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TÍTULO ORIGINAL
Exhalation

PREPARAÇÃO
Ulisses Teixeira

REVISÃO
Eduardo Carneiro
Juliana Pitanga

ARTE DE CAPA
Na Kim

ADAPTAÇÃO DE CAPA
Antonio Rhoden

PROJETO DE MIOLO
Equatorium Design | Julio Moreira

REVISÃO DE E-BOOK
Maria Fernanda Slade

GERAÇÃO DE E-BOOK
Joana De Conti

E-ISBN
978-65-5560-239-5

Edição digital: 2021

1a edição

Todos os direitos desta edição reservados à


Editora Intrínseca Ltda.
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22451-041 — Gávea
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Tel./Fax: (21) 3206-7400
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SUMÁRIO
[Avançar para o início do texto]

Folha de rosto
Créditos
Mídias sociais
Sumário
Dedicatória

O mercador e o portal do alquimista


Expiração
O que se espera de nós
O ciclo de vida dos objetos de software
A babá automática patenteada de Dacey
A verdade dos fatos, a verdade dos sentimentos
O Grande Silêncio
Ônfalo
A ânsia é a vertigem da liberdade
Notas sobre as histórias
Agradecimentos

Sobre o autor
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PARA MARCIA
Ó PODEROSO CALIFA e comandante dos éis, estou aqui, humilde, diante do
esplendor de vossa presença; um homem não pode desejar bem maior
enquanto estiver vivo. A história que tenho para contar é em verdade
estranha, e, se um dia fosse ela tatuada por inteiro no canto do olho de
alguém, a maravilha dessa apresentação não poderia ser maior que a dos
eventos que nela se contam, porque é um aviso para os que precisam ser
avisados e um aprendizado para os que querem aprender.
Meu nome é Fuwaad ibn Abbas e nasci em Bagdá, a Cidade da Paz. Meu
pai era mercador de cereais, mas por muito tempo trabalhei como
comerciante de tecidos nos, negociando seda de Damasco, linho do Egito e
lenços de pescoço do Marrocos, bordados em ouro. Eu prosperava, mas meu
coração vivia em con ito, e nem a aquisição de objetos de luxo ou a
distribuição de doações eram capazes de sossegá-lo. Agora estou aqui, diante
de Vossa Senhoria, sem um único dirhan na bolsa, mas em paz.
Alá é o princípio de todas as coisas, mas, com a permissão de Vossa
Majestade, darei início a minha história no dia em que estava caminhando
pelo distrito dos ferreiros. Precisava comprar um presente para um homem
com quem estava para fechar um negócio, e tinham me dito que ele
apreciaria receber uma bandeja de prata. Após procurar por meia hora,
notei que uma das maiores lojas no mercado fora adquirida por um novo
comerciante. Era um ponto muito valorizado que devia ter custado bem
caro; portanto, entrei ali para apreciar as mercadorias.
Nunca antes vira tal acúmulo de preciosidades. Perto da entrada havia
um astrolábio com sete placas incrustadas de prata, um relógio de água que
tocava as horas e um rouxinol feito de latão que cantava quando o vento
passava por ele. Mais adiante, havia mecanismos ainda mais engenhosos do
que estes, e eu os observava da mesma maneira que um menino vê um
malabarista, quando um homem idoso surgiu por uma porta na parede dos
fundos.
— Bem-vindo a minha humilde loja, meu senhor — disse ele. — Meu
nome é Bashaarat. Em que posso ajudá-lo?
— São artigos extraordinários estes que o senhor tem aqui. Negocio com
mercadores de todos os cantos do mundo e, no entanto, nunca vi nada
parecido. Onde, se me permite perguntar, o senhor adquire estas
mercadorias?
— Fico agradecido por suas palavras gentis. Tudo que vê aqui foi
fabricado em minha o cina, por mim mesmo ou por um de meus
assistentes, sob minha orientação.
Fiquei impressionado com o fato de que aquele homem pudesse ser tão
pro ciente em tantas artes. Perguntei-lhe sobre os variados instrumentos
que havia na loja e escutei-o enquanto ele discorria eruditamente sobre
astrologia, matemática, geomancia e medicina. Conversamos por mais de
uma hora, e minha fascinação e meu respeito desabrocharam como uma or
aquecida pela aurora, até que ele mencionou seus experimentos com a
alquimia.
— Alquimia? — indaguei. Aquilo me deixou surpreso, porque ele não me
parecia o tipo de homem capaz de fazer tais alegações, típica de vigaristas.
— Quer dizer, então, que consegue transformar metais inferiores em ouro?
— Sim, senhor, mas não é isso que a maioria procura na alquimia.
— E o que é, então?
— Uma fonte de ouro menos custosa do que extraí-lo do chão. A
alquimia descreve uma maneira de fabricar o ouro, mas o processo é tão
árduo que, por comparação, escavar embaixo de uma montanha é algo tão
fácil quanto colher frutas de uma árvore.
Sorri.
— Uma resposta inteligente. Ninguém pode contestar que o senhor é um
homem instruído, mas sei o bastante para duvidar da alquimia.
Bashaarat olhou para mim e re etiu por um instante.
— Construí recentemente algo que pode fazê-lo mudar de opinião. O
senhor será a primeira pessoa a quem mostrarei. Gostaria de olhar?
— Seria um grande prazer.
— Siga-me, por favor.
Ele me conduziu pela porta na parede dos fundos. A sala seguinte era
uma o cina, repleta de artefatos cujas funções eu não conseguia adivinhar:
barras de metal envoltas com os de cobre grandes o su ciente para se
desenrolar até o horizonte, espelhos montados sobre uma laje circular de
granito utuando em mercúrio... Mas Bashaarat passou por todos esses
objetos sem lhes lançar um único olhar.
Em vez disso, ele me conduziu até um pesado pedestal, que ia até meu
peito, no qual estava montado de pé um sólido aro metálico. A abertura
dessa argola tinha a largura de duas mãos espalmadas, e sua borda era tão
grossa que mesmo o homem mais forte a teria carregado com muito esforço.
O metal era escuro como a noite, polido até car tão liso que, fosse de uma
cor diferente, poderia ter servido de espelho. Bashaarat me colocou parado
de tal modo que tinha uma visão lateral desse aro, enquanto ele se postou
junto à abertura.
— Por favor, observe — disse ele.
Bashaarat en ou o braço através do aro, do lado direito, mas o membro
não surgiu do outro lado. Em vez disso, foi como se o braço tivesse sido
decepado à altura do cotovelo, e ele agitou o toco para cima e para baixo
antes de puxá-lo de volta, intacto.
Eu não esperara ver um homem de tanto estudo executar um truque de
prestidigitador, mas foi bem-feito, e aplaudi polidamente.
— Agora, espere um instante — disse ele, enquanto recuava, se afastando.
Aguardei, e eis que um braço apareceu no aro, do lado esquerdo, sem
corpo algum para sustentá-lo. A manga que esse braço vestia era idêntica à
do traje de Bashaarat. O braço se agitou para cima e para baixo, depois
retornou para dentro do aro e desapareceu.
Eu achava que o primeiro truque tinha sido hábil, mas este parecia muito
superior, pois o pedestal e o aro eram estreitos demais para esconder uma
pessoa.
— Excelente! — exclamei.
— Obrigado, mas não se trata de uma mera prestidigitação. O lado
direito do aro está vários segundos adiantado em relação ao outro.
Atravessar o aro signi ca atravessar essa duração de imediato.
— Não entendi.
— Deixe-me repetir a demonstração.
E mais uma vez ele en ou o braço através do aro, e o membro
desapareceu. Ele sorriu e moveu o braço para a frente e para trás como se
estivesse fazendo cabo de guerra. Então recolheu o braço e estendeu a mão
para mim, com a palma aberta. Sobre ela estava um anel que reconheci.
— É meu anel! — Olhei para a minha mão e vi que o anel continuava no
dedo. — O senhor produziu uma réplica.
— Não. Este é o verdadeiro anel. Espere.
Mais uma vez, um braço surgiu do lado esquerdo. Na tentativa de
descobrir o segredo do truque, corri até lá e o agarrei pela mão. A mão não
era falsa, pois era tão quente e viva quanto a minha. Eu a puxei, e ela me
puxou de volta. Então, com a agilidade de um ladrão, a mão retirou o anel
do meu dedo e o braço recuou para dentro do aro, desaparecendo.
— Meu anel sumiu! — exclamei.
— Não, senhor — disse ele. — Seu anel está aqui. — E ele me entregou o
anel que segurava. — Perdoe-me por esta pequena brincadeira.
Recoloquei o anel no dedo.
— O senhor tinha o anel antes que ele me fosse tirado.
Nesse momento, um braço reapareceu, só que, desta vez, do lado direito
do aro.
— O que é isso? — indaguei.
Mais uma vez o reconheci pela manga do traje, antes que desaparecesse,
mas não tinha visto Bashaarat pôr o braço ali.
— Não esqueça. O lado direito precede o esquerdo — comentou. Então,
ele caminhou para o lado esquerdo do aro e en ou o braço através da
abertura, onde o membro voltou a desaparecer.
Vossa Majestade decerto já o percebeu, mas foi apenas então que
compreendi: o que quer que acontecesse do lado direito do aro era
complementado, alguns segundos depois, por algo que acontecia do lado
esquerdo.
— É bruxaria? — perguntei.
— Não, senhor. Nunca encontrei um djinn e, se encontrasse, não
con aria nele para atender a meus pedidos. É uma forma de alquimia.
Ele me ofereceu uma explicação em que falava de sua busca por
minúsculos poros na pele da realidade, como os túneis que um verme
produz no interior da madeira, e, como depois de encontrar um, ele era
capaz de expandi-lo e esticá-lo do mesmo modo que um vidraceiro
transforma uma bolota de vidro em fusão em um tubo comprido e estreito,
além de fazer o tempo escorrer como água por uma abertura e torná-lo
espesso como xarope na outra. Confesso que não compreendi
verdadeiramente suas palavras e tampouco posso testemunhar sua
veracidade. Tudo que pude dizer em resposta foi:
— O senhor criou algo de fato espantoso.
— Obrigado, mas isso é apenas um prelúdio do que pretendo lhe mostrar.
Ele me pediu que o seguisse até o interior de outra sala, mais ao fundo.
Ali erguia-se um portal circular cuja moldura maciça era feita do mesmo
metal preto polido. O artefato estava montado no meio da sala.
— O que lhe mostrei foi um Portal dos Segundos — informou. — Este é
um Portal dos Anos. Os dois lados deste portal estão separados por um
intervalo de vinte anos.
Confesso que não entendi de imediato o que ele estava dizendo.
Imaginei-o en ando o braço do lado direito do portal e esperando vinte
anos até ele aparecer do lado oposto, e este me pareceu um truque de mágica
bastante obscuro. Falei isso, e Bashaarat riu.
— Pode muito bem ser usado assim — respondeu —, mas considere o
que aconteceria se o senhor o atravessasse. — Parado do lado direito, ele fez
um gesto pedindo que me aproximasse, e então apontou para o portal. —
Veja.
Assim o z e percebi que, do outro lado, parecia haver tapetes e
almofadas diferentes dos que eu vira ao entrar. Movi a cabeça e constatei
que, quando eu olhava através do portal, via outra sala, e não a sala em que
estávamos.
— O senhor está vendo uma sala que ca vinte anos no futuro —
explicou Bashaarat.
Pisquei os olhos, como uma pessoa faria diante de uma miragem no
deserto, mas minha visão não mudou.
— E está me dizendo que eu poderia atravessar este portal? — perguntei.
— Poderia. E, dando esse passo, visitaria a Bagdá do futuro. Poderia
procurar seu eu mais velho e conversar com ele. Depois, poderia atravessar
de volta o Portal dos Anos e voltar ao dia de hoje.
Ouvindo aquelas palavras, senti-me tonto.
— Já fez isso? — perguntei. — Já passou através dele?
— Sim, e também muitos outros clientes meus.
— O senhor me disse antes que eu era o primeiro a quem mostrava este
portal.
— Este portal, sim. Mas, durante muitos anos, tive uma loja no Cairo, e
foi lá que construí o primeiro Portal dos Anos. Há muitos a quem mostrei
aquele portal, e que zeram uso dele.
— E o que eles aprenderam quando conversaram com os seus eus mais
velhos?
— Cada pessoa aprende uma coisa diferente. Se quiser, posso lhe contar a
história de uma delas.
Bashaarat começou então a me contar essa história, e, se agradar a Vossa
Majestade, eu a recontarei aqui.
A HISTÓRIA DO FABRICANTE DE CORDAS AFORTUNADO

Havia um jovem chamado Hassan que era fabricante de cordas. Ele


atravessou o Portal dos Anos para ver a cidade do Cairo de vinte anos
depois e, ao chegar, cou maravilhado ao ver como a cidade havia crescido.
Sentiu-se como se tivesse entrado em uma ilustração bordada em uma
tapeçaria, e mesmo que a cidade não fosse nem mais nem menos do que o
Cairo, saiu olhando para as vistas mais banais como se fossem objeto de
deslumbramento.
Estava perambulando pelo portão Zuweyla, onde os espadachins
dançantes e os encantadores de serpentes se exibem, quando um astrólogo o
chamou.
— Jovem! Quer conhecer o futuro?
Hassan deu uma risada.
— Já o conheço.
— Mas decerto quer saber se a riqueza o espera, não?
— Sou fabricante de cordas. Sei que não.
— Como pode ter tanta certeza? E o que me diz do famoso mercador
Hassan al-Hubbaul, que começou a vida como fabricante de cordas?
A curiosidade dele foi despertada, e, ao andar pelo mercado, saiu
perguntando a respeito desse rico mercador. Descobriu que o nome era
muito conhecido. Disseram-lhe que ele morava em um bairro próximo a
Birkat al-Fil, uma área abastada da cidade, e então Hassan foi para lá e pediu
que mostrassem a casa, que acabou se revelando a maior da rua.
Ele bateu na porta, e um criado o conduziu a um salão espaçoso e bem
mobiliado, com uma fonte no centro. Hassan cou à espera enquanto o
criado ia chamar seu senhor. Ao olhar para o ébano e o mármore polidos à
sua volta, o jovem sentiu que não pertencia àquele lugar, e estava a ponto de
ir embora quando seu eu mais velho surgiu.
— Até que en m você chegou — disse o homem. — Estava esperando
você.
— Estava? — perguntou Hassan, estupefato.
— Claro, porque visitei meu eu mais velho, assim como você está me
visitando agora. Mas faz tanto tempo que não me lembrava mais do dia
exato. Venha, vamos jantar.
Os dois foram até uma sala de refeições, onde os criados serviram frango
recheado com pistache, bolinhos fritos embebidos em mel, cordeiro assado
com romã e especiarias. O Hassan mais velho deu poucos detalhes de sua
vida: mencionou interesses em uma grande variedade de negócios, mas não
disse como tinha se tornado mercador; falou de uma esposa, mas avisou que
não era a hora de o homem mais jovem conhecê-la. Em vez disso, pediu ao
Hassan jovem para relembrar suas travessuras de criança e riu muito ao
escutar histórias que já tinham desaparecido de sua memória.
Por m, o Hassan mais jovem perguntou:
— Como conseguiu produzir uma mudança tão grande na sua sorte?
— Por enquanto, tudo que lhe direi é: quando for comprar cânhamo no
mercado e estiver caminhando ao longo da rua dos Cães Pretos, não
caminhe pelo lado sul, como sempre faz. Caminhe pelo lado norte da rua.
— E isso vai mudar minha sorte?
— Apenas faça o que digo. Volte para casa agora, você tem cordas para
fazer. Vai saber quando for a hora de me visitar de novo.
O jovem Hassan voltou para o próprio tempo e fez como tinha sido
instruído, mantendo-se sempre do lado norte da rua, mesmo quando não
havia sombra alguma ali. Foi apenas alguns dias depois que ele presenciou
um cavalo desembestado irromper na rua pelo lado sul, escoiceando várias
pessoas, ferindo um homem ao derrubar um pesado pote de óleo de palma
sobre ele e chegando a atropelar outro indivíduo sob seus cascos. Depois que
o alvoroço amainou, Hassan fez uma prece a Alá para que os feridos fossem
curados e os mortos estivessem em paz, e agradeceu por ter sido poupado.
No dia seguinte, Hassan atravessou o Portal dos Anos e procurou seu eu
mais velho.
— Você foi ferido pelo cavalo, quando andava ali? — perguntou.
— Não, porque ouvi o conselho do meu eu mais velho. Não esqueça, você
e eu somos um. Qualquer circunstância que lhe ocorra já me ocorreu no
passado.
E, assim, o Hassan mais velho passou a dar instruções ao mais novo, e o
mais novo sempre obedeceu. Ele deixou de comprar ovos de seu vendedor
habitual, evitando a doença que atingiu diversos fregueses que compraram
ovos estragados de uma cesta. Comprou uma quantidade maior de cânhamo
e, dessa forma, teve material para trabalhar quando outros fabricantes
caram sem ele devido ao atraso de uma caravana. Obedecer às instruções
do seu eu mais velho poupou a Hassan muitos problemas, mas ele se pôs a
imaginar por que o outro não lhe dizia mais coisas. Com quem ele casaria?
Como caria rico?
Então, um dia, depois de ter vendido todas as cordas que levara ao
mercado, com uma bolsa mais cheia do que o habitual, Hassan esbarrou em
um menino ao caminhar pela rua. Ele apalpou sua lateral, procurando a
bolsa, descobriu que tinha sumido e virou-se com um grito, tentando achar
o ladrão no meio da rua lotada. Ao ouvir o grito, o garoto disparou no meio
da multidão. Hassan percebeu que a túnica do menino tinha um rasgo no
cotovelo, mas logo o perdeu de vista.
Por um instante, ele se sentiu chocado ao ver que aquilo podia lhe
acontecer sem que seu eu mais velho lhe avisasse. Mas sua surpresa foi logo
substituída pela raiva, e ele partiu à procura do gatuno. Correu em meio ao
povo, veri cando as mangas das túnicas dos meninos, até que, por sorte,
avistou o ladrão agachado embaixo de uma carroça de frutas. Hassan o
agarrou e começou a gritar para todos que havia apanhado um ladrão,
pedindo que trouxessem um guarda. O menino, com medo de ser preso,
largou a bolsa e começou a chorar. Hassan olhou para ele por um longo
momento, sentiu a raiva se dissipar e mandou o garoto embora.
Quando foi conversar com seu eu mais velho depois disso, Hassan
perguntou:
— Por que não me avisou sobre o ladrãozinho do mercado?
— Não gostou da experiência? — perguntou o mais velho.
Hassan estava prestes a negar, mas se deteve.
— Gostei, na verdade — admitiu. Ao perseguir o menino, sem saber se
iria ser bem-sucedido ou fracassar, sentiu o sangue se aquecer como não
sentia havia semanas. E a visão das lágrimas do garoto trouxe à sua mente os
ensinamentos do Profeta sobre o valor da misericórdia, e ele se sentiu
virtuoso ao libertar o menino.
— Preferiria que eu o tivesse privado dela, então?
Assim como chegamos, na velhice, a compreender o objetivo de atitudes
que, na juventude, nos parecem sem propósito, Hassan entendeu que havia
mérito em ocultar uma informação tanto quanto em revelá-la.
— Não. Foi bom não ter sido avisado.
O Hassan mais velho viu que o jovem tinha entendido.
— Agora, vou lhe dizer algo muito importante. Alugue um cavalo. Vou
dar as indicações para chegar a um lugar no pé da serra, no lado oeste da
cidade. Lá, você vai encontrar uma leira de árvores, sendo que uma delas
foi atingida por um raio. Em volta da base dessa árvore, procure a pedra
mais pesada que você for capaz de virar e cave embaixo dela.
— O que devo procurar?
— Você saberá quando encontrar.
No dia seguinte, ele cavalgou até o pé da serra e procurou em volta até
achar a árvore. O chão em volta estava coberto de rochas, de modo que
Hassan virou uma para cavar embaixo, e depois outra, e mais outra. Por m,
sua pá tocou alguma coisa que não era pedra nem terra. Ele removeu a terra
em volta até descobrir um cofre de bronze, cheio de dinares de ouro e
numerosas joias. Hassan nunca tinha visto algo parecido em toda a vida. Ele
amarrou o cofre ao cavalo e galopou de volta para o Cairo.
Ao reencontrar seu eu mais velho, perguntou:
— Como sabia onde o tesouro estava?
— Através de mim mesmo, tal como você — respondeu o Hassan velho.
— E, quanto a saber sobre a localização do baú, não tenho outra explicação
salvo que foi a vontade de Alá... Que melhor explicação existe para qualquer
coisa?
— Juro que farei bom uso das riquezas com que Alá me abençoou —
retrucou o Hassan jovem.
— E eu renovo esse juramento — disse o mais velho. — Esta é a última
vez que devemos conversar. De agora em diante, você encontrará seu
próprio caminho. Que a paz esteja com você.
E assim Hassan voltou para casa. Com o ouro, ele pôde comprar uma
grande quantidade de cânhamo, contratar trabalhadores por um salário
justo e vender cordas, com um bom lucro, a todos que o procuravam. Casou
com uma mulher bonita e inteligente e, seguindo seus conselhos, começou a
negociar outras mercadorias, até que se tornou um comerciante de respeito.
E, durante todo esse tempo, fez caridades generosas aos mais pobres e viveu
como um homem de bem. Desse modo, Hassan teve a mais feliz das
existências até que a morte, que rompe todos os laços e põe m a todos os
prazeres, o levou.
• • •

— Esta é uma história notável — comentei. — Para alguém que está


considerando fazer uso do portal, não poderia haver incentivo maior.
— É sábio de sua parte manter o ceticismo — disse Bashaarat. — Alá
recompensa aqueles que quer recompensar e pune os que pretende punir. O
portal não muda a maneira como ele o vê.
Assenti, achando que tinha compreendido.
— Então, mesmo que alguém possa evitar com sucesso os dissabores que
seu eu mais velho experimentou, isso não garante que dissabores diferentes
não possam lhe sobrevir?
— Não exatamente, e perdoe um homem velho por não ser tão claro.
Usar o portal não é como tirar à sorte, em que a cada rodada se espera um
resultado diferente. Na verdade, é como usar uma passagem secreta no
interior de um palácio, uma passagem que lhe permite chegar mais depressa
a um quarto sem ter que cruzar todo o corredor. O quarto permanece o
mesmo, independentemente da porta usada para se chegar até ele.
Isso me surpreendeu.
— O futuro é xo, então? Tão imutável quanto o passado?
— Dizem que o arrependimento e a expiação apagam o passado.
— Já ouvi isso também, mas não creio que seja verdade.
— É uma pena que pense assim — comentou Bashaarat. — Tudo que
posso a rmar é que o futuro não é diferente.
Pensei a respeito durante algum tempo.
— Então se souber que estará morto daqui a vinte anos, não há nada que
possa fazer para evitar a própria morte?
Ele assentiu. Isso me pareceu muito desanimador, mas então imaginei se,
por outro lado, isso não signi cava uma garantia.
— Suponhamos que alguém descubra que estará vivo daqui a vinte anos
— argumentei. — Então, nada poderá matá-lo durante esse tempo. A pessoa
poderia lutar em batalhas sem tomar cuidado algum, pois sabe que sua
sobrevivência está assegurada.
— É possível. Também é possível que alguém que faça uso dessa garantia
não encontre seu eu mais velho vivo quando usar o portal pela primeira vez.
— Ah... O que ocorre então é que apenas os prudentes conseguem
encontrar seu eu mais velho?
— Deixe-me contar a história de outro indivíduo que usou o portal, e
você poderá decidir por si mesmo se ele foi prudente ou não.
Bashaarat começou a me contar uma nova história e, se agradar a Vossa
Majestade, eu a recontarei aqui.
A HISTÓRIA DO TECELÃO QUE ROUBOU DE SI MESMO

Havia um jovem tecelão chamado Ajib que ganhava a vida de forma


modesta tecendo tapetes, mas sonhava em desfrutar os luxos acessíveis
apenas aos poderosos. Após ouvir a história de Hassan, Ajib imediatamente
cruzou o Portal dos Anos para ir à procura do seu eu mais velho, o qual, ele
tinha certeza, seria tão rico e generoso quanto o velho Hassan.
Ao chegar ao Cairo de vinte anos depois, ele se encaminhou para o
distrito nobre de Birkat al-Fil e perguntou às pessoas onde cava a
residência de Ajib ibn Taher. Estava preparado para dizer que era lho de
Ajib, recém-chegado de Damasco, caso encontrasse alguém que conhecesse
o homem e essa pessoa notasse a semelhança de suas feições. Mas nunca
teve a chance de recorrer a essa história, porque ninguém reconhecia o
nome.
Depois de certo tempo, resolveu ir ao velho bairro em que vivia e ver se
alguém de lá saberia dizer para onde ele havia se mudado. Quando chegou a
sua velha rua, parou um menino que passava e perguntou se sabia onde
encontrar um homem chamado Ajib. O menino o levou à velha casa onde
morava.
— Aqui é a casa onde ele costumava morar — disse Ajib. — Onde está
morando agora?
— A não ser que tenha se mudado daqui ontem, não sei para onde foi —
respondeu o garoto.
Ajib estava incrédulo. Seria possível que seu eu mais velho continuasse
morando naquela casa, vinte anos depois? Aquilo signi cava que ele nunca
enriqueceria, e seu eu mais velho não teria conselho algum para dar, ou ao
menos nada que lhe pudesse ser lucrativo. Como era possível que seu
destino fosse tão diferente do de fabricante de cordas afortunado? Na
esperança de que o menino tivesse se enganado, Ajib cou à espera diante
da casa, observando.
Depois de algum tempo, viu um homem deixar a moradia, e, com um
peso no coração, reconheceu que era ele, vinte anos mais velho. O Ajib mais
velho era seguido por uma mulher que imaginou ser sua esposa, mas ele mal
deu atenção a ela, porque tudo que via era o próprio fracasso em melhorar
de vida. Olhou com desalento para as roupas simples que o casal de velhos
trajava, até perder os dois de vista.
Movido pela curiosidade que leva alguém a olhar de perto a cabeça de
um homem executado, Ajib foi até a porta da casa. A chave que trazia
consigo serviu na fechadura, e ele entrou. A mobília era diferente, mas
muito simples e bastante usada, e Ajib cou decepcionado ao vê-la. Depois
de vinte anos, ele não era capaz nem mesmo de ter almofadas melhores?
Movido por um impulso, foi até o baú de madeira onde costumava
guardar suas economias e o destrancou. Ergueu a tampa e viu que o baú
estava abarrotado de dinares de ouro.
Ajib cou atônito. Seu eu mais velho tinha um baú cheio de ouro e, no
entanto, vestia roupas simples e morava na mesma casinha havia vinte anos!
Que homem avarento e sem alegria devia ser seu eu mais velho, pensou,
para possuir tal riqueza e não desfrutá-la. Ajib sempre soubera que ninguém
leva riquezas para o túmulo. Será que teria se esquecido disso ao envelhecer?
Ajib decidiu que essa riqueza devia pertencer a alguém capaz de lhe dar o
devido valor, e este alguém era ele. Levar o ouro de seu eu mais velho não
seria roubo, raciocinou, porque ele mesmo iria guardá-lo consigo. Então,
ergueu o baú sobre o ombro e, com muito esforço, conseguiu levá-lo através
do Portal dos Anos, de volta a seu tempo.
Guardou uma parte da fortuna recém-adquirida com um banqueiro, mas
sempre levava consigo uma bolsa cheia de dinares. Vestia tecidos de
Damasco, calçava sapatilhas de couro e exibia um turbante de Khurasani
com uma joia engastada. Alugou uma casa no bairro rico, decorando-a com
os mais nos tapetes e divãs, e contratou um cozinheiro para preparar os
banquetes mais suntuosos.
Depois, foi à procura do irmão da mulher que sempre desejara a
distância, uma moça chamada Taahira. Seu irmão era um boticário, e
Taahira o ajudava na loja. Às vezes, Ajib ia lá comprar algum remédio
apenas para falar com ela. Certa vez, ele vira seu véu se afastar um pouco, e
ela tinha olhos escuros e belos como os de uma gazela. O irmão de Taahira
não teria permitido que ela se casasse com um tecelão, mas agora Ajib podia
se apresentar como um candidato digno.
O irmão de Taahira deu seu consentimento, e ela logo concordou com o
casamento, porque também desejava Ajib. Ele não poupou despesas para a
cerimônia. Alugou uma das balsas que utuavam no canal ao sul da cidade e
ali deu uma festa com música e dança, durante a qual ofertou a ela um
magní co colar de pérolas. A celebração foi objeto de comentários no bairro
inteiro.
Ajib desfrutava a alegria que o dinheiro proporcionava a ele e a Taahira,
e, durante uma ou duas semanas, eles viveram a mais deliciosa das
existências. Então, um dia, Ajib chegou em casa e viu a porta arrombada e o
interior todo revirado. Seu ouro e sua prata tinham sido saqueados. O
cozinheiro, aterrorizado, saiu de seu esconderijo e contou que os assaltantes
tinham levado Taahira.
Ajib rezou para Alá, até que, exausto de preocupação, pegou no sono. Na
manhã seguinte, foi acordado por batidas na porta. Era um estranho.
— Tenho uma mensagem para você — disse o homem.
— Que mensagem? — perguntou Ajib.
— Sua esposa está em segurança.
Ajib sentiu o medo e a fúria revolverem seu estômago, como uma bile
venenosa.
— Quanto querem de resgate? — perguntou ele.
— Dez mil dinares.
— Isso é mais do que tudo que tenho! — exclamou Ajib.
— Não discuta comigo. Eu o vi esbanjando dinheiro como outros
esbanjam água.
Ajib caiu de joelhos.
— Eu tenho sido perdulário. Juro pelo nome do Profeta que não possuo
tanto dinheiro.
O ladrão o olhou.
— Junte todo o dinheiro que tiver e esteja com ele aqui, amanhã, nesta
mesma hora. Se eu achar que está escondendo alguma coisa, sua mulher
morrerá. Se acreditar que está sendo honesto comigo, meus homens a trarão
de volta.
Ajib não teve escolha.
— Está combinado — cedeu, e o ladrão partiu.
No dia seguinte, ele foi ao banqueiro e retirou todo o dinheiro que lhe
restava. Entregou tudo ao ladrão, que viu o desespero nos olhos de Ajib e
cou satisfeito. O ladrão fez o que prometera, e naquela mesma noite
Taahira foi trazida para casa.
Depois de se abraçarem, ela lhe disse:
— Não acredito que você foi capaz de pagar tanto dinheiro por mim.
— De nada me valeria aquele dinheiro sem você — respondeu Ajib, e
cou surpreso ao perceber que era verdade. — Mas agora lamento, porque
não posso mais lhe dar as coisas que você merece.
— Nunca mais vai precisar me dar coisa alguma.
Ajib baixou a cabeça.
— Sinto como se estivesse sendo punido por meus atos.
— Que atos? — perguntou a esposa, mas Ajib não respondeu. — Nunca
lhe perguntei isto antes, mas sei que não herdou todo o dinheiro que tinha.
Diga-me: você roubou de alguém?
— Não — disse Ajib, relutante em admitir a verdade para ela e até para si
mesmo. — Alguém me deu.
— Um empréstimo, então?
— Não, não precisa ser devolvido.
— E você não deseja pagar de volta?
Taahira estava chocada.
— Então está satisfeito mesmo sabendo que outro homem pagou pelo
nosso casamento? Que ele pagou pelo meu resgate?
Ela parecia à beira das lágrimas.
— Eu sou sua esposa ou desse outro homem?
— Você é minha esposa.
— Como posso ser se a minha vida se deve a outro homem?
— Não quero que duvide de meu amor. Juro que pagarei esse dinheiro de
volta, até o último dirhan.
E assim Ajib e Taahira se mudaram para a velha casa de Ajib e
começaram a economizar. Ambos foram trabalhar com o irmão de Taahira,
o boticário. Quando ele passou a fabricar perfumes para os ricos, Ajib e
Taahira se encarregaram de cuidar da parte de vender remédios para os
pobres. Era uma vida tranquila, e eles poupavam o máximo possível,
vivendo modestamente e consertando os móveis velhos, em vez de comprar
mobília nova. Durante anos, Ajib sorria cada vez que guardava uma moeda
no baú, dizendo a Taahira que isso o fazia se lembrar de quanto ele a
valorizava. Dizia que, mesmo depois de o baú estar cheio, ainda seria uma
pechincha.
Contudo, não é fácil encher um baú apenas guardando algumas moedas
de vez em quando, e então o que era uma vida de economia se tornou uma
vida de penúria, e decisões prudentes começaram a perder lugar para
decisões bruscas. Pior ainda: a afeição entre Ajib e Taahira foi diminuindo
com o tempo, e começaram a cultivar ressentimentos um contra o outro, por
causa do dinheiro que não podiam gastar.
Desse modo, os anos se passaram e Ajib envelheceu, esperando o dia em
que aquele dinheiro lhe seria tomado pela segunda vez.
• • •

— Que estranha e triste história — disse.


