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desmistificando a esquizofrenia
segunda ed1çao
CDU 616.895.8
EA
desmistificando a esquizofrenia
segunda edição
Versão impressa
desta obra: 2013
2013
© Artmed Editora Ltda., 2013
Gerente editorial
Letícia Bispo de Lima
SAOPAULO
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PRINTED IN BRAZIL
Sobre os autores
Introdução...........•.........................-··························································-················ 17
1. Aexperiência de adoecer .....•........•......................••..................•......................... 25
Oque e, esqu1zo
. frenia
. ?................................................................................................. 25
Diferentes vi sõe.s ........................................................................................................27
Tudo tem um começo ..................................................................................................30
Um caminho que começa a mudar ............................................................................. 32
Ooutro caminho .........................................................................................................35
Percebendo o mundo de outra maneira ....................................................................... 37
Outro entendimento das coisas .................................................................................. 41
Arealidade pode ser bem confusa .............................................................................. 43
Cores desbotadas ....................................................................................................... 46
Energia perdida .......................................................................................................... 48
Acognição ea esquizofrenia ••••• ••• •••••• •••• •••••••••••••••••••••••••••••••••••• •••• ••••••• •••• ••••• ••••• ••••••• 51
Caminhos e possibi Iidades .........................................................................................52
Primeiro passo ............................................................................................................55
2. Ocaminho até o diagnóstico .............................................................._................. 57
Como entender o desconhecido? ............................................................................... .. 57
Doença ou mal e.spiritual? ......................................................................................... .59
Chegando até a ajuda ... ················ ··· ········· ······································ ····· ···· ·············· ···· 62
Mas... qual é a doença? ..............................................................................................64
Uma convivência nem sempre fácil ............................................................................ 67
Início da melhora ......................................................................................................... 70
Isso é loucura? .............................................................................................................73
Caminho até o diagnóstico ......................................................................................... 75
Tem cura? ....................................................................................................................78
Um aprendizado necessário ....................................................................................... .80
3. Que doença é esta? .......................................................................•...•................. 83
Oentendimento científico diminui o estigma da doença ............................................ 83
Epidemiologia e impacto na sociedade ....................................................................... 85
Qual o órgão afetado na esquizofrenia? ...................................................................... 88
•
XIV • Sumário
• A pessoa que adoece, ao passar por uma crise aguda, acredita nos
pensamentos e nas percepções que tem. Mais do que acreditar,
sente
,
que eles estão acontecendo. Não é uma experiência comum.
E uma experiência diferente, na qual a pessoa vive momentos muito
difíceis de confusão, perplexidade e desorientação.
• Quando uma pessoa tem esquizofrenia, toda a família é afetada. Os
familiares invariavelmente querem o melhor para a pessoa, mas
veem-se envolvidos em situações muito difíceis e perguntam-se: O
que fazer? Qual o melhor caminho? Como conviver com a pessoa
com esquizofrenia? Não existem respostas prontas para essas
18 • Assis, Villares & Bressan
ser aceito, o que exigirá u.m a ação por parte da família e dos profissio-
nais da saúde. Mostramos que há maneiras de lidar com situações
estigmatizantes e que é preciso não se deixar ser vítima da incom-
preensão da sociedade em relação aos transtornos mentais, em espe-
cial à esquizofrenia.
O sexto capítulo tem como tema o convívio familiar, a relação dos
familiares entre si, enfatizando que a pessoa com esquizofrenia é parte
dessas relações. Esse assunto é muito mais vasto do que o espaço deste
livro. Assim, escolhemos alguns temas importantes que podem contri-
buir para que a pessoa com esquizofrenia e sua família pensem em
maneiras de construir juntos, formas boas de convivência. Aborda-
remos, por meio dos personagens, questões que envolvem a convi-
vência a partir de situações reais que conhecemos e também de cami-
nhos de resolução de problemas. Mostraremos a importância de a
família procurar resolver os problemas, bem como o valor de se utilizar
os recursos da comunidade para estabelecer uma rede de relaciona-
mentos gratificantes e buscar que a doença não ocupe um lugar central
nas relações, de modo que todos possam viver com qualidade e cuidar
somente das questões da esquizofrenia em relação às exigências que
ela acarreta. Isso é o que entendemos como caminhos de superação.
O sétimo capítulo, que fecha o livro, apresenta a recuperação e novas
perspectivas. Apresentamos informações que permitem um entendi-
mento da doença com base na ciência, pois acreditamos que essas
informações ajudam a desfazer concepções errôneas sobre a doença e
sobre a psiquiatria. Deixamos elas para o último capítulo, pois consi-
deramos que é preciso entender o processo do adoecimento e da busca
de tratamento de uma maneira vivencial para que essas informações
sejam mais bem aproveitadas. A experiência mostra que a recuperação
na esquizofrenia precisa ser entendida como o resultado de um
processo ao longo do tempo, mantendo os cuidados necessários para
que a doença fique controlada, em que a pessoa e sua família vão
aprendendo a lidar com as situações e a redesenhar caminhos que
permitam uma vida com qualidade. Isso é ilustrado com a história de
recuperação de cada um dos personagens, com base em histórias reais
que conhecemos. Abordaremos a importância de participar de associa-
Entre a razão e a ilusão 23
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Diferentes visões
A visão que cada um tem sobre um assunto ou um tipo de experiência
está relacionada à maneira como sua história foi vivida. Não existe
uma única verdade que nos dê garantias sobre como é a realidade. Até
na matemática, a mais exata das ciências, existem diferentes visões
sobre seus princípios. Como dissemos no início da Introdução, no
contexto em que as pessoas com esquizofrenia estão inseridas, enten-
demos que há quatro visões distintas: a da pessoa que tem esquizo-
28 • Assis, Villares & Bressan
frenia, a de seus
,
familiares, a dos profissionais e a da comunidade
onde se vive. E importante frisar que cada uma delas é correta com
base no próprio ponto de vista. Procuraremos, aqui, mostrar um pouco
de cada uma dessas visões.
Nosso objetivo é apresentar algumas considerações que facilitem o
diálogo entre essas visões. O diálogo legítimo só é viável quando tem
origem na aceitação da visão do outro, mesmo que esta seja diferente
da sua, promovendo um entendimento compartilhado. Certa vez, uma
pessoa com esquizofrenia nos procurou pedindo um livrinho que publi-
camos sobre o assunto, para deixar com o pai para que ele entendesse
que ela tinha uma doença, e que não era preguiçosa como ele dizia.
Não sabemos o resultado dessa iniciativa, mas de uma coisa temos
certeza: se essa pessoa não conversou abertamente com o pai, dificil-
mente ele mudou sua visão.
A pessoa que tem esquizofrenia vive diferentes momentos com a doença.
Um deles é a crise aguda, que pode durar de semanas a alguns meses;
nesse caso, o diálogo exigirá das outras pessoas uma aceitação voltada
para promover o cuidado; nesse momento, a pessoa está passando por
uma situação muito difícil e desorientadora. O diálogo, nessas condi-
ções, pode servir mais para estabelecer laços de confiança do que para
promover qualquer tipo de convencimento. Outro momento é a fase de
estabilização, que pode durar anos, se a pessoa com esquizofrenia seguir
os tratamentos. Nesse caso, o diálogo com base na aceitação pode servir
para se estabelecer uma ponte entre as questões que a pessoa vive e as
visões de outras pessoas que convivem com ela, diminuindo o isola-
mento e promovendo um tipo de relacionamento com qualidade mais
satisfatória, que pode melhorar com o tempo.
Os familiares normalmente ficam sem saber como, agir quando um
membro da família adoece com a esquizofrenia. E uma experiência
nova e que traz muitas dificuldades, e os familiares podem ficar entre
dois extremos: o conformismo, que leva a não procurar caminhos para
melhorar os relacionamentos, ou a não aceitação, que leva a querer
que as coisas se resolvam de uma hora para outra, seja mudando o
medicamento, confiando em apenas um tipo de profissional da saúde
ou não aceitando a doença.
