu que Nolan apertava o
cano do revólver com mais força de encontro a seu corpo e
temeu não ter energia nem para gritar. Um som abafado saiu
de sua garganta.
— Jim.
— Mais alto. Ele não ouviu! — advertiu Nolan.
— Jim! — agora foi um grito histérico. Jim a ouviu.
Virou-se. Viu o que acontecia e por um instante a indecisão
foi geral, Até Ban- a-gong esqueceu que, se quisesse,
poderia agora liquidar o mestiço com um único murro.
Reed chegou.
— O que está havendo?
— Não se meta, delegado! — disse Nolan.
Lin-tse, que estava trepado sobre Abe, dando-lhe um
castigo exemplar, suspendeu a operação.
— Acabe com ele, Bang-a-gong! — Nolan não precisou
dizer que se alguém mais se mexesse ele mataria Carol. Não
tinha nada contra a garota, ainda que não se desse bem com
o irmão dela, principalmente agora que sabia que fora ele o
homem que na véspera haviam confundido com Solaris.
Mas só a inimizade com Craighton não explicaria sua
atitude. Tampouco o atrito com Solaris parecia explicar,
mas Frank Nolan era um homem com mania de domínio,
não admitia jamais que outro homem o vencesse. Não pelos
três mil dólares que perdera para Solaris na mesa de pôquer,

— 72 —
mas porque Solaris o estava fazendo de palhaço diante de
toda a cidade. E agora, para voltar impor- se, ele levaria sua
loucura até o fim. — Mato a garota, Solaris — disse agora
— se você levantar um dedo para se defender. — E repetiu:
— Acabe com ele, Bang-a-gong.
Bang-a-gong fechou o punho e armou o murro. Solaris
sentiu-se numa situação crítica. Um gesto de legítima
defesa de sua parte e aquele louco seria capaz de matar
Carol.
Craighton e Stella Star acabavam de surgir na varanda
do hotel.
— Jim! — exclamou Stella.
— Carol! — disse Craighton, não menos horrorizado.
Trágica manhã depois de uma noite de festa.
Tom Saywer disse:
— Vejam, é ele. Turk.
E ele e todos os garotos e menininhas olharam pela
vidraça para onde o garoto sardento apontava. Turk
Ambruster, empunhando seu pesado Colt 45, avançava
agachado junto ao muro, pela parte interna do pátio da
escola. Sem que ninguém visse, ele chegara pelos fundos e
rodeara a escola, saindo agora por trás de Nolan, que
continuava segurando Carol, frente ao portão. Todos os
meninos e meninas viram Turk erguer-se por trás de Nolan,
apontando seu revólver para as costas dele, e o ouviram
dizer:
— Solte esse revólver ou é um homem morto. — Mais
tarde contariam este caso muitas vezes uns aos outros ou a
quem quisesse ouvir, discutindo este e aquele detalhe, o que
o negro dissera e não dissera, tal como quando ele matara
Blue Eyes e “Checkmate” Lou.
Nolan virou-se lentamente e viu Turk.
— Solte, eu disse. Solte já — repetiu Turk.

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— Se Nolan fizesse um único movimento, seria um
homem morto. Ele compreendeu isto, lentamente, soltou o
revólver. Soltou também Carol que, instintivamente, correu
para junto de Turk, a quem antes quase abominara. Turk
continuou apontando seu revólver para Nolan. — Vamos
ver agora como termina isso! — disse Turk.
— Oh, não! — disse Carol, horrorizada. — Já terminou,
acabe você, não deixe mais esses homens brigarem.
Turk não a ouviu. Tranquilamente, enviou um sinal de
cabeça para Solaris, como se dissesse: “Conclua o que
começou, Injun Joe”. Solaris piscou o olho como se
respondesse: “É pra já”, e despachou contra a cabeça
atordoada de Bang-a-gong o maior murro que aquelas
crianças já tinham assistido, fazendo Bang-a-gong balançar
em cima das pernas. Agora já estava quase no fim. Mais uns
dois pares de murros como aquele e Bang-a-gong cairia na
lona. Carol Banks fechou de olhos, mas tornou as abri-los
logo depois.
Lin-tse recomeçou a espancar Abe. Panchito, que
esfaqueara um homem, procurou evaporar-se, mas o
delegado chegou por trás dele.
— Nem mais um passo. — Panchito imobilizou-se,
quase arrependido de ter entrado na briga para ajudar
Solaris. — Venha comigo! — disse Reed.
Levou Panchito até onde estava Turk e lhe disse:
— Diga a seu amigo que pare com isso.
— Que posso fazer, delegado? — disse Turk.
Reed considerou o revólver na mão do negro.
Considerou Nolan lá parado, ameaçado pela arma de Turk.
— Diga-lhe que solte esse revólver, Reed — falou
Nolan.
Reed tornou a olhar Turk. Ao mesmo tempo, ele próprio
apontava sua arma para Panchito. Esse não ia escapar, pelo