— Sem dúvida — concordou Bashaarat. — O senhor diria que Ajib agiu
com prudência?
Hesitei antes de responder.
— Não estou em condições de julgá-lo — respondi. — Ele deve viver com
as consequências de seus atos, assim como eu. — Fiquei em silêncio por um
instante, e acrescentei: — Admiro, no entanto, a sinceridade de Ajib, o fato
de ter lhe contado tudo que fez.
— Ah, mas Ajib não me contou isto quando era jovem. Depois que
emergiu do portal carregando o baú, não o vi de novo por anos. Ele era um
homem envelhecido quando veio me procurar pela segunda vez. Tinha
voltado para casa e descoberto que o baú desaparecera, e a consciência de
ter nalmente pago sua dívida o fez achar que estava livre para me contar
todo o acontecido.
— Foi assim? E o Hassan mais velho da primeira história? Ele também
voltou para visitá-lo?
— Não, a história de Hassan eu ouvi do Hassan jovem. O Hassan velho
nunca voltou a minha loja, mas, em seu lugar, outra pessoa me visitou, que
me contou uma história a respeito de Hassan que o próprio não poderia ter
me contado.
Bashaarat passou então a me contar essa história, e, se agradar a Vossa
Majestade, eu a recontarei aqui.
A HISTÓRIA DA ESPOSA E DE SEU AMANTE

Raniya estava casada com Hassan fazia muitos anos, e os dois viviam a mais
feliz das vidas. Um dia, ela viu o marido jantando com um jovem — e
reconheceu a imagem de Hassan quando se casara com ele. Tão grande foi
seu espanto que mal pôde se conter e não interromper a conversa. Depois
que o jovem saiu, ela pediu que Hassan lhe dissesse quem era ele, e o marido
lhe contou uma história inacreditável.
— Falou para ele sobre mim? — perguntou ela. — Já sabia, então, o que o
futuro nos guardava, quando nos encontramos pela primeira vez?
— Soube que me casaria com você no momento em que a vi — disse
Hassan, sorrindo —, mas não porque alguém me falou de você. Certamente,
esposa, você não quer estragar essa surpresa para ele, não?
E, assim, Raniya não se dirigiu ao seu marido mais jovem, mas se limitou
a acompanhar a conversa deles a distância, olhando-o de longe. Seu pulso
acelerava ao ver aquelas feições tão jovens — às vezes, nossas lembranças
são tão doces que nos enganam, mas, quando ela via os dois homens
sentados um em frente ao outro, conseguia enxergar, sem exagero, a beleza
do mais jovem. À noite, cava sem dormir pensando nele.
Alguns dias depois de se despedir de seu eu mais jovem, Hassan precisou
deixar o Cairo para negociar com um comerciante em Damasco. Em sua
ausência, Raniya descobriu a loja que o marido tinha lhe descrito e
atravessou o Portal dos Anos até ao Cairo de sua juventude.
Ela se lembrava do lugar em que ele morava na época e, desse modo,
pôde localizar o jovem Hassan e segui-lo. Enquanto o observava, sentiu por
ele um desejo mais intenso do que sentira pelo Hassan mais velho em anos,
pois eram muito fortes suas lembranças de quando faziam amor na
juventude. Ela sempre fora uma esposa el e leal, mas agora estava diante de
uma oportunidade que jamais se repetiria. Decidida a agir de acordo com
seu desejo, Raniya alugou uma casa e comprou a mobília nos dias seguintes.
Assim que a casa cou pronta, ela seguiu Hassan discretamente enquanto
criava coragem para abordá-lo. No mercado de joias, a mulher o seguiu
quando ele foi a um joalheiro, mostrou-lhe um colar com dez belas pedras
preciosas e perguntou quanto o homem pagaria por ele. Raniya reconheceu
o colar como um que Hassan lhe dera dias após o casamento — não sabia
que o marido um dia tentara vendê-lo. Ficou um pouco distante e escutou,
ngindo que examinava alguns anéis.
— Traga-o amanhã e pagarei mil dinares por ele — disse o joalheiro.
O jovem Hassan concordou com o preço e foi embora.
Enquanto o via se afastando, Raniya escutou dois homens que
conversavam por perto.
— Viu aquele colar? É um dos nossos.
— Tem certeza? — perguntou o outro.
— Tenho. Foi esse bastardo que desenterrou o nosso baú.
— Vamos avisar o chefe. Depois que ele vender o colar, tomamos o
dinheiro e tudo o mais que ele tiver.
Os dois homens se afastaram sem perceber a presença de Raniya, que
cou imóvel e com o coração disparado, como uma corça que vê um tigre
por perto. Ela entendeu que o tesouro que Hassan tinha desenterrado devia
pertencer a um bando de ladrões e que aqueles homens eram dois deles.
Estavam vigiando os joalheiros do Cairo para identi car a pessoa que
roubara o tesouro.
Raniya sabia que, uma vez que ainda possuía o colar, o jovem Hassan não
o tinha vendido. Sabia também que os bandidos não podiam ter matado
Hassan. Mas a vontade de Alá não podia ser que ela casse sem fazer nada.
Alá devia tê-la levado até ali porque queria usá-la como seu instrumento.
Ela retornou ao Portal dos Anos, voltou ao tempo de onde tinha saído e
encontrou o colar dentro de sua caixa de joias. Então, usou o portal
novamente, mas, em vez de entrar nele pelo lado esquerdo, entrou pelo
direito, de modo a chegar ao Cairo de vinte anos depois. Lá, ela procurou a
sua eu mais velha, uma mulher idosa. A Raniya mais velha a acolheu
calorosamente e foi buscar o colar dentro da caixa de joias. As duas
combinaram, então, a forma como iriam ajudar o jovem Hassan.
No dia seguinte, os dois ladrões voltaram à loja, acompanhados de um
terceiro homem que Raniya presumiu ser o chefe. Ficaram observando
enquanto Hassan apresentava o colar ao joalheiro.
Enquanto o homem examinava a joia, Raniya se aproximou e disse:
— Que coincidência! Joalheiro, quero vender um colar igual a este. — E
tirou o colar da bolsa que trazia.
— Mas é extraordinário! — exclamou o joalheiro. — Nunca vi dois
colares tão parecidos.
Então, a Raniya idosa também se aproximou.
— O que é isso que estou vendo? Decerto estou sendo enganada pelos
meus olhos. — E ela apresentou um terceiro colar idêntico. — Comprei-o
com a garantia de que se tratava de uma peça única. Isso prova que fui
enganada.
— Talvez devesse devolvê-lo — comentou Raniya.
— Isso depende — disse a Raniya mais velha. E perguntou a Hassan: —
Quanto ele lhe ofereceu por esse colar?
— Mil dinares — respondeu Hassan, perplexo.
— É mesmo? Joalheiro, gostaria de comprar este outro também?
— Acho que preciso reconsiderar minha oferta — ponderou o joalheiro.
Enquanto Hassan e a Raniya idosa barganhavam com o joalheiro, Raniya
recuou o bastante para car mais próxima dos três homens e ouviu o chefe
repreendendo os outros dois:
— Seus tolos. É um colar comum. Vocês teriam nos feito matar metade
dos joalheiros do Cairo e ter toda a guarda armada nos procurando.
Dando um tapa na cabeça dos cúmplices, ele os conduziu para fora da
loja.
Raniya voltou sua atenção para o joalheiro, que tinha acabado de retirar a
oferta de pagar mil dinares pelo colar de Hassan.
— Muito bem — disse a Raniya idosa. — Vou tentar devolver o meu ao
homem de quem o comprei.
E, quando a mulher se retirou, Raniya percebeu que ela estava sorrindo
por baixo do véu.
Raniya se virou para Hassan.
— Parece que nenhum de nós vai conseguir vender um colar hoje —
disse ela.
— Quem sabe em outro dia? — respondeu Hassan.
— Preciso levar o meu para casa e guardá-lo em um lugar seguro — disse
Raniya. — Poderia me acompanhar?
Hassan concordou e caminhou com Raniya até a casa que ela havia
alugado. Ali ela o convidou a entrar, ofereceu-lhe vinho e, depois de
beberem um pouco, o levou para o quarto. Fechou as janelas com pesadas
cortinas e apagou todas as lâmpadas, deixando o cômodo escuro como a
noite. Somente então tirou o véu e o conduziu para a cama.
Raniya estava ansiosa por aquele momento e cou surpresa ao perceber
que os movimentos de Hassan eram desajeitados, pouco à vontade. Ela se
lembrava com muita clareza da primeira noite de seu casamento: Hassan
tinha se mostrado con ante, e seu toque a deixara sem fôlego. Ela sabia que
faltava pouco tempo para que ele conhecesse a Raniya mais jovem e, por um
momento, não entendeu como aquele rapaz tão canhestro poderia mudar
tão depressa. E então, é claro, a resposta cou evidente.
Assim, todas as tardes durante vários dias, Raniya e Hassan se
encontravam na casa alugada e ela lhe ensinava a arte do amor e, ao fazer
isso, demonstrou que, como dizem, as mulheres são a mais maravilhosa das
criações de Alá.
— O prazer que se dá retorna na forma do prazer que se recebe — disse
ela.
Por dentro, sorria para si mesma e pensava quanto aquelas palavras eram
verdadeiras. Em pouco tempo, Hassan adquiriu a atitude experiente da qual
ela se lembrava tão bem, e ela extraiu disso um prazer ainda maior do que o
que sentira quando jovem.
Logo chegou o dia em que Raniya disse ao jovem Hassan que estava na
hora de partir. Ele prudentemente não quis pressioná-la para saber os
motivos, mas perguntou se eles se encontrariam de novo. Ela lhe disse,
carinhosa, que não. Então vendeu toda a mobília da casa e voltou pelo Portal
dos Anos para a própria época.
Quando o velho Hassan voltou da viagem de Damasco, Raniya o
esperava em casa. Ela o recebeu cheia de afeto, mas guardou seus segredos
consigo.
• • •

