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PEDE CAJU QUE DOU... PÉ DE CAJU QUE DÁ!

Presidente de Honra: Rogério Andrade


Presidente: Flávio Santos
Vice-presidente: Luiz Claudio Ribeiro

Carnavalesco: Marcus Ferreira


Enredo: Marcus Ferreira e Fábio Fabato
Sinopse: Fábio Fabato

“Assumir completamente tudo o que a vida dos trópicos pode dar, sem preconceitos de ordem estética, sem
cogitar de cafonice ou mau gosto, apenas vivendo a tropicalidade e o novo universo que ela encerra, ainda
desconhecido”.
(Breviário do Tropicalismo, Torquato Neto)

Carne de caju

O poeta sempre mira a própria terra ao trançar letras e alçar voos. Nada mais natural que ele e seus parceiros, além
de outras inspirações, buscassem uma fruta nativa, farta e com certo capricho corporal para explodir em cores toda a
revolução tropicalista. Pudera! A suculência agridoce que seduz os lábios, proclama a ciência, é mero penduricalho
acessório. O fruto, no duro, está no alto, qual um cocar, black power ou coroa: a castanha. Mas quem é bobo de não
se lambuzar com tudo?

No chão de inversões igualmente marcantes e da arte que passou a transgredir e realçar o profundo da brasilidade,
nosso recado carnavalizado tá na mesa: o redemoinho antropofágico da Tropicália cravou os dentes também em carne
de caju. Yes, nós temos pra chuchu! A partir dele, simbora abocanhar e sentir o país de tantas porções e sabores?
Caldo de mel e travo, como o cotidiano, “a manhã tropical se inicia. Resplendente, cadente, fagueira, num calor
girassol com alegria. Na geleia geral brasileira que o Jornal do Brasil anuncia...”.

Há um cajueiro de copa verdinha no lado esquerdo de todos os peitos, dizem. Pinta de rim, mas convite ao pecado.
Caju-de-árvore, caju-anão, caju-rasteiro, caju grandão ou tímido, caju amarelo, rosado ou pra lá de vermelho.
Protagonista de soneto composto, quiçá, na banheira de Vinicius: “consistência de caralho e carrega um culhão na
natureza”. O materialismo elementar pelo avesso. Que mancha, que arde, que abunda! Que chove. Exagerado e a
prumo. Tupi acayu a pau.

Cajuí or not cajuí, that is the question! Faremos dele carnaval!

Anacardium occidentale

E vamos de mergulho no passado contado em castanhas por tantos povos originários. Cada caju na cabaça, uma
primavera. A tribo do indígena Porã, expulsa do lugar de origem, só encontrou felicidade quando floresceram as
castanhas guardadas pelo sábio Tamandaré (seu avô), até então, perdidas. Veio a seguir o tempo de caju, de
generosidade, já que a “noz que se produz”, além do beabá da Botânica, semeia fartura, lembrança e afeto. Nas
cerimônias que envolvem o Torém, ritual sagrado dos Tremembés, os espíritos dos que cantaram para subir proseiam
com os vivos. O entornar desbragado de mocororó, ou vinho de caju, hidrata a raiz das tradições – já que a festa
esbarra na época de colheita.

Contam os sabidos que hordas do interior buscavam o litoral enfeitado pelas árvores abarrotadas. As ditas “Guerras
do Caju” surgem assim, e antes de Cabral, mas ganharam adstringência quando as treze naus apontaram no horizonte.
Aí, cresceu o olho gordo pra ordem de tonelada! O portuga logo melou os bigodões de interesse. O francês, mon
amour, pôs na boca, manchou os bolsos e deu firma em célebre ilustração. Já ao dono real da terra... Bem, restou lutar
– borduna em punho – contra as mumunhas do afanar institucionalizado, nosso amargor histórico.