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menos alguém ele tinha que prender. Reed considerou que
a situação era bastante difícil. A quem prender? A quem
pedir explicações pelo que estava acontecendo? Não a
Nolan, evidentemente. No entanto, sentia-se inclinado a
apostar sua estrela como era ele o causador de tudo.
Lá no meio da rua, Solaris deu um murro antológico no
alto da cabeça de Bang-a-gong, depois de oscilar como um
cipreste ao vento, desmoronou lentamente, esborrachando-
se no pé da rua para não mais levantar-se.
Reed fez um sinal de cabeça para Avalon, um de seus
ajudantes, Avalon chegou por trás de Solaris e espetou-lhe
o revólver entre as costelas.
— Está preso.
Lin-tse acabava de adormecer Abe. Moshe, o segundo
ajudante de Reed, também obedecendo a um comando de
seu chefe, encarregou-se do chinês. Os dois foram
desarmados e levados à presença do delegado.
— Vigiem os três! — disse Reed a seus ajudantes. E
encarou Turk. Turk não se abalava de sua posição,
apontando o revólver engatilhado para o peito de Nolan,
que agora se virara para ele.
— Faça um movimento, delegado — disse Turk — e
mato esse homem.
— Entregue o revólver! — ordenou Reed. — Está
preso.
Turk consultou Solaris com o olhar. Solaris perguntou:
— E Nolan?
Reed hesitou. A última coisa que ele desejava no mundo
era cair na antipatia do rancheiro. Podia prendê-lo agora.
Mas que aconteceria? Nolan era unha e carne com Cooper,
o maior rancheiro do Kansas. Cooper tinha amigos por toda
parte, inclusive na capital do Estado, Topeka. O mínimo
que poderia acontecer-lhe depois de levantar a mão contra

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Nolan era perder o emprego. Mas isto era só o mínimo; o
que ele temia era o máximo. Nolan e Cooper eram dois
homens altamente respeitáveis — mas ele nunca conhecera
um sujeito respeitável e poderoso que fosse ao mesmo
tempo respeitoso. Eles não respeitavam vidas humanas. O
Kansas, no seu entender, como outros Estados do Oeste da
União, pertencia a boiadeiros como Nolan e Cooper. Ele
não era quase nada para modificar esse estado de coisas.
Disse dubiamente:
— Ele vai também.
— Bem, — disse Solaris — já que leva Nolan preso
também... Turk, entregue a arma.
Turk ainda hesitou.
— Vou lhe dizer uma coisa, Reed! — começou Nolan.
Reed esperava por uma torrente de ameaças.
Lucius Clay, o advogado de Nolan, aproximou-se e
disse ao rancheiro.
— Olá, Frank. É só uma formalidade. Vou com você.
Naturalmente, Reed só quer que você assine as queixas
contra esses homens.
— Falava com cinismo. — Que mais ele poderia querer
com você? Não é, Reed?
Reed continuava hesitante.
— Resolveremos tudo isso na delegacia. Vamos todos.
Turk entregou o revólver. Craighton juntou-se a Solaris.
— A partir desse instante — disse — sou seu advogado.
Seu e de seus amigos. Não se preocupe, Reed não se
atreverá a prendê-los. — Lançou um olhar rancoroso a
Reed. Reed fez que não ouviu. Deu ordens a um de seus
ajudantes para que cuidasse das baixas.
— Esse aqui está morto! — disse Avalon, agachado ao
lado do cadáver de Jesse Polk, com a barriga aberta.
Examinou os outros três. Bang-a-gong, Abe e Danny

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estavam inconscientes e em estado deplorável, sendo que
Bang--a-gong era o caso mais grave. Avalon espiou o
grandalhão caído com expressão fúnebre, como se dissesse,
“esse ó mais um caso para o agente funerário do que para o
médico”, mas os três feridos foram levados ao consultório
do médico, enquanto Jesse Polk era carregado para a
funerária.
Solaris, seus três amigos e Nolan eram levados para a
delegacia por Reed e seu outro ajudante, os advogados
Lucius Clay e Craighton Banks encerravam o cortejo. Stella
Star e Carol Banks acompanharam a comitiva a alguma
distância até a porta da delegacia, quando então a porta se
fechou, quase na cara delas.
Stella não sabia ainda quem era Carol, assim como
Carol não sabia quem era ela. Mas era evidente, pensou
Stella, que Carol tinha parte ativa na estória. Sorriu
amavelmente para a garota.
— Assunto só para homens! — disse.
— Carol a olhou ligeiramente espantada. Era uma
mulher muito bonita, de saia curta acima dos joelhos. Quem
era ela? E por que lhe falava com essa intimidade?
— Com licença! — disse, e voltou precipitadamente
para a escola.