Eu estava perdido em meus pensamentos quando Bashaarat terminou essa


história.
— Percebo que este relato o deixou intrigado de um modo que os outros
não conseguiram.
— Percebeu bem — admiti. — Entendi que, mesmo que o passado não
possa ser mudado, podemos encontrar coisas inesperadas quando o
visitamos.
— É verdade. Entende agora quando digo que o futuro e o passado são
iguais? Não podemos modi car nenhum deles, mas podemos conhecê-los
de maneira mais completa.
— Sim. O senhor abriu meus olhos e agora quero usar o Portal dos Anos.
Qual é o preço?
Ele fez um gesto com a mão.
— Não vendo a travessia do portal. Alá guia os que vêm até minha loja, e
co contente em ser o instrumento de sua vontade.
Caso se tratasse de outro homem, eu imaginaria que aquilo não passava
de um artifício de barganha, mas, depois de tudo que Bashaarat me dissera,
vi que suas palavras eram sinceras.
— Sua generosidade é tão grande quanto seus conhecimentos —
comentei, e z uma mesura. — Se houver qualquer serviço que um
mercador de tecidos possa lhe prestar, não hesite em me chamar.
— Obrigado. Agora, vamos falar sobre sua viagem. Há alguns assuntos
que devemos discutir antes de sua visita à Bagdá de vinte anos no futuro.
— Não pretendo visitar o futuro. Quero cruzar o portal na outra direção,
visitar minha juventude.
— Ah, peço as mais profundas desculpas. O portal não pode levá-lo para
lá. Veja bem, construí este portal há apenas uma semana. Vinte anos atrás,
não havia aqui um portal por onde o senhor pudesse sair.
Minha decepção foi tão grande que minha voz deve ter soado como a de
uma criança desapontada.
— Mas para onde conduz o outro lado do portal? — E dei a volta pelo aro
de metal, para olhar seu lado oposto.
Bashaarat também rodeou o portal e postou-se a meu lado. O espaço
visível através do portal parecia idêntico ao que se via por fora dele, mas,
quando Bashaarat estendeu o braço, sua mão se deteve, como se tivesse
esbarrado em uma parede invisível. Olhei mais de perto e notei uma
lâmpada de latão acesa em cima de uma mesinha. A chama não oscilava
nem se movia, estava xa, como se presa no interior do âmbar mais claro.
— O que vê é esta sala como estava uma semana atrás — disse ele. —
Dentro de vinte anos, o lado esquerdo do portal permitirá a entrada de
pessoas, levando-as ao passado. Ou… — ele me conduziu de volta ao
primeiro lado que me mostrara — … é possível entrar pelo lado direito
agora e visitar os vinte anos do futuro. Mas receio que o portal nunca poderá
dar acesso aos dias de sua juventude.
— E quanto ao Portal dos Anos que o senhor tinha no Cairo?
Ele aquiesceu.
— Aquele portal ainda existe. Meu lho cuida da loja.
— Então eu poderia ir até lá e usar o portal para chegar ao Cairo de vinte
anos atrás. De lá posso viajar de volta para Bagdá.
— Sim. É possível fazer esse trajeto, se quiser.
— Eu quero — respondi. — Pode me ensinar a como encontrar sua loja
no Cairo?
— Antes, precisamos falar a respeito de algumas coisas — disse
Bashaarat. — Não vou perguntar sobre suas intenções e carei satisfeito em
ouvir apenas o que quiser me dizer. Mas preciso lembrá-lo de que o que está
feito não pode ser desfeito.
— Eu sei.
— E que não se podem evitar os sofrimentos que nos estão destinados. O
que Alá lhe der, deve ser aceito.
— Digo isso a mim mesmo todos os dias.
— Então terei a honra de ajudá-lo de todas as maneiras que conseguir.
Ele trouxe papel, uma pena e um tinteiro. Começou a escrever.
— Vou escrever uma carta que vai ajudá-lo em sua jornada.
Ele dobrou o papel, gotejou um pouco de cera quente ao longo da borda e
aplicou nela seu sinete.
— Quando chegar ao Cairo, entregue isso a meu lho, e ele permitirá que
o senhor entre no Portal dos Anos.
Um mercador como eu precisa ser versado em expressões de
agradecimento, mas nunca fui tão efusivo ao agradecer a Bashaarat, e cada
palavra que disse foi sincera. Ele me deu as instruções de como chegar a sua
loja no Cairo, e disse a ele que, na volta, lhe contaria tudo. Quando estava
prestes a sair da loja, um pensamento me ocorreu.
— Já que o Portal dos Anos que o senhor tem aqui conduz ao futuro,
então o senhor tem a certeza de que o Portal e esta loja ainda estarão aqui
dentro de vinte anos ou mais.
— Sim, é verdade — respondeu Bashaarat.
Pensei em perguntar se ele já havia encontrado seu eu mais velho, mas
engoli minhas palavras. Se a resposta fosse não, decerto era porque seu eu
mais velho estaria morto, e eu estaria lhe perguntando se ele sabia a data de
sua morte. Quem era eu para fazer uma pergunta dessa natureza, quando
este homem estava me garantindo um benefício sem sequer perguntar
minha intenção? Vi, pela sua expressão, que ele entendeu o que estive a
ponto de perguntar, e curvei a cabeça em um pedido mudo de desculpas.
Com um aceno, ele as aceitou, e voltei para casa de modo a começar os
preparativos.
A caravana levou dois meses para chegar ao Cairo. Quanto aos
pensamentos que ocuparam minha mente durante a jornada, Vossa
Majestade, posso vos dizer agora o que não disse a Bashaarat. Fui casado
certa vez, vinte anos atrás, com uma mulher chamada Najya. Sua silhueta se
movia tão graciosamente quanto um ramo de salgueiro e o rosto era belo
como a lua, mas o que capturou meu coração foi seu espírito terno e
carinhoso. Eu mal havia começado minha carreira como mercador quando
nos casamos, e, apesar de não sermos ricos, nada nos faltava.
Fazíamos apenas um ano de casados quando precisei viajar a Basra para
encontrar o capitão de um navio. Tinha uma boa oportunidade de lucro
com a venda de escravos, mas isso era algo que Najya não aprovava.
Lembrei-lhe de que o Alcorão não proíbe a posse de escravos, contanto que
eles sejam bem tratados, e que até o Profeta possuía alguns. Mas ela
respondeu que eu não tinha meios de saber como os futuros donos
tratariam seus escravos, e que era melhor vender mercadorias que não
fossem homens.
Na manhã de minha partida, Najya e eu tivemos uma discussão. Falei-lhe
com dureza, usando palavras que me envergonho de recordar, e peço perdão
a Vossa Majestade por não repeti-las aqui. Saí de casa tomado pela fúria e
nunca mais vi minha esposa. Alguns dias após minha partida, ela cou
gravemente ferida quando o muro de uma mesquita desabou. Foi levada
para o bimaristan, mas os médicos nada puderam fazer, e ela morreu logo
depois. Fiquei sabendo de sua morte apenas quando voltei, uma semana
depois, e senti como se a tivesse matado com as próprias mãos.
Poderão os tormentos do inferno ser piores do que os que suportei nos
dias seguintes? Parecia que estava prestes a descobrir, pois minha angústia
me conduziu até bem próximo da morte. E deve ser uma experiência
similar, porque, tal como o fogo infernal, o arrependimento queima, mas
não se apaga. Em vez disso, torna o coração cada vez mais vulnerável ao
sofrimento.
Cedo ou tarde, meu período de lamentação passou, e me tornei um
homem oco, um saco de pele sem nada dentro. Libertei os escravos que
tinha comprado e me tornei mercador de tecidos. Com o passar dos anos,
acumulei fortuna, mas nunca casei de novo. Alguns dos homens com quem
eu negociava tentavam me aproximar de uma irmã ou de uma lha, dizendo
que o amor de uma mulher nos faz esquecer todas as dores. Talvez tenham
razão, mas ele não pode nos fazer esquecer a dor que in igimos a outrem.
Sempre que eu me imaginava casando com uma mulher, lembrava-me da
expressão de dor nos olhos de Najya quando a vi pela última vez, e meu
coração se fechava.
Conversei com um mulá a respeito do que eu zera, e foi ele quem disse
que o arrependimento e a expiação podem apagar o passado. Procurei me
arrepender e expiar minhas culpas da melhor forma que pude. Durante
vinte anos, vivi como um homem impecável: orei, jejuei, z doações aos
desafortunados e peregrinei a Meca. Mesmo assim continuava corroído pela
culpa. Alá é todo-piedoso, então eu sabia que a falha era minha.
Se Bashaarat tivesse me perguntado, eu não poderia lhe dizer o que
esperava conseguir. Estava muito claro, pelas histórias que ele contara, que
eu não poderia modi car o que sabia que acontecera. Ninguém tinha
impedido meu eu mais jovem de discutir com Najya em nossa última hora
juntos. Mas a história de Raniya, escondida no interior da história de Hassan
sem que ele soubesse, me deu uma frágil esperança. Talvez eu pudesse tomar
parte em algum acontecimento enquanto meu eu mais jovem estava
viajando a negócios.
Não era possível que tivesse havido um engano, que minha Najya tivesse
escapado? Talvez fosse o corpo de outra mulher que foi envolto em um
sudário e sepultado enquanto eu estava longe. Talvez eu pudesse salvar
Najya e trazê-la de volta comigo para a Bagdá do meu tempo. Eu sabia que
era loucura. Homens experientes dizem: “Há quatro coisas que não voltam
mais: a palavra dita, a echa lançada, a vida passada e a oportunidade
perdida.” Eu entendia, mais do que ninguém, a verdade daquele ditado. No
entanto, minha esperança era de que Alá tivesse achado su cientes os meus
vinte anos de arrependimento e estivesse me dando a chance de recuperar o
que perdera.
A viagem de caravana não teve incidentes, e depois de sessenta auroras e
trezentas preces, cheguei ao Cairo. Lá, tive que me orientar pelas ruas da
cidade, que são um labirinto alucinante comparadas ao desenho
harmonioso da Cidade da Paz. Encontrei o caminho que levava a Bayn al-
Qasrayn, a avenida principal que corta o bairro fatímida. De lá, alcancei a
rua onde estava localizada a loja de Bashaarat.
Falei ao dono da loja que tinha conhecido seu pai em Bagdá e entreguei a
carta que Bashaarat tinha me con ado. Depois que a leu, ele me conduziu
até uma sala nos fundos, em cujo centro via-se outro Portal dos Anos, e,
com um gesto, me convidou a entrar pelo lado esquerdo.
Parado diante do grande círculo de metal, senti um calafrio e repreendi a
mim mesmo pelo nervosismo. Respirei fundo, dei um passo e logo me vi na
mesma sala, mas com outra mobília e decoração. Se não fosse por isso, eu
não teria achado o portal diferente de uma passagem qualquer. Percebi
então que o calafrio que sentira era devido ao ar mais frio que havia naquela
sala, diferente do dia quente de onde eu estava vindo, e cujo bafo morno
ainda sentia às minhas costas, passando através do portal como um suspiro.
O lojista se aproximou de mim e disse em voz alta:
— Pai, o senhor tem visita.
Um homem entrou na sala, e era Bashaarat, vinte anos mais jovem do
que conheci em Bagdá.
— Bem-vindo, senhor — disse ele. — Eu sou Bashaarat.
— Não me reconhece? — perguntei.
— Não. O senhor deve ter encontrado meu eu mais velho. Para mim, este
é nosso primeiro encontro, mas carei honrado se puder ajudá-lo.
Majestade, é meu dever confessar, nesta breve crônica de meus erros, que
estava tão mergulhado em meus próprios problemas durante a jornada
desde Bagdá que não me ocorrera que Bashaarat muito provavelmente tinha
me reconhecido no momento em que entrei em sua loja. Naqueles
momentos iniciais em que estive admirando seu relógio de água e seu
pássaro de latão, ele já sabia que eu iria fazer aquela viagem até o Cairo e
provavelmente sabia se conseguiria atingir meu objetivo ou não.
O Bashaarat com quem conversei naquele momento não sabia nenhuma
dessas coisas.
— Fico duplamente grato por sua bondade, senhor — comentei. — Meu
nome é Fuwaad ibn Abbas, e cheguei há pouco de Bagdá.
O lho de Bashaarat se retirou, e nós dois nos pusemos a conversar.
Perguntei-lhe o dia e o mês em que estávamos, e con rmei que havia tempo
de sobra para que eu viajasse de volta à Cidade da Paz. Prometi-lhe que
contaria tudo ao retornar. O eu mais jovem dele era tão cavalheiresco
quanto o mais velho.
— Ficarei no aguardo do prazer de nossa conversa quando você retornar
e, novamente, quando ajudá-lo daqui a vinte anos.
Suas palavras me zeram hesitar.
— Já pensava em abrir uma loja em Bagdá, antes de hoje?
— Por que pergunta?
— Fico espantado com a coincidência de termos nos encontrado em
Bagdá no tempo exato para que me fosse possível viajar para cá, usar o
portal e depois voltar. Mas agora me pergunto se isso não é uma
coincidência. Será minha vinda aqui, hoje, a razão para que o senhor se
mude para Bagdá daqui a vinte anos?
Bashaarat sorriu.
— Coincidência e intenção são os dois lados da mesma tapeçaria, senhor.
Um deles pode ser mais agradável à vista, mas não se pode dizer que um seja
verdadeiro e o outro, falso.
— Agora, como sempre, o senhor me deu muito o que pensar.
Agradeci e me despedi. Quando estava saindo da loja, passei por uma
mulher que entrava, um pouco apressada. Ouvi Bashaarat saudá-la, e, ao
escutar o nome de Raniya, parei, surpreso.
Do lado de fora da porta, pude ouvir a mulher de dentro da loja:
— Estou com o colar. Espero que minha eu mais velha não o tenha
perdido.
— Tenho certeza de que saberá guardá-lo bem, esperando sua visita —
respondeu Bashaarat.
Percebi que aquela mulher era a Raniya da história que ele me contara.
Ela estava a caminho de encontrar sua versão mais velha, a m de que
voltassem juntas aos dias de sua juventude, enganar os ladrões com a
exibição de dois colares iguais e salvar o marido. Por um instante, quei sem
saber se estava sonhando ou acordado, porque tive a sensação de estar
entrando em uma história, e a ideia de ser capaz de conversar com seus
personagens e participar de suas ações era estonteante. Fui tentado a dirigir
a palavra à mulher e ver se seria capaz de desempenhar algum papel oculto
naquela narrativa, mas depois me lembrei de que meu objetivo ali era o de
desempenhar um papel oculto em minha própria história. Dessa forma,
retirei-me sem dizer nada e fui fazer os acertos para a viagem de caravana
rumo a Bagdá.
Dizem, Vossa Majestade, que o Destino ri dos planos feitos pelos
homens. A princípio, parecia que eu era o mais afortunado dos indivíduos,
porque uma caravana estava partindo para Bagdá naquele mês e pude me
juntar a ela. Nas semanas seguintes, comecei a amaldiçoar minha sorte,
porque a jornada da caravana foi retardada por diversos obstáculos. Os
poços de uma cidade próxima estavam secos, e foi preciso mandar uma
expedição em busca de água. Em outro vilarejo, os soldados que protegiam a
caravana contraíram disenteria, e tivemos de esperar algumas semanas até
que eles se recuperassem. A cada atraso, eu precisava revisar minha
estimativa de quando chegaríamos a Bagdá, e cava cada vez mais ansioso.
Então, vieram as tempestades de areia, que pareciam um aviso de Alá e
me zeram duvidar da sabedoria de minhas decisões. Tivemos a sorte de
estar descansando em um caravançará a oeste de Kufa quando elas
começaram, mas nossa permanência ali foi prolongada de alguns dias para
várias semanas, pois, repetidamente, os céus cavam claros, mas logo
voltavam a escurecer quando começávamos a carregar os camelos. O dia do
acidente que vitimara Najya se aproximava, e eu cava mais desesperado.
Procurei cada um dos condutores de camelos, tentando contratar um que
me levasse sozinho à frente, mas não consegui persuadir nenhum deles.
Acabei encontrando um que concordou em me vender o camelo, por um
preço que seria exorbitante em outras circunstâncias, mas que eu estava
mais do que disposto a pagar. E assim parti, sozinho.
Ninguém cará surpreso se eu disser quão pouco avancei durante a
tempestade, mas, quando os ventos amainaram, logo prossegui em um passo
mais rápido. Sem os soldados que acompanhavam a caravana, contudo, eu
era presa fácil para bandidos e acabei sendo interceptado depois de dois dias
de viagem. Tomaram meu dinheiro e o camelo que eu comprara, mas me
pouparam a vida — se por piedade ou porque não queriam se dar ao
trabalho de me matar, nunca saberei. A pé, voltei pelo mesmo caminho, na
esperança de encontrar a caravana, mas agora o céu estava limpo e passei a
ser torturado pelo calor. Quando en m a caravana me encontrou, minha
língua estava inchada e meus lábios rachados como lama exposta ao sol.
Depois disso, não tive escolha a não ser acompanhar a caravana em seu
passo habitual.
Como uma rosa que, ao murchar, perde suas pétalas uma a uma, minhas
esperanças minguavam a cada dia. Quando a caravana chegou à Cidade da
Paz, eu sabia que era tarde, mas, quando cruzamos os portões da cidade,
perguntei aos guardas se tinham ouvido falar na queda de uma mesquita. O
primeiro guarda com quem falei de nada sabia. Por um instante, tive a
esperança de ter me lembrado erroneamente da data do acidente e de ter
chegado a tempo.
Então outro guarda me disse que uma mesquita havia de fato desabado
na véspera, no bairro de Karkh. Suas palavras me atingiram com a força do
machado de um carrasco. Eu tinha viajado de tão longe apenas para receber,
pela segunda vez, a pior notícia de minha vida.
Caminhei até a mesquita e vi os montes de tijolos onde um dia existira
um muro. Era uma cena que tinha assombrado meus sonhos durante vinte
anos, mas agora aquela imagem permanecia ali diante de meus olhos
abertos, com uma clareza maior do que eu era capaz de suportar. Dei meia-
volta e saí andando sem destino, cego a tudo que havia ao redor, até que me
vi diante de minha antiga casa, aquela onde eu e Najya tínhamos vivido.
Parei na rua diante dela, cheio de lembranças e de angústia.
Não sei dizer quanto tempo se passou quando percebi que uma jovem
mulher se dirigia a mim.
— Senhor — disse ela —, estou procurando a casa de Fuwaad ibn Abbas.
— Está diante dela — respondi.
— Por acaso é Fuwaad ibn Abbas, senhor?
— Sou, e peço-lhe que, por favor, me deixe em paz.
— Senhor, peço que me perdoe. Meu nome é Maimuna e sou ajudante
dos médicos que atendem no bimaristan. Cuidei de sua esposa antes que ela
morresse.
Virei-me a m de olhar para ela.
— Você cuidou de Najya?
— Cuidei, senhor. E jurei que lhe passaria um recado que ela me con ou.
— Que recado?
— Ela pediu que eu dissesse que os últimos pensamentos dela foram para
o senhor. Disse-me que, embora sua vida tivesse sido curta, ela foi feliz pelo
tempo que passaram juntos.
Ela viu as lágrimas escorrendo pelo meu rosto.
— Perdão, senhor, se minhas palavras lhe causam sofrimento — disse ela.
— Não há o que perdoar, lha. Quem me dera ter como lhe pagar quanto
essa mensagem vale para mim, pois uma vida inteira de agradecimentos
ainda me deixaria como seu devedor.
— Quem sofre não deve a ninguém — disse ela. — Que a paz o
acompanhe, senhor.
— Que a paz a acompanhe.
Ela foi embora, e passei horas andando pelas ruas e derramando lágrimas
de alívio. Durante todo aquele tempo eu pensava quanto as palavras de
Bashaarat eram verdadeiras: o passado e o futuro são os mesmos, e não
podemos mudar nenhum dos dois, apenas conhecê-los melhor. Minha
viagem ao passado não tinha alterado coisa alguma, mas o que quei
sabendo mudou tudo e compreendi que não poderia ter sido de outra
maneira. Se nossas vidas são histórias que Alá conta, então somos ao mesmo
tempo a plateia e os atores, e é vivendo essas histórias que aprendemos as
lições.
A noite caiu, e foi então que os guardas me encontraram vagando pelas
ruas após o toque de recolher, com as roupas empoeiradas, e perguntaram
quem eu era. Disse-lhes meu nome e onde vivia, e eles me levaram até a rua
em que eu morava para que os vizinhos me identi cassem, mas nenhum me
reconheceu, e fui levado para a prisão.
Contei ao capitão da guarda minha história, e ele a achou interessante,
mas não acreditou. A nal, quem acreditaria? Então me lembrei de alguns
fatos ocorridos durante meu tempo de luto vinte anos atrás. Disse a ele que o
neto de Vossa Majestade, que estava para nascer, seria um albino. Alguns
dias depois, chegou ao capitão a notícia do nascimento da criança conforme
eu havia predito, e ele me conduziu ao governador daquele bairro. Quando o
governador ouviu minha história, levou-me ao palácio, e, quando o
camareiro-mor ouviu minha história, me levou à sala do trono, para que eu
tivesse o in nito privilégio de contá-la a Vossa Majestade.
Agora minha história se confunde com minha vida, pois as duas estão
entrelaçadas, e a direção que vão tomar depende da decisão de Vossa
Majestade. Sei de muitas coisas que acontecerão aqui em Bagdá no
transcurso dos próximos vinte anos, mas nada sei do destino que me
aguarda. Não tenho dinheiro que me permita voltar para o Cairo e para o
Portal dos Anos que lá existe. No entanto, me considero um homem
afortunado além de qualquer medida, porque me foi dada a oportunidade
de revisitar meus erros do passado, e agora conheço as reparações que Alá
me permitiu. Ficarei honrado em relatar tudo que sei quanto ao futuro, se
Vossa Majestade achar por bem perguntar, mas, no que tange a mim mesmo,
o conhecimento mais precioso que possuo hoje é este:
Nada apaga o passado. Há arrependimento, há expiação e há o perdão.
Isso é tudo, é o bastante.
HÁ MUITO TEMPO, diz-se que o ar (que outros chamam de argônio) é a fonte
da vida. Na verdade, não é bem assim, e gravo aqui estas palavras para
contar como vim a compreender a verdadeira fonte da vida e, como
corolário, o modo como ela deverá um dia chegar ao m.
Durante a maior parte da história, a proposição de que extraímos a vida
do ar era tão óbvia que não parecia necessário prová-la. Todos os dias,
consumimos dois pesados pulmões cheios de ar. Todos os dias, substituímos
os pulmões vazios por dois cheios. Se uma pessoa é descuidada e deixa seu
nível de ar cair a um ponto muito baixo, ela sente os membros carem
pesados e a necessidade crescente de reabastecimento. É muito raro uma
pessoa não conseguir pelo menos um pulmão substituto antes que seu par se
esvazie. Nas lamentáveis ocasiões em que isso ocorreu — quando a pessoa
estava imobilizada, incapaz de sair do lugar, e sem ninguém por perto para
ajudá-la —, a morte sobreveio segundos depois do esgotamento do ar.
Contudo, no curso normal da vida, a necessidade de ar não ocupa nossos
pensamentos, e, sem dúvida, muitos diriam que satisfazer essa necessidade é
a parte menos importante das idas aos postos de abastecimento, que são o
principal ambiente de interação social, os lugares aonde vamos em busca do
sustento emocional e físico. Todos mantemos em casa alguns pares de
pulmões extras, mas, quando qualquer um de nós está sozinho, o processo
de abrir o próprio peito e substituir os pulmões vira pouco mais que uma
tarefa doméstica. Na companhia de outros, contudo, torna-se uma atividade
comunitária, um prazer compartilhado.
Se uma pessoa está muito ocupada ou se sentindo pouco “social”, pode
apenas ir buscar o par de pulmões cheios, instalá-los, e deixar os vazios no
outro lado do aposento. Se tiver alguns minutos disponíveis, pode praticar a
pequena cortesia de conectar os pulmões vazios a um fornecedor de ar e
deixá-los enchendo para o próximo usuário. No entanto, a prática mais
comum é relaxar e aproveitar a companhia dos outros, discutir as notícias
do dia com amigos e conhecidos e, de passagem, oferecer pulmões recém-
abastecidos ao interlocutor. Embora isso talvez não conte como
compartilhamento de ar em seu sentido estrito, existe aí uma camaradagem
que deriva da consciência de que todo o ar emana da mesma fonte, porque
os fornecedores não passam de terminais de tubulações que se estendem até
o reservatório subterrâneo de ar, o grande pulmão do mundo, a fonte de
toda nossa nutrição.
Diversos pulmões são devolvidos no dia seguinte no mesmo posto em
que foram abastecidos, mas há um número equivalente que circula por
outros postos, quando as pessoas visitam distritos vizinhos. Os pulmões são
todos idênticos, cilindros brilhantes de alumínio, de modo que ninguém é
capaz de dizer se certo pulmão foi sempre utilizado naqueles arredores ou se
já viajou grandes distâncias. E, assim como os pulmões passam de pessoa a
pessoa e de distrito em distrito, o mesmo acontece com notícias e boatos.
Desse modo, alguém pode receber notícias de distritos remotos, mesmo
aqueles que cam lá no m do mundo, sem a necessidade de sair de casa,
embora eu, pessoalmente, goste de viajar. Já z a viagem completa até o m
do mundo e vi a muralha sólida de cromo que se estende do chão até o céu
in nito.
Foi em um dos postos de abastecimento que ouvi, pela primeira vez, os
rumores que deram início a minha investigação e me conduziram à
revelação que acabei alcançando. Tudo começou de forma bastante inocente,
com um comentário do pregoeiro público de nosso distrito. Ao meio-dia do
primeiro dia de cada ano, existe a tradição de que o pregoeiro faça uma
declamação em verso de uma ode composta tempos atrás para essa
celebração anual, que leva uma hora para ser recitada. O pregoeiro
comentou que, em sua última apresentação, o relógio da torre deu as horas
antes de ele terminar, algo que jamais acontecera antes. Outra pessoa disse
que era uma coincidência, porque tinha acabado de chegar de um distrito
vizinho onde o pregoeiro local se queixara da mesma incongruência.
Ninguém deu a esse assunto maior importância além do mero registro.
Foi só alguns dias depois, quando surgiu a notícia de uma discrepância
semelhante entre o pregoeiro e o relógio em um terceiro distrito, que foi
sugerida a possibilidade de haver um defeito no mecanismo comum a todos
os relógios. Era uma falha curiosa, que fazia com que os relógios andassem
mais rápido em vez de mais devagar. Relojoeiros investigaram os aparelhos
em questão, mas a inspeção não revelou nenhum problema. Na verdade,
quando comparados com os instrumentos em geral usados para calibrações
desse tipo, os relógios revelaram estar funcionando com perfeição.
De minha parte, achei essa questão intrigante, mas estava focado demais
nos estudos para conceder muita atenção a outros assuntos. Eu era (sou) um
estudante de anatomia e, para fornecer o contexto de minhas ações
subsequentes, preciso agora fazer um breve relato da relação que tenho com
esse campo do saber.
A morte é algo incomum, felizmente, porque somos duráveis e porque
acidentes fatais são raros. Isso, porém, di culta o estudo da anatomia, em
especial porque muitos acidentes sérios o bastante para causar a morte
deixam o que sobra prejudicado demais para esse m. Se os pulmões forem
dilacerados quando cheios, a força explosiva deles pode fazer o corpo car
em pedaços, rasgando o titânio como se fosse uma lata qualquer. No
passado, os anatomistas focaram sua atenção nos membros, que eram as
partes com mais chances de sobreviverem intactas. Durante a primeira aula
de anatomia a que assisti, um século atrás, o conferencista nos mostrou um
braço amputado, com a cobertura removida para exibir a densa coluna de
hastes e pistões no interior. Consigo lembrar, como se fosse ontem, o modo
como ele foi capaz, depois de conectar as mangueiras arteriais a um pulmão
embutido na parede do laboratório, de manipular as hastes que se
projetavam da base dilacerada do braço e fazer com que a mão se abrisse e
fechasse em movimentos espasmódicos.
Ao longo dos anos seguintes, nosso campo de estudo avançou até o ponto
em que anatomistas são capazes de consertar membros defeituosos e, em
certas ocasiões, reimplantar um membro decepado. Ao mesmo tempo,
tornamo-nos capazes de estudar a siologia dos vivos. Eu mesmo já realizei
uma versão daquela primeira aula a que assisti, durante a qual abri a
cobertura do meu braço e chamei a atenção dos estudantes para as hastes
que se encolhiam e se esticavam quando eu movia os dedos.
Apesar dos avanços, o campo da anatomia continua a ter um grande
mistério em seu âmago: a questão da memória. Embora saibamos um pouco
a respeito da estrutura cerebral, sua siologia é bastante difícil de estudar,
devido à extrema delicadeza do cérebro. É típico em casos de acidentes fatais
que, quando o crânio é rachado, o cérebro brote de seu interior em uma
nuvem de ouro, deixando pouco mais do que lamentos dilacerados e
minúsculas folhas, dos quais nada conclusivo pode ser extraído. Durante
décadas, a teoria predominante a respeito da memória era de que todas as
experiências de uma pessoa estavam gravadas em páginas níssimas de ouro
— eram essas páginas, destruídas pelo impacto da explosão, a origem dos
minúsculos ocos dourados encontrados depois dos acidentes. Anatomistas,
então, recolheriam esses fragmentos — tão nos que a luz os atravessa, com
um brilho esverdeado — e passariam anos tentando reconstruir as páginas
originais, na esperança de, em algum momento, serem capazes de decifrar
os símbolos nelas inscritos, contendo as experiências recentes do falecido.
Eu discordava dessa teoria, conhecida como hipótese da inscrição, pela
simples razão de que, se todas as experiências que temos são de fato
registradas, por que então nossas lembranças são incompletas? Os
defensores dessa hipótese oferecem uma explicação — alegam que, com o
tempo, as páginas laminadas se desalinham ou até mesmo perdem contato
com a agulha que faz a leitura —, mas nunca a achei convincente. Seu apelo,
contudo, é fácil de entender: também dediquei muitas horas no
microscópio, examinando fragmentos minúsculos de ouro, e posso imaginar
a satisfação de alguém ao conseguir graduar o delicado botão do foco até
enxergar símbolos legíveis através da lente.
Mais do que isso: como seria maravilhoso decifrar as lembranças mais
antigas de uma pessoa morta, registros que ela mesma já teria esquecido!
Nenhum de nós consegue lembrar muito mais do que cem anos no passado,
e registros escritos — notas que nós mesmos redigimos, mas que mal nos
lembramos de tê-lo feito — se prolongam apenas alguns séculos antes desse
limite. Por quantos anos vivemos, antes do começo da história escrita? Qual
é nossa origem? O que torna a hipótese da inscrição tão sedutora é a
promessa de descobrir as respostas para essas perguntas no interior de nosso
cérebro.
Fui proponente de uma escola de pensamento rival, segundo a qual
nossas lembranças cavam armazenadas em algum meio no qual o processo
do apagamento era tão fácil quanto o da escrita — talvez, na rotação de
engrenagens ou na posição de uma série de interruptores, as memórias
desaparecessem. Essa teoria deixa implícito que tudo que esquecemos está
perdido e que nosso cérebro não contém histórias mais antigas do que as
que existem em nossas bibliotecas. Uma vantagem dessa teoria é que ela
explicava melhor por que, quando pulmões eram colocados em alguém que
morrera por falta de ar, a pessoa reanimada não tinha lembranças, e, na
verdade, sua mente estava como que em branco: de algum modo, o choque
da iminência da morte fazia todas as engrenagens e interruptores voltarem à
posição inicial. Já os inscricionistas alegam que o choque desalinha as
páginas metálicas, mas ninguém está disposto a matar alguém, mesmo um
de ciente intelectual, para resolver esse debate. Imaginei um experimento
que poderia me ajudar a determinar a verdade de modo conclusivo, mas era
arriscado e precisava de uma avaliação cuidadosa antes de ser posto em
prática. Fiquei indeciso por um longo tempo, até que ouvi novos fatos
relativos à anomalia dos relógios.
Chegaram a meus ouvidos notícias de um distrito mais afastado cujo
pregoeiro tinha observado, tal como os outros, o relógio da torre batendo
uma hora da tarde antes que ele tivesse terminado seu recital de Ano-Novo.
O que tornava isso digno de nota era que o relógio desse distrito empregava
um mecanismo diferente, no qual as horas eram marcadas pelo uxo de
mercúrio no interior de um cilindro. Nesse caso, a discrepância não podia
ser explicada por uma simples falha mecânica. Diversas pessoas
descon aram de fraude, de uma peça pregada por indivíduos dados a
traquinagens. Eu tinha uma suspeita diferente, muito mais sombria, que não
me atrevia a verbalizar, mas isso me ajudou a decidir o curso de minhas
ações. Resolvi que realizaria meu experimento.
A primeira ferramenta que construí foi a mais simples: em meu
laboratório, xei em suportes quatro prismas e os alinhei com cuidado uns
aos outros, de modo que seus vértices formavam os cantos de um retângulo.
Arrumados dessa forma, quando um raio de luz era dirigido a um dos
prismas, ele era re etido para cima, depois para trás, depois para baixo,
depois para a frente mais uma vez, formando uma volta quadrilateral
completa. E, assim, quando eu sentava com os olhos no nível do primeiro
prisma, obtinha uma visão completa da parte de trás de minha cabeça. Esse
periscópio solipsista formou a base do que viria depois.
Um arranjo também retangular de hastes móveis permitia um
deslocamento de ação para acompanhar o deslocamento de visão
proporcionado pelos prismas. O conjunto das hastes móveis era bem maior
que o periscópio, mas tinha um desenho também relativamente simples —
por contraste, o que estava a xado à extremidade de cada um dos
respectivos mecanismos era muito mais complexo. Ao periscópio, xei um
microscópio binocular preso a uma armação que me permitia movê-lo de
um lado para outro e de cima para baixo. Às hastes móveis xei um aparato
de manipuladores de precisão, embora essa descrição não chegue a fazer
justiça àqueles prodígios do artesanato mecânico. Combinando a
engenhosidade dos anatomistas e a inspiração proporcionada pelas
estruturas corporais que estudamos, os manipuladores permitem ao
operador cumprir qualquer tarefa que ele seria capaz de executar com as
próprias mãos, só que em uma escala muitíssimo menor.
A montagem de todo esse equipamento levou meses, mas eu não podia
me dar ao luxo de não ser meticuloso. No momento em que terminei os
preparativos, pude en ar as mãos em um conjunto de botões e alavancas.
Por meio deles, podia controlar um par de manipuladores, colocados por
trás de minha cabeça, e usar o periscópio para acompanhar o trabalho
executado. Assim, tornei-me capaz de dissecar meu cérebro.
A ideia parece loucura, eu sei, e se tivesse comentado sobre ela com
algum de meus colegas, eles com certeza tentariam me deter. Mas não podia
pedir a ninguém que corresse riscos em nome da pesquisa anatômica e, já
que pretendia conduzir eu mesmo a dissecação, não caria satisfeito em me
tornar apenas o objeto passivo dela. Então, a autodissecação era a única
opção possível.
Consegui uma dúzia de pulmões cheios e os conectei a um tubo
distribuidor. Instalei todo esse conjunto embaixo da bancada na qual iria
trabalhar e acoplei a boca de um fornecedor de ar nas aberturas bronquiais
de meu peito. Isso me proporcionaria ar por uns seis dias. Levando em conta
a possibilidade de que eu talvez não tivesse completado minha experiência
nesse tempo, agendei a visita de um colega para o m desse período. Minha
suposição, contudo, era de que a única possibilidade de não ter concluído a
operação após seis dias era a de eu haver causado minha morte.
Comecei removendo a placa curva que forma a nuca e o topo de minha
cabeça. Depois, as duas placas, de curvas menos acentuadas, que formam as
partes laterais. Apenas minha placa facial restou, mas ela estava ainda presa
a seus suportes, e eu não podia ver a superfície interna dela através de meu
periscópio — o que eu via exposto era meu cérebro. Ele consistia de uma
dúzia ou mais de subconjuntos, cujo exterior era coberto por carapaças de
um molde bastante complexo. Posicionando o periscópio perto das ssuras
que as separavam, pude ter um vislumbre tantalizante dos mecanismos
fabulosos em seu interior. Mesmo com tão pouco para ver, eu podia a rmar
com segurança que era o mecanismo mais belo e mais complexo que meus
olhos já tinham visto, algo tão acima de qualquer aparelho construído pelo
homem que sua origem não poderia ser menos que divina. Aquela visão me
deixava ao mesmo tempo tonto e sem ar, e eu a saboreei por vários minutos,
por motivos estritamente estéticos, antes de prosseguir em minha
exploração.
Uma hipótese em geral aceita é a de que o cérebro é dividido em duas
partes: um mecanismo no centro da cabeça, que produz a verdadeira
cognição, cercado por um complexo de componentes onde as memórias
cam armazenadas. O que observei é consistente com esta teoria, uma vez
que esses componentes periféricos eram todos parecidos, enquanto o
subconjunto central parecia diferente, mais heterogêneo, com maior número
de partes móveis. Os componentes, no entanto, estavam agrupados de
maneira tão próxima que não era possível ver muito de sua operação; se eu
quisesse descobrir mais, precisaria de um ponto de vista melhor.
Cada subconjunto tinha um reservatório local de ar, alimentado por um
tubo que saía do regulador na base de meu cérebro. Focalizei o periscópio
no subconjunto situado na parte traseira e, usando os manipuladores
remotos, desconectei o tubo de ar que o alimentava e instalei outro, bem
mais longo, em seu lugar. Eu havia praticado aquela manobra vezes sem
conta para ser capaz de executá-la em apenas alguns instantes. Mesmo
assim, não estava certo de que podia completar a conexão antes de o
reservatório interno do subconjunto se esgotar. Só me atrevi a continuar
depois de ter certeza de que a operação daquele componente não tinha sido
interrompida. Movi para o lado o tubo mais longo, a m de ter uma visão
melhor do que havia por trás da ssura: outros tubos que se conectavam aos
componentes vizinhos. Usando o menor par de manipuladores, através
daquela fenda estreita, substituí todos os tubos, um por um, por outros mais
compridos. Em pouco tempo, já tinha percorrido todo o subconjunto,
substituindo cada conexão dele com o restante de meu cérebro. Agora, eu
poderia desprendê-lo da estrutura a que estava xado e retirar do crânio
toda a parte traseira de meu cérebro.
Eu estava ciente da possibilidade de que tivesse prejudicado minha
capacidade de pensar e não fosse capaz de percebê-lo, mas a resolução de
alguns testes aritméticos básicos me indicaram que eu nada havia sofrido.
Com aquele subconjunto pendurado agora em um suporte acima de minha
cabeça, eu tinha uma visão bem melhor do mecanismo de cognição no
centro do cérebro. Entretanto, ainda não havia espaço su ciente para
aproximar o microscópio e fazer uma inspeção mais detalhada. Para que eu
pudesse de fato examinar o funcionamento do cérebro, teria de afastar pelo
menos meia dúzia daqueles subconjuntos de suas posições originais.
Trabalhando com paciência, repeti o procedimento de substituir os tubos
de outros subconjuntos, reposicionando um posterior, dois outros de cima e
mais dois que cavam nas laterais, deixando-os todos suspensos no mesmo
anteparo onde estava o primeiro. Quando terminei, minha cabeça parecia
congelada em uma fração de segundo in nitesimal após uma explosão, e
mais uma vez o pensamento me produziu uma vertigem. Mas, en m, o
mecanismo de cognição estava exposto, apoiado a um pilar de tubulações e
de hastes móveis que desciam para dentro de meu torso. Agora, havia espaço
su ciente para girar o microscópio em trezentos e sessenta graus e dirigir
meu olhar pelas faces internas dos subconjuntos que eu deslocara. O que vi
ali foi um microcosmo de maquinaria áurea, uma paisagem de minúsculos
rotores em movimento e pistões minimalistas.
Enquanto eu contemplava essa visão, comecei a pensar: o que seria meu
corpo? Os instrumentos que me serviam para a mobilidade de minha visão
e meu tato, ali naquele aposento, em princípio não eram diferentes dos que
estavam conectados aos meus olhos e ao cérebro originais. Durante a
execução do experimento, não seriam aqueles manipuladores minhas mãos?
Aquelas lentes nas extremidades do periscópio não eram, essencialmente,
meus olhos? Eu era uma pessoa virada do avesso, com meu corpo pequeno,
fragmentado, colocado no centro das partes dispersas de meu cérebro. Foi
nessa con guração mais que improvável que dei início à exploração de mim
mesmo.
Voltei o microscópio para um dos subconjuntos de memória, e comecei a
investigar seu desenho. Eu não tinha expectativa alguma de ser capaz de
decifrar minhas lembranças, apenas ter a chance de adivinhar de que
maneira elas eram gravadas. Como eu previra, não havia resmas de folhas
metálicas visíveis, mas, para minha surpresa, também não vi uma profusão
de rodas dentadas nem de comutadores. Em vez disso, o subconjunto
parecia consistir inteiramente de leiras de tubulações de ar muito nas.
Pelos interstícios entre as tubulações, eu podia ver ondulações se
propagando ao longo de uma leira de canos.
Fazendo uma inspeção cuidadosa com uma imagem ainda mais
ampliada, percebi que os tubos se rami cavam em capilares níssimos de
condução do ar, os quais se entrelaçavam a uma treliça de os que estava
presa às folhas de ouro. Sob a ação do ar que escapava pelos capilares, as
folhas podiam assumir uma variedade de posições. Elas não constituíam
controles no sentido convencional, porque não mantinham as posições se
não tivessem uma corrente de ar para sustentá-las, mas concebi a hipótese
de que fossem os controles que eu buscava, o meio através do qual minhas
lembranças cavam registradas. As ondulações que vi podem ter sido o ato
de lembrar, com certo arranjo de folhas sendo lido e comunicado ao
mecanismo de cognição.
Com posse desse entendimento, virei meu microscópio para o
mecanismo de cognição. Ali também observei a presença de uma treliça de
os, mas esta não apresentava folhas móveis presas a si. Em vez disso, as
folhas oscilavam para a frente e para trás tão rápido quanto os olhos
conseguiam ver. Sem dúvida, quase todo o mecanismo parecia estar se
mexendo, consistindo mais de treliças do que dos capilares de ar, e me
perguntei como o ar podia atingir aquelas folhas de ouro de maneira
organizada. Eu as examinei por horas, até perceber que elas estavam
desempenhando o papel de capilares — as folhas formavam condutores
temporários e válvulas que existiam apenas durante o tempo necessário para
redirecionar o ar para outras folhas, desaparecendo logo depois. Era um
mecanismo em perpétua mudança — de fato, um mecanismo que
modi cava a si mesmo como parte de seu funcionamento. A treliça não era
tanto uma máquina, mas a página em que a máquina era escrita e na qual a
própria máquina escrevia sem parar.
Era possível dizer que minha consciência estava codi cada na posição
daquelas folhas microscópicas. Contudo, seria mais preciso a rmar que ela
estava codi cada nos padrões cambiantes de ar que agitavam as folhas.
Observando as oscilações desses minúsculos ocos de ouro, percebi que o ar
não fornecia apenas a força, como sempre tínhamos pensado, para que a
máquina produzisse pensamentos. O ar é, na verdade, a substância de
nossos pensamentos. Tudo que somos é um padrão de sopro de ar. Minhas
lembranças estavam gravadas, não em ranhuras nas folhas douradas ou
mesmo na posição de comutadores, mas em correntes contínuas de argônio.
Momentos depois que compreendi a natureza desse mecanismo, uma
cascata de revelações brotou em minha consciência. A primeira e mais
trivial delas foi poder entender por que o ouro, o mais maleável e dúctil dos
metais, era o único material de que nosso cérebro poderia ter sido feito.
Apenas a mais delgada das folhas de ouro poderia se mover com velocidade
su ciente para um mecanismo dessa natureza, e somente os mais delicados
dos lamentos lhes poderiam servir de dobradiças. Por comparação, os
resíduos de cobre produzidos por minha agulha enquanto gravo estas
palavras, que afasto com a mão assim que as termino, são tão sólidos e
pesados quanto limalha de ferro. Aquele era, sem dúvida, um meio em que o
ato de registrar e apagar podiam ser feitos com a maior rapidez, muito mais
do que em qualquer arranjo de botões e de rodas dentadas.
Outra coisa que cou evidente foi por que instalar pulmões cheios em
uma pessoa que morreu por falta de ar não a traz de volta à vida. As folhas
no interior da treliça cam sempre equilibradas entre correntes contínuas de
ar. Esse arranjo faz com que elas oscilem depressa para a frente e para trás,
mas também signi ca que, se o uxo de ar for interrompido, tudo se perde:
todas as folhas colapsam na mesma posição pendurada, apagando, assim, os
padrões e a consciência que elas representavam. Restaurar o suprimento de
ar não pode recriar o estado que foi perdido. Esse era o preço da velocidade,
um meio mais estável para gravar padrões implicaria que nossa consciência
operaria de maneira bem mais lenta.
Foi então que compreendi a anomalia dos relógios. Vi que a velocidade
dos movimentos das folhas de ouro dependia de estarem sustentadas pelo ar
— com um uxo adequado, elas podiam se mover quase sem atrito. Se elas
se moviam mais devagar, era porque estavam sendo sujeitas a maior atrito, o
que podia ocorrer apenas se os bolsões de ar que as apoiavam estivessem
cando mais delgados e o ar se movendo através da treliça passasse com
menor força.
Não é que os relógios das torres estejam funcionando mais depressa. O
que ocorre é que nosso cérebro está funcionando mais devagar. Os relógios
das torres são movidos por pêndulos, cuja oscilação nunca varia, ou pelo
uxo de mercúrio no interior de um tubo, que também não se altera. No
entanto, nosso cérebro depende da passagem do ar, e quando esse ar ui de
forma mais lenta, nossos pensamentos também se retardam, dando a
impressão de que os relógios estão andando mais rápido.
Meu receio fora de que nosso cérebro estivesse cando mais lento, e foi
essa possibilidade que me levou a proceder à autodissecação. Contudo, eu
presumira que nossos mecanismos de cognição — ainda que movidos a ar
— fossem de natureza mecânica, e algum aspecto do mecanismo estivesse
sendo alterado aos poucos devido à fadiga, e fosse o responsável por esse
desaceleramento. Isso teria sido grave, mas havia ao menos a esperança de
que pudéssemos consertar o mecanismo e restituir a nosso cérebro a
velocidade original de funcionamento.
Contudo, se nossos pensamentos eram apenas padrões de sopros do ar e
não o movimento de rodas dentadas, o problema era muito mais sério, pois
o que poderia estar fazendo com que o ar no interior do cérebro de uma
pessoa se movesse mais devagar? Não podia ser uma diminuição da pressão
dos fornecedores de ar nos postos de abastecimento — a pressão em nossos
pulmões é tão alta que é preciso fazer o ar passar por uma série de redutores
antes que ele chegue ao cérebro. Essa diminuição de força, percebi, deve ter
origem na direção oposta: é a pressão da atmosfera a nossa volta que está
aumentando.
Como isso pode ser possível? Assim que formulei a pergunta, a única
resposta se tornou aparente: nosso céu não deve ter uma altura in nita. Em
algum lugar além dos limites de nossa visão, as muralhas de cromo que
cercam o mundo devem se curvar para dentro, formando um domo, e nosso
universo é uma câmara fechada e não um poço aberto. O ar vai se
acumulando aos poucos nessa câmara, até se igualar em pressão com os
reservatórios subterrâneos.
Foi por isso que a rmei, no início deste relato, que o ar não é a fonte da
vida. O ar não pode ser criado ou destruído. A quantidade total de ar no
universo é constante, de modo que, se precisássemos apenas de ar para viver,
não morreríamos. Na verdade, a fonte da vida é a diferença na pressão do ar,
o uxo de ar dos lugares onde está mais concentrado para os lugares onde é
mais rarefeito. A atividade de nosso cérebro, o movimento de nosso corpo, a
ação de cada máquina que já construímos — tudo é impelido pelo
movimento do ar, pela força resultante de diferentes pressões tentando se
equilibrar entre si. Quando a pressão inteira do universo for a mesma, todo
ar cará imóvel e se tornará inútil — um dia estaremos cercados por ar sem
movimento, incapazes de extrair qualquer benefício dele.
De forma alguma consumimos o ar. A quantidade dele que extraio todos
os dias de um novo par de pulmões é a mesma que se escoa por entre as
juntas de meus membros e as emendas de meu invólucro, a mesma que
estou devolvendo à atmosfera que me cerca. Tudo que estou fazendo é
converter ar em alta pressão para ar em baixa. Com cada movimento do
corpo, contribuo um pouco para a equalização da pressão no universo. Cada
pensamento que tenho apressa a chegada desse momento fatal de equilíbrio
completo.
Se tivesse chegado a essa conclusão em qualquer outra circunstância,
teria pulado da cadeira e corrido para a rua, mas, na situação em que me
encontrava — o corpo preso a suportes que me mantinham em uma posição
xa, o cérebro suspenso em pedaços no interior do laboratório —, fazer isso
teria sido impossível. Eu podia ver as folhas do cérebro agitando-se depressa
com o tumulto de minhas ideias, o que, por sua vez, aumentava a agitação
por me sentir preso e imobilizado. Um ataque de pânico naquele momento
teria causado minha morte, um pesadelo agonizante em que eu me sentia ao
mesmo tempo amarrado e redemoinhando fora de controle, lutando contra
minhas amarras até que o ar se esgotasse. Foi por pura sorte, mais do que
por intenção, que minhas mãos ajustaram os controles para dirigir o foco do
periscópio para longe das treliças, me fazendo olhar apenas para a superfície
lisa da bancada de trabalho. Assim, livre de contemplar a visão ampliada de
minhas apreensões, pude me acalmar. Quando recuperei o autocontrole, dei
início ao lento processo de remontar a mim mesmo. Após algum tempo,
recompus a con guração original e compacta do cérebro, reajustei as placas
do crânio e, por m, liberei meu corpo dos suportes que me prendiam.
A princípio, os outros anatomistas não acreditaram quando lhes contei o
que havia descoberto, mas, nos meses que se seguiram a minha
autodissecação inicial, um número cada vez maior deles foi se deixando
convencer. Foram realizados numerosos exames no cérebro das pessoas,
foram feitas mais medições da pressão atmosférica, e todos os resultados
con rmavam minha hipótese. A pressão atmosférica geral do universo
estava sem dúvida aumentando, e o resultado disso era que estávamos
pensando mais devagar.
Houve pânico generalizado naqueles dias, depois que a verdade se
espalhou, conforme as pessoas encaravam pela primeira vez a noção de que
a morte era algo inevitável. Muitos defenderam uma forte redução em todas
as atividades a m de minimizar o aumento de pressão na atmosfera;
acusações de desperdício de ar levaram a quebra-quebras violentos e, em
alguns distritos, a mortes. Foi a vergonha de ter provocado essas mortes,
junto com a ressalva de que muitos séculos ainda iriam transcorrer até que a
pressão da atmosfera se igualasse com a dos reservatórios subterrâneos, que
fez o pânico diminuir. Não sabemos ao certo quantos séculos todo esse
processo vai levar. Medições adicionais e cálculos têm sido feitos e
debatidos. Enquanto isso, há muita discussão sobre como deveríamos
utilizar o restante do tempo que temos.
Uma seita tem se dedicado ao objetivo de reverter essa equalização de
pressão e reuniu muitos seguidores. Os mecânicos entre eles construíram
uma máquina que retira o ar da atmosfera e o reduz a um volume bem
menor, um processo a que chamam de compressão. Essa máquina deixa o ar
com a pressão que ele tinha originalmente nos reservatórios, e esses
reversalistas anunciaram, entusiasmados, que ela formaria a base de um
novo tipo de posto de abastecimento, que, com cada novo par de pulmões
que enchessem, estariam revitalizando não apenas os indivíduos, mas o
próprio universo. No entanto, um exame mais rigoroso da máquina revelou
sua falha fatal. O mecanismo é movido pelo ar dos reservatórios, e, para
cada pulmão cheio de ar que é produzido, ele consome não apenas um par
de pulmões, mas um pouquinho mais. Ele não reverte o processo de
equalização, mas, como tudo no mundo, o intensi ca.
Embora alguns de seus adeptos tivessem se afastado, desiludidos, após
esse revés, os reversalistas, como um grupo, não se deixaram abater e
começaram a desenhar projetos alternativos em que o compressor era
movido pela distensão de molas e a subida e descida de pesos. Esses
mecanismos não obtiveram resultado melhor. Cada mola comprimida
representa ar liberado pela pessoa que a forçou; cada peso erguido
representa ar liberado pela pessoa que o ergueu. Não existe fonte de energia
no universo que não derive, em última análise, de uma diferença na pressão
do ar e não existe máquina cuja operação não resulte, em última análise, em
uma pequena redução nessa diferença.
Os reversalistas continuam suas pesquisas, con antes de que um dia
conseguirão construir uma máquina com a capacidade de gerar mais
compressão do que a que está utilizando, uma fonte perpétua de energia que
possa restaurar o vigor perdido do universo. Não compartilho o otimismo
deles. Acredito que o processo de equalização de pressão é inexorável. A
certa altura, todo o ar do universo estará distribuído por igual, sem ser mais
denso ou mais rarefeito em um ponto do que em outro, incapaz de mover
um pistão, girar um rotor ou fazer oscilar uma na folha de ouro. Será o m
da pressão, o m da energia motora, o m do pensamento. O universo,
então, terá alcançado o equilíbrio perfeito.
Alguns acham irônico o fato de que o estudo de nosso cérebro tenha
revelado não os segredos do passado, mas aquilo que, em última análise, está
reservado para o futuro. Insisto, entretanto, em a rmar que aprendemos
algo importante sobre o passado. O universo começou como uma imensa
inalação de ar. Não sabemos por quê, mas, seja qual for a razão, co feliz por
isso ter acontecido, pois devo minha existência a esse fato. Todos os meus
desejos e as minhas elucubrações são nada mais que ondulações geradas
pela gradual exalação de ar do universo. E, enquanto essa grande exalação
não for concluída, meus pensamentos viverão.
Para permitir que nossos pensamentos possam se prolongar pelo maior
tempo possível, anatomistas e mecânicos estão projetando peças de
substituição para os reguladores cerebrais, capazes de aumentar aos poucos
a pressão do ar no interior do cérebro e mantê-la um pouco mais forte do
que a pressão da atmosfera em volta. Depois que forem instaladas, os
pensamentos continuarão a ser processados quase à mesma velocidade,
mesmo que a pressão a nossa volta venha a aumentar. Isso não signi ca,
porém, que a vida prosseguirá sem sofrer mudanças. Em certo momento, o
diferencial de pressão vai cair a um nível tal que nossos membros perderão
as forças e os movimentos se tornarão vagarosos. Então, talvez tentemos
reduzir a velocidade do pensamento, para que o torpor físico se torne menos
perceptível para nós, mas isso também terá o efeito de fazer parecer que os
eventos do mundo externo estão acelerados. O tique-taque dos relógios se
intensi cará até soar como um tamborilar contínuo, enquanto os pêndulos
se agitarão de maneira frenética; objetos cairão no chão como se tivessem
sido disparados; e ondulações vão sacudir os cabos como se fossem chicotes.
Então, nossos membros vão parar por completo. Não tenho certeza a
respeito da sequência precisa dos fatos nessa fase nal, mas imagino um
cenário em que o pensamento continuará funcionando, de modo que
permaneceremos conscientes mas imóveis, rígidos como estátuas. Talvez
possamos fazer uso da fala por um pouco mais de tempo, pois nossas caixas
vocais funcionam com uma diferença de pressão menor do que a do corpo,
mas, sem a possibilidade de ir até um posto de abastecimento, cada palavra
pronunciada deverá reduzir a quantidade de ar destinada a produzir
pensamento e nos aproximar ainda mais do instante em que essa capacidade
cessará por completo. O que será preferível: carmos mudos e prolongarmos
a capacidade de pensar ou continuarmos falando e apressar o m? Não sei.
Talvez alguns de nós, nos dias anteriores à cessação completa dos
movimentos, consigamos conectar os reguladores cerebrais diretamente aos
fornecedores dos postos de abastecimento, substituindo, assim, seus
pulmões pelo grande pulmão do mundo. Se isso acontecer, estes poucos
indivíduos conseguirão permanecer lúcidos até o derradeiro instante da
equalização de pressão. O último impulso de pressão do ar no universo será
utilizado para gerar um pensamento na consciência de um indivíduo.
E o universo, então, chegará a um estado de equilíbrio absoluto. Toda a
vida e todo o pensamento vão acabar, e, com eles, o próprio tempo deixará
de existir.
Mas eu ainda tenho uma pequena esperança.
Mesmo que nosso universo seja um sistema fechado, talvez ele não seja a
única câmara atmosférica nessa extensão in nita de cromo sólido. Minha
especulação é que pode existir outro bolsão de ar em algum ponto, outro
universo além do nosso, com dimensões ainda maiores. É possível que esse
universo hipotético tenha a mesma pressão atmosférica do nosso ou uma
ainda maior, mas suponhamos que ele tenha uma pressão inferior ao nosso,
que seja, talvez, um vácuo absoluto?
O cromo sólido que nos separa desse suposto universo é espesso e sólido
demais para que possamos perfurá-lo, de modo que não conseguiremos
chegar a ele. Não teremos chance alguma de fazer vazar o excesso de ar de
nosso universo na direção desse outro, e, assim, produzir movimento e
energia. Mas gosto de fantasiar que o universo vizinho tenha seus próprios
habitantes, e que eles tenham capacidades que vão muito além das nossas. E
se eles forem capazes de perfurar uma passagem ligando os dois universos e
instalar válvulas para liberar o ar que vem do nosso? Eles usariam então
nosso universo como um reservatório, criando fornecedores de ar para
encher seus próprios pulmões e usando nosso ar como um modo de
impulsionar a própria civilização.
Alegra-me imaginar que o ar que um dia me deu vida poderá dar vida a
outros, acreditar que a respiração que me torna capaz de escrever estas
palavras pode, no futuro, uir através do corpo de alguém. Não me iludo
pensando que isso seria um modo de voltar à vida, porque não sou aquele
ar, sou um padrão que aquele ar assumiu por um tempo. O padrão que fui e
os padrões que o mundo inteiro em que vivo foram estariam perdidos.
Mas ainda assim mantenho uma esperança ainda mais remota: que
aqueles habitantes não apenas usem nosso universo como um reservatório
de ar, mas, uma vez que tenham esvaziado todo o ar que ele contém, possam
um dia alargar essa passagem e visitar nosso universo na condição de
exploradores. Poderiam caminhar pelas ruas, ver os corpos imóveis,
examinar os objetos e imaginar que tipo de vida teríamos vivido.
E é por essa razão que estou redigindo este testemunho. Você, espero, é
um desses exploradores. Você, espero, encontrou estas folhas de cobre e
decifrou as palavras gravadas na superfície delas. E mesmo que seu cérebro
não seja movido pelo mesmo ar que um dia moveu o meu, através do ato de
ler minhas palavras, os padrões de seu pensamento imitarão os padrões um
dia formados pelo que eu pensei. E, desse modo, vivo mais uma vez, através
de você.
Os outros exploradores já terão encontrado e lido os livros que deixamos,
e, através da colaboração conjunta das imaginações de vocês, toda a minha
civilização viverá de novo. Enquanto caminham por nossos distritos
silenciosos, imaginem como eles foram, com os relógios das torres batendo
as horas, os postos de abastecimento cheios de vizinhos fofocando,
pregoeiros recitando versos em praça pública e anatomistas dando aulas nas
escolas. Visualizem tudo isso quando olharem o mundo imóvel à sua volta, e
ele se tornará, em suas mentes, vivo e real outra vez.
Eu lhe quero bem, explorador, mas co imaginando: será que lhes cabe
um destino igual ao nosso? Imagino que sim, que a tendência rumo ao
equilíbrio nal não seja um traço peculiar de nosso universo, mas inerente a
todos os universos. Talvez isso seja só uma limitação de meu pensamento, e
seu povo tenha descoberto uma fonte de energia de fato eterna. Mas, por
ora, minhas especulações já são bastante fantasiosas. Devo presumir que um
dia os pensamentos de vocês também vão cessar, embora não possa fazer
ideia de quando no futuro isso acontecerá. A vida de vocês vai se extinguir,
tal como aconteceu com a nossa, e como deverá acontecer com a de todos.
Não importa o tempo que leve, um dia o equilíbrio nal prevalecerá.
Espero que não quem tristes diante dessa perspectiva. Espero que a
expedição de vocês seja alguma outra coisa além de uma busca por outros
universos que possam ser usados como reservatórios de energia. Espero que
sejam movidos pela busca do conhecimento, por um desejo de saber tudo
que pode ser produzido pela exalação de um universo. Porque, mesmo que o
arco de vida de um universo possa ser calculável, a variedade de formas de
vida que se geram dentro dele não é. Os edifícios que construímos, a arte, a
música e a poesia que criamos, a vida que vivemos: nada disso poderia ser
previsto, pois nada disso era inevitável. Nosso universo poderia ter deslizado
para o equilíbrio nal emitindo nada mais que um discreto chiado. O fato de
que nele a vida brotou com tal plenitude é um milagre, um milagre apenas
comparável ao fato de seu universo ter dado origem a vocês.
Embora eu esteja morto há muito tempo no momento em que você lê
isto, explorador, dedico-lhe uma palavra de despedida. Contemple a
maravilha da existência e alegre-se por ser capaz de vê-la. Sinto que tenho o
direito de dizer-lhe isso, porque, no momento em que escrevo estas palavras,
faço o mesmo.
ISTO É UM AVISO. Por favor, leia com atenção.
A essa altura, você já deve ter visto um Preditor — milhões deles já foram
vendidos no momento em que você estiver lendo isso. Para os que ainda não
viram um, é um aparelho pequeno, igual ao controle remoto que destranca
seu carro. Suas únicas características são um botão e uma grande luz LED
verde. A luz pisca quando você aperta o botão. Mais especi camente, a luz
pisca um segundo antes de você apertar o botão.
A maioria das pessoas diz que, na primeira tentativa, se tem a impressão
de estar jogando um jogo esquisito, cujo objetivo, na verdade, é apertar o
botão depois de ver a luz piscar, e que é um jogo fácil. Mas, quando você
tenta desobedecer às regras, vê que é impossível. Se tenta pressionar o botão
sem ver a luz, a piscada imediatamente aparece, e, não importa quão rápido
seja, você nunca consegue apertar o botão antes que um segundo se passe.
Se você espera a piscada da luz com a intenção de não apertar botão
nenhum depois, a luz nunca aparece. Não importa o que você faça: a luz
sempre precede o apertar do botão. Não há como enganar um Preditor.
O cerne de cada Preditor é um circuito com um sinal negativo de tempo:
ele envia um sinal para o passado. Todas as implicações dessa tecnologia vão
car aparentes mais adiante, quando sinais negativos com mais de um
segundo começarem a surgir, mas este aviso não é sobre isso. O problema
imediato é que os Preditores demonstram que não existe essa coisa de livre-
arbítrio.
Sempre existiram muitos argumentos para demonstrar que o livre-
arbítrio é uma ilusão, alguns deles baseados na física concreta, outros na
lógica pura. A maior parte das pessoas concorda que esses argumentos são
irrefutáveis, mas ninguém aceita de verdade sua conclusão. A experiência de
desfrutar livre-arbítrio é forte demais para ser vencida por um argumento.
Seria necessária uma demonstração prática. E é isso que o Preditor
proporciona.
Em geral, uma pessoa brinca com o Preditor compulsivamente durante
vários dias, exibindo-o para os amigos e tentando diferentes maneiras de ser
mais esperto do que o aparelho. Então, ela pode aparentar ter perdido o
interesse, mas ninguém consegue esquecer o que ele signi ca. Durante as
semanas seguintes, as implicações de um futuro imutável começam a ser
compreendidas. Algumas pessoas, percebendo que suas escolhas não
in uenciam em nada, apenas deixam de exercê-las. Como uma legião de
escrivães Bartleby, elas deixam de se envolver em qualquer ação espontânea.
A certa altura, um terço das pessoas que usa um Preditor precisa ser
hospitalizado, porque deixa de se alimentar. O estado nal é um mutismo
não cinético, uma espécie de coma lúcido. Esses indivíduos acompanham
movimentos com os olhos, mudam de posição de vez em quando, mas nada
além disso. A capacidade de se mexer é mantida, mas a motivação deixa de
existir.
Antes de as pessoas começarem a brincar com Preditores, o mutismo não
cinético era muito raro, o resultado de algum dano à região anterior
cingulada do cérebro. Agora, ele se espalha como uma peste cognitiva. As
pessoas costumavam especular sobre um pensamento capaz de destruir o
pensador: algum indizível horror lovecra iano ou uma sentença de Gödel
que acaba com o sistema lógico humano. Aparentemente, o pensamento
sabotador é um que todos nós já conhecíamos: a ideia de que o livre-arbítrio
não existe. Ele só passou a ser nocivo porque você começou a acreditar nele.
Os médicos tentam argumentar com seus pacientes, quando estes ainda
permitem se envolver em uma conversa: estávamos todos vivendo vidas
felizes e ativas antes, explicam, e também não tínhamos livre-arbítrio
naquela época. Por que seria diferente agora? “Nenhuma das ações que você
praticou no mês passado foi mais livremente escolhida do que as que
praticou hoje”, dizia um médico. “Você pode continuar se comportando da
mesma maneira.” Os pacientes quase sempre respondem: “Mas agora eu sei.”
E alguns deles jamais voltam a falar.
Alguém pode dizer que o fato de um Preditor causar esse tipo de
mudança em nosso comportamento indica que temos, sim, livre-arbítrio.
Um autômato não pode se sentir desmotivado, apenas uma entidade com
pensamento livre pode. Enquanto alguns indivíduos se deixam afundar no
mutismo não cinético e outros não apenas realça a importância do ato de
escolher.
Infelizmente, esse raciocínio é falso. Qualquer forma de comportamento
é compatível com o determinismo. Um sistema dinâmico pode entrar em
um remanso de atração e derivar rumo a um ponto xo, enquanto outro
pode exibir um comportamento caótico para sempre. Ambos, porém, são
determinísticos.
Estou transmitindo este aviso para vocês a um ano de distância, no
futuro. É a primeira mensagem mais longa recebida quando os circuitos com
sinal negativo na frequência de megassegundos são usados para montar
aparelhos de comunicação. Outras mensagens virão a seguir, abordando
outros problemas. Minha mensagem para vocês é: njam que têm livre-
arbítrio. É essencial para vocês se comportarem como se suas decisões
tivessem importância, mesmo sabendo que não têm. A realidade não
importa: o que importa é a sua crença, porque acreditar nessa mentira é a
única maneira de evitar o coma lúcido. A civilização depende agora da
autoilusão. Talvez sempre tenha dependido.
E, no entanto, sei que, como o livre-arbítrio é uma ilusão, tudo está
predeterminado, inclusive quem vai mergulhar no coma lúcido e quem não
vai. Não há nada que eu possa fazer a respeito. É impossível escolher o efeito
que o Preditor terá sobre você. Alguns vão sucumbir e outros não, e o fato
de eu lhes mandar este aviso não vai alterar em nada o futuro. Então, por
que estou fazendo isso?
Porque eu não tenho escolha.
1