Entre a razão e a ilusão 29
,
E necessário encontrar um caminho mediano: entender a presença da
doença sem se conformar "que é assim mesmo" e procurar sempre
encontrar a melhor solução para cada situação. Uma das características
da esquizofrenia é que ela é uma doença crônica, isto é, exige cuidados
ao longo do tempo. Os resultados, muitas vezes, são mais lentos do que
gostaríamos, mas as melhoras só são possíveis com a busca constante e
cotidiana de resolução de problemas e de exercício de diálogo.
Os profissionais da saúde têm formação para promover o cuidado e
ajudar a pessoa com esquizofrenia e seus familiares a lidar com os
problemas decorrentes da doença. Cada tipo de profissional
,
tem uma
formação mais direcionada para um tipo de atuação. E sempre muito
proveitoso para o paciente quando eles dialogam entre si, buscando as
melhores soluções. Na prática, esse diálogo nem sempre é o ideal, por
vários motivos, mas, dentro do possível, ele sempre contribui para um
atendimento mais integrado. Outro aspecto importante é o diálogo
dos profissionais de saúde com o paciente e sua família, o qual, ao
promover a formação de vínculos - um tipo de relação de confiança e
atenção -, permite lidar com as questões levadas para os tratamentos
da melhor maneira possível.
30 • Assis, Villares & Bressan
....
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as pessoas que o amam, seus familiares, não veem muito resultado nas
tentativas de ajudá-lo a sair dessa situação. Essa é uma fase que deso-
rienta a todos na farru1ia, e a atitude mais comum é acreditar que as
coisas vão melhorar, que a pessoa vai superar a fase ruim que está
vivendo. Entretanto, no caso da esquizofrenia, as coisas são mais
complicadas do que a capacidade de a pessoa e os familiares encon-
trarem uma saída. O ideal seria buscar ajuda de profissionais da saúde,
mas, normalmente, até chegar a esse tipo de ajuda, as pessoas resistem
e mantêm uma esperança de que o problema se resolverá.
Ooutro caminho
A esquizofrenia se apresenta na vida da pessoa como outro caminho
com o qual precisará aprender a conviver. Para muitos, no começo, ela
é uma experiência sedutora, mas que logo se toma assustadora. A
vivência dos sintomas vai formando uma rede de experiências em que
cada sintoma contribui para dar sentido a outros. Somente com tempo
e tratamento a pessoa aprende a conviver com esse caminho. Apresen-
taremos, pela experiência de Gabriel, alguns dos principais sintomas
da esquizofrenia e, sempre que for oportuno, como eles se relacionam
entre si.
Gabriel começa a atribuir significado às percepções diferenciadas que
está vivendo e a sentir que as coisas que acontecem e as atitudes das
pessoas realmente se relacionam com ele. Essa é uma experiência
muito difícil, e a forma de dar sentido para ela é por pensamentos que
a justifiquem. Seus pensamentos às vezes se confundem, e ele não
consegue interpretar de forma correta o que as pessoas lhe falam. Ao
mesmo tempo, as percepções dos sentidos apresentam uma realidade
completamente diferente, marcada por sensações também diferentes.
Gabriel percebe os sons de maneira mais intensa, até que começa a
ouvir vozes. Os odores e gostos dos alimentos não são mais os mesmos.
Seu comportamento muda: Gabriel passa a ter atitudes que fazem
sentido para ele, mas que para os familiares são muito estranhas.
Nosso personagem está vivendo um período de crise no processo da
esquizofrenia, tecnicamente conhecido como episódio psicótico agudo.
36 • Assis, Villares & Bressan
Essas percepções são vividas por Gabriel de forma solitária, pois não
consegue compartilhar com os familiares o que está acontecendo com
ele. Os familiares percebem seu comportamento diferente e sentem
que ele não está bem, mas não sabem como se aproximar dele e
transpor a barreira que ele próprio levantou.
A percepção do mundo de forma diferente, por intermédio de alucina-
ções, muda na vida de Gabriel aquilo que para as pessoas garante suas
certezas ante a realidade. O mundo em que ele está vivendo não é o
mesmo compartilhado pelos outros; ele está envolvido em sensações e
percepções que colocam em dúvida a realidade que sempre viveu. Essa
é uma experiência muito intensa. Qualquer pessoa que passasse pelo
que Gabriel está passando se desorganizaria e se sentiria perdida.
Seria mais fácil compreender muito do comportamento diferente de
Gabriel se fosse possível se colocar no lugar dele, passando pelas
40 • Assis, Villares & Bressan
W.B.
Antes dos meus 16 anos, levava uma vida normal; de repente, comecei a ter uma sen-
sação estranha e t ive a impressão de a televisão estar conversando comigo, dizendo que
eu era uma pessoa especial {Super-Homem) e que eu estava sendo vigiado por todos os
lados; tive a impressão de estar sendo filmado.
No começo, achei muito estranho e disse a meus pais o que estava acontecendo.
Eles, assim como eu , não entenderam nada. Quando disseram a meu tio, irmão de meu
pai, um psiquiatra, descobri que tinha esquizofrenia. Mas os delírios e as alucinações
eram intensos, recebia mensagens da televisão e do rádio dizendo que eu era o salvador
da humanidade e que estava salvando o mundo. Tive a impressão de que as pessoas a
meu redor, incluindo minha família, queriam me matar e que havia uma conspiração. Ao
mesmo tempo que escutava vozes engrandecendo-me, escutava outras dizendo que eu
não era nada e criticando minhas atitudes.
Certa vez, em meu quarto, tive uma alucinação bizarra; vi minha alma sair de meu
corpo e brigar com este, tive a sensação de minha alma vencer. Depois daquilo, fiquei
refletindo e lembrei-me do filme Super-homem Ili, em que aconteceu a mesma coisa.
Tinha a sensação de que as pessoas sabiam o que eu pensava e que tinha um micro-
chip em meu cérebro. Outro dia, estava assistindo à televisão quando vi uma espiral e,
depois, senti que fui abduzido por extraterrestres. Um dos delírios que tinha era achar
que minha alma tinha o poder de controlar o tempo com meus ideais. Eu achava que eu
era o compositor das músicas dos Backstreet Boys e tinha a sensação de ser o centro do
mundo. Achava também que as músicas do Renato Russo eram feitas para mim e que,
na outra encarnação dele e nesta minha, nós nos encontraríamos e nos amaríamos, só
que ele encarnado em corpo de mulher. O que mais alimentou meus delírios foi uma das
músicas dele - Perdidos no espaço - , dizendo que minha alma, como a dele, veio de
outro planeta, assim como o Super-Homem. Tive vários delírios e alucinações estranhas
que dificultavam levar minha vida de uma maneira normal. Hoje, com os med icamentos,
ainda escuto vozes, mas a intensidade é pequena. Frequento o grupo de acolhimento e
ajudo meus pais em casa com pequenas coisas, vou à minha chácara e sou colecionador
de DVDs, consigo levar uma vida feliz.
Entre a razão e a ilusão 41
c.u dado\
.....
acreditar que sua família quer envenená-lo para não ser atingida pela
perseguição. Gabriel se sente acuado e ameaçado por todos os lados.
Estes são os delírios persecutórios.
Nessas condições, em que as alterações da percepção (alucinações)
confirmam os pensamentos diferentes qt1e o portador de esqttizofrenia
está tendo (delírios), não adianta argumentar que essas coisas não
estão acontecendo. Uma característica dos delírios é qt1e eles são
certezas em que a pessoa acredita profundamente, e não há como
convencê-la a mudar sua maneira de ver as coisas. Gabriel está
passando por um grande sofrimento, atormentado por vozes e com a
certeza de que está sendo vigiado e perseguido. Sua reação é se isolar
em seu quarto como uma maneira de se proteger e fugir dessas sensa-
ções e desses pensamentos extremamente ameaçadores, dos quais ele
não consegue se afastar.