— 77 —
Capítulo 7
O gabinete era estreito para tantos homens. Eram nove
no total. Duas autoridades, dois advogados e cinco
prisioneiros. Reed pôs os cinco prisioneiros sentados em
linha junto à parede e ordenou a Moshe que os vigiasse.
Moshe pegou uma carabina no armeiro, guardou seu
revólver no coldre e ficou vigiando os homens apontando--
lhes a arma.
— Mato o primeiro que tentar escapar — avisou.
Reed sentou-se atrás de sua mesa. Os dois advogados,
depois de se olharem com rancor, encararam a autoridade.
— O que vai fazer, Reed? — perguntou Craighton.
— Estamos à espera, Reed! — disse suavemente Clay.
— O que vai fazer?
Reed olhou para ambos.
— Você é advogado de Nolan! — disse a Clay.
— Exato. Falo por ele.
Reed voltou-se para Craighton.
— Você é advogado dos quatro.
— Sou. Falo em nome deles! — respondeu Craighton.
— Eles concordam? — perguntou Reed, lançando um
olhar vago para os prisioneiros. Era evidente que queria
ganhar tempo.

— 78 —
Craighton olhou para Solaris. Solaris balançou a
cabeça, nomeando Craighton seu advogado. Reed tornou a
olhar para Craighton, depois de lançar rápida espiada ao
rosto tracundo de Nolan. Um desavisado pensaria que era
estranho que um homem sozinho, desarmado e sem poder
físico, como era o caso de Nolan, pudesse inspirar tanto
medo a um representante da lei. Mas um que entendesse os
negócios da comarca saberia que era perfeitamente natural,
considerando o enorme poder que havia por trás de Nolan e
dos rancheiros em geral.
— Muito bem! — disse Reed a Craighton. — Seus
clientes estão presos. — Antes que Craighton pudesse
protestar, ele virou-se para Clay. — Diga ao Sr. Nolan que
ele pode vir assinar as queixas.
Clay virou-se para Nolan, mas não chegou a dizer nada.
Sorrindo satisfeito, Nolan levantou-se e caminhou para a
mesa. Clay piscou para ele, como se dissesse: “Não lhe
disse”?
Turk fez menção de levantar-se. Era impulsivo e sua
vontade era atirar-se contra o delegado, depois de desarmar
Moshe, dando um pontapé na carabina que ele segurava.
Mas Solaris olhou para Craighton. Craighton fez-lhe um
gesto com a mão, recomendando calma.
— Ouça uma coisa Reed! — falou Craighton.
— Diga! — retrucou Reed, enquanto estendia os
formulários de queixa para que Nolan assinasse.
— Não pode fazer isso! — disse Craighton, começando
a exaltar-se. — Vi quando estes homens atacaram Solaris.
Toda a cidade viu. Você próprio viu quando Nolan ameaçou
minha irmã.
Reed olhou para ele. Sua expressão era impassível.
— Não me lembro de ter visto! — disse Reed.

