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Resumo
Abstract
In the context of the COVID-19 Pandemic, the National Council of Justice (CNJ)
formulated Recommendation nº 62/2020, which suggested a series of measures to be
taken by judges and courts, including the reassessment of provisional prisons. Our
proposal is to reflect on the debates and public controversies surrounding
Recommendation 62 of the CNJ; analyze how it was received in the jurisprudence of
the Court of Justice of the State of Rio de Janeiro, based on an ethnography of Habeas
Corpus requests, specifically with regard to drug trafficking. We seek to dialogue with
the bibliography produced on the criminal justice system in Brazil, but also with the
studies produced on the role of the Judiciary and incarceration during the pandemic
period. By carrying out an ethnography of the documents, we understand the judgments
of judicial decisions as part of the judicial process and, even more, as artifacts of the
―legal world‖ are not limited to their formal/legal constraints, but, on the contrary, must
be understood in in relation to broader social contexts thought of as judicial and State
practices.
1
Recomendação Nº 62, de 17 março de 2020. (2020). Recomenda aos Tribunais e magistrados a adoção
de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus - Covid-19 no âmbito dos
sistemas de justiça penal e socioeducativo. Brasília, DF: Conselho Nacional de Justiça . Retrieved
fromhttps://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/03/62-Recomenda%C3%A7%C3%A3o.pdf
» https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/03/62-Recomenda%C3%A7%C3%A3o.pdf
2
Edital 12/2021 - CAPES IMPACTOS DA PANDEMIA.
2
corpus, assim como os desdobramentos das audiências presenciais e virtuais de
custódia, em relação aos períodos anteriores, durante e posteriores a criação da
Recomendação 62 do CNJ.
Em nossa etapa preliminar de pesquisa, buscamos analisar os pedidos de habeas
corpus e as decisões judiciais relativas ao tipo penal tráfico e/ou associação ao tráfico na
cidade do Rio de Janeiro no período da pandemia, cuja metodologia será descrita
adiante. Antes, é importante dizer que o nosso objetivo consiste menos em fazer um
balanço quanto a uma aplicação efetiva ou não da recomendação 62 do CNJ, afinal isso
dependeria de uma pesquisa mais ampla nas Varas de Execução Penal (VEP), bem
como na coleta de dados sobre a disseminação e/ou contenção do vírus da COVID-19
nas unidades prisionais.
Tal empreendimento foge de nosso escopo de análise, muito embora seja
possível mencionar as dificuldades em contar com esse referencial quantitativo, já que
as pesquisas e monitoramentos sobre o assunto indicam que a produção de dados sobre
o sistema prisional se dá de forma assistemática e com graves problemas
metodológicos.
Nossa proposta consiste, antes, em analisar 1) os debates e controvérsias
públicas que se seguiram a criação da Recomendação 62; 2) qual a recepção da
Recomendação 62 do CNJ na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro, mais especificamente na capital do estado; 3) quais são os argumentos
utilizados para concessão ou não dos habeas corpus, em termos das categorias
mobilizadas nos documentos judiciais e de que forma elas estão inscritas em certa
―gramática decisória‖ e, por fim, 4) dialogar com os estudos produzidos sobre a atuação
do judiciário no âmbito do sistema prisional, no contexto da pandemia, a partir de
levantamento de bibliografia realizado .
Antes, gostaríamos de pontuar algumas questões de natureza teórico-
metodológica que vão permear nosso trabalho. Em primeiro lugar, boa parte dos estudos
antropológicos lida com certa primazia do que se convencionou chamar de observação
participante, ou observação direta da vida social. Desde as monografias clássicas da
disciplina até os estudos mais recentes sobre sociedades urbanizadas, constituídas por
um Estado nacional centralizado, a observação participante tem sido uma marca
importante da disciplina, influenciando metodologicamente outras áreas do
conhecimento. Nos últimos anos, contudo, a via metodológica de análise dos
documentos tem sido recuperada como ferramenta importante para a compreensão de
3
práticas e processos sociais, principalmente aqueles ligados a esferas de atuação do
Estado, burocracias estatais e sistema de justiça3.