E nem falamos do holandês, outro que não marcou bobeira naquele fuzuê: Nassau tratou de legislar, pôs carimbo e
remeteu aos seus o presentinho inflacionado. Velas ao vento na contramão, estava arranjada a invasão – o caju-
desbravador a fazer epopeia e pose de Tupiniquim Caju Fruit Company – pelo inverso itinerário das grandes
navegações. Retorno à vista! The Brazilian Way Of Life natural reverenciado com rapapés e incrementado do lado de
lá do oceano por monarcas e súditos.

Caju-rei

Mas, se até o nada asseado D. João topava um banho de gato marotíssimo na antiga Praia do Caju (com a intenção de
se curar das picadas por carrapatos), e Pedro II era retratado como Pedro Caju pelas charges dezenovistas... Quis o
fruto erguer o seu reinado nas bandas de cá mesmo. Em Pirangi do Norte (quina litorânea superior do país), no ano
da libertação dos escravos, um pescador de nome Luiz Inácio plantou o danado que vestiu a faixa de “Maior Cajueiro
do Mundo”.

No lugar de subir, a galhada se espichou para os lados, com a aparição de novas raízes ao tocar o solo. Danou a crescer
sem freios. O “polvo” potiguar de tentáculos cheirosos fez fama e enumera colheitas a sumir da memória, espécie de
refazenda em trajetória interminável. Sobre o pescador homônimo de presidente, seguiu os dias sempre próximo à
criação improvável. Certa vez, bastante velhinho, sentou-se prum descanso à sombra de uma das ramificações e nunca
mais acordou. Ciclo vital aromatizado pela árvore-sentinela.

Tudo parecia mar calmo, só que pintou contestação. O típico duelo de meninotes de calça curta acerca de quem
ostenta o tronco de destaque entre a molecada. Recentemente, o autocoroado “Cajueiro-Rei”, nas franjas do Delta
do Parnaíba, tratou de reivindicar o alto da rampa de campeão da fita métrica. No caso deste, há, ainda, trágica lenda
indígena a tiracolo: espalham nos arredores que – cercados por mar de cavalos-marinhos, peixes-bois, tartarugas e
golfinhos – dois guerreiros lutaram pelo amor da cunhã-poranga Jacira. Culminou em tragédia acompanhada de
milagre.

Após a disputa, o perdedor emboscou o seu rival e a amada durante passeio em que colhiam cajus. Duas flechadas,
ambos mortos. Foi, então, que a tempestade plena de raios e trovões do dia seguinte produziu cena mágica: no exato
lugar do enterro do casal, emergiu a planta de dimensão extraordinária. Alguém duvida?

O quiproquó dos cajueiros inspira torcidas organizadas, teorias rocambolescas que fazem biólogos rebolarem um
bocado nas explicações, tal de “mede aqui, mede acolá” longe do apito final do juiz. Mas, enquanto não existe régua
com o devido amém de ambos os lados, o jogo é bom para a castanha-commodity e seu pedúnculo popstar: seguem
campeões de audiência junto a paladares gringos e nossos. Autênticos reis do mundo. Reis à caju.

Caju-brasuca

Entre pelejas e causos assim da sabedoria dos povos – com delírios por excesso de caju fermentado nas ideias ou
verdades incontestes –, o filho legítimo dessa aldeia gigante grudou feito “noda”. Expressão de memória coletiva, nos
lábios de mel da literatura, economia musculosa, holofote dos anjos ou demônios que nos conectam ao sentimento e
calorzinho de nação. Castanha-mátria, caju-pátria. Confidentes dos profundos quintais interiores.

Nas curvas do destino e dos desatinos de Macunaíma, tão metáfora da rotina brasileira, ah!, lá está o caju a marcar e
serpentear os seus passos contraditórios. Acompanhante-anti-herói-espelho-meu. Caju-brasuca também na corda
bamba com pincel na mão: a feira modernista de Tarsila em contraste com a “cica” memorial da melancólica aquarela
de Debret retratando a escravidão. Haja caju nas tantas camadas sobre tela! Telas, por óbvio, da mais pura vida real
extraída do pé. Pede caju que dou, pé de caju que dá.