O NOME DELA É ANA ALVARADO, e ela está tendo um dia péssimo. Passou a
semana inteira se preparando para uma entrevista de emprego — a primeira,
após meses tentando, até que chegou o momento da videoconferência. E
então, assim que o rosto do recrutador apareceu na tela, ele a informou de
que a empresa decidira contratar outra pessoa. Agora, ela está sentada diante
do computador, usando sua melhor camisa, para nada. Ela faz algumas
tentativas desanimadas de sondagem com outras empresas, e logo começa a
receber mensagens automáticas de rejeição. Depois de uma hora inteira
assim, Ana resolve que precisa se divertir um pouco e abre uma janela da
Next Dimension para jogar seu jogo predileto atual: Era de Iridium.
A cabeça de ponte na praia está lotada, mas o avatar dela usa a cobiçada
armadura de combate em madrepérola, e não demora muito alguns
jogadores a convidarem para se juntar à equipe. Eles cruzam a zona de
combate, passando por entre a fumaça dos carros em chamas, e durante uma
hora se empenham em exterminar os mantídeos entrincheirados em uma
casamata. É a missão ideal para o estado de espírito de Ana: fácil o bastante
para deixá-la con ante na vitória, mas desa adora o su ciente para lhe dar
alguma satisfação. Seus companheiros de equipe estão prontos para aceitar
outra missão quando uma janela de telefone se abre no canto do vídeo. É
uma chamada de voz da sua amiga Robyn, e Ana transfere o microfone para
a ligação.
— Oi, Robyn.
— Oi, Ana. Como estão as coisas?
— Vou dar uma dica: estou jogando EdI.
Robyn sorri.
— Teve uma manhã difícil?
— E como.
Ela relata como foi o cancelamento da entrevista.
— Bem, tenho uma notícia que pode lhe deixar mais animada. Pode
encontrar comigo na Data Earth?
— Claro. Só me dê um minuto para sair daqui.
— Vou estar em casa.
— Vejo você daqui a pouco.
Ana pede licença à equipe e fecha a janela da Next Dimension. Faz o
login na Data Earth e a janela dá um zoom imediato no último lugar em que
ela esteve, um festival de dança na face de uma imensa falésia. A Data Earth
tem os próprios continentes destinados a jogos — Elderthorn, Orbis Tertius
—, mas eles não fazem muito o tipo de Ana, de modo que ela dedica seu
tempo ali aos continentes sociais. Seu avatar ainda está usando o traje da
última visita — ela o troca por uma roupa mais convencional e abre um
portal que conduz ao endereço de Robyn. Basta dar um passo e ela está na
sala de visitas virtual de Robyn, um aeróstato residencial que utua sobre
uma cachoeira semicircular com um quilômetro e meio de diâmetro.
Os avatares delas se abraçam.
— Então, quais são as novidades? — pergunta Ana.
— Demos a partida na Blue Gamma — conta Robyn. — Entrou mais
uma rodada de nanciamento, e estamos contratando. Mostrei seu currículo
para o pessoal, e eles estão loucos para conhecer você.
— Eu? Por causa da minha vasta experiência?
Ana tinha acabado de concluir o curso de teste de so ware. Robyn foi
professora nas classes introdutórias, e foi assim que as duas se conheceram.
— Na verdade, é exatamente por isso. Foi seu último emprego que os
deixou bem interessados.
Ana passou seis anos trabalhando em um zoológico, e foi o fechamento
deste que a fez voltar a estudar.
— Sei que as coisas são meio doidas em uma empresa startup — diz ela
—, mas tenho certeza de que vocês não precisam de uma cuidadora de
animais de zoológico.
Robyn dá uma risada.
— Me deixa mostrar para você o que a gente está fazendo. Eles disseram
que posso lhe dar acesso para ver, sob um termo de sigilo.
Isso é importante. Até aquele ponto, Robyn não tinha autorização para
dar a ela nenhuma informação sobre a natureza do seu trabalho na Blue
Gamma. Ana assina o termo de sigilo e Robyn abre o portal.
— Temos uma ilha particular. Venha, vamos dar uma olhada.
Os dois avatares caminham para aquele espaço.
Ana tinha certa expectativa de ver uma paisagem deslumbrante assim
que a janela carregasse, mas, em vez disso, seu avatar surge em um local que,
à primeira vista, parece uma creche. Depois, ela pensa que lembra mais uma
cena de livro infantil, porque avista um pequeno lhote de tigre
antropomór co deslizando contas perfuradas ao longo dos arames de uma
grade, um panda examinando um carrinho de brinquedo e uma versão
cartunizada de um chimpanzé brincando com uma bola de espuma.
As palavras que surgem na tela identi cam todos eles como digientes,
organismos digitais que vivem em ambientes como a Data Earth, mas eles
não se parecem com nada que Ana já tenha visto. Eles não são aqueles
bichinhos de estimação idealizados que o mercado direciona para as pessoas
que são incapazes de se dedicar a um animal de verdade. Falta-lhes um
perfeccionismo de imagem, e seus movimentos são um pouco desajeitados.
Também não parecem com os habitantes de um dos biomas da Data Earth
— Ana já visitou o arquipélago de Pangeia, já viu o canguru unipedal e as
cobras bidirecionais que evoluíram nas diversas estufas. Estes digientes,
visivelmente, não são originários dali.
— É isso que a Blue Gamma faz? Digientes?
— Sim, mas não digientes convencionais. Veja só.
O avatar de Robyn vai até o chimpanzé que brinca com a bola e se agacha
diante dele.
— Oi, Pongo. Está fazendo o quê?
— Pongo binca bala — responde o digiente, e Ana leva um pequeno
susto.
— Brincando com a bola? Que legal. Posso brincar também?
— Não. Bala de Pongo.
— Por favor?
O chimpanzé olha em torno e, sem largar a bola, engatinha até um canto
cheio de blocos de madeira. Empurra um deles na direção de Robyn e diz:
— Robyn binca bóco.
Ele volta a sentar onde estava.
— Pongo binca bala.
— Tá legal, então. — Robyn caminha de volta para junto de Ana. — E aí,
o que achou?
— Impressionante. Não sabia que os digientes já estavam tão avançados.
— É tudo muito novo ainda. Nosso pessoal de desenvolvimento
contratou uns Ph.Ds. depois de assistir a uma conferência que eles zeram
no ano passado. Agora, produzimos uma ferramenta genômica que
chamamos de Neuroblast, que comporta mais desenvolvimento cognitivo do
que qualquer outra coisa existente. Essa rapaziada aqui — ela faz um gesto
indicando os habitantes da creche — são os mais espertos que produzimos
até agora.
— E vão vendê-los como bichinhos de estimação?
— A ideia é essa. Vamos mostrá-los como animais caseiros com quem
você pode conversar e ensinar uma porção de truques bacanas. Aqui na
empresa, a gente criou o slogan não o cial: “Toda a diversão dos macacos,
mas sem o cocô.”
Ana sorri.
— Estou começando a ver como minha experiência com animais pode
vir a ser útil.
— Sim. Nem sempre conseguimos fazer esses caras nos obedecerem. E
não sabemos em que medida isso se deve aos genes ou se é apenas porque
não estamos usando a técnica certa.
Ela observa o digiente em forma de panda pegar o carrinho de brinquedo
com uma das patas e examiná-lo por baixo; com a outra, ele bate devagar
nas rodinhas.
— Cada digiente desses começa em qual estágio de conhecimento?
— Praticamente do zero. Vou lhe mostrar.
Robyn ativa um monitor de vídeo em uma parede da creche, que mostra
a gravação de um salão pintado em cores primárias, com um grupo de
digientes no chão. O aspecto físico deles não é diferente do aspecto dos que
estão agora na creche, mas seus movimentos são aleatórios, espasmódicos.
— Esses foram instanciados recentemente. Precisam de um tempo
subjetivo de alguns meses para aprender o básico: como interpretar
estímulos visuais, como mover os membros, como os objetos sólidos se
comportam. Nós os produzimos dentro de uma estufa durante essa fase, e
assim o processo demora apenas uma semana. Quando são considerados
prontos para aprender linguagem e interação social, retardamos sua
aceleração para o tempo normal. É aí que você entraria.
O panda empurra o carrinho de brinquedo para a frente e para trás,
várias vezes, e então solta uma espécie de bramido, mo mo mo. Ana percebe
que o digiente está rindo.
Robyn continua:
— Sei que você estudou comunicação com primatas. Aqui vai ter uma
chance de botar isso em prática. O que me diz? Tem interesse?
Ana hesita. Não era isso que tinha imaginado para si mesma quando
entrou na faculdade e, por um momento, se pergunta como tinha chegado
ali. Quando era garota, sonhava em seguir Fossey e Goodall até a África. No
entanto, ao terminar a graduação, o número de gorilas sobreviventes era tão
escasso que sua melhor opção foi trabalhar no zoológico. E agora estava
encarando uma proposta para trabalhar com animais domésticos virtuais.
Ao longo da sua carreira, via-se uma diminuição da presença do mundo
natural, cada vez mais tênue.
Ah, sai dessa, diz a si mesma. Talvez não fosse o que tivesse em mente,
mas é um emprego na área de so ware, um dos motivos para voltar a
estudar. E treinar macacos virtuais podia ser mais divertido do que car
rodando baterias de testes, de modo que, se a Blue Gamma estivesse
oferecendo um salário decente, por que não?
• • •

O nome dele é Derek Brooks, e ele não está muito satisfeito com a tarefa que
recebeu. Derek desenha os avatares para os digientes da Blue Gamma, um
trabalho que em geral o deixa satisfeito, mas ontem os gerentes de produção
lhe pediram algo que ele considerou uma má ideia. Tentou dizer isso a eles,
mas a decisão não é de Derek, de modo que agora precisa descobrir uma
maneira decente de fazer o que lhe pediram.
Derek estudou para ser animador, assim, em certo sentido, a criação de
seres digitais lhe cabe bem. Em outros aspectos, contudo, seu trabalho é bem
diferente do de um animador convencional. Normalmente, ele criaria o
andar e os gestos de um personagem, mas com digientes esses traços são
propriedades que emergem do próprio genoma. O que ele tem que fazer é
criar um corpo que manifeste os gestos do digiente de uma forma que possa
ser compreendida pelas pessoas. É por causa dessas diferenças que muitos
animadores, inclusive sua esposa, Wendy, não trabalham com formas de
vida digitais, mas Derek adora. Ele acha que ajudar uma nova forma de vida
a se exprimir é a função mais extasiante que um animador pode exercer.
Concorda totalmente com a loso a da Blue Gamma para o design de
inteligências arti ciais: a experiência é a melhor professora, de modo que,
em vez de programar a I.A. com o que se deseja que ela saiba, é melhor fazer
com que elas sejam capazes de aprender, vender os digientes que podem
fazer isso e deixar que os donos lhes ensinem. Para que o público adquira
motivação quanto a isso, os digientes têm de ser atrativos: a personalidade
deve ser encantadora, algo em que os desenvolvedores estão trabalhando
bastante, e os respectivos avatares precisam ser uma gracinha, e é aí que
Derek entra. Mas ele não pode apenas dar aos digientes olhos imensos e
narizinhos curtos. Se parecerem com desenhos animados, ninguém vai levá-
los a sério. Por outro lado, se carem parecidos demais com um animal
verdadeiro, as expressões faciais, unidas à capacidade de falar, podem ser
um pouco incômodas. É uma manobra que exige um equilíbrio delicado, e
ele passa horas e horas examinando imagens de animaizinhos, e, por m,
acabou produzindo rostos híbridos que são simpáticos, mas sem exageros.
Sua missão atual é um pouco diferente. Não satisfeitos com gatos,
cachorros, macacos e pandas, os produtores decidiram que deveria haver
outro tipo de avatar, algo diferente de lhotes de animais. E sugeriram
robôs.
Essa ideia não faz o menor sentido para Derek. Toda a estratégia da Blue
Gamma repousa na a nidade que os seres humanos têm com os animais. Os
digientes aprendem através de reforço positivo, como os animais, e suas
recompensas vão desde receber um cafuné até porções de comidinhas
virtuais. Isso faz sentido com um avatar animal, mas com um robô parece
uma coisa cômica, forçada. Se estivessem vendendo brinquedos físicos, os
robôs teriam a vantagem de serem mais baratos para fabricar do que
animais de aspecto convincente, mas, no reino virtual, os custos de
produção são os mesmos, e faces de animais são muito mais expressivas.
Oferecer avatares robóticos parece colocar uma imitação misturada aos
produtos de verdade na prateleira da loja.
O uxo de seu pensamento é interrompido por uma batida na porta, que
está aberta: é Ana, a mais nova integrante da equipe de testes.
— Oi, Derek. Você devia dar uma olhada no vídeo da sessão de
treinamento de hoje de manhã. Foi bem engraçada.
— Obrigado. Vou olhar, sim.
Ela vai se afastando, mas para e volta.
— Parece que você está tendo um dia difícil.
Derek acha que contratar alguém que já trabalhou em um zoológico foi
uma boa ideia. Não apenas ela conseguiu planejar um sistema de treinos
para os digientes, como também deu uma ótima sugestão de como melhorar
a alimentação deles.
Outras empresas que vendem digientes oferecem uma variedade limitada
de porções de comida, mas Ana sugeriu que a Blue Gamma abrisse
radicalmente o leque de opções de alimentos. Ela lembrou que uma dieta
variada deixa os animais do zoológico mais satisfeitos e torna a hora do
almoço mais divertida para o público. A produção concordou, e as equipes
de desenvolvimento editaram o mapa básico de recompensas dos digientes,
de modo a conseguir reconhecer uma grande diversidade de comidas
virtuais. Eles não eram capazes de simular de verdade os compostos
químicos — a simulação física da Data Earth ainda não era tão avançada —,
mas inseriram parâmetros para classi car os sabores e as texturas do
alimento, e projetavam para o so ware de alimentação uma interface que
permitia aos usuários prepararem suas próprias receitas. Isso se tornou um
grande sucesso: cada digiente tinha sua comida predileta, e os testadores
beta relataram que gostavam muito de atender às preferências dos seres
digitais.
— A produção decidiu que avatares de animais não bastam — diz Derek.
— Querem avatares de robôs também. Acredita nisso?
— Parece uma boa ideia — responde Ana.
Ele ca surpreso.
— Você acha? Eu seria capaz de jurar que os preferia como animais.
— Todo mundo aqui pensa nos digientes como animais — disse ela. — A
questão é que os digientes não se comportam como qualquer animal que
exista de verdade. Eles têm essa qualidade não animal em si, então parece
que estamos vestindo uma porção de roupas de circo neles quando tentamos
torná-los parecidos com macacos ou pandas.
Ele ca um pouco magoado ao ouvir seu trabalho, feito com tanto
cuidado, ser comparado a trajes circenses. O rosto dele deve mostrar isso,
porque ela logo diz:
— Não que uma pessoa comum vá perceber. É só porque passei muito
mais tempo com os animais do que uma pessoa comum.
— Está certo. É bom ouvir uma perspectiva diferente.
— Desculpe. Os avatares são ótimos, juro. O lhote de tigre, então, é o
melhor.
— Está tudo bem. Sério.
Ela acena um pedido de desculpas e sai pelo corredor, enquanto Derek
ca pensando no que Ana falou.
Talvez ele esteja mesmo tão envolvido com os avatares animais que
começou a ver nos digientes um tipo de ser que eles, na verdade, não são.
Ana está certa, é claro, em mostrar que os digientes não são mais animais do
que robôs, e quem poderá dizer que uma das analogias é mais precisa do
que a outra? Se, ao fazer seu trabalho, ele partir da premissa de que um
avatar robô é, para essa nova forma de vida, um modo tão legítimo de se
expressar quanto o de um avatar animal, talvez assim consiga criar um
avatar que o deixe satisfeito.
• • •

Um ano depois, e a Blue Gamma está a poucos dias de lançar seu produto
no mercado. Ana está trabalhando no cubículo dela, na mesma ala de Robyn
— as duas trabalham de costas uma para a outra —, mas, neste instante, os
dois monitores mostram a Data Earth, onde seus avatares estão parados lado
a lado. Perto dali, uma dúzia de digientes corre pelo playground,
perseguindo uns aos outros ao longo de uma pontezinha ou por baixo dela,
subindo um curto lance de escada e deslizando rampa abaixo. Esses
digientes são os que estão prontos para o lançamento. Dentro de alguns dias,
eles — ou réplicas bastante próximas — estarão disponíveis para serem
adquiridos pelo público do mundo real e da Data Earth.
Em vez de ensinar aos digientes novos comportamentos nesses últimos
dias do prazo, Ana e Robyn estão encarregadas, em teoria, de fazer com que
eles quem praticando o que já aprenderam. Elas estão bem no meio de uma
sessão quando Mahesh, um dos fundadores da Blue Gamma, passa pelos
seus cubículos. Ele para e dá uma espiada.
— Não se incomodem comigo. Continuem o que estão fazendo. Qual é a
habilidade de hoje?
— Identi cação de formas — diz Robyn. Ela instancia uma porção de
blocos coloridos no chão, diante do seu avatar, e diz a um dos digientes: —
Vem cá, Lolly.
Um lhote de leão se aproxima, com passos inseguros.
Enquanto isso, Ana chama Jax, cujo avatar é um robô neovitoriano feito
de cobre reluzente. Derek fez um belo trabalho ao criá-lo, desde as
proporções dos membros até o formato do rosto. Ana acha Jax adorável. Ela
também instancia um grupo de blocos coloridos com formas diferentes e
chama a atenção de Jax para eles.
— Está vendo os blocos, Jax? De que forma é o bloco azul?
— Triango — diz Jax.
— Muito bem. De que forma é o bloco vermelho?
— Cadado.
— Muito bem. De que forma é o bloco verde?
— Ciclo.
— Muito bem, Jax. — Ana lhe dá uma bolinha de comida, que ele devora
com entusiasmo.
— Jax sabido — diz Jax.
— Lolly sabida também — comenta Lolly.
Ana sorri e acaricia a cabeça dos dois.
— Sim, vocês dois são muito sabidos.
— Os dois sabidos — conclui Jax.
— É isso que eu gosto de ver — diz Mahesh.
Os candidatos a lançamento representam o resultado nal de um sem-
número de testes, a nata da produção em termos de aprendizado. Em parte
foi uma busca por inteligência, mas foi também uma busca por certo
temperamento, por uma personalidade que não vai deixar os futuros
compradores frustrados. Um elemento importante nisso é a capacidade de
brincar com os outros digientes. A equipe de desenvolvimento tentou
reduzir o comportamento hierárquico entre eles — a Blue Gamma não quer
vender um animal de estimação sobre o qual os clientes precisem rea rmar
sua autoridade a toda hora —, mas isso não quer dizer que não surjam
situações de competição aqui e ali. Os digientes adoram atenção, e se um
deles nota que Ana está elogiando outro, tenta ser incluído nessa ação. Na
maior parte do tempo não há problemas, mas sempre que um digiente se
mostrou particularmente ressentido em relação aos seus iguais ou a Ana, ela
o assinala, e seu genoma especí co será excluído da próxima geração. O
processo parece um pouco com a produção de cães de raça, mas, na
verdade, se assemelha mais a uma imensa cozinha experimental, onde
bandejas e mais bandejas de biscoitos são assados no forno e depois têm sua
textura e seu sabor testados, em busca da receita ideal.
Os exemplos atuais dos candidatos ao lançamento serão mantidos como
mascotes e cópias deles serão colocadas à venda, mas a expectativa é de que
a maior parte das pessoas vai querer comprar digientes mais jovens, ainda
em estágio pré-linguístico. Ensinar um digiente a falar é metade da diversão
— as mascotes servem mais como exemplos do tipo de resultado que se
pode esperar. A venda de digientes pré-linguísticos também permite que
eles sejam comercializados em países que não falam inglês, mesmo com a
Blue Gamma dispondo apenas de pessoal capaz de treinar as mascotes nessa
língua.
Ana manda Jax de volta para o parquinho e chama um digiente panda
chamado Marco. Ela está a ponto de testá-lo para reconhecimento de formas
quando Mahesh indica um canto da sua tela.
— Ei, veja só isso.
Dois digientes estão na colina próxima ao parquinho, rolando encosta
abaixo.
— Que legal — diz ela. — Nunca vi eles fazerem isso antes.
Ela conduz seu avatar até a colina, enquanto Jax e Marco a acompanham
e se juntam aos outros digientes. Na primeira tentativa de Jax, ele para de
rolar quase de imediato, mas, depois de praticar um pouco, consegue rolar
até o sopé da colina. Faz isso algumas vezes e depois corre para Ana.
— Ana viu? — pergunta Jax. — Jax desceu deitado!
— Sim, eu vi! Você rolou ladeira abaixo!
— Rolô ladêra baxo!
— Foi ótimo! — E ela acaricia a cabeça dele outra vez.
Jax corre de volta e recomeça a descer pela encosta. Lolly também adere
com entusiasmo à nova atividade. Assim que ela chega ao sopé da colina,
continua rolando pelo chão até bater em uma das pontes do parquinho.
— Eh, eh, eh — diz Lolly. — Merda.
De repente, todas as atenções se voltam para a digiente.
— Onde foi que ela aprendeu isso? — pergunta Mahesh.
Ana muta o microfone e faz seu avatar ir até Lolly para confortá-la.
— Não sei — responde. — Deve ter escutado por aí.
— Bem, não podemos botar no mercado um digiente que diz “merda”.
— Estou checando isso — diz Robyn.
Em uma janela separada do monitor, ela puxa os arquivos das sessões de
treinamento e faz uma busca nas faixas de áudio.
— Parece que é a primeira vez que um dos digientes diz isso. Quanto a
algum de nós ter dito, vamos ver…
Os três observam enquanto os resultados da busca se acumulam na
janela. Ao que parece, o culpado é Stefan, um dos treinadores do escritório
australiano da Blue Gamma. A empresa mantém equipes trabalhando na
Austrália e na Inglaterra, para treinar os digientes quando os escritórios da
Costa Oeste estão fechados. Os digientes não precisam dormir — ou, para
ser mais preciso, o processo de integração que é o equivalente deles a sono
pode ser rodado em alta velocidade — e, dessa forma, podem ser treinados
em ciclos contínuos de 24 horas.
Eles exibem todos os trechos de vídeo em que Stefan diz a palavra
“merda” durante as sessões de treinamento. O desabafo mais forte é o de três
dias atrás. É difícil ter certeza observando seu avatar na Data Earth, mas, ao
que parece, ele bateu com o joelho na quina de uma mesa. Há outros
exemplos de semanas atrás, mas nenhum tão alto e demorado.
— O que quer que a gente faça? — pergunta Robyn.
Há uma solução bastante clara. Eles não podem, tão perto da data de
lançamento, repetir semanas inteiras de treinamento. Será que devem se
arriscar e presumir que as exclamações anteriores não causaram impressão
nos digientes? Mahesh pensa durante algum tempo e decide.
— Muito bem. Vamos voltar tudo até três dias atrás e recomeçar desse
ponto.
— Todos eles? — indaga Ana. — Ou só Lolly?
— Não podemos arriscar. Vamos todos voltar. E quero uma marcação de
alerta acompanhando as sessões de treinamento de agora em diante. Na
próxima vez que alguém falar um palavrão, retroagimos tudo até o ponto de
recuperação mais recente.
E, assim, os digientes perdem três dias de experiência. Inclusive a
primeira vez em que rolaram ladeira abaixo.
2

OS DIGIENTES DA BLUE GAMMA são um grande sucesso. Durante o primeiro


ano de lançamento, são adquiridos por cem mil usuários e, mais importante,
mantidos em atividade. A Blue Gamma está apostando no tradicional
esquema de comercializar aparelhos de barbear para lucrar de verdade
vendendo as lâminas. Como o dinheiro vindo da venda dos digientes não
seria su ciente para cobrir os custos de produção, a empresa cobra dos
usuários cada vez que eles fabricam “comida” para os digientes, e isso
possibilita um uxo de caixa constante enquanto os digientes forem capazes
de distrair o público. E, até o momento, os usuários os acham extremamente
divertidos, mantendo-os ligados o dia inteiro. O mais comum é que os
clientes rodem os processos de integração mais devagar, de modo que os
digientes dormem a noite inteira, mas alguns os rodam em alta velocidade,
mantendo os digientes despertos a maior parte do tempo. Eles
compartilham seus digientes com pessoas que residem em outros fusos
horários, fazendo com que eles amadureçam mais depressa. Dezenas de
parquinhos e creches para digientes aparecem nos continentes sociais da
Data Earth, e o calendário de eventos públicos ca repleto de encontros de
grandes grupos, sessões de treinamento e concursos de talentos. Alguns
proprietários até trazem seus digientes para as áreas onde se disputam
corridas e permitem que pilotem seus veículos. O mundo virtual serve de
aldeia global para a criação dos digientes, um tecido social no qual se borda
um novo tipo de animal de estimação.
Metade dos digientes comercializados pela Blue Gamma são espécimes
únicos, portadores de um genoma gerado de forma aleatória, mas
mantendo-se dentro dos parâmetros escolhidos durante o processo de
criação. A outra metade é de cópias das mascotes, mas a empresa se esforça
para lembrar seus clientes de que cada cópia vai se desenvolver de maneira
distinta, de acordo com o ambiente. Como exemplo, as equipes de vendas da
Gamma Blue recorrem a Marco e Polo, duas das mascotes da empresa.
Ambos são produtos do mesmo genoma e ambos têm avatares na imagem
de pandas, mas suas personalidades são muito diversas. Marco já tinha dois
anos quando Polo foi instanciado, e Polo se apegou a ele como a um irmão
mais velho — os dois agora são inseparáveis, mas Marco é expansivo
enquanto Polo é cauteloso, e ninguém espera que Polo se transforme em um
segundo Marco com o passar do tempo.
As mascotes da Blue Gamma são os digientes mais antigos em
funcionamento do Neuroblast, e os administradores esperavam que elas
fornecessem às equipes de testes uma forma de observar amostras de seus
comportamentos antes dos clientes. Na prática, não funcionou assim, não há
como prever como digientes criados em mil ambientes diferentes se sairão.
Cada proprietário está, de modo muito concreto, explorando território
novo, e eles buscam ajuda uns com os outros. Fóruns on-line começam a
aparecer por toda parte, repletos de pequenos episódios e discussões, de
conselhos dados e recebidos.
A Blue Gamma tem um funcionário que serve de ligação com os clientes
cujo trabalho consiste em ler o material dos fóruns, mas Derek, às vezes,
percorre-os por conta própria, após o trabalho. De vez em quando, os
clientes falam sobre as expressões faciais dos digientes, mas, mesmo quando
não o fazem, Derek gosta de ler as anedotas compartilhadas ali.

De: Zoe Armstrong


Vocês não vão acreditar no que a minha Natasha fez hoje! Estávamos no
parquinho e outro digiente se machucou após uma queda e estava chorando.
Natasha o abraçou para confortá-lo, e eu a elogiei sem parar. Um segundo depois,
ela empurra outro digiente de propósito, e, quando ele começa a chorar, ela o
abraça para confortá-lo e fica olhando para mim à espera de elogios!

O próximo post que ele lê chama sua atenção.

De: Andrew Nguyen


Alguns digientes podem ser menos inteligentes do que os outros? O meu não
responde as minhas ordens da mesma forma que tenho visto outros fazerem.

Derek examina o per l público do cliente e vê que o avatar é uma chuva


incessante de moedas de ouro. As moedas se chocam de tal modo que suas
trajetórias sugerem a imagem abstrata de um ser humano. É uma formidável
obra de animação, mas Derek acha que o usuário não leu as recomendações
da Blue Gamma sobre a criação de digientes. Ele posta um comentário:

De: Derek Brooks


Quando você brinca com seu digiente, usa o mesmo avatar que está no seu
perfil? Se sim, um dos problemas é o fato de o avatar não ter rosto. Coloque a
câmera de modo que ela capte suas expressões faciais e use um avatar capaz de
reproduzi-las. Você vai obter respostas bem melhores do seu digiente.

Ele continua a ler aqui e ali. Um minuto depois, vê outra questão que lhe
parece interessante.

De: Natalie Vance


Minha digiente, Coco, é um modelo Lolly com um ano e meio de idade. Nos
últimos tempos, ela vem se comportando muito mal. Nunca faz o que eu mando, e
isso está me deixando maluca. Poucas semanas atrás, ela era um doce, então tentei
levá-la de volta a um ponto de recuperação, mas isso nunca dura muito tempo. Já
fiz esse procedimento duas vezes, e ela sempre acaba voltando à atitude maldosa.
(Se bem que, da segunda vez, demorou um pouco mais.) Alguém aí já teve uma
experiência parecida? Fico interessada se você tiver uma Lolly. Até que ponto seria
preciso retroagir para eliminar esse problema?

Havia várias respostas em que as pessoas sugeriam diferentes maneiras de


tentar identi car o detalhe responsável pela mudança de comportamento de
Coco e, então, evitá-lo. Derek está prestes a postar a própria resposta,
dizendo que um digiente não é como um videogame, que você joga até
conseguir a pontuação ideal, mas, nesse momento, vê uma resposta de Ana.

De: Ana Alvarado


Consigo entender sua reclamação, porque a mesma coisa já aconteceu comigo.
Não é algo específico das Lollys, é uma coisa pela qual todos os digientes passam.
Você pode tentar continuar contornando episódios assim, mas desconfio de que
eles são inevitáveis, e você vai desperdiçar meses em um digiente que não vai
crescer. A alternativa é enfrentar o período difícil e ter um digiente mais maduro
quando vocês superarem isso.

Ele se sente reconfortado ao ler a resposta de Ana. O hábito de tratar


seres conscientes como se fossem meros brinquedos ainda é muito
arraigado, e não acontece só com as criaturinhas de estimação. Certa vez,
Derek compareceu a uma festa na casa do seu cunhado, onde havia um casal
acompanhado de um clone com oito anos. Ficava com pena toda vez que
olhava para o garoto. O menino era uma mistura ambulante de neuroses, o
resultado de um crescimento em que era visto apenas como um monumento
ao narcisismo do pai. Até um digiente merecia mais respeito.
Ele envia a Ana uma mensagem privada, agradecendo-lhe pelo post.
Nesse momento, percebe que o cliente com avatar sem rosto acaba de
responder a sua sugestão.
De: Andrew Nguyen
Ah, que se dane. Paguei uma grana por esse avatar, e o comprei especificamente
para usá-lo quando estou nos continentes sociais. Não vou deixar de usá-lo por
causa de um digiente.

Derek suspira. Não deve haver a menor chance de fazer esse indivíduo
mudar de ideia. O mais provável, porém, é que ele apenas ponha o digiente
em suspensão, em vez de continuar a criá-lo da maneira errada. A Blue
Gamma tem feito o possível para minimizar os abusos. Todos os digientes
do Neuroblast são equipados com disjuntores acionados pela dor, o que os
deixa imunes a torturas e, portanto, desinteressantes para os sádicos.
Contudo, não há como proteger digientes de coisas como a mera
negligência.
• • •

Durante o ano seguinte, outras empresas começam a divulgar as próprias


ferramentas genômicas capazes de serem treinadas por meio da linguagem.
Nenhuma delas se compara à popularidade do Neuroblast na plataforma
Data Earth, embora a situação seja diferente em outras plataformas. Na Next
Dimension, a ferramenta Origami é dominante; em Anywhere, é uma
ferramenta chamada Fabergé. Felizmente, a Blue Gamma inspirou as demais
empresas a oferecer produtos complementares, além de competitivos.
Hoje, metade dos empregados da companhia está reunida na área de
recepção: gerentes, desenvolvedores, testadores, designers. Estão ali para
receber a entrega de uma encomenda bastante esperada que acabou de
chegar: uma caixa do tamanho de uma mala grande, deixada diante da mesa
de recepção.
— Podem abrir — diz Mahesh.
Ana e Robyn puxam as linguetas da caixa de papelão e a abrem em oito
blocos de espuma de celulose. Dentro desse sarcófago sob medida, está um
robô recém-chegado da fábrica. Ele tem forma humanoide, mas é pequeno,
com menos de um metro de altura, para manter baixa a inércia dos seus
membros e lhe permitir uma agilidade moderada. Sua pele é negra e luzidia
e a cabeça é grande, de forma desproporcional, tendo a maior parte da
superfície ocupada por uma tela que dá a volta completa em torno.
O robô vem de SaruMech Toys. Várias companhias ofereceram seus
serviços visando aos proprietários de digientes, mas a SaruMech é a
primeira a fornecer um produto de hardware em vez de so ware. Eles
acabam de enviar um exemplar do produto para a Blue Gamma, esperando a
aprovação.
— Qual das mascotes tem a pontuação mais alta? — pergunta Mahesh.
Ele está se referindo aos testes de agilidade.
Na semana anterior, todos os digientes receberam avatares para teste cuja
distribuição de peso e amplitude de movimentos correspondiam aos do
corpo do robô. Todos os dias, eles passavam algumas horas usando esses
avatares, acostumando-se aos movimentos. Ontem, Ana atribuiu uma
pontuação aos digientes de acordo com sua habilidade em se deitar de costas
e depois car de pé, subir e descer escadas, equilibrar-se em uma perna e
depois na outra. Era como aplicar testes de sobriedade a um grupo de bebês.
— Foi o Jax — diz Ana.
— Muito bem, prepare-o.
A recepcionista cede sua escrivaninha a Ana, que se loga no Data Earth e
chama Jax. Ele teve sorte porque o avatar de testes não era tão diferente do
seu próprio avatar — é um tanto corpulento, mas os membros e o torso são
proporcionais. Os digientes que cresceram usando avatares de panda ou de
lhotes de tigre acabaram tendo mais di culdade.
Robyn examina o painel de diagnóstico no robô.
— Parece que estamos prontos.
Ana abre um portal no ginásio que aparece na tela e faz um gesto para
Jax.
— Ok, Jax, pode passar.
Na tela, Jax caminha e cruza o portal, e, na área de recepção, o pequeno
robô ganha vida. Sua cabeça se ilumina revelando o rosto de Jax, o que
transforma a cabeça antes enorme em uma espécie de capacete
arredondado. Este design é um modo de manter a semelhança com o avatar
original do digiente sem ter que produzir corpos personalizados. Jax parece
um robô policial vestido com uma armadura de obsidiana.
Ele gira o rosto, observando todo o salão.
— Uau. Voz diferente. Uau uau uau.
— Está tudo bem, Jax — diz Ana. — Lembra que falei que sua voz podia
car diferente no mundo aqui de fora?
O folheto de informação da SaruMech trazia essa advertência. Uma
estrutura de plástico e metal conduz o som de uma maneira diferente da dos
avatares na Data Earth.
Jax ergue o rosto para encarar Ana, e ela ca maravilhada com seu
aspecto. Ela sabe que o digiente não está mesmo naquele corpo — o código
de Jax continua rodando na rede, e o robô é apenas um periférico mais
so sticado —, mas a ilusão é perfeita. E, mesmo depois de toda a interação
que tiveram na Data Earth, é emocionante vê-lo parado diante dela,
encarando-a nos olhos.
— Oi, Jax — diz ela. — Sou eu, Ana.
— Você usa avatar diferente — diz ele.
— No mundo daqui de fora, chamamos isso de “corpo”, não de “avatar”. E
as pessoas não trocam de corpo aqui. Só podemos fazer isso na Data Earth.
Aqui, usamos sempre o mesmo corpo.
Jax faz uma pausa para pensar no assunto.
— Você sempre assim?
— Bem, posso usar roupas diferentes. Mas, sim, é assim que sou.
Jax se aproxima para olhar mais de perto, e Ana se agacha, colocando-se
de cócoras, de modo a car quase da mesma altura que ele. Jax olha para as
mãos dela, depois para os antebraços; ela está usando uma camisa de
mangas curtas. Ele aproxima mais a cabeça, e Ana pode ouvir a vibração das
engrenagens que mudam o foco dos seus olhos-câmeras.
— Cabelinhos nos braços — diz ele.
Ela ri: seu avatar tem os braços lisos como os de um bebê.
— Sim, é verdade.
Jax ergue a mão e estende o polegar e o indicador para segurar um no
feixe dos cabelos dela. Faz uma ou duas tentativas, mas, tal como as garras
de algumas máquinas de venda automáticas, os dedos insistem em
escorregar. Ele belisca a pele de Ana e, então, recua.
— Ai, Jax, isso dói.
— Desculpa. — Ele examina o rosto de Ana. — Buraquinhos no rosto
todo.
Ana percebe quanto as pessoas no salão estão se divertindo.
— São chamados de “poros” — diz ela, pondo-se de pé. — Podemos falar
da minha pele depois. Agora, por que não dá uma volta pelo salão?
Jax se vira e caminha devagar, parecendo um astronauta em miniatura
explorando um mundo alienígena. Percebe a janela aberta que dá para o
estacionamento e vai naquela direção.
A luz da tarde entra oblíqua pelas vidraças. Jax caminha para dentro de
um feixe de luz do sol, mas recua de repente.
— Que isso?
— É o sol. Que nem na Data Earth.
Jax avança de novo para dentro da luz, cheio de cuidado.
— Igual não. Esse sol brilha brilha brilha.
— É verdade.
— Sol não precisa brilho brilho brilho.
Ana ri.
— Acho que tem razão.
Jax caminha de volta até ela e começa a examinar o tecido das calças
compridas que Ana está usando. Cautelosamente, a mulher acaricia a nuca
dele. Os sensores táteis do corpo do robô estão funcionando, porque Jax
inclina a cabeça para trás, pressionando-a ao encontro de seus dedos. Ela
pode sentir o peso, a resistência dinâmica dos atuadores. Então, Jax dá um
abraço em suas coxas.
— Posso car com ele? — pergunta ela aos outros. — Ele me seguiu até
em casa.
Todo mundo ri.
— Você fala isso agora — diz Mahesh —, mas espere até ele en ar suas
toalhas de rosto na privada.
— Eu sei, eu sei — responde Ana.
A Blue Gamma teve inúmeras razões para visar ao mercado virtual em
vez do real — baixo custo, facilidade na socialização —, mas uma delas foi o
risco de danos à propriedade: não queriam comercializar uma criatura de
estimação capaz de depredar as venezianas ou fazer castelos de maionese em
cima do tapete.
— Só acho legal ver Jax dessa forma — diz Ana.
— Você tem razão, é legal mesmo. Mas, para o bem da SaruMech, espero
que a experiência se saia bem no vídeo.
A intenção da SaruMech não é vender corpos de robôs, mas alugá-los por
períodos de algumas horas. Os digientes vão receber os corpos em uma
instalação próxima de Osaka e serão levados a um passeio para conhecer o
mundo real, enquanto seus proprietários acompanham tudo através de
câmeras montadas em pequenos zepelins. Ana sente uma vontade súbita de
ir trabalhar na SaruMech. Ver Jax daquela maneira lhe traz à mente quanto
sente falta do lado físico de lidar com animais e por que trabalhar com
digientes através de um monitor nunca será a mesma coisa.
Robyn pergunta a Mahesh:
— Você quer que todas as mascotes usem o robô durante algum tempo?
— Sim, mas só depois de terem passado no teste de agilidade. Se
quebrarmos esse protótipo, a SaruMech não vai nos ceder outro de graça.
Agora Jax está brincando com os tênis dela, puxando a ponta de um
cadarço. Não é sempre que Ana sente o desejo de ser rica, mas, nesse
instante, sentindo o cadarço retesado pelo puxão de Jax, é só isso que ela
quer. Porque, se pudesse, compraria um desses robôs em um piscar de olhos.
• • •

Os funcionários se revezam na tarefa de mostrar o mundo real às mascotes.