Desta forma, enfatizamos que a nossa análise etnográfica se dá pela via do
tratamento de documentos e dos trajetos que percorremos para chegar, ou não, até eles.
Nesse sentido, temos como base o diálogo entre uma advogada e uma antropóloga em
um trabalho conjunto de busca e análise de documentos judiciais, especificamente de
habeas corpus no contexto da pandemia do COVID-19, percurso sobre o qual falaremos
mais adiante.
Entendemos que os documentos assumem relevância na pesquisa etnográfica,
principalmente em sociedades letradas nas quais ―a escrita é instrumento de poder e
segregação‖4. Especialmente quando lidamos com processos judiciais, toda a narrativa e
marcha processual dizem muito sobre contextos sociais e vidas pessoais, certo que o
Estado em sua função de Estado-juiz assume posição hierárquica que corrobora com
certa instrumentalização de poder. Nos termos de Laura Nader (1972)5, estudamos os
―de cima‖ ―studying up‖ e o fazemos a partir da análise de documentos que inscrevem
decisões judiciais em sede de habeas corpus, em um contexto político e social de
exercício do poder e da autoridade por parte de grupos profissionais que podemos
caracterizar como de ―elite‖, como no caso de juízes e magistrados.
Com a finalidade de mapear processos derivados de Habeas Corpus, iniciamos
uma busca no site do TJRJ, relacionados ao crime de tráfico de drogas 6, oriundos de
Varas Criminais da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, no período de
março/2020 a dezembro/2022, as quais tinham em seu escopo a utilização da
Recomendação nº 62/CNJ. Para tanto, foram utilizadas as seguintes nomenclaturas na
busca: ―Recomendação e 62‖; ―CNJ‖ e ―habeas corpus‖ e ―trafico‖7.
No que concerne ao ano de 2020 foram encontrados 238 processos com as
exigências anteriores descritas; para o ano de 2021 foram encontrados 88 documentos e,
em 2022, 16 processos. Foi possível observar que em um total de 342 processos,
somente 62 deles envolviam de fato casos de tráfico de drogas, com tramitação de
3
MUZZOPAPPA, Eva. ―El quehacer antropológico com documentos y archivos‖, Etnografías
Contemporáneas 8 (15), pp. 90-97, 2022.
4
CASTILHO, Sérgio R., LIMA; LIMA, Antonio Carlos de Souza Lima; TEIXEIRA, Carla C. [org.]
Antropologia das práticas de poder: reflexões etnográficas entre burocratas, elites e corporações . Rio de
Janeiro: Contra Capa, 2014. Pág. 43-70.
5
NADER, Laura, ―Up the anthropologist: perspectives gained from studying up‖ In: Dell Hymes
(org), Reinventing Anthropology, University of Michigan Press, 1972.
6
Optamos pelos crimes relacionados ao tráfico de drogas, uma vez que já estabelecemos pesquisa em
andamento quanto a tal temática, bem como constatamos que se trata de maior demanda atualmente no
Judiciário no que se refere à Recomendação nº 62/CNJ, ora objeto de análise.
7
A pesquisa foi realizada entre os dias 10/03/23 a 12/03/2023.
4
origem em varas criminais da Comarca da Capital do TJRJ. Um número considerável
era de processos que tramitaram em comarcas das regiões metropolitanas e varas do
interior do Estado do Rio de Janeiro.
Para ter notícia de tal situação, foi necessário acessar o acórdão de cada
processo, haja vista que o site do TJRJ não permite o filtro pela comarca de origem.
Com efeito, alguns processos, em que pese tenham vindo no filtro do site, não tratavam
de fato de tráfico de drogas, mas de crimes outros. Além disso, nessa pesquisa não
foram considerados processos que envolviam atos infracionais. Por fim, vale destacar
que não foram considerados os processos sob a rubrica ―segredo de justiça‖, eis que não
havia acesso à sua comarca de origem e dados necessários à pesquisa.
Do total de 62 processos, encontramos sete pacientes mulheres, sendo três delas
atendidas pela Defensoria Pública e quatro por advogados particulares. Foram 55
pacientes homens, sendo 21 atendidos pela Defensoria Pública e 34 por advogados
particulares. Do total de processos analisados, seis habeas corpus foram concedidos,
dois foram considerados ―não conhecidos‖ e 54 denegados. Do total de pedidos
concedidos, quatro foram de pacientes homens e dois de mulheres.