— 79 —
— E duvido que alguém na cidade tenha visto, como o
senhor diz. Tudo que sei é que o Sr. Nolan alega que ele e
seus rapazes foram atacados por estes homens. Meu dever
é prendê-los. Depois veremos o que se faz com eles. A
justiça verá. — Craighton conhecia a justiça do Kansas,
mesmo em cidades relativamente grandes como Wichita;
era a justiça dos poderosos, em geral rancheiros.
Ao que parecia, era um jogo simples e fácil de entender.
Reed não se atreveria a lutar contra Nolan, e lutar contra ele
seria o mesmo que lutar contra a classe dos criadores, o
obedecia docilmente às ordens dele. Libertava Nolan e nem
incomodava seus rapazes, os únicos culpados, e prendia os
forasteiros. Mais tarde, eles poderiam ser julgados por um
júri venal e corrupto e seriam condenados à forca, e nem o
advogado mais hábil do país os salvaria, não quando o
veredito já estava escrito de antemão na mente dos jurados.
Também, como acontecia constantemente, podia-se simular
que os prisioneiros tinham tentado fugir, quando então
morriam todos baleados. Puro assassinato, e Craighton, em
seus dois anos de exercício da advocacia no Kansas,
aprendera a conhecer bem todos esses manejos.
No entanto, o jogo de Reed era mais difícil e mais
arriscado, um jogo duplo, que só se revelaria mais tarde.
Nolan acabou de assinar as queixas e voltou a sorrir
satisfeito. Lançou um olhar desdenhoso e Solaris e seus
amigos. E disse ao delegado, olhando para Solaris com
ódio:
— Espero que saiba o que fazer com eles, Reed.
— Justiça, Sr. Nolan! — replicou Reed, e disse-o
naquele tom que Nolan já conhecia tanto que o rancheiro
ampliou seu sorriso.
— Vamos, Lucius! — disse Nolan.

— 80 —
Novamente Turk tentou se levantar e mais uma vez
Solaris o impediu. Se haviam confiado em Craighton, seu
advogado até aqui, agora tinham que confiar nele até o fim.
Mas Craighton estava impotente. Em desespero de
causa, ele fez um gesto vago com a mão, como se
tencionasse sacar o revólver. Talvez, em seu desconcerto e
desânimo, ele tivesse pensado em empunhar de fato o
revólver. De qualquer modo, muito antes o revólver de
Reed saltou para a mão dele.
— Não tente, Sr. Craighton — disse Reed — ou irá
fazer companhia a seus clientes.
Craighton deixou pender os braços, desalentado. Turk
agora saltou de pé e Solaris não segurou mais, porém Moshe
escorou-o com a carabina, plantando a boca do cano da
arma no peito do negro. Turk olhou-o com ódio, olhou a
carabina, e tornou a sentar-se. Suspirou. Gozara um dia de
liberdade, e já estava preso outra vez.
As atitudes de Reed e de seu ajudante acabaram de
convencer Nolan de que Reed era um seu servidor leal.
Novamente de posse de seu revólver, que Reed lhe
devolvera, convicto de que o delegado estudaria a melhor
forma de dar sumiço em Solaria e seus amigos, ou com
balas, ou com forca, ou mesmo com julgamento, mas daria
sumiço nele, o boiadeiro retirou-se afina! em companhia de
seu advogado.
Reed esperou um instante. Levantou-se e foi olhar pela
janela. Passaram-se cinco minutos. Olhando pela janela,
Reed viu Nolan aparecer na boca de um beco e sair da
cidade montando a cavalo, levando um de seus homens com
a cabeça enfaixada, mas ainda capaz de montar. Os outros
dois, calculou Reed, provavelmente passariam a noite na
clínica de Doc Jackson.

— 81 —
Então, a atitude de Reed transformou-se. Suspirando,
ele enfiou o revólver no coldre e olhou para Craighton.
— Lamento, Craighton, tive que fazer aquilo. Não
posso lutar contra Nolan. Não quando ele é amigo de
Cooper, que maneja praticamente toda a política do Kansas.
Craighton disse, rigidamente:
— Também lamento, Reed, mas de um modo ou de
outro, não vou permitir que prenda meus amigos.
Reed suspirou de novo. Era a imagem do homem
conformado com as vicissitudes.
— Nem tenho essa intenção.
Solaris e Turk ouviam essa conversa e não entendiam.
Lin-tse e Panchito entendiam menos ainda, mas a eles não
competia resolver nada. Jim é que deveria tirá-los dessa
enrascada. Afinal, estavam aqui por causa dele, não
estavam?
Solaris levantou-se e aproximou-se do delegado e de
Craighton, sem que Moshe tentasse impedi-lo. Na verdade,
o ajudante nem apontava mais a carabina. Turk levantou-se
também e acompanhou Solaris.
— Repita o que disse! — pediu Solaris. — Vai nos
soltar?
Reed o olhou. Nesse instante, Solaris quase sentiu pena
dele. As coisas que um delegado era obrigado a fazer. Mas
não chegou a sentir, porque não se compadecia de homens
fracos.
— Sei que mataram um homem! — disse Reed — O
mexicano matou, eu próprio vi.
Mas sei também que Nolan e seus rapazes começaram
o barulho. Esperei que tudo terminasse de uma forma ou de
outra e eu não tivesse que me meter, mas fui obrigado a isso.
E não posso prender Nolan. Todo o poder do Estado viria
contra mim. — Suspirou de novo. Nos últimos minutos,