Esse outro entendimento das coisas que Gabriel está vivendo é uma
experiência muito marcante. Muitos portadores, mesmo depois de
anos de tratamento, não conseguem aceitar que essas experiências
vividas durante o episódio psicótico agudo foram uma criação de seu
cérebro. A mudança que esse tipo de vivência provoca causa desorien-
tação diante da maneira de estar no mundo, de forma que a única
Entre a razão e a ilusão 43
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entendendo!
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Continuo não
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Entre a razão e a ilusão 45
Cores desbotadas
Ao mesmo tempo que Gabriel percebe o mundo a sua volta de forma
diferente e seus pensamentos mudam, a maneira como ele expressa
suas emoções também se modifica. Ele tem dificuldade em expressar o
que sente e também em perceber como as pessoas expressam seus
sentimentos. Os médicos descrevem esse tipo de experiência como
embotamento afetivo.
Quando as pessoas conversam com Gabriel, percebem que, além de
estar com uma maneira desorganizada de expressar suas ideias e seus
pensamentos, ele também parece insensível ao mundo a seu redor.
Isso causa muitas dificuldades nos relacionamentos do nosso perso-
nagem, principalmente com os irmãos e os pais. Eles sentem que
Gabriel não reage, tanto às situações alegres quanto às tristes; é como
se ele não tivesse sentimentos. Uma parte importante das trocas nos
relacionamentos se dá em função das emoções e dos sentimentos que
as pessoas conseguem compartilhar. Gabriel não consegue se comu-
nicar direito, e o fato de ele não conseguir demonstrar emoções torna
o convívio com as pessoas ainda mais difícil e distante.
Sua realidade interior é marcada por grande sofrimento, experiências
emocionais muito intensas e impossíveis de serem expressas em pala-
vras. Ele se sente perseguido e vigiado o tempo todo; tudo o que acon-
tece a seu redor, para ele, está relacionado com o que pensa e percebe.
As vozes constantemente comentam seu comportamento e suas
atitudes. Gabriel vive uma realidade que é ameaçadora e se vê mergu-
lhado em situações que o desorientam constantemente. O relaciona-
mento com as pessoas também faz parte dessa experiência desconcer-
tante que tomou conta de sua vida, e ele não consegue corresponder
às emoções e aos sentimentos das pessoas a seu redor.
,
E a partir de suas vivências interiores que Gabriel reage emocional-
mente. Apesar de parecer, para os outros, que ele não está sentindo
nada, na realidade, sua percepção está muito aguçada, e ele pode
perceber os detalhes das atitudes dos demais. Percebe quando as
pessoas são irônicas, o evitam ou esperam dele atitudes às quais ele
não consegue corresponder. O embotamento afetivo faz parte das
Entre a razão e a ilusão 47
-• J -•
.....
Energia perdida
Um sintoma da esqwzofrenia que causa incompreensões é a falta de
vontade. Diante da situação em que se encontra, Gabriel não consegue
realizar as tarefas mais simples, como arrumar a própria cama ou
ajudar sua mãe com as tarefas cotidianas da casa. Essa postura é enten-
dida pelos pais e irmãos como preguiça.
Gabriel sente-se sem energia, não tem motivação para realizar as
coisas que naturalmente fazia antes. E' preciso entender qual é o
contexto que ele está vivendo e que sua falta de vontade não é simples-
mente preguiça, como as pessoas interpretam. A "falta de vontade" é
um sintoma que os médicos chamam de abulia.
Ele está vivendo uma situação na qual seu mundo interior é marcado
por vivências em que a realidade se apresenta ameaçadora: suas
percepções, seus pensamentos e sentimentos mostram-lhe situações
Entre a razão e a ilusão 49
J .A.O.
Sou portador de esquizoafetividade, que é um transtorno mental que mescla sintomas de
esquizofrenia e bipolaridade, alternando momentos de manias e vales de depressão. No
caso de minha depressão (sintomas negativos), ocorrem com muita frequência o desâni-
mo de maneira geral e a falta de vontade de realizar atividades rotineiras. Muitas vezes,
passo boa parte de meu dia na cama ou impossibilitado até mesmo de sair de casa para
exercer atividades profissionais.
A manifestação de minha primeira crise de bipolaridade e seus respectivos sintomas
negativos começou a ocorrer no segundo semestre de 1994, após um retiro espiritual no
Rio de Janeiro. Começou com uma crise de choro e uma forte desorientação cognitiva.
De volta ao trabalho, em São Paulo, comecei a enfrentar sérias dificuldades de exercer
atividades profissionais rotineiras e de me organizar no dia a dia. Mesmo com medica-
ção, os sintomas persistiram até meados de 1995, quando finalmente arrefeceram ao
me decidir fazer uma viagem de estudo aos Estados Unidos. Depois dessa primeira crise,
parei de tomar medicação e tive uma vida normal até meados de 1998, quando surtei
pela segunda vez. Retomei a medicação e voltei a apresentar fortes depressões e desmo-
tivações existenciais. Parei novamente a medicação e tive nova crise no fim de 1999 e
início de 2000. Só aderi ao tratamento nessa época, mas mesmo assim tive uma última
crise em maio de 2001.
Hoje, tenho tomado três tipos de medicamentos, um neuroléptico (antipsicótico),
um regulador do humor e um antidepressivo. Ainda convivo com altos e baixos de humor,
mas os grupos que eu frequento na Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Porta-
c<•11li1111u .••
Entre a razão e a ilusão 51
.. • conÍi111111ciiu
'
dores de Esquizofrenia (ABRE) têm-me ajudado bastante a superar a doença, sendo eu,
inclusive, um dos facilitadores do grupo de acolhimento. Este é realizado semanalmente
nas dependências do Programa de Esquizofrenia (Proesq) da Escola Pau lista de Medici-
na da Universidade Feder,;ll de São Paulo (Unifesp/EPM). Atualmente, os sintomas ne-
gativos de minha esquizoafetividade ainda persistem, mas tenho conseguido controlá-los
satisfatoriamente com os medicamentos e as terapias individuais e familiares.
Para o futuro, tenho traçado planos para que eu me motive e possa readquirir a
alegria de viver, sendo que voltar a estudar é uma de minhas metas, fazendo matérias
esporádicas na universidade. As leituras que são feitas por minha curiosidade intelectual
também têm ajudado a combater os sintomas negativos de meu transtorno, e acredito
que estou paulatinamente superando as dificuldades e readquirindo uma qualidade de
vida compatível com minhas expectativas existenciais.
Acognição ea esquizofrenia
Alguns portadores de esquizofrenia se queixam de alterações na atenção
e na memória. Será que essas alterações cognitivas são parte da esqui-
zofrenia? O texto a seguir discute aspectos cognitivos envolvidos na
doença.
Neuropsicóloga
A neuropsicologia pode ser definida como o estudo da relação entre o cérebro e o com-
portamento. É uma ciência recente, que só por volta dos anos de 1980 ampliou seu
campo de atuação para incluir as doenças psiquiátricas. Apesar de os distúrbios cog-
nitivos terem sido descritos desde o início da história da esquizofrenia, só agora os
estudiosos dessa doença não têm mais dúvidas de que os problemas cognitivos são
centrais no transtorno esquizofrênico, a ponto de serem caracterizados como sintomas
dessa patologia.
O comprometimento cognitivo na esquizofrenia inclui problemas de atenção e con-
centração. memória e aprendizagem, linguagem e funções executivas (ou seja, ter vonta-
de de fazer uma coisa, planejar como conseguir realizá-la, capacidade de resolver os pro-
blemas que vão surgindo, etc.), além de maior lentidão para realizar tarefas. O decl ínio
conlinua .. .