Ao lidar com os documentos judiciais como peças ―etnográficas‖, os quais
atendem a certos constrangimentos e imperativos de ―formais‖, acabamos por mobilizar
categorias ―internas‖ ao campo jurídico que, associadas a certas práticas e discursos,
podem ser problematizadas, permitindo relativizar verdades consagradas (e
naturalizadas) no campo do direito. Certamente, as caraterísticas epistemológicas e
metodológicas apresentadas pelo fazer antropológico, orientadas pelo estranhamento e a
relativização de verdades consagradas no campo do direito, contribuíram para refletir
sobre as práticas jurídicas e as representações sociais que lhes são associadas.
Por outro lado, entendemos que a Antropologia e as Ciências Sociais, de um
modo geral, têm muito a se beneficiar ao conhecer melhor e dialogar com as regras e as
práticas do campo do direito enquanto instância de controle social e de exercício de
poder no Brasil, cujas bases culturais têm sido objeto de interesse já há alguns anos no
campo da antropologia, tal como os estudos sobre burocracia estatal, instituições
judiciárias e de segurança pública até aquelas voltadas aos processos de reconhecimento
de direitos na sociedade brasileira, tal como os produzidos no âmbito do Instituto de
Estudos Comparados em Administração de Conflitos (InEAC), do qual ambas as
autoras participam.
5
A RECOMENDAÇÃO 62 DO CNJ E SUAS CONTROVÉRSIAS PÚBLICAS:
ATUAÇÃO DO JUDICIÁRIO E SISTEMA PRISIONAL NO PERIODO DA
PANDEMIA DA COVID-19
8
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.
9
SILVA, Marcelo Oliveira da. Superpopulação carcerária no Brasil: Análise das causas, dos efeitos e
propostas para o seu enfrentamento. Londrina, PR: Thoth, 2022, p. 21.
10
BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Geopresídios. Disponível em:
<<https://www.cnj.jus.br/inspecao_penal/mapa.php>>. Acesso em: 15/03/2021.
6
Assim, em 2020, como é de conhecimento notório, com a declaração da
pandemia de COVID-19 pela Organização Mundial da Saúde, as dinâmicas de
aprisionamento precisaram mudar para, minimamente, obedecer ao distanciamento
social e as medidas de prevenção à disseminação do novo vírus. Nessa toada, o
Conselho Nacional de Justiça publicou a Recomendação nº 62/2020, que orientou os
tribunais e os magistrados a adotarem medidas protetivas à propagação da infecção por
Covid-19, tanto no âmbito do sistema de justiça penal quanto no socioeducativo. Dentre
essas medidas, podemos observar o que dispôs o art. 9º, in verbis:
11
FUX, Luiz. Coronavírus não é habeas corpus. O Estado de São Paulo, n.46196, 10/04/2020.
7
humanitárias um remédio que mate a sociedade e seus valores, criando
severíssimo risco para a segurança pública. Em suma: coronavírus não é
habeas corpus.
12
MORO, Sergio. Prisões, coronavírus e ―solturavírus‖. O Estado de São Paulo, 30/03/2020.
8
proposição importante deste campo que quer (re)produzir, com exclusividade, os ideais
interpretativos acerca das regras de conduta que devem reger um Estado Democrático
de Direito, segundo distintos entendimentos.
Essa seria uma forma embrionária do princípio do ―livre convencimento
motivado do juiz‖ que permite que os magistrados primeiro se convençam de algum
entendimento decisório para, posteriormente, justificar esse convencimento com a
interpretação particular de leis, doutrinas e/ou jurisprudência – e, eventualmente, com a
―ciência‖, invocada de forma instrumentalizada - a favor de seu entendimento e
interpretação, fórmula que é ensinada na academia do direito - inicialmente nas
graduações e ratificado nas pós-graduações - e replicado nas práticas judiciárias13.
