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ENTRE

desmistificando a esquizofrenia
segunda ed1çao

JORGE CÂNDIDO DE ASSIS

CECÍLIA CRUZ VILLARES

RODRIGO AFFONSECA BRESSAN


Nota
A medicina é uma ciência em constante evolução. À medida que novas pesquisas e
a experiência clínica ampliam o nosso conhecimento, são necessárias modificações
no tratamento e na farmacoterapia. Os coautores desta obra consultaram as fontes
consideradas confiáveis, num esforço para oferecer inforn1ações con1pletas e, geral-
n1e,nte, de acordo com os padrões aceitos à época da publicação. Entretanto, tendo
em vista a possibilidade de falha hwnana ou de alterações nas ciências médicas, os
leitores devem confirmar estas informações com outras fontes . Por exemplo, e em
particular, os leitores são aconselhados a conferir a bula de qualquer n1edicamento
que pretendam admüustrar, para se certificar de que a infor1nação co11tida neste
livro está correta e de que não houve alteração na dose recomendada nem nas con-
traindicações para o seu uso. Essa recon1endação é pa1ticularn1ente in1portante em
relação a medicamentos novos ou raramente usados.

A848r Assis, Jorge Cândido de.


Entre a razão e a ilusão [recurso eletrônico] :
desmistificando a esquizofrenia/ Jorge Cândido de Assis,
Cecília Cruz Villares, Rodrigo Affonseca Bressan. - 2. ed. -
Dados eletrônicos. - Porto Alegre: Artmed, 2013.

Editado tan1bé1n co1no livro in1presso em 2013.


ISBN 978-85-8271-007-4

1. Psiquiatria. 2. Esquizofrenia. l. Villares, Cecília Cruz.


2. Bressan, Rod1igo Affonseca.

CDU 616.895.8

Catalogação na publicação: Ana Paula M. Magnus - CRB 10/2052


ENTRE
A

EA
desmistificando a esquizofrenia
segunda edição

JORGE CÂND IDO DE ASSIS


CECÍLIA CRUZ VILLARES
RODRIGO AFFONSECA BRESSAN

Versão impressa
desta obra: 2013

2013
© Artmed Editora Ltda., 2013

Gerente editorial
Letícia Bispo de Lima

Colaboraram nesta edição


Coordenadora editorial
Cláudia Bittencourt
Capa
Tatiana Sperhacke
Ilustrações
Camucada Comunicação Ltda.
Preparação de originais:
Camila Wisnieski Heck
Leitura final:
Antonio Augusto da Roza
Editoração eletrônica:
Armazém Digital® Editoração Eletrônica - Roberto Carlos Moreira Vieira

Reservados todos os direitos de publicação à


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,
E proibida a duplicação ou reprodução deste volume, no todo ou em parte,
sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrônico, mecânico, gravação,
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PRINTED IN BRAZIL
Sobre os autores

Jorge Cândido de Assis é portador de esquizofrenia há 28 anos, atual-


mente é vice-presidente da Associação Brasileira de Familiares, Amigos
e Portadores de Esquizofrenia (ABRE). Tem participado e ministrado
aulas no curso
,
de Medicina da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp). E membro do Advisory Group do Movement for Global
Mental Health.
Cecília Cruz Villares é terapeuta ocupacional e terapeuta de família e
mestre em Saúde Mental pela Unifesp, onde trabalha no Programa de
Esquizofrenia (Proesq) e supervisiona alunos do curso de Especiali-
zação em Terapia Ocupacional em Saúde Mental. Participa ativamente,
nos âmbitos nacional e internacional, do estudo e combate ao estigma
relacionado aos transtornos mentais. Foi vice-presidente da ABRE
(2006-2008).
Rodrigo Affonseca Bressan é médico psiquiatra e Ph.D. em Neuro-
ciências pelo Institute of Psychiatry, University of London, onde é
professor visitante; é professor adjunto livre-docente do Departamento
de Psiquiatra da Unifesp, onde é membro do Proesq ,
e coordenador do
Laboratório de Neurociências Clínicas (LiNC). E pesquisador do Insti-
tuto do Cérebro do Instituto de Ensino e Pesquisa Albert Einstein
(InCe-IIEP AE) e membro da ABRE.
Agradecimentos

Este livro é fruto do que aprendemos com as pessoas com esquizo-


frenia e seus familiares ao longo de anos de convivência em atividades
diversas, na clínica e na vida. Por meio de suas histórias e batalhas, do
sofrimento e da superação, essas pessoas nos ensinaram e nos insti-
garam a escrever, procurando transmitir tais vivências em uma
linguagem muito próxima das conversas que tivemos durante esses
anos. A todos os familiares e pacientes do Programa de Esquizofrenia
(Proesq) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), à Associação
Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Esquizofrenia (ABRE)
e aos associados e colaboradores da ABRE, o nosso muito obrigado
pela oportunidade de conhecer, partilhar e aprender por meio desse
rico diálogo.
'
A Simone Rocha e ao Christian Schneider, por acreditarem desde o
início em nossa proposta e pelo incentivo e apoio ao projeto ao longo
de quase dois anos de trabalho conjunto.
Ao Dr. Itiro Shirakawa e ao Nilton Vargas, por compartilharem conosco
o sonho de construir um mundo melhor para os portadores de esqui-
zofrenia e seus familiares.
Aos colegas e amigos Ary Gadelha, Cea1ia Attux, Cristiano Noto, Elaine
Vieira, Fernanda A. Pimentel, Fernando S. Lacaz, Fernando Paz, José
Alberto Orsi, Larissa C. Martini, Luiz Cláudio Freire, Maria Eduarda
Caruso, Marlene Apolinário, Miguel R. Jorge, Marcelo Q. Hoexter (o
"Dr. Marcelo"), Romilda Viana Lima, Stella M. Malta, Vânia Bressan,
Wagner Barbosa de Souza e Wulf Dittmar, pelas contribuições, pela
confiança e pela parceria no trabalho.
Prefácio da
primeira edição

A condição humana não é linear e racional como queremos crer, mas


se dá na convivência entre aspectos lógico-racionais e a dimensão
subjetiva e atemporal do mundo mental. O balanço entre esses aspectos
e dimensões permite que mantenhamos determinada "sanidade
mental", que possibilita que exerçamos nossos papéis sociais com cria-
tividade. Tememos a loucura, pois ela está muito perto de nós - todos
passamos por situações emocionais ou físicas que nos colocam em
contato com os limites da sanidade. Mas, quando certas dimensões do
mundo mental, tais corno pensamentos e percepções, ganham prepon-
derância e subjugam a racionalidade, limitando, inclusive, a subjetivi-
dade, entramos no campo da loucura denominada psicose.
Neste livro, abordamos a experiência da esquizofrenia, uma forma de
psicose em que aspectos subjetivos, tais corno fenômenos alucinatórios
e delirantes, tendem a distorcer a compreensão da realidade. Que
fenômenos são esses? Até que ponto eles se restringem às pessoas que
vivenciam a psicose? A experiência da esquizofrenia é extremamente
complexa e de difícil compreensão tanto para quem a vivencia quanto
para quem a acompanha de fora. É também assustadora, uma vez que
significa prejuízo ou perda da capacidade de autogestão e do livre-
-arbítrio. Corno os estados psicóticos oscilam em intensidade ao longo
do tempo, as pessoas afetadas convivem com estados de sanidade e
insanidade. Vivem, literalmente, entre a razão e a ilusão.
A experiência de enlouquecer em consequência do efeito agudo de
drogas psicotrópicas tem sido muito explorada em diversos textos e
X • Prefácio da primeira edição

livros. Este livro vai além, ao apresentar aspectos de uma condição


humana singular, a esquizofrenia, por meio de narrativas dos percursos
de personagens que convivem com a doença. Procura mostrar também
como um "outro entendimento das coisas" e a convivência com a
loucura podem levar a grandes aprendizados, tanto do ponto de vista
pessoal quanto compreensivo das pessoas que nos cercam.
O processo de enlouquecimento que ocorre na esquizofrenia é um
constante desafio à superação e à procura do melhor meio de se
promover a aceitação entre os diferentes pontos de vista. Aceitar não
implica necessariamente concordar, mas entender que a visão dife-
rente do outro faz sentido para ele e, com base nisso, construir um
território comum de compreensão.
Entre a razão e a ilusão é um convite para você construir um entendi-
mento sobre o que é o processo de enlouquecer, ficar psicótico e
conviver com essa condição ao longo da vida. Assim, os temas são
apresentados a partir de quatro pontos de vista principais:

a) de quem vivencia o processo;


b) de quem convive com pessoas que vivenciam o processo (familiares
e comunidade);
c) de quem trata das pessoas que passam por esse processo (profissio-
nais da saúde mental);
d) de quem estuda a esquizofrenia (pesquisadores e neurocientistas).

O livro utiliza linguagem simples e muitas ilustrações sobre assuntos


relacionados à esquizofrenia. Descreve aspectos da vida das pessoas
que têm esquizofrenia e de seus familiares, desde os primeiros
sintomas, o caminho até o diagnóstico, uma compreensão do que é a
doença, a busca de ajuda, o relacionamento com os profissionais da
saúde e estratégias de tratamento. Oferece ideias de como lidar com
situações e sentimentos que dizem respeito ao que há de mais profundo
em cada um de nós para a manutenção de um equilíbrio possível e
saudável. O livro trata de forma realista os caminhos da recuperação,
com o objetivo de oferecer entendimento e esperança.
Prefácio à
segunda edição

Nesta segunda edição, modificamos o título do livro de Entre a razão e


a ilusão: desmi.stificando a loucura para Entre a razão e a ilusão: desmi.s-
tificando a esquizofrenia. Seguimos a escolha da edição em português
de Portugal, pois "loucura" parece ter um estigma tão intenso que difi-
culta a leitura do livro.
Nesta edição, acrescentamos um novo capítulo, que vem ao encontro
de um pedido dos leitores. Este novo capítulo, o terceiro, procura
desmistificar a esquizofrenia a partir do entendimento de sua neuro-
biologia. Apresentamos de forma didática os principais aspectos cien-
tíficos, pois entendemos que sua compreensão contribui consideravel-
mente para que as pessoas com esquizofrenia e suas famílias possam
entender melhor a doença e utilizar melhor os recursos terapêuticos
que lhes são oferecidos.
Incluímos também um glossário com alguns termos utilizados pelos
profissionais da saúde e atualizamos o apêndice com links para sites,
serviços, projetos e associações.
Esperamos que você, leitor, encontre nesta segunda edição informa-
ções úteis e uma visão da esquizofrenia como uma experiência que
pode ser compreendida e para a qual há caminhos para superaç.ão.
Sumário

Introdução...........•.........................-··························································-················ 17
1. Aexperiência de adoecer .....•........•......................••..................•......................... 25
Oque e, esqu1zo
. frenia
. ?................................................................................................. 25
Diferentes vi sõe.s ........................................................................................................27
Tudo tem um começo ..................................................................................................30
Um caminho que começa a mudar ............................................................................. 32
Ooutro caminho .........................................................................................................35
Percebendo o mundo de outra maneira ....................................................................... 37
Outro entendimento das coisas .................................................................................. 41
Arealidade pode ser bem confusa .............................................................................. 43
Cores desbotadas ....................................................................................................... 46
Energia perdida .......................................................................................................... 48
Acognição ea esquizofrenia ••••• ••• •••••• •••• •••••••••••••••••••••••••••••••••••• •••• ••••••• •••• ••••• ••••• ••••••• 51
Caminhos e possibi Iidades .........................................................................................52
Primeiro passo ............................................................................................................55
2. Ocaminho até o diagnóstico .............................................................._................. 57
Como entender o desconhecido? ............................................................................... .. 57
Doença ou mal e.spiritual? ......................................................................................... .59
Chegando até a ajuda ... ················ ··· ········· ······································ ····· ···· ·············· ···· 62
Mas... qual é a doença? ..............................................................................................64
Uma convivência nem sempre fácil ............................................................................ 67
Início da melhora ......................................................................................................... 70
Isso é loucura? .............................................................................................................73
Caminho até o diagnóstico ......................................................................................... 75
Tem cura? ....................................................................................................................78
Um aprendizado necessário ....................................................................................... .80
3. Que doença é esta? .......................................................................•...•................. 83
Oentendimento científico diminui o estigma da doença ............................................ 83
Epidemiologia e impacto na sociedade ....................................................................... 85
Qual o órgão afetado na esquizofrenia? ...................................................................... 88

XIV • Sumário

Genética e esquizofrenia ............................................................................................. 89


Alteração do funcionamento cerebral - dopa mina ..................................................... 91
Tratamento da alteração cerebral - antipsicótico ...................................................... 94
Neuro progressão ......................................................................................................... 96
Esperança realista - neuroplasticidade ..................................................................... 98
4. Tratamento ························~··························································~·-·················· 101
Aspectos gerais ....................................................................................................... .101
Outro caminho, a volta ......................... ' .................................................................. .102
Um erro muito comum ............................................................................................. .105
Prevenção de recaída ............................................................................................... .108
Outra forma de cuidado ..............······················································ ....................... .110
Desmistificando a internação ................................................................................... 113
Quando a pessoa não acha que está doente ............................................................. 117
Quando os medicamentos não funcionam ................................................................119
Depois da crise aguda .............................................................................................. 121
Oque dizem os especialistas .................................................................................... 124
Reabilitação ............................................................................................................. 130
Recuperação .............................................................................................................135
5. Estigma - como as pessoas se sentem............................................................ 137
Rótulos .....................................................................................................................137
Desconhecimento, onde tudo começa ... .................................................................... 140
Aceitação das limitações .......................................................................................... 142
Loucura, uma palavra que pode machucar ............................................................... 145
Uma consciência difícil ............................................................................................ 147
Discriminação e ocultação ........................................................................................ 149
.f, .
Relações sociais d1 1ce1s ...........................................................................................151
Isolamento .......................................... . 154
Oportunidades perdidas .......................................................................................... .157
Esquizofrenia e uso de drogas •••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••• 159
Enfrentando o estigma 161
Dois aspectos do estigma ........................................................................................ .163
Sumário • XV

6. Convívio familiar ............................................................................................... 167


Família .....................................................................................................................167
As questões de cada um ....................................... ...........' ........................................169
Qua 1 e, a f,ormu 1a magica
, . 7
...................................... 171
Acrise aguda de esquizofrenia desorienta a todos .................................... ' ..............174
Lidando com um momento de crise .......................................................................... 176
Quando a pessoa nega-se a se tratar 178
Prevenindo recaídas .................................................................................................180
Criando um ambiente acolhedor ...................................................................." .........183
Encontrando recursos na comunidade ........ .. 185
Incentivando a autonomia ........................................................................................188
Caminhos de superação .................................................................................. .........191
Aprendendo com a convivência .................................................................. ............... 193
7. Recuperação e novas perspectivas ................................................................. 197
Recuperação .............................................................................................................197
Recuperação de Carlos .................................................................................. 197
Recuperação de Francisca ........................................................................................199
Recuperação de Gabriel ............................................................................................201
Medicamentos: novas perspectivas .......................................................................... 205
Juntos, ocaminho fica mais fácil ............................................................................. 206
Participação e defesa de direitos .............................................................................. 208
Ofuturo - detecção precoce ..................................................................................... 210
Perspectivas .............................................................................................................211
Esperança realista ....................................................................................................212

Glossário .................................................................................................................. 215


Apêndice ................................................................................................................... 225
Introdução

Entendemos que há quatro visões distintas no contexto em que as


pessoas com esquizofrenia estão inseridas, a da pessoa que tem esqui-
zofrenia, a de seus
,
familiares, a dos profissionais e a da comunidade
onde se vive. E importante frisar que cada uma delas é correta com
base no próprio ponto de vista. Muitas das incompreensões a respeito
da esquizofrenia ocorrem em razão da dificuldade de aproximar as
vivências e as explicações dessas quatro visões. Apresentaremos, neste
livro, como cada uma dessas perspectivas pode se constituir, com a
finalidade de promover a aproximação e o diálogo entre elas.
Propomos que nossos leitores acompanhem, nos dois primeiros capí-
tulos, a trajetória de um personagem, que chamaremos de Gabriel.
Essa trajetória ilustrará a experiência da esquizofrenia nas várias
visões. Nos capítulos seguintes surgirão outros personagens. Gabriel e
esses outros personagens foram criados com base em experiências de
várias pessoas com esquizofrenia que conhecemos há anos e no que
elas têm em comum. Procuraremos mostrar ao longo do livro que:

• A pessoa que adoece, ao passar por uma crise aguda, acredita nos
pensamentos e nas percepções que tem. Mais do que acreditar,
sente
,
que eles estão acontecendo. Não é uma experiência comum.
E uma experiência diferente, na qual a pessoa vive momentos muito
difíceis de confusão, perplexidade e desorientação.
• Quando uma pessoa tem esquizofrenia, toda a família é afetada. Os
familiares invariavelmente querem o melhor para a pessoa, mas
veem-se envolvidos em situações muito difíceis e perguntam-se: O
que fazer? Qual o melhor caminho? Como conviver com a pessoa
com esquizofrenia? Não existem respostas prontas para essas
18 • Assis, Villares & Bressan

perguntas, mas esperamos apontar caminhos possíveis diante das


questões vividas pelos familiares.
• Os profissionais (psiquiatras, psicólogos, terapeutas ocupacionais,
assistentes sociais e enfermeiros) procuram ajudar a pessoa com
esquizofrenia e seus familiares a aprender a lidar com a doença e a
restabelecer sua saúde. Cada profissional, em sua área de atuação,
tem um ponto de vista diferente. Em conjunto, procuram apoiar uns
aos outros, de forma que os resultados sejam os melhores possíveis.

Neste livro, a comunidade é composta por pessoas com quem a família


e a pessoa com esquizofrenia têm uma relação próxima e cotidiana.
Nas grandes cidades, ela se define bem pelo bairro, e nas cidades
menores, por seus habitantes. Cada comunidade tem sua maneira
própria de funcionar e influencia diretamente a forma como a pessoa
com esquizofrenia e seus familiares se relacionam e como são acolhidos.
A comunidade tem seus pontos de vista, que também têm um papel
importante, influenciando a visão que a família tem da doença.
A vivência da esquizofrenia pela pessoa e pelos familiares leva à neces-
sidade de muita compreensão e busca de apoio dos profissionais da
saúde. Ela promove grandes mudanças, que exigem um novo aprendi-
zado nos relacionamentos familiares, de maneira que a pessoa com
esquizofrenia tenha o acolhimento necessário para redesenhar seu
caminho de vida. Também é preciso aprender a viver na comunidade,
pois a experiência mostra que uma postura de aceitação da doença e
de não se envergonhar ou se isolar contribui muito para que as pessoas
da comunidade compreendam que a esquizofrenia é uma experiência
humana como tantas outras. Isso contribui para diminuir a discrimi-
nação e para que se estabeleçam relacionamentos sociais que tornam
a vida melhor.
,
E possível abordar a esquizofrenia e as práticas de tratamento de um
ponto de vista científico, pois a esquizofrenia é a doença mais estu-
dada na psiquiatria. Também é possível falar da esquizofrenia do ponto
de vista da experiência pessoal, pois existem hoje muitos livros e textos
autobiográficos em sites da internet. Nosso objetivo é preencher a
lacuna que existe entre essas duas formas de abordar a doença. Assim,
Entre a razão e a ilusão 19

cuidamos tanto de informar com correção científica como de falar a


partir da vivência da esquizofrenia; para iniciar, apresentamos as prin-
cipais questões que nos guiaram na construção deste livro.
Como aparece a esquizofrenia? Quais são as dificuldades para a pessoa
perceber que o que ela está vivendo é uma doença? Será que essa
percepção leva a uma aceitação ou, em vez disso, reforça a negação?
Como a família lida com a situação de um de seus membros ter esqui-
zofrenia? Essa forma de lidar pode mudar ao longo do tempo? A
farm1ia pode ajudar a pessoa que tem esquizofrenia?
O que fazer? Como agir? O que pode e o que deve ser evitado no rela-
cionamento com uma pessoa com esquizofrenia? O que esperar dos
tratamentos? Por que não existe um exame laboratorial que determina
a presença da doença? Se não existe tal exame, como o médico sabe
que a pessoa tem esquizofrenia? Como ele prescreve os medicamentos?
Por que os medicamentos são importantes? Existem outros trata-
mentos para a esquizofrenia, além do tratamento médico? Como esses
tratamentos "funcionam"? Eles substituem a necessidade de medica-
mentos? As famílias podem se beneficiar de alguma forma com o trata-
mento?
Quando a internação é necessária? Como é a internação? Quais são os
profissionais envolvidos no cuidado da pessoa com esquizofrenia?
Como a família deve lidar com a possibilidade de internação?
A esquizofrenia é uma doença do cérebro ou da mente? Pode ser as
duas coisas? O cérebro pode adoecer? O que acontece no cérebro da
pessoa com esquizofrenia? E a mente, ela pode adoecer? O que se
passa na mente da pessoa com esquizofrenia?
A esquizofrenia muda com o tempo? Como acontece a recuperação na
esquizofrenia? Por quanto tempo os tratamentos são necessários? Por
que é possível ter esperança?
Essas são algumas das questões abordadas neste livro. Percebemos,
por meio da prática, que a compreensão de questões que afetam dire-
tamente a maneira como vivemos e vemos a vida é o tipo de entendi-
mento mais difícil, pois só ocorre quando conseguimos promover
mudanças em nossa forma de ser, dando espaço para o novo. Tal
20 • Assis, Villares & Bressan

processo começa com o reconhecimento de nossas experiências naquilo


que o livro transmite, uma vez que ele não foi escrito para dizer o que
é o certo ou o errado. Esse é o primeiro passo. O próximo passo do
processo é pensar sobre a própria vida e as possibilidades que ela
oferece e, então, caminhar em direção às mudanças. Nesse percurso,
que é necessariamente individual, cada um tem de achar seu jeito de
caminhar.
Entre a razão e a ilusão foi organizado em sete capítulos; cada um trata
de um tópico que consideramos importante para a compreensão e um
bom convívio com a esquizofrenia. Eles podem ser lidos de forma inde-
pendente, mas consideramos que a leitura desde o começo até o final
propiciará uma visão mais completa da abordagem dada ao tema.
Segue uma apresentação breve do conteúdo de cada capítulo.
No primeiro capítulo, apresentamos o que é a esquizofrenia, como se
dá seu aparecimento e como ela evolui, levando à necessidade de um
atendimento psiquiátrico e de saúde mental. Nesse capítulo, é possível
entender; por intermédio de vivências dos personagens criados -
Gabriel e sua família - quais são os principais sintomas da esquizo-
frenia quando a pessoa vive uma crise da doença. Não se trata de uma
descrição científica rigorosa, pois isso tornaria o assunto incompreen-
sível para quem não é especialista. Ainda assim, a descrição segue um
enquadramento científico, mas é apresentada por meio das vivências e
do contexto em que a pessoa com esquizofrenia se envolve. Nosso
objetivo é mostrar que a esquizofrenia é uma doença e que pode ser
entendida, apesar das incompreensões que acarreta.
No segundo capítulo, apresentamos as dificuldades
,
de entendimento e
aceitação da doença e seus tratamentos. E pela superação dessas difi-
culdades que é possível sustentar a fase inicial do tratamento até se
estabelecer um diagnóstico seguro da esquizofrenia (diagnóstico dife-
rencial). Apresentamos alguns dos fatores que levam a um atraso no
começo do tratamento e exemplos de caminhos que as pessoas podem
seguir para superar esses fatores. Para se diagnosticar a esquizofrenia,
é preciso um tempo de tratamento consistente, a fim de eliminar a
possibilidade de a pessoa ter outros tipos de doença. Mostramos que,
com os tratamentos e medicamentos corretos, a pessoa pode sair da
Entre a razão e a ilusão 21

crise aguda se ela e sua família receberem as orientações para lidar


com o cuidado que a esquizofrenia exige para ter seus sintomas contro-
lados.
O terceiro capítulo apresenta o que é a doença do ponto de vista cien-
tífico e dados objetivos que permitem desmistificar vários aspectos
relacionados à esquizofrenia, incluindo sua prevalência e a sobrecarga
para os indivíduos, as famílias e a sociedade; os mecanismos cerebrais
associados aos sintomas (tais como alucinações, delírio e alterações da
cognição) ; os mecanismos de ação dos medicamentos; as causas da
doença (ambientais e genéticas); as repercussões cerebrais da evolução
da doença (neuroprogressão); e as maneiras possíveis de atenuar essa
evolução a partir da neuroplasticidade.
O quarto capítulo mostra como é possível redesenhar o caminho de
vida, mantendo os cuidados necessários com a esquizofrenia. Entre-
tanto, mostra um erro muito comum em todas as doenças que, como a
esquizofrenia, exigem tratamento por tempo indeterminado: achar
que se está curado e abandonar o tratamento. Nosso personagem terá
uma recaída com a doença e, em razão das condições em que isso
acontece, precisará ser internado. Mostraremos como é uma inter-
nação que segue os procedimentos atuais de tratamento. Apresenta-
remos outros dois personagens que vivem situações diferentes da de
Gabriel, mas muito comuns na esquizofrenia: a pessoa que não aceita
o tratamento, representada pela história de Francisca, e a pessoa que
não responde bem à medicação, representada pela história de Carlos.
Seguiremos a história de Gabriel ao sair da internação, e mostraremos
como ele retoma a vida, o processo de reabilitação e as perdas que
serão, em parte, superadas com o tempo. Nesse capítulo, apresenta-
remos também informações importantes sobre os medicamentos, seus
efeitos e quais são eles, inclusive com as doses comumente utilizadas.
O quinto capítulo trata de um assunto que tem grande influência na
vida das pessoas que têm esquizofrenia e de seus familiares: o estigma.
A forma que escolhemos para abordar esse assunto foi mostrar como
as pessoas se sentem em diversas situações. Apresentaremos também
maneiras de lidar com a rotulação e a discriminação que o estigma
acarreta. Nosso personagem Gabriel procura as drogas como forma de
22 • Assis, Villares & Bressan

ser aceito, o que exigirá u.m a ação por parte da família e dos profissio-
nais da saúde. Mostramos que há maneiras de lidar com situações
estigmatizantes e que é preciso não se deixar ser vítima da incom-
preensão da sociedade em relação aos transtornos mentais, em espe-
cial à esquizofrenia.
O sexto capítulo tem como tema o convívio familiar, a relação dos
familiares entre si, enfatizando que a pessoa com esquizofrenia é parte
dessas relações. Esse assunto é muito mais vasto do que o espaço deste
livro. Assim, escolhemos alguns temas importantes que podem contri-
buir para que a pessoa com esquizofrenia e sua família pensem em
maneiras de construir juntos, formas boas de convivência. Aborda-
remos, por meio dos personagens, questões que envolvem a convi-
vência a partir de situações reais que conhecemos e também de cami-
nhos de resolução de problemas. Mostraremos a importância de a
família procurar resolver os problemas, bem como o valor de se utilizar
os recursos da comunidade para estabelecer uma rede de relaciona-
mentos gratificantes e buscar que a doença não ocupe um lugar central
nas relações, de modo que todos possam viver com qualidade e cuidar
somente das questões da esquizofrenia em relação às exigências que
ela acarreta. Isso é o que entendemos como caminhos de superação.
O sétimo capítulo, que fecha o livro, apresenta a recuperação e novas
perspectivas. Apresentamos informações que permitem um entendi-
mento da doença com base na ciência, pois acreditamos que essas
informações ajudam a desfazer concepções errôneas sobre a doença e
sobre a psiquiatria. Deixamos elas para o último capítulo, pois consi-
deramos que é preciso entender o processo do adoecimento e da busca
de tratamento de uma maneira vivencial para que essas informações
sejam mais bem aproveitadas. A experiência mostra que a recuperação
na esquizofrenia precisa ser entendida como o resultado de um
processo ao longo do tempo, mantendo os cuidados necessários para
que a doença fique controlada, em que a pessoa e sua família vão
aprendendo a lidar com as situações e a redesenhar caminhos que
permitam uma vida com qualidade. Isso é ilustrado com a história de
recuperação de cada um dos personagens, com base em histórias reais
que conhecemos. Abordaremos a importância de participar de associa-
Entre a razão e a ilusão 23

ções e grupos de apoio a fim de sair do isolamento e trocar experiên-


cias comuns, bem como de se organizar para a defesa de direitos. Por
fim, falamos das pesquisas mais recentes sobre a detecção precoce da
esquizofrenia que se encaminham para, em um futuro próximo, possi-
bilitar a prevenção da doença.
Esperamos que a leitura deste livro apresente informações úteis e traga
novas ideias para o cuidado com a esquizofrenia e um convívio com
qualidade. Esta foi a motivação central do nosso trabalho: contribuir
para uma vida melhor para as pessoas que têm esquizofrenia e seus
familiares e apresentar essa doença como uma condição humana que
pode ser compreendida e com a qual é possível uma boa convivência.
Aexperiência
de adoecer

Começamos a resposta para esta pergunta com a consideração de que


tecnicamente é muito difícil ou até impossível responder perguntas do
tipo "o que é?". Quando respondemos a esse tipo de pergunta, invaria-
velmente formulamos uma definição, deixando de lado várias caracte-
rísticas e experiências de que a definição não dá conta. Uma forma de
contornar essa dificuldade é tentar, da melhor maneira possível,
responder à pergunta do tipo ''como acontece?", aí podemos delinear
,
uma caracterização que abre espaço para a reflexão de quem lê. E isso
que começaremos a fazer agora e que será desenvolvido por todo o
livro. Aqui, fazemos o convite para o começo de uma conversa que nos
leve a entendimentos positivos sobre a esquizofrenia.
Este capítulo aborda a experiência de enlouquecer. O primeiro
parágrafo do prefácio apresenta, em poucas palavras, o que tenta-
remos apresentar mais detalhadamente ao longo deste capítulo.
"Loucura" é um termo usado há séculos para qualificar atitudes e
comportamentos que não correspondem ao que é esperado e natural
e, por não fazerem sentido ou não serem aceitos na comunidade,
geram sofrimento para quem os vive e medo para quem não os compre-
ende. Nesse sentido, a esquizofrenia, como ficará claro a seguir, repre-
senta bem o que as pessoas entendem por loucura - isso justifica o
título para este primeiro capítulo.
Nosso objetivo é mudar a visão que as pessoas têm da loucura como
algo que é incompreensível e causa medo. Mostraremos que a esquizo-
26 • Assis, Villares & Bressan

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frenia é uma experiência humana possível de ser compreendida e,


mais importante, poderemos mostrar ao longo do livro que ela é uma
doença, tem tratamento e que a recuperação é possível. Algumas
pessoas poderão pensar que estamos sendo idealistas, que não conhe-
cemos a realidade das pessoas que têm esquizofrenia. Entretanto, foi a
partir do conhecimento e da atuação com pessoas com esquizofrenia
que delineamos, neste livro, várias compreensões que podem contri-
buir na prática para a melhora e a recuperação. Não escrevemos sobre
o conhecimento teórico, que é aquele que se busca dominar intelec-
tualmente para resolver os problemas; procuramos apresentar um
caminho para construir entendimentos e promover mudanças, tanto
para a pessoa que tem esquizofrenia como para sua família.
,
E preciso caracterizar e explicar o que queremos dizer quando usamos o
termo "esquizofrenia", que é tanto uma doença que afeta principal-
mente o funcionamento do cérebro quanto uma experiência muito dife-
rente e difícil da realidade. Iremos esclarecer ambos os aspectos ao
longo do livro. Para iniciar, apresentaremos algumas informações que
possibilitam um primeiro entendimento da natureza da esquizofrenia.
Entre a razão e a ilusão 27

A esquizofrenia abordada como doença é o resultado de vários fatores


que se inter-relacionam ao longo da história da pessoa. Entre os fatores
conhecidos, temos: problemas durante a gestação e/ou o parto;
problemas genéticos; problemas no amadurecimento do cérebro ao
longo da vida; fatores estressores além do que a pessoa pode suportar;
entre outros. Quando esse conjunto de fatores atua em uma determi-
nada condição e período da vida, a pessoa pode desenvolver esquizo-
frenia. Sabe-se, hoje, com certeza, que um dos efeitos que promovem
as alterações de comportamento da pessoa com esquizofrenia é um
aumento da função da dopamina, uma das muitas substâncias químicas
que fazem a transmissão de informação no cérebro. Todos os medica-
mentos para controlar a esquizofrenia (antipsicóticos) atuam regu-
lando a função da dopamina. A esquizofrenia é, portanto, uma doença
complexa, mas pode ser controlada, de forma que a pessoa que a porta
e seus familiares possam construir uma vida com qualidade. O trata-
mento mais recomendado da esquizofrenia demanda uma equipe com
vários profissionais: psiquiatra, enfermeiro, psicólogo, terapeuta
ocupacional e assistente social. Mais informações sobre as causas
multifatoriais da esquizofrenia serão apresentadas ao longo do livro e
principalmente no Capítulo 3.
A esquizofrenia abordada como uma experiência diferente de realidade
será bem esclarecida durante este capítulo, por meio das vivências do
nosso personagem Gabriel e de sua família. Aqui, vem o convite para
o próximo item deste capítulo, que é o diálogo entre as diferentes
visões que cada um tem sobre a esquizofrenia.

Diferentes visões
A visão que cada um tem sobre um assunto ou um tipo de experiência
está relacionada à maneira como sua história foi vivida. Não existe
uma única verdade que nos dê garantias sobre como é a realidade. Até
na matemática, a mais exata das ciências, existem diferentes visões
sobre seus princípios. Como dissemos no início da Introdução, no
contexto em que as pessoas com esquizofrenia estão inseridas, enten-
demos que há quatro visões distintas: a da pessoa que tem esquizo-
28 • Assis, Villares & Bressan

frenia, a de seus
,
familiares, a dos profissionais e a da comunidade
onde se vive. E importante frisar que cada uma delas é correta com
base no próprio ponto de vista. Procuraremos, aqui, mostrar um pouco
de cada uma dessas visões.
Nosso objetivo é apresentar algumas considerações que facilitem o
diálogo entre essas visões. O diálogo legítimo só é viável quando tem
origem na aceitação da visão do outro, mesmo que esta seja diferente
da sua, promovendo um entendimento compartilhado. Certa vez, uma
pessoa com esquizofrenia nos procurou pedindo um livrinho que publi-
camos sobre o assunto, para deixar com o pai para que ele entendesse
que ela tinha uma doença, e que não era preguiçosa como ele dizia.
Não sabemos o resultado dessa iniciativa, mas de uma coisa temos
certeza: se essa pessoa não conversou abertamente com o pai, dificil-
mente ele mudou sua visão.
A pessoa que tem esquizofrenia vive diferentes momentos com a doença.
Um deles é a crise aguda, que pode durar de semanas a alguns meses;
nesse caso, o diálogo exigirá das outras pessoas uma aceitação voltada
para promover o cuidado; nesse momento, a pessoa está passando por
uma situação muito difícil e desorientadora. O diálogo, nessas condi-
ções, pode servir mais para estabelecer laços de confiança do que para
promover qualquer tipo de convencimento. Outro momento é a fase de
estabilização, que pode durar anos, se a pessoa com esquizofrenia seguir
os tratamentos. Nesse caso, o diálogo com base na aceitação pode servir
para se estabelecer uma ponte entre as questões que a pessoa vive e as
visões de outras pessoas que convivem com ela, diminuindo o isola-
mento e promovendo um tipo de relacionamento com qualidade mais
satisfatória, que pode melhorar com o tempo.
Os familiares normalmente ficam sem saber como, agir quando um
membro da família adoece com a esquizofrenia. E uma experiência
nova e que traz muitas dificuldades, e os familiares podem ficar entre
dois extremos: o conformismo, que leva a não procurar caminhos para
melhorar os relacionamentos, ou a não aceitação, que leva a querer
que as coisas se resolvam de uma hora para outra, seja mudando o
medicamento, confiando em apenas um tipo de profissional da saúde
ou não aceitando a doença.
Entre a razão e a ilusão 29

,
E necessário encontrar um caminho mediano: entender a presença da
doença sem se conformar "que é assim mesmo" e procurar sempre
encontrar a melhor solução para cada situação. Uma das características
da esquizofrenia é que ela é uma doença crônica, isto é, exige cuidados
ao longo do tempo. Os resultados, muitas vezes, são mais lentos do que
gostaríamos, mas as melhoras só são possíveis com a busca constante e
cotidiana de resolução de problemas e de exercício de diálogo.
Os profissionais da saúde têm formação para promover o cuidado e
ajudar a pessoa com esquizofrenia e seus familiares a lidar com os
problemas decorrentes da doença. Cada tipo de profissional
,
tem uma
formação mais direcionada para um tipo de atuação. E sempre muito
proveitoso para o paciente quando eles dialogam entre si, buscando as
melhores soluções. Na prática, esse diálogo nem sempre é o ideal, por
vários motivos, mas, dentro do possível, ele sempre contribui para um
atendimento mais integrado. Outro aspecto importante é o diálogo
dos profissionais de saúde com o paciente e sua família, o qual, ao
promover a formação de vínculos - um tipo de relação de confiança e
atenção -, permite lidar com as questões levadas para os tratamentos
da melhor maneira possível.
30 • Assis, Villares & Bressan

Cada comunidade tem sua forma própria de funcionar. Quando as


pessoas têm acesso às informações corretas sobre os transtornos
mentais, é possível estabelecerem-se relações de solidariedade, dimi-
nuindo o isolamento dos pacientes por meio da redução do precon-
ceito e também desfazendo o medo que as pessoas alimentam por
desconhecimento. Informar e educar são missões da Associação Brasi-
leira de Familiares, Amigos e Portadores de Esquizofrenia (ABRE) .
Abordaremos esse assunto com mais detalhes nos Capítulos 4 e 5.
Vejamos, a seguir, a história de Gabriel, que ilustra bem tudo o que
dissemos até agora.

Judo tem 11m começo


A pessoa com esquizofrenia experimenta a realidade de forma dife-
rente, e tal vivência invariavelmente causa muitos conflitos nos rela-
cionamentos. Procuraremos descrever como esse processo se inicia,
acompanhando como ele se deu na vida de Gabriel. Esse início se dá
bem antes do aparecimento dos sintomas.
Gabriel terminou os estudos e começou a trabalhar. Até então, sua vida
seguia um curso natural. Ele passava pela transição entre o ambiente
escolar e o ambiente de trabalho, agora com mais responsabilidades e
uma rotina mais rígida. Para ele, foi a partir dessas mudanças que
começou a sentir certas dificuldades que antes não percebia.
Ele começa a ter dificuldade de se relacionar com as pessoas no
trabalho. Em casa, seu comportamento começa a mudar, conversa
menos com os irmãos e os pais. Gabriel passa a se isolar e sentir-se
solitário. Aumenta a distância em relação às pessoas, evita sair com os
amigos e não conversa muito quando os parentes vão a sua casa.
Sua diminuição de desempenho e seu gradual isolamento marcam o
começo do aparecimento da esquizofrenia. Isso não quer dizer que
todo jovem que vive uma fase difícil terá a doença, mas a maioria das
pessoas que a desenvolvem relata experiências parecidas com as de
Gabriel antes do aparecimento dos sintomas.
Entre a razão e a ilusão 31

....
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Essa situação começa a se tomar cada vez mais problemática e estres-


sante. Então, Gabriel decide parar de trabalhar e ficar em casa estu-
dando para o vestibular. A família percebe suas dificuldades, mas sempre
encontra uma explicação para o que ele está vivendo. Acredita que se
trata de um período de mudanças, uma fase difícil que ele superará.
Gabriel passa a maior parte do tempo no quarto, estudando. Perde o
interesse até em ver os jogos de futebol de seu time do coração. Tal
comportamento preocupa seus pais, mas eles esperam que, depois do
vestibular, seu filho faça novas amizades e volte a ser a pessoa alegre
e cheia de vida que sempre foi.
A família de Gabriel não é diferente das outras; os filhos adolescentes
normalmente se tornam mais independentes e não compartilham tudo
o que vivem com os pais. A postura dos pais de Gabriel de serem mais
tolerantes e esperar que essa fase do filho se resolva com o tempo é
natural.
Infelizmente, Gabriel não passa no vestibular: Esse fato é vivido por ele
como uma grande derrota e contribui para aumentar seu isolamento e
32 • Assis, Villares & Bressan

sofrimento interior. Longe dos amigos e distante nas relações familiares,


ele não encontra com quem dividir a situação difícil que está vivenciando.
Seus pais conversam com ele, procuram oferecer apoio, dizem que ele
precisa ter paciência e não desistir de seus projetos. Seus irmãos
também procuram conversar com ele, para que não leve tudo tão a
sério, para se distrair mais e entender que o vestibular é importante,
mas que ele estará mais bem preparado para o próximo ano. E.n tre-
tanto, o sofrimento de Gabriel é muito profundo; ele não consegue
e.x pressar o que sente e dividir esse sentimento com outras pessoas. O
que os familiares lhe dizem reforça a sensação de que eles não conse-
guem entender o que se passa em seu mundo interior. A família não
deve se sentir culpada quando uma pessoa desenvolve um transtorno
mental; a postura mais adequada é a de desenvolver recursos nos rela-
cionamentos para ajudá-la.
Cabe notar que muitos jovens passam por fases difíceis como a descrita
no caso de Gabriel e acabam por superar as dificuldades. As pessoas
que têm predisposiç.ã o para a doença (esquizofrenia) têm maior vulne-
rabilidade ao estresse e às decepções ante a vida, e quando eles acon-
tecem, são os elementos que disparam o processo que desencadeia os
sintomas da esquizofrenia.
Mostraremos, no último capítulo, que hoje já existem pesquisas para
identificar situações como a de Gabriel, que são chamadas de alto
risco, e oferecer suporte para o aparecimento da esquizofrenia ou até
evitá-lo, ou tratar a doença logo no início. O futuro dessas pesquisas
aponta para um trabalho de prevenção logo no começo do processo
que desencadeia a doença.

Um caminho que começa a mudar


Antes do surgimento dos sintomas da esquizofrenia, h.á um período
que chamamos de pródromos. Nele, gradativamente, a pessoa vai
mudando a maneira de perceber o mundo a sua volta e o relaciona-
mento com os outros. Pudemos ver que as mudanças na vida de Gabriel
acabaram por resultar em isolamento e dificuldade de dividir com as
Entre a razão e a ilusão 33

pessoas próximas as vivências difíceis que a vida colocou em sua


história. Vejamos como essa situação evolui.
Aos poucos, Gabriel começa a ter percepções diferentes das coisas e
dos acontecimentos que o cercam. Começa a encontrar evidências de
que as atitudes das pessoas se relacionam com ele. Nós, naturalmente,
não damos importância para o que as pessoas falam entre si ou suas
atitudes; isso só acontece quando as pessoas se dirigem a nós. No caso
de Gabriel, ele passa a ficar desconfiado e começa a acreditar que cada
acontecimento a seu redor se relaciona com ele.
Junto a essa desconfiança, Gabriel também começa a perceber o
ambiente de forma diferente. As pessoas, as cores das coisas e os
lugares, assim como os sons que escuta, são sentidos com intensidade
maior. Ele passa a entrar em uma maneira de estar no mundo marcada
por grande perplexidade, que ele não consegue explicar para outras
pessoas. Essas novas percepções o levam a isolar-se ainda mais e
tornam sua experiência diante da vida ainda mais difícil.
34 • Assis, Villares & Bressan
,
E importante lembrar que essas alterações na percepção e no compor-
tamento não são devidas ao jeito de ser de Gabriel; elas não estão sob
seu controle. As alterações estão acontecendo, e ele se vê envolvido na
situação. Essas mudanças estão relacionadas ao desequilíbrio nas subs-
tâncias químicas que são responsáveis pela transmissão de informação
no cérebro, chamadas de neurotransmissores.
Sua família percebe suas dificuldades, e todos se preocupam com ele, com
as mudanças em seu comportamento. Seus pais tentam conversar; saber o
que está acontecendo, aconselham Gabriel a sair daquele isolamento,
procurar sair com os irmãos e amigos. Entretanto, o que Gabriel está
vivenciando é um conflito interior; ele mesmo não tem clareza do que
está se passando, e os conselhos de seus pais não o ajudam muito.
Seus pais e seus irmãos são bem intencionados e tentam ajudá-lo, mas
Gabriel não sabe definir as coisas que está vivenciando; não é um
problema claro para o qual se pode pedir ajuda para resolvê-lo ou um
sentimento que pode melhorar ao desabafar com alguém de confiança.
Trata-se de um conjunto de coisas que Gabriel está sentindo e que não
dá para explicar para outras pessoas, mesmo que sejam os familiares
que oferecem atenção.
As pessoas da comunidade também percebem que o jovem está dife-
rente, mais desconfiado, não conversa como tempos atrás. Entretanto,
as pessoas costumam não dar muita importância aos conhecidos; elas
estão mais preocupadas com suas próprias vidas. Esse retraimento nas
relações sociais é um dos fatores que alimentam o estigma em relação
à doença, porque a distância favorece a manutenção de preconceitos,
que são uma visão negativa e preconcebida das pessoas.
Gabriel continua isolando-se e vai distanciando-se até dos familiares.
Suas percepções estão muito diferentes, e seus pensamentos são,
marcados por uma visão distorcida do que acontece a seu redor. E
importante ressaltar que nosso personagem não tem a noção do que
está lhe acontecendo.
Gabriel se vê envolvido em um caminho que começa a mudar. Ele não
tem recursos internos para lidar com as percepções e impressões que
as situações e os relacionamentos lhe apresentam. Ao mesmo tempo,
Entre a razão e a ilusão 35

as pessoas que o amam, seus familiares, não veem muito resultado nas
tentativas de ajudá-lo a sair dessa situação. Essa é uma fase que deso-
rienta a todos na farru1ia, e a atitude mais comum é acreditar que as
coisas vão melhorar, que a pessoa vai superar a fase ruim que está
vivendo. Entretanto, no caso da esquizofrenia, as coisas são mais
complicadas do que a capacidade de a pessoa e os familiares encon-
trarem uma saída. O ideal seria buscar ajuda de profissionais da saúde,
mas, normalmente, até chegar a esse tipo de ajuda, as pessoas resistem
e mantêm uma esperança de que o problema se resolverá.

Ooutro caminho
A esquizofrenia se apresenta na vida da pessoa como outro caminho
com o qual precisará aprender a conviver. Para muitos, no começo, ela
é uma experiência sedutora, mas que logo se toma assustadora. A
vivência dos sintomas vai formando uma rede de experiências em que
cada sintoma contribui para dar sentido a outros. Somente com tempo
e tratamento a pessoa aprende a conviver com esse caminho. Apresen-
taremos, pela experiência de Gabriel, alguns dos principais sintomas
da esquizofrenia e, sempre que for oportuno, como eles se relacionam
entre si.
Gabriel começa a atribuir significado às percepções diferenciadas que
está vivendo e a sentir que as coisas que acontecem e as atitudes das
pessoas realmente se relacionam com ele. Essa é uma experiência
muito difícil, e a forma de dar sentido para ela é por pensamentos que
a justifiquem. Seus pensamentos às vezes se confundem, e ele não
consegue interpretar de forma correta o que as pessoas lhe falam. Ao
mesmo tempo, as percepções dos sentidos apresentam uma realidade
completamente diferente, marcada por sensações também diferentes.
Gabriel percebe os sons de maneira mais intensa, até que começa a
ouvir vozes. Os odores e gostos dos alimentos não são mais os mesmos.
Seu comportamento muda: Gabriel passa a ter atitudes que fazem
sentido para ele, mas que para os familiares são muito estranhas.
Nosso personagem está vivendo um período de crise no processo da
esquizofrenia, tecnicamente conhecido como episódio psicótico agudo.
36 • Assis, Villares & Bressan

Infelizmente, existe grande desinformação acerca dos transtornos


mentais e em especial da esquizofrenia. As pessoas normalmente não
associam as mudanças marcantes do comportamento do outro com
uma doença que precisa de tratamento, desconhecem os recursos de
sua comunidade onde possam levar a pessoa para uma avaliação, e,
muitas vezes, o medo e o preconceito em relação, aos tratamentos
retardam a chegada a uma ajuda profissional. E o que acontecerá no
caso de Gabriel.
Em um episódio psicótico agudo, a pessoa pode sofrer uma série de
perdas; por isso, é importante procurar ajuda médica. O fato de ela acre-
ditar nas experiências que está vivendo e de ter a capacidade crítica
obscurecida pelos sintomas causa perdas nos relacionamentos e perdas
difíceis de recuperar na vida interior. Relacionamentos importantes e
que servem de referência para a pessoa, muitas vezes, quebram-se de
maneira que as situações criadas dificilmente são superadas. As vivên-
cias internas na crise são tão reais, assustadoras e profundas que podem
levar muito tempo para serem compreendidas e causar desajuste social
e perda de autoestima, ambos difíceis de serem superados.
Entre a razão e a ilusão 37

As mudanças que Gabriel vive causam estranheza nos familiares, e isso


leva a conflitos nos relacionamentos. Para os familiares, é como se ele
estivesse fora da realidade; suas atitudes não fazem sentido diante de
situações cotidianas. Esse período é marcado por um estremecimento
nas relações, pois as pessoas reagem ao comportamento de Gabriel de
acordo com as atitudes estranhas.
Somente quando a família não consegue mais lidar com ele é que
procura ajuda de um médico, e este recomenda acompanhamento
psiquiátrico. Esse será o começo de uma longa jornada até chegar à
~
recuperaçao.
O outro caminho que a esquizofrenia impõe à pessoa tem seu início
marcado por grandes dificuldades, tanto em seu mundo interior
quanto no relacionamento com as pessoas. Como pudemos ver, esse
caminho tem suas raízes em mudanças que envolvem a vida da pessoa
como um todo.
As pessoas da comunidade que apenas olham para as ações do portador
de esquizofrenia quando em crise rotulam-no de louco. Ao mesmo
tempo que essa pessoa causa estranheza, também gera medo. Assim, a
comunidade se afasta dela, o que contribui para seu isolamento.
A seguir, entenderemos melhor o que se passa com Gabriel e também
os principais sintomas da esquizofrenia.

Percebendo om11ndo de outra maneira


Existe uma relação de influência mútua entre o que a pessoa percebe,
pensa e sente. Entretanto, para facilitar o entendimento, abordaremos
separadamente cada uma das faces da vivência interior. Aqui, trata-
remos das percepções dos sentidos e da forma que elas podem se apre-
sentar na esquizofrenia pelas experiências de nosso personagem.
Gradativamente, a maneira como Gabriel percebe o mundo a sua volta
vai mudando sem que ele se dê conta. Ele começa a perceber os sons
com mais intensidade, de maneira que os sons aos quais antes ele
38 • Assis, Villares & Bressan

naturalmente não dava atenção passam a ser notados e a chamar sua


atenção. Passa a perceber barulhos estranhos, como batidas na parede
de seu quarto, o que o leva a pensar que são os vizinhos que querem
incomodá-lo.
Esse processo vai intensificando-se e promovendo mudanças em sua
forma de pensar. Então, ele começa a ouvir vozes. As vozes conversam
entre si sobre o comportamento de Gabriel; algumas o elogiam e dizem
o quanto ele é especial, outras o criticam e apontam seus defeitos mais
íntimos. As vozes são muito reais para ele; apesar de não ver quem
está falando, ele se vê envolvido por essa vivência, que vai tomando-
-se cada vez mais assustadora. Os médicos descrevem esse tipo de
experiência como alucinações auditivas. O que os médicos nem sempre
percebem é que essas vozes não são somente uma experiência audi-
tiva, mas se dão em um contexto complexo que mistura emoções e
~ . .
pensamentos com percepçoes sensona1s.
Ao mesmo tempo que as alucinações auditivas vão tomando forma,
Gabriel começa a perceber as coisas que vê com vivacidade maior. As
cores, a percepção de contorno das coisas e os movimentos das pessoas
dão a impressão de que o mundo mudou, de que este se apresenta de
outra forma, muito mais intensa. Essa percepção também o leva a
mudar sua maneira de pensar.
Os elementos visuais aos quais as pessoas normalmente não dão impor-
tância, para Gabriel, ganham um sentido especial. Certas sombras em
sua casa lhe aparecem como a presença de pessoas. Ao olhar para o
céu azul, ele vê pequenas formas transparentes que configuram
imagens de rostos e lugares. Em seu quarto, quando olha para a
lâmpada, vê pequenos bichinhos que ele interpreta como "formas inte-
ligentes de vida". Os médicos descrevem esse tipo de experiência como
alucinações visuais.
Gabriel também passa a sentir de forma diferente o cheiro e o gosto
dos alimentos, o que, como veremos, ganhará um significado muito
difícil para ele. Os médicos descrevem esse tipo de experiência como
alucinações olfativas e gustativas.
Entre a razão e a ilusão 39

Você está sendo


filmado por todos
os lados, se pisar
na bola vamos
matá-lo.

Assim não dá,


você não faz
o que mando! Você é uma pessoa
especial que tem
superpoderes...

Você não serve Você foi enviado


para nada!! por Deus para salvar
a humanidade.

Essas percepções são vividas por Gabriel de forma solitária, pois não
consegue compartilhar com os familiares o que está acontecendo com
ele. Os familiares percebem seu comportamento diferente e sentem
que ele não está bem, mas não sabem como se aproximar dele e
transpor a barreira que ele próprio levantou.
A percepção do mundo de forma diferente, por intermédio de alucina-
ções, muda na vida de Gabriel aquilo que para as pessoas garante suas
certezas ante a realidade. O mundo em que ele está vivendo não é o
mesmo compartilhado pelos outros; ele está envolvido em sensações e
percepções que colocam em dúvida a realidade que sempre viveu. Essa
é uma experiência muito intensa. Qualquer pessoa que passasse pelo
que Gabriel está passando se desorganizaria e se sentiria perdida.
Seria mais fácil compreender muito do comportamento diferente de
Gabriel se fosse possível se colocar no lugar dele, passando pelas
40 • Assis, Villares & Bressan

experiências que ele está vivendo. Infelizmente, as pessoas que estão


convivendo com ele nesse período ficam absorvidas por seu comporta-
mento diferente e não sabem como agir, como ajudar. No convívio com
uma pessoa em um episódio psicótico agudo, na maior parte do tempo,
o mais importante é decidir qual a melhor atitude a se tornar, saber o
que fazer para melhorar a situação e lidar com os conflitos, compreen-
dendo o que é a crise. Adiante, abordaremos alguns tópicos sobre como
lidar com urna pessoa em um momento de crise.

W.B.
Antes dos meus 16 anos, levava uma vida normal; de repente, comecei a ter uma sen-
sação estranha e t ive a impressão de a televisão estar conversando comigo, dizendo que
eu era uma pessoa especial {Super-Homem) e que eu estava sendo vigiado por todos os
lados; tive a impressão de estar sendo filmado.
No começo, achei muito estranho e disse a meus pais o que estava acontecendo.
Eles, assim como eu , não entenderam nada. Quando disseram a meu tio, irmão de meu
pai, um psiquiatra, descobri que tinha esquizofrenia. Mas os delírios e as alucinações
eram intensos, recebia mensagens da televisão e do rádio dizendo que eu era o salvador
da humanidade e que estava salvando o mundo. Tive a impressão de que as pessoas a
meu redor, incluindo minha família, queriam me matar e que havia uma conspiração. Ao
mesmo tempo que escutava vozes engrandecendo-me, escutava outras dizendo que eu
não era nada e criticando minhas atitudes.
Certa vez, em meu quarto, tive uma alucinação bizarra; vi minha alma sair de meu
corpo e brigar com este, tive a sensação de minha alma vencer. Depois daquilo, fiquei
refletindo e lembrei-me do filme Super-homem Ili, em que aconteceu a mesma coisa.
Tinha a sensação de que as pessoas sabiam o que eu pensava e que tinha um micro-
chip em meu cérebro. Outro dia, estava assistindo à televisão quando vi uma espiral e,
depois, senti que fui abduzido por extraterrestres. Um dos delírios que tinha era achar
que minha alma tinha o poder de controlar o tempo com meus ideais. Eu achava que eu
era o compositor das músicas dos Backstreet Boys e tinha a sensação de ser o centro do
mundo. Achava também que as músicas do Renato Russo eram feitas para mim e que,
na outra encarnação dele e nesta minha, nós nos encontraríamos e nos amaríamos, só
que ele encarnado em corpo de mulher. O que mais alimentou meus delírios foi uma das
músicas dele - Perdidos no espaço - , dizendo que minha alma, como a dele, veio de
outro planeta, assim como o Super-Homem. Tive vários delírios e alucinações estranhas
que dificultavam levar minha vida de uma maneira normal. Hoje, com os med icamentos,
ainda escuto vozes, mas a intensidade é pequena. Frequento o grupo de acolhimento e
ajudo meus pais em casa com pequenas coisas, vou à minha chácara e sou colecionador
de DVDs, consigo levar uma vida feliz.
Entre a razão e a ilusão 41

Outro entendimento das coisas


Ao mesmo tempo que Gabriel começa a perceber o mt1ndo de outra
maneira por intermédio das alucinações, ele também vai construindo
explicações para essas vivências. Ele passa a ter pensamentos e certezas
muito incomuns.
No começo, as percepções diferentes dos sentidos são entendidas por
Gabriel como uma habilidade especial, como capacidades paranor-
mais, e tal entendimento é inicialmente sedutor. Entretanto, essas
vivências passam de sedt1toras a asst1stadoras, marcadas por ideias de
perseguição.
A sensação de Gabriel de que o que as pessoas falavam e faziam tinha
relação com ele tornou-se uma certeza, de forma que, agora, tudo o
que acontece a seu redor é entendido como parte de sua experiência.
Assim, as conversas das pessoas na rua, sua mãe limpando a casa,
programas de televisão, músicas do rádio, tudo forma parte de um
enredo no qual Gabriel se sente o centro dos eventos. Os médicos
descrevem esse tipo de experiência corno delírio d.e referência.
As vozes que falam coisas agradáveis dizem para Gabriel que ele tem
poderes especiais e a missão de mudar o mundo. Tudo o que ele sente
e a certeza de que tudo a seu redor acontece em ftmção dele confirmam
o que as vozes dizem. Estes são delírios de grandeza.
Entretanto, as vozes qt1e dizem coisas desagradáveis para Gabriel
afirmam que, mesmo com esses poderes, ele não está fazendo nada e
que por sua culpa as coisas ruins acontecem no mundo, como crimes e
guerras. Este é o delírio de culpa.
Gabriel passa a acreditar que está sendo filmado, que existe um complô
entre o crime organizado e a polícia para persegui-lo, pois, se ele
t1sasse seus poderes e resolvesse os problemas da humanidade, eles
perderiam e seriam atingidos. Apesar de Gabriel não ver nenhuma
câmera ou evidência física de que está sendo filmado, ele sente que
isso está acontecendo; é urna certeza inquestionável. Nesse contexto,
não há para quem pedir ajuda, pois até a polícia é suspeita. Quando
ele começa a sentir cheiros e gostos diferentes nos alimentos, passa a
42 • Assis, Villares & Bressan

c.u dado\
.....

acreditar que sua família quer envenená-lo para não ser atingida pela
perseguição. Gabriel se sente acuado e ameaçado por todos os lados.
Estes são os delírios persecutórios.
Nessas condições, em que as alterações da percepção (alucinações)
confirmam os pensamentos diferentes qt1e o portador de esqttizofrenia
está tendo (delírios), não adianta argumentar que essas coisas não
estão acontecendo. Uma característica dos delírios é qt1e eles são
certezas em que a pessoa acredita profundamente, e não há como
convencê-la a mudar sua maneira de ver as coisas. Gabriel está
passando por um grande sofrimento, atormentado por vozes e com a
certeza de que está sendo vigiado e perseguido. Sua reação é se isolar
em seu quarto como uma maneira de se proteger e fugir dessas sensa-
ções e desses pensamentos extremamente ameaçadores, dos quais ele
não consegue se afastar.
Esse outro entendimento das coisas que Gabriel está vivendo é uma
experiência muito marcante. Muitos portadores, mesmo depois de
anos de tratamento, não conseguem aceitar que essas experiências
vividas durante o episódio psicótico agudo foram uma criação de seu
cérebro. A mudança que esse tipo de vivência provoca causa desorien-
tação diante da maneira de estar no mundo, de forma que a única
Entre a razão e a ilusão 43

maneira de a pessoa se situar é acreditando que essas coisas realmente


aconteceram, e, assim, seguem construindo explicações para elas. Essa
é uma das grandes dificuldades a serem vencidas durante os trata-
mentos; é preciso compreender que, para quem vive esse tipo de expe-
riência, é difícil reconstruir uma compreensão que faça sentido na
realidade compartilhada com a maioria das pessoas.
Nessas condições, a família de Gabriel não sabe mais o que fazer e não
consegue conversar com ele. Ele está completamente estranho, falando
coisas que para eles não fazem sentido, passa a maior parte do tempo
trancado no quarto e não fala mais com os amigos, nem mesmo quando
eles telefonam. Seus pais e irmãos sofrem por não conseguir ajudá-lo,
mas no fundo mantêm a esperança de que essa crise passará.

Arealidade pode ser bem confusa


As vivências de Gabriel resultam em uma relação muito diferente com
o mundo, em que sua realidade interior se desorganiza e não corres-
ponde à realidade externa, compartilhada pelas pessoas. As experiên-
cias das alucinações e dos delírios causam grande confusão em seus
pensamentos e percepções. Esse processo pode ser percebido na forma
corno Gabriel se comt1nica, como entende o qt1e as pessoas falam e
como conversa com elas. Os médicos descrevem esse tipo de expe-
riência como desorganização ou desagregação de pensamento.
As vivências dos delírios e das alucinações normalmente são solitárias,
difíceis de compartilhar e assustadoras. As pessoas só conseguem
perceber que o indivíduo com esquizofrenia não está bem pela forma
como ele se comt1nica e reage ao qt1e lhe é dito. Isso ocorre devido às
diferenças em relação ao que as pessoas compartilham, principalmente
no conteúdo do que o sujeito diz e como ele entende o que os outros
estão tentando comunicar. A sensação mais comum é de impossibili-,
dade de conversar, tamanha a quantidade de mal-entendidos. E uma
vivência frustrante e exasperante para todos.
Gabriel está envolto em urna realidade .muito diferente; portanto, sua
maneira de entender o que as pessoas dizem está afetada, há uma
44 • Assis, Villares & Bressan

distorção na interpretação das informações. Assim, quando seus pais


procuram conversar com ele, não entendem o motivo de seu silêncio,
e, quando ele responde, o que diz não faz sentido com o que está
sendo conversado. Gabriel está envolvido em percepções e pensa-
mentos que o colocam no centro das coisas; assim, ele não consegue
perceber que as outras pessoas têm suas próprias ideias e percepções,
que não se referem a ele. Essa autorreferência gera sua forma incon-
gruente de se co.municar.
Seus irmãos não conseguem entender por que Gabriel está tão dife-
rente, e quando conversam com o irmão, ele fala de coisas incompreen-
síveis. Isso se dá por ele saltar de um assunto para outro sem uma
linha clara de raciocínio e também por falar de assuntos completa-
mente desconhecidos ou muito estranhos. Seu irmão, Renato, não
consegue entender o que está acontecendo com Gabriel e logo se irrita,
discute ou se afasta, transtornado. Já sua irmã mais nova, Júlia,
percebe que seu irmão precisa de ajuda e procura concordar com as
coisas que ele diz, mesmo não fazendo sentido para ela, mas espera
que ele melhore e perceba como está confuso.



a
• • d
d

1 Não estou
entendendo!
1
~

• d o fe 0
o g h
b e o

• ,
O quê!? •
Continuo não
entendendo!
',
, '
• •
• • t,')
Entre a razão e a ilusão 45

Quando Gabriel sai na rua e conversa com os conhecidos, eles logo


percebem que ele não está bem e que está falando coisas abst1rdas.
Rapidamente, as pessoas passam a comentar que ele está ficando
louco, que é uma pena um rapaz tão jovem perder a razão dessa
maneira. Essa é a imagem e a ideia que as pessoas têm da pessoa com
esquizofrenia: alguém com um comportamento muito estranho, que
fala coisas incompreensíveis e que não compreende as coisas mais
simples que lhe são ditas. Os amigos acabam afastando-se, pois suas
atitudes são estranhas, e todos ficam co11strangidos, alguns com pena,
outros com medo. Acham melhor evitar estar perto de Gabriel; sua
companhia não agrada aos jovens de sua idade.
Entretanto, Gabriel está vivendo percepções, pensamentos e senti-
mentos que só fazem sentido para ele, e, da mesma forma que as
pessoas não o entendem, ele também não entende o que elas falam e
fazem. Suas vivências são muito intensas e causam desconforto,
medo e desorientação, e as pessoas não percebem o quanto isso é
difícil para ele. As atitudes dos outros reforçam a sensação de que
tudo se refere a ele, confirmam o que as vozes lhe falam e os pensa-
mentos de perseguição que ele tem. Gabriel vive um momento mt1ito
difícil, em que a desorganização do pensamento o afasta ainda mais
das pessoas e reforça os sintomas da doença. Ele cada vez mais se
sente enct1rra]ado.
Os pais e o irmão reclamam com Gabriel, dizendo para ele parar de
dizer coisas sem sentido e levar a sério o que eles estão falando. A
única que consegue perceber que Gabriel não tem condições de agir de
forma diferente é a irmã mais nova, Júlia, pois ele conta para ela seus
pensamentos e como está percebendo o mundo.
A desorganização do pensamento gera muitas incompreensões e
conflitos nos relacionamentos, pois o comportamento do indivíduo
com esquizofrenia não corresponde ao que as pessoas estão habituadas
para uma dada situação. Os familiares não conseguem entender que o
sujeito está vivendo uma experiência muito intensa e sofrida, esperam
qt1e ele aja de maneira que corresponda aos hábitos cotidianos; entre-
tanto, ele não consegue, o que gera grande angústia.
46 • Assis, Villares & Bressan

Cores desbotadas
Ao mesmo tempo que Gabriel percebe o mundo a sua volta de forma
diferente e seus pensamentos mudam, a maneira como ele expressa
suas emoções também se modifica. Ele tem dificuldade em expressar o
que sente e também em perceber como as pessoas expressam seus
sentimentos. Os médicos descrevem esse tipo de experiência como
embotamento afetivo.
Quando as pessoas conversam com Gabriel, percebem que, além de
estar com uma maneira desorganizada de expressar suas ideias e seus
pensamentos, ele também parece insensível ao mundo a seu redor.
Isso causa muitas dificuldades nos relacionamentos do nosso perso-
nagem, principalmente com os irmãos e os pais. Eles sentem que
Gabriel não reage, tanto às situações alegres quanto às tristes; é como
se ele não tivesse sentimentos. Uma parte importante das trocas nos
relacionamentos se dá em função das emoções e dos sentimentos que
as pessoas conseguem compartilhar. Gabriel não consegue se comu-
nicar direito, e o fato de ele não conseguir demonstrar emoções torna
o convívio com as pessoas ainda mais difícil e distante.
Sua realidade interior é marcada por grande sofrimento, experiências
emocionais muito intensas e impossíveis de serem expressas em pala-
vras. Ele se sente perseguido e vigiado o tempo todo; tudo o que acon-
tece a seu redor, para ele, está relacionado com o que pensa e percebe.
As vozes constantemente comentam seu comportamento e suas
atitudes. Gabriel vive uma realidade que é ameaçadora e se vê mergu-
lhado em situações que o desorientam constantemente. O relaciona-
mento com as pessoas também faz parte dessa experiência desconcer-
tante que tomou conta de sua vida, e ele não consegue corresponder
às emoções e aos sentimentos das pessoas a seu redor.
,
E a partir de suas vivências interiores que Gabriel reage emocional-
mente. Apesar de parecer, para os outros, que ele não está sentindo
nada, na realidade, sua percepção está muito aguçada, e ele pode
perceber os detalhes das atitudes dos demais. Percebe quando as
pessoas são irônicas, o evitam ou esperam dele atitudes às quais ele
não consegue corresponder. O embotamento afetivo faz parte das
Entre a razão e a ilusão 47

-• J -•

.....

vivências muito sofridas para as pessoas que têm esquizofrenia, e não


conseguir expressar esse sofrimento leva a um isolamento ainda maior.
Onde as pessoas pensam que não está acontecendo nada, há toda uma
vida que não consegue se expressar.
A família de Gabriel percebe que ele vem definhando nos últimos
meses; ele se isola no quarto a maior parte do tempo, não consegue
mais conversar, muitas vezes fica falando sozinho, não tem disposição
para as tarefas mais
,
simples e descttida-se de sua aparência e da
higiene pessoal. E como se suas cores estivessem desbotadas.
,
E difícil para quem convive com a pessoa que tem esquizofrenia
entender o que se passa no mu ndo interior de seu familiar, e também
é difícil se dar conta de que essas mudanças são resultado de uma
doença. Daí a dificuldade em procurar um médico. Seus pais não
sabem o que fazer para ajudar o filho a sair desse estado de indife-
rença em relação a tudo, até mesmo consigo. Para Gabriel, a única
forma de se proteger da realidade que o ameaça e das dificuldades
com as pessoas é isolando-se, passando a maior parte do tempo sozinho
em seu quarto.
48 • Assis, Villares & Bressan

As pessoas da comunidade percebem que o indivíduo com esquizo-


frenia muda e passa a se comportar de maneira estranha. A maneira
de entender o que está acontecendo é rotular a pessoa de louca, e não
consideram o sofrimento que ela está vivenciando. O desconhecimento
em relação à doença afasta as pessoas; elas não se dão conta de que
com esse tipo de atitude contribuem para que a doença se agrave.
Seria importante entender a importância de lidar com transtornos
mentajs com respeito; isso ajudaria muito e facilitaria também a
procura e a aceitação de tratamentos apropriados.
A família e a comunidade são mt1ito importantes para ajudar o indi-
víduo com esquizofrenia a superar as dificuldades impostas pela
doença. Quando as pessoas são informadas sobre o que é a esquizo-
frenia, como ela se manifesta e quais set1s sintomas, fica mais fácil
compreender e conviver com o doente e saber como ajudá-lo a superar
as dificuldades geradas pelo isolamento, devido ao conjunto angus-
tiante de circunstâncias que está vivendo. O desconhecimento é um
dos fatores que geram o estigma da comunidade por um lado e atrasam
a procura de ajuda pelos familiares por outro.

Energia perdida
Um sintoma da esqwzofrenia que causa incompreensões é a falta de
vontade. Diante da situação em que se encontra, Gabriel não consegue
realizar as tarefas mais simples, como arrumar a própria cama ou
ajudar sua mãe com as tarefas cotidianas da casa. Essa postura é enten-
dida pelos pais e irmãos como preguiça.
Gabriel sente-se sem energia, não tem motivação para realizar as
coisas que naturalmente fazia antes. E' preciso entender qual é o
contexto que ele está vivendo e que sua falta de vontade não é simples-
mente preguiça, como as pessoas interpretam. A "falta de vontade" é
um sintoma que os médicos chamam de abulia.
Ele está vivendo uma situação na qual seu mundo interior é marcado
por vivências em que a realidade se apresenta ameaçadora: suas
percepções, seus pensamentos e sentimentos mostram-lhe situações
Entre a razão e a ilusão 49

em que ele se acha perseguido, culpado e invadido pelas vozes que


escuta. Junta-se a isso a dificuldade de se comunicar, entender e ser
entendido pelos outros. Gabriel se isolou e se afastou do relaciona-
mento com as pessoas, sente-se incompreendido.
A vontade é resultado dos estímulos que encontramos no relaciona-
mento com as pessoas e nos resultados que conseguimos nas tarefas
que realizamos. Gabriel, na situação em que se encontra, não consegue
realizar coisas que para outros parecem simples porque perdeu as
condições fundamentais para ter motivação. Ele passa a maior parte
do tempo em seu quarto sem fazer nada, raramente sai de casa. Essa é
a maneira que ele encontra de se defender de uma realidade que o
oprime, na qual ele não consegue se encaixar. Infelizmente, a falta de
vontade reforça outros sintomas que levam a mais falta de vontade.
Trata-se de um círculo vicioso, no qual ele se sente aprisionado.
Sua família não compreende o qtte se passa no mundo interior de
Gabriel, seus pais acham que o cobrando para fazer as coisas que os
01ttros irmãos fazem o ajudará a sair daquela inércia em que se encontra.
Entretanto, essas exigências dos pais aumentam a angústia dele, pois
ele não consegue corresponder ao que eles esperam. Essa situação
50 • Assis, Villares & Bressan

gera nele um sentimento de inferioridade em relação aos irmãos e de


que os pais não gostam dele da mesma forma que gostam de seus
. ~
1rmaos.
Na comunidade, seus amigos estão iniciando a vida profissional, traba-
lhando, estudando, namorando. Os pais de Gabriel não entendem o
que acontece com seu filho, ficam questionando-se "onde erraram" em
sua criação. Eles não sabem como ajudar o filho.
A falta de vontade é vista como um problema de preguiça e gera
angústia para ele e para os pais. Entretanto, ela é um sintoma da esqui-
zofrenia. Não é culpa de Gabriel, assim como não houve erros dos pais
. ~
em sua cr1açao.

J .A.O.
Sou portador de esquizoafetividade, que é um transtorno mental que mescla sintomas de
esquizofrenia e bipolaridade, alternando momentos de manias e vales de depressão. No
caso de minha depressão (sintomas negativos), ocorrem com muita frequência o desâni-
mo de maneira geral e a falta de vontade de realizar atividades rotineiras. Muitas vezes,
passo boa parte de meu dia na cama ou impossibilitado até mesmo de sair de casa para
exercer atividades profissionais.
A manifestação de minha primeira crise de bipolaridade e seus respectivos sintomas
negativos começou a ocorrer no segundo semestre de 1994, após um retiro espiritual no
Rio de Janeiro. Começou com uma crise de choro e uma forte desorientação cognitiva.
De volta ao trabalho, em São Paulo, comecei a enfrentar sérias dificuldades de exercer
atividades profissionais rotineiras e de me organizar no dia a dia. Mesmo com medica-
ção, os sintomas persistiram até meados de 1995, quando finalmente arrefeceram ao
me decidir fazer uma viagem de estudo aos Estados Unidos. Depois dessa primeira crise,
parei de tomar medicação e tive uma vida normal até meados de 1998, quando surtei
pela segunda vez. Retomei a medicação e voltei a apresentar fortes depressões e desmo-
tivações existenciais. Parei novamente a medicação e tive nova crise no fim de 1999 e
início de 2000. Só aderi ao tratamento nessa época, mas mesmo assim tive uma última
crise em maio de 2001.
Hoje, tenho tomado três tipos de medicamentos, um neuroléptico (antipsicótico),
um regulador do humor e um antidepressivo. Ainda convivo com altos e baixos de humor,
mas os grupos que eu frequento na Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Porta-

c<•11li1111u .••
Entre a razão e a ilusão 51

.. • conÍi111111ciiu
'

dores de Esquizofrenia (ABRE) têm-me ajudado bastante a superar a doença, sendo eu,
inclusive, um dos facilitadores do grupo de acolhimento. Este é realizado semanalmente
nas dependências do Programa de Esquizofrenia (Proesq) da Escola Pau lista de Medici-
na da Universidade Feder,;ll de São Paulo (Unifesp/EPM). Atualmente, os sintomas ne-
gativos de minha esquizoafetividade ainda persistem, mas tenho conseguido controlá-los
satisfatoriamente com os medicamentos e as terapias individuais e familiares.
Para o futuro, tenho traçado planos para que eu me motive e possa readquirir a
alegria de viver, sendo que voltar a estudar é uma de minhas metas, fazendo matérias
esporádicas na universidade. As leituras que são feitas por minha curiosidade intelectual
também têm ajudado a combater os sintomas negativos de meu transtorno, e acredito
que estou paulatinamente superando as dificuldades e readquirindo uma qualidade de
vida compatível com minhas expectativas existenciais.

Acognição ea esquizofrenia
Alguns portadores de esquizofrenia se queixam de alterações na atenção
e na memória. Será que essas alterações cognitivas são parte da esqui-
zofrenia? O texto a seguir discute aspectos cognitivos envolvidos na
doença.

Neuropsicóloga
A neuropsicologia pode ser definida como o estudo da relação entre o cérebro e o com-
portamento. É uma ciência recente, que só por volta dos anos de 1980 ampliou seu
campo de atuação para incluir as doenças psiquiátricas. Apesar de os distúrbios cog-
nitivos terem sido descritos desde o início da história da esquizofrenia, só agora os
estudiosos dessa doença não têm mais dúvidas de que os problemas cognitivos são
centrais no transtorno esquizofrênico, a ponto de serem caracterizados como sintomas
dessa patologia.
O comprometimento cognitivo na esquizofrenia inclui problemas de atenção e con-
centração. memória e aprendizagem, linguagem e funções executivas (ou seja, ter vonta-
de de fazer uma coisa, planejar como conseguir realizá-la, capacidade de resolver os pro-
blemas que vão surgindo, etc.), além de maior lentidão para realizar tarefas. O decl ínio

conlinua .. .
52 • Assis, Villares & Bressan

..• co11/i111ta,;iio

nas habil idades cognitivas está presente na maioria dos portadores de esqu izofren ia, mas
também existem aqueles com func ionamento cogniti vo normal. Esse declínio parece co-
meçar um pouco antes do início da doença e não piorar muito com o decorrer do tempo.
A importância do diagnóstico dos déficits cognitivos está relacionada ao fato de eles
interferirem em várias áreas da vida do portador, tais como: em suas atividades da vida
diária, no funcionamento social e ocupacional, na capacitação para o trabalho, nos rela-
cionamentos interpessoais e até mesmo na adesão ao tratamento.
Com base nesses recentes conhecimentos, é cada vez mais frequente a avaliação
neuropsicológica do indivíduo portador de esquizofrenia. Essa avaliação é realizada pela
aplicação de testes neuropsicológicos, que avaliam o funcionamento cogn itivo, ou seja,
a atenção, a memória, a aprendizagem, as funções executivas, a linguagem, etc. Os
objetivos dessa avaliação são verificar quais as habilidades e as dificuldades que essa
pessoa apresenta e ajudar no planejamento de um projeto terapêutico específico para
esse paciente. O projeto terapêutico se fundamenta na utilização das habilidades de que
o portador dispõe e na descoberta de formas alternati vas para compensar as dificu ldades
encontradas.
Outra forma de atuação da neuropsicologia é a reabil itação cognitiva, que é um
tratamento com o objetivo de recuperar ou diminuir os déficits cognitivos e, consequen-
temente, reduzir a longa duração das consequências sociais e pessoais da doença.
A neuropsicologia é um dos mais recentes instrumentos no diagnóstico e no tra-
tamento das pessoas com esquizofrenia que com certeza trará grandes benefícios na
recuperação dessas pessoas.

Caminhos e possibilidades
Apresentamos, por intermédio da experiência de Gabriel, algumas das
questões envolvidas na vivência da esqt1izofrenia. Perante urna situação,
sabemos que,
sempre há o que fazer, existem sempre caminhos e possi-
bitidades. E importante procurar ajuda e não ter vergonha de ter esqui-
zofrenia ou ser familiar de um portador. Ela é uma experiência humana.
Renato estava na casa de um amigo e comentou as dificuldades que
seu irmão estava vivendo e como isso estava afetando toda a família.
A mãe do amigo, que trabalha em um hospital como enfermeira, ouviu
todo o relato. Ela explicou que no hospital não se tratam somente
doenças do corpo, que há uma especialidade chamada psiquiatria que
trata de problemas como o qu.e Gabriel estava vivendo e recomendou
que o levassem para uma consulta.
Entre a razão e a ilusão 53

A partir dessa conversa, Renato contou para os pais o que havia


ouvido. Os pais de Gabriel, no início, tiveram resistência em aceitar
a proposta de levar o filho a um psiquiatra, pois a ideia que eles
tinham da psiquiatria era muito negativa, em função das histórias
que já ot1viram sobre os hospitais psiqttiátricos. Eles tiveram parentes
que ficaram muito tempo internados em hospitais psiquiátricos e
nunca se recuperaram e tinham medo de que isso também acontecesse
com seu filho.
Até algumas décadas atrás, o único tratamento para casos como o de
Gabriel eram internações longas e métodos de tratamento pouco
eficazes. Felizmente, esse panorama melhorou muito. Hoje, os medica-
mentos são muito mais eficazes e causam menos efeitos colaterais, os
métodos de tratamento melhoraram muito e recomenda-se que a pessoa
seja tratada na comunidade, isto é, ela vai ao hospital para consultas e
tratamentos, mas continua vivendo com a familia, como ocorre com
qualquer outra. doença.
Entretanto, vendo o sofrimento do filho, reconhecendo que já tinham
tentado tudo o que podiam e que o problema só se agravava, deci-

Vamos falar sobre


a doença ....

"".
54 • Assis, Villares & Bressan

diram levá-lo a um psiquiatra. Hoje, sabe-se que a esquizofrenia é uma


doença que tem várias causas. Sabemos que as pessoas que desen-
volvem o transtorno têm menor resistência a situações estressantes,
mas conhecemos também os efeitos de mudanças biológicas impor-
tantes, amplamente comprovadas. Assim, o tratamento com o
psiquiatra e o uso de medicamentos são fundamentais para a pessoa
com esquizofrenia sair da crise aguda e conseguir estabilidade com a
doença. Normalmente, o psiquiatra deveria ser o primeiro profissional
a quem recorrer em casos como o de Gabriel.
A consulta com o psiquiatra foi longa. Inicialmente, ele ouviu Gabriel
sozinho e depois com seus pais. O psiquiatra explicou-lhes que o
problema era grave, mas afirmou existir um tratamento bastante
eficaz. Procurot1 explicar que o jovem tinha sintomas de uma psicose,
um transtorno que afeta o cérebro e dificulta as vivências da pessoa, e
que seriam necessários tanto o tratamento com medicamentos quanto
um acompanhamento com ot1tros profissionais, como terapeuta ocupa-
cional e psicólogo.
O médico psiquiatra tem larga experiência para identificar em linhas
gerais a doença que Gabriel apresenta. Dt1rante a consulta, não ocorreu
uma simples conversa; o médico estava realizando o que tecnicamente
se chama "exame do estado mental" e identificou vários elementos
claros e amplamente estudados na psiquiatria para determinar o início
do tratamento. Durante a conversa com os pais, ele procurou reconsti-
tuir o que vem acontecendo com o jovem desde que os problemas
começaram. Este é um procedimento médico em psiq11iatria.
Entretanto, Gabriel e seus pais saíram da consulta com uma série de
dúvidas a respeito da doença. Com base em quê o médico estava
fazendo o diagnóstico de psicose? O que significa psicose? Psicose é a
mesma coisa que loucura? A doença ocorreu porque os pais de Gabriel
fizeram alguma coisa errada em sua educação? Qual é a evolução
dessa doença? Tem cura? Será que esse problema é espiritual? Precisa
mesmo tomar medicamento? Esses medicamentos são fortes? Podem
fazer mal? Tanto Gabriel qt1anto st1a família precisarão vencer essas
dúvidas e resistências até aceitarem que esses são os melhores trata-
mentos para que ele se recupere.
Entre a razão e a ilusão 55
No próximo capítulo, abordaremos essas questões com mais profundi-
dade e discutiremos as dificuldades envolvidas tanto no diagnóstico
quanto no início do tratamento da doença.

Primeiro passo
A história de Gabriel até aqt1i mostra como a esquizofrenia pode se apre-
sentar como uma doença grave e que desorienta a pessoa e a família.
Mas isso é apenas o início de uma mudança de caminho na vida do indi-
víduo. Ao longo deste livro, procuraremos mostrar que é possível ter
esperança e que as situações cotidianas vivenciadas pela pessoa com
esquizofrenia e por seus familiares podem melhorar ao longo do tempo.
A esquizofrenia não é uma doença que se resolve naturalmente apenas
tomando os medicamentos, como acontece, por exemplo, com uma
infecção. Na esquizofrenia, a recuperação se dá em um caminho de
construção interior tanto da pessoa quanto dos familiares. Essa cons-
trução é um aprendizado que se adquire no convívio e nos relaciona-
mentos. Isso se dá na família, com os profissionais da saúde e na comu-
nidade.
O primeiro passo, seja em uma primeira crise, como a de Gabriel, seja
durante o tratamento, caso as coisas fiquem difíceis, é procurar llffi
psiquiatra, para juntos investigarem o que está acontecendo e traçarem
uma linha de tratamento, sempre com base no diálogo, a fim de os fami-
liares e o paciente entenderem o que o médico está propondo e também
relatarem o que está funcionando e o que não está no tratamento.
A medicação é fimdamental para que a pessoa consiga se recuperar.
Para isso, o médico psiquiatra conhece profundamente como funciona
o cérebro e como agem os medicamentos e sempre procura o que é
melhor para cada caso.
Também são fundamentais as abordagens psicossociais, como a terapia
ocupacional e a psicoterapia. Esses tratamentos ajudam a pessoa e
seus familiares a redesenharem seus caminhos no sentido de adqui-
rirem uma vida com qualidade.
56 • Assis, Villares & Bressan

,
E muito comum as pessoas ficarem um longo tempo sem tratamento,
procurando alternativas, ou resolverem sozinhas os problemas. Infeliz-
mente, no caso da esquizofrenia, quanto mais tempo demorar o início
do tratamento, mais longa e difícil será a recuperação.
Gabriel e set1s pais precisarão caminhar mais t1m tanto do caminho até
chegar a um entendimento claro das questões que ficaram depois da
consulta com o psiquiatra, mas o jovem encontrará um caminho de
recuperação da esquizofrenia com o passar do tempo e com os novos
relacionamentos que ele estabelecerá.
,
E essa jornada que será apresentada nos próximos capítulos deste
livro.
Ocaminho até o
diagnóstico

Como entender odesconhecido?


Nosso entendimento do mt1ndo e das coisas da vida se dá por meio do
que já experimentamos e aprendemos. A doença de Gabriel, em menos
de seis meses, mudou sua história e a de sua família, entrando na vida
deles como algo novo e permeado de dificuldades. O desconhecido - no
caso, um transtorno mental-, traz consigo muita angústia, muita deso-
rientação e muito medo.

... .
58 • Assis, Villares & Bressan

A primeira consulta com o psiquiatra trouxe uma série de dúvidas.


Gabriel não acha que está doente e sente que o médico não entende o
que ele está vivendo. Seus pais têm dificuldade em aceitar que um de
seus filhos precise de tratamento psiquiátrico; por mais difícil que
esteja o convívio com o filho, no fundo eles mantêm a esperança de
que ele supere essa fase ruim.
Existem, em nossa sociedade, muitos valores individualistas que são
assumidos pelas pessoas e criam a falsa noção de que podemos resolver
tudo sozinhos. Desfazer-se desses valores, aceitar a ajuda oferecida
por um psiquiatra e entender que se está diante de um transtorno
mental é muito difícil, e as pessoas têm muita resistência.
A dificuldade em aceitar as explicações do médico e a busca de alter-
nativas para lidar com a situação caracterizam esse período de inde-
cisão, que, em muitos casos, se arrasta por anos, prejudicando a recu-
peração das pessoas que têm esquizofrenia. Em nosso caso, o início
efetivo do tratamento de Gabriel será protelado em alguns meses em
consequência das dúvidas e da confusão em que a família se encontra.
Esse tipo de situação é muito comum, mas prejudica a evolução do
tratamento e deve ser minimizado ao máximo.
Gabriel se nega a tomar os medicamentos receitados pelo psiquiatra.
Ele acredita nas ideias que criot1 para explicar as percepções e os
pensamentos diferentes que está vivenciando. Ele acredita estar sendo
filmado o tempo todo e que há uma conspiração contra ele. As vozes
que só ele escuta às vezes o elogiam, às vezes o criticam e dão ordens.
Ele interpreta tudo o que acontece a seu redor como tendo alguma
relação com sua vida. A percepção mais intensa dos sentidos dá um
significado novo para fatos que são corriqueiros para seus familiares.
Dentro desse contexto, Gabriel não consegue entender que o que está
vivenciando são sintomas de uma doença. Os médicos chamam essa
dificuldade de entendimento da doença de falta de insight ou de crítica.
sobre a doença.
Seus pais não conseguem convencê-lo a tomar os medicamentos e não
insistem, pois também têm dúvidas sobre a necessidade de medica-
mentos psiquiátricos. O desconhecimento e o medo são os principais
fatores que levam os pais de Gabriel a não seguir as orientações do
Entre a razão e a ilusão 59
médico. Essas dúvidas precisarão ser vencidas, mas esse não é um
processo fácil. Antes, os pais de Gabriel irão fazer um caminho de
busca de soluções, e só quando elas falharem é que irão procurar nova-
mente o médico psiquiatra, graças a um conselho acertado de uma
pessoa vivida e experiente.
Os irmãos convivem com as dificuldades de Gabriel de outra maneira.
Renato, dois anos mais velho, não sabe mais como lidar com o irmão,
não entende o que ele está passando e, para evitar discussões, passa a
evitá-lo. Júlia, três anos mais nova, sempre conversou muito com
Gabriel e passou a ser a pessoa em que ele mais confia nesse novo
período, a única para quem ele consegue contar o que está vivendo e
que o escuta e o leva a sério.
Os vizinhos e conhecidos do bairro passam a comentar que Gabriel
ficou louco. Alguns se comovem com as dificuldades que a família está
passando, outros não se envolvem, ou porque têm medo, ou porque
estão voltados para os próprios problemas e não se ligam no que acon-
tece na comunidade. Há grande desconhecimento na comunidade
sobre os cuidados com a saúde em geral e ainda mais em relação aos
transtornos mentais. Hoje, é sabido que instruir as pessoas sobre os
problemas de saúde e incentivar o cuidado reduz muito o sofrimento
da população e os custos para o sistema de saúde. Se as pessoas da
comunidade entendessem o que Gabriel está passando, poderiam
contribuir de forma importante para que ele e sua famI1ia encon-
trassem ajuda profissional.

Doença 011 mal espirit11al?


A religião, em nossa cultura, tem o importante papel de ajudar as pessoas
a lidar com situações de sofrimento e desorientação. Ela oferece explica-
ções que dão sentido para o desconhecido. Os pais de Gabriel procu-
rarão ajuda em algumas religiões como alternativa à explicação do
médico, e dessa busca encontrarão uma orientação positiva.
Gabriel acredita que é o enviado de Deus para salvar o mundo. Tal
certeza dificulta sua ida aos cultos religiosos; ele se nega a aceitar esse
60 • Assis, Villares & Bressan

tipo de ajuda. Entretanto, essa crença é uma experiência religiosa


profunda, trata-se de uma fé muito intensa, em que ele assume para si
a responsabilidade pelos problemas do mundo. Essa experiência será
mais bem compreendida por ele no futuro e será muito importante em
-
sua recuperaçao.
Ao mesmo tempo, um casal de vizinhos, ao saber das dificuldades de
Gabriel, procura seus pais para oferecer ajuda. Em uma conversa
longa, ouvem as dificuldades pelas quais a família está passando e
falam da importância de procurar uma ajuda religiosa e manter a fé,
que algum caminho Deus irá indicar.
Os pais de Gabriel buscam ajuda em várias religiões. As explicações
são sempre parecidas: ele está sendo vítima de um mal espiritual, do
assédio de espíritos obsessores ou energias negativas. Eles passaram a
rezar pelo filho e a frequentar os cultos de uma igreja. Mesmo assim,
passados alguns meses, a situação vai ficando cada vez pior no convívio
familiar. Infelizmente, no caso dos transtornos mentais, há ainda muita
desinformação no meio religioso.
Conforme dissemos anteriormente, a religião tem um papel impor-
tante na vida de muitas pessoas. Não consideramos que as explicações
científicas se contraponham às explicações religiosas. O ideal na vida
das pessoas é que as duas visões sejam complementares. A ciência
procura, por meio de métodos seguros e amplamente testados, propor,
na área da saúde, procedimentos terapêuticos que têm o objetivo de
controlar as doenças e promover melhor qualidade de vida. A ciência
e a medicina não têm todo o conhecimento; sempre há pesquisas para
melhorar, seja com medicamentos, seja com técnicas clínicas. A seguir,
mostraremos a visão de uma pessoa de bom senso, que ajudou muito
a compreensão dos pais de Gabriel.
Foi no fim de um culto que uma senhora, já idosa, perguntou aos pais
de Gabriel o que os afligia tanto. Surpresos com a pergunta, eles
contaram o caso do filho e as dificuldades que a família estava
passando. A senhora ouviu tudo com muita atenção, fez algumas
perguntas durante o relato e, por fim, depois de pensar um pouco,
Entre a razão e a ilusão 61

,. ?

.....

disse algumas coisas que iluminaram as buscas que eles vinham


fazendo.
Ela disse que a fé é importante e a igreja é um lugar de luz, onde espí-
ritos iluminados, ou, como muitos chamam, os santos, ajudam as
pessoas a superar suas dificuldades. Entretanto, não podemos esquecer
que vivemos em um mundo material, e é nele que precisamos encon-
trar o caminho para que a ajuda divina aconteça. Continuou dizendo
que, no caso de Gabriel, o caminho para essa ajuda também estaria em
seguir o tratamento médico: "Deus deu aos homens a capacidade de
aprender, e a medicina existe para ajudar as pessoas". E concluiu:
'Vocês devem pedir com fé para que o tratamento de seu filho seja
bom e que Deus ilumine o médico para que ele encontre os melhores
caminhos".
Essa conversa simples iluminou o entendimento dos pais de Gabriel,
que só foi possível porque eles foram em busca de ajuda para o filho.
Primeiro, foram ao médico psiquiatra, seguindo o conselho da mãe do
62 • Assis, Villares & Bressan

amigo de Renato, mas ficaram com muitas dúvidas e atrasaram o


começo do tratamento. Agora, depois de procurarem ajuda na reli-
gião, encontraram uma explicação de uma pessoa de bom senso que
deu um sentido para todas as suas buscas e um ânimo novo para
enfrentar o problema e ajudar o filho.
Mesmo que as pessoas considerem a esquizofrenia um mal espiritual,
é preciso usar o bom senso e procurar seguir os tratamentos de saúde,
pois efetivamente eles contribuem para controlar e melhorar a situação
da pessoa que tem esquizofrenia e de sua farru1ia.

Chegando até a ajuda ...


Os pais de Gabriel voltaram com ele ao Dr. Marcelo, o médico psiquiatra.
Assim como na primeira consulta, o psiquiatra conversou primeira-
mente apenas com Gabriel e, depois, com ele e seus pais. O médico
percebeu uma mudança na postura dos pais, que estavam mais abertos
para o diálogo, relataram com detalhes as dificuldades que tinham com
o filho e questionaram como o tratamento poderia ajudá-lo.
Diante do interesse dos pais, o psiquiatra pôde explicar a gravidade da
situação. Disse que o caso de Gabriel necessitava de uma ação imediata
e que poderia tentar o tratamento domiciliar caso os pais colaborassem
.
e seguissem .
o tratamento a' risca, .
mas se o caso piorasse . neces-
seria
sário interná-lo para controlar a crise. Explicou que, na internação,
Gabriel teria acompanhamento de uma equipe de profissionais da
saúde durante as 24 horas do dia.
A mudança na postura dos pais deve-se ao fato de agora eles terem
certeza, confiarem que o tratamento ajudará o filho a sair da situação
em que se encontra. Essa postura é muito importante para a família se
conscientizar da necessidade de intervir e ajudar a pessoa com esqui-
zofrenia. Durante uma crise aguda, a família não pode contar com a
lucidez da pessoa, precisa negociar sempre, mas deve manter a postura
firme de que o tratamento precisa ser cumprido e os resultados devem
ser comunicados com clareza nas consultas psiquiátricas.
Entre a razão e a ilusão 63

Dr. Marcelo explicou as dificuldades de iniciar o tratamento em casa,


considerando a situação em que Gabriel se encontrava no momento.
Seria preciso um acompanhamento bem próximo, observar como ele
reagiria à medicação, o cuidado de não deixá-lo sair sozinho e cuidar
para que ele tomasse os medicamentos nos horários prescritos. Além
disso, explicou que a medicação poderia ter alguns efeitos adversos,
relatando os principais e alertando que se eles ocorressem seria neces-
sário levar Gabriel imediatamente para o hospital.
As pessoas, em geral, têm uma ideia equivocada do tratamento psiquiá-
trico principalmente por dois motivos: o primeiro é que não existe um
exame laboratorial que comprove que a pessoa tem a doença; o
segundo é que o uso de comprimidos tornou-se algo banalizado em
nossa sociedade, e as pessoas não o levam muito a sério. Na realidade,
durante a consulta, o psiquiatra está fazendo uma análise técnica
minuciosa da pessoa, chamada de exame do estado mental, e levan-
tando, com a família, informações importantes para realizar uma
avaliação clínica criteriosa antes de receitar o medicamento. Os medi-
camentos que o psiquiatra receita são controlados pelas autoridades,
em razão da necessidade de acompanhamento de um médico respon-
sável por seu uso. Eles têm ações muito específicas no funcionamento
cerebral; portanto, é fundamental seguir as prescrições do psiquiatra e

••
...,
64 • Assis, Villares & Bressan

relatar tudo o que possa ajudá-lo a saber como a pessoa que está sendo
tratada está reagindo.
Os pais concordam em cuidar do filho em casa. O pai de Gabriel, Seu
Paulo, diante das explicações do Dr. Marcelo, decide tirar férias do
trabalho para acompanhar o filho . Dona Márcia, a mãe, escuta tudo
com muita atenção. Esse é um momento difícil para os pais de Gabriel,
em que eles se dão conta de que o filho tem uma doença grave.
Contudo, gera alívio, pois eles saem da fase de dúvidas e passam a
enfrentar o problema com uma perspectiva de que ele pode melhorar.
A internação é necessária quando a doença oferece risco para seu
portador ou para outras pessoas. A internação, hoje, é prescrita por um
período curto, o suficiente para os medicamentos fazerem efeito e a
pessoa sair da crise aguda (a internação será discutida em pormenores
no Capítulo 4).
O tratamento em casa tem suas dificuldades, como veremos a seguir.
O psiquiatra chama Gabriel e, junto a seus pais, explica que é impor-
tante ele tomar a medicação, pois ela ajudará a diminuir seu sofri-
mento. Diante do médico e dos pais, o jovem concorda em tomar os
medicamentos e voltar para a consulta na semana seguinte.

Mas ... q11al é a doença?


Tanto Gabriel quanto seus pais escutam o médico dizer que ele tem
uma doença e que os medicamentos vão ajudá-lo a se recuperar. Eles
concordam em seguir o tratamento e colaborar com as orientações do
médico, mas querem saber: que doença é essa?
Essa é uma explicação importante. O médico sabe da necessidade de
esclarecer os aspectos da doença com base nos relatos de Gabriel e de
seus pais, com a finalidade de iniciar uma relação de confiança com
eles, pois isso é fundamental para uma boa continuidade do trata-
mento.
Entre a razão e a ilusão 65
O psiquiatra explicou, com base nos relatos dos pais e de Gabriel, que
as coisas estranhas que ele vem sentindo nos últimos meses são
sintomas de um episódio psicótico agudo. O fato de ele ouvir vozes,
boas ou más, que ninguém mais escuta, é um sintoma chamado aluci-
nação. Sua crença de que está sendo filmado o tempo todo e de que há
uma conspiração contra ele é outro sintoma, chamado delírio persecu-
tório, assim como a atribuição de um significado novo para fatos corri-
queiros, como na vez em que o vizinho colocou uma toalha amarela na
janela para secar e ele achou que o sujeito estivesse querendo dizer
que ele era afeminado. Achou que o vizinho estava fazendo de propó-
sito para provocá-lo e espalhar que ele era afeminado para todo o
bairro. A impressão de que tudo o que acontece a seu redor tem alguma
relação com sua vida é outro sintoma delirante, chamado autorrefe-
" .
renc1a.
Gabriel não se convence da explicação do médico e contesta dizendo
que um amigo dele também ouviu vozes e não está tomando medi-
66 • Assis, Villares & Bressan

camento. Dr. Marcelo pergunta em que situação o amigo ouviu vozes,


e Gabriel responde que foi em uma vez que ele usou uma droga ilícita.
O psiquiatra explica, então, que algumas drogas desencadeiam aluci-
nações, mas esse sintoma desaparece quando acaba o efeito da subs-
tância. No caso de Gabriel, os sintomas vêm ocorrendo por pelo menos
três meses na maior parte do dia, sem que nenhuma droga esteja sendo
utilizada. Além disso, os sintomas têm atrapalhado bastante a vida de
Gabriel, impedindo-o de fazer as coisas do dia a dia, tais como encon-
trar a turma de amigos, namorar, estudar ou trabalhar. Ele está ficando
mais isolado a cada dia que passa.
Os pais de Gabriel ouviram falar de um conhecido que tinha uma filha
com problemas parecidos e tinha o diagnóstico de esquizofrenia. Eles
perguntam para o Dr. Marcelo se ese é o caso do Gabriel. O médico
explica que os sintomas são parecidos com aqueles que ocorrem na
esquizofrenia, mas no caso do Gabriel esse diagnóstico ainda não pode
ser feito, pois é necessário que os sintomas durem pelo menos seis
meses para que o diagnóstico de esquizofrenia seja confirmado. Dr.
Marcelo diz que nesse momento Gabriel tem um quadro chamado
episódio psicótico agudo, e a confirmação do diagnóstico ocorrerá com
o acompanhamento ao longo do tempo.
Gabriel não fica muito convencido com o papo, pois para ele suas
vivências são absolutamente reais, e não sintomas, como diz o
médico. Seus pais entenderam que aqueles comportamentos estra-
nhos não eram loucura, mas sintomas de uma doença que tem trata-
mento. Isso os ajudou bastante a entender a importância do trata-
mento.
A experiência do episódio psicótico agudo é muito marcante, e quando
a pessoa está nesse estado tem dificuldade em aceitar que o que ela
está vivendo são sintomas de uma doença. O argumento mais forte do
Dr. Marcelo é que os medicamentos aliviarão o sofrimento de Gabriel.
Isso faz sentido para ele, pois já não suporta mais viver como está.
Entretanto, a família pode ajudar muito a pessoa, dando apoio, procu-
rando entender a situação, sempre acompanhando e negociando
quando necessário para que os medicamentos sejam tomados todos os
dias e nos horários certos.
Entre a razão e a ilusão 67

L.C. F.
O meu percurso com a esquizofrenia começa em 1996, aos 23 anos; eu comecei a ter
sensações que eram diferentes das que normalmente eu sentia. Assim como Gabriel,
personagem do livro, eu tinha uma vida produtiva, estudava e trabalhava. Com o passar
dos anos, foi aumentando a responsabilidade. Ao terminar o ensino médio, fui fazer
cursinho para entrar em uma universidade pública; no primeiro ano, não consegui. No
segundo ano, fiz cursinho novamente e, em julho, saí do emprego para me dedicar ex-
clusivamente ao vestibular. No final do ano, prestei vestibular e consegui ingressar em
uma universidade pública.
Nos dois primeiros anos da faculdade não trabalhei, pois o curso era integral e eu
acreditava estar fazendo algo produtivo.
No terceiro ano da faculdade, começaram as dificuldades devidas aos primeiros
sintomas de uma doença mental. Sentia-me diferente; comentei isso com meus colegas:
um achou engraçado e que deveria ser normal, no outro, despertou curiosidade.
Diante disso, ayaliei que deveria ser observado por profissionais da saúde mental;
logo marquei uma consulta com uma psicóloga.
Comecei a passar regularmente em consultas com uma psicóloga; fomos discutindo
minhas questões, e ela foi avaliando prováveis distúrbios. Depois de fazermos várias
avaliações, ela concluiu que eu deveria fazer um tratamento medicamentoso, portanto,
indicou-me um tratamento com um psiquiatra.
Marquei uma consulta com um psiquiatra. Na primeira consulta, discutimos minha
situação e ele marcou uma nova consulta, mas não compareci, pois meu estado de crise
estava bastante adiantado, e minha família percebeu que eu estava bastante alterado e
deveria comparecer a um pronto-socorro de psiquiatria (Centro de Atenção Psicossocial
[CAPS]).
Fui levado por meus familiares, entrevistado, medicado e fiquei o dia em observação.
No dia seguinte, fui para um hospital psiquiátrico para ser internado e tomei os me-
dicamentos indicados, mas depois de uma semana de tratamento o quadro só piorava.
Então, minha família me levou para outro hospital que tinha uma clínica psiquiátrica, e
aí fui observado por um psiquiatra. Ele começou a receitar os medicamentos antipsicó-
ticos, pois diagnosticou psicose.
Após dois anos, tive uma segunda crise e voltei a tomar os medicamentos típicos.
Em 2000, entrei para o Proesq e, após algumas consultas, passei a tomar outra
medicação, e foi fechado meu diagnóstico de esquizofrenia paranoide.
Com o diagnóstico, procurei informações sobre a doença, como tratá-la e passei a
aderir ao tratamento.

Uma convivência nem sempre fácil


O convívio familiar, quando um dos membros
,
é afetado pela esquizo-
frenia, é marcado por momentos difíceis. E necessário muita paciência
68 • Assis, Villares & Bressan
,
e compreensão de todos. E preciso entender que a pessoa está passando
por uma situação de desorientação e que suas reações não corres-
pondem àquelas que os familiares esperam. Não há regras para se ter
um bom convívio, mas há algumas situações que podem ser evitadas,
como veremos no caso de nosso personagem.
Voltando da consulta, o pai de Gabriel abre os medicamentos que o
psiquiatra forneceu e leva-os até o quarto do filho. Entretanto, para
sua surpresa, o jovem se recusa a tomá-los. Seu Paulo se irrita, pois
acha que o filho deve obedecer-lhe e fazer o que todos haviam concor-
dado ser o melhor. Mesmo depois de uma acalorada discussão, Gabriel
continua negando-se a tomar os medicamentos. Com o tempo, ambos
aprenderão que nessas situações não adianta "bater de frente" com a
pessoa que tem esquizofrenia; o melhor caminho é procurar entender
a causa da recusa.
Dona Márcia não sabe o que fazer ao ver a discussão de Seu Paulo com
o filho. Ela conversa com o marido, dizendo que mais tarde falará com
Gabriel. Depois de algumas horas, ela vai conversar com o filho em seu
quarto, dizendo que ela e o pai estão preocupados com ele. Pede para
ele tomar os medicamentos, e ele se nega terminantemente. Já fragili-
zada pela consulta e pela discussão de Gabriel com o pai, Dona Márcia
começa a chorar diante do filho, e seu marido precisa levá-la para a
sala e consolá-la.

, .....
Entre a razão e a ilusão 69
Os pais de Gabriel estão repetindo um padrão de comportamento do
qual não se dão conta. Esta é a melhor forma que aprenderam para
lidar com os filhos. Nessas situações, é comum que os relacionamentos
sejam emocionalmente intensos. Apesar de eles estarem buscando o
melhor para o filho, sabe-se que discussões muito intensas não ajudam
a pessoa com esquizofrenia. O caminho mais promissor é o do enten-
dimento da vivência da pessoa com a doença e da negociação.
A irmã mais nova de Gabriel, Júlia, chegou da escola e ficou sabendo
pelos pais o que estava acontecendo. Foi conversar com o irmão e
perguntou o que estava acontecendo com ele. Gabriel, que conseguia
contar para a irmã suas experiências, falou que o médico é bem-inten-
cionado, mas as vozes disseram para ele que os medicamentos foram
substituídos por veneno. Por esse motivo, ele não iria tomá-los. Quando
Júlia entendeu por que Gabriel não queria tomar o medicamento, ela
pôde negociar com ele.
Júlia percebeu, na caixa de um dos fármacos, um número de telefone
de atendimento ao cliente. Ao lado de Gabriel, ligou para o laboratório
e disse que desconfiava que o medicamento pudesse estar adulterado.
A pessoa que a atendeu pediu informações que estavam na embalagem
e nas cartelas do medicamento; depois de um tempo de espera,
confirmou que ele não era adulterado. Assim fizeram com os outros
dois fármacos. Júlia procurou mostrar para Gabriel que não era a
primeira vez que as vozes o enganavam e que os medicamentos eram
para ajudar, e não para prejudicar. Só então Gabriel concordou em
tomá-los.
Por mais difícil que seja no início, é preciso estabelecer canais de
diálogo com a pessoa com esquizofrenia e entender seus motivos.
Nem sempre esse é um caminho fácil, mas ao longo do tempo é o
mais eficaz. A pessoa com esquizofrenia, mesmo em uma crise aguda,
tem condições de perceber quando as atitudes e conversas com os
familiares são bem intencionadas. A pessoa pode ter dificuldade em
aceitar certas coisas, por exemplo, se os familiares falarem que o que
ela está vivendo não é real, que é só uma doença, pois para ela as
coisas estão acontecendo. Sempre que possível, é bom evitar
70 • Assis, Villares & Bressan

confrontar a pessoa com a doença. A compreensão de que o que se


está vivendo é uma doença vem com o tempo, e a ajuda dos profis-
sionais da saúde contribui muito para tal compreensão, como será
visto ainda neste capítulo.

Início da melhora
Após o início do tratamento, as pessoas, sobretudo os familiares,
esperam que os resultados apareçam rapidamente. Na esquizofrenia,
para que os tratamentos apresentem resultados, o processo se dá em
uma escala de semanas a meses; é preciso manter a esperança realista
e a paciência. Entretanto, as melhoras podem ser percebidas já no
intervalo de alguns dias, como veremos no tratamento de Gabriel.
O início do tratamento foi acompanhado de perto pelo Dr. Marcelo.
Gabriel sente os sintomas diminuírem. As vozes aparecem com menos
frequência, e diminui a sensação de estar sendo filmado e perseguido.
Consegue organizar melhor os pensamentos e compreender as
conversas com os irmãos e os pais. Ainda persiste certo medo, que
Gabriel não consegue entender de onde vem, e ainda não consegue se
organizar direito com as tarefas do cotidiano.
Seus pais acompanham-no às consultas com o médico. Gabriel fala
muito pouco nas consultas. Os pais relatam que ele tem melhorado,
mas está mais quieto e diferente, mais apagado, como se estivesse em
outro mundo. O médico explica que isso se deve, em parte, à doença
e, em parte, aos medicamentos, que é necessário acompanhar Gabriel
e acertar aos poucos as doses dos medicamentos a partir da melhora
dos sintomas. Ele indica o tratamento de terapia ocupacional, explica
qual é a proposta desse tratamento e por que o jovem terá benefícios
com ele.
Gabriel e sua mãe foram, então, à primeira consulta com a terapeuta
ocupacional, Fátima. Ela os recebeu em uma sala cheia de quadros,
objetos de argila, peças de mosaico, entre outros objetos, alguns
prontos, outros não. Ela explicou para os dois que o objetivo principal
do tratamento era ajudar Gabriel a organizar seu cotidiano e exercitar
Entre a razão e a ilusão 71

projetos com começo, meio e fim. Explicou que cada peça naquela sala
era parte do projeto de alguma pessoa. Ela disse que havia conversado
com o Dr. Marcelo, e urna primeira atividade seria Gabriel ir sozinho à
terapia ocupacional.
Gabriel passa a ir às consultas com Fátima urna vez por semana. Toda
quarta-feira, levanta cedo, torna banho e arruma-se para essas
consultas. Eles vão conversando sobre corno é o dia a dia de Gabriel e
corno é possível melhorá-lo. Durante as sessões, eles começam traba-
lhando com técnicas de pintura.
Com o andamento do tratamento com o Dr. Marcelo e Fátima, Gabriel
começa a sair do isolamento em que se encontrava. Ele volta a assistir
à televisão com a família à noite. Ajuda a mãe lavando o quintal e em
outras pequenas atividades domésticas. Ainda tem dificuldade para
conversar com os vizinhos. As' vezes, ouve vozes e, dependendo da
situação, ainda acha que o que as pessoas falam é sobre ele, mas a
intensidade dessas percepções diminuiu muito se comparada com a do
início do tratamento.
Esse início da melhora é muito importante, pois é a partir dele que a
pessoa com esquizofrenia vai construindo as bases para, no devido
tempo, ter urna recuperação satisfatória. Não há corno pular essa fase;
muitos portadores de esquizofrenia não conseguem passar por ela de
72 • Assis, Villares & Bressan

uma forma construtiva. Em função disso, vivem mais isolados, têm


dificuldade de, se relacionar com as pessoas e vivem sem projetos e
perspectivas. E preciso entender que essa é uma etapa a ser vencida,
antes de chegar a concretizar coisas que exigem mais do indivíduo
com esquizofrenia. Nesse sentido, os tratamentos psicossocias, como a
terapia ocupacional e a psicologia, são complementares ao tratamento
. ., .
ps1qu1atr1co.

Fernanda A. Pimentel - Terapeuta ocupacional


O processo de reabil itação na esquizofrenia exige um con junto de cuidados destinados
aos portadores, visando a melhoria da qualidade de vida e a consequente reinserção so-
cial, já que suas consequências abrangem rupturas importantes no curso da vida dessas
pessoas. Esses cuidados, construídos a partir da relação de escuta e trocas estabeleci-
das entre os envolvidos (familiares, profissionais, comunidade), têm os portadores como
protagonistas dessa construção. Entre os profissionais incluídos nesse processo está o
terapeuta oc upacion a1.
Quando ouvimos o termo "terapia ocupacional " (TO), remetemo-nos a ideias como
"ocupar a cabeça faz bem, esquecemo-nos dos problemas" , "vou fazer meu crochê, é
uma terapia para mim" ou "fazer algo produtivo é bom, nos sentimos mais úteis". A par-
tir dessas concepções, percebe-se a importância e o valor das ocupações e das atividades
em nosso dia a dia. A TO como profissão tem em seus pressupostos objetivos que vão
além dessas concepções.
A TO cuida do fazer humano, preocupando-se com o campo ocupacional e suas re-
lações com o cotidiano das pessoas. Pretende, por meio da construção da relação entre
terapeuta, paciente e suas atividades, criar um espaço acolhedor, no qual seja possível
promover a construção de projetos que visam descobrir e conquistar novos caminhos,
descobrir e resgatar potencialidades e habilidades de cada sujeito, reconhecendo limites
e também possibi lidades. O fazer, nesse processo terapêutico, possibilita o resgate do
poder agir e, assim , transforma não somente as atividades, mas também as relações e
o cotidiano.
Os terapeutas ocupacionais estão inseridos em serviços públicos, como o CAPS,
os ambulatórios de saúde mental ou de especialidades, as unidades básicas de saúde
(UBS), as enfermarias de psiquiatria, entre outros, e também em clínicas e consultórios
particulares. As intervenções desses profissionais podem ser ind ividuais ou em grupo,
dentro e fora das instituições, em conjunto com outros profissionais que constituem a
equipe mu lt iprofissional.
A TO compõe essa rede de cuidados destinados aos portadores de esquizofrenia,
sendo importante ferramenta no processo de reabilitação dessas pessoas. Funciona
como uma ponte que facilita a retomada ou a criação de objetivos para conquistar uma
vida ativa, produtiva, autônoma, significativa e prazerosa.
Entre a razão e a ilusão 73

Isso é loucura?
As pessoas dão muitos significados para a palavra "loucura"; em geral,
associam-na a uma mudança no jeito de ser, a uma perda permanente
da razão e da autonomia, e que pode levar a urna perda do controle
das próprias ações. Muita gente acha que a loucura não tem cura, e,
como consequência, as pessoas que enlouquecem devem ser inter-
nadas definitivamente, pois não são confiáveis e podem se tornar peri-
gosas. A família de Gabriel não sabe o que pensar. Eles sabem que os
vizinhos dizem que seu filho ficou louco, e isso causa grande descon-
forto. Eles procuram o Dr. Marcelo, angustiados com esta questão: afinal
de contas, o Gabriel ficou louco? O médico escuta o que os pais têm
ouvido dos vizinhos e percebe o quanto isso é difícil para eles.
O psiquiatra explica que "loucura" é uma palavra que as pessoas usam
há séculos para explicar o que elas desconhecem; chamam de loucas as
pessoas que têm um comportamento que não é igual ao de todo mundo,
em geral associado ao descontrole (desatino). Explica que Gabriel não
ficou "louco"; ele tem uma doença que tem tratamento. Essa doença
pode causar momentos de descontrole, mas, com os tratamentos, é
possível controlar os sintomas, e, com o tempo, Gabriel poderá entender
o que se passa com ele e lidar com a doença. Com o tratamento adequado,
ele irá passar a maior parte do tempo da sua vida sem apresentar situa-
ções em que os sintomas ficam mais intensos e, somente em raras opor-
tunidades, apresentará situações de descontrole.
Os pais falam da dificuldade, principalmente do irmão mais velho, de
conviver com Gabriel. O médico percebe que a doença do jovem está
angustiando a família inteira e que explicar os mecanismos da doença,
neste momento, não vai ajudá-los muito. Ele diz que no hospital existe
um grupo de acolhimento para as famílias, e seria bom que todos os
membros da família pudessem participar dele, pois isso poderá ajudá-
-los a lidar com o que está acontecendo.
A primeira sessão nesse grupo foi marcante para todos, pois puderam
falar de suas experiências e ouvir as experiências de outros familiares
de portadores de esquizofrenia. Os pais falaram corno era difícil lidar
74 • Assis, Villares & Bressan

com o problema do filho. Júlia acha que seu irmão apenas é diferente
e que cada um tem o direito de ser como quiser. Renato ficou calado,
até seu irmão falar. Gabriel contou que vive com muito medo, ouve
vozes e sente que está sendo perseguido, que as pessoas sempre estão
falando dele, mas agora está bem melhor, antes ele nem conseguia sair
do quarto. Júlia falou que gosta do irmão do jeito que ele é e espera
que o tratamento o ajude a sofrer menos. Os pais concordam. Renato
pôde então se abrir, disse que gosta do irmão, mas tinha medo de falar
o que pensava, pois havia percebido que só piorava as coisas, então,
evitava problemas; entretanto, disse que mudaria e pararia de evitar o
. ~

1rmao.
A terapeuta pôde mostrar, com base nessas falas, que Gabriel tem seus
problemas, mas cada um tem suas questões a serem entendidas e mais
bem elaboradas, e que aquele era um espaço para estimular todos a
falarem abertamente dos problemas e ampliar o diálogo para a convi-
vência familiar do dia a dia. Com isso, cada um pôde ouvir melhor as
questões dos outros, e ficou mais fácil lidar com as dificuldades.
Esse entendimento é fundamental: a doença afeta a pessoa com esqui-
zofrenia, mudando sua maneira de estar no mundo, mas, ao mesmo
Entre a razão e a ilusão 75

tempo, traz questões para outros membros da família, e cada um tem


de fazer um esforço para entender e aprender a lidar com as próprias
questões, de forma que a convivência não gire em torno dos problemas
da pessoa doente. Isso, por um lado, possibilita lidar de maneira mais
focada com o indivíduo com esquizofrenia; por outro lado, abre espaço
para que cada membro da família continue sua vida, com as exigências
e atividades naturais do cotidiano. Por esse entendimento, a família
fica menos vulnerável às atitudes de incompreensão, discriminação e
comentários estigmatizantes das pessoas da comunidade que ignoram
as questões humanas a que todos estão sujeitos, e os transtornos
mentais fazem parte dessas questões.
A esquizofrenia não é loucura, é uma doença. "Loucura" é a incom-
preensão, o descaso e a falta de tratamento digno para as pessoas que
vivem com as dificuldades impostas pela esquizofrenia e não têm o
acesso aos tratamentos de qualidade, como Gabriel e sua faIID1ia estão
recebendo.

Caminho até odiagnóstico


O caminho até o diagnóstico da esquizofrenia nem sempre segue o
curso que Gabriel e sua família percorreram; isso porque é preciso
aceitar o tratamento com o psiquiatra por pelo menos seis meses, para
que seja possível saber se o que a pessoa tem é esquizofrenia ou se
trata de outros transtornos mentais com características parecidas.
Muitas pessoas desistem do tratamento quando melhoram um pouco
ou se negam a tomar a medicação. Além disso, nem sempre é possível
seguir os tratamentos chamados psicossociais, como a terapia ocupa-
cional e a psicoterapia, e também não é fácil para a pessoa e sua família
lidar com o diagnóstico de esquizofrenia. Vejamos como esse processo
se dá na vida de nosso personagem.
Gabriel tem uma melhora progressiva com o tratamento. Aos poucos,
durante os últimos meses, as vozes foram tornando-se menos
frequentes, até que desapareceram. Ele já não se sente tão perseguido,
e os pensamentos de que ele era o "centro das coisas" que acontecem
76 • Assis, Villares & Bressan

a seu redor vão perdendo a força. Entretanto, ele vai se dando conta
de que não tem mais a mesma velocidade de raciocínio, tem mais difi-
culdade que os irmãos nas coisas que fazem juntos, tem dificuldade
para conversar com as pessoas e manter o assunto. Isso o deixa um
tanto desgostoso com a vida.
Nas consultas com o Dr. Marcelo, em que vai acompanhado de seus
pais, Gabriel reclama dessas dificuldades. O médico diz para ele ter
paciência e não desistir. Pede para que, aos poucos, ele volte a fazer as
atividades em que tem mais dificuldade, pois com o tempo ele deve
melhorar. Esse pode ser um processo longo e desgastante, mas é funda-
mental não desanimar para poder explorar todo seu potencial. Diz:
"Gabriel, todos nós temos limitações, mas precisamos aprender a lidar
com elas e, na medida do possível, superá-las".
Os pais de Gabriel sempre perguntam qual o diagnóstico do filho. O
médico avaliou cuidadosamente o caso até ter segurança para fechar o
diagnóstico. Em uma longa consulta, mostrou que o diagnóstico da
doença que o jovem apresenta é esquizofrenia.
Nessa consulta, ele tomou o cuidado de esclarecer todas as dúvidas de
Gabriel e de seus pais. A primeira reação deles é de decepção, pois eles

- ======---

Entre a razão e a ilusão 77
acham que esquizofrenia é um diagnóstico muito ruim. Lembram-se
da filha de um conhecido que tem a doença e um comprometimento
grave. O médico esclarece que a esquizofrenia se manifesta em cada
indivíduo de uma forma diferente, não dá para comparar as pessoas.
Existem alguns casos que evoluem sem grandes comprometimentos no
funcionamento do sujeito. Disse que Gabriel está tendo uma boa
evolução até o momento e que deve seguir os tratamentos para manter
o que já conquistou e melhorar ainda mais.
A aceitação do diagnóstico de uma doença crônica é difícil para qual-
quer um. No caso da esquizofrenia, esse diagnóstico vem acompa-
nhado de uma série de definições negativas, que as pessoas acabam
assumindo como uma realidade irremediável. Por isso, evitamos, ao
longo deste livro, trabalhar com definições, e preferimos nos centrar
mais em vivências e percursos possíveis, nos quais podemos apresentar
experiências práticas e reais de resolução de problemas, por meio das
vivências dos personagens.
O psiquiatra mostra para Gabriel e para seus pais que o diagnóstico
não é uma sentença decretada por um juiz. Explica que serve apenas
para melhorar o entendimento das coisas que Gabriel está vivendo e
melhorar o tratamento. Diz: ''A esquizofrenia não define o que você é,
Gabriel, entenda apenas como uma doença que você precisa cuidar;
você é muito mais do que a doença que você tem".

Marcelo Q. Hoexter - Psiquiatra


O diagnóstico e o tratamento adequado de qualquer quadro psiquiátrico dependem de
dois fatores muito importantes que jamais devem caminhar separadamente: o conheci-
mento técnico-científico da medicina (sinais/sintomas; medicações; efeitos colaterais) e
a relação que se estabelece entre o médico e seu paciente.
Sem o conhecimento técnico-científico adequado, o médico não será capaz de pes-
quisar, junto ao paciente, circunstâncias de vida, comportamentos, relacionamentos

conlinua .. .
78 • Assis, Villares & Bressan

. . . conlinu.acão
,

familiares e pessoais, sinais e sintomas que irão auxiliar o diagnóstico adequado. Se o


diagnóstico médico não é feito corretamente, é pouco provável que o tratamento propos-
to beneficie o paciente e diminua seu sofrimento.
No entanto, ter apenas o conhecimento técnico-científico também não é suficiente.
Outro ingrediente muito importante para o sucesso do tratamento é a relação médico-
-paciente. Essa relação se baseia no estabelecimento de um vínculo de confiança entre
o médico e o paciente e que ocorre quando o profissional é capaz de reconhecer, aco-
1her e dar continência ao sofrimento do paciente e de seus familiares. A comun icação
adequada entre médico, paciente e familiares é fundamental para a manutenção desse
víncu lo. Se o vínculo e a comunicação não são adequados, pergunta-se: quem seguiria a
orientação de um profissional se não houvesse confiança? Quem tomaria medicações se
os efeitos benéficos e os efeitos colaterais não fossem explicados? Quem se submeteria
a um tratamento se suas dúvidas e angústias não fossem valorizadas?
Sendo assim, cabe ao médico expressar-se de maneira adequada, permitindo o bom
entendimento dos fatos. Cabe a ele orientar claramente os pacientes e familiares usando
uma linguagem adequada, bem como estar preparado para ser questionado a respeito do
diagnóstico e da conduta terapêutica. Cabe ao médico dar orientações a respeitos dos
sintomas e do comportamento do paciente, e também explicar por que o diagnóstico
é "A" e não "B". Cabe a ele explicar por que escolheu o medicamento "X" em vez do
"Y", assim como orientar sobre os possíveis efeitos colaterais das medicações. Cabe ao
médico reconhecer que nem sempre as intervenções terapêuticas sugeridas tiveram os
melhores resultados. Por fim, cabe a ele escutar e respeitar as dificu ldades dos pacientes
e familiares, buscando juntos a melhor alternativa. Isso é relação médico-paciente.

Iem cura?
Gabriel e seus pais questionam o Dr. Marcelo se a esquizofrenia tem
cura. Essa é uma questão importantíssima, e é necessário entender
mais de perto o que ela envolve. O médico sabe que esse é um momento
muito importante do tratamento, pois a forma como Gabriel e seus
pais entenderem essa questão determinará a forma como eles se rela-
cionarão com a esquizofrenia e seu tratamento.
O médico explica que a medicina conhece a cura para poucas doenças,
mas ela propõe tratamento para muitas delas, de maneira que as
pessoas possam viver melhor e com qualidade. No caso da esquizo-
frenia, há uma parte dos portadores (13%) que apresenta somente um
episódio psicótico e, em seguida, retoma a seu funcionamento habi-
Entre a razão e a ilusão 79

tual. Para os demais portadores, a medicina ainda não conhece uma


cura, mas há tratamentos eficazes que os ajudam a viver com quali-
dade, pois previnem recaídas.
Gabriel pergunta ao Dr. Marcelo se ele irá voltar ao normal. O médico
responde que não se trata de normal ou anormal, a esquizofrenia é
uma doenç.a que muda, o caminho de vida; a questão é se é possível
viver bem e ser feliz. E possível viver muito bem, desde que a pessoa
que tem esquizofrenia aprenda a viver nesse novo caminho. Gabriel
pede para ele explicar melhor.
O médico responde com exemplos: "Gabriel, com a Fátima você
aprendeu a pintar muito bem e a fazer belas peças em argila e mosaico,
além de organizar seu dia a dia, no qual você é produtivo. Você ajuda
sua mãe no lar, ajuda seu pai quando ele traz trabalho do escritório
para casa".
O jovem questiona: "Mas minha irmã estuda, meu irmão trabalha, e eu
não consigo mais entrar na faculdade nem trabalhar, é isso que eu
quero dizer com normal". O médico responde: "Gabriel, todos nós
temos limitações, isso não quer dizer que não somos normais. A
maioria de meus amigos médicos foi reprovada pelo menos duas vezes
no vestibular até entrar no curso de medicina. O importante é você se
cuidar, dando um passo de cada vez. Não está escrito em nenhum livro
de medicina que você não pode trabalhar nem estudar, você não
precisa desistir de suas aspirações porque recebeu um diagnóstico de
esquizofrenia".
Gabriel, então, reclama que não tem mais amigos como antes porque
as pessoas acham-no esquisito. Então, o médico lembra-o das vezes em
que foi ao cinema com sua irmã e as amigas dela, lembra também das
vezes em que se divertiu com o irmão vendo seu time jogar no estádio.
Disse que não importa a opinião dos outros, o importante é ele conviver
bem com os amigos que pode fazer e que o aceitam como ele é, pois é
assim para todas as pessoas.
Ao chegar em casa, Gabriel convida a irmã para dar uma volta no
parque. Ele conta para ela toda a conversa com o Dr. Marcelo. Júlia
escuta com atenção. Depois ela fala que talvez o problema não seja a
80 • Assis, Villares & Bressan

esquizofrenia, porque se ele se tratar, a doença fica controlada. O


problema, diz Júlia, é ele encontrar coisas para ser feliz e não se
comparar com as outras pessoas.
A partir dessas conversas, Gabriel abre as portas de seu mundo interior
para lidar com o fato de ter recebido o diagnóstico da esquizofrenia.
Júlia é uma jovem sensível e inteligente. Depois de acompanhar as
dificuldades do irmão, lembra-o de que sua vida e felicidade estão em
suas mãos e não são determinadas pelo diagnóstico que recebeu. Ela
representa o bom senso que deve prevalecer quando nos deparamos
com um problema de saúde que não tem uma solução imediata, como
é o caso da esquizofrenia. Muitas pessoas, quando se deparam com o
diagnóstico, ou não aceitam, ou se entregam, não conseguem lidar
com a realidade como ela se apresenta. Veremos, ao longo do livro,
como a vida é dinâmica; ela é feita de dificuldades, mas também de
oportunidades e possibilidades.

Um aprendizado necessário
Apresentamos, pela história de Gabriel, como se dá um processo de
tratamento que começa com um episódio psicótico agudo até chegar a
um diagnóstico de esquizofrenia. Conhecemos algumas das inúmeras
dificuldades que as pessoas, tanto familiares quanto o indivíduo que
Entre a razão e a ilusão 81

tem esquizofrenia, enfrentam. Inicialmente, uma grande dificuldade é


entender a necessidade do tratamento; em seguida, a dificuldade é
conseguir os tratamentos e, depois, a maior dificuldade está em aceitar
os tratamentos propostos. Procuramos mostrar, com o exemplo de
Gabriel, que esse processo é possível, pois se baseia em casos reais que
conhecemos.
Nosso objetivo é mostrar um caso real razoavelmente bem-sucedido
de acompanhamento até o diagnóstico, de maneira que nossos leitores
possam se orientar ante suas questões individuais. Com este material,
esperamos que as pessoas que têm a doença e seus familiares percebam
mais rapidamente o problema, procurem ajuda e sigam o tratamento.
No caso de Gabriel, houve a demora de alguns meses para que eles
procurassem ajuda e outros
,
tantos meses para que iniciassem o trata-
mento de forma efetiva. E importante saber que quanto menor for o
tempo entre o início dos sintomas e o tratamento, melhor será a
evolução da pessoa.
Da mesma forma que conhecemos casos bem-sucedidos como o de
Gabriel, também conhecemos casos mais difíceis, mas constatamos
que a esperança realista sempre é a melhor escolha, por mais difícil

Olá,
Doutor ...


82 • Assis, Villares & Bressan

que a situação se apresente. Jorge, um dos autores deste livro, só foi


aprender a lidar com a esquizofrenia depois de 18 anos do apareci-
mento da doença e de quatro crises agudas. Entretanto, acreditamos
que não é preciso passar por todas essas dificuldades para lidar de
forma satisfatória com essa doença.
Esperamos, com este livro, mostrar a importância do diálogo com os
profissionais da saúde, procurando sempre os melhores caminhos.
Esperamos, também, ressaltar a importância da participação e do
acolhimento dos familiares, para que tanto eles quanto a pessoa com
esquizofrenia possam encontrar um entendimento que promova um
bom convívio.
Esse é um aprendizado necessário; não importa quantas crises o indi-
víduo com esquizofrenia já teve, entendemos que o diálogo e o acolhi-
mento das questões da pessoa, tanto pelos profissionais da saúde
quanto pelos familiares, é o melhor caminho para mudar a situação
em que o portador se encontra, para começar a construir maneiras de
redesenhar seu caminho de vida, aproveitando as oportunidades para
a aquisição de entendimentos importantes, e situar-se no mundo, ter
uma vida com qualidade junto a seus familiares e amigos.
O grande desafio para a pessoa que tem esquizofrenia e para seus
familiares está nesse aprendizado de cuidar da doença, mas também
cuidar da qualidade de vida e dos relacionamentos. Os desentendi-
mentos e a não aceitação acabam por se tomar um grande empecilho,
os quais fecham as possibilidades que precisam ser construídas no coti-
diano. Não existem regras ou prescrições para enfrentar esse desafio;
sabemos que o bom senso e a divisão do peso das dificuldades com
outras pessoas são boas estratégias para enfrentar e superar questões
para as quais não encontramos respostas práticas satisfatórias.
O processo diagnóstico representa um começo. O tratamento da esqui-
zofrenia é necessário por tempo indeterminado. Apresentaremos
adiante, por meio da história de Gabriel, como o processo até uma
estabilização ante a esquizofrenia pode se dar.
Que doença é esta?

Oentendimento científico
dimin11i oestigma da doença
,
E muito difícil, no caso de Gabriel e sua família, entender que suas difi-
culdades e experiências internas são sintomas de uma doença. Este
entendimento pode ser muito útil: o de quando existe a compreensão
de que a pessoa é maior que a doença e de que com os tratamentos ela
tem mais possibilidades e meios para ser o que realmente é, com níveis
muito menores de interferência da doença.

,,,,

___.
....._ MM's
84 • Assis, Villares & Bressan

Apresentamos, neste capítulo, de forma simples, como os resultados


de extensivas pesquisas científicas em áreas como epidemiologia,
neuroimagem estrutural e molecular; genética e neuropsicologia
contribuem para entendermos melhor diferentes aspectos da esquizo-
frenia.
Desmistificar a esquizofrenia passa pela compreensão do que se passa
em um plano mais amplo, como ela se apresenta em uma perspectiva
populacional, isto é, na sociedade. Então, pessoas como Gabriel e sua
família podem entender que o que vivem não é um caso isolado, mas
acomete muitas outras pessoas em toda parte do mundo. Podem
compreender também que não são vítimas de uma sociedade perversa
que oprime os mais fracos, que devem se contentar com o que lhes é
oferecido.
O principal órgão afetado na esquizofrenia é o cérebro, e os sintomas
da doença são fruto de alterações em seu funcionamento. A compre-
ensão dessa disfunção cerebral ajuda a entender por que as pessoas
com esquizofrenia podem agir de forma diferente das pessoas sem a
doença. Ajuda também a entender que a esquizofrenia é uma doença
semelhante a outras da medicina (p. ex., diabetes e hipertensão), em
que se pode estudar a relação dialética entre os fatores genéticos e os
fatores ambientais que causam a doença.
A esquizofrenia afeta várias dimensões do sofisticado funcionamento
cerebral, responsável pelo processamento das informações culturais,
experiências vivenciais, processamento cognitivo e funcionamento
emocional. Dessa forma, ela passa a ter implicações profundas no jeito
como o indivíduo vê o mundo, como se relaciona com as pessoas, com
o trabalho e com o lazer. Tal compreensão, no entanto, não limita o
indivíduo com esquizofrenia à doença, pois cada um tem sua forma
própria de lidar com as dificuldades impostas por ela. Muitos encon-
tram soluções altamente criativas que os tornam seres humanos fasci-
nantes. Entretanto, muitas pessoas com a doença vivem com imensas
dificuldades para encontrar seu "lugar no mundo"; para essas pessoas,
propomos que é possível, e muito útil, entender que a doença não
limita suas qualidades humanas.
Entre a razão e a ilusão 85

Epidemiologia e impacto na sociedade


A epidemiologia estuda de forma metódica como as doenças e a saúde
se apresentam nas populações humanas. "Prevalência" é um termo da
epidemiologia que indica a porcentagem das pessoas da população em
geral que tem a doença ao longo de um período ou ao longo da vida.
Estudos mostram que entre 0,4 e 0,7% da população em geral desen-
volve esquizofrenia ao longo da vida (prevalência) . A esquizofrenia
acontece em todas as culturas, mas com taxas diferentes. Existe uma
relação de 1,4 de homens para cada mulher afetada, isto é, ela afeta
40% mais homens do que mulheres. A partir do censo de 2000 do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estima-se que
existam 1,75 milhão de portadores de esquizofrenia no Brasil.
"Incidência", na epidemiologia, é o termo usado para indicar quantas
pessoas adoeceram de uma doença em um determinado local e
período. Para a esquizofrenia, estima-se entre 1 e 2 novos casos por
ano para cada grupo de 10 mil pessoas. Entretanto, estudos recentes
mostram que a incidência é maior em centros urbanos e menor em
regiões pouco urbanizadas ou rurais.
86 • Assis, Villares & Bressan

Assim, como toda doença, a esquizofrenia causa um impacto,


(sobre-
carga) para a pessoa, para a família e para a sociedade. E importante
saber como isso acontece para que se faça um planejamento dos trata-
mentos e, também, das políticas de saúde para atender a todos os
afetados na sociedade. Procuraremos esclarecer como a sobrecarga se
dá nestes dois níveis, o individual e o populacional.
Do ponto de vista individual, a esquizofrenia se caracteriza por crises
agudas que, se bem tratadas, duram em torno de um mês ou menos, e
por períodos de remissão, que podem durar anos, também se forem
bem tratados. A questão central é que os períodos de crises afetam
profundamente a vida da pessoa com esquizofrenia e sua fa1TI11ia, difi-
cultando muito a reintegração nos períodos de remissão. Isso acontece
porque a experiência de ficar psicótico ou de "enlouquecer" tem reper-
cussões importantes tanto no modo de funcionar da pessoa como nas
relações familiares e sociais. Nos períodos de crise, a pessoa apresenta
crenças e comportamentos muito diferentes, que podem causar estra-
nheza e, algumas vezes, medo nos familiares e amigos. Além disso, ela
pode se afastar ou romper relacionamentos pessoais muito impor-
tantes.
Quando ela entra no período de remissão, tudo fica mais difícil, pois
sua rede de relacionamentos fica muito reduzida. Para algumas
pessoas, essa rede se reduz à fa1TI11ia, que dá suporte e cuidado, e aos
profissionais da saúde, que a tratam. Considerando que os locais de
tratamento no Brasil não dão conta de atender a todas as pessoas com
esquizofrenia, a sobrecarga da família é maior; e também expõe muitas
pessoas com a doença a ficar sem nenhum suporte, as quais se tomam
moradores de rua.
Do ponto de vista populacional, a sobrecarga é descrita por meio dos
"anos de vida perdidos ajustados por incapacidade" (sigla em inglês
"DALY"), que é a sorna de dois elementos:

a) O primeiro elemento são os anos de vida perdidos (sigla em inglês


"YLE'), o qual avalia quantos anos a pessoa vive a menos do que sua
expectativa de vida devido à influência da doença. No caso da esqui-
zofrenia, a sobrecarga relacionada à doença leva as pessoas a viverem,
em média, 1 O anos a menos do que a população em geral.
Entre a razão e a ilusão 87

b) O segundo elemento são os anos vividos com incapacidade. Deve-se


levar em consideração que cerca de um terço das pessoas com
esquizofrenia tem uma recuperação boa; um terço tem uma recupe-
ração com perdas significativas; e um terço tem um curso deterio-
rante ao logo dos anos. A sobrecarga da esquizofrenia na população
é calculada pela soma desses dois elementos (a + b).

Saber da sobrecarga no nível individual é muito importante nos trata-


mentos para compor com o indivíduo e com a família um projeto tera-
pêutico que ajude as pessoas a viver melhor e a enfrentar as dificul-
dades que a doença coloca na vida cotidiana.
Conhecer a sobrecarga no nível populacional é muito importante para
se definir os investimentos em saúde mental, considerando que os
recursos para a saúde são escassos e devem ser bem utilizados para
atender a todos que precisam. Também é importante para que cada
pessoa com esquizofrenia e sua família procurem aproveitar da melhor
maneira os tratamentos que estão disponíveis, isto é, utilizando de
forma consciente as propostas terapêuticas e utilizando os medica-
mentos de forma dialogada com o médico.
A história do Gabriel mostrará que enfrentar a sobrecarga da esquizo-
frenia não é uma questão de "escolha racional", mas um aprendizado
necessário para a efetiva construção de um cotidiano com qualidade.

1 •
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88 • Assis, Villares & Bressan

Quando se fala em uma doença, logo se pensa em qual órgão do corpo


ela acomete. A partir dos sintomas, pode-se inferir que o órgão afetado
na esquizofrenia é o cérebro, que determina como pensamos e perce-
bemos o mundo. Como o órgão mais complexo do corpo, o cérebro é
responsável pela elaboração do que pensamos, e processamentos
disfuncionais podem dar origem a delírios ou desagregação do pensa-
mento. Ele processa também as informações sensoriais dos órgãos dos
sentidos, tais como audição, visão, tato e paladar, que, alteradas,
podem desencadear alucinações.
O cérebro processa todas as funções mais sofisticadas do ser humano,
tais como sentimentos, vontade, sociabilização, e por meio dele tomamos
decisões. Portanto, as doenças que afetam o cérebro influenciam o jeito
de ser de cada um e estão diretamente ligadas aos sintomas negativos
(apatia, dificuldade de sociabilização, retraimento emocional). Assim,
respondendo ao título desta seção, o problema acontece no cérebro, e
somente é percebido pelas alterações no comportamento da pessoa.
O funcionamento do cérebro na esquizofrenia é objeto de grande
volume de pesquisas. Nosso cérebro começa seu desenvolvimento
(neurodesenvolvimento) durante a gestação, ou seja, dentro do útero
de nossa mãe; no entanto, não nasce pronto. Muito de seu desenvolvi-
mento acontece após o nascimento, e a fase em que esse desenvolvi-
mento é mais acentuado é até o final da adolescência e o começo da
vida adulta. Assim como cada rosto ou digital são únicos, cada pessoa
tem um cérebro que se desenvolve de maneira singular - isso não é
diferente do resto do corpo. Nossas pernas, por exemplo, também se
desenvolvem a partir de estímulos ambientais e predisposições gené-
ticas. Um jogador de futebol terá a perna que chuta a bola mais muscu-
losa do que a outra, mas jogadores de futebol diferentes terão mais ou
menos musculatura de acordo com fatores genéticos particulares. Com
o cérebro é parecido: o que determina seu desenvolvimento é a inte-
ração entre a carga genética de cada um e sua interação com o
ambiente; estímulos cognitivos, afetivos, de sociabilização e motores
são fundamentais para que ele se estabeleça de forma saudável.
Entre a razão e a ilusão 89

Pesquisadores vêm demonstrando que a doença é o resultado da


relação do desenvolvimento do nosso cérebro ao longo do tempo, ou
seja, ocorre a partir de todas as experiências que o estimularam durante
seu amadurecimento, e não somente no período que antecede o apare-
cimento dos sintomas. Assim, a parte saudável e preservada da pessoa
pode ser um elemento central nos resultados dos tratamentos medica-
mentoso e psicossocial.

Genética e esquizofrenia
Muitos fatores biológicos e também as relações destes com todas as
experiências vividas estão envolvidos no aparecimento e desenvolvi-
mento da esquizofrenia.
A palestra do Dr. Ary Gadelha, transcrita a seguir, ajuda muito a escla-
recer os fatores genéticos envolvidos na esquizofrenia e como eles
interagem com os fatores ambientais.

-
Psiquiatra
Uma das questões mais comuns - e talvez a mais difícil de responder - ao se estudar
a esquizofrenia é justamente o porquê, o que leva algumas pessoas a apresentarem
sintomas como delírios ou alucinações. A genética é uma das ciências que mais tem
contribuído em dar respostas a essa questão. Mas, afinal, o que é genética? A genética é
a ciência que estuda os genes. Os genes são porções do DNA, uma substância contida no
núcleo de nossas células, que contém informações para cada característica nossa, como
a cor dos olhos ou da pele e nossa altura. Os genes seriam como uma receita nossa, mas
quem nós realmente somos vai além da informação contida neles. Fatores ambientais
como alimentação, atividades esportivas e educação moldam as características genéti-
cas de forma a tornar cada indivíduo um ser único, com características próprias.
Uma evidência importante de que fatores genéticos influenciam a esquizofrenia é a
observação de que há um risco familiar aumentado para a doença. Por exemplo, estima-
-se que a prevalência da esquizofrenia na população em geral gire em torno de 1%, mas
quando uma pessoa é afetada, o risco de outra pessoa na mesma família {parente em
primeiro grau) ser afetada sobe para algo em torno de 8%. Embora a probabilidade de
ser acometido permaneça baixa, isso representa um aumento de oito vezes no risco de
90 • Assis, Villares & Bressan

. . . conlinu.acão
,

desenvolver a doença. Além disso, estudos com gêmeos idênticos mostram que quando
um é afetado a chance de o outro também ser gira em torno de 44%. Somado a isso,
observa-se que quanto maior a carga genética comparti lhada com um portador, maior a
chance de desenvolver a doença (gêmeos> parente em primeiro grau > população em
geral).
Bom, mas se esses dados sugerem que a esquizofrenia é uma doença "genética",
eles também falam a favor de uma doença "ambiental ", uma vez que mesmo uma cópia
genética do portador, no caso um gêmeo idêntico, só desenvolve a esquizofrenia em
cerca de metade dos casos. Isso quer dizer que os fatores genéticos são importantes,
mas não determinam sozinhos a ocorrência da doença. Eles tornariam um indivíduo
vulnerável, e o desenvolvimento dependeria da exposição a situações ambientais, como
complicações no parto, infecções, migração ou uso de drogas.
Até agora, vários genes foram relacionados a um risco aumentado para a esqui-
zofrenia. No entanto, nenhum deles, isoladamente, parece explicar a doença, e ainda
estamos distantes de um exame que possa dizer quem tem ou quem vai desenvolver a
esquizofrenia. Enquanto mais estudos têm sido realizados para aumentar o conhecimen-
to e permitir a criação de novos medicamentos ou métodos diagnósticos, a detecção e o
tratamento precoces ai nda são as melhores formas de minimizar o impacto da doença.

' .........
Entre a razão e a ilusão 91

Alteração do funcionamento
cerebral - dopamina
A transmissão de informação entre as células do cérebro acontece por
meio de substâncias químicas chamadas neurotransmissores. Assim,
todos os processos cerebrais, tais como a visão, a audição, o paladar, o
olfato e o tato, bem como tudo o que pensamos e sentimos, são infor-
mações processadas por neurônios que se comunicam por meio de
neurotransmissores.
Um neurotransmissor bastante estudado na esquizofrenia é a dopa-
• •
mina, pois:

a) sabe-se que os medicamentos para a esquizofrenia atuam dimi-


nuindo a função da dopamina;
b) sabe-se que drogas psicoestimulantes que aumentam a dopamina
(tais como anfetamina e cocaína) induzem sintomas parecidos com
os da esquizofrenia (p. ex., delírios e alucinações).

A dopamina é responsável pela atribuição de relevância, ou, melhor


dizendo, saliência, aos estímulos do ambiente. Dessa forma, ela inter-
fere diretamente nas representações internas que fazemos a respeito
das nossas percepções. Em circunstâncias normais, a dopamina tem o
papel de atribuir saliência para estímulos ligados ao prazer ou à
aversão. Ela faz a mediação dos processos de atribuição de saliência
(importância/relevância) aos estímulos, mas, em circunstâncias
normais, ela não cria os estímulos.
Por meio de uma técnica chamada neuroimagem molecular, é possível
estudar essas substâncias no cérebro das pessoas que têm esquizo-
frenia. Estudos feitos com essa técnica demonstraram consistente-
mente que as pessoas com a doença têm um aumento da síntese e libe-
ração de dopamina. Esta é uma das alterações cerebrais mais impor-
tantes e bem comprovadas na esquizofrenia.
A função aumentada da dopamina na esquizofrenia modifica o
processo natural de atribuir saliência dentro de um contexto normal e
92 • Assis, Villares & Bressan

dirigido. Nessas condições, há uma atribuição alterada de saliência


dos objetos externos e das suas representações dentro da pessoa.
Assim, supõe-se que, devido ao aumento de dopamina, há uma atri-
buição errônea de saliência a estímulos pouco importantes, que se
tornam muito importantes para o indivíduo.
Antes de a esquizofrenia aparecer, a pessoa pode passar meses ou
anos acumulando experiências salientes de forma sutilmente alte-
rada, em um período chamado "pródromos da doença". Isto é, sensa-
- .
çoes e acontecimentos - corr1que1ros
que sao . . para os outros passam a
ter muita importância para o sujeito. Eventos com um nível de
estresse maior do que a pessoa consegue lidar têm como consequência
a estruturação dos delírios e alucinações, como forma de dar um
sentido para a experiência de viver com um estado de saliência alte-
rada. A partir daí, a pessoa passa a ter "ideias psicóticas" que servem
como um novo esquema cognitivo que orienta a maior parte dos
pensamentos e ações. Gabriel, por exemplo, gostava de escrever, e
uma das experiências psicóticas que ele passou a ter foi acreditar que
escritores famosos queriam roubar suas ideias, o que comprometeu
seu funcionamento como um todo.
Dessa forma, é possível entender por que não adianta afirmar para a
pessoa com delírios e alucinações muito intensos que o que ela está
vivenciando não está acontecendo de fato, dado que seu cérebro está
com a dopamina alterada e a crença nos fatos é total. Ela não tem
condição de criticar o que está sentindo, e passa a funcionar como se
essas experiências fossem totalmente reais.
Apesar de a dopamina ter um papel importante na esquizofrenia, não
se pode dizer que ela seja a única alteração. Existem muitas evidências
de alterações em outros sistemas de neurotransmissão cerebral,
incluindo sistema do glutamato, serotonina e acetilcolina.
A dopamina é um elemento importante na experiência vivida na esqui-
zofrenia, mas é preciso dizer que ela não é a única responsável pela
doença. Entretanto, entender o papel da dopamina permite tratar a
doença com medicamentos que diminuem sua função .
Entre a razão e a ilusão 93

DOPAMINA NO CÉREBRO

Via Nigroestriatal

Via Mesolímbica

DOPAMINA NA ESQUIZOFRENIA

Via Nigroestriatal
Sintomas
NEGATIVOS
• Apatia
• Diminuição
do afeto
• Isolamento
social

Via Mesolímbica
Sintomas POSITIVOS
• Delírios
• Alucinações

(AHV(A~/1.
94 • Assis, Villares & Bressan

Tratamento da alteração
cerebral - antipsicótico
A esquizofrenia é uma doença que tem tratamento. Uma parte funda-
mental deste é o uso de uma classe de medicamentos chamada antipsi-
cóticos. A outra parte é composta por abordagens terapêuticas, que
incluem terapia ocupacional, psicologia, serviço social, reinserção
sócio-ocupacional, treinamento de habilidades sociais, entre outras.
Aqui, abordaremos os mecanismos cerebrais envolvidos no tratamento
medicamentoso e seus resultados. A partir dessa perspectiva, aponta-
remos também por que e quando os tratamentos psicossociais são
importantes.
Os medicamentos antipsicóticos têm em comum a função de bloquear
receptores de dopamina. O uso correto desse tipo de medicamento
permite uma regulação da saliência provocada pela dopamina,
formando uma plataforma interior a partir da qual é possível um
enfrentamento dos sintomas. Entretanto, os antipsicóticos não mudam
o processo de desregulação descrito no item anterior. Dessa forma,
Entre a razão e a ilusão 95

enquanto a pessoa toma a medicação, a saliência aumentada provo-


cada pela dopamina fica controlada, mas se o indivíduo parar de tomar
a medicação, ela volta a ser relevante, e ele tem grandes chances de ter
uma recaída, com a volta dos sintomas da esquizofrenia.
O bloqueio de receptores de dopamina atinge um estado de equilíbrio
nos primeiros dias, mas a melhora dos sintomas é lenta e cumulativa.
Quando a pessoa está em uma crise aguda (episódio psicótico agudo),
em geral, a resposta à medicação fica mais clara a partir da primeira
semana de tratamento. Para se avaliar se houve uma boa resposta, é
preciso aguardar pelo menos duas semanas até, aproximadamente,
"
um mes.
As experiências que a pessoa tem na crise são como a ponta de um
iceberg que foi se estruturando durante o período que antecede a
doença, os pródromos. Assim, do ponto de vista da pessoa, as vivên-
cias são entendidas como totalmente reais. A medicação amortece a
saliência, mas não muda os conteúdos vividos pela pessoa; assim, os
conteúdos dos delírios e das alucinações deixam de ter a importância
que antes tinham e permitem que novas experiências sejam vividas
sem a saliência alterada.
Mesmo com os sintomas sob controle, as vivências da crise aguda
(delirante) são uma realidade para a pessoa. Para que ela consiga dar
significado às vivências delirantes, é necessário que as processe por
meio de um caminho de resolução psicológica e cognitiva. Nesse
sentido, os tratamentos psicossociais são fundamentais para dar novos
significados à doença.
A maioria das pessoas, mesmo depois de anos, acredita firmemente
que o que viveu com a esquizofrenia aconteceu de fato. E, realmente,
as experiências provocadas pela saliência aumentada aconteceram na
realidade interna da pessoa. Por isso, é necessário que o tratamento
seja mantido regularmente, para prevenir novas agudizações de
sintomas.
Dessa forma, é fundamental o uso da medicação para amortecer a
saliência provocada pela dopamina, o que possibilita que a pessoa
tenha um alívio dos sintomas, que normalmente deixam de ser vividos
com a importância intensa em que se apresentavam. A resolução dos
96 • Assis, Villares & Bressan

sintomas, ou entender a influência da esquizofrenia nas vivências que


se experimenta, tem muito em comum com os mecanismos pelos quais
todas as pessoas desistem de crenças muito caras ou temores assusta-
dores, e pode envolver o processo de mudanças interiores de ressigni-
ficação e encapsulamento dos conteúdos dos delírios e alucinações.
Os medicamentos antipsicóticos não removem o conteúdo do núcleo
dos sintomas, mas possibilitam que o cérebro funcione sem o processo
provocado pela função aumentada da dopamina. Dessa forma, o trata-
mento medicamentoso é fundamental, pois cria condições para que a
pessoa com esquizofrenia possa redesenhar seu caminho de vida, sem
ser refém do funcionamento cerebral alterado que está na base da
esquizofrenia como doença. Esse caminho a ser redesenhado se bene-
ficia muito dos tratamentos psicossociais, como se fosse o outro prato
da balança do equilíbrio mental, a ser constantemente trabalhado.

Neuroprogressão
Nosso cérebro, como já dissemos, continua a se desenvolver após o
nascimento, e, como todos os outros órgãos do corpo, seu desenvolvi-
mento se dá de forma particular em cada indivíduo e está associado à
singularidade da personalidade de cada um. Estudos mostram que as
pessoas com esquizofrenia, em geral, têm um desenvolvimento dife-
renciado do cérebro. Essas diferenças sutis precisam ser levadas em
consideração para entender a esquizofrenia como doença e como ela
progride. Essa abordagem permite pensar estratégias para se cuidar e
viver melhor, pois cuidar de si também é cuidar do próprio cérebro!
Várias pesquisas avaliaram grupos de pessoas com esquizofrenia por
meio de ressonância magnética nuclear cerebral e compararam-nas
com indivíduos sem a doença. Em média, as pessoas com esquizo-
frenia têm volume cerebral menor e reduções do volume de algumas
regiões, como o córtex, pré-frontal, o córtex temporal, o hipocampo, a
amígdala e o tálamo. E preciso entender que as diferenças são sutis e
não fazem as pessoas tomarem-se deficientes mentais, pois as reper-
cussões nas capacidades cognitivas são muito pequenas. Estudos
mostram que a diminuição das estruturas cerebrais não se dá à custa
Entre a razão e a ilusão 97

de perda de neurônios, mas da diminuição do número de conexões


entre eles. Ou seja, o que ocorre é que diminui a ramificação dos
neurônios e, portanto, a conectividade entre eles.
Essas alterações cerebrais sutis, em geral, precedem o primeiro
episódio psicótico e tendem a progredir com a evolução da doença.
Estudos recentes têm demonstrado que a redução de estruturas cere-
brais é maior em indivíduos que têm mais episódios psicóticos.
Alguns autores postulam que a presença de sintomas psicóticos agudos
é tóxica para o cérebro. Assim, a progressão da esquizofrenia com
muitos períodos de recaídas (episódios de agudização dos sintomas)
acaba levando a uma progressão da doença com um curso que pode
ser deteriorante tanto para o cérebro como para a vida e os desafios
que a pessoa enfrenta.

..... ...
._,
98 • Assis, Villares & Bressan

Esses achados reforçam a ideia de que devemos tentar todos os trata-


mentos para que as pessoas tenham remissão total dos sintomas (no
início da doença), bem como controle deles (nas fases mais tardias) .
Reforçam, também, a necessidade da prevenção de recaídas.
Nesse sentido, os medicamentos são fundamentais para a saúde do
cérebro da pessoa com esquizofrenia, pois facilitam a resolução das
questões impostas pela doença, à medida que os principais sintomas
ficam sob controle, e têm um papel fundamental na prevenção de
recaídas.
Essas informações são importantes para que a pessoa com esquizo-
frenia e sua família entendam que os tratamentos são fundamentais
não apenas para resolver as questões imediatas, mas também para
manter uma proteção do cérebro, evitando recaídas.

Esperança realista - neuroplasticidade


A esquizofrenia é uma doença que modifica as noções que o indivíduo
afetado tem sobre si mesmo e sobre sua relação com as outras pessoas e
com o mundo. Refugiado dentro de si mesmo, tem grande dificuldade
em estabelecer relações de confiança e de admitir que suas certezas
podem estar erradas. Isso dificulta o aprendizado, relações, experiências
novas e vivências que levem à superação das dificuldades psicológicas,
fundamentais para uma vida com novos significados. A medicação ajuda
muito, na medida em que atenua a saliência alterada provocada pela
dopamina, possibilitando que a experiência dos delírios e das alucina-
ções perca a importância, e, com novas experiências positivas, é possível
superar as dificuldades colocadas pelos delírios e alucinações.
Conforme a pessoa melhora, é preciso ter a consciência de que uma
parte é devida a seus esforços pessoais em um processo de superação
de dificuldades e de construção de uma vida cotidiana que pode ser
mais gratificante. Outra parte é devida à ação da medicação antipsicó-
tica, que não pode ser interrompida, para evitar recaídas.
As recaídas, além de provocar a perda da maior parte das conquistas e
superação que a pessoa realizou para ter uma vida com qualidade,
Entre a razão e a ilusão 99
também provocam perda de tecido cerebral. A cada recaída, a pessoa
tem menos recursos do cérebro para superar as dificuldades colocadas
pela esquizofrenia. A maior parte das recaídas se dá quando a pessoa
deixa de tomar a medicação por um período; então, a, função da dopa-
mina aumenta, e voltam os delírios e as alucinações. E preciso entender
que, apesar de a esquizofrenia poder causar perdas no funcionamento
da pessoa, a recuperação envolve um processo de redesenhar o
caminho na vida. Isso exige perseverança em uma perspectiva de
médio prazo. Quando a pessoa espera resultados rápidos com o uso
dos medicamentos e não leva em consideração a necessidade do
empenho pessoal nas atividades cotidianas, acaba gerando expecta-
tivas que não são realistas e se frustra. Nessas condições, se desconti-
nuar o uso da medicação, a situação fica mais difícil.
O cérebro, em alguns aspectos, é parecido com os músculos - quanto
mais o utilizamos, mais se desenvolve. Essa é a ideia por trás do
conceito de neuroplasticidade, que oferece uma perspectiva impor-
tante no tratamento de portadores de esquizofrenia. Quanto mais
duram os sintomas (p. ex., delírios e alucinações), mais o cérebro fica
acostumado (treinado) a manter esses sintomas, e fica mais difícil
revertê-los. Os sintomas devem ser tratados visando a remissão total,
pois sua presença - mesmo que atenuados - dificulta a recuperação e
favorece as recaídas.

..........
100 • Assis, Villares & Bressan

Por meio de terapias, os indivíduos podem desenvolver a capacidade


de insight, ou seja, entender os delírios e as alucinações como sintomas,
e não como realidade. Além disso, estudos recentes vêm demons-
trando que, por meio de treinamentos cognitivos, os pacientes com
esquizofrenia podem melhorar seu desempenho cognitivo e reverter as
perdas de tecido cerebral. Essas estratégias, combinadas com o trata-
mento com medicamentos, podem permitir à pessoa manter-se estável
e melhorar as condições em que se vive, seja no relacionamento com
as pessoas, seja no bem-estar interior. Esta é um busca constante de
equilíbrio que possibilita ter uma vida com qualidade e manter os
efeitos da esquizofrenia sob controle.
Tratamento

Aspectos gerais
A esquizofrenia é uma doença em que estão envolvidos vários fatores
biológicos, psicológicos e sociais; seu tratamento envolve o cuidado
oferecido pelos profissionais da saúde, pelos familiares e pela partici-
pação da própria pessoa que tem a doença. Invariavelmente, a esqui-
zofrenia é acompanhada de muitos sofrimentos, pois afeta as relações
da pessoa com a realidade e com os outros. Diante dessa situação, os
tratamentos têm como objetivo a construção de possibilidades de lidar
com esses sofrimentos e reconstruir o caminho de vida, com base nas
capacidades da pessoa.

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102 • Assis, Villares & Bressan

Assim como nos primeiros capítulos, apresentamos aqui os aspectos


principais envolvidos no tratamento da esquizofrenia. Nosso objetivo é
fornecer alguns elementos centrais que possibilitem o entendimento da
natureza da esquizofrenia e servir de instrumento para promover o
diálogo entre portadores, seus familiares e profissionais da saúde para
alcançar um tratamento melhor para cada indivíduo.
O tratamento da esquizofrenia propicia melhores resultados quando
realizado por uma equipe multidisciplinar, isto é, uma equipe composta
por profissionais da saúde das várias especialidades (psiquiatra, psicó-
logo, terapeuta ocupacional, enfermeiro e assistente social) que atuam
juntos no plano terapêutico da pessoa com a doença. Quando esse
tratamento em equipe não é possível, é importante o entendimento
entre os profissionais que tratam o indivíduo.
Sabemos das dificuldades relativas ao tratamento da esquizofrenia em
nosso País, seja da ordem das vivências da pessoa e de sua família, seja
da ordem do funcionamento dos locais de tratamento. Nesse sentido,
procuramos apresentar situações reais que podem servir para se avaliar
as questões reais que cada um encontra, bem como pensar em cami-
nhos de superação diante das situações vividas.
Neste capítulo, serão apresentados mais dois personagens e suas famílias,
com o objetivo de ampliar nossas conversas, por meio de outras evoluções
com a esquizofrenia, diferentes daquela que Gabriel apresenta. Há várias
abordagens e estratégias de tratamento, considerando que essa doença
pode ter diferentes evoluções. Os tratamentos visam, em todos os casos, a
estabilização, a manutenção da saúde e a boa qualidade de vida.
Nosso foco central é o tratamento pela equipe de saúde mental. Enten-
demos que todos os tratamentos são importantes; entretanto, o trata-
mento psiquiátrico bem conduzido por uma equipe de saúde mental é
condição fundamental para a estabilização e a recuperação da pessoa.

011tro caminho, avolta


A experiência de passar por um episódio psicótico agudo da esquizo-
frenia deixa marcas profundas na pessoa; é preciso muito esforço para
Entre a razão e a ilusão • 103

se reintegrar socialmente passado o período de crise. Existe o medo de


não ser aceito, a dificuldade de voltar a compartilhar as coisas mais
simples do dia a dia, como sorrir, estar tranquilo, fazer coisas que dão
prazer, compartilhar o que se vive com os amigos, etc. Quando se
pensa em recuperação, normalmente se olha para a capacidade de
readquirir habilidades sofisticadas, que permitem à pessoa participar
do mundo competitivo em que vivemos. Isso pode acontecer ou não;
entretanto, pensando no que é importante para a qualidade de vida, é
fundamental sentir-se bem e saber compartilhar a vida com as pessoas.
Vejamos como Gabriel vive esse processo.
Depois de alguns meses de tratamento, Gabriel decide voltar a estudar
para o vestibular. Agora, aconselhado pelo Dr. Marcelo e por Fátima a
não se isolar e a refazer um círculo de amigos, ele se inscreve em um
curso pré-vestibular. Este é um grande passo: vencer o medo e voltar a

conviver com as pessoas.
O curso pré-vestibular é um lugar muito movimentado, com muitos
alunos em grandes salas de aula. No começo, Gabriel se sente inibido,
como se fosse menos capaz que os outros alunos. Entretanto, logo
conhece Luiz, um jovem extrovertido que conversa com todas as
pessoas, e a amizade se dá naturalmente. Junto a Luiz, Gabriel encontra

CURSINHO

-··
104 • Assis, Villares & Bressan

vários outros rapazes e garotas e descobre que não é o único tímido da


turma. Ele se sente feliz com a nova rotina e por ser aceito em seu
novo círculo de amizades.
Porém, com o correr das aulas, Gabriel percebe que não tem mais a
mesma agilidade de raciocínio e memória que tinha antes de adoecer.
Sempre fica depois da aula no plantão de dúvidas, pois não consegue
entender muitos dos conteúdos dados em classe. Quando chega em
casa, fica estudando mais algumas horas todos os dias. O curso realiza
periodicamente provas que simulam o exame vestibular, e Gabriel,
apesar do esforço, não consegue ir tão bem quanto seus amigos. Isso o
deixa frustrado, pois ele tem se dedicado muito aos estudos.
Em uma consulta com Dr. Marcelo, desabafa: "Parece que depois da
esquizofrenia eu fiquei mais burro, eu me esforço, mas acho que nunca
mais vou ser o mesmo". O médico percebe a angústia e a frustração do
jovem e procura ajudá-lo nessa questão: "Gabriel, você está em um
curso muito puxado e se compara com quem vai bem nas provas, mas
deixa de olhar para o grande número de pessoas que foram pior do
que você. A esquizofrenia pode provocar algumas dificuldades de
memória e raciocínio, mas tudo na vida se consegue com muito
trabalho, você está no caminho certo. Procure não se comparar com
seus amigos, cada um é de um jeito. O importante é você continuar na
sua jornada".
A conversa com o Dr. Marcelo, apesar de Gabriel concordar com o
profissional, não desfez completamente a angústia do jovem diante da
realidade que está vivendo. Ele está vivendo uma situação comum a
todos os estudantes que vão fazer a prova no final do ano para poder
entrar na faculdade, o vestibular. Que situação é essa? Há poucas
vagas e muita procura; consequentemente, muitos dos concorrentes
são reprovados. Isso gera a angústia de querer estar entre os melhores
nas provas que o cursinho realiza, pois só os melhores passarão no
vestibular. Gabriel não está conseguindo isso.
A realidade social que todos nós vivemos é permeada por cobranças e
situações de competição; o mundo atual tem essas características.
Gabriel tem dificuldade em lidar com essas condições; ele se esforça
Entre a razão e a ilusão • 105

para corresponder a essas exigências e sente-se frustrado por não


conseguir os resultados que cobra de si mesmo. Dr. Marcelo, uma
pessoa madura, compreende tal situação e procura mostrar para
Gabriel que não é produtivo se comparar com os outros e que o esforço
que ele está fazendo dará resultados positivos ao longo do tempo. O
jovem ouve o que o médico diz, mas não compreende a mensagem que
ele quer transmitir.

Um erro muito comum


A esquizofrenia é uma doença crônica para a maior parte dos porta-
dores; portanto, precisa de tratamento por um tempo indeterminado.
Um erro muito comum das pessoas que têm doenças com essas carac-
terísticas é achar que estão curadas quando os sintomas desaparecem
e, em função desse julgamento, interromper o tratamento, o que em
geral leva ao reaparecimento da doença. No caso da esquizofrenia,
infelizmente, a volta dos sintomas, também chamada de recaída,
causa, para a maioria das pessoas, mais perdas em seu funcionamento
diante da vida. Gabriel comete esse erro, e é importante saber quais
são seus motivos para entendermos o que se passa e evitar que isso
aconteça mais vezes.
Gabriel conseguiu uma boa recuperação, mas ainda não se conscien-
tizou de que a esquizofrenia, como qualquer doença, causa limitações.
Nós vivemos em uma sociedade que valoriza e estimula a competição
e a aquisição individual; como mostramos anteriormente, essa postura
pode se tomar uma armadilha e vir a dificultar muito nossa vida.
Gabriel vive comparando-se com seus amigos e acha que está curado,
afinal, não se sente mais perseguido, não ouve mais vozes, voltou a
estudar e tem amigos. Acha que o que ele passou foi uma fase ruim, já
superada. Associa suas dificuldades com os estudos aos efeitos dos
medicamentos que toma e acredita que se parar de usá-los sua inteli-
gência vai melhorar. Por isso, para de tomar a medicação e não volta
às consultas com o Dr. Marcelo nem às sessões de terapia ocupacional
com a Fátima.
106 • Assis, Villares & Bressan

Seus pais ficam preocupados, mas têm dificuldade em convencê-lo a


seguir os tratamentos. Gabriel argumenta que está bem e que os medi-
camentos afetam seu desempenho. Os pais acompanham seu esforço e
também sabem que ele recuperou a vontade de viver; isso toma a
situação ainda mais complicada, pois eles querem que o filho siga sua
vida de forma independente. Ainda assim, falam com o Dr. Marcelo,
que recomenda que Gabriel não pare a medicação, dizendo que é
muito arriscado e que ele pode ter uma recaída da esquizofrenia. Os
pais pedem para o jovem conversar com o médico, mas ele se nega. Ele
está cometendo um erro muito comum na história das pessoas que têm
esquizofrenia.
Passados dois meses dessa decisão, a vida de Gabriel começa a mudar
novamente; vejamos como isso acontece: ele sempre gostou de litera-
tura e vinha escrevendo há algum tempo poemas e pequenos textos.
Escrever é uma habilidade que o faz se sentir igual a seus amigos e até
melhor do que eles. Entretanto, com o passar do tempo, sem o trata-
mento, essa atividade começa a dominar sua atenção; ele começa a
achar que seus textos são muito importantes e que podem mudar a
maneira como as novas gerações irão ver o mundo. Esse já é um sinal
que denota a volta dos sintomas delirantes. As vozes voltam também,
Entre a razão e a ilusão 107

e algumas dizem que ele é um grande escritor, outras dizem que ele é
mesquinho por não publicar o que escreve. Dominado por essas
vivências delirantes e alucinatórias, Gabriel não mostra seus escritos
para os amigos com medo de que cheguem às mãos de grandes escri-
tores, que alguém roube suas ideias. Sente-se cada vez mais acuado e
sozinho.
Uma característica comum da esquizofrenia é que a pessoa não percebe
quando está entrando em uma nova crise. Gabriel começa a comportar-
-se de maneira muito diferente; seus familiares percebem a mudança,
mas não sabem o que fazer. Seus amigos e amigas também percebem
as mudanças e não entendem por que ele tem certas atitudes estra-
nhas. Até Júlia, a irmã que sempre conversou muito com ele, não
consegue se aproximar, pois corno Gabriel não tem consciência de que
o que está vivendo é urna crise da esquizofrenia, não se abre com
. ,
n1nguern.
Sua segunda crise é muito mais grave que a primeira. Infelizmente,
esse é um resultado comum em consequência da interrupção dos trata -
mentos e dos cuidados para manter a doença sob controle.

Fernando S. Lacaz - Psiqu iatra


Um dos principais desafios da medicina em geral é a adesão do paciente ao tratamento
como um todo, sobretudo nas doenças crônicas, sendo particularmente difícil no tra-
tamento da obesidade, do diabetes, da hipertensão arterial e dos transtornos mentais,
como a esquizofrenia. Acredita-se que mais da metade das pessoas acometidas por essas
doenças não faça o tratamento conforme a orientação da equipe médica.
Um aspecto consistente do conhecimento a respeito da esquizofren ia é o fato de
que o uso de medicações antipsicóticas produz melhora dos sintomas agudos da doença,
como delírios, alucinações, insônia e desorganização do comportamento. Além disso,
sabe-se também que a continuidade do uso é um dos principais fatores para a prevenção
de recaídas.
E por que é importante prevenir recaídas?
Além do próprio sofrimento de reviver o mal-estar de uma crise, que pode atrapalhar
os relacionamentos pessoais, o desempenho acadêmico e profissional e as atividades de

conlinua. ...
108 • Assis, Villares & Bressan

. . • co11/i111ta,;iio

rotina, a repetição das recaídas pode agravar e prejudicar a evolução da doença. Quanto
maior o número de crises, pior a qualidade de vida e maior o comprometimento nas
funções mentais, como memória, atenção, capacidade de organização e vontade para
realizar atividades rotineiras.
Sabemos que até 80% dos pacientes que descontinuam a medicação antipsicótica
podem ter uma recaída no período de um ano. Nas pessoas que fazem o uso regular da
medicação prescrita, o risco de recaídas é significativamente menor.
Contudo, é compreensível que em diferentes estágios da doença o paciente possa ter
o desejo de parar a medicação.
Mas, afinal, o que pode levar a esse desejo?
Em parte, a falta de conhecimento a respeito dos ríscos da parada abrupta dos medi-
camentos pode induzir a descontinuação. Para que isso não aconteça, médico e paciente
devem conversar abertamente sobre as consequências de não tornar adequadamente a
medicação prescrita. Os riscos devem ser todos esclarecidos.
Os efeitos adversos dos antipsicóticos constituem outra causa para interrupção do
tratamento medicamentoso. Nenhuma medicação está livre de efeitos colaterais, da dor
de estômago causada por uma aspirina à sonolência causada por alguns antipsicóticos.
Felizmente, cada vez mais, ternos acesso a medicações diferentes com perfis favoráveis
de efeitos adversos. Relatar o que se está sentindo para o médico após a introdução da
medicação, bem como o profissional questionar diretamente o paciente sobre eventuais
sintomas, pode auxi liar na escolha da medicação mais adequada e de melhor perfil em
relação aos efeitos indesejados.
Muitas vezes, um dos motivos para não querer fazer uso de medicações está relacio-
nado à própria sensação de não se sentir doente, muito comum nos períodos de crise.
Um indivíduo me dizia: "Doutor, por que o senhor insiste em me medicar se não estou
doente? Acho que é caso de espiritismo, e para isso não tem remédio, não! Mas urna
coisa é verdade, da outra vez que tomei esse medicamento me senti bem melhor!" . A
noção de doença, também chamada de insight, é um importante objetivo das consultas
e pode ser extremamente valiosa no sentido de aceitação do uso de medicação por parte
do doente.
Costumo propor para os pacientes que falem abertamente para seu médico sobre
eventuais desejos de abandono do tratamento medicamentoso e que ambos tentem pri-
meiramente compreender os motivos, conhecidos ou não, relacionados a esse desejo,
para depois escolher a melhor estratégia para lidar com essa situação, lembrando que,
no caso das doenças crônicas, a parada prematura do tratamento é comum e é o princi-
pal fator de pior prognóstico.

Prevenção de recaída
Na esquizofrenia, a prevenção das recaídas
,
ot1 das crises é um dos
principais objetivos dos tratamentos. E preciso entender sua impor-
tância e fazer todos os esforços para evitá-la. Há, pelo menos, dois
motivos para isso: o primeiro é que uma crise de esquizofrenia leva a
Entre a razão e a ilusão 109

uma regressão de todo o trabalho e investimento da pessoa nos trata-


mentos, nas mudanças, nas conquistas e nas compreensões; segundo,
a crise é tóxica para o cérebro e provoca perdas biológicas de funcio-
namento, levando a uma progressão cada vez mais difícil para a pessoa
com esquizofrenia.
Uma recaída acontece porque a pessoa deixa de tomar a medicação e
de fazer os tratamentos ou devido a situações de estresse maiores do
que sua capacidade de resolt1ção.
Na crise, devido ao aumento da dopamina, a pessoa passa a perceber
a realidade com uma saliência maior. Os delírios são resultado de asso-
ciações errôneas de acontecimentos da vida cotidiana que acabam
tendo grande relevância para a pessoa, e ela orienta sua vida por meio
deles, mesmo que todos digam que o que ela acredita não está aconte-
cendo. As alucinações são experiências alteradas dos sentidos que
incomodam a pessoa o tempo todo, confirmando seus delírios. Trata-
-se de uma experiência de desorganização interior muito marcante do
ponto de vista cognitivo, comprometendo as atividades e os relaciona-
. , . .
mentos mais proximos e importantes.
A medicação diminui a função elevada da dopamina, amortecendo a
saliência aumentada que a pessoa dá para suas experiências. Entre-
tanto, a resolução psicológica, ou interior, das experiências de uma
crise pode levar muito tempo para acontecer; ela depende de a pessoa
perceber que as experiências da crise precisam ser revistas. Isso se dá
por meio de insights construídos nas relações terapêuticas e nas rela-
ções mais próximas que a pessoa trava com a família e amigos.
,
E comum a expectativa de que, ao tomarmos um medicamento,
fiquemos melhores e os problemas desapareçam. Mas, como acontece
com doenças que duram muito tempo, e este é o caso da esquizofrenia,
os resultados não são imediatos. Um raciocínio muito comum é o de
negar a doença, pois a pessoa acredita nas experiências que vive e não
acha que sejam sintomas de um transtorno, e então deixar de tomar os
medicamentos.
Esse processo acaba se tornando muito difícil, pois, a cada recaída, a
tendência é os sintomas piorarem e ficar mais difícil para a pessoa
11 O • Assis, Villares & Bressan

superar as questões centrais da doença. Com o tempo, esse processo


pode passar a ficar crônico, e os sintomas, mais difíceis de serem
tratados.
,
Evitar recaídas é importante para mudar o curso da doença. E impor-
tante entender que a resolução dos sintomas depende muito do esforço
pessoal para se ter um cotidiano saudável e ativo. Também entender a
resolução psicológica precisa de tempo para fazer sentido, e, dessa
forma, as relações de confiança são fundamentajs.
O processo de evitar recaídas é importante para que, ao longo de signi-
ficativos períodos estáveis, novas compreensões e vivências saudáveis
possibilitem insights e melhorem os sintomas. Ele também é funda-
mental para a saúde do cérebro da pessoa com esquizofrenia, evitando
que um processo degenerativo se estabeleça. Por esse motivo, as medi-
cações são fundamentais, e os tratamentos psicossociais são necessá-
rios para um cotidiano saudável.
As alterações cerebrais que a doença determina e a forma como a
pessoa lida com os acontecimentos e os estímulos cotidianos mudam a
maneira de ela se relacionar com o mundo, e isso precisa ser compreen-
dido para além dos sintomas. Em algumas situações, as alterações
cerebrais dificultam muito o processo de recuperação do indivíduo
para voltar ao que era antes. Apesar de ser muito difícil, é fundamental
que a pessoa e a família entendam isso para que possam construir
novas possibilidades a partir das mudanças que a doença trouxe.

Outra forma de cuidado


Quando tem uma recaída da esquizofrenia, a pessoa precisa de cuidado
mais intensivo. Os familiares também se desorientam, porqL1e o
convívio cotidiano e os fortes laços afetivos levam-nos a reviver todas
as dificuldades já enfrentadas com seu familiar doente, intensificando
um sentimento de não saber como agir em relação à situação atual.
Em momentos como esses, a ajuda de uma equipe de saúde mental é
Entre a razão e a ilusão 111

muito importante para que o sofrimento de todos os envolvidos possa


ser acolhido e para que a pessoa em crise seja tratada apropriada-
mente. Vejamos como esse processo se dá na família de Gabriel.
Gabriel não se dá conta de que está passando por uma recaída. Mesmo
já tendo vivido uma experiência anterior, as vivências atuais têm, para
ele, uma realidade inquestionável. Os argumentos dos pais e irmãos
não o convencem de que o que ele está experienciando são sintomas
da doença. Ele se recusa a ir ao médico e também não consegue
explicar para a família tudo o que está vivenciando. Esse processo gera
muita desorientação para todos.
Seu Paulo e Dona Márcia, os pais de Gabriel, procuram o Dr. Marcelo
e contam que o comportamento do filho está muito diferente, o
convívio muito difícil e que ele se recusa a voltar a se tratar. O médico
explica que Gabriel está vivendo uma recaída da esquizofrenia e afirma
qtie é preciso uma intervenção o mais rápido possível. Sugere qtie
levem o jovem ao pronto-socorro do hospital naquele mesmo dia e que
o procurem para qtie ele volte a atendê-lo.
Ao chegarem em casa, os pais de Gabriel chamam-no para uma
conversa. Tendo aprendido que o melhor caminho para lidar com o
filho é pelo diálogo, e não pela imposição, contam a ele que conver-
saram com o Dr. Marcelo sobre suas preocupações e que o médico
pediu para lhe dizer que gostaria de se encontrar com ele. No prin-
cípio, o jovem se recusa, pois diz que não está doente. Os pais afirmam
que se ele de fato não estiver doente, o Dr. Marcelo, que sempre o
tratou com consideração, apenas irá aconselhá-lo. Gabriel reluta, mas
acaba aceitando, pois no fundo sabe que precisa de ajuda.
A consulta com o Dr. Marcelo foi longa; ele conversou pacientemente
com Gabriel, que levou seus textos e falou das coisas que estava
vivendo. O médico chamou os pais do jovem e explicou que este estava
com a ideia fixa de que só seria reconhecido por seus textos depois que
morresse, e que havia um risco importante de suicídio. Por esse motivo,
o procedimento necessário para conter sua crise seria uma internação.
112 • Assis, Villares & Bressan

O psiquiatra explicou para Gabriel o que é uma recaída da esquizo-


frenia, por que ela acontece com a parada dos medicamentos e a
importância de cuidar para q11e a crise se resolva. Explicou que a inter-
nação é necessária para dar um cuidado melhor o dia todo e evitar
outros riscos. A internação duraria somente o período necessário para
conter a crise que ele estava vivendo. Gabriel só se convenceu a ficar
no hospital depois que sua mãe garantiu que ela e sua irmã, Júlia,
iriam visitá-lo frequentemente.
A internação é urna outra forma de c11idado; quando entra em uma
recaída, a pessoa não deve ser culpada por isso. Apesar de Gabriel ter
se afastado dos tratamentos, os pais foram buscar ajuda com o Dr.
Marcelo, graças à relação de confiança que se estabeleceu entre eles.
Quando o médico explica a gravidade da situação, os pais do jovem
levam muito a sério o que ele diz. Eles procuram conversar com o filho
para convencê-lo a ir à consulta, com argumentos que contribuem
para que ele concorde. E, por fim, oferecem a garantia de que Gabriel
não ficará sozinho na internação, que sempre irão visitá-lo.
Há casos em que a situação é mais difícil, pois a pessoa se recusa a ir
ao médico. Nesses casos, a família tem de ser forte e unida para conse-
guir q11e o indivíduo seja levado ao médico mesmo contra a vontade.
Entre a razão e a ilusão 113

No Capítulo 5, apresentamos sugestões de como lidar com esse tipo de


situação.

Desmistificando a internação
A internação psiquiátrica é uma forma de prestação de cuidados às
pessoas com transtornos mentais para controlar momentos de crise.
Ela não é uma punição ou um ato de desrespeito aos direitos da pessoa;
ao contrário, tem a finalidade de protegê-la e oferecer tratamento e
atenção profissional em tempo integral. A internação hospitalar é um
processo difícil em qualquer área da medicina; na psiquiatria, ela é
acompanhada pelo sofrimento tanto da pessoa quanto dos familiares,
sofrimento este qt1e faz parte da crise nos transtornos mentais. A inter-
nação é recomendada quando a doença oferece riscos ao portador ou
às outras pessoas ou, ainda, quando, por mais dedicada que a família
seja, ela não consiga oferecer o cuidado que o indivíduo em crise
precisa naquele momento. Deve durar somente o tempo necessário
para conter a crise mais intensa, e, assim que a pessoa atingir certa
estabilidade, ela deve voltar para casa para continuar o tratamento
ambulatorial ou no consultório, indo às consultas periódicas com o
médico. Vamos conhecer como esse processo se dá no caso de nosso
personagem.
Depois da consulta, Gabriel foi encaminhado para a enfermaria
psiquiátrica do hospital, a qual consistia em um espaço de convivência
com mesas e uma televisão, um posto de enfermagem e quartos com
acomodações para três pessoas. Ele foi recebido por Luiz, o enfer-
meiro, uma pessoa amável e atenciosa, que o encaminhou para seu
quarto e explicou que seus familiares trariam suas roupas e pertences
ainda naquele dia.
O tratamento na internação consiste em manter um ambiente de
respeito e boa convivência entre as pessoas internadas, além de
garantir que as medicações sejam tomadas nos horários corretos. O
pessoal da enfermagem oferece ct1idado integral a cada paciente por
meio de conversas, atendimento às necessidades de cada um e
114 • Assis, Villares & Bressan

mantendo um ambiente tranquilo. Uma vez por dia, os médicos vêm


para conversar com seus pacientes, fazer as prescrições dos medica.-
mentos e conversar com a equipe de enfermagem. Também, diaria-
mente, há grupos de atividades ou de conversas em que os partici-
pantes falam sobre os problemas que estão enfrentando e trocam
impressões sobre os tratamentos.
No início, Gabriel achava que a internação fazia parte de uma conspi-
ração para que suas ideias e seus textos não fossem publicados. Entre-
tanto, com o passar dos primeiros dias, conversando com as outras
pessoas internadas, foi dando-se conta de que cada uma delas, a sua
maneira, tinha problemas; algumas também se sentiam perseguidas,
outras mais deprimidas, outras mais agitadas e confusas.
Sua mãe e s11a irmã visitavam-no todos os dias, e seu pai e se11 irmão
duas ou três vezes por semana, o que contribuiu muito para que ele se
sentisse querido e fosse melhorando com o passar dos dias.
Com o efeito dos medicamentos, os sintomas foram diminuindo;
Gabriel foi se dando conta de que as coisas em que ele acreditava
poderiam não estar acontecendo. Durante a internação, ele fez amizade
com outros dois portadores de esquizofrenia, Carlos e Francisca, q11e,
apesar de apresentarem sintomas parecidos com os dele, tinham


Entre a razão e a ilusão 115

formas de apresentação da doença bastante diferentes. A convivência


com esses dois novos amigos o ajt1dou no entendimento da situação
que estava vivendo, que descreveremos a seguir.
Muitos familiares ficam presos a dúvidas quanto a internar ou não a
pessoa em crise de esquizofrenia. A principal delas é se a pessoa ficará
traumatizada por ter sido internada contra a vontade. Nós pensamos
qt1e as consequências de não interná-la podem ser piores do que se ela
for internada. Com o tempo e a compreensão da própria doença, a
pessoa com esquizofrenia normalmente aceita que a internação foi um
procedimento necessário, entendimento que permite lidar com esse
tipo de experiência.
Apresentamos aqui uma descrição de características que um local de
internação deve ter; entretanto, sabemos qtte nem todos os lugares
oferecem as condições mínimas para uma internação que preserve a
dignidade do paciente. Os familiares devem sempre se articular para
obter o melhor tratamento para a pessoa, seja indo visitar o local, seja
procurando locais de atendimento com melhores condições.

J.C.A.
A internação não é uma punição por mau comportamento; ela é uma intervenção com
o objetivo de oferecer cuidados que no momento a família não tem, em relação tanto à
formação quanto aos recursos. Eu passei, ao longo de meu percurso com a esquizofren ia,
por duas internações, e irei relatar como fui cuidado em uma delas, em 1987. Nessa
internação, eu cheguei ao local de tratamento com o comportamento completamente
alterado, com crenças que não se justificavam na reali dade comum, percepções muito
diferenciadas, nas quais tudo se referia às minhas crenças.
No local da internação, recebi os medicamentos, fui alojado em um quarto com mais
quatro pessoas, l impo e com espaço entre as camas, ao lado de um posto de enfermagem
que funcionava 24 horas. O banheiro era limpo, e o local para banho também. Todos os
dias íamos de manhã e à tarde para a área externa do prédio, onde havia uma quadra de
esportes e bolas, além de uma lanchonete.
Os enfermeiros eram atenciosos, mas também austeros, mantendo um relaciona-
mento ordenado entre os pacientes. Houve duas ocasiões em que t ive que ser contido

conlinua ...
116 • Assis, Villares & Bressan

. . • co11/i111ta,;iio

com camisa de força. A primeira ocasião foi à noite; eu entrei em uma crise de agitação
de desespero, e o enfermeiro me colocou na camisa de força, medicou-me, colocou-me
na cama e recomendou que eu tentasse dormir, o que aconteceu. No dia seguinte, logo
cedo eu acordei, e o enfermeiro estava ao lado de minha cama, conversou comigo, cons-
tatando que eu estava melhor, e tirou a camisa de força, recomendando que eu procu-
rasse me controlar. A segunda vez foi na quadra de esportes; também perdi o controle e
fui colocado em uma camisa de força, levado para uma enfermaria e medicado. Algumas
horas depois, constatando que o descontrole tinha passado, retiraram a camisa de força.
Nessa internação, recebi todos os cuidados 24 horas por dia, e foi um período neces-
sário para as medicações fazerem o efeito esperado e a crise da esquizofren ia dim inuir
sensivelmente, para, assim, eu receber alta. O tratamento que recebi no hospital não
teria sido possível junto da minha família em casa. Hoje, tenho clareza de que foi uma
medida necessária, pois meus fami liares não teriam condições de fornecer os cuidados
de que eu necessitava e controlar situações que os enfermeiros estão treinados para fazer
com destreza e respeito ao paciente.
Hoje, agradeço à minha família por ter me acompanhado nesse período difícil e me
acolhido com atenção e carinho quando voltei para casa.

Vânia Bressan - Enfermeira


A enfermagem, como prática de cuidados a enfermos, sempre existiu. Na psiquiatria
brasileira, iniciou seu percurso em meados do sécu lo XIX em ambiente hospitalar, onde
sua função era aplícar as medidas terapêuticas psiquiátricas prescritas na época, que
se baseavam em proibir, vigiar, gritar, ofender, amarrar. Graças ao avanço da psiquia-
tria, a enfermagem também foi mod ificando-se, produzindo conhecimentos científicos e
instrumentalizando-se para oferecer um cuidado mais humanizado ao portador de trans-
torno mental.
Por meio do vínculo terapêutico, da escuta, da observação, de técnicas de comu-
nicação e de contenção física (util izadas quando necessárias e prescritas), vem con-
tribuindo no tratamento do indivíduo que sofre de transtornos mentais. O enfermeiro
especialista em psiquiatria e saúde mental pode coordenar grupos terapêuticos e prestar
cuidados individualizados a pacientes e familiares, uti lizando a psicoeducação como
principal ferramenta de trabalho, pois o enfermeiro é, em sua essência, um educador
em saúde. Auxilia os familiares no manejo de dificuldades com os pacientes, propicia
conhecimento sobre a psicopatologia e a medicação em uso; orienta sobre cuidados com
higiene, aparência pessoal e com a saúde em geral; incentiva a autonomia do paciente;
propicia a reeducação de alguns comportamentos disfuncionais ou dificu ldades cotidia-
nas apresentados pelo indivíduo, utilizando-se de técnicas de resolução de problemas e
cognitivo-comportamentais; e monitora sinais e sintomas psíquicos e efeitos colaterais
das medicações.
Entre a razão e a ilusão 117

A partir da década de 1980, no Brasil, a enfermagem expandiu seu


campo de atuação na psiquiatria para ambulatórios de saúde mental e
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e começou a ter uma atuação
mais eficaz inserindo-se em equipes multiprofissionais, já que o
cuidado a portadores de transtornos mentais é complexo e abrangente,
necessitando de profissionais habilitados nas áreas bio, psico e social,
comprometidas pela doença. Na equipe multidisciplinar, uma das
funções primordiais do enfermeiro é ser "elo" entre os profissionais,
pois a equipe de enfermagem é a que mais tempo permanece com os
pacientes e, por isso, conhece mais os comportamentos e a história de
vida destes, sendo de grande importância levar esses dados ao conhe-
cimento de todos os profissionais, para auxiliar na elucidação diagnós-
tica e, consequentemente, nas condutas a serem tomadas, objetivando
a reabilitaçã.o psicossocial dos portadores de tran.stornos mentais.

Quando a pessoa não


acha que está doente
Uma das grandes dificuldades para as pessoas com esqt1izofrenia
acompanharem os tratamentos e conseguirem estabelecer um caminho
de melhora é não terem consciência de que o que elas estão viven-
ciando é afetado pela doença. Tal dificuldade é também chamada de
falta de insight, ou falta de noção de doença. A esquizofrenia não
caracteriza a pessoa, pois esta é muito maior que a doença. No entanto,
na medida em que a doença não é tratada, a vida do indivíduo é domi-
nada pelos sintomas, e outros aspectos (social, profissional, lazer, etc.)
ficam bastante comprometidos. Durante a internação, Gabriel
conheceu Francisca, que acha que não está doente; vejamos como é
essa situação para ela.
Francisca passa por sua quarta internação em menos de dois anos. Ela
sempre encontra explicações para os sintomas que está vivenciando,
os delírios e as alucinações. Mesmo sendo uma jovem bonita, tem
pot1co cuidado com a aparência e higiene, vive isolada e não tem
amigos nem namorado. Parou de estudar e tem dificuldades no
_, . . . -
conVIVIO com os pais e 1rmaos.

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