52 • Assis, Villares & Bressan
..• co11/i111ta,;iio
nas habil idades cognitivas está presente na maioria dos portadores de esqu izofren ia, mas
também existem aqueles com func ionamento cogniti vo normal. Esse declínio parece co-
meçar um pouco antes do início da doença e não piorar muito com o decorrer do tempo.
A importância do diagnóstico dos déficits cognitivos está relacionada ao fato de eles
interferirem em várias áreas da vida do portador, tais como: em suas atividades da vida
diária, no funcionamento social e ocupacional, na capacitação para o trabalho, nos rela-
cionamentos interpessoais e até mesmo na adesão ao tratamento.
Com base nesses recentes conhecimentos, é cada vez mais frequente a avaliação
neuropsicológica do indivíduo portador de esquizofrenia. Essa avaliação é realizada pela
aplicação de testes neuropsicológicos, que avaliam o funcionamento cogn itivo, ou seja,
a atenção, a memória, a aprendizagem, as funções executivas, a linguagem, etc. Os
objetivos dessa avaliação são verificar quais as habilidades e as dificuldades que essa
pessoa apresenta e ajudar no planejamento de um projeto terapêutico específico para
esse paciente. O projeto terapêutico se fundamenta na utilização das habilidades de que
o portador dispõe e na descoberta de formas alternati vas para compensar as dificu ldades
encontradas.
Outra forma de atuação da neuropsicologia é a reabil itação cognitiva, que é um
tratamento com o objetivo de recuperar ou diminuir os déficits cognitivos e, consequen-
temente, reduzir a longa duração das consequências sociais e pessoais da doença.
A neuropsicologia é um dos mais recentes instrumentos no diagnóstico e no tra-
tamento das pessoas com esquizofrenia que com certeza trará grandes benefícios na
recuperação dessas pessoas.
Caminhos e possibilidades
Apresentamos, por intermédio da experiência de Gabriel, algumas das
questões envolvidas na vivência da esqt1izofrenia. Perante urna situação,
sabemos que,
sempre há o que fazer, existem sempre caminhos e possi-
bitidades. E importante procurar ajuda e não ter vergonha de ter esqui-
zofrenia ou ser familiar de um portador. Ela é uma experiência humana.
Renato estava na casa de um amigo e comentou as dificuldades que
seu irmão estava vivendo e como isso estava afetando toda a família.
A mãe do amigo, que trabalha em um hospital como enfermeira, ouviu
todo o relato. Ela explicou que no hospital não se tratam somente
doenças do corpo, que há uma especialidade chamada psiquiatria que
trata de problemas como o qu.e Gabriel estava vivendo e recomendou
que o levassem para uma consulta.
Entre a razão e a ilusão 53
"".
54 • Assis, Villares & Bressan
Primeiro passo
A história de Gabriel até aqt1i mostra como a esquizofrenia pode se apre-
sentar como uma doença grave e que desorienta a pessoa e a família.
Mas isso é apenas o início de uma mudança de caminho na vida do indi-
víduo. Ao longo deste livro, procuraremos mostrar que é possível ter
esperança e que as situações cotidianas vivenciadas pela pessoa com
esquizofrenia e por seus familiares podem melhorar ao longo do tempo.
A esquizofrenia não é uma doença que se resolve naturalmente apenas
tomando os medicamentos, como acontece, por exemplo, com uma
infecção. Na esquizofrenia, a recuperação se dá em um caminho de
construção interior tanto da pessoa quanto dos familiares. Essa cons-
trução é um aprendizado que se adquire no convívio e nos relaciona-
mentos. Isso se dá na família, com os profissionais da saúde e na comu-
nidade.
O primeiro passo, seja em uma primeira crise, como a de Gabriel, seja
durante o tratamento, caso as coisas fiquem difíceis, é procurar llffi
psiquiatra, para juntos investigarem o que está acontecendo e traçarem
uma linha de tratamento, sempre com base no diálogo, a fim de os fami-
liares e o paciente entenderem o que o médico está propondo e também
relatarem o que está funcionando e o que não está no tratamento.
A medicação é fimdamental para que a pessoa consiga se recuperar.
Para isso, o médico psiquiatra conhece profundamente como funciona
o cérebro e como agem os medicamentos e sempre procura o que é
melhor para cada caso.
Também são fundamentais as abordagens psicossociais, como a terapia
ocupacional e a psicoterapia. Esses tratamentos ajudam a pessoa e
seus familiares a redesenharem seus caminhos no sentido de adqui-
rirem uma vida com qualidade.
56 • Assis, Villares & Bressan
,
E muito comum as pessoas ficarem um longo tempo sem tratamento,
procurando alternativas, ou resolverem sozinhas os problemas. Infeliz-
mente, no caso da esquizofrenia, quanto mais tempo demorar o início
do tratamento, mais longa e difícil será a recuperação.
Gabriel e set1s pais precisarão caminhar mais t1m tanto do caminho até
chegar a um entendimento claro das questões que ficaram depois da
consulta com o psiquiatra, mas o jovem encontrará um caminho de
recuperação da esquizofrenia com o passar do tempo e com os novos
relacionamentos que ele estabelecerá.
,
E essa jornada que será apresentada nos próximos capítulos deste
livro.
Ocaminho até o
diagnóstico
... .
58 • Assis, Villares & Bressan
,. ?
.....
••
...,
64 • Assis, Villares & Bressan
relatar tudo o que possa ajudá-lo a saber como a pessoa que está sendo
tratada está reagindo.
Os pais concordam em cuidar do filho em casa. O pai de Gabriel, Seu
Paulo, diante das explicações do Dr. Marcelo, decide tirar férias do
trabalho para acompanhar o filho . Dona Márcia, a mãe, escuta tudo
com muita atenção. Esse é um momento difícil para os pais de Gabriel,
em que eles se dão conta de que o filho tem uma doença grave.
Contudo, gera alívio, pois eles saem da fase de dúvidas e passam a
enfrentar o problema com uma perspectiva de que ele pode melhorar.
A internação é necessária quando a doença oferece risco para seu
portador ou para outras pessoas. A internação, hoje, é prescrita por um
período curto, o suficiente para os medicamentos fazerem efeito e a
pessoa sair da crise aguda (a internação será discutida em pormenores
no Capítulo 4).
O tratamento em casa tem suas dificuldades, como veremos a seguir.
O psiquiatra chama Gabriel e, junto a seus pais, explica que é impor-
tante ele tomar a medicação, pois ela ajudará a diminuir seu sofri-
mento. Diante do médico e dos pais, o jovem concorda em tomar os
medicamentos e voltar para a consulta na semana seguinte.
L.C. F.
O meu percurso com a esquizofrenia começa em 1996, aos 23 anos; eu comecei a ter
sensações que eram diferentes das que normalmente eu sentia. Assim como Gabriel,
personagem do livro, eu tinha uma vida produtiva, estudava e trabalhava. Com o passar
dos anos, foi aumentando a responsabilidade. Ao terminar o ensino médio, fui fazer
cursinho para entrar em uma universidade pública; no primeiro ano, não consegui. No
segundo ano, fiz cursinho novamente e, em julho, saí do emprego para me dedicar ex-
clusivamente ao vestibular. No final do ano, prestei vestibular e consegui ingressar em
uma universidade pública.
Nos dois primeiros anos da faculdade não trabalhei, pois o curso era integral e eu
acreditava estar fazendo algo produtivo.
No terceiro ano da faculdade, começaram as dificuldades devidas aos primeiros
sintomas de uma doença mental. Sentia-me diferente; comentei isso com meus colegas:
um achou engraçado e que deveria ser normal, no outro, despertou curiosidade.
Diante disso, ayaliei que deveria ser observado por profissionais da saúde mental;
logo marquei uma consulta com uma psicóloga.
Comecei a passar regularmente em consultas com uma psicóloga; fomos discutindo
minhas questões, e ela foi avaliando prováveis distúrbios. Depois de fazermos várias
avaliações, ela concluiu que eu deveria fazer um tratamento medicamentoso, portanto,
indicou-me um tratamento com um psiquiatra.
Marquei uma consulta com um psiquiatra. Na primeira consulta, discutimos minha
situação e ele marcou uma nova consulta, mas não compareci, pois meu estado de crise
estava bastante adiantado, e minha família percebeu que eu estava bastante alterado e
deveria comparecer a um pronto-socorro de psiquiatria (Centro de Atenção Psicossocial
[CAPS]).
Fui levado por meus familiares, entrevistado, medicado e fiquei o dia em observação.
No dia seguinte, fui para um hospital psiquiátrico para ser internado e tomei os me-
dicamentos indicados, mas depois de uma semana de tratamento o quadro só piorava.
Então, minha família me levou para outro hospital que tinha uma clínica psiquiátrica, e
aí fui observado por um psiquiatra. Ele começou a receitar os medicamentos antipsicó-
ticos, pois diagnosticou psicose.
Após dois anos, tive uma segunda crise e voltei a tomar os medicamentos típicos.
Em 2000, entrei para o Proesq e, após algumas consultas, passei a tomar outra
medicação, e foi fechado meu diagnóstico de esquizofrenia paranoide.
Com o diagnóstico, procurei informações sobre a doença, como tratá-la e passei a
aderir ao tratamento.
, .....
Entre a razão e a ilusão 69
Os pais de Gabriel estão repetindo um padrão de comportamento do
qual não se dão conta. Esta é a melhor forma que aprenderam para
lidar com os filhos. Nessas situações, é comum que os relacionamentos
sejam emocionalmente intensos. Apesar de eles estarem buscando o
melhor para o filho, sabe-se que discussões muito intensas não ajudam
a pessoa com esquizofrenia. O caminho mais promissor é o do enten-
dimento da vivência da pessoa com a doença e da negociação.
A irmã mais nova de Gabriel, Júlia, chegou da escola e ficou sabendo
pelos pais o que estava acontecendo. Foi conversar com o irmão e
perguntou o que estava acontecendo com ele. Gabriel, que conseguia
contar para a irmã suas experiências, falou que o médico é bem-inten-
cionado, mas as vozes disseram para ele que os medicamentos foram
substituídos por veneno. Por esse motivo, ele não iria tomá-los. Quando
Júlia entendeu por que Gabriel não queria tomar o medicamento, ela
pôde negociar com ele.
Júlia percebeu, na caixa de um dos fármacos, um número de telefone
de atendimento ao cliente. Ao lado de Gabriel, ligou para o laboratório
e disse que desconfiava que o medicamento pudesse estar adulterado.
A pessoa que a atendeu pediu informações que estavam na embalagem
e nas cartelas do medicamento; depois de um tempo de espera,
confirmou que ele não era adulterado. Assim fizeram com os outros
dois fármacos. Júlia procurou mostrar para Gabriel que não era a
primeira vez que as vozes o enganavam e que os medicamentos eram
para ajudar, e não para prejudicar. Só então Gabriel concordou em
tomá-los.
Por mais difícil que seja no início, é preciso estabelecer canais de
diálogo com a pessoa com esquizofrenia e entender seus motivos.
Nem sempre esse é um caminho fácil, mas ao longo do tempo é o
mais eficaz. A pessoa com esquizofrenia, mesmo em uma crise aguda,
tem condições de perceber quando as atitudes e conversas com os
familiares são bem intencionadas. A pessoa pode ter dificuldade em
aceitar certas coisas, por exemplo, se os familiares falarem que o que
ela está vivendo não é real, que é só uma doença, pois para ela as
coisas estão acontecendo. Sempre que possível, é bom evitar
70 • Assis, Villares & Bressan
Início da melhora
Após o início do tratamento, as pessoas, sobretudo os familiares,
esperam que os resultados apareçam rapidamente. Na esquizofrenia,
para que os tratamentos apresentem resultados, o processo se dá em
uma escala de semanas a meses; é preciso manter a esperança realista
e a paciência. Entretanto, as melhoras podem ser percebidas já no
intervalo de alguns dias, como veremos no tratamento de Gabriel.
O início do tratamento foi acompanhado de perto pelo Dr. Marcelo.
Gabriel sente os sintomas diminuírem. As vozes aparecem com menos
frequência, e diminui a sensação de estar sendo filmado e perseguido.
Consegue organizar melhor os pensamentos e compreender as
conversas com os irmãos e os pais. Ainda persiste certo medo, que
Gabriel não consegue entender de onde vem, e ainda não consegue se
organizar direito com as tarefas do cotidiano.
Seus pais acompanham-no às consultas com o médico. Gabriel fala
muito pouco nas consultas. Os pais relatam que ele tem melhorado,
mas está mais quieto e diferente, mais apagado, como se estivesse em
outro mundo. O médico explica que isso se deve, em parte, à doença
e, em parte, aos medicamentos, que é necessário acompanhar Gabriel
e acertar aos poucos as doses dos medicamentos a partir da melhora
dos sintomas. Ele indica o tratamento de terapia ocupacional, explica
qual é a proposta desse tratamento e por que o jovem terá benefícios
com ele.
Gabriel e sua mãe foram, então, à primeira consulta com a terapeuta
ocupacional, Fátima. Ela os recebeu em uma sala cheia de quadros,
objetos de argila, peças de mosaico, entre outros objetos, alguns
prontos, outros não. Ela explicou para os dois que o objetivo principal
do tratamento era ajudar Gabriel a organizar seu cotidiano e exercitar
Entre a razão e a ilusão 71
projetos com começo, meio e fim. Explicou que cada peça naquela sala
era parte do projeto de alguma pessoa. Ela disse que havia conversado
com o Dr. Marcelo, e urna primeira atividade seria Gabriel ir sozinho à
terapia ocupacional.
Gabriel passa a ir às consultas com Fátima urna vez por semana. Toda
quarta-feira, levanta cedo, torna banho e arruma-se para essas
consultas. Eles vão conversando sobre corno é o dia a dia de Gabriel e
corno é possível melhorá-lo. Durante as sessões, eles começam traba-
lhando com técnicas de pintura.
Com o andamento do tratamento com o Dr. Marcelo e Fátima, Gabriel
começa a sair do isolamento em que se encontrava. Ele volta a assistir
à televisão com a família à noite. Ajuda a mãe lavando o quintal e em
outras pequenas atividades domésticas. Ainda tem dificuldade para
conversar com os vizinhos. As' vezes, ouve vozes e, dependendo da
situação, ainda acha que o que as pessoas falam é sobre ele, mas a
intensidade dessas percepções diminuiu muito se comparada com a do
início do tratamento.
Esse início da melhora é muito importante, pois é a partir dele que a
pessoa com esquizofrenia vai construindo as bases para, no devido
tempo, ter urna recuperação satisfatória. Não há corno pular essa fase;
muitos portadores de esquizofrenia não conseguem passar por ela de
72 • Assis, Villares & Bressan
Isso é loucura?
As pessoas dão muitos significados para a palavra "loucura"; em geral,
associam-na a uma mudança no jeito de ser, a uma perda permanente
da razão e da autonomia, e que pode levar a urna perda do controle
das próprias ações. Muita gente acha que a loucura não tem cura, e,
como consequência, as pessoas que enlouquecem devem ser inter-
nadas definitivamente, pois não são confiáveis e podem se tornar peri-
gosas. A família de Gabriel não sabe o que pensar. Eles sabem que os
vizinhos dizem que seu filho ficou louco, e isso causa grande descon-
forto. Eles procuram o Dr. Marcelo, angustiados com esta questão: afinal
de contas, o Gabriel ficou louco? O médico escuta o que os pais têm
ouvido dos vizinhos e percebe o quanto isso é difícil para eles.
O psiquiatra explica que "loucura" é uma palavra que as pessoas usam
há séculos para explicar o que elas desconhecem; chamam de loucas as
pessoas que têm um comportamento que não é igual ao de todo mundo,
em geral associado ao descontrole (desatino). Explica que Gabriel não
ficou "louco"; ele tem uma doença que tem tratamento. Essa doença
pode causar momentos de descontrole, mas, com os tratamentos, é
possível controlar os sintomas, e, com o tempo, Gabriel poderá entender
o que se passa com ele e lidar com a doença. Com o tratamento adequado,
ele irá passar a maior parte do tempo da sua vida sem apresentar situa-
ções em que os sintomas ficam mais intensos e, somente em raras opor-
tunidades, apresentará situações de descontrole.
Os pais falam da dificuldade, principalmente do irmão mais velho, de
conviver com Gabriel. O médico percebe que a doença do jovem está
angustiando a família inteira e que explicar os mecanismos da doença,
neste momento, não vai ajudá-los muito. Ele diz que no hospital existe
um grupo de acolhimento para as famílias, e seria bom que todos os
membros da família pudessem participar dele, pois isso poderá ajudá-
-los a lidar com o que está acontecendo.
A primeira sessão nesse grupo foi marcante para todos, pois puderam
falar de suas experiências e ouvir as experiências de outros familiares
de portadores de esquizofrenia. Os pais falaram corno era difícil lidar
74 • Assis, Villares & Bressan
com o problema do filho. Júlia acha que seu irmão apenas é diferente
e que cada um tem o direito de ser como quiser. Renato ficou calado,
até seu irmão falar. Gabriel contou que vive com muito medo, ouve
vozes e sente que está sendo perseguido, que as pessoas sempre estão
falando dele, mas agora está bem melhor, antes ele nem conseguia sair
do quarto. Júlia falou que gosta do irmão do jeito que ele é e espera
que o tratamento o ajude a sofrer menos. Os pais concordam. Renato
pôde então se abrir, disse que gosta do irmão, mas tinha medo de falar
o que pensava, pois havia percebido que só piorava as coisas, então,
evitava problemas; entretanto, disse que mudaria e pararia de evitar o
. ~
1rmao.
A terapeuta pôde mostrar, com base nessas falas, que Gabriel tem seus
problemas, mas cada um tem suas questões a serem entendidas e mais
bem elaboradas, e que aquele era um espaço para estimular todos a
falarem abertamente dos problemas e ampliar o diálogo para a convi-
vência familiar do dia a dia. Com isso, cada um pôde ouvir melhor as
questões dos outros, e ficou mais fácil lidar com as dificuldades.
Esse entendimento é fundamental: a doença afeta a pessoa com esqui-
zofrenia, mudando sua maneira de estar no mundo, mas, ao mesmo
Entre a razão e a ilusão 75
a seu redor vão perdendo a força. Entretanto, ele vai se dando conta
de que não tem mais a mesma velocidade de raciocínio, tem mais difi-
culdade que os irmãos nas coisas que fazem juntos, tem dificuldade
para conversar com as pessoas e manter o assunto. Isso o deixa um
tanto desgostoso com a vida.
Nas consultas com o Dr. Marcelo, em que vai acompanhado de seus
pais, Gabriel reclama dessas dificuldades. O médico diz para ele ter
paciência e não desistir. Pede para que, aos poucos, ele volte a fazer as
atividades em que tem mais dificuldade, pois com o tempo ele deve
melhorar. Esse pode ser um processo longo e desgastante, mas é funda-
mental não desanimar para poder explorar todo seu potencial. Diz:
"Gabriel, todos nós temos limitações, mas precisamos aprender a lidar
com elas e, na medida do possível, superá-las".
Os pais de Gabriel sempre perguntam qual o diagnóstico do filho. O
médico avaliou cuidadosamente o caso até ter segurança para fechar o
diagnóstico. Em uma longa consulta, mostrou que o diagnóstico da
doença que o jovem apresenta é esquizofrenia.
Nessa consulta, ele tomou o cuidado de esclarecer todas as dúvidas de
Gabriel e de seus pais. A primeira reação deles é de decepção, pois eles
- ======---
-·
Entre a razão e a ilusão 77
acham que esquizofrenia é um diagnóstico muito ruim. Lembram-se
da filha de um conhecido que tem a doença e um comprometimento
grave. O médico esclarece que a esquizofrenia se manifesta em cada
indivíduo de uma forma diferente, não dá para comparar as pessoas.
Existem alguns casos que evoluem sem grandes comprometimentos no
funcionamento do sujeito. Disse que Gabriel está tendo uma boa
evolução até o momento e que deve seguir os tratamentos para manter
o que já conquistou e melhorar ainda mais.
A aceitação do diagnóstico de uma doença crônica é difícil para qual-
quer um. No caso da esquizofrenia, esse diagnóstico vem acompa-
nhado de uma série de definições negativas, que as pessoas acabam
assumindo como uma realidade irremediável. Por isso, evitamos, ao
longo deste livro, trabalhar com definições, e preferimos nos centrar
mais em vivências e percursos possíveis, nos quais podemos apresentar
experiências práticas e reais de resolução de problemas, por meio das
vivências dos personagens.
O psiquiatra mostra para Gabriel e para seus pais que o diagnóstico
não é uma sentença decretada por um juiz. Explica que serve apenas
para melhorar o entendimento das coisas que Gabriel está vivendo e
melhorar o tratamento. Diz: ''A esquizofrenia não define o que você é,
Gabriel, entenda apenas como uma doença que você precisa cuidar;
você é muito mais do que a doença que você tem".
conlinua .. .
78 • Assis, Villares & Bressan
. . . conlinu.acão
,
Iem cura?
Gabriel e seus pais questionam o Dr. Marcelo se a esquizofrenia tem
cura. Essa é uma questão importantíssima, e é necessário entender
mais de perto o que ela envolve. O médico sabe que esse é um momento
muito importante do tratamento, pois a forma como Gabriel e seus
pais entenderem essa questão determinará a forma como eles se rela-
cionarão com a esquizofrenia e seu tratamento.
O médico explica que a medicina conhece a cura para poucas doenças,
mas ela propõe tratamento para muitas delas, de maneira que as
pessoas possam viver melhor e com qualidade. No caso da esquizo-
frenia, há uma parte dos portadores (13%) que apresenta somente um
episódio psicótico e, em seguida, retoma a seu funcionamento habi-
Entre a razão e a ilusão 79
Um aprendizado necessário
Apresentamos, pela história de Gabriel, como se dá um processo de
tratamento que começa com um episódio psicótico agudo até chegar a
um diagnóstico de esquizofrenia. Conhecemos algumas das inúmeras
dificuldades que as pessoas, tanto familiares quanto o indivíduo que
Entre a razão e a ilusão 81
Olá,
Doutor ...
-·
82 • Assis, Villares & Bressan
Oentendimento científico
dimin11i oestigma da doença
,
E muito difícil, no caso de Gabriel e sua família, entender que suas difi-
culdades e experiências internas são sintomas de uma doença. Este
entendimento pode ser muito útil: o de quando existe a compreensão
de que a pessoa é maior que a doença e de que com os tratamentos ela
tem mais possibilidades e meios para ser o que realmente é, com níveis
muito menores de interferência da doença.
,,,,
•
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84 • Assis, Villares & Bressan
1 •
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• .... ... · ~
88 • Assis, Villares & Bressan
Genética e esquizofrenia
Muitos fatores biológicos e também as relações destes com todas as
experiências vividas estão envolvidos no aparecimento e desenvolvi-
mento da esquizofrenia.
A palestra do Dr. Ary Gadelha, transcrita a seguir, ajuda muito a escla-
recer os fatores genéticos envolvidos na esquizofrenia e como eles
interagem com os fatores ambientais.
-
Psiquiatra
Uma das questões mais comuns - e talvez a mais difícil de responder - ao se estudar
a esquizofrenia é justamente o porquê, o que leva algumas pessoas a apresentarem
sintomas como delírios ou alucinações. A genética é uma das ciências que mais tem
contribuído em dar respostas a essa questão. Mas, afinal, o que é genética? A genética é
a ciência que estuda os genes. Os genes são porções do DNA, uma substância contida no
núcleo de nossas células, que contém informações para cada característica nossa, como
a cor dos olhos ou da pele e nossa altura. Os genes seriam como uma receita nossa, mas
quem nós realmente somos vai além da informação contida neles. Fatores ambientais
como alimentação, atividades esportivas e educação moldam as características genéti-
cas de forma a tornar cada indivíduo um ser único, com características próprias.
Uma evidência importante de que fatores genéticos influenciam a esquizofrenia é a
observação de que há um risco familiar aumentado para a doença. Por exemplo, estima-
-se que a prevalência da esquizofrenia na população em geral gire em torno de 1%, mas
quando uma pessoa é afetada, o risco de outra pessoa na mesma família {parente em
primeiro grau) ser afetada sobe para algo em torno de 8%. Embora a probabilidade de
ser acometido permaneça baixa, isso representa um aumento de oito vezes no risco de
90 • Assis, Villares & Bressan
. . . conlinu.acão
,
desenvolver a doença. Além disso, estudos com gêmeos idênticos mostram que quando
um é afetado a chance de o outro também ser gira em torno de 44%. Somado a isso,
observa-se que quanto maior a carga genética comparti lhada com um portador, maior a
chance de desenvolver a doença (gêmeos> parente em primeiro grau > população em
geral).
Bom, mas se esses dados sugerem que a esquizofrenia é uma doença "genética",
eles também falam a favor de uma doença "ambiental ", uma vez que mesmo uma cópia
genética do portador, no caso um gêmeo idêntico, só desenvolve a esquizofrenia em
cerca de metade dos casos. Isso quer dizer que os fatores genéticos são importantes,
mas não determinam sozinhos a ocorrência da doença. Eles tornariam um indivíduo
vulnerável, e o desenvolvimento dependeria da exposição a situações ambientais, como
complicações no parto, infecções, migração ou uso de drogas.
Até agora, vários genes foram relacionados a um risco aumentado para a esqui-
zofrenia. No entanto, nenhum deles, isoladamente, parece explicar a doença, e ainda
estamos distantes de um exame que possa dizer quem tem ou quem vai desenvolver a
esquizofrenia. Enquanto mais estudos têm sido realizados para aumentar o conhecimen-
to e permitir a criação de novos medicamentos ou métodos diagnósticos, a detecção e o
tratamento precoces ai nda são as melhores formas de minimizar o impacto da doença.
' .........
Entre a razão e a ilusão 91
Alteração do funcionamento
cerebral - dopamina
A transmissão de informação entre as células do cérebro acontece por
meio de substâncias químicas chamadas neurotransmissores. Assim,
todos os processos cerebrais, tais como a visão, a audição, o paladar, o
olfato e o tato, bem como tudo o que pensamos e sentimos, são infor-
mações processadas por neurônios que se comunicam por meio de
neurotransmissores.
Um neurotransmissor bastante estudado na esquizofrenia é a dopa-
• •
mina, pois:
DOPAMINA NO CÉREBRO
Via Nigroestriatal
Via Mesolímbica
DOPAMINA NA ESQUIZOFRENIA
Via Nigroestriatal
Sintomas
NEGATIVOS
• Apatia
• Diminuição
do afeto
• Isolamento
social
Via Mesolímbica
Sintomas POSITIVOS
• Delírios
• Alucinações
(AHV(A~/1.
94 • Assis, Villares & Bressan
Tratamento da alteração
cerebral - antipsicótico
A esquizofrenia é uma doença que tem tratamento. Uma parte funda-
mental deste é o uso de uma classe de medicamentos chamada antipsi-
cóticos. A outra parte é composta por abordagens terapêuticas, que
incluem terapia ocupacional, psicologia, serviço social, reinserção
sócio-ocupacional, treinamento de habilidades sociais, entre outras.
Aqui, abordaremos os mecanismos cerebrais envolvidos no tratamento
medicamentoso e seus resultados. A partir dessa perspectiva, aponta-
remos também por que e quando os tratamentos psicossociais são
importantes.
Os medicamentos antipsicóticos têm em comum a função de bloquear
receptores de dopamina. O uso correto desse tipo de medicamento
permite uma regulação da saliência provocada pela dopamina,
formando uma plataforma interior a partir da qual é possível um
enfrentamento dos sintomas. Entretanto, os antipsicóticos não mudam
o processo de desregulação descrito no item anterior. Dessa forma,
Entre a razão e a ilusão 95
Neuroprogressão
Nosso cérebro, como já dissemos, continua a se desenvolver após o
nascimento, e, como todos os outros órgãos do corpo, seu desenvolvi-
mento se dá de forma particular em cada indivíduo e está associado à
singularidade da personalidade de cada um. Estudos mostram que as
pessoas com esquizofrenia, em geral, têm um desenvolvimento dife-
renciado do cérebro. Essas diferenças sutis precisam ser levadas em
consideração para entender a esquizofrenia como doença e como ela
progride. Essa abordagem permite pensar estratégias para se cuidar e
viver melhor, pois cuidar de si também é cuidar do próprio cérebro!
Várias pesquisas avaliaram grupos de pessoas com esquizofrenia por
meio de ressonância magnética nuclear cerebral e compararam-nas
com indivíduos sem a doença. Em média, as pessoas com esquizo-
frenia têm volume cerebral menor e reduções do volume de algumas
regiões, como o córtex, pré-frontal, o córtex temporal, o hipocampo, a
amígdala e o tálamo. E preciso entender que as diferenças são sutis e
não fazem as pessoas tomarem-se deficientes mentais, pois as reper-
cussões nas capacidades cognitivas são muito pequenas. Estudos
mostram que a diminuição das estruturas cerebrais não se dá à custa
Entre a razão e a ilusão 97
..... ...
._,
98 • Assis, Villares & Bressan
..........
100 • Assis, Villares & Bressan
Aspectos gerais
A esquizofrenia é uma doença em que estão envolvidos vários fatores
biológicos, psicológicos e sociais; seu tratamento envolve o cuidado
oferecido pelos profissionais da saúde, pelos familiares e pela partici-
pação da própria pessoa que tem a doença. Invariavelmente, a esqui-
zofrenia é acompanhada de muitos sofrimentos, pois afeta as relações
da pessoa com a realidade e com os outros. Diante dessa situação, os
tratamentos têm como objetivo a construção de possibilidades de lidar
com esses sofrimentos e reconstruir o caminho de vida, com base nas
capacidades da pessoa.
~STI GM-4
- ~.
•
102 • Assis, Villares & Bressan
CURSINHO
-··
104 • Assis, Villares & Bressan
e algumas dizem que ele é um grande escritor, outras dizem que ele é
mesquinho por não publicar o que escreve. Dominado por essas
vivências delirantes e alucinatórias, Gabriel não mostra seus escritos
para os amigos com medo de que cheguem às mãos de grandes escri-
tores, que alguém roube suas ideias. Sente-se cada vez mais acuado e
sozinho.
Uma característica comum da esquizofrenia é que a pessoa não percebe
quando está entrando em uma nova crise. Gabriel começa a comportar-
-se de maneira muito diferente; seus familiares percebem a mudança,
mas não sabem o que fazer. Seus amigos e amigas também percebem
as mudanças e não entendem por que ele tem certas atitudes estra-
nhas. Até Júlia, a irmã que sempre conversou muito com ele, não
consegue se aproximar, pois corno Gabriel não tem consciência de que
o que está vivendo é urna crise da esquizofrenia, não se abre com
. ,
n1nguern.
Sua segunda crise é muito mais grave que a primeira. Infelizmente,
esse é um resultado comum em consequência da interrupção dos trata -
mentos e dos cuidados para manter a doença sob controle.
conlinua. ...
108 • Assis, Villares & Bressan
. . • co11/i111ta,;iio
rotina, a repetição das recaídas pode agravar e prejudicar a evolução da doença. Quanto
maior o número de crises, pior a qualidade de vida e maior o comprometimento nas
funções mentais, como memória, atenção, capacidade de organização e vontade para
realizar atividades rotineiras.
Sabemos que até 80% dos pacientes que descontinuam a medicação antipsicótica
podem ter uma recaída no período de um ano. Nas pessoas que fazem o uso regular da
medicação prescrita, o risco de recaídas é significativamente menor.
Contudo, é compreensível que em diferentes estágios da doença o paciente possa ter
o desejo de parar a medicação.
Mas, afinal, o que pode levar a esse desejo?
Em parte, a falta de conhecimento a respeito dos ríscos da parada abrupta dos medi-
camentos pode induzir a descontinuação. Para que isso não aconteça, médico e paciente
devem conversar abertamente sobre as consequências de não tornar adequadamente a
medicação prescrita. Os riscos devem ser todos esclarecidos.
Os efeitos adversos dos antipsicóticos constituem outra causa para interrupção do
tratamento medicamentoso. Nenhuma medicação está livre de efeitos colaterais, da dor
de estômago causada por uma aspirina à sonolência causada por alguns antipsicóticos.
Felizmente, cada vez mais, ternos acesso a medicações diferentes com perfis favoráveis
de efeitos adversos. Relatar o que se está sentindo para o médico após a introdução da
medicação, bem como o profissional questionar diretamente o paciente sobre eventuais
sintomas, pode auxi liar na escolha da medicação mais adequada e de melhor perfil em
relação aos efeitos indesejados.
Muitas vezes, um dos motivos para não querer fazer uso de medicações está relacio-
nado à própria sensação de não se sentir doente, muito comum nos períodos de crise.
Um indivíduo me dizia: "Doutor, por que o senhor insiste em me medicar se não estou
doente? Acho que é caso de espiritismo, e para isso não tem remédio, não! Mas urna
coisa é verdade, da outra vez que tomei esse medicamento me senti bem melhor!" . A
noção de doença, também chamada de insight, é um importante objetivo das consultas
e pode ser extremamente valiosa no sentido de aceitação do uso de medicação por parte
do doente.
Costumo propor para os pacientes que falem abertamente para seu médico sobre
eventuais desejos de abandono do tratamento medicamentoso e que ambos tentem pri-
meiramente compreender os motivos, conhecidos ou não, relacionados a esse desejo,
para depois escolher a melhor estratégia para lidar com essa situação, lembrando que,
no caso das doenças crônicas, a parada prematura do tratamento é comum e é o princi-
pal fator de pior prognóstico.
Prevenção de recaída
Na esquizofrenia, a prevenção das recaídas
,
ot1 das crises é um dos
principais objetivos dos tratamentos. E preciso entender sua impor-
tância e fazer todos os esforços para evitá-la. Há, pelo menos, dois
motivos para isso: o primeiro é que uma crise de esquizofrenia leva a
Entre a razão e a ilusão 109
Desmistificando a internação
A internação psiquiátrica é uma forma de prestação de cuidados às
pessoas com transtornos mentais para controlar momentos de crise.
Ela não é uma punição ou um ato de desrespeito aos direitos da pessoa;
ao contrário, tem a finalidade de protegê-la e oferecer tratamento e
atenção profissional em tempo integral. A internação hospitalar é um
processo difícil em qualquer área da medicina; na psiquiatria, ela é
acompanhada pelo sofrimento tanto da pessoa quanto dos familiares,
sofrimento este qt1e faz parte da crise nos transtornos mentais. A inter-
nação é recomendada quando a doença oferece riscos ao portador ou
às outras pessoas ou, ainda, quando, por mais dedicada que a família
seja, ela não consiga oferecer o cuidado que o indivíduo em crise
precisa naquele momento. Deve durar somente o tempo necessário
para conter a crise mais intensa, e, assim que a pessoa atingir certa
estabilidade, ela deve voltar para casa para continuar o tratamento
ambulatorial ou no consultório, indo às consultas periódicas com o
médico. Vamos conhecer como esse processo se dá no caso de nosso
personagem.
Depois da consulta, Gabriel foi encaminhado para a enfermaria
psiquiátrica do hospital, a qual consistia em um espaço de convivência
com mesas e uma televisão, um posto de enfermagem e quartos com
acomodações para três pessoas. Ele foi recebido por Luiz, o enfer-
meiro, uma pessoa amável e atenciosa, que o encaminhou para seu
quarto e explicou que seus familiares trariam suas roupas e pertences
ainda naquele dia.
O tratamento na internação consiste em manter um ambiente de
respeito e boa convivência entre as pessoas internadas, além de
garantir que as medicações sejam tomadas nos horários corretos. O
pessoal da enfermagem oferece ct1idado integral a cada paciente por
meio de conversas, atendimento às necessidades de cada um e
114 • Assis, Villares & Bressan
•
Entre a razão e a ilusão 115
J.C.A.
A internação não é uma punição por mau comportamento; ela é uma intervenção com
o objetivo de oferecer cuidados que no momento a família não tem, em relação tanto à
formação quanto aos recursos. Eu passei, ao longo de meu percurso com a esquizofren ia,
por duas internações, e irei relatar como fui cuidado em uma delas, em 1987. Nessa
internação, eu cheguei ao local de tratamento com o comportamento completamente
alterado, com crenças que não se justificavam na reali dade comum, percepções muito
diferenciadas, nas quais tudo se referia às minhas crenças.
No local da internação, recebi os medicamentos, fui alojado em um quarto com mais
quatro pessoas, l impo e com espaço entre as camas, ao lado de um posto de enfermagem
que funcionava 24 horas. O banheiro era limpo, e o local para banho também. Todos os
dias íamos de manhã e à tarde para a área externa do prédio, onde havia uma quadra de
esportes e bolas, além de uma lanchonete.
Os enfermeiros eram atenciosos, mas também austeros, mantendo um relaciona-
mento ordenado entre os pacientes. Houve duas ocasiões em que t ive que ser contido
conlinua ...
116 • Assis, Villares & Bressan
. . • co11/i111ta,;iio
com camisa de força. A primeira ocasião foi à noite; eu entrei em uma crise de agitação
de desespero, e o enfermeiro me colocou na camisa de força, medicou-me, colocou-me
na cama e recomendou que eu tentasse dormir, o que aconteceu. No dia seguinte, logo
cedo eu acordei, e o enfermeiro estava ao lado de minha cama, conversou comigo, cons-
tatando que eu estava melhor, e tirou a camisa de força, recomendando que eu procu-
rasse me controlar. A segunda vez foi na quadra de esportes; também perdi o controle e
fui colocado em uma camisa de força, levado para uma enfermaria e medicado. Algumas
horas depois, constatando que o descontrole tinha passado, retiraram a camisa de força.
Nessa internação, recebi todos os cuidados 24 horas por dia, e foi um período neces-
sário para as medicações fazerem o efeito esperado e a crise da esquizofren ia dim inuir
sensivelmente, para, assim, eu receber alta. O tratamento que recebi no hospital não
teria sido possível junto da minha família em casa. Hoje, tenho clareza de que foi uma
medida necessária, pois meus fami liares não teriam condições de fornecer os cuidados
de que eu necessitava e controlar situações que os enfermeiros estão treinados para fazer
com destreza e respeito ao paciente.
Hoje, agradeço à minha família por ter me acompanhado nesse período difícil e me
acolhido com atenção e carinho quando voltei para casa.