— 82 —
Reed suspirava como uma mulher. — Também não posso
prender vocês. Seria injustiça. Inventei uma boa estória para
contar a Nolan. Direi que vocês conseguiram fugir, e ele
não poderá me culpar. Qualquer um pode cometer um
descuido. Mas terão que sair da cidade. Não poderia contar
estória nenhuma a Nolan com vocês circulando por aí.
Craighton olhou para Solaris.
O que acha? — disse.
Solaris refletiu. Olhou para Reed, depois para
Craighton de novo.
— Não sei. Não gosto de sair correndo de uma cidade!
— disse Solaris.
— Oh, vamos, Jim! — disse Craighton. — Não seja
intransigente. Reed está sendo camarada.
— Eu diria que está! — replicou Craighton.
— Ele poderia prendê-los.
— Poderia. Não quis.
— Ainda pode! — insistiu Craighton.
— Não! — disse Solaris. — Eu não deixaria Reed puxar
seu revólver. Ainda que ele puxasse, eu não o deixaria
atirar! — Solaris apostou no escuro. — E Lin não deixaria
o ajudante dele atirar.
Mas ele não podia falar pelos outros. Certo, Solaris teria
desarmado Reed se o delegado tentasse puxar o revólver.
Mas nenhum de seus homens se lembrara de ficar perto de
Moshe. E ao ouvir a ameaça, Moshe, ágil e veloz como um
gato, saltou e pregou as costas na parede, armando a
carabina.
— O primeiro que der um passo é um homem morto!
— advertiu Moshe.
Solaris olhou para ele. Falhara. Se ao menos um de seus
homens fosse mais esperto. Também não podia censurá-los,
ele próprio não se lembrara.

— 83 —
Reed não deu importância a essa brincadeira.
— Oh, convença esse teimoso, Craighton.
— Enquanto falava, deu as costas a Solaris e caminhou
para sua mesa. Solaris relaxou- se. Deu alguns passos pelo
gabinete.
— Está bem. Sou obrigado a parlamentar.
Com o canto do olho, viu o movimento sorrateiro de
Lin-tse. Moshe também se descuidara, achando que agora
tudo estava bem e o mestiço ia afinal entrar num acordo
com seu chefe.
Os passos displicentes de Solaris, enquanto ele fingia
ponderar a situação, o haviam levado para junto de
Craighton. Estava à direita dele, um pouco atrás. Bastou-lhe
inclinar-se para diante e estender o braço e puxar o revólver
de Craighton, tirando-o do coldre, engatilhando e cobrindo
o xerife com a arma, tudo em questão de segundos.
A ação foi simultânea. Ao mesmo tempo, Lin-tse
saltou, agarrou o cano da carabina de Moshe com as duas
mãos e deu um puxão violento, desarmando o ajudante do
delegado. Empunhou a arma convenientemente e apontou-
a para o surpreso ajudante.
— Faça um movimento! — disse Lin-tse, repetindo as
palavras de Moshe — e é um homem morto.
Não via o que se passava atrás dele, mas sabia que
Solaris cobria o delegado com o revólver de Craighton, ou
pelo menos fora o que ele imaginara que ia acontecer.
Reed permaneceu imóvel atrás de sua mesa. Moshe,
colado à parede, não se atrevia a piscar o olho, temeroso de
que o maldito chinês puxasse o gatilho; e era isso mesmo
que Lin-tse estava fazendo. Não puxar o gatilho, mas piscar
o olho; e repuxava o canto da boca freneticamente de uma
maneira grotesca. Nesse instante, Moshe sentiu mais medo
dele do que sentia habitualmente por Frank Nolan.