Dá em tela de caju-caipi-pop, virado pra dentro industrialmente, enquanto as pernocas não bambeiam: a própria
enciclopédia dos amigos pós-doutores na disciplina língua enrolada. Consistente, cortadinho em rodelas, do prato e
da polpa, sabor agreste e cerrado, que encanta o doce e o salgado. Para quem quebra castanha coletivamente –
alegoria da roda cronológica –, gosto de pertencimento compartilhado e laço. Ou mero pedaço, vá lá.

Tela do caju-família. Vitamina, crendice e mistura que nos inflamam. Do refresco, do licor, do suco. “Goiabada para
sobremesa...”. O acorde da viola sussurrando saudades. E até compota ajeitadinha, fita e tudo. Remedinho da mamãe.
Receita passada como herança no caderninho amarelado que não se empresta nem ao melhor amigo. Sujeito-elo entre
a rua e a varanda. Toalha de mesa estendida e água na boca. Pinga. A regar brincadeira popular ou manifestação
religiosa: da quermesse à curimba, do sambão ao batidão na esquina de casa.

Tela do caju-moleque. Com travessa de cajuzinhos a perfumar a vivência dos experientes – “quando você ia aos cajus,
eu já voltava com as castanhas assadas”. Virou também recado reto ao vacilão que resolve brigar de bobeira: “ei, vai
tomar caju!”. E segue o bloco! Que contorna a praça e abraça o cajueiro central, debruçado na fuzarca tipo anfitrião
namorador. Rostinhos colados à malemolência do cancioneiro, o fim do baile traz o beijo da morena tropicana, vejam
só. Pele macia, saliva doce, sim, vou lhe desfrutar. “Ô, iô, iô, iô...”.

Geleia geral

Natural que a geleia geral de sabores acima tenha, de fato, a alma da Tropicália, e aí pensamos outra vez no poeta:
“existirmos a que será que se destina?”. A dúvida existencialista diante da ambivalência do fruto-não-fruta parece
extrato nosso chupado de canudinho com aquele barulhinho sacana. Ora, fundamentalmente, existimos a partir da
cultura popular e da riqueza exuberante sobre a terra fértil, inda que descuidadas. Eis que o Brasilzão mira a água
cristalina do Atlântico e lá está peladão e sem vergonha: é o próprio caju jamais proibido. Travesso no trato, travoso
um tanto, “totoso” no total.

Que mistério possui o torrão continental que goza flora pujante como fogos de artifício, e se entorpece da energia do
povo na loucura de ser? Salada mista ardente de gritos ambulantes que vendem e consomem fertilidade, é mascate
de prazeres até o talo. A alquimia desengonçada do rapaz metido a gato-mestre na barraca de caipirinha: “açúcar,
dotô?”. Para esbanjar vida cajuína mergulhada em delirante cortejo made in sol e mar, desfile n’areia, curvas de sereia,
sumo e pegada.

Um viva ao paraíso tropical que tudo dá e ao estado de festa indomável na relação entre gentes e chão – o melhor
caju do pé de Brasil. Ou seria o melhor Brasil do velho cajueiro?

Alegria gaiteira, convenhamos, já muito experimentada no terreiro fervido dos independentes. Basta “olharmo-nos
intacta retina”.

Na cabeça, uma estrela. No corpo suave, o rebolado passista e a pulsação do tambor. Que tal a deliciosa carne de
carnaval, o salivar permitido, lamber os beiços longe de qualquer pingo de culpa?

Cá estou, “cajuinamente”, servida de bandeja com a dose de feitiço que me fez banquete desejado desde moça.

Vai, batida mais quente, e vê se leva o aroma do sonhado reencontro comigo mesma: sou dádiva que se alastra igual
caju. Sou o fruto mais doce e sexy da capital da folia. Sou quem morde o seu coração...

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