Em geral, Derek faz isso com Marco ou Polo. Sua primeira ideia é levá-los
para o lado de fora, dar uma volta no conjunto de prédios que compõem a
sede da Blue Gamma e mostrar-lhes as faixas de grama e os arbustos que
dividem a área de estacionamento. Ele aponta para o robô com aspecto de
caranguejo que cuida da relva, resultado de uma tentativa anterior de trazer
digientes para o mundo real. O robô possui uma espátula em forma de
estilete que usa para arrancar as ervas do chão, e seu trabalho é guiado
apenas pelo instinto. Ele é descendente de gerações inteiras de vencedores de
uma competição evolucionária de jardinagem promovida nas estufas da
Data Earth. Derek está curioso para saber como as mascotes vão reagir ao
ouvir a história do robô-jardineiro, imaginando se elas vão se identi car
com outro ser da Data Earth, mas as mascotes não demonstram o menor
interesse.
Em vez disso, as mascotes cam fascinadas pelas texturas. As superfícies
na Data Earth têm muitos detalhes visuais, mas não tantas qualidades táteis
além do coe ciente de fricção. Pouquíssimos usuários usam controles que
transmitem o tato, de modo que os fabricantes nem se dão ao trabalho de
implementar texturas nas superfícies. Agora que os digientes conseguem
experimentar as superfícies do mundo real, veem novidade nas coisas mais
simples. Quando Marco regressa de seus passeios no corpo do robô, não
consegue parar de falar a respeito dos tapetes e do forro da mobília. Quando
Polo está usando o corpo mecânico, ele passa o tempo todo sentindo a
textura das placas antiderrapantes nas escadarias do edifício. Ninguém ca
surpreso ao ouvir que os primeiros componentes robóticos que precisam ser
substituídos são as placas sensitivas dos dedos.
A próxima coisa que Marco percebe é quanto a boca de Derek é diferente
da dele. A boca dos digientes tem apenas uma semelhança super cial com a
boca humana: embora os lábios se movam quando eles falam, os geradores
de fala não têm base física. Marco quer aprender mais sobre a mecânica da
fala e ca o tempo todo pedindo para colocar os dedos na boca de Derek
quando ele está falando. Polo ca espantado ao descobrir que a comida
passa através da garganta de Derek quando ele engole, em vez de
simplesmente desaparecer, como acontece com a comida do mundo virtual.
Derek receava que os digientes pudessem se sentir perturbados ao descobrir
os limites de sua sicalidade, mas eles apenas acham tudo divertido.
Um resultado positivo e inesperado da presença dos digientes no corpo
do robô é que isso proporciona uma visão mais próxima do rosto deles de
quando observados na Data Earth. Assim, ca mais fácil apreciar o trabalho
feito por Derek na criação das expressões faciais. Certo dia, Ana chega à baia
dele e diz, entusiasmada:
— Você é incrível!
— Hã… obrigado?
— Acabei de ver Marco fazer as expressões mais engraçadas. Você precisa
vê-las. Posso?
Ela faz um gesto indicando o teclado dele, e Derek rola a cadeira para
trás, a m de que ela possa usá-lo. Ela abre duas telas no monitor: uma
reproduz o que foi gravado pela câmera do corpo do robô, mostrando o
ponto de vista do digiente, enquanto a outra exibe as imagens do rosto que a
tela do capacete exibia. A julgar pelas imagens da primeira tela, Ana e o robô
estavam passeando pelo estacionamento de novo.
— Ele foi em um dos passeios ao parque organizados pela SaruMech na
semana passada — explica Ana —, e é claro que adorou, então agora ca
entediado com o estacionamento.
Na tela, Marco diz:
Quer parque quer passeio.
Você pode se divertir aqui também. Na tela, Ana faz um gesto, pedindo
que Marco a acompanhe.
A imagem balança de um lado para outro quando Marco sacode a
cabeça.
Não igual. Parque divertido. Eu mostro.
Não podemos ir para aquele parque agora. Fica longe, teríamos que viajar
muito tempo para chegar lá.
Só abrir portal.
Sinto muito, Marco, não posso abrir portais no mundo de fora.
— Observe o rosto dele agora — diz Ana.
Tenta. Tenta muito por favor. O rosto de panda de Marco assume uma
expressão de súplica. Derek nunca a tinha visto antes e explode em uma
gargalhada.
Ana ri também, e diz:
— Continue assistindo.
Na tela, Ana fala:
Não importa quanto eu tentar, Marco. O mundo de fora não tem portais.
Só a Data Earth tem portais.
Então vamos Data Earth, abrir portal lá.
Isso funcionaria para você, se tiver um corpo para usar lá, mas eu não
posso usar um corpo diferente. Teria que levar este, e isso levaria um bom
tempo.
Marco pensa sobre isso, e Derek se deleita ao ver que o rosto do digiente
revela a incredulidade que está sentindo.
Mundo de fora idiota, anuncia Marco.
Derek e Ana explodem de novo em uma gargalhada. Ela fecha as janelas
de vídeo e diz:
— Você fez um ótimo trabalho com isso.
— Obrigado. E obrigado por ter me mostrado: ganhei o dia.
— O prazer foi meu.
É bom saber que todo aquele trabalho que ele teve no início está
rendendo frutos, porque a maior parte das tarefas recentes de Derek não é
nem um pouco interessante. Os digientes Origami e Fabergé começaram a
surgir por toda parte em uma grande variedade de avatares, tais como
lhotes de dragão, grifos e outras criaturas mitológicas, de modo que a Blue
Gamma quer oferecer avatares semelhantes para os digientes do Neuroblast.
Os novos avatares são modi cações dos modelos já existentes, portanto não
requerem nada novo em termos de expressões faciais.
Na verdade, a nova tarefa de Derek é criar um avatar sem expressão facial
alguma. Um grupo de entusiastas da vida arti cial cou impressionado com
o potencial do genoma do Neuroblast e, em vez de esperar que uma
inteligência verdadeira se desenvolvesse por si mesma nos biomas,
encarregou a Blue Gamma de projetar uma espécie alienígena inteligente
para eles. Os desenvolvedores projetaram uma taxonomia de personalidade
que está a quilômetros de distância das variedades que a Blue Gamma põe
no mercado, e Derek está projetando um avatar com três pernas, um par de
tentáculos no lugar dos braços e uma cauda preênsil. Alguns desses
entusiastas querem um desenho corporal ainda mais estranho, assim como
um ambiente com uma física diferente da nossa, mas Derek os advertiu de
que eles também terão de usar avatares quando estiverem acompanhando o
crescimento daqueles digientes, e controlar tentáculos já é trabalho
su ciente.
Os entusiastas batizaram a nova espécie de Xenoterianos e criaram um
continente privado chamado Data Mars, onde pretendem criar uma cultura
alienígena a partir do zero. Derek tem curiosidade a respeito, mas ainda não
pôde fazer uma visita, porque a única linguagem permitida na presença dos
digientes é um dialeto personalizado da língua arti cial lojban. Ele ca
imaginando por quanto tempo os entusiastas vão conseguir manter o
projeto. Além das enormes barreiras que di cultam o acesso, o processo de
acompanhar o crescimento dos Xenoterianos não lhes oferecerá o mesmo
tipo de prazer que ele e Ana acabaram de sentir enquanto observavam
Marco. As recompensas vão ser de ordem puramente intelectual, e ele se
pergunta se, a longo prazo, isso será o bastante.
3

AO LONGO DO ANO SEGUINTE,os prognósticos para o futuro da Blue Gamma


mudam, passando de radiantes para decididamente sombrios. As vendas
para novos clientes diminuem, mas, pior que isso, os lucros advindos do
so ware fornecedor de alimentos caíram bastante: um número cada vez
maior de usuários está desativando os digientes.
O problema é que, à medida que os digientes do Neuroblast deixam a
infância para trás, eles cam muito exigentes. Ao criá-los, a Blue Gamma
tinha como objetivo dar-lhes uma combinação de esperteza e obediência,
mas, com a imprevisibilidade inerente a qualquer genoma, mesmo digital, o
fato é que os desenvolvedores erraram o alvo. Assim, como em um jogo
difícil demais, o equilíbrio entre desa o e recompensa pende para o lado
menos divertido do que os usuários imaginavam, e, então, eles desativam os
digientes. No entanto, diferentemente dos donos de cachorros que adquirem
uma raça para a qual não estavam preparados, os clientes da Blue Gamma
não podem ser acusados de não terem se esforçado o su ciente. A própria
empresa não sabia que os digientes evoluiriam dessa maneira.
Alguns voluntários começaram a manter abrigos que recolhem digientes
indesejados, com a esperança de que eles venham a ser adotados por novos
donos. Esses voluntários põem em prática diferentes estratégias: alguns
deixam os digientes funcionando sem interrupção, enquanto outros os
fazem retroceder de tantos em tantos dias ao ponto de recuperação mais
recente para evitar que desenvolvam problemas de abandono, o que
di cultaria uma futura adoção. Nenhuma das estratégias obtém grande
sucesso em atrair interessados. De vez em quando aparece alguém que quer
um digiente, mas sem ter o trabalho de criá-lo desde a infância; contudo,
essas adoções nunca duram muito, e os abrigos acabam se tornando
depósitos de digientes.
Ana não está feliz com essa tendência, mas ela conhece bem as realidades
do mundo animal e sabe que é impossível salvar todos. Ela gostaria de
proteger as mascotes da Blue Gamma do que está ocorrendo, mas o
fenômeno é generalizado demais para que ela possa in uir nisso. Vezes sem
conta ela leva seus digientes ao parquinho e um deles acaba notando a
ausência de um companheiro habitual de brincadeiras.
O passeio de hoje é diferente e traz uma surpresa agradável. Antes
mesmo de todas as mascotes passarem pelo portal, Jax e Marco reparam em
outro digiente que usa um avatar de robô. Os dois exclamam ao mesmo
tempo:
— Tibo! — E correm na direção dele.
Tibo é um dos digientes mais velhos além das mascotes, de um testador
beta chamado Carlton. Ele deixou Tibo em suspensão há cerca de um mês;
Ana ca feliz ao ver que aquilo não foi permanente. Enquanto os digientes
tagarelam, ela vai ao encontro do avatar de Carlton e conversa com ele.
Carlton explica que precisou de um tempo, mas que agora está pronto para
dar a Tibo toda a atenção de que ele precisa.
Mais tarde, depois que ela trouxe as mascotes de volta à ilha da Blue
Gamma, Jax lhe conta sobre a conversa que teve com Tibo.
— Contei a ele diversão enquanto ele sumido. Contei que passeio zoo foi
bom bom.
— Ele cou triste por ter perdido o passeio?
— Não ele discutiu em vez. Disse que passeio foi shopping, não zoo. Mas
esse passeio mês passado.
— É porque Tibo estava em suspensão durante esse tempo em que não
apareceu por aqui — explica Ana. — Ele pensa que o passeio do mês
passado foi ontem.
— Eu diz — fala Jax, surpreendendo-a com seu nível de compreensão. —
Mas ele não acredita. Ele discutiu até Marco e Lolly dizerem. Então ele triste.
— Bem, com certeza faremos outros passeios ao zoológico.
— Não porque perdeu zoo. Porque perdeu mês.
— Ah.
— Não quero suspensão. Não quero perder mês.
Ana faz o possível para tranquilizá-lo.
— Não precisa se preocupar com isso, Jax.
— Você não me suspender, certo?
— Certo.
Para alívio dela, Jax parece satisfeito com a resposta. Ele ainda não
compreende o conceito de “promessa” e ela ca aliviada, ainda que um
pouco constrangida, por não precisar lhe prometer nada. Consola-se em
saber que, se for preciso suspender as mascotes por qualquer período de
tempo, é quase certo que vão suspender todas, de modo que, pelo menos,
não haverá experiências discrepantes entre o grupo. O mesmo seria feito no
caso de precisarem retroceder as mascotes a uma idade prévia. O retorno a
um ponto de recuperação anterior é um dos conselhos que a Blue Gamma
dá aos clientes que acham seus digientes exigentes demais, e tem circulado a
discussão de que a empresa deveria fazer isso com suas mascotes para apoiar
a estratégia.
Ana veri ca o relógio e começa a instanciar alguns jogos para que as
mascotes possam brincar sozinhas; está na hora de ir treinar os digientes da
nova linha de produtos da Blue Gamma. Nos anos transcorridos desde a
criação do genoma do Neuroblast, os desenvolvedores já escreveram
ferramentas mais so sticadas para analisar as interações dos diversos genes,
e agora entendem melhor suas propriedades. Recentemente, criaram uma
taxonomia com menor grau de plasticidade cognitiva, o que resultou em
digientes com a tendência de se estabilizarem mais rápido e se manterem
dóceis para sempre. O único modo de ter certeza a respeito disso é deixar
que os usuários os criem durante anos e ver o que acontece, mas os
desenvolvedores estão con antes. Essa é uma mudança signi cativa em
relação ao objetivo original da empresa de produzir digientes cada vez mais
so sticados, mas situações drásticas pedem medidas drásticas. A Blue
Gamma conta com os novos digientes para conter a queda nos lucros, de
modo que Ana e o restante da equipe estão treinando-os sem parar.
As mascotes dela já são tão bem treinadas que esperam pela sua
permissão para começar as brincadeiras.
— Muito bem, podem ir — diz ela, e os digientes correm para os seus
brinquedos favoritos. — Vejo vocês daqui a pouco.
— Não — diz Jax. Ele para e caminha de volta até o avatar de Ana. —
Não quer brincar.
— O quê? Claro que quer.
— Não quer brincar. Quer trabalhar.
Ana dá uma risada.
— O quê? Por que você quer trabalhar?
— Ganhar dinheiro.
Ela percebe que Jax não está feliz quando fala isso, sua aparência é
abatida. Em um tom mais sério, ela pergunta:
— Para que você precisa de dinheiro?
— Não preciso. Dar para você.
— Por que quer me dar dinheiro?
— Você precisa — diz ele, em um tom decidido.
— Eu falei que preciso de dinheiro? Quando?
— Semana passada perguntar por que você brinca outros digientes em
vez de eu. Você diz pessoas dão dinheiro para brincar eles. Se ter dinheiro,
posso pagar você. Aí você brincar mais eu.
— Ah, Jax. — Ela ca sem saber o que dizer por um momento. — Isso é
muito doce da sua parte.
• • •

Depois que mais um ano se passa, torna-se o cial: a Blue Gamma está
encerrando suas operações. Não há compradores em número su ciente para
se arriscar na obtenção de digientes dóceis para sempre. Dentro da
companhia, muitas propostas chegaram a ser debatidas, inclusive a de uma
variedade de digientes capazes de entender a linguagem, mas não de falar;
porém, já era tarde. A base de consumidores já havia se estabilizado em uma
pequena comunidade de usuários de digientes, mas ela não gerava recursos
su cientes para manter a Blue Gamma funcionando. A empresa vai lançar
uma versão gratuita do so ware gerador de comida para aqueles que
pretendem manter seus digientes em funcionamento pelo tempo que
quiserem, mas, fora isso, os usuários estão entregues à própria sorte.
A maioria dos empregados já passou antes pela falência de empresas, de
modo que, para eles, ainda que um pouco triste, a situação é apenas outro
episódio na história da indústria da informática. Para Ana, no entanto, o m
das operações da Blue Gamma lhe traz à memória o fechamento do zoo,
uma das piores experiências da sua vida. Seus olhos ainda se enchem de
lágrimas quando ela se lembra da última vez em que viu os primatas de que
cuidava, querendo ser capaz de explicar-lhes por que nunca mais a veriam,
esperando que fossem capazes de se adaptar às suas novas casas. Quando
decidiu entrar para a indústria de so ware, cou feliz por nunca mais ter
que enfrentar esse tipo de despedida. E agora lá está ela, contra todas as
expectativas, confrontando-se com uma situação estranhamente similar.
Similar, mas não igual. A Blue Gamma não precisa encontrar novos lares
para as suas dezenas de mascotes; pode apenas suspendê-las, sem nenhuma
das implicações que uma eutanásia traria. A própria Ana já colocou em
suspensão milhares de digientes durante o processo de produção, e eles não
estão mortos nem se sentindo abandonados. O único sofrimento produzido
pela suspensão de mascotes seria no caso dos treinadores; Ana dedicou
parte do seu tempo às mascotes todo dia nos últimos cinco anos, e não quer
dizer adeus a elas. Há uma alternativa, porém: um empregado pode manter
uma mascote como criatura de estimação na Data Earth, enquanto que não
haveria a menor possibilidade de manter um grande símio no seu
apartamento.
Mesmo sendo tão fácil, Ana se surpreende diante do fato de poucos
empregados quererem adotar uma mascote. Ela sabe que Derek com certeza
vai car com uma — ele se preocupa com os digientes tanto quanto ela —,
mas os treinadores se mostram inesperadamente relutantes. Todos gostam
dos digientes, mas a maioria acha que manter um seria como continuar
fazendo um trabalho pelo qual você não está mais recebendo salário. Ana
sabe que Robyn vai car com um, mas a própria amiga se antecipa e lhe traz
notícias durante o almoço.
— Não íamos contar a ninguém por enquanto — diz ela. — Mas… estou
grávida.
— É mesmo? Parabéns!
Robyn sorri.
— Obrigada!
Robyn, então, passa a liberar uma torrente de informações represadas: as
opções que ela e sua companheira, Linda, consideraram, o processo de fusão
de óvulos no qual decidiram arriscar, a sorte fantástica quando tiveram êxito
logo na primeira tentativa. Ana e Robyn conversam sobre a procura de
novos empregos e licenças-maternidade. A certa altura, voltam ao tópico da
adoção de mascotes.
— É claro que você vai estar cheia de trabalho — diz Ana —, mas já
pensou em adotar a Lolly?
Seria fascinante observar as reações de Lolly a uma gravidez.
— Não — diz Robyn, balançando a cabeça. — Já superei a fase dos
digientes.
— Superou?
— Estou pronta para a coisa de verdade, entende o que eu digo?
Ana responde com cuidado:
— Não sei bem se entendi.
— As pessoas dizem que o desejo por bebês é parte da evolução humana,
e eu sempre achei isso conversa ada. Não mais. — A expressão facial de
Robyn é de êxtase; ela não está mais falando propriamente com Ana. —
Gatos, cães, digientes: todos são substitutos para o que desejamos de
verdade. Depois de um tempo, você começa a entender o que um bebê
signi ca, o que signi ca mesmo, e tudo muda. E, nesse momento, você
percebe que os sentimentos que tinha antes não eram… — Robyn para. —
Quero dizer, no meu caso, foi uma nova maneira de ver as coisas.
Mulheres que trabalham com animais ouvem isso o tempo todo: que esse
amor provém de um desejo inerente de ter lhos. Ana está cansada desse
estereótipo. Ela gosta de crianças, mas elas não são o padrão de acordo com
o qual devam ser medidos os outros tipos de apego. Cuidar de animais é
uma coisa que vale a pena por si só, uma vocação que não precisa de
pretextos. Ela não teria dito o mesmo a respeito dos digientes quando
começou a trabalhar na Blue Gamma, mas agora vê que isso pode valer
também para eles.
4

O ano que se segue ao fechamento da Blue Gamma produz muitas


mudanças na vida de Derek. Ele consegue um emprego na rma em que sua
esposa, Wendy, trabalha, animando atores virtuais para a televisão. Ele tem a
sorte de trabalhar em uma série com bons roteiristas, mas não importa
quanto o diálogo seja esperto e descolado, cada palavra, cada nuance e
entonação precisam ser arduamente coreografadas. Durante o processo de
animação, ele escuta as falas centenas de vezes, e o resultado nal ca
arti cial e estéril em sua perfeição.
Por outro lado, a vida com Marco e Polo é um uxo interminável de
surpresas. Ele acabou adotando os dois, porque eles não queriam car
separados, e, mesmo sem poder dedicar tanto tempo a eles quanto fazia
quando trabalhava na Blue Gamma, o fato de ter um digiente agora é muito
mais interessante do que jamais foi. As pessoas que mantiveram seus
digientes ativos criaram um grupo para se manter em contato, e ainda que
seja uma comunidade menor do que em outras épocas, os membros são
mais ativos e participantes, e os esforços deles estão começando a render
frutos.
Hoje é m de semana, e Derek está dirigindo até o parque. A seu lado, no
banco do carona, está Marco, em um corpo robótico. Ele está de pé sobre o
banco — preso pelo cinto de segurança — para poder olhar pela janela; está
procurando as coisas que só conhecia através de vídeos, coisas que não
existem na Data Earth.
— Um hitrante — diz Marco, apontando.
— Hidrante.
— Hidrante.
— Isso.
O corpo que Marco usa é aquele que foi propriedade da Blue Gamma.
Não havia mais passeios em grupo, pois a SaruMech fechou as portas pouco
depois da Blue Gamma, de modo que Ana — que conseguiu um trabalho
para testar os so wares usados nas estações de sequestro de carbono —
comprou o robô com desconto, para ser usado por Jax. Ela emprestou o
corpo a Derek na semana passada para que Marco e Polo pudessem brincar
com ele, e agora ele está indo devolvê-lo. Ana também vai passar o dia no
parque, deixando que outros digientes se revezem no uso do robô.
— Eu fazer hidrante no próximo trabalho manual — diz Marco. — Uso
cilindro, uso cone, uso cilindro.
— Parece uma boa ideia — diz Derek.
Marco se refere às sessões de trabalhos manuais que os digientes têm
todo dia. Isso começou poucos meses atrás, depois que um usuário escreveu
um so ware para permitir que algumas ferramentas de edição na tela da
Data Earth fossem operadas dentro do próprio ambiente da Data Earth.
Manejando um painel de botões e de barras de rolagem, um digiente agora
podia instanciar várias formas sólidas, mudar suas cores, combiná-las e
editá-las de dezenas de maneiras diferentes. Eles estão no céu; para as
criaturinhas, é como se alguém lhes tivesse concedido poderes mágicos, e,
dada a maneira como as ferramentas de edição ignoram a simulação de leis
da física da Data Earth, em certo sentido, foi o que aconteceu. Depois do
trabalho, quando Derek se loga na Data Earth, Marco e Polo lhe mostram os
trabalhos manuais que zeram.
— Aí posso mostrar Polo como… Parque! Já é parque?
— Não, não estamos no parque ainda.
— Placa diz “Parque”. — Marco aponta para um letreiro pelo qual estão
passando.
— Não, estava escrito “Paróquia”. Ainda vai demorar um pouco para
chegar ao parque.
— Paróquia — repete Marco, olhando o letreiro que desaparece a
distância.
Outra atividade nova dos digientes são as aulas de leitura. Marco e Polo
nunca tinham dado atenção a textos antes — não há muito texto na Data
Earth além de anotações na tela, que não são visíveis aos digientes. Um
proprietário, porém, obteve sucesso ao ensinar seu digiente a ler comandos
escritos em cartões, levando vários outros a tentar fazer o mesmo. De modo
geral, os digientes do Neuroblast conseguem reconhecer palavras bem, mas
têm certo problema em associar algumas letras a determinados sons. É uma
variante da dislexia que parece ser especí ca desse genoma — de acordo
com outros grupos de usuários, os digientes Origami aprendem as letras
com facilidade, enquanto que os Fabergé continuam frustrantemente
analfabetos, não importa quais os métodos de ensino tentados pelos seus
usuários.
Marco e Polo têm aulas de leitura junto com Jax e alguns outros, e
parecem se divertir bastante. Nenhum digiente escutou histórias antes de
dormir durante a infância, por isso um texto não os fascina do modo que
fascina uma criança humana, mas a curiosidade que eles têm pelas coisas em
geral — sem falar nos elogios dos donos — serve de motivação para que
explorem as possíveis utilizações de um texto. Derek ca entusiasmado e
lamenta o fato de que a Blue Gamma não continuou no ramo durante tempo
su ciente para ver coisas assim acontecerem.
Eles chegam ao parque. Ana os vê e se aproxima enquanto Derek
estaciona o carro. Marco vai abraçá-la assim que o seu dono abre a porta do
veículo.
— Oi Ana.
— Oi, Marco — diz ela, acariciando a parte de trás da cabeça do robô. —
Ainda está nesse corpo? Você teve uma semana inteira. Não foi bastante?
— Queria andar carro.
— Quer brincar no parque um pouquinho?
— Não, nós embora agora. Wendy não quer nós car. Tchau Ana.
A essa altura Derek já retirou do banco traseiro a plataforma usada para
carregar a bateria do robô. Marco ca de pé em cima dela — os digientes
foram treinados para agir assim sempre que precisam retornar para a Data
Earth — e o capacete do robô se apaga.
Ana usa o computador de mão para ajudar o primeiro digiente a se
transferir para o robô.
— Vai ter que ir embora também? — pergunta a Derek.
— Não, não tenho nada para fazer.
— Então, o que o Marco quis dizer?
— Bem…
— Deixe ver se adivinho. Wendy acha que você passa tempo demais com
os digientes, certo?
— Sim — responde Derek.
Wendy também está incomodada com o tempo que ele tem passado com
Ana, mas ele acha que não vale a pena mencionar isso. Derek já garantiu à
esposa que eles são apenas amigos que compartilham um interesse nos
digientes.
O capacete do robô se ilumina e revela um rosto de lhote de uma onça-
pintada. Derek o reconhece como Zaff, cujo dono é um dos testadores beta.
— Oi Ana oi Derek — diz Zaff, e na mesma hora corre na direção de uma
árvore próxima. Derek e Ana o seguem.
— Vê-los vivendo no corpo do robô não foi o su ciente para convencê-
la? — pergunta Ana.
Derek impede Zaff de pegar algumas fezes de cachorro. Para Ana, ele diz:
— Que nada. Ela ainda não entende por que não os deixo em suspensão
quando me convém.
— É difícil encontrar alguém que entenda — diz Ana. — Era a mesma
coisa quando trabalhei no zoológico; todos os caras com quem eu saía
achavam que estavam cando em segundo plano. E agora quando digo que
estou pagando lições de leitura para um digiente, me olham como se eu
fosse louca.
— Isso tem sido um problema com Wendy também.
Eles observam enquanto Zaff remexe montinhos de folhas secas, tira dali
uma folha decomposta até estar quase transparente e a ergue à altura do
rosto para olhar através dela, como se fosse uma máscara de renda vegetal.
— Embora eu ache que não dê para censurá-los — diz Ana. — Eu mesma
demorei algum tempo a entender o apelo.
— Eu, não — diz Derek. — Achei os digientes extraordinários desde o
início.
— É verdade. Você é um tipo raro.
Derek observa enquanto ela brinca com Zaff, admira a paciência dela ao
cuidar do robô. A última vez que ele se sentiu tão próximo de uma mulher
foi assim que conheceu Wendy, que compartilhava o seu entusiasmo de
trazer personagens à vida por meio da animação. Se ele não fosse casado,
talvez chamasse Ana para sair, mas não fazia sentido pensar naquilo agora.
O máximo que poderão ser é amigos, e isso é bom o bastante.
• • •

Um ano depois, à noite, Ana está em seu apartamento. No computador, uma


janela está aberta na Data Earth, onde o seu avatar se encontra em um
parque, supervisionando uma reunião recreativa de Jax com mais um
punhado de outros digientes. O número de digientes continua diminuindo.
Tibo, por exemplo, não aparece há meses. No entanto, o grupo habitual de
Jax se misturou com outro recentemente, de modo que ele ainda tem a
oportunidade de fazer novos amigos. Alguns dos digientes estão se
divertindo nas estruturas de escalar, outros, sentados no chão com
brinquedos, enquanto dois assistem a uma TV virtual.
Em outra janela, Ana está lendo várias discussões nos fóruns de usuários.
O tópico du jour são as últimas ações da Frente de Liberdade de Informação,
uma organização que luta pelo m da propriedade privada de dados. Na
semana passada, eles divulgaram diversas técnicas para invadir mecanismos
de controle de acesso da Data Earth e, nos últimos dias, as pessoas têm visto
itens raros e caros do seu repertório de jogos sendo distribuídos nas
esquinas como se fossem pan etos. Ana não foi a um dos continentes de
jogos desde que esse problema começou.
No parque, Jax e Marco decidiram começar uma brincadeira nova.
Ambos cam de quatro e começam a engatinhar. Jax acena para atrair a
atenção dela, e Ana aproxima deles seu avatar.
— Ana — diz ele —, sabe que formigas falam uma com outra?
Eles andaram assistindo a vídeos sobre natureza na televisão.
— Sim, já ouvi sobre — responde ela.
— Sabe que a gente sabe o que elas dizem?
— É?
— A gente fala língua formiga. Assim: impe mpe dimul vitul.
— Bidul jidul lompe vompe — responde Marco.
— E o que isso quer dizer?
— Não falar. Só a gente saber.
— A gente e formigas — diz Marco. E então Jax e Marco riem juntos, Mo
mo mo, e Ana sorri. Os digientes correm para brincar de outra coisa, e ela
volta a veri car os fóruns.

De: Helen Costas


Acham que temos que nos preocupar com a possibilidade de os nossos
digientes serem copiados?

De: Stuart Gust


Quem se daria ao trabalho? Se houvesse uma grande demanda por digientes, a
Blue Gamma não teria falido. Lembram-se do que aconteceu com os abrigos? Era
impossível oferecer um digiente de graça. E não é como se eles tivessem se
tornado mais populares desde então.

No parquinho, Jax exclama:


— Ganhei! — Ele está brincando com Marco, uma brincadeira que Ana
não consegue entender muito bem, e se agita todo em triunfo.
— Tudo bem — diz Marco. — Sua vez. — Ele remexe nos brinquedos à
sua volta até encontrar um kazoo, que entrega a Jax.
Jax põe uma extremidade do kazoo na boca. Ele ca de joelhos e usa o
instrumento musical para cutucar ritmicamente a barriga de Marco, onde
estaria o umbigo se ele tivesse um.
— Jax, o que você está fazendo? — pergunta Ana.
Jax tira o kazoo da boca.
— Pagando boquete Marco.
— O quê? Onde você viu isso?
— Na TV ontem.
Ela olha para a TV. Neste instante, está passando um desenho animado
infantil. Em tese, a televisão extrai a programação de um acervo de vídeos
para crianças; alguém deve estar inserindo vídeos pornôs no acervo, usando
os programas hackeados pela FLI. Ela resolve não dar muita importância ao
caso na frente dos digientes.
— Ok — diz ela, enquanto Jax e Marco continuam com a sua mímica. Ela
posta nos fóruns uma nota alertando a respeito da interferência nos vídeos,
e continua a ler.
Minutos depois, Ana ouve um ruído que parece com ganidos, e percebe
que Jax está assistindo à televisão outra vez; todos os digientes estão vendo
também. Ela aproxima seu avatar, para ver o que tanto atrai a atenção deles.
Na TV virtual, uma pessoa usando um avatar de palhaço segura um
digiente com avatar de cãozinho e bate sem parar nas suas pernas com um
martelo. As pernas do digiente não podem se quebrar, porque o design do
avatar não previa essa possibilidade, e ele não deve estar gritando de dor
pelo mesmo motivo, mas, ainda assim, o digiente deve estar em grande
sofrimento, e o som de ganido é sua única maneira de expressar isso.
Ana desliga a televisão virtual.
— Que aconteceu? — pergunta Jax, e vários dos digientes repetem a
pergunta, mas ela não responde. Em vez disso, abre outra janela no seu
monitor físico para ler a descrição que acompanha o vídeo em execução.
Não é uma animação, é uma gravação de um troll usando a quebra de
segurança da FLI para dani car os circuitos sensíveis à dor no corpo do
digiente. Pior ainda: o digiente não é uma instanciação recente e anônima,
mas a criatura de estimação de alguém, copiada de forma ilícita usando o
mesmo recurso. O nome do digiente é Nyyti, e Ana percebe que ele é um
dos colegas de Jax nas aulas de leitura.
Quem quer que tenha copiado Nyyti pode ter uma cópia de Jax também.
Ou pode estar fazendo uma naquele mesmo momento. Devido à arquitetura
da distribuição do espaço na Data Earth, Jax ca vulnerável contanto que o
troll esteja no mesmo continente onde ca o parquinho.
Jax continua fazendo perguntas sobre o que eles viram na televisão. Ana
abre outra janela com a lista de todos os processos relativos à Data Earth que
estão rodando na sua conta, encontra o que representa Jax e o deixa em
suspensão. No parquinho, Jax para no meio de uma frase e, então,
desaparece.
— Cadê Jax? — pergunta Marco.
Em outra janela, Ana abre os processos de Derek — eles concederam
privilégio total das suas contas um ao outro — e põe Marco e Polo em
suspensão também. No entanto, ela não tem os mesmos privilégios com os
demais digientes, e não sabe o que fazer em seguida. Percebe que eles estão
agitados e confusos. Eles não têm os re exos de luta ou fuga que os animais
têm ou as reações desencadeadas pelo cheiro de feromônios ou por terem
ouvido sons alarmantes, mas possuem o equivalente a neurônios-espelho.
Isso os ajuda a aprender e a socializar melhor, mas signi ca também que
estão perturbados pelo que viram na televisão.
Todas as pessoas que levaram seus digientes ao parquinho concedem
permissão a Ana para fazê-los dormir, mas os processos deles vão continuar
rodando enquanto estiverem adormecidos, o que os deixa ainda sob o risco
de serem copiados. Ela decide transferir os digientes para uma ilhota longe
dos continentes principais, na esperança de que haja uma possibilidade
menor de que um troll esteja copiando processos por ali.
— Muito bem, todo mundo — anuncia ela —, estamos indo para o
zoológico.
Ela abre um portal para o centro de visitação do arquipélago de Pangeia e
encaminha os digientes através dele. O local parece estar vazio, mas ela não
está disposta a se arriscar. Força os digientes a adormecer e depois envia
mensagens a todos os proprietários, dizendo onde podem vir buscá-los.
Mantém seu avatar junto às criaturas enquanto vai aos fóruns para avisar
outras pessoas.
Durante a próxima hora, os usuários vão chegando para buscar seus
digientes, enquanto Ana acompanha a discussão nos fóruns se proliferar
como alga. Há ultrajes e ameaças de processos judiciais de todas as partes.
Alguns jogadores assumem a posição de que as queixas dos proprietários de
digientes são secundárias em relação às deles próprios, pois digientes não
têm valor monetário, o que desencadeia uma guerra de mensagens. Ana
ignora a maior parte delas, enquanto procura informações sobre alguma
resposta da Daesan Digital, a companhia que é dona da plataforma da Data
Earth. A certa altura, surgem notícias concretas.

De: Enrique Beltran


A Daesan tem um upgrade para a arquitetura de segurança da Data Earth que,
segundo eles, vai corrigir a invasão. Estava programado para entrar com a
atualização no ano que vem, mas estão acelerando o processo por causa do que
aconteceu. Mas não podem nos dar uma data de quando vai estar concluído. Até
que isso aconteça, é melhor todo mundo deixar os digientes em suspensão.

De: Maria Zheng


Existe outra opção. Lisma Gunawan está preparando uma ilha particular, onde só
códigos aprovados por ela vão poder rodar. Não vai ser possível usar nada que
tenha sido comprado recentemente, mas os digientes do Neuroblast podem rodar
lá sem problemas. Entrem em contato com ela se quiserem ser incluídos na lista de
visitantes.