— 84 —
Turk deu dois passos e plantou-se na frente de
Craighton.
— Não faça nada! — Craighton não tinha a menor
intenção de entrar em luta corporal com o vigoroso negro.
Panchito também agiu. Não era homem de armas, não
armas de fogo, mas com a maior desfaçatez, aproximou-se
do armeiro do delegado e começou a escolher um rifle.
Quando já tinha escolhido um e ia tirá-lo da prateleira,
Solaris disse:
— Deixe isso aí.
Não dissera o nome do mexicano, mas Panchito soube
que era com ele. Deixou o rifle no armeiro. Voltou a sentar-
se na cadeira, aguardando os acontecimentos.
— Jim, não faça uma tolice! — advertiu Craighton.
Reed olhava fixo para Solaris, procurando não se
intimidar.
— O que vai fazer? — disse.
Solaris deu um sorriso torcido. Reed chegou a temer por
sua vida, mas nesse instante Solaris girou o revólver com o
indicador servindo de eixo para guarda-mato e devolveu-o
a Craighton, coronha para a frente. Craighton respirou
aliviado. Guardou o revólver no coldre. Lin-tse seguiu o
exemplo de Solaris e desarmou a carabina cuidadosamente,
mas ao invés de devolvê-la a seu dono, guardou-a numa
vaga do armeiro. Moshe pensou por um momento em
recuperar sua carabina, mas achou que seria tolice e deixou-
a mesmo onde o chinês a pusera.
— Quis mostrar que não ajo sob coação! — disse
Solaris. — Torno a afirmar que não gosto de sair de uma
cidade escorraçado.
Mas simpatizava com Reed. Como Craighton dissera,
ele poderia tê-lo trancafiado antes, quando tivera a
oportunidade. E não o fizera. Talvez, no fundo de sua mente

— 85 —
corrupta, restasse ainda algum senso de dignidade e justiça.
Mesmo assim, continuava sendo um homem fraco, e isto
contrariava Solaris. Porque o delegado não agia como
homem e não enfrentava Nolan?
Perguntou isto a ele.
— E digo mais! — acrescentou. — Se quiser lutar
contra Nolan, estou desde já à sua disposição. E meus
homens também.
— Obrigado pela oferta! — disse Reed com sarcasmo.
— Eu preferia lutar contra Satanás. Mas muito antes daria
essa estrela a outro.
Craighton passeou pelo gabinete, como Solaris fizera
antes.
— Em que ficamos? — indagou Craighton.
— Vou pensar! — disse Solaris. — É o máximo que
posso prometer. Até amanhã de manhã dou uma resposta.
Mas lembrem-se. Se eu sair de Wichita amanhã de manhã,
não será por medo de Nolan nem de ninguém. Não quero
envolver Craighton em complicações. — Aqui ele se
comoveu ligeiramente. — E você também Reed. Acho que
é um covarde, mas prefiro tê-lo do meu lado.
— Não estou do seu lado! — retrucou Reed
rispidamente.
— Encare como quiser.
— Quero uma resposta agora! — disse Reed.
— Creio que chegou o momento de devolver nossas
armas, Reed! — disse Solaris. — Ou quer começar tudo
outra vez?
Craighton aproximara-se da porta do fundo, que dava
para o corredor das celas. O
delegado de Wichita possuía nada menos do que três
espaçosas celas à sua disposição. Poderia prender
folgadamente seis homens em cada cela ao mesmo tempo.

— 86 —
Ou o dobro, se quisesse congestionar pouquinha coisa.
Daquela porta, Craighton fez sinal a Solaris. Solaris
aproximou-se. Os dois conversaram em voz baixa.
Craighton abrira a porta e em parte eles estavam no corredor
do lado de lá e em parte no gabinete do lado de cá. Nada
transpirou do que eles disseram.
— Reed não tem nenhuma acusação grave contra você!
— disse Craighton.
— Claro que não.
— Mas eu posso dar-lhe uma. Posso dizer a ele que
você trapaceou no jogo e ganhou três mil dólares de Nolan
desonestamente. Basta meu testemunho. Isso é grave, não
acha? Quer isso?
Solaris riu para ele.
— Faria isso?
Craighton pensou por um instante.
— Faria! — disse, e sua gravidade mostrou a Solaris
que ele falava sério. — Quero evitar encrencas maiores.
Reed é meu amigo. E outras pessoas inocentes poderiam
pagar se você iniciar uma guerra contra Nolan. Hoje minha
própria irmã foi ameaçada.
Solaris também pensou um instante.
— Não posso responder por meus homens! — disse
afinal.
— Quer dizer que concorda? Vai sair da cidade?
O silêncio de Solaris foi de assentimento.
— Também não tenho medo de sua ameaça! — disse
ele dali a um momento. — Não sei se bastaria seu
testemunho.
— Tentarei convencê-los.
Craighton sorriu abertamente para Solaris, daquela sua
maneira franca e cordial.