A tese do ―livre convencimento motivado‖, tão naturalizado no campo do
direito, se associa a uma segunda concepção, a qual rege as práticas do fazer jurídico em
nosso país. Trata-se da lógica do contraditório, a qual não deve ser confundida com o
princípio do contraditório, estatuto jurídico que garante a defesa do acusado em um
processo judicial. De acordo com a lógica do contraditório, há sempre duas teses,
adversárias, que devem ser opor indeterminadamente, até que a solução seja dada por
um ―terceiro‖, nesse caso o juiz, a quem cabe interpretar a ―verdade dos fatos‖ e decidir
sobre a versão que será consagrada vencedora.
Tomamos como exemplo significativo, aqui, a decisão proferida em sede de um
habeas corpus, o qual envolvia a prisão de uma mulher que havia sido acusada de tráfico
de entorpecentes (HC nº 0067005-39.2020.8.19.0000)14. Mencionado documento nos
chamou a atenção, eis que reuniu fundamentos comuns a outras decisões judiciais
analisadas. Para além disso, excepcionalmente, concedeu a liberdade provisória à
paciente/mulher custodiada. Vale ressaltar que como vimos no início do texto, a quase
totalidade de pedidos de habeas corpus com base na Recomendação 62/CNJ para os
tipos penais analisados: tráfico e/ou associação ao tráfico na jurisprudência do Tribunal
de Justiça do Rio de Janeiro, com origem na comarca da capital, foram denegados.
Com efeito, o primeiro fundamento utilizado no acórdão em análise é que a
Recomendação 62 se tratava de uma ―mera recomendação‖, não compondo o
ordenamento jurídico do país e que, portanto, sua aplicação não é obrigatória. Vale
salientar que são mobilizadas, assim, recortes de decisões proferidas em julgamentos do
13
MENDES, Regina Lucia Teixeira. Do Princípio do Livre Convencimento Motivado. Legislação,
doutrina e interpretação de juízes brasileiros. RJ, Lumen Juris, 2012.
14
https://www3.tjrj.jus.br/consultaprocessual/#/consultapublica?numProcessoCNJ=0067005-
39.2020.8.19.0001. Acesso em 11.03.2023.
9
STJ e reproduzidas por magistrados nos tribunais estaduais, para fins de corroborar que
a Recomendação 62 é ―somente uma recomendação‖ e que deve ser aplicada de acordo
com cada caso concreto analisado, não podendo ser vista como um ―salvo conduto para
pessoas que cometeram crimes‖. Como é possível observar no trecho abaixo:
Como vimos, desde a posição pública assumida pelo ministro Luiz Fux, em
entrevista destacada anteriormente, até a posição por ministros do STJ, como no
precedente levantado pelo HC mencionado, a retórica de que a Recomendação deve ser
analisada caso a caso ou que ―não é um passe livre para liberação de todos‖ vem
acompanhada de expressões de que a mesma se trata de ―mera‖ recomendação, não
sendo vinculante ou de aplicação obrigatória, o que também não é exclusivo da decisão
ora analisada.
Em nossa leitura dos habeas corpus impetrados, observamos que tal argumento,
relativo a não obrigatoriedade na aplicação da Recomendação 62, é comumente
utilizado para a não concessão de liberdade provisória, mesmo quando o custodiado se
enquadra nas condições de grupo de risco definida pelo ato administrativo do CNJ,
como observado no trecho abaixo:
Por outro lado, são utilizados outros trechos da Recomendação para refutar
orientações inscritas no próprio documento do CNJ, principalmente as que tratam da
―excepcionalidade da prisão preventiva‖. A decisão parece, assim, estabelecer um
franco contraditório face ao artigo 4º do mesmo documento, segundo o qual os
magistrados devem observar ―a máxima excepcionalidade de novas ordens de prisão
preventiva, observado o protocolo das autoridades sanitárias‖. O acordão traz a seguinte
questão:
15
Art. 5º da Recomendação 62 sugere: ―Recomendar aos magistrados com competência sobre a execução
penal que, com vistas à redução dos riscos epidemiológicos e em observância ao contexto local de
disseminação do vírus‖. No Súmula Vinculante 56 do Supremo Tribunal Federal‖
16
BAPTISTA, Bárbara Gomes Lupetti; DUARTE, Fernanda; IORIO FILHO, Rafael Mario. Uma análise
empírica sobre o uso dos princípios, interpretação jurídica e decisão judicial. Revista da Faculdade de
Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 31, n. 2: 401-420, jul./dez. 2015.