Ana envia uma solicitação a Lisma, e recebe uma resposta automática


prometendo notícias quando a ilha estiver pronta. Ana não tem condições
técnicas de rodar uma instanciação local do ambiente da Data Earth, mas
tem uma terceira opção. Precisa de uma hora para con gurar o sistema e
poder rodar uma instanciação local da ferramenta do Neuroblast; sem um
portal da Data Earth, ela precisa carregar manualmente o último estado em
que Jax foi salvo, mas, depois de algum tempo, consegue ter o digiente
rodando no corpo do robô.
— … Desligou TV? — Ele para, percebendo que o ambiente à sua volta
agora é outro. — Que aconteceu?
— Está tudo bem, Jax.
Ele percebe o corpo que está usando.
— Estou mundo de fora. — Olha para ela. — Você suspender eu?
— Sim, desculpe. Falei que não faria isso, mas foi preciso.
— Por quê? — pergunta ele, em tom lamentoso.
Ana ca encabulada ao perceber a força com que está abraçando o corpo
do robô.
— Estou tentando proteger você.
• • •

Um mês depois, a Data Earth conclui a atualização de segurança. Os porta-


vozes da FLI negam qualquer responsabilidade pelo que os trolls zeram
com as informações divulgadas por eles. Argumentam que toda liberdade
pode gerar abusos, e logo vão dar atenção a outros projetos. Durante algum
tempo, ao menos, oscontinentes públicos na Data Earth voltam a ser seguros
para os digientes, mas o mal já foi feito. Não há forma alguma de rastrear
cópias que estejam rodando em ambientes privados, e mesmo que ninguém
mais divulgue vídeos de tortura de digientes, muitos usuários do Neuroblast
não conseguem suportar a ideia de que coisas assim estejam acontecendo;
eles colocam os digientes em suspensão para sempre e saem do grupo.
Ao mesmo tempo, outras pessoas cam entusiasmadas pela
disponibilidade de copiar digientes, sobretudo os que tenham aprendido a
ler. Membros de um instituto de pesquisas em inteligência arti cial querem
saber se os digientes são capazes de desenvolver uma cultura própria se
deixados em uma estufa, mas eles nunca tiveram acesso a digientes que
sabem ler e não estavam interessados em criá-los por conta própria. Agora,
os pesquisadores estão reunindo o maior número possível de cópias de
digientes alfabetizados, a maior parte deles Origami, já que estes são os que
têm mais talento para a leitura, mas também colocam no grupo alguns
digientes do Neuroblast. Todos são levados a ilhas particulares onde lhes
fornecem bibliotecas de textos e so ware, e começam a rodar as ilhas na
velocidade usada nas estufas. Os fóruns de discussão fervilham de
especulações a respeito de cidades dentro de garrafas, microcosmos de
mesa.
Derek acha a ideia ridícula — um bando de crianças abandonadas não
vão se tornar autodidatas, não importa a quantidade de livros que tenham
ao alcance — de modo que não se surpreende ao ler sobre os resultados:
todas as populações testadas regrediram a um estado selvagem. Os digientes
não têm agressividade su ciente para mergulhar em uma selvageria do tipo
O senhor das moscas. Eles apenas se dividem em hordas soltas, sem
hierarquia de nida. De início, as rotinas diárias de cada grupo são mantidas
pela força do hábito — eles leem e usam materiais educativos quando está na
hora de ir para a escola, vão para os parques na hora de brincar —, mas, sem
o reforço externo, esses rituais acabam se esgarçando como tecido barato.
Qualquer objeto vira um brinquedo, qualquer espaço um parque, e, pouco a
pouco, os digientes vão perdendo as habilidades que já tinham. Acabam
desenvolvendo uma espécie de cultura, talvez a mesma que digientes
selvagens viessem a desenvolver se evoluíssem por conta própria nos
biomas.
Por mais interessante que isso seja, ainda está bem longe da civilização
que os pesquisadores esperavam encontrar, de modo que tentam refazer as
ilhas. Procurando aumentar a variedade das populações-teste, pedem a
proprietários de digientes letrados que doem cópias; para surpresa de Derek,
acabam recebendo algumas de pessoas que se cansaram de pagar por lições
de leitura e se deram por satisfeitos em saber que os digientes ferais não
estavam sofrendo. Os pesquisadores desenvolveram vários incentivos —
todos automatizados, para que não requeressem nenhuma interação em
tempo real — para manter os digientes motivados. Impuseram di culdades,
a m de que a preguiça lhes custasse caro. Enquanto algumas dessas novas
populações-teste evitaram a regressão à selvageria, nenhuma delas ascendeu
a algum tipo de so sticação tecnológica.
Os pesquisadores acabam concluindo que falta algo no genoma Origami,
mas, do ponto de vista de Derek, o erro foi deles. Os pesquisadores estavam
cegos a uma verdade simples: mentes complexas não evoluem sozinhas. Se
pudessem, as crianças ferais teriam evoluído até se tornarem iguais a
qualquer criança. E mentes não crescem do mesmo modo que ervas, que
orescem não importa a atenção que recebam; se fosse assim, todas as
crianças em orfanatos seriam bem-sucedidas. Para que uma mente pelo
menos se aproxime do seu verdadeiro potencial, ela precisa ser cultivada por
outras. Esse tipo de cultivo é o que ele está tentando proporcionar a Marco e
Polo.
De vez em quando, Marco e Polo se envolvem em discussões, mas não
cam zangados por muito tempo. Dias atrás, no entanto, os dois brigaram
quando discutiam se era justo ou não que Marco tivesse sido instanciado
primeiro, e, por algum motivo, a briga se agravou. Desde então, os digientes
mal se falaram, de modo que Derek sente certo alívio quando eles vêm
procurá-lo.
— É bom ver vocês dois juntos de novo. Fizeram as pazes?
— Não! — exclama Polo. — Ainda bravo.
— Que pena.
— A gente quer ajuda sua — diz Marco.
— Muito bem. O que posso fazer?
— Levar a gente semana passada, antes briga feia.
— O quê? — Essa é a primeira vez que ele vê um digiente pedindo para
ser levado de volta a um ponto de recuperação. — Por que querem isso?
— Não quer lembrar briga feia — respondeu Marco.
— Quer feliz, não quer bravo — diz Polo. — Você quer a gente feliz,
certo?
Derek prefere não iniciar uma discussão sobre a diferença entre as atuais
instanciações deles e instanciações restauradas a partir de um ponto de
recuperação.
— Claro que quero, mas não posso levar vocês para trás toda vez que
brigarem. Esperem um pouco, e a raiva vai passar.
— Esperar e ainda bravo — diz Polo. — Briga feia feia. Quer que não
aconteça nunca.
Da maneira mais persuasiva que consegue, Derek diz:
— Bem, o fato é que aconteceu, e vocês vão ter que lidar com isso.
— Não! — grita Polo. — Eu bravo bravo! Quer você consertar!
— Por que quer nós bravo para sempre? — pergunta Marco.
— Não quero que quem bravos para sempre, quero que perdoem um ao
outro. Mas, se não puderem, então vamos todos ter que conviver com isso,
inclusive eu.
— Agora bravo com você também! — diz Polo.
Os digientes saem zangados em direções opostas, e ele ca pensando se
tomou a decisão certa. Educar Marco e Polo nunca foi uma tarefa fácil, mas
ele jamais precisou levá-los de volta a um ponto de recuperação. Essa
estratégia tem funcionado bem até agora, mas Derek não tem certeza de que
vai continuar assim.
Não existem manuais que ensinem a criar digientes, e técnicas
empregadas com animais de estimação e crianças podem tanto dar certo
quanto dar errado. Os digientes habitam corpos simples, de modo que o
trajeto deles rumo à maturidade está a salvo das marés e das ventanias
súbitas causadas pelos hormônios de um corpo físico, mas isso não quer
dizer que eles também não passem por mudanças de humor ou que a
personalidade nunca mude: a mente de cada um deles está continuamente
explorando novas regiões do espaço fásico de nido pelo genoma do
Neuroblast. Na verdade, é possível que os digientes nunca venham a atingir
uma “maturidade”; a ideia de um ápice de desenvolvimento é baseada em
um modelo biológico que não se aplica necessariamente ao caso. É possível
que as personalidades venham a se desenvolver na mesma velocidade
durante todo o tempo em que estejam funcionando. Só o tempo vai dizer.
Derek quer conversar a respeito do ocorrido com Marco e Polo;
infelizmente, a pessoa com quem ele quer conversar não é a esposa. Wendy
entende as possibilidades de crescimento dos digientes, e reconhece que
Marco e Polo vão se tornar cada vez mais capazes à medida que receberem
cuidados e atenção; mas ela não sente qualquer entusiasmo por essa ideia.
Ressentida por causa de toda a atenção que o marido dedica aos digientes,
ela consideraria o pedido de voltarem ao ponto de recuperação como a
oportunidade ideal para suspendê-los por tempo inde nido.
A pessoa com quem Derek quer conversar, claro, é Ana. Aquilo que antes
parecia um receio despropositado de Wendy acabou se tornando verdade:
ele nutre agora sentimentos por Ana que vão além da simples amizade. Esses
sentimentos não são a causa dos problemas que tem tido com Wendy; na
verdade, são o resultado deles. O tempo que Derek passa com Ana é um
verdadeiro alívio, uma chance que tem para desfrutar a companhia dos
digientes sem culpa. Quando está aborrecido, ele acha que a culpa é de
Wendy por estar se afastando, mas, quando se acalma, percebe que isso é
injusto.
A coisa mais importante é que ele não demonstrou os sentimentos que
tem por Ana e não planeja fazê-lo. Ele precisa chegar a um acordo com
Wendy a respeito dos digientes; se conseguir, a tentação representada por
Ana pode acabar se dissipando. Até isso acontecer, Derek precisa reduzir a
quantidade de tempo que passa ao lado da amiga. Não vai ser fácil: dado o
minúsculo tamanho da comunidade de proprietários de digientes, a
interação com ela é inevitável, e ele não pode deixar Marco e Polo sofrerem
por causa disso. Não tem certeza sobre como proceder, mas, por enquanto,
evita pedir conselhos a Ana e, em vez disso, posta suas perguntas nos fóruns.
5

Mais um ano se passa. Os movimentos sob a crosta do mercado trazem


mudanças, e, como resultado, os mundos virtuais sofrem modi cações
tectônicas: uma nova plataforma, chamada Real Space, foi implementada,
usando a mais recente arquitetura de processamento de código aberto, e
logo se torna o ponto mais disputado da formação de territórios no mundo
digital. Enquanto isto, a Anywhere e a Next Dimension param de expandir
suas fronteiras e se cristalizam em uma con guração estável. A Data Earth
tem sido há um bom tempo o ponto de referência no universo dos mundos
virtuais, resistente a bolhas de crescimento e quedas bruscas, mas agora sua
topogra a começa a ser erodida; de uma em uma, suas massas de terra
virtuais desaparecem tal como acontecem com as ilhas de verdade, sumindo
sob uma onda crescente de indiferença dos consumidores.
Enquanto isso, o fracasso dos experimentos-estufa em produzir
civilizações em miniatura fez diminuir o interesse nas formas de vida
digitais. De vez em quando, alguma curiosa fauna nova pode ser observada
nos biomas: uma espécie demonstrando uma con guração corporal exótica
ou uma estratégia inédita de reprodução, mas, em geral, todos concordam
que os biomas não rodam a uma resolução alta o su ciente para que uma
inteligência de verdade possa se desenvolver ali. As companhias criadoras
dos genomas Origami e Fabergé entram em declínio. Muitos especialistas
tecnológicos a rmam que os digientes estão prestes a acabar, uma prova de
que inteligência arti cial instalada em corpos é algo inútil a não ser quando
usada para o entretenimento, e as coisas estão nesse pé quando uma nova
ferramenta genômica chamada Sophonce é introduzida no mercado.
Os projetistas do Sophonce planejavam criar digientes que pudessem ser
ensinados via so ware, em vez de precisar interagir com humanos. No nal
do processo, eles criaram uma ferramenta que favorece o comportamento
associal e as personalidades obsessivas. A grande maioria dos digientes
criados com essa ferramenta acaba sendo descartada devido a malformações
psicológicas, mas uma pequena fração se revela capaz de aprender com o
mínimo de supervisão: basta dar-lhes o so ware adequado e eles vão estudar
satisfeitos durante semanas de tempo subjetivo, o que signi ca que podem
ser rodados à velocidade de estufa sem que se tornem ferais. Alguns
a cionados apresentaram digientes do Sophonce capazes de superar os do
Neuroblast, Origami e Fabergé em testes matemáticos, apesar de terem sido
treinados com muito menos interação em tempo real. Há especulações de
que, se for possível direcionar as energias deles em uma direção prática, os
digientes do Sophonce poderiam se tornar trabalhadores úteis em questão
de meses. O problema é que eles são tão desinteressantes que poucos estão
dispostos a se empenhar na pouca interação que requerem.
• • •

Ana trouxe Jax consigo para o Siege of Heaven, o primeiro novo continente
de jogos a aparecer na Data Earth em um ano. Ela o conduz através da
Argent Plaza, onde os jogadores se reúnem e socializam entre as missões; é
um amplo pátio de mármore, lápis-lazúli e ligranas de ouro, situado no alto
de uma nuvem cúmulo-nimbo. Ana tem de usar seu avatar de jogos, um
misto de querubim e falcão, mas Jax mantém seu tradicional avatar de robô
de cobre reluzente.
Quando passeiam por entre os outros jogadores, Ana consulta na tela
uma anotação relativa a um digiente. O avatar dele é um anão com
hidrocefalia, padrão entre os Drayta, digientes do Sophonce com talento
para resolver quebra-cabeças lógicos encontrados nos continentes de jogos.
O dono do Drayta original o treinou usando um gerador de quebra-cabeças
pirateado do continente da Five Dynasties na plataforma Real Space, e
depois liberou as cópias para o público. Agora, há tantos jogadores levando
digientes Drayta consigo nas suas missões que as companhias de jogos estão
considerando a possibilidade de redesenhá-los por completo.
Ana chama a atenção de Jax para o digiente.
— Está vendo aquele ali? É um Drayta.
— É? — Jax já ouviu falar dos Draytas, mas é a primeira vez que encontra
um. Ele vai na direção do anão. — Oi. Eu sou Jax.
— Quer resolver quebra-cabeças — diz o Drayta.
— Que quebra-cabeças gosta?
— Quer resolver quebra-cabeças. — O Drayta está cando ansioso e
começa a correr pelo pátio. — Quer resolver quebra-cabeças.
Um jogador próximo, usando um avatar misto de sera m e águia-
pescadora, faz uma pausa na conversa para apontar na direção do Drayta: o
digiente congela no meio da corrida, reduz-se a um ícone e salta para dentro
de um compartimento no cinto do jogador como se tivesse sido puxado por
um elástico.
— Drayta estranho — diz Jax.
— Era mesmo, não?
— Todos desse jeito?
— Acho que sim.
O sera m vem na direção de Ana.
— Que tipo de digiente é esse? Não vi nenhum desse tipo.
— O nome dele é Jax. Ele roda no genoma do Neuroblast.
— Não conheço. É novo?
Um dos companheiros do sera m, usando um avatar de nefelim, se
aproxima e diz:
— Não, é antigo.
O sera m assente.
— Ele é bom em quebra-cabeças?
— Não muito — responde Ana.
— O que ele faz, então?
— Eu gosto cantar — diz Jax.
— É mesmo? Cante alguma coisa para nós, então.
Jax não precisa de outro encorajamento, e começa a mostrar sua
interpretação de “Mack Navalha”, da Ópera dos três vinténs. Ele sabe a letra
completa, mas a melodia que canta é, na melhor das hipóteses, uma sombra
distante da original. Ao mesmo tempo, Jax pratica uma dança que ele
mesmo criou, em sua maior parte uma série de poses e gestos com as mãos
que copiou de um vídeo indonésio de hip-hop de que gosta.
Os outros jogadores riem muito durante a performance. Jax naliza com
uma curvatura, e eles aplaudem.
— Brilhante — diz o sera m.
— Isso quer dizer que ele gostou — respondeu Ana. — Diga obrigado.
— Obrigado.
— Isso não vai ser muito útil nos labirintos, não acha? — indaga o
sera m a Ana.
— Ele me diverte — diz ela.
— Aposto que sim. Mande uma mensagem para mim se um dia ele
aprender a resolver quebra-cabeças, eu compro uma cópia. — Nesse
momento, ele percebe que todo o seu grupo já está reunido. — Bem, lá
vamos nós para a próxima missão. Boa sorte na sua.
— Boa sorte — diz Jax. Ele acena em despedida enquanto o sera m e
seus companheiros de equipe alçam voo e mergulham em formação rumo a
um vale distante.
Ana se recorda desse diálogo dias depois, quando está lendo uma
discussão em um dos fóruns de usuários.

De: Stuart Gust


Ontem à noite joguei SoH com um pessoal que leva junto um Drayta nas
missões, e mesmo que ele não seja muito divertido, é algo bem útil de se ter por
perto. Isso me fez pensar se tem mesmo que ser tipo “uma coisa ou outra”. Esses
digientes do Sophonce não são nem um pouco melhores do que os nossos. Os
nossos digientes não poderiam ser úteis e divertidos ao mesmo tempo?

De: Maria Zheng


Você quer vender cópias do seu? Acha que pode criar um Andro melhor?

Maria está se referindo a um digiente do Sophonce chamado Andro,


treinado pelo seu proprietário, Bryce Talbot, para atuar como seu assistente
pessoal. Talbot fez uma demonstração de Andro para VirlFriday, uma
fabricante de so ware gerenciador de agendas, e atraiu a atenção dos
executivos da empresa. O negócio, contudo, deixou de se concretizar depois
que os executivos receberam cópias de demonstração do digiente. O que
Talbot não percebera era que Andro, a seu modo, era tão obsessivo quanto
Drayta. Tal como um cachorro que permanece eternamente el ao primeiro
dono, Andro se recusava a trabalhar para quem quer que fosse caso Talbot
não estivesse lá para lhe dar as ordens. A VirlFriday tentou instalar um ltro
de percepção sensorial para que cada nova instanciação interpretasse a voz e
o avatar do novo dono como sendo de Talbot, mas a ilusão nunca
funcionava por mais que algumas horas. Não demorou muito para que
todos os executivos se vissem forçados a desativar seus Andros inúteis, os
quais insistiam em procurar o Talbot original.
Como resultado, Talbot não foi capaz de vender os direitos de Andro
pelo preço que esperava. A VirlFriday, porém, comprou os direitos do
genoma especí co de Andro e um arquivo completo dos seus pontos de
recuperação, e contratou Talbot para trabalhar na empresa. Ele agora integra
uma equipe que está restaurando os pontos de recuperação mais remotos de
Andro e refazendo o treinamento, a m de criar uma versão do digiente que
tenha os mesmos talentos para o trabalho de assistente pessoal e também
esteja disposto a aceitar um novo dono.

De: Stuart Gust


Não, não estou falando em vender cópias. Penso apenas em Zaff executando
tarefas como os cães que guiam cegos ou farejam drogas. Meu objetivo não é
ganhar dinheiro, mas, se existir algo que os digientes sejam capazes de fazer e pelo
qual as pessoas estejam dispostas a pagar, isso poderia provar para os céticos por
aí que os digientes não servem apenas como diversão.

Ana posta uma resposta.

De: Ana Alvarado


Eu gostaria de ter certeza de que estamos vendo as mesmas motivações de
maneira clara. Seria maravilhoso que os digientes aprendessem habilidades
práticas, mas não devemos considerá-los um fracasso se isso não acontecer. Talvez
Jax não seja feito para ganhar dinheiro. Ele não é como os Draytas ou os robôs-
jardineiros. Sejam quais forem os quebra-cabeças que ele possa resolver ou o
trabalho que possa executar, estas não são as minhas razões para estar criando-o.

De: Stuart Gust


Sim, concordo plenamente. O que quis dizer foi que talvez nossos digientes
possam ter recursos que não exploramos. Se existir algum trabalho que eles sejam
capazes de fazer, não seria bacana que o fizessem?
De: Maria Zheng
Mas o que eles podem fazer? Os cães são criados para serem bons em tarefas
específicas, e os digientes do Sophonce são tão obsessivos que só querem fazer
uma única coisa, sejam bons nela ou não. Nenhuma das duas coisas vale para os
digientes do Neuroblast.

De: Stuart Gust


Poderíamos expô-los a uma grande variedade de coisas e ver para quais delas
eles têm aptidões. Dar a eles uma educação artística, em vez de treinamento
vocacional. (Não estou brincando totalmente quando digo isso.)

De: Ana Alvarado


Na verdade, isso não é tão bobo quanto parece. Os bonobos aprenderam a fazer
de tudo, desde cortar pedras até jogar jogos de computador, quando lhes foi dada
a chance. Nossos digientes podem ser bons em coisas para as quais não nos
ocorreu prepará-los.

De: Maria Zheng


Do que estamos falando? Já os ensinamos a ler. Vamos dar aulas de ciência e
história? Vamos ensinar as ferramentas do pensamento crítico?

De: Ana Alvarado


Não sei. Mas acho que, se o fizermos, é importante manter a mente aberta e não
sermos céticos. Expectativas baixas tendem a produzir profecias autorrealizáveis. Se
o nosso objetivo for mais alto, vamos conseguir resultados melhores.

A maioria dos membros do grupo está satisfeita com a educação atual


dos seus digientes — uma mistura improvisada de ensino doméstico, aulas
em grupo e so ware educacional —, mas há alguns que cam
entusiasmados com a possibilidade de ir além. Esse último grupo começa
uma discussão com os tutores dos digientes sobre a possibilidade de
expandir o currículo. Durante alguns meses, vários proprietários estudam
teorias pedagógicas e tentam determinar de que maneira o estilo de
aprendizado dos digientes difere do estilo dos chimpanzés e das crianças
humanas, bem como criar um plano de estudo adequado. Na maior parte do
tempo, os usuários são receptivos a sugestões, até que surge a questão: os
digientes poderiam fazer progressos mais rápidos se os tutores lhes
passassem dever de casa?
Ana prefere que os digientes encontrem atividades que desenvolvam suas
habilidades, mas que também queiram fazer por iniciativa própria. Outros
proprietários argumentam que os tutores deveriam designar tarefas para
serem executadas. Ana ca surpresa ao ler em um fórum um post de Derek
em que ele apoia essa ideia. Ela o questiona na próxima vez em que os dois
conversam.
— Por que você quer que eles façam dever de casa?
— O que tem de errado? — diz Derek. — Isso é porque você teve um
professor malvado quando era criança?
— Muito engraçado. Vamos, estou falando sério.
— Ok, sério: qual é o problema com o dever de casa?
Ela mal sabe por onde começar.
— Uma coisa é Jax ter opções para car entretido depois das aulas — diz
ela. — Mas dar tarefas e dizer que ele precisa completá-las, mesmo que não
goste delas? Para fazê-lo se sentir mal se não as cumprir? Isso vai contra
todos os princípios do treinamento animal.
— Há muito tempo, você mesma me disse que os digientes não são como
animais.
— Sim, eu disse isso — concorda ela. — Mas também não são
ferramentas. E eu sei que você sabe disso, mas da forma que está falando,
parece que quer adestrá-los para fazer algum trabalho contra a vontade.
Ela balança a cabeça.
— Não, não é para fazê-los trabalhar, é para que eles aprendam a ter
algum tipo de responsabilidade. E os digientes podem ser fortes o bastante
para poder se sentir mal de vez em quando. A única maneira de saber é
experimentando.
— Por que correr o risco de fazê-los se sentir mal?
— É algo em que eu estava pensando enquanto conversava com a minha
irmã — diz ele. A irmã de Derek é professora de crianças com síndrome de
Down. — Ela disse que alguns pais não querem forçar demais os lhos,
porque têm medo de expô-los à possibilidade do fracasso. Os pais são bem-
intencionados, mas estão impedindo que as crianças atinjam todo o seu
potencial quando as protegem a esse ponto.
Ela precisa de algum tempo para se acostumar à ideia. Ana costuma
pensar nos digientes como símios bastante inteligentes, e, embora no
passado algumas pessoas tivessem comparado símios a crianças com
necessidades especiais, era sempre como uma espécie de metáfora. Ver os
digientes de um modo mais literal como crianças com necessidades
especiais requer uma mudança de perspectiva.
— Quanta responsabilidade você acha que os digientes são capazes de
assumir? — pergunta ela.
Derek estende os braços com as mãos espalmadas.
— Eu não sei — responde. — De certo modo, é como a síndrome de
Down: ela afeta cada um de modo diferente, de maneira que, toda vez que
minha irmã começa a trabalhar com uma nova criança, precisa improvisar
um pouco. Nós temos ainda menos material para nos servir de base, porque
ninguém nunca educou digientes por um tempo tão longo. Se car claro que
a única coisa que estamos conseguindo com as tarefas de casa é fazer com
que eles se sintam mal, então vamos parar, sem dúvida. Mas não quero que o
potencial de Marco e de Polo seja desperdiçado só porque quei com medo
de forçá-los demais.
Ela percebe que as ideias de Derek a respeito de “altas expectativas” são
diferentes das dela. Mais do que isso, percebe que a ideia dele é melhor.
— Você tem razão — diz Ana, após uma pausa. — Vamos ver se eles
conseguem fazer deveres de casa.
• • •

Um ano se passa, e Derek está nalizando um trabalho antes de ir encontrar


com Ana para almoçarem em um sábado. Pelas últimas duas horas, ele
testou avatares que poderiam alterar as proporções nos corpos e no rosto
dos digientes para fazê-los parecerem mais velhos. Entre os proprietários
que optaram por incrementar a educação dos seus digientes, um número
cada vez maior fala sobre a incongruência entre os avatares eternamente
fo nhos que eles ostentam e a sua crescente competência. Derek pretende
criar algo que corrija essa discrepância e torne mais fácil para os usuários
pensarem nos digientes como criaturas com mais capacidades.
Antes de sair, ele checa a caixa de mensagens e se surpreende ao ver
alguns desconhecidos acusando-o de estar praticando alguma espécie de
esquema. As mensagens parecem autênticas, de modo que ele as lê com
cuidado. Os remetentes se queixam de um digiente na Data Earth que se
aproxima deles e pede dinheiro.
Derek percebe o que deve ter acontecido. Há algum tempo, ele começou a
dar a Marco e a Polo uma mesada, que eles, em geral, gastam com jogos e
brinquedos virtuais. Então, os dois começaram a pedir mais dinheiro, mas
ele se negou. Devem ter decidido pedir dinheiro a pessoas aleatórias na Data
Earth para completar as despesas, mas, como os digientes estão rodando na
conta de Derek, as pessoas presumem que ele os treinou para isso.
Ele vai pedir longas desculpas a essas pessoas depois, mas primeiro pede
a Marco e a Polo que entrem nos seus corpos robôs. A tecnologia de
fabricação alcançou um ponto tal que ele pode se dar ao luxo de ser dono de
dois robôs customizados para complementar os avatares de Marco e de Polo.
Um minuto depois, os rostos de panda aparecem na parte da frente dos
capacetes, e Derek os repreende por pedirem dinheiro a estranhos.
— Pensei que tivessem mais juízo — diz ele.
Polo se desculpa.
— Sim, saber agora.
— Por que zeram isso?
— Ideia minha, não Polo — diz Marco. — Sabia não iam dar dinheiro.
Sabia iam falar com você.
Derek ca atônito.
— Vocês queriam deixar as pessoas com raiva de mim?
— Isso acontece porque nós na sua conta — diz Marco. — Não acontece
se a gente tiver conta nossa, que nem Voyl.
Agora ele entende. Os dois andaram ouvindo falar de um digiente do
Sophonce chamado Voyl. O dono dele — um advogado chamado Gerald
Hecht — deu entrada em papéis para a criação da Corporação Voyl, e o
digiente agora roda na Data Earth em uma conta separada, registrada no
nome da corporação. Voyl paga impostos e pode ser proprietário de coisas,
assinar contratos, entrar com ações judiciais e ser processado; em muitos
aspectos, ele é uma pessoa, embora uma da qual Hecht seja, tecnicamente
falando, o diretor.
Essa noção já estava sendo discutida havia algum tempo. Todos os
a cionados em inteligência arti cial concordam que é impossível que os
digientes venham a obter proteção legal enquanto classe, citando os
cachorros como exemplo: a empatia humana para com esses animais é
ampla e profunda, mas a eutanásia de cães nos abrigos chega às proporções
de um holocausto canino. Se os tribunais ainda não puseram um m a isso,
com certeza não vão conceder proteção a seres que nem sequer têm um
coração batendo. Assim, alguns proprietários acreditam que o máximo a que
podem ambicionar é uma proteção das leis em bases individuais. Atribuindo
características corporativas a um digiente especí co, um proprietário pode
se bene ciar de uma substancial jurisprudência que estabelece os direitos de
entidades não humanas. Hecht é o primeiro a pôr isso em prática.
— Então vocês estavam querendo provar um argumento — diz Derek.
— Pessoal diz que ser corporação bom demais — comenta Marco. —
Pode fazer o que quer fazer.
Muitos adolescentes humanos já se queixaram de que Voyl tem mais
direitos do que eles; é óbvio que esses comentários chegaram ao
conhecimento dos digientes.
— Bem, vocês não são corporações e não podem fazer o que quiserem.
— Nós pedir desculpa — diz Marco, de repente percebendo a confusão
em que estão metidos. — Só queria ser corporação.
— Eu já falei que vocês são muito novos.
— Mais velhos que Voyl — argumenta Polo.
— Eu mais mais — comenta Marco.
— Voyl também não tem idade para isso. O dono dele cometeu um erro.
— Então você não deixar a gente ser corporação nunca?
Derek dirige aos dois um olhar severo.
— Um dia, talvez, quando estiverem mais velhos. Veremos. Mas se os
dois aprontarem outra como essa de novo, vão ter de aguentar
consequências muito sérias. Entenderam?
Os digientes estão taciturnos.
— Sim — diz Marco.
— Sim — diz Polo.
— Muito bem. Preciso sair agora, mas voltaremos a conversar sobre isso
mais tarde. — Derek fecha a carranca para os dois. — Voltem para a Data
Earth.
Dirigindo em direção ao restaurante, Derek volta a pensar no que Marco
está pedindo. Há muitas pessoas céticas quanto à ideia de digientes se
tornando corporações. Eles veem as ações de Hecht como nada mais que um
golpe publicitário, e a impressão é reforçada pelos press releases distribuídos
pelo próprio advogado a respeito dos seus planos para Voyl. Hoje, Hecht
dirige a Corporação Voyl, mas está educando o digiente em direito
comercial e insiste que, um dia, Voyl tomará as decisões; o papel do diretor,
seja ocupado por Hecht, seja por outro indivíduo, não passará de uma
formalidade. Enquanto isso, ele convida os outros a desa ar o status de Voyl
como pessoa. Hecht tem os recursos para criar uma guerra nos tribunais, e
está impaciente por uma boa briga. Até agora não apareceu ninguém
disposto a enfrentá-lo, mas Derek tem esperança de que isso aconteça em
breve; quer que os precedentes quem bastante nítidos antes de considerar
fazer o mesmo com Marco e Polo.
Se Marco e Polo têm a capacidade intelectual para se tornarem
corporações é outra questão, e, para Derek, uma mais difícil de ser
respondida. Os digientes do Neuroblast já provaram que são capazes de
fazer deveres de casa sozinhos, e Derek con a que a capacidade de atenção
deles para tarefas independentes vai aumentar com regularidade à medida
que o tempo for passando; no entanto, mesmo que eles se tornem capazes de
realizar projetos de maior escala sem supervisão, isso ainda está muito longe
de torná-los capazes de tomar decisões de grande responsabilidade sobre o
futuro de alguém. E ele nem sequer está convencido de que esse nível de
independência é algo que encorajaria em Marco e Polo. Transformar Marco
e Polo em corporações abre caminho para que eles sejam mantidos rodando
depois de o próprio Derek falecer, o que é uma perspectiva preocupante:
indivíduos com síndrome de Down que cam sozinhos dispõem de
organizações para lhes prestar assistência, mas serviços similares de apoio
não existem para os digientes corporativados. Seria melhor se assegurar de
que Marco e Polo cassem em suspensão permanente caso Derek não
pudesse mais cuidar deles.
Seja qual for a decisão de Derek, ela terá que ser tomada sem Wendy: os
dois decidiram se divorciar. As razões são complicadas, é claro, mas uma
coisa é certa: criar dois digientes não é o que Wendy queria da vida, e, se
Derek precisa da parceria de alguém nessa empreitada, terá que encontrar
outra pessoa. O conselheiro matrimonial deles explicou que o problema não
são os digientes em si, mas o fato de que Derek e Wendy não conseguem
encontrar uma maneira de acomodar seus interesses distintos. Derek sabe
que o conselheiro tem razão, mas ter interesses em comum com certeza teria
ajudado bastante.
Ele não quer apressar as coisas, mas não consegue deixar de pensar que
esse divórcio lhe oferece a oportunidade de passar a ser algo mais que um
simples amigo para Ana. Ela também já deve ter considerado essa
possibilidade. Depois de se conhecerem há tanto tempo, como não poderia?
Eles formariam uma boa equipe, trabalhando juntos para dar aos seus
digientes o melhor tratamento possível.
Não que ele pretenda declarar seus sentimentos agora, na hora do
almoço; ainda é cedo demais para isso, e, além disso, ele sabe que Ana está
saindo com alguém, um cara chamado Kyle. Mas a relação está bem perto
da marca dos seis meses, que, em geral, é quando o sujeito percebe que Jax
não é apenas um hobby, mas a grande prioridade na vida dela; e não deve
demorar muito até o término. Derek pensa que, ao contar a Ana sobre o seu
divórcio, estará deixando claro para ela que há outras opções, que nem todos
os caras consideram que os digientes estão competindo pela atenção dela.
Ele procura Ana no restaurante, avista-a de longe e acena; ela abre um
largo sorriso. Quando chega à mesa, diz:
— Você não vai acreditar no que Marco e Polo zeram. — Ele conta tudo,
e ela ca boquiaberta.
— Isso é incrível — diz Ana. — Meu Deus, aposto que Jax deve ter
ouvido as mesmas coisas que eles.
— Sim, e você talvez devesse ter uma conversa com ele quando voltar
para casa.
Isso os leva a comentar os custos e os benefícios de dar aos digientes
acesso livre aos fóruns. Os fóruns oferecem uma interação mais rica do que
a que os donos podem proporcionar sozinhos, mas nem todas as in uências
que recebem são positivas.
Depois de algum tempo falando dos digientes, Ana pergunta:
— E fora isso, quais são as novidades?
Derek suspira.
— É bom que eu fale logo de uma vez: eu e Wendy vamos nos separar.
— Ah, não, Derek, que pena. — A simpatia dela é autêntica, e isso o
reconforta.
— Já devia ter acontecido há algum tempo — diz ele.
Ela assente.
— Sim, mas, mesmo assim, lamento muito.
— Obrigado.
Derek fala durante algum tempo sobre as coisas em que ele e Wendy já
estão de acordo, e como vão vender o apartamento e dividir o dinheiro.
Felizmente todo o processo está correndo em um clima amistoso.
— Pelo menos ela não quer cópias de Marco e de Polo — diz Ana.
— Sim, graças a Deus.
Um cônjuge quase sempre tinha o direito de copiar um digiente, e,
quando o divórcio não era amigável, era muito comum que ele fosse usado
em alguma vingança contra o ex. Através dos fóruns, eles já viram esse tipo
de coisa acontecer vezes demais.
— Mas vamos deixar isso de lado — sugere Derek. — Vamos falar de
outra coisa. Alguma novidade na sua vida?
— Nada, na verdade.
— Você parecia estar de muito bom humor até eu começar a falar de
Wendy.
— Bem, isso é verdade — admite ela.
— Então, havia alguma coisa em particular para que você estivesse se
sentindo tão bem?
— Não é nada.
— Um nada deixou você em um humor tão bom assim?
— Bem, tenho algumas notícias para dar, mas não precisamos falar sobre
isso agora.
— Ah, deixe de ser boba, está tudo bem. Se você tem boas notícias,
vamos ouvir.
Ana faz uma pausa e então, em um tom quase de quem pede desculpas,
diz:
— Eu e Kyle decidimos morar juntos.
Derek ca atônito.
— Parabéns — diz.
6

MAIS DOIS ANOS SE PASSAM.