— 87 —
— Obrigado, Jim. — Estendeu a mão. Solaris não via
nada assim tão importante que merecesse um aperto de
mão, mas já que Craighton se mostrava tão fervoroso,
apertou a mão dele.
Ao voltarem para o gabinete, Craighton fez um sinal
otimista para Reed, que continuava sentado atrás de sua
mesa. Reed deu um suspiro ruidoso.
— Quando partem? — perguntou. Fizera um sinal a seu
ajudante e Moshe começou a devolver o armamento dos
prisioneiros.
— O mais tardar amanhã de manhã! — disse Solaris,
sentindo-se outro homem com o peso o revólver novamente
em seu quadril direito.
— Jim! — disse Turk, acabando também de afivelar seu
cinturão com o revólver em torno dos quadris — que
negócios está fazendo com esses homens?
— Depois! — disse Solaris.
— Sabe o que penso? — disse Turk. — Devia exigir de
Reed que devolvesse aqueles quinhentos dólares.
— Deixe que eu resolva todos esses problemas com a
lei, está bem, Turk? — disse Solaris mansamente.
Turk encolheu os ombros.
— Tire-o logo daqui, antes que eu perca a paciência e
mude de idéia! — pediu Reed.
Solaris continuava achando que o dinheiro da fiança ia
para as próprias despesas pessoais de Reed, não para a
municipalidade. Mas isto era um detalhe de menor
importância.
Na rua, Craighton voltou a apertar a mão de Solaris,
despedindo-se dele.
— Aconselho-o a ir direto à cocheira, pegar seu cavalo
e sair da cidade agora mesmo levando seus amigos! — disse
Craighton.

— 88 —
Solaris ficou com a impressão de quo Craighton tinha
muita pressa em vê-lo pelas costas. Devia ser Stella,
conjeturou. Que homem não teria pressa em ficar a sós com
Stella? Ao pensar nela, olhou em volta pela rua, mas não a
viu em parte alguma. Curioso como tudo isso estava
terminando, pensou. Voltara a Wichita por causa de Stella.
Faziam só umas poucas horas desde que chegara de volta
até esse momento, em que já estava de novo partindo. E
tanta coisa acontecera nesse intervalo. Stella, a razão de sua
vinda, ia ficar. Em compensação, ele ia levando dois de seus
antigos companheiros, Turk e Panchito. Por onde andaria
Paul? Acontecera uma série de encrencas. Sua amizade com
Craighton parecera solidificar-se. E tudo isso acontecera
por acaso, acontecera assim como poderia ter acontecido de
outra maneira.
Porém, no mais importante de tudo ele pensou agora:
Carol Banks. Conhecera uma linda mulher, provavelmente
a mais encantadora que já vira, e como deveria partir, queria
ao menos despedir-se dela. A garota ficara cravada em seu
coração como as flechas que seus antigos meio-irmão de
raça, os Chiricahuas, costumavam lançar contra seus
inimigos.
Fizera amigos e inimigos, mas Carol Banks estava
acima de tudo isso.
— Só mais uma coisa! — disse Solaris, quando
Craighton já se virava para afastar-se dele. Craighton parou
e tornou a olhar o rosto acobreado do mestiço.
— Sim? — disse Craighton.
Solaris, com a desfaçatez que lhe era peculiar, pregou
uma de suas engenhosas mentiras.
— Sua irmã pediu a Turk, que quando ele fosse embora
da cidade passasse na casa dela para despedir-se. Onde ela
mora?

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Se Turk fosse branco, teria corado com a mentira de
Solaris. Mas não disse nada, nem podia dizer, é claro. Até
prova em contrário, tinha que contar Solaris no rol de seus
amigos, não no de seus inimigos.
Craighton pareceu estranhar esse pedido, achou-o
insólito.
— Lembra-se que ela deve a vida a Turk? — disse
Solaris mansamente, persuasivo como só ele sabia ser.
— É verdade! — disse Craighton, olhando o rosto de
Turk. Turk fez cara de anjo, de uma maneira que daria
inveja a Blue Eyes, ou Angel Face, como também fora
conhecido o jovem pistoleiro a quem ele matara num duelo.
— No fim da rua, a última casa à esquerda. Ainda vai para
o norte? Então passarão por lá. Carol mora com uma velha
tia, que trouxemos de Ohio. — Craighton agora lançou um
olhar carregado de suspeita ao mestiço.
Solaris desconfiou vagamente do que ele estava
pensando — afinal era a verdade — mas ficaria espantado
se soubesse o tamanho do ciúme que Craighton tinha da
irmã. De qualquer modo, ele pareceu tranquilizar- se com
as expressões beatíficas de Solaris e Turk. Tanto que não
achou necessário avisar que ela era noiva, e nem lhe pareceu
cortês. Tal como as coisas haviam acontecido, todos esses
homens mereciam a sua confiança, e ele devia dar prova
dela.
— Boa viagem! — desejou Craighton afinal, e subiu à
calçada do lado oposto, afastando-se.
Solaris disse:
— Se quiserem ter a bondade de me esperar na
cocheira... Selem meu cavalo, por favor. Também podem ir
na frente, se quiserem. Nosso rumo é o norte, vocês ouviram
Craighton. Ele não sabe, mas há um bom negócio a nossa
espera a quarenta milhas ao norte dessa cidade, e é por isso