12
país17. A seguir, propomos encaminhar nossa análise das decisões judiciais em sede de
habeas corpus, buscando refletir sobre os efeitos da atuação do Poder Judiciário e do
governo executivo federal e estadual, no caso do Rio de Janeiro, face às condições de
encarceramento no período da pandemia.
17
A pandemia do Confinamento: políticas de morte nas prisões. In: A pandemia nas prisões do Brasil /
organização GODOI, Rafael; MALLART, Fábio e MOTTA, Eugênia Ed: Mórula, Rio de Janeiro.
18
PRANDO, Camila; FREITAS, Felipe; BUDÓ, Marília de Nardin; CAPPI, Riccardo. A pandemia do
Confinamento: políticas de morte nas prisões. In: A pandemia nas prisões do Brasil / organização
GODOI, Rafael; MALLART, Fábio e MOTTA, Eugênia Ed: Mórula, Rio de Janeiro, p. 48-55.
13
vista a necessidade de também se resguardar da segurança pública e
jurídica‖. (HC, TJRJ).
Nesse sentido, as medidas adotadas pelos governos federal e estadual, bem como
a atuação dos Tribunais para conter a contaminação do vírus, seriam suficientes para
preservar a saúde do preso, ―integrando ou não o grupo de risco‖, a despeito da
orientação contida na Recomendação 62 do CNJ. Nesse caso, a ausência de notícias
sobre os riscos da propagação do vírus nos presídios são utilizadas para refutar,
sobretudo, a excepcionalidade da prisão preventiva.
Ora, não cabe neste artigo avaliar a efetivação de medidas para contenção do
vírus nas unidades prisionais durante a pandemia do COVID-19, muito embora a
ausência de notícias sobre o assunto, tal como indicado no documento analisado, não
pareça ser uma delas. No entanto, pesquisas e monitoramentos de grupos de estudo
sobre o assunto enfatizam que a produção de dados sobre a disseminação do vírus da
COVID-19 é assistemática, apresentando graves problemas metodológicos, o que
dificulta tanto sustentar a imagem de um Estado ―eficiente‖ como dotar de
confiabilidade as informações produzidas sobre os índices de contágio da doença nas
prisões. Nesse cenário, impende destacar que o projeto Infovírus19 constatou que20:
―(...) a gestão dos números pelo Ministério da Justiça não tem como
finalidade informar ou prestar contas sobre os impactos da pandemia no
sistema prisional. Trata-se de uma política de reforço de estratégias de
confinamento e de exposição à morte das populações prisionais, por meio da
produção de dois discursos públicos. No primeiro, produz-se a imagem de
um Estado eficiente diante da pandemia, capaz de gerir a política prisional
como uma política pública de saúde. No segundo, invocam-se as
representações sociais do medo e da periculosidade, fundadas no racismo,
para produzir a imagem do Estado intransigente, purificador e armado‖.
19
Projeto de iniciativa conjunta e voluntária, animada por grupos de pesquisas de diversas universidades
brasileiras: Centro de Estudos de Desigualdades e Discriminação (CEDD/UnB), Grupo Asa Branca de
Criminologia (UFPE/UNICAP), Grupo de Pesquisa em Criminologia (UEFS/UNEB) e Grupo Poder
Controle e Dano Social (UFSC/UFSM), agregando também pesquisadores autônomos, para monitorar
dados públicos sobre a crise no sistema prisional.
20
PRANDO, Camila; FREITAS, Felipe; BUDÓ, Marília de Nardin; CAPPI, Riccardo. A pandemia do
Confinamento: políticas de morte nas prisões. In: A pandemia nas prisões do Brasil / organização
GODOI, Rafael; MALLART, Fábio e MOTTA, Eugênia Ed: Mórula, Rio de Janeiro, p. 48-55.
14
Vale mencionar que em outro trabalho no qual participamos21, realizando um
mapeamento da bibliografia sobre o assunto aqui discorrido, encontramos estudos que
abordaram a articulação de familiares e movimentos sociais na defesa de direitos da
população privada de liberdade, bem como que narraram a dificuldade no acesso às
informações prestadas pelas unidades prisionais22.
Tais trabalhos informaram que apesar das mais diversas normativas – incluindo
o artigo 9°, IV, e caput, da Recomendação 62 do CNJ – aduziram que o sistema seguiu
precário naquilo que se referiu à implementação de políticas públicas. Afinal, com a
pandemia foram suspensos direitos básicos, incluindo o acesso à alimentação nas
unidades prisionais, já que os familiares são, muitas vezes, responsabilizados pela oferta
de comida, houve o agravante da suspensão das visitas durante a pandemia, além da
suspensão das audiências de custódia, cujas situações culminaram em um
―hiperisolamento", refletindo diretamente na saúde mental dos presos23.
Ainda de acordo com o mapeamento bibliográfico mencionado, um dos estudos
lidos, relacionado ao julgamento de habeas corpus no Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo (TJSP), indicam que o dever ser da lei, ainda que em uma situação peculiar
como da pandemia, não teve o condão sequer de relativizar a forma como o Poder
Judiciário conduz os processos, com parâmetros próprios, baseados no princípio do livre
convencimento do juiz e onde a pena privativa de liberdade ao invés de ser a ―exceção‖
constituiu a regra24.
Em nossa análise dos habeas corpus, tal como no exemplo citado anteriormente,
o argumento utilizado para não concessão do HC se coaduna com a construção da
imagem de um Estado ―eficiente diante da pandemia, capaz de gerir a política prisional
como uma política de saúde‖25. Mas, como mencionado também, os estudos que
encontramos sobre o assunto apresentam um cenário de restrição de direitos, tendo o
21
LIMA, Michel Lobo Toledo; LIMA, Roberto Kant de; RIBEIRO, Yolanda Gaffrée; OLIVEIRA,
Karolynne Gorito de. Sistema prisional e a atuação do Poder Judiciário no contexto da pandemia da
COVID-19: Um balanço de bibliografia. In: Congresso Brasileiro de Sociologia, XXI. 2023, Belém.
22 GARAU, M. G. R. ; MARTINS, I. M. ; BABO, M. N. . Entre Decretos e o vírus: as práticas no
sistema penitenciário do Rio de Janeiro no contexto da Pandemia. ZEIKI , v. 2, p. 1-19, 2022.
23
SILVESTRE, Giane S.; JESUS, Maria G. M. de; BANDEIRA. Ana Luiza, V. Pandemia, prisão e
violência: Os efeitos da suspensão das audiências de custódia na cidade de São Paulo. In: DILEMAS:
Revista de Estudos de Conflito e Controle Social – Rio de Janeiro – Reflexões na Pandemia 2020 – pp. 1-
12.
24
QUINTÃO, BEATRIZ ; RIBEIRO, Ludmila . Judiciário em tempos de pandemia: um estudo das
decisões em habeas corpus do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Revista do Instituto de Ciências
Penais , v. 7, p. 95-130, 2022.
25
PRANDO, Camila; FREITAS, Felipe; BUDÓ, Marília de Nardin; CAPPI, Riccardo. A pandemia do
Confinamento: políticas de morte nas prisões. In: A pandemia nas prisões do Brasil / organização
GODOI, Rafael; MALLART, Fábio e MOTTA, Eugênia Ed: Mórula, Rio de Janeiro, p. 48-55.
15
efeito de um ―hiperisolamento‖. Nesse sentido, o argumento de que os presos estariam
protegidos porque ―isolados‖ nas unidades prisionais, junto à confiança em uma política
pública de promoção da saúde, não parece estar em sintonia com o que falam as
pesquisas empíricas sobre o assunto.
Primeiro, porque as decisões judiciais que usam com base a eficácia das políticas
públicas não apresentam dados que confirmem a hipótese aventada, a não ser o dever
ser da lei. Segundo, porque o (suposto) isolamento não corresponde à dinâmica
prisional, ela mesma constituída da relação entre os de ―dentro‖ e os de ―fora‖, sejam
presos, funcionários do sistema, familiares, advogados, além do que a visita é um direito
do apenado. Utilizando o conceito de vasos comunicantes do pesquisador Rafael
Godoi, essa comunicação entre o externo e o interno pode ser considerada toda forma,
meio ou ocasião de contato entre o dentro e o fora da prisão. Trata-se de uma
articulação particular que, ao mesmo tempo, une duas dimensões da existência social e
define uma separação fundamental entre elas26.
É por isso que optamos pela análise de uma peça documental em especifico que,
ao conceder medidas alternativas à prisão, se apresenta como uma exceção em relação
ao total de HC analisados, em sua maioria, denegada, mas também porque esse HC
reúne muitos dos argumentos mobilizados em outras peças processuais analisadas que
levam a denegação dos habeas corpus impetrados.
Fato é que não nos interessa entrar no mérito da decisão, mas pensar de que
forma certas categorias são mobilizadas sem que se estabeleça uma relação direta com o
que se pretende explicar, como no caso a noção de ―paz social‖ explicitada no acordão
em questão, mas também de ―ordem pública‖ ou ―ordem econômica‖ em outros HC.
Nesse sentido, podemos observar que há certa ―dimensão principiológica‖27 como
fundamento judicial e que o uso desses ―princípios‖ não apresenta, necessariamente,
critérios objetivos para a tomada de decisão. Esse é o caso do uso reiterado de certas
expressões que classificamos como ―vazias‖, sem significado concreto. Eis um exemplo
retirado do mesmo documento:
26
Os vasos colocam em comunicação dois ―mundos‖, no entanto, não são desprovidos de bloqueios:
neles, múltiplas negociações, determinações, poderes e disputas operam a diferenciação do que entra e
sai, dificultando ou facilitando acessos, registrando (ou não) as passagens e estabelecendo destinações.
GODOI, Rafael. Vasos comunicantes, fluxos penitenciários: entre dentro e fora das prisões de São Paulo.
Vivência Revista de Antropologia. n. 46, 2015. p. 131-142.
27
BAPTISTA, Bárbara Gomes Lupetti; DUARTE, Fernanda; IORIO FILHO, Rafael Mario. Uma análise
empírica sobre o uso dos princípios, interpretação jurídica e decisão judicial. Revista da Faculdade de
Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 31, n. 2: 401-420, jul./dez. 2015.
16
Todavia, do exame dos autos e da decisão combatida, observa-se que a
decretação da prisão preventiva do paciente constitui medida exagerada,
mormente porque se entende que as medidas cautelares previstas como
alternativas à prisão se mostram suficientes para a garantia da ordem
pública.
Vale dizer que pelo teor dos acórdãos analisados a expressão ―garantia da ordem
pública‖ traduz uma necessidade de afirmar que o Estado é maior que a sociedade e
precisa proteger seus cidadãos em detrimento de direitos individuais. Ocorre que este é
um conceito vago e no caso específico das mulheres serve para reafirmar que não há um
direito subjetivo e que os critérios ficam nas mãos do Estado, in casu, do Poder
Judiciário.
28
DUARTE, F. ; IORIO FILHO, R. M. Uma gramática das decisões judiciais: mesmos casos, decisões
desiguais. Revista da Seção Judiciária do Rio de Janeiro , v. 19, p. Artigo especial, 2012.
17
CONSIDERAÇÕES FINAIS
18
risco‖. Nota-se que há uma tentativa a fim de se restringir as prisões preventivas de
mulheres, notadamente das que são mães, com fulcro na proteção integral da criança29.
Ocorre que mesmo nessa situação particular, pudemos observar que o Tribunal
se utiliza de fundamentos não explicitados na legislação para manter a prisão da mulher
mãe, bem como utilizam a categoria ―situações excepcionalíssimas‖30. Com esse
argumento, os magistrados afirmam que a concessão da ordem não é automática, eis que
não há a obrigação de dar provimento à medida, e que cada caso deve ser analisado de
acordo com a situação concreta31.
Nota-se que assim como a ―garantia da ordem pública‖, observada nas decisões
de habeas corpus impetrados em razão da Recomendação 62, as ―situações
excepcionalíssimas‖ também são utilizadas de forma genérica em relação aos pedidos
que tem como base o artigo 318 do CPP, com o fito de deixar à margem da
interpretação do julgador aquilo que estiver de acordo com suas convicções. Nos
acórdãos analisados, essa generalidade de situações excepcionalíssimas fica bem
evidente, sendo várias situações são enquadradas nesta expressão, como, por exemplo, o
fato de a paciente/ré exercer a atividade de tráfico no âmbito de sua própria residência e
que tal fato representa um descaso com seus filhos.
Urge salientar que a situação não é restrita ao TJRJ, em trabalho no qual foram
analisadas decisões do Supremo Tribunal Federal32 (FERREIRA, 2021) sobre prisões
preventivas e concessão de prisão domiciliar a mulheres de abril de 2020 a abril de
2021, o qual realizou uma compilação de dados extraídos de acórdãos proferidos pelo
STF, por meio de pesquisa quantitativa e qualitativa, concluiu que:
29
A Lei 13.769/18 que alterou a redação do CPP pode ser entendida em seu ―percurso de lei‖,
principalmente a partir da sanção da Lei do Marco da Primeira infância, de 2016 (Lei 12.257/2016) e no
contexto do julgamento do Habeas Corpus coletivo pela segunda turma do Supremo Tribunal Federal
(STF) que, por maioria de votos, decidiu conceder a substituição da prisão preventiva por prisão
domiciliar para mulheres presas que sejam gestantes ou mães de crianças de zero a doze anos, ou de
pessoas com deficiência, em todo território nacional (HC 143641) (Salles e Eibaum, 2022).
30
Vale explicar que em outro trabalho produzido por uma das autoras do presente artigo houve a análise
de decisões proferidas em processos de habeas corpus no tocante às mulheres/mães (OLIVEIRA,
Karolynne Gorito de; Monteiro, Marcella. Prisões femininas decorrente de tráfico de drogas e associação
para o tráfico: uma análise da jurisprudência sob o olhar da perspectiva de gênero. In: Reunião de
Antropologia do Mercosul. XIV. 2023, Niterói.
31
Outro fundamento que chama bastante atenção ainda dentro da expressão ―situação excepcionalíssima‖
é o de se requerer prova da imprescindibilidade da mãe no domicílio para cuidar da criança, quando o
poder familiar da mãe, e sua importância para a criação dos filhos, em regra, são presumidos.
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FERREIRA, Carolina Costa. Encarceramento provisório de mulheres em tempos de pandemia:
Análise de decisões do Supremo Tribunal Federal sobre prisões preventivas e concessão de prisão
domiciliar a mulheres de abril de 2020 a abril de 2021 / Carolina Costa Ferreira. — Brasília: Instituto
Brasileiro Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa, 2023.
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―Interessante observar que, em nenhuma das decisões analisadas, o cenário
da pandemia de COVID-19 (número de casos ou número de pessoas mortas
no Brasil ou na Unidade da Federação de origem do recurso analisado) foi
considerado como fundamento para a concessão da prisão domiciliar.
Também é curioso observar que todas as decisões analisadas foram
submetidas ao Plenário Virtual, e que todos os Ministros elaboraram os seus
votos enquanto trabalhavam em home office. A situação de emergência
sanitária ou de saúde pública em que todos vivemos não pareceu chegar às
fundamentações dos votos. Questões formais ou a interpretação literal da lei
foram utilizadas mais como argumentos do que a própria pandemia‖.
Situação que chama muito atenção é que embora tenhamos uma legislação com
critérios objetivos, como no caso do artigo 318 do CPP, o qual o texto da
Recomendação 62 do CNJ retoma, ao orientar os magistrados a priorizar a reavaliação
das prisões provisórias de: ―mulheres gestantes, lactantes, mães ou pessoas responsáveis
por criança de até doze anos ou por pessoa com deficiência, assim como idosos,
indígenas, pessoas com deficiência ou que se enquadrem no grupo de risco‖, as decisões
buscam critérios ―principiológicos‖, com base nas mesmas categorias ―vazias‖, como a
de ―ordem pública‖, para manter a prisão preventiva, situação no mínimo paradoxal
diante do contexto de emergência sanitária vivida, cujos efeitos concretos em termos
dos índices de adoecimento e morte não podem ser negligenciados.
Referências bibliográficas
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