A vida continua.
De vez em quando Ana, Derek e outros donos com mentalidade
educadora submetem seus digientes a testes padronizados, para compará-los
com crianças humanas. Os resultados variam. Os digientes Fabergé, sendo
analfabetos, não fazem testes escritos, mas parecem estar se desenvolvendo
bem de acordo com outras formas de medição. Entre os digientes Origami,
há uma divisão curiosa nos resultados, com metade dos casos continuando a
se desenvolver ao longo do tempo e metade estacionada no mesmo lugar,
talvez devido a alguma falha no genoma. Os digientes do Neuroblast se
saem razoavelmente bem quando lhes concedem os mesmos parâmetros
com que se testam os humanos que sofrem de dislexia; embora haja variação
entre digientes individuais, como um grupo, o desenvolvimento intelectual
deles continua rme.
O que é mais difícil de aferir é o desenvolvimento social, mas um sinal
encorajador é que os digientes estão socializando com adolescentes
humanos em muitas comunidades on-line. Jax começa a se interessar por
tetrabrake, uma subcultura focada em coreogra as de dança virtual para
avatares de quatro braços; tanto Marco quanto Polo se juntaram a fã-clubes
de um jogo dramático em série, e o tempo todo cada um tenta provar ao
outro a superioridade de uma determinada escolha feita no jogo. Mesmo
com Ana e Derek não entendendo muito bem o atrativo dessas
comunidades, estão satisfeitos ao ver que seus digientes fazem parte delas.
Os adolescentes que dominam essas comunidades parecem não se
preocupar com o fato de os digientes não serem humanos, e os tratam como
qualquer outro amigo on-line com baixas chances de se encontrar em
pessoa.
O relacionamento de Ana e Kyle tem altos e baixos, mas, via de regra, vai
bem. De vez em quando, os dois se encontram com Derek e com quem ele
esteja saindo naquele momento. Derek tem encontros com uma porção de
garotas, mas nada se torna sério. Ele diz a Ana que é porque as mulheres
com quem sai não partilham seu interesse pelos digientes, mas a verdade é
que os seus sentimentos por Ana se recusam a desaparecer.
A economia entra em recessão após a mais recente pandemia de gripe, e
isso resulta em transformações no mundo virtual. A Daesan Digital, a
empresa que criou a plataforma Data Earth, faz um pronunciamento
conjunto com a Viswa Media, a criadora da plataforma Real Space, e
anuncia que a Data Earth está se tornando parte da Real Space. Todos os
continentes da Data Earth serão substituídos por versões idênticas na Real
Space. Eles chamam isso de fusão de dois mundos, mas é apenas uma
maneira delicada de dizer que, após anos de upgrades e novas versões, a
Daesan não consegue mais continuar na guerra das plataformas.
Para a maior parte dos consumidores, isso signi ca que eles podem
atravessar um número muito maior de locações virtuais sem precisar logar e
deslogar o tempo todo. Durante os últimos anos, a maior parte das
companhias cujo so ware rodava na Data Earth já havia criado versões para
rodar na Real Space. Jogadores no Siege of Heaven ou em Elderthorn podem
se limitar a rodar um utilitário de conversão e fazer com que o seu
repertório de armas e vestes esteja à sua espera nas versões dos continentes
dos jogos na Real Space.
Há uma exceção, no entanto: o Neuroblast. Não existe uma versão Real
Space da ferramenta Neuroblast — a Blue Gamma fechou as portas antes de
essa plataforma ser criada — o que signi ca que não há como um digiente
com um genoma do Neuroblast entrar em um ambiente da Real Space. Os
digientes Origami e Fabergé veem a migração para a Real Space como uma
expansão de suas possibilidades, mas para Jax e os outros digientes do
Neuroblast o anúncio da Daesan signi ca essencialmente o m do mundo.
• • •

Ana está se preparando para ir dormir quando escuta o barulho. Corre até a
sala para ver o que foi.
Jax está usando o corpo de robô e examina o próprio pulso. Um dos
azulejos da parede perto dele está quebrado. Ele vê Ana entrando e diz:
— Sentir muito.
— O que você estava fazendo? — pergunta Ana.
— Sentir muito mesmo.
— Me diga o que você fez.
Com relutância, Jax responde:
— Cartwheel.
— E seu pulso cedeu e você bateu na parede.
Ana dá uma olhada no pulso do robô. Como ela temia, vai ter de ser
substituído.
— Eu não crio essas regras para você não se divertir. Mas é isso que
acontece quando você dança no corpo do robô.
— Sei que você falou. Mas tentar dançar só um pouco, e corpo bem.
Tentar mais, e corpo ainda bem.
— E aí você tentou mais um pouco, e agora vamos ter que pagar por um
pulso e um azulejo novos. — Ela calcula quando será possível substituir
aquelas coisas e se conseguirá evitar que Kyle, que está viajando a trabalho,
acabe descobrindo o que aconteceu. Alguns meses atrás, Jax dani cou um
pedaço de uma escultura que Kyle adorava, e é melhor não fazê-lo se
lembrar desse incidente.
— Sentir muito muito mesmo — a rma Jax.
— Muito bem, de volta para a Data Earth. — Ana aponta para a
plataforma de recarga.
— Eu admitir erro…
— Vamos, agora.
Jax obedece, mas, antes de pisar na plataforma, ele diz baixinho:
— Não é Data Earth. — E o capacete do robô ca às escuras.
Jax andou se queixando sobre a versão da Data Earth que foi montada
pelo grupo de usuários do Neuroblast, duplicando muitos dos continentes
da original. Em um aspecto, é bem melhor do que a ilha particular que eles
usavam como refúgio na época das invasões dos hackers da FLI, porque o
processamento agora é tão barato que é possível administrar dezenas de
continentes; em outro aspecto, é muito pior, porque esses continentes são
quase inteiramente desprovidos de habitantes.
O problema não é apenas que todos os humanos se mudaram para a Real
Space. Os digientes Origami e Fabergé foram para essa plataforma também,
e Ana não tem como condenar os donos deles; ela teria feito o mesmo se
tivesse a oportunidade. Muito mais estressante é car sabendo que grande
parte dos digientes do Neuroblast desapareceu, inclusive muitos amigos de
Jax. Alguns membros do grupo de usuários se afastaram depois que a Data
Earth fechou, outros adotaram uma estratégia de “esperar para ver”, mas
caram desanimados quando viram como a Data Earth privada estava
empobrecida, preferindo suspender os digientes a criá-los em uma cidade
fantasma. E, o pior de tudo, é com isso que a Data Earth privada se parece:
uma cidade fantasma do tamanho de um planeta. Há enormes extensões de
terreno projetado para se andar sem rumo, mas não existe ninguém com
quem se possa conversar a não ser pelos tutores que vão até lá para ministrar
as aulas. Há masmorras sem aventuras, shoppings sem movimento, estádios
sem eventos esportivos. É o equivalente digital de uma paisagem pós-
apocalíptica.
Os amigos humanos de Jax da turma do tetrabrake costumavam logar na
Data Earth privada apenas para visitá-lo, mas essas visitas estão rareando
cada vez mais; todos os eventos ligados ao tetrabrake agora acontecem na
Real Space. Jax pode mandar e receber gravações de coreogra as, mas boa
parte da cena musical de lá consiste em encontros ao vivo onde a coreogra a
é improvisada, e é impossível para ele participar disso. Jax está perdendo a
maior parte da vida social que tinha no mundo virtual e não consegue
encontrar uma no mundo real: o corpo de robô está registrado como um
veículo de trânsito livre não pilotado, de modo que ele só pode ir a espaços
públicos se Ana ou Kyle o acompanharem. Con nado ao apartamento, Jax
se torna entediado e irritadiço.
Durante semanas, Ana tentou fazer com que Jax entrasse no corpo do
robô, sentasse diante do computador e logasse na Real Space, mas ele se
recusa. Houve di culdades com a interface do usuário — a inexperiência
dele com o manejo de um computador de verdade, agravada pela
performance irregular da câmera ao captar gestos feitos pelo corpo do robô
—, mas ela acredita que os dois poderiam tê-las superado. O maior
problema é que Jax se recusa a controlar o avatar de forma remota: ele quer
ser o avatar. Para ele, o teclado e a tela são péssimos substitutos para a
experiência de estar ali, tão insatisfatórios quanto um videogame de selva
seria para um chimpanzé trazido do Congo.
Todos os digientes do Neuroblast que sobraram passam pela mesma
frustração, deixando bem claro que uma Data Earth privada é apenas um
remendo temporário. É necessário descobrir uma maneira de rodar os
digientes na Real Space, permitindo que eles se movimentem à vontade,
interagindo com o ambiente e os habitantes. Em outras palavras, a solução é
transportar a ferramenta do Neuroblast: reescrevê-la de modo a poder rodar
na plataforma Real Space. Ana conseguiu persuadir os antigos donos da
Blue Gamma a liberar o código-fonte do Neuroblast, mas é preciso que
apareçam desenvolvedores experientes para reescrevê-lo. O grupo de
usuários postou anúncios em fóruns de códigos abertos na tentativa de
atrair voluntários.
A única vantagem da queda da Data Earth é que os digientes deles estão a
salvo do lado tenebroso do mundo das mídias sociais. Na Real Space, uma
empresa chamada Edgeplayer começou a distribuir uma câmara de tortura
para digientes. Para evitar acusações de cópia não autorizada, eles usam
digientes em domínio público como vítimas. O grupo de usuários entrou em
um acordo de que, assim que o transporte da ferramenta do Neuroblast for
feito, o processo de conversão deverá incluir um registro pleno de
propriedade: nenhum digiente do Neuroblast será movido para a Real Space
sem alguém que esteja comprometido a cuidar dele.
• • •

Dois meses se passam. Derek está dando uma olhada no fórum do grupo de
usuários, lendo as respostas a uma postagem que questionava como ia o
transporte do Neuroblast. Infelizmente, as notícias não são animadoras: as
tentativas de recrutar um grupo de desenvolvedores não foram bem-
sucedidas. O grupo promoveu eventos de portas abertas na Data Earth
privada, para que outras pessoas pudessem interagir com os digientes, mas
poucas foram aceitas.
O problema é que as ferramentas genômicas não são mais novidade.
Desenvolvedores são atraídos por projetos novos e estimulantes, e, no
momento, isso signi ca trabalhar com interfaces neurais ou so wares de
nanomedicina. Há dezenas de ferramentas genômicas de nhando em
estados variados de inconclusão nos repositórios de códigos abertos, todas
precisando de programadores voluntários, e a perspectiva de fazer o
transporte de uma ferramenta como o Neuroblast, de doze anos de idade,
para uma nova plataforma, deve ser uma das menos excitantes que há.
Apenas um grupo de estudantes contribui com esse trabalho, e,
considerando o pouco tempo que podem se dedicar a isso, a própria
plataforma Real Space já deverá estar obsoleta quando a função for
concluída.
A alternativa é contratar desenvolvedores pro ssionais. Derek já
conversou com alguns pro ssionais com experiência em ferramentas
genômicas e pediu orçamentos para o transporte do Neuroblast. Os valores
que recebeu foram bem razoáveis dada a complexidade do projeto, e, para
uma companhia com centenas de milhares de clientes, a decisão mais
sensata seria seguir adiante. No entanto, para um grupo de usuários cujo
contingente minguara para mais ou menos vinte pessoas, o preço é alto
demais.
Derek dá uma olhada nos comentários mais recentes exibidos no fórum e
depois liga para Ana. Ver os digientes con nados em uma Data Earth
privada tem sido difícil, mas, para ele, há também um lado bom: ele e Ana
têm um motivo para se falarem todo dia, seja a respeito do avanço do
transporte do Neuroblast, seja sobre a organização de atividades recreativas
para os digientes. Durante os últimos anos, quando começaram a ter
interesses próprios, Marco e Polo se distanciaram de Jax, mas agora os
digientes do Neuroblast têm apenas a si mesmos como companhia, de modo
que ele e Ana procuram atividades em que todos possam agir em conjunto.
Ele já não tem mais uma esposa para reclamar disso, e o namorado de Ana,
Kyle, não parece se incomodar, de modo que ele liga para ela sem culpa.
Passar tanto tempo com ela é uma forma dolorosa de prazer e seria mais
saudável interagir menos com Ana, mas ele não quer parar.
O rosto dela aparece em uma tela menor de telefone.
— Você viu o post do Stuart? — pergunta Derek. Stuart havia calculado
quanto cada um teria que pagar se os custos fossem divididos igualmente, e
indagava quantos dos membros poderiam desembolsar um valor daqueles.
— Acabei de ler — diz Ana. — Talvez ele ache que esteja sendo útil, mas
o que está fazendo é deixar as pessoas mais nervosas.
— Concordo — diz ele. — Mas enquanto não sugerirmos uma boa
opção, esse custo por pessoa será a única coisa em que todo mundo vai
pensar. Você se encontrou com o pessoal que angaria fundos? — Ana tinha
marcado uma conversa com a amiga de uma amiga, uma mulher que cria
campanhas para angariar fundos a m de salvar santuários da fauna nativa.
— Na verdade, acabei de almoçar com ela.
— Legal! O que ela disse?
— A má notícia é que ela não acha que possamos nos quali car para o
status de sem ns lucrativos, porque estamos pedindo dinheiro em benefício
de um grupo limitado de indivíduos.
— Mas qualquer um vai poder usar a nova ferramenta…
Derek se detém. É verdade que devem existir milhões de digientes do
Neuroblast registrados, guardados em arquivos mundo afora, mas o grupo
de usuários não pode dizer com sinceridade que está trabalhando em prol
deles. Sem alguém que queira se responsabilizar por eles, nenhum desses
digientes se bene ciaria de uma versão Real Space do Neuroblast. Os únicos
digientes que o grupo pretende ajudar são os seus.
Ana assente, sem dizer nada; ela deve ter pensado a mesma coisa.
— Tudo bem — diz Derek —, não podemos ser não lucrativos. E a boa
notícia, qual é?
— Ela diz que podemos pedir contribuições ainda assim, mesmo que seja
fora do modelo não lucrativo. Só precisamos contar uma história que faça
nascer uma simpatia pelos digientes. É dessa forma que alguns zoológicos
conseguem pagar por coisas como cirurgias em elefantes.
Ele pensa naquilo por um instante.
— Acho que podemos postar alguns vídeos sobre os digientes, para tocar
no fundo do coração das pessoas.
— Exato. E se conseguirmos criar uma boa comoção popular, podemos
receber doações de tempo, não apenas de dinheiro. Qualquer coisa que faça
aumentar o prestígio dos digientes vai aumentar as chances de atrair
voluntários da comunidade de código aberto.
— Vou reassistir aos meus vídeos para colher algumas cenas com Marco
e Polo — diz ele. — Há muito material simpático de quando eles eram
novinhos. Não tenho certeza quanto ao material mais recente. Ou devíamos
adotar a abordagem tipo “partir corações”?
— Devíamos conversar para ver o que funciona melhor — sugere Ana. —
Vou postar no fórum perguntando a todo mundo.
Derek se lembra de uma coisa.
— Por falar nisso, recebi uma ligação ontem que pode ser útil. Mas é um
tiro no escuro.
— O que foi?
— Você se lembra dos Xenoterianos?
— Os digientes que eram para ser alienígenas? Esse projeto ainda existe?
— Mais ou menos.
Ele explica que foi contatado por um rapaz chamado Felix Radcliffe, que
é um dos últimos participantes do projeto Xenoterianos. A maior parte dos
membros mais antigos já desistiu anos atrás, exaustos pela di culdade de
inventar toda uma cultura alienígena a partir do zero. Entretanto, há um
pequeno grupo que ainda resiste, e seus participantes se tornaram quase
monomaníacos. Pelo que Derek conseguiu entender, são na maioria
desempregados que quase nunca deixam o quarto onde moram na casa dos
pais, vivendo apenas na Data Mars. Felix é o único indivíduo entre eles
disposto a tomar a iniciativa de contatar alguém de fora.
— E as pessoas chamam a gente de fanáticos — diz Ana. — Por que ele
procurou você?
— Felix ouviu falar que estamos trabalhando para fazer o transporte do
Neuroblast e quer ajudar. Reconheceu o meu nome porque fui eu que
desenhei os avatares deles.
— Sorte sua — diz ela, sorrindo, e Derek faz uma careta. — Por que eles
se interessam pelo transporte do Neuroblast? Pensei que o conceito
principal da Data Mars era manter os Xenoterianos isolados.
— No começo era, mas agora ele decidiu que os digientes estão prontos
para conviver com seres humanos e quer organizar um experimento de
primeiro contato. Se a Data Earth ainda estivesse funcionando, ele
permitiria que os Xenoterianos zessem uma expedição aos continentes
principais, mas isso não é mais uma opção. Portanto, Felix e nós estamos no
mesmo barco: ele quer que seja feito o transporte do Neuroblast para que os
digientes deles passem para a Real Space.
— Bem… Isso eu acho que posso entender. E você falou que talvez ele
nos ajude a angariar fundos?
— Ele está tentando gerar interesse entre antropólogos e exobiólogos.
Acredita que esses caras vão querer tanto estudar os Xenoterianos que
podem até nanciar o transporte.
Ana ca com uma expressão de dúvida.
— Eles pagariam mesmo por algo assim?
— Duvido — responde Derek. — Os Xenoterianos não são alienígenas de
verdade. Acho que Felix teria mais sorte com companhias produtoras de
videogames que precisassem de alienígenas para povoar seus planetas, mas a
decisão é dele. Mas penso que se ele não abordar as pessoas com quem
estamos falando, não vai ameaçar nossas chances, e há uma possibilidade de
que possa vir a ser útil.
— Mas se ele for tão desajeitado quanto parece, como vai poder
persuadir alguém?
— Bem, não vai ser pelos seus talentos como vendedor. Ele tem um vídeo
dos Xenoterianos que está exibindo para os antropólogos, a m de despertar
o interesse deles. E me deixou ver um trecho.
— Que tal?
Ele encolhe os ombros e ergue as mãos.
— Pelo que senti, era o mesmo que estar vendo uma velha colônia de
robôs-jardineiros.
Ana dá uma risada.
— Bem, talvez seja uma coisa boa. Talvez quanto mais alienígenas eles
parecerem, mais interessantes possam ser para alguém.
Derek ri também, imaginando a ironia: depois de todo o trabalho que
tiveram na Blue Gamma para tornar os digientes fo nhos, e se os mais
bizarros fossem aqueles que atrairiam mais interesse do público?
7

MAIS DOIS MESES SE PASSAM.


As tentativas do grupo de usuários de levantar
fundos não têm muito sucesso: as pessoas com índole caridosa já não
querem ouvir falar muito em espécies naturais ameaçadas de extinção,
quanto mais as arti ciais; e os digientes não são fotogênicos como gol nhos.
O uxo de doações nunca chega a ser mais do que um punhado de dinheiro.
O estresse do con namento na Data Earth está começando a se fazer
sentir nos digientes. Os usuários tentam passar mais tempo na companhia
deles para evitar que quem entediados, mas isso não substitui um mundo
virtual povoado. Ana também procura manter Jax afastado dos problemas
relativos ao transporte do Neuroblast, mas, mesmo assim, ele ca ciente do
que está acontecendo. Um dia, quando ela chega do trabalho, ao logar na
Data Earth encontra Jax bastante agitado.
— Quer saber sobre transporte — diz ele, sem rodeios.
— O que tem?
— Antes pensar que era só upgrade, que nem outros. Agora acho maior.
Ser mais um upload, só que com digientes e não gente, certo?
— Sim, suponho que sim.
— Você ver vídeo do rato?
Ana sabe do que Jax está falando, um vídeo divulgado há alguns dias por
uma equipe de pesquisadores de upload. O vídeo mostra um rato-branco
sendo congelado e vaporizado, micrômetro a micrômetro, transformando-se
em nuvens de fumaça por um raio escaneador eletrônico para, em seguida,
ser instanciado em uma plataforma de testes onde é virtualmente
descongelado e reanimado. O animal tem uma convulsão na mesma hora,
agita-se durante alguns minutos e morre. No momento, ele detém o recorde
de maior tempo de sobrevivência de um mamífero submetido a um upload.
— Aquilo não vai acontecer com você — diz ela.
— Você diz que não vai lembrar se acontecer — comenta Jax. — Só
lembrar se der certo.
— Ninguém vai fazer você, ou qualquer outro digiente, rodar em uma
máquina que ainda não foi testada. Quando o Neuroblast for transportado,
vamos fazer uma série de testes e corrigir todos os bugs antes de rodar um
digiente nele. Essas cobaias de teste não sentem nada.
— Pesquisadores zerem testes antes de fazer upload no rato?
Jax é bom com as perguntas difíceis.
— Os ratos são as cobaias — admite Ana. — Mas isso é porque ninguém
tem o código-fonte de um cérebro orgânico, de modo que não é possível
escrever cobaias mais simples do que os ratos reais. Mas nós temos o
código-fonte do Neuroblast, de modo que não vamos ter esse problema.
— Mas não têm dinheiro para pagar transporte.
— Não, não agora, mas vamos conseguir. — Ela espera soar mais
con ante do que de fato está.
— Como poder ajudar? Como arranjar dinheiro?
— Obrigada, Jax, mas no momento não há como você conseguir dinheiro
— responde ela. — Por enquanto, sua tarefa é continuar estudando e se sair
bem nas provas.
— Sim, saber disso. Estudar agora, fazer outras coisas depois. E se pedir
empréstimo e pagar quando estiver ganhando dinheiro?
— Deixe que eu me preocupo com isso, Jax.
Ele ca taciturno.
— Tá.
Na verdade, o que Jax sugere é quase o que o grupo de usuários tentou
fazer há alguns dias em sua busca por investidores corporativos. O caminho
foi aberto pelo sucesso da VirlFriday em vender digientes como assistentes
pessoais. Levou vários anos, mas Talbot, en m, conseguiu produzir uma
instanciação do Andro capaz de trabalhar para qualquer pessoa, e a
VirlFriday vendeu centenas de milhares de cópias. É a primeira
demonstração de que um digiente pode ser lucrativo, e já há várias outras
companhias tentando imitar esse sucesso.
Uma dessas empresas chama-se Polytope, e já anunciou seus planos para
o lançamento de um enorme programa para a criação de um novo Andro. O
grupo de usuários entrou em contato com eles e lhes ofereceu uma parcela
dos direitos sobre o futuro dos digientes do Neuroblast: em troca de
nanciar o transporte da ferramenta Neuroblast, a Polytope receberia uma
porcentagem do lucro gerado pelos digientes em perpetuidade. O grupo se
sentiu mais esperançoso do que em muitos meses, mas a resposta da
empresa foi negativa. Os únicos digientes em que a Polytope estava
interessada eram os Sophonce, cujo foco obsessivo era necessário, se o
propósito era substituir o so ware convencional.
O grupo de usuários já discutiu a possibilidade de pagar pelo transporte
com dinheiro próprio, mas isso é impraticável. Como resultado, alguns
membros começam a considerar atitudes inconcebíveis:

De: Stuart Gust


Detesto ser a pessoa a puxar esse assunto, mas alguém tem que ser o primeiro.
O que acham de suspendermos os digientes por um tempo, um ano, mais ou
menos, até conseguirmos levantar o dinheiro do transporte?

De: Derek Brooks


Você sabe o que acontece quando alguém põe um digiente em suspensão.
“Temporário” se transforma em “por tempo indefinido” que se transforma em
“permanentemente”.

De: Ana Alvarado


Concordo. É muito cômodo entrar nesse ciclo de procrastinação eterna. Vocês já
ouviram falar em alguém que reiniciou um digiente suspenso há mais de seis
meses? Eu, não.

De: Stuart Gust


Mas nós não somos como aquelas pessoas. Elas suspenderam seus digientes
porque estavam cansadas deles. Nós vamos sentir falta dos nossos todos os dias;
isso vai servir de incentivo para trabalharmos mais e obter o dinheiro.

De: Ana Alvarado


Se você acha que suspender Zaff vai aumentar sua motivação, vá em frente.
Manter Jax funcionando é o que me motiva.

Ana não tem a menor dúvida do que diz quando posta essas palavras no
fórum, mas a conversa ca mais difícil quando, dias depois, o próprio Jax
aborda o assunto. Os dois estão na Data Earth privada, onde ela está lhe
mostrando um novo continente de jogos. É um clássico, que Ana adorava
anos atrás e agora foi liberado para acesso livre, de modo que o grupo
instanciou uma cópia para os seus digientes. Ela tenta transmitir todo o
entusiasmo que sente, mostrando o que distingue aquele continente dos
outros, continentes dos quais os digientes já estão cansados. No entanto, Jax
só vê o que o continente é de verdade: mais uma tentativa de mantê-los
ocupados enquanto o transporte do Neuroblast não se realiza.
Quando caminham por uma praça deserta de uma vila medieval, ele diz:
— Às vezes preferir estar suspenso, não ter esperar mais. Reiniciar
quando entrar na Real Space, sem sentir que tempo passou.
O comentário pega Ana desprevenida. Nenhum digiente tem acesso aos
fóruns dos grupos de usuários, então Jax deve ter chegado àquela ideia
sozinho.
— É isso mesmo o que você quer? — pergunta ela.
— Não mesmo. Queria car acordado, saber acontecimentos. Mas às
vezes frustrante. — Então ele pergunta: — Você às vezes preferia não cuidar
de mim?
Ela se assegura de que Jax está olhando para o rosto dela ao responder:
— Minha vida seria bem mais simples se eu não tivesse que cuidar de
você, mas não seria nada feliz. Eu te amo, Jax.
— Amo você também.
• • •

No carro, de volta do trabalho, Derek recebe uma mensagem de Ana


dizendo que foi contatada por alguém da Polytope, e, assim que chega em
casa, liga para ela.
— O que aconteceu? — pergunta.
Ana tem uma expressão de quem está se divertindo.
— Foi uma ligação muito estranha.
— Estranha como?
— Estão me oferecendo um emprego.
— É mesmo? Para fazer o quê?
— Para treinar digientes Sophonce — diz ela. — Devido à minha
experiência prévia, eles querem que eu che e uma equipe. Me ofereceram
um ótimo salário, três anos de garantia de emprego e um bônus na
assinatura do contrato que é, bem, fabuloso. Mas tem um problema.
— Que é? Não me deixe nesse suspense.
— Todos os treinadores têm de usar o InstantRapport.
Os olhos de Derek se arregalam.
— Está brincando — diz ele.
O InstantRapport é um novo transdérmico inteligente, um adesivo que
libera doses de um coquetel de opioides e oxitocina sempre que o usuário
está na presença de uma pessoa especí ca. Vem sendo usado para fortalecer
casamentos em crise e relacionamentos problemáticos entre pais e lhos,
está há pouco no mercado e não é necessária uma prescrição médica.
— Mas por quê?
— Eles acham que a presença de afeto pode produzir resultados melhores
e que a única maneira de fazer os treinadores sentirem afeto pelos digientes
Sophonce é com uma intervenção farmacêutica.
— Ah, entendi. Uma forma de aumentar a produtividade dos
funcionários. — Ele conhece muita gente que toma nootrópicos ou usa
estimulação magnética transcranial para aumentar o desempenho no
trabalho, mas até agora nenhum empregador transformou isso em uma
exigência. Derek balança a cabeça com incredulidade. — Se os digientes
deles são tão difíceis de amar, bem que podiam aproveitar a deixa e mudar
para os digientes do Neuroblast.
— Falei algo parecido, mas eles não se interessaram. Só que tive uma
ideia. — Ana se inclina para a frente. — Se eu for trabalhar para eles, posso
fazê-los mudar de opinião.
— O que pretende fazer?
— Seria uma oportunidade para mostrar Jax aos administradores da
Polytope de vez em quando. Posso logar na nossa Data Earth no trabalho,
talvez até levá-lo comigo no corpo de robô. Que maneira melhor de
demonstrar quanto a ferramenta Neuroblast é versátil? E assim que eles
perceberem isso, vão fazer o transporte para a Real Space.
Derek pensa um pouco.
— Tudo isso supondo que eles não proíbam você de perder tempo com
Jax durante o expediente.
— Me dê um pouco de crédito. Não vou en ar essa coisa pela goela deles
abaixo. Serei um pouco mais sutil.
— Pode ser que funcione — diz ele. — Mas você vai ter que usar adesivos
de InstantRapport. Será que vale a pena?
Ana dá de ombros, em um gesto de frustração.
— Não sei. Essa com certeza não seria a minha primeira escolha. Mas, às
vezes, temos que arriscar, não é? Forçar a barra um pouco.
Ele não sabe bem o que dizer.
— O que Kyle pensa a respeito?
Ela suspira.
— Ele é contra. Não gosta nem um pouco da ideia de me ver tomando
InstantRapport e não acha que as chances que eu talvez tenha justi quem
isso. — Ela faz uma pausa, depois continua: — Mas ele não vê os digientes
da mesma maneira que eu e você, de modo que é claro que iria pensar
assim. Para ele, não há recompensa su ciente.
É visível que Ana precisa de apoio, e ele não se faz de rogado. Por dentro,
porém, seus pensamentos são con ituosos. Ele tem reservas em relação à
proposta de Ana, mas hesita em revelar isso a ela.
Derek detesta ter esse tipo de pensamento, mas sempre que Ana
menciona estar tendo alguma di culdade com Kyle, ele sonha com a
separação deles. Já garantiu a si mesmo que nunca vai fazer coisa alguma
para afastar os dois, mas, se Kyle não compartilha a dedicação de Ana para
com os digientes, Derek não está fazendo nada de errado ao mostrar que ele
o faz. Se isso der a Ana a noção de que ele seria um parceiro mais adequado
para ela, não é culpa de Derek.
A questão agora é se seria uma boa ideia Ana aceitar a proposta de
emprego da Polytope. Ele não sabe o que pensar, mas, enquanto não tiver
certeza, o melhor a fazer é apoiá-la.
Depois que encerra a ligação, Derek se loga na Data Earth privada para
passar um tempo com Marco e Polo. Os dois estão disputando uma partida
de raquetebol em gravidade zero, mas descem da quadra quando o avistam.
— Conhecemos visitas boas hoje — diz Marco.
— É mesmo? Sabem quem são?
— Pessoa chamada Jennifer e pessoa chamada Roland.
Derek checa o registro de visitantes e xa perplexo com o que vê. Jennifer
Chase e Roland Michaels são funcionários de uma companhia chamada
Binary Desire, uma fabricante de bonecos eróticos virtuais e físicos.
Não é a primeira vez que o grupo de usuários recebe a consulta de
alguém que quer usar os digientes para o sexo. A grande maioria das
bonecas eróticas ainda é controlada por so wares convencionais que
encenam roteiros escritos de antemão. No entanto, desde que os digientes
apareceram há pessoas querendo transar com eles. O procedimento padrão
é copiar um digiente em domínio público e recon gurar seu mapa de
estímulos prazerosos para que eles passem a gostar do que quer que o dono
deles considere excitante. Alguns críticos consideram isso o equivalente a
uma pessoa fazer um cachorro lamber manteiga de amendoim espalhada
sobre o seu órgão genital, e não é uma comparação injusta, seja em termos
da inteligência dos digientes, seja da so sticação do treinamento. Hoje, não
há digientes com aparência tão remotamente humana quanto a de Marco e
Polo que estejam disponíveis para sexo, de modo que, vez por outra, o grupo
recebe alguma consulta de fabricantes de bonecos eróticos interessados em
comprar cópias. No grupo, todos concordaram em ignorar essas abordagens.
Contudo, de acordo com os registros de entrada, Chase e Michaels foram
trazidos por Felix Radcliffe.
Derek diz a Marco e Polo para continuar jogando, e então liga para Felix.
— O que diabo você tem na cabeça? Trazendo esse pessoal da Binary
Desire para cá?
— Eles não tentaram sexualizar os digientes.
— Sei muito bem disso. — Derek está com todos os registros de visita
sendo exibidos em uma janela menor com o dobro da velocidade.
— Eles conversaram com eles.
Às vezes, falar com Felix é como dirigir-se a um alienígena.
— Tínhamos um acordo a respeito dos fabricantes de bonecos eróticos.
Lembra-se disso?
— Esse pessoal não é como os outros. Eu gosto da maneira como
pensam.
Derek tem até medo de perguntar o que aquilo signi ca.
— Se você gosta deles, leve-os para a Data Mars e mostre a eles os
Xenoterianos.
— Já mostrei — responde Felix. — Não caram interessados.
Claro que não, pensa Derek. A demanda por sexo com criaturas de três
pés que falam lojban deve ser microscópica. Mas ele vê que Felix está sendo
honesto, e que o rapaz não se incomodaria em prostituir os Xenoterianos se
isso o ajudasse a nanciar o experimento de primeiro contato. Felix pode ser
excêntrico, mas não é hipócrita.
— Então, o assunto deveria ter morrido aí — diz Derek. — Talvez
tenhamos que banir você.
— Vocês deviam conversar com esse pessoal.
— Não, não devíamos.
— Eles vão pagar para que apenas os escutem. Vão mandar uma
mensagem com detalhes especí cos.
Derek quase ri. A Binary Desire deve estar bastante desesperada se está
disposta a pagar a alguém para escutar uma proposta de compra.
— Não me incomodo com mensagens. Mas vou pôr os nomes dessa
gente na lista de pessoas bloqueadas, e não quero que você volte a trazer
ninguém que esteja ligado a qualquer fabricante desses bonecos. Fui claro?
— Sim — responde Felix, e desliga.
Derek balança a cabeça. Em uma situação normal, ele nem consideraria a
possibilidade de escutar uma proposta de compra daquela natureza, mesmo
em troca de pagamento, porque não queria dar a impressão de que estaria
interessado em vender Marco e Polo como objetos sexuais.
No momento, porém, o grupo precisa de todo dinheiro que conseguir
arrecadar. Se o fato de ouvir a proposta de uma empresa encorajar outras
empresas a pagar por uma oportunidade equivalente, talvez valha a pena.
Ele volta ao começo do vídeo com o encontro entre os visitantes e os
digientes e passa a rodá-lo na velocidade normal.
8

O GRUPO DE USUÁRIOS se reúne para ouvir a proposta da Binary Desire


através de videoconferência. A Binary Desire depositou o pagamento com
uma empresa intermediária, que vai liberar o dinheiro assim que as
condições combinadas forem cumpridas. Sentada bem no foco da sua tela
curva, Ana olha em volta; a transmissão dos vídeos dos participantes é
integrada de tal forma que o grupo parece estar se reunindo em um
auditório virtual, cada um deles no próprio balcão particular. Derek está no
balcão à sua esquerda e Felix está à esquerda dele. No pódio, no centro do
palco, está a representante da Binary, Jennifer Chase. Sua imagem no vídeo é
loura, bonita, vestida com bom gosto. Como os participantes concordaram
em usar vídeo autenticado, Ana sabe que essa é de fato a aparência dela. Fica
pensando se a Binary Desire encarrega Jennifer de todas as negociações: a
mulher provavelmente é muito competente em conseguir o que quer.
Felix se levanta da cadeira e começa a dizer algo em lojban, mas para e
diz:
— Vocês vão gostar do que ela tem a dizer.
— Obrigada, Felix, mas posso assumir daqui em diante — retruca ela.
Felix volta a se sentar, e Chase se dirige ao grupo.
— Obrigada a todos por concordarem com esse encontro. Em geral,
quando me reúno com um possível parceiro de negócios, costumo falar
sobre como a Binary Desire pode ajudá-lo a alcançar um mercado mais
amplo do que ele conseguiria sozinho, mas não é isso que vou fazer aqui.
Meu objetivo nesse encontro é garantir a todos que seus digientes serão
tratados com respeito. Não queremos criaturas de estimação que tenham
sido sexualizadas por mero condicionamento operativo. Queremos seres que
se envolvam com o sexo em um nível mais elevado e pessoal.
Stuart intervém:
— Como espera conseguir isso se os nossos digientes são assexuados?
Chase nem pisca.
— Com um mínimo de dois anos de treino.
Ana ca surpresa.
— É um investimento considerável — diz ela. — Achei que os digientes
que funcionam como bonecos eróticos passavam por duas semanas de
treino em geral.
— É porque geralmente eles são digientes Sophonce, e não se tornam
melhores parceiros sexuais se levar dois anos ou duas semanas. Não sei se
vocês já viram os resultados, mas, caso tenham curiosidade, posso lhes
mostrar como encontrar um harém de Draytas usando avatares de Marilyn
Monroe, todos gemendo “Quero chupar pau”. Não é muito bonito.
Ana solta uma risada involuntária, assim como outras pessoas.
— Não, não parece ser.
— Não é isso que a Binary Desire tem em mente. Qualquer um pode
pegar um digiente em domínio público e recon gurar seu mapa de prazer. O
que queremos é oferecer parceiros sexuais com uma personalidade
verdadeira e estamos dispostos ao investimento e ao esforço que sejam
necessários para criá-los.
— Nesse caso, como seria o seu treinamento? — pergunta Helen Costas,
de um balcão mais atrás.
— Em primeiro lugar, descobertas e explorações sexuais. Daríamos aos
digientes avatares corretos do ponto de vista anatômico e permitiríamos que
eles se acostumassem ao fato de terem zonas erógenas. Eles seriam
encorajados a ter experiências sexuais uns com os outros, para adquirir certa
prática como seres sexuais, e depois escolheriam o gênero com o qual se
sentissem mais à vontade. Já que grande parte do aprendizado que terá lugar
nessa fase ocorrerá apenas entre eles mesmos, pode haver períodos em que
estarão rodando mais rápido do que em tempo real. Uma vez que tenham
adquirido uma experiência razoável, começaremos o processo de união com
parceiros humanos compatíveis.
— O que a deixa tão certa de que eles vão estabelecer uma ligação com
um ser humano especí co? — pergunta Derek.
— Nossos desenvolvedores examinaram alguns dos digientes dos abrigos.
Eles são jovens demais para o nosso propósito, mas desenvolveram vínculos
emocionais, e temos análises em número su ciente que demonstram ser
possível induzir vínculos semelhantes em digientes mais velhos. À medida
que os digientes forem conhecendo melhor um ser humano, vamos
incrementar a dimensão emocional das suas interações, tanto sexuais
quanto não sexuais, de modo a gerar amor no digiente.
— Como uma versão em Neuroblast do InstantRapport — observa Ana.
— Algo assim — responde Chase —, porém muito mais e caz e
especí co, porque será todo customizado. Para o digiente, vai ser algo
indistinguível de apaixonar-se de maneira espontânea.
— Essa customização não parece ser algo que se possa conseguir logo na
primeira tentativa — diz Ana.
— Não, claro que não — concorda Chase. — Esperamos que decorram
meses antes que um digiente possa amar alguém; durante esse período,
estaremos trabalhando com o cliente, retornando o digiente a pontos de
recuperação, tentando diversos tipos de ajuste até que o laço emocional seja
estabelecido. Será parecido com o programa de acompanhamento que vocês
utilizavam quando trabalhavam na Blue Gamma, só que dirigido para um
cliente em particular.
Ana está prestes a dizer que aquilo era muito diferente, mas decide car
calada. Tudo que precisa fazer é escutar os argumentos de venda da mulher,
não refutá-los.
— Acho que entendo o que quer dizer — diz ela.
— Mesmo que consiga fazer com que eles se apaixonem, nenhum dos
nossos digientes vai convencer como Marilyn Monroe — argumenta Derek.
— Não, mas o objetivo não é esse. Eles receberiam avatares humanoides,
mas não humanos. Vejam, não estamos tentando reproduzir a experiência
sexual com um ser humano. Queremos fornecer parceiros não humanos que
sejam encantadores, afetuosos e entusiasmados com o sexo. A Binary Desire
acredita que essa é uma nova fronteira da experiência sexual.
— Uma nova fronteira da experiência sexual? — diz Stuart. — Você quer
dizer popularizar uma tara até que ela se torne comum.
— Você pode dizer isso — comenta Chase. — Mas tente olhar de outra
forma: nossas ideias sobre o que constitui sexo saudável nunca deixou de ser
ampliada com o passar dos séculos. As pessoas costumavam pensar que a
homossexualidade, o BDSM e o poliamor eram sintomas de problemas
psicológicos, mas não existe nada intrínseco a essas atividades que seja
incompatível com uma relação amorosa. O problema era que esses desejos
eram estigmatizados pela sociedade. Nós acreditamos que, com o tempo, o
sexo com digientes passará a ser aceito como uma expressão válida de
sexualidade. Mas isso requer que as pessoas sejam francas e honestas a
respeito, e não que njam que um digiente é um ser humano.
Um ícone aparece na tela indicando que Chase acaba de mandar um
documento para o grupo.
— Estou enviando uma cópia do contrato que acompanha a nossa
proposta — diz ela —, mas me permitam fazer um resumo. A Binary Desire
vai cobrir todas as despesas do transporte do Neuroblast para a Real Space
em troca dos direitos não exclusivos sobre os seus digientes. Vocês
preservam o direito de fazer e vender cópias dos seus digientes, desde que
não o façam para os nossos competidores. Se os digientes venderem bem,
pagaremos royalties. E seus digientes vão car felizes com o que vão estar
fazendo.
— Muito bem, obrigada — diz Ana. — Vamos dar uma olhada no
contrato e depois entraremos em contato. Isso é tudo?
Chase sorri.
— Ainda não. Antes de liberar o pagamento, gostaria de responder a
qualquer dúvida ou preocupação que possam ter. Garanto que não vou car
ofendida com pergunta alguma. É a questão sexual que os incomoda?
Ana hesita e depois responde:
— Não, é a coerção.
— Não haverá coerção alguma. A criação de laços afetivos garante que os
digientes vão sentir prazer naquilo tanto quanto os proprietários.
— Mas vocês não darão a eles nenhuma chance de escolher do que vão
ou não gostar.
— E é tão diferente assim com seres humanos? Quando eu era uma
garotinha, a ideia de beijar um garoto não me soava nem um pouco
interessante, e, se dependesse de mim, nunca teria mudado. — Chase revela
um sorriso maroto, dando a entender quanto ela aproveita beijos hoje em
dia. — Nós nos tornamos seres sexuais, queiramos ou não. As mudanças que
a Binary Desire quer fazer nos digientes não são muito diferentes disso. Na
verdade, são até melhores. Algumas pessoas carregam o fardo de tendências
sexuais que lhes causam sofrimento durante toda a vida. Isso jamais
acontecerá com os digientes. No que diz respeito a eles, cada um será
destinado a um parceiro sexual compatível. Isso não é coerção, é a mais
completa realização sexual que existe.
— Mas não é real! — grita Ana, logo se arrependendo.
Era a deixa que Chase estava esperando.
— Como “não é real”? — pergunta ela. — Os sentimentos que você tem
pelos seus digientes são reais e os sentimentos deles por você são reais
também. Se você e o seu digiente podem ter uma conexão não sexual que,
ainda assim, é real, por que uma conexão sexual entre um humano e um
digiente seria menos real?
Ana ca sem saber o que responder, e Derek intervém:
— Podemos discutir loso a para sempre. A questão central é que não
passamos anos criando os nossos digientes para transformá-los em
brinquedos sexuais.
— Entendo isso — diz Chase. — E assinar esse contrato não vai impedir
que cópias dos seus digientes sejam destinadas a outras coisas. Contudo,
nesse exato momento, seus digientes, por mais extraordinários que sejam,
não têm habilidades que interessem ao mercado, e vocês não podem prever
quando virão a ter. De que maneira conseguirão levantar o dinheiro de que
precisam?
Ana se pergunta quantas mulheres já se zeram a mesma pergunta.
— Então, é a pro ssão mais velha do mundo.
— É uma maneira de ver, mas deixe-me garantir mais uma vez que seus
digientes não vão ser submetidos a nenhum tipo de coerção, nem mesmo à
coerção econômica. Se quiséssemos vender desejo sexual falsi cado, haveria
maneiras mais baratas de fazê-lo. A questão central do projeto é criar uma
alternativa para o falso desejo. Nós acreditamos que o sexo é melhor quando
os dois lados envolvidos sentem prazer. Melhor como experiência e melhor
para a sociedade.
— Tudo isso soa bastante nobre. Mas e as pessoas que gostam de praticar
torturas sexuais?
— Não aprovamos nenhum tipo de ato sexual que não seja feito em
consenso, e isso inclui sexo com digientes. O contrato que acabo de lhes
enviar assegura que a Binary Desire vai manter os interruptores de circuito
instalados pela Blue Gamma, reforçados por um controle de acesso dos mais
so sticados. Como mencionei, nós acreditamos que o sexo é melhor quando
agrada a ambas as partes. É o nosso compromisso.
— Vocês aprovam, não é? — diz Felix para o restante do grupo. — Eles
pensaram em todas as possibilidades.
Vários integrantes do grupo olham para ele com uma expressão furiosa, e
até o rosto de Chase indica que ela preferiria não receber esse tipo de ajuda.
— Sei que não era isso que tinham em mente quando começaram a
procurar investidores — comenta Chase. — Mas, se puderem ver além dessa
reação inicial, acho que concordarão que a nossa proposta é vantajosa para
todos.
— Vamos pensar e depois daremos uma resposta — diz Derek.
— Obrigada por ouvirem a minha apresentação — agradece Chase. Uma
janela surge na tela, indicando que o pagamento acaba de ser liberado. —
Deixem-me lembrá-los de uma última coisa. Se forem abordados por outra
companhia, tenham o cuidado de olhar as partes em letras miúdas do
contrato. Provavelmente haverá ali uma cláusula que os nossos advogados
queriam incluir, que dá à empresa o direito de revender os digientes a outras
companhias, desativando os interruptores de circuito. Imagino que saibam o
que isso signi ca.
Ana assente. Signi ca que os digientes poderiam ser revendidos a uma
companhia como a Edgeplayer, para serem usados como vítimas de tortura.
— Sim, sabemos — diz ela.
— A Binary Desire descartou essa recomendação dos advogados. Nosso
contrato garante que os digientes não serão usados para qualquer outra
coisa a não ser sexo consensual. Vejam se alguém mais lhes oferecerá esse
tipo de garantia.
— Obrigada — diz Ana. — Vamos entrar em contato.
• • •

Ana foi à reunião da Binary Desire como uma atitude meramente formal, a
m de garantir algum dinheiro ao escutar uma proposta de compra. Agora,
depois de ter ouvido a proposta, ela passa a pensar bastante nela.
Ana não tem prestado atenção ao mundo do sexo virtual desde a
faculdade, quando um namorado dela, também estudante, teve que passar
um semestre no exterior. Os dois compraram juntos os acessórios
periféricos, antes de ele viajar, equipamentos com estojos rígidos e interiores
de silicone que davam uma sensação engraçada. Depois, cada um gravou no
seu equipamento o número de série do outro, garantindo assim a delidade
da genitália virtual. As primeiras sessões foram divertidas, mas não
demorou muito para a novidade ir se esvaindo e as limitações daquela
tecnologia se tornarem evidentes. Fazer sexo sem beijar era algo incompleto,
e ela sentia falta do rosto dele quase colado ao seu, do peso do corpo dele,
do cheiro do suor dele. Poder ver o outro em uma tela não era um substituto
à altura, por mais próxima que a câmera estivesse. A pele dela sentia falta do
seu toque de uma forma que nenhum periférico podia compensar, e, no m
do semestre, ela sentia que estava a ponto de explodir. Claro que desde então
a tecnologia avançara, mas era ainda uma maneira pobre de substituir a
intimidade verdadeira.
Ana lembra a enorme diferença de quando viu Jax usando um corpo de
verdade pela primeira vez. Se um digiente fosse transferido para um boneco
erótico, isso tornaria a ideia do sexo mais atraente? Não. Ela já esteve com o
rosto a um palmo do de Jax, limpando manchas das lentes ou à procura de
arranhões, e não era como estar de frente a uma pessoa. Com um digiente
não existe a sensação de estar invadindo um espaço pessoal, nem mesmo
aquela atitude de con ança de quando um cachorro permite que você
acaricie a barriga dele. Na Blue Gamma, eles tinham decidido não atribuir
aos digientes esse senso de autoproteção — não faria sentido, no contexto do
produto —, mas o que signi ca intimidade física quando não há barreiras a
serem transpostas? Ela não duvida de que seja possível dar a um digiente
uma excitação tão próxima da humana que os neurônios-espelho de ambos
os parceiros se vejam envolvidos. Mas será que a Binary Desire poderia
ensinar a um digiente a vulnerabilidade que surge quando camos nus na
frente de outra pessoa e tudo o que estamos dizendo a ela quando
a rmamos a nossa disposição de tirar a roupa diante dos seus olhos?
No entanto, talvez nada disso tenha importância. Ana roda a gravação da
teleconferência mais uma vez, escuta Chase dizendo que se trata de uma
nova fronteira, sexo com um parceiro não humano. Não tem o propósito de
ser a mesma coisa que transar com outra pessoa, será um tipo diferente de
sexo, e talvez venha acompanhado de um novo tipo de intimidade.
Ela se lembra de um incidente ocorrido quando trabalhava no zoológico
e um orangotango fêmea morreu. Todo mundo cou arrasado, mas o
treinador favorito do orangotango fêmea cou inconsolável. Depois de
algum tempo, ele confessou que estava fazendo sexo com ela, e, logo depois,
foi demitido. Ana cou chocada, é claro, ainda mais porque ele não parecia
um pervertido sórdido como ela sempre imaginara que um zoó lo fosse —
a dor dele era profunda e verdadeira, a mesma de alguém que perde uma
pessoa amada. Ele já tinha sido casado também, o que a surpreendeu. Ela
imaginava que pessoas assim eram incapazes de arranjar uma namorada,
mas só então percebeu que estava incorrendo nos estereótipos a respeito de
funcionários de zoológico: o de a rmar que eles cuidavam de animais
porque não conseguiam se relacionar com seres humanos. E, tal como zera
naquela época, Ana tenta agora entender por que relações não sexuais com
animais podem ser saudáveis, enquanto relações sexuais não podem, saber
por que o limitado consentimento que os animais proporcionam é o
bastante para mantê-los como bichos de estimação, mas não como parceiros
sexuais. E, mais uma vez, ela não consegue chegar a algum argumento que
não se baseie na sua repulsa pessoal, e não está certa de que isso seja o
bastante.
Quanto à questão de os digientes transarem uns com os outros, este é um
tópico que já foi discutido no passado, e Ana sempre achou que os usuários
têm sorte em não precisarem lidar com isso, porque a maturidade sexual é
justamente quando muitos animais se tornam difíceis de lidar. Não existe
nem sequer a culpa que poderia haver se Jax tivesse que ser castrado por
meio de uma cirurgia, porque ela não está privando o digiente de um
aspecto fundamental da sua natureza. Agora, porém, surge uma linha de
discussão no fórum que a leva a reconsiderar algumas coisas.

De: Helen Costas


Não gosto da ideia de alguém fazendo sexo com o meu digiente, mas logo me
lembro de que os pais também não gostam de pensar que os filhos vão fazer sexo.

De: Maria Zheng


Esta analogia é falsa. Os pais não podem impedir os filhos de se tornarem
criaturas sexualizadas, mas nós podemos. Não há necessidade intrínseca alguma de
que os digientes devam emular todos os aspectos do desenvolvimento humano.
Não vamos exagerar com essas projeções antropomórficas.

De: Derek Brooks


O que é “intrínseco”? Também não há necessidade intrínseca alguma de que os
digientes tenham personalidades encantadoras ou avatares bonitinhos, mas havia
uma boa razão para isso: deixava as pessoas mais dispostas a passar tempo com
eles, e isso era bom para os digientes.
Não estou dizendo que devemos aceitar a oferta da Binary Desire. Mas acho que
o que devemos nos perguntar é: se os sexualizarmos, isso vai encorajar outras
pessoas a gostarem deles de modo que seja bom para os digientes?

Ana se pergunta se a assexualidade de Jax faz com que ele perca


experiências que lhe seriam úteis. Ela gosta do fato de Jax ter amigos
humanos, e o seu motivo para querer o Neuroblast transportado para a Real
Space é para que ele possa manter esses relacionamentos, reforçá-los. Até
que ponto, no entanto, esse reforço pode ir? Quanta intimidade pode existir
em uma relação até que a questão do sexo apareça?
Mais tarde, naquela noite, ela posta uma réplica ao comentário de Derek:

De: Ana Alvarado


Derek levantou uma questão importante. Mas mesmo que a resposta seja sim,
isso não significa que devemos aceitar a proposta da Binary Desire.

Se uma pessoa está à procura de uma fantasia masturbatória, ela pode


consegui-la através de um so ware convencional. Ela não deveria
encomendar um cônjuge pelo correio e pregar nele uma dúzia de adesivos
de InstantRapport. Em última análise, é isso que a Binary Desire quer
oferecer aos seus clientes. É esse o tipo de vida que queremos para os nossos
digientes? Nós poderíamos saturá-los de endor nas virtuais e eles seriam
felizes mesmo que vivessem trancados no interior de um armário na Data
Earth, mas gostamos tanto deles que não seríamos capazes de fazer isso. Não
acho que devemos permitir que alguém os trate com menos respeito.
Admito que a ideia de fazer sexo com um digiente me incomodou no
início, mas acho que, em princípio, não me oponho à noção agora. Não é
algo que eu me imagine fazendo, mas, para mim, não há problema se outras
pessoas gostam, desde que não haja exploração envolvida. Se houver algum
tipo de troca, então talvez seja o que Derek sugeriu: uma experiência tão boa
para o digiente quanto para o ser humano. No entanto, se o humano tem a
liberdade de customizar à vontade o mapa de estímulos prazerosos do
digiente ou pode fazê-lo voltar para pontos de recuperação várias vezes até
encontrar uma instanciação perfeitamente adequada aos seus interesses,
onde está a reciprocidade? A Binary Desire está dizendo aos seus clientes
que eles não têm que satisfazer as preferências dos digientes de modo algum.
Não importa se o sexo está ou não envolvido, isso não chega a ser uma
relação real.
• • •

Qualquer membro do grupo de usuários é livre para aceitar a proposta da


Binary Desire, mas o argumento de Ana é persuasivo o bastante para fazer
com que nenhum deles aceite por enquanto. Alguns dias depois da reunião,
Derek conta a Marco e Polo a proposta da Binary Desire, achando que eles
devem ser informados do que está acontecendo. Polo ca curioso a respeito
das modi cações que a Binary Desire quer fazer; ele sabe que tem um mapa
de estímulos prazerosos, mas nunca pensou sobre o que aconteceria se o
editassem.
— Pode ser legal editar mapa — diz Polo.
— Não pode editar mapa quando trabalhar para alguém — diz Marco. —
Só pode editar se for corporação.
Polo se vira para Derek.
— Verdade?
— Bem, não é uma coisa que eu deixaria vocês fazerem, mesmo se
fossem corporações.
— Ei — diz Marco. — Você disse que, quando nós corporação, tomar as
próprias decisões.
— Falei — admite Derek. — Mas eu não estava me referindo a vocês
editarem os mapas de estímulos. Isso pode ser bastante perigoso.
— Mas humanos poder editar mapas de estímulo.
— Hein? Nós não podemos fazer nada disso.
— E drogas que pessoas tomam para sexo? Ifridiscos?
— Afrodisíacos. Esses são temporários.
— InstantRapport temporário?
— Não exatamente — diz Derek —, mas, muitas vezes, quando as pessoas
tomam, estão cometendo um erro. — Sobretudo — pensa ele —, se a
empresa está lhes pagando para isso.
— Quando eu corporação, eu livre para cometer erros — diz Marco. —
Ponto principal.
— Você ainda não está pronto para se tornar corporação.
— Por que você não gostar das decisões que eu tomar? Pronto quer dizer
sempre concordar com você?
— Se está pensando em editar seu mapa de estímulos no minuto em que
se tornar uma corporação, então ainda não está pronto.
— Não falar que querer — diz Marco com ênfase. — Não querer. Falar
que, quando corporação, livre para isso. Diferente.
Derek para por um instante. É fácil esquecer, mas essa foi a conclusão a
que o grupo de usuários chegou durante as discussões no fórum a respeito
da incorporação dos digientes. Para a transformação em pessoa pelo ponto
de vista da lei ser mais do que um mero jogo de palavras, ela deve envolver a
concessão de um certo grau de independência ao digiente.
— Sim, você tem razão — diz ele. — Quando você se torna uma
corporação, é livre para fazer coisas que, na minha opinião, são erradas.
— Bom — diz Marco, satisfeito. — Quando achar que eu pronto, não é
porque eu concordar com você. Poder estar pronto mesmo sem concordar
com você.
— Isso mesmo. Mas, por favor, me digam que não estão pensando em
editar seus mapas de estímulos.
— Não, eu sei perigoso. Pode cometer erro que impede de corrigir erro.
Derek ca aliviado.
— Obrigado.
— Mas deixar Binary Desire editar meu mapa não perigoso.
— Não, não é, mas ainda assim é uma péssima ideia.
— Não concordar.
— O quê? Acho que você não entende o que querem fazer.
Marco lança a Derek um olhar de frustração.
— Eu entender. Eles fazer eu gostar do que querer que eu goste, mesmo
que eu não goste ainda.
Derek percebe que Marco de fato compreendeu.
— E não acha isso errado?
— Por que errado? Coisas que gostar agora, Blue Gamma me fez gostar.
Não errado.
— Ok, mas é diferente. — Ele pensa por alguns instantes em como vai
explicar. — A Blue Gamma fez você gostar de comida, mas não escolheu o
tipo especí co de comida que você gosta.
— E daí? Não tão diferente.
— Mas é diferente.
— Concordar errado editar digiente que não quer ser editado. Mas se
digiente disser antes que tudo bem, tudo bem.
Derek começa a se sentir exasperado.
— Então você quer se tornar uma corporação, tomar as próprias
decisões, ou quer que outras pessoas tomem as decisões por você? Qual dos
dois prefere?
Marco pensa um pouco.
— Talvez tentar duas coisas. Cópia minha vira corporação, outra trabalha
na Binary Desire.
— Não se importa de que façam cópias de você?
— Polo cópia minha. Não errado.
Sem ter mais o que dizer, Derek encerra a discussão e manda os dois
digientes irem estudar. No entanto, não consegue tirar tão fácil da cabeça o
que Marco acabou de falar. Por um lado, o digiente se saiu bem com alguns
argumentos, mas Derek se lembra dos seus anos de universidade e sabe que
ter habilidade em debates não signi ca maturidade. Não é a primeira vez em
que ele pensa como seria bom que houvesse uma data estabelecida por lei
para a maioridade dos digientes; sem uma, cabe apenas a ele decidir quando
Marco vai estar pronto para se tornar uma corporação.
Derek não é o único a ter discussões nos dias que se seguem à proposta
da Binary Desire. Quando fala com Ana, ela se queixa de uma briga recente
com Kyle.
— Ele acha que devemos aceitar a oferta da Binary Desire. Diz que é uma
opção muito melhor para mim do que ir trabalhar na Polytope.
Ele vê uma oportunidade de criticar a opinião de Kyle. Como deve agir?
Tudo que fala é:
— Porque ele acha que a modi cação nos digientes não é uma coisa tão
importante assim.
— Exato. — Ela respira fundo, irritada, e depois continua. — Não é que
eu ache que usar os adesivos de InstantRapport não é grande coisa. Claro
que é. Mas há uma grande diferença entre eu usar InstantRapport de
maneira voluntária e a Binary Desire impor suas decisões de relacionamento
aos nossos digientes.
— Sim, uma grande diferença. Mas, sabe, isso levanta uma questão
interessante. — Ele narra para Ana a conversa que teve com Marco e Polo.
— Não sei se Marco estava discutindo só pelo prazer de discutir, mas quei
pensando. Se um digiente aceitar se submeter às modi cações que a Binary
Desire quer fazer nele, faz alguma diferença?
Ana parece pensar.
— Não sei. Talvez.
— Quando um adulto decide usar um adesivo de InstantRapport, não
temos como argumentar contra isso. O que seria preciso para que
encarássemos da mesma forma uma decisão tomada por Jax ou Marco?
— Eles teriam que ser adultos.
— Mas nós poderíamos dar entrada nos processos de incorporação deles
amanhã mesmo se quiséssemos — responde Derek. — O que nos faz ter
tanta certeza de que não devemos fazer isso? Digamos que, um dia, Jax diga
a você que compreende o que aconteceria se aceitasse a proposta da Binary
Desire, tal como você com o trabalho na Polytope. O que seria necessário
para que aceitasse a decisão dele?
Ela pensa por um instante.
— Acho que dependeria de ele estar ou não baseando a sua decisão em
uma experiência. Jax nunca teve um relacionamento romântico ou um
emprego, e aceitar a proposta da Binary Desire signi caria ter as duas coisas,
e de uma maneira potencialmente de nitiva. Preferiria que ele tivesse um
pouco mais de experiência nessas áreas antes de tomar uma decisão cujas
consequências podem ser permanentes. Uma vez que tivesse tido esse tipo
de experiência, acho que não teria como fazer objeções.
— Ah — diz Derek, aquiescendo. — Gostaria de ter pensado nisso
quando estava falando com Marco. — Isso implicaria transformar os
digientes em criaturas sexualizadas, mas sem a intenção de vendê-los; uma
despesa a mais para o grupo de usuários, mesmo depois que conseguissem o
transporte do Neuroblast. — Mas isso ainda vai levar muito tempo.
— Claro, mas não temos pressa em sexualizar os digientes. É melhor
esperar até podermos fazer isso da maneira correta.
Melhor estabelecer um limite mais alto para a maioridade do que correr o
risco de concedê-la muito cedo, pensa Derek.
— E até lá cabe a nós olhar por eles.
— Certo! Temos de colocar as necessidades dos digientes em primeiro
lugar. — Ana olha para ele com gratidão pelo apoio dado, e ele ca feliz em
poder ajudá-la. Mas, então, a frustração volta ao rosto dela. — Gostaria que
Kyle entendesse isso.
Ele procura uma resposta diplomática.
— Não sei se uma pessoa que não dedicou seu tempo aos digientes como
nós dedicamos é capaz de entender — diz ele. Não é uma crítica a Kyle. É
algo em que ele acredita de verdade.
9

UM MÊS SE PASSOUdesde a apresentação da proposta da Binary Desire, e Ana


está na Data Earth privada, com alguns dos digientes do Neuroblast,
esperando a chegada de um grupo de visitantes. Marco conta a Lolly sobre o
último episódio do seu jogo favorito, enquanto Jax pratica uma dança que
ele mesmo coreografou.
— Olha — diz o digiente.
Ana observa enquanto Jax repete sem parar uma sequência de posições.
— Lembre-se, Jax, de que, quando eles chegarem, você vai ter que falar
das coisas que construiu.
— Já saber, você disse e disse. Paro dança assim que estiverem aqui. Só
diversão.
— Desculpe. Estou um pouco nervosa.
— Veja eu dançar. Sentir melhor.
Ela sorri.
— Obrigada, vou tentar. — Ela respira fundo e diz a si mesma para
relaxar.
Um portal se abre e dois avatares entram por ele. Jax para de dançar na
mesma hora e Ana faz seu avatar ir na direção dos visitantes para
cumprimentá-los. Na tela surgem as suas identi cações: Jeremy Brauer e
Frank Pearson.
— Espero que não tenham tido trabalho para entrar — diz Ana.
— Não — responde Pearson. — Os logins que você forneceu
funcionaram bem.
Brauer olha em volta.
— A boa e velha Data Earth — comenta ele. Seu avatar puxa um ramo de
um arbusto e depois o larga, olhando o modo como ele balança. — Lembro
como foi incrível quando a Daesan lançou isso aqui. Era top de linha.
Brauer e Pearson trabalham para a Exponential Appliances, uma fábrica
de robôs domésticos. Os robôs são exemplos de uma inteligência arti cial
no velho estilo: suas habilidades são programadas em vez de aprendidas, e,
embora sejam bastante úteis, não são conscientes no sentido real do termo.
A Exponential lança regularmente novas versões, divulgando cada uma
como um passo a mais para o que seria o sonho do consumidor em termos
de inteligência arti cial: um mordomo leal e atencioso a partir do instante
em que é ligado. Para Ana, esse upgrade em partes equivale a uma
caminhada rumo ao horizonte: dá a ilusão de avanço, mas nunca chega de
verdade ao objetivo. O público, porém, compra os robôs, e isso provê a
Exponential com uma solidez nanceira que é o que Ana está procurando.
Ana não está tentando conseguir empregos de mordomo para os
digientes do Neuroblast; é óbvio que Jax e os outros são voluntariosos
demais para esse tipo de trabalho. Brauer e Pearson nem são da divisão
comercial da empresa; na verdade, são funcionários da divisão de pesquisa,
a razão pela qual a Exponential existe. Os robôs domésticos são apenas uma
forma de proporcionar fundos para que a empresa possa realizar o sonho
dos técnicos de inteligência arti cial: criar uma entidade que seja cognição
pura, um gênio imperturbado por emoções ou um corpo, um intelecto que
seja vasto e frio, ainda que dotado de empatia. Eles têm a expectativa de
criar o so ware Athena, um programa que brote completamente pronto, e,
embora seja pouco educado da parte de Ana dizer que acha que eles vão
esperar a vida inteira por isso, ela tem a esperança de convencer Brauer e
Pearson de que os digientes do Neuroblast são uma alternativa viável a isso.
— Bem, obrigada por terem vindo — diz Ana.
— Estávamos ansiosos para vir — responde Brauer. — Um digiente cujo
tempo de funcionamento é mais longo do que o tempo de vida da maioria
dos sistemas de so ware? A gente não vê isso todo dia.
— Não mesmo. — Ana percebe que eles vieram mais pelo impulso de
nostalgia do que para considerar uma proposta de negócio. Que seja, desde
que estejam aqui.
Ana apresenta os dois homens aos digientes, que começam a fazer
pequenas demonstrações dos projetos em que estão trabalhando no
momento. Jax mostra uma engenhoca virtual construída por ele, uma
espécie de sintetizador musical que toca ao mesmo tempo em que dança.
Marco dá explicações sobre um quebra-cabeça desenhado por ele, um jogo
que pode ser jogado tanto competitiva quanto cooperativamente. Brauer
está bastante interessado em Lolly, que mostra aos dois um programa que
está escrevendo; ao contrário de Jax e Marco, que constroem seus projetos
usando conjuntos de peças para armar, ela está criando o próprio código. O
desapontamento de Brauer ca visível quando ele percebe que Lolly é igual a
qualquer programador principiante; a esperança dele era que o fato de ela
ser digiente lhe desse algum tipo de aptidão especial para o trabalho.
Depois de conversar com os digientes por alguns minutos, Ana e os
visitantes da Exponential encerram a conexão com a Data Earth e voltam a
se reunir, agora por videoconferência.
— Eles são maravilhosos — diz Brauer. — Eu já tive um, mas ele nunca
passou da fase de bebê.
— Seu digiente era do Neuroblast?
— Sim, comprei um assim que foram lançados. Era uma instanciação da
mascote Jax, como o seu. Eu o chamei de Fitz, e quei com ele por um ano.
Esse homem já teve um bebê Jax um dia, pensa ela. Em algum lugar está
arquivada uma versão bebê de Jax que sabe que este homem é o dono dele.
Em voz alta, ela pergunta:
— Você cou entediado com ele?
— Não foi uma questão de tédio, mas de perceber as limitações. Percebi
que o genoma do Neuroblast tinha sido uma abordagem equivocada. Claro
que Fitz era esperto, mas levaria uma eternidade até ele ser capaz de fazer
algum trabalho útil. Tenho que tirar o chapéu para você por ter mantido Jax
durante todo esse tempo. O que você conseguiu é impressionante. — Ele faz
o elogio soar como se ela tivesse construído a maior escultura de palitos de
dentes do mundo.
— Você ainda acredita que o Neuroblast foi uma abordagem errada? Viu
por si mesmo do que Jax é capaz. Vocês têm na Exponential alguma coisa
que se compare a isso? — A frase acabou saindo um pouco mais ríspida do
que ela pretendia.
A reação de Brauer é tranquila.
— Não estamos buscando uma inteligência arti cial no nível humano. O
nível que buscamos é o sobre-humano.
— Mas não acha que o nível humano seria um estágio intermediário para
isso?
— Não se for do tipo que os seus digientes demonstraram — responde
Brauer. — Você nunca vai ter certeza de que Jax poderá conseguir um
emprego, sem falar em se tornar um gênio da programação. Para todos os
efeitos, ele já atingiu o patamar máximo.
— Eu não acho que…
— Sim, mas não dá para ter certeza.
— Sei que, se o genoma Neuroblast é capaz de produzir alguém como ele,
pode produzir um que seja tão esperto quanto aquilo que você está
procurando. O Alan Turing dos digientes do Neuroblast ainda está para
nascer.
— Tudo bem, digamos que você tenha razão — diz Brauer; ele está sendo
paternalista com ela. — Quantos anos vai levar para ele ser descoberto?
Você precisou de tanto tempo para educar a primeira geração de digientes
que a plataforma deles se tornou obsoleta. Quantas gerações mais até
aparecer um Turing?
— Não estaremos sempre limitados a rodá-los em tempo real. Vai chegar
um ponto em que haverá digientes em número bastante para formar uma
população autossu ciente, e, então, eles não vão mais depender da interação
com humanos. Podemos rodar uma sociedade inteira com eles em alta
velocidade, sem correr o risco de que se tornem selvagens, e ver o resultado.
Ana, na verdade, está longe de ter certeza de que esse cenário será capaz
de produzir um Turing, mas treinou esse argumento para dar a impressão de
que acredita nele.
Brauer não está convencido, no entanto.
— Estamos falando de um investimento de alto risco. Você está nos
mostrando um grupo de adolescentes e nos pedindo que custeemos a
educação deles na esperança de que, quando se tornarem adultos, vão
construir uma nação capaz de produzir gênios. Perdoe-me, mas acho que há
maneiras melhores de investir nosso dinheiro.
— Mas pense no que vão obter. Eu e os outros proprietários devotamos
anos de dedicação para educar esses digientes. Pagar o transporte do
Neuroblast é um preço baixo comparado ao que custaria contratar equipes
para fazer isso com outro genoma. E a recompensa potencial é justamente o
que a sua companhia procura: gênios em programação trabalhando em alta
velocidade, desenvolvendo a própria inteligência até níveis sobre-humanos.
Se esses digientes são capazes de inventar jogos agora, imagine o que os
descendentes deles serão capazes de fazer. E vocês vão lucrar com cada um
deles.
Brauer está a ponto de responder quando Pearson intervém:
— É para isso que querem fazer o transporte do Neuroblast? Para ver o
que digientes superinteligentes serão capazes de inventar?
Ana percebe que Pearson a examina com toda a atenção, e decide que
não faz sentido mentir.
— Não — responde. — Tudo que quero é que Jax possa ter a chance de
uma vida mais plena.
Pearson assente.
— Você gostaria que Jax se tornasse uma corporação um dia, não é? Ser
algum tipo de pessoa do ponto de vista da lei?
— Sim, gostaria.
— E aposto que Jax quer o mesmo, não? Ser incorporado?
— De modo geral, sim.
Pearson assente outra vez, con rmando suas suspeitas.
— Isso cancela o negócio para nós. Eles são agradáveis de conversar, mas
toda a atenção que dedicaram aos seus digientes os encorajou a pensar em si
mesmos como pessoas.
— E por que razão isso cancela as negociações? — pergunta ela, apesar de
já saber a resposta.
— Não estamos procurando empregados superinteligentes, estamos
procurando produtos superinteligentes. O que você está nos oferecendo é a
primeira opção, e não posso censurá-la. Ninguém pode passar tantos anos
como você passou ensinando coisas a um digiente e continuar a pensar nele
como um produto. Mas o nosso negócio não se baseia em sentimentos
assim.
Ana estava fazendo de conta de que aquilo não existia, mas agora
precisava encarar a incompatibilidade essencial entre os objetivos da
Exponential e os dela. A empresa quer algo que responda como uma pessoa,
mas que não venha acompanhado de outras coisas que signi que ser uma
pessoa, e isso é algo que ela não pode lhes dar.
Ninguém pode dar isso a eles porque é impossível. Os anos que ela
passou educando Jax não o tornaram apenas alguém agradável para se
conversar, não proporcionaram a ele só hobbies e um senso de humor.
Foram esses anos que deram a ele todos os atributos que a Exponential
procura: uência ao lidar com o mundo real, criatividade na resolução de
problemas novos, capacidade de julgamento para poder assumir a
responsabilidade de decisões. Todas as qualidades que tornam uma pessoa
mais valiosa do que uma base de dados é um produto da experiência.
Ela gostaria de poder dizer a eles que a Blue Gamma estava mais certa do
que imaginava: a experiência não é apenas a melhor professora, é a única. Se
Ana aprendeu alguma coisa com o processo de criação de Jax, é que não
existem atalhos; se você quer criar o bom senso que surge depois de estar no
mundo por vinte anos, é preciso dedicar vinte anos a essa tarefa. Não é
possível acumular uma coleção equivalente de lições criativas em menos
tempo; a experiência é algo algoritmicamente incomprimível.
E mesmo que fosse possível tirar uma foto de toda essa experiência e
duplicá-la in nitas vezes, mesmo que fosse possível vender cópias disso a
preço de banana ou distribuí-las de graça, cada um dos digientes resultantes
ainda assim teria vivido uma vida completa. Cada um deles teria, em algum
momento, visto a vida com olhos novos, cada um teria tido esperanças
concretizadas e destruídas. Cada um saberia o que signi ca dizer uma
mentira e o que signi ca ser enganado.
O que implica dizer que cada um deles mereceria algum respeito. Um
respeito que a Exponential não é capaz de proporcionar.
Ana faz uma última tentativa.
— Esses digientes ainda podem ser lucrativos para vocês como
empregados. Vocês poderiam…
Pearson balança a cabeça.
— Não, eu aprecio o que estão tentando fazer e desejo sorte, mas isso não
se encaixa nos nossos planos. Se esses digientes fossem destinados a se
tornar produtos, os lucros potenciais talvez valessem o risco. Mas, se tudo
que vão ser é empregados, a situação é outra; não podemos justi car um
investimento tão alto em troca de um retorno tão pequeno.
Claro que não, pensa ela. Quem poderia? Somente alguém que fosse um
fanático, alguém que fosse motivado por amor. Alguém como ela.
• • •

Ana está enviando uma mensagem a Derek a respeito do encontro


fracassado com a equipe da Exponential quando o corpo do robô ganha
vida.
— Como foi reunião? — pergunta Jax, mas ele consegue entender a
expressão dela o bastante para saber a resposta. — Culpa minha? Eles não
gostar do que mostrar?
— Não, você foi ótimo, Jax. A questão é que eles não gostam de digientes.
Foi um engano meu achar que poderia fazê-los mudar de ideia.
— Valeu tentar — fala Jax.
— Suponho que sim.
— Você bem?
— Vou car — garante ela. Jax lhe dá um abraço e conduz o corpo de
volta à plataforma de conexão, para voltar à Data Earth.
Sentada à mesa, com o olhar xo na tela em branco, Ana avalia as opções
que restam ao grupo de usuários. No que lhe diz respeito, existe apenas uma:
trabalhar para a Polytope e tentar convencê-los de que vale a pena nanciar
o transporte do Neuroblast. Para isso, ela precisa apenas usar os adesivos
InstantRapport e se tornar uma cuidadora industrializada nos seus
experimentos.
Pode se dizer muita coisa a respeito da Polytope, mas a empresa entende
melhor o valor de uma interação em tempo real do que a Exponential. Os
digientes Sophonce podem se dar por satisfeitos ao carem sozinhos em
uma estufa, mas este não é um atalho viável se você quiser transformá-los
em indivíduos produtivos. Alguém vai ter que dedicar tempo a eles, e a
Polytope reconhece isso.
A objeção de Ana é contra a estratégia usada pela Polytope para fazer as
pessoas dedicarem esse tempo. A estratégia da Blue Gamma tinha sido a de
tornar os digientes criaturas adoráveis; a Polytope está usando digientes
antipáticos e estímulos farmacêuticos para que as pessoas simpatizassem
com eles. Parece bem claro para ela que a abordagem da Blue Gamma era a
mais correta, não apenas por ser mais ética, mas também por ser mais e caz.
Na verdade, talvez fosse até e caz demais, considerando a situação em
que Ana se encontra: ela precisa enfrentar a maior despesa que já teve na
vida, e é para o seu digiente. Ninguém na Blue Gamma poderia ter previsto
isso anos atrás, mas talvez devessem ter pensando a respeito. A ideia de um
amor sem compromissos é tão fantasia quanto o que a Binary Desire está
colocando à venda. Amar alguém signi ca fazer sacrifícios por essa pessoa.
E essa é a única razão que leva Ana a considerar a oferta da Polytope. Sob
quaisquer outras circunstâncias, ela caria ofendida por uma proposta de
trabalho que exigisse o uso do InstantRapport: ela tem tanta experiência no
trabalho com digientes quanto qualquer outra pessoa no mundo, e, no
entanto, a Polytope está sugerindo que ela não consegue ser uma treinadora
e caz sem uma intervenção farmacêutica. Treinar digientes — como treinar
animais — é um trabalho, e um pro ssional tem de ser capaz de realizar seu
trabalho sem precisar amar uma função particular dele.
Ao mesmo tempo, ela sabe a diferença que a afeição pode produzir em
qualquer processo de treinamento, como ela é capaz de produzir paciência
quando a paciência é necessária. A noção de que uma afeição assim pode ser
produzida de forma arti cial não é muito sedutora, mas ela não pode negar
a e cácia da neurofarmacologia moderna: se a sua mente for inundada de
oxitocina todas as vezes que ela estiver treinando digientes do Sophonce,
isso, querendo ou não, vai acabar tendo um efeito nos seus sentimentos em
relação a eles.
A única questão é se Ana pode tolerar essa exigência. Ela sabe que o
adesivo do InstantRapport não vai impedi-la de cuidar de Jax; nenhum
digiente Sophonce vai tomar o lugar de Jax no coração dela. E se trabalhar
para a Polytope signi car sua melhor chance de conseguir o transporte do
Neuroblast, ela está disposta a fazê-lo.
Ana gostaria que Kyle fosse capaz de entender isso. Ela sempre deixou
claro que o bem-estar de Jax vem em primeiro lugar, e, até agora, ele não
teve nenhum problema com isso. Ela não quer que a relação dos dois acabe
por causa desse trabalho, mas está com Jax há mais tempo do que já passou
em qualquer relação amorosa. Se a coisa chegar a esse ponto, a escolha dela
está clara.
10

A MENSAGEM DE ANA a respeito da reunião malsucedida é curta, mas, para


Derek, é clara o su ciente. Ele já ouviu aquele tom na voz antes, quando ela
mencionava a possibilidade, de modo que ele sabe que Ana está se
preparando para aceitar a oferta de emprego da Polytope.
Esse é o último cartucho de Ana na tentativa de conseguir o transporte
do Neuroblast. Não há mais nada. Ninguém gosta muito da ideia, mas ela é
adulta, já pesou os prós e os contras, e tomou uma decisão. Se ela vai mesmo
fazer aquilo, o mínimo que ele pode lhe dar é apoio.
Só que ele não pode. Não quando existe uma alternativa: aceitar a oferta
da Binary Desire.
Depois da conversa que teve com Marco e Polo, Derek entrou