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que estamos de partida, não por causa de Reed ou Nolan,
ou mesmo Craighton. É uma longa cavalgada. Eu e Lin-tse
costumávamos fazer isso em oito horas, poupando os
cavalos e fazendo duas paradas para descanso.
— Por um instante, o pensamento de Solaris oscilou
entre o cofre que ele achara no fundo do tanque rochoso e
Carol Banks, que a seu modo era uma verdadeira mina de
ouro.
— Claro, se forem na frente, deixem meu cavalo! —
concluiu. Já se afastava pela calçada de tábuas quando
gritou por cima do ombro:
— Deixem meu cavalo selado, é um favor!

***

Era de tardinha. Em toda a brincadeira com Craighton,


Reed e Nolan e seus rapazes, passara-se o dia. Solaris
encontrou a última casa à esquerda e preferiu dar a volta,
batendo na porta da cozinha. Seria tolice correr o risco de
deixar alguém o ver agora.
Uma senhora de idade, enrugada, de cabelos brancos,
com os ombros encurvados, abriu a porta da cozinha.
— Sou James Solaris — disse o mestiço rapidamente.
— Diga a Carol que quero falar com ela.
A mulher o olhou de alto a baixo. Por mais que tentasse,
Solaris não conseguiu interpretar o olhar da velha. Mas por
hábito, decidiu que era um olhar de desaprovação. Em
geral, mulheres velhas o desaprovavam, não sabia por que.
Espantou-se ao ouvir a voz doce e musical, ligeiramente
rouca, de Carol. Afinal, ela estava ali mesmo na cozinha.
— Deixe, titia. Eu atendo. — A velha se retirou sem ter
dito uma palavra, e Solaris não ficou sabendo dela mais do
que já sabia: nada.

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Mas a velha não lhe interessava nem um pouco.
Discretamente, Carol puxou a porta atrás de si, pondo a
porta entre sua velha tia e eles dois, ela e Jim.
— Jim!
Sempre era agradável ouvir seu nome na boca de uma
mulher, mas nenhuma o pronunciava de forma tão doce, tão
lânguida, escorrendo em modulações em cima do “im”, um
encanto para os ouvidos. Ela, um encanto para os olhos.
Solaris ficou olhando a bela garota a sua frente e, agora que
estava lá não sabia bem o que dizer a ela. Sentiu-se
profundamente sozinho com ela, como se todo o resto do
mundo estivesse mais longe do que a umas poucas quarenta
milhas.
O melhor era não dizer nada. Segurou a mão dela. Ela
olhou a mão cor de cobre que segurava a dela. Olhou o
mestiço no fundo de seus olhos pardos, cor de terra. Era
evidente que algo nesse olhar a atraía.
— Por que veio, Jim? Você tem que ir embora — a voz
dela era temerosa. Estranhamente, pensou Jim, ela parecia
temer não a ele, mas a si própria. Que segredos voluptuosos
se ocultariam por trás daqueles olhos cristalinos, de sua voz
rouca, de seus movimentos harmoniosos...
Segurou a outra mão dela.
— Jim, Jim, você não devia fazer isso...
Ela não estava resistindo. Solaris compreendeu que era
esse o seu temor. Estava tão fascinado pela garota que disse
a si próprio que não faria nada a ela que ela não quisesse,
mas ela teria que expressar seu desejo bem claramente, para
não se pensar que ela agira às cegas, sem saber o que estava
fazendo.
Já era noite fechada quando Solaris saía de Wichita,
montado em seu cavalo castanho, após sua entrevista com
Carol Banks. Seus homens não estavam esperando na

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cocheira. Deviam estar mais adiante, aguardando que ele
chegasse para irem ao encontro do cofre perdido no fundo
de um lago, um tanque, nada mais que um tanque entre as
rodas, A imagem de Carol Banks o perseguia de perto,
quase como se ela estivesse em pessoa cavalgando atrás
dele, e durante todo o tempo essa sensação o acompanhou,
de tal maneira a entrevista com ela o impressionara e o
deixara transtornado.

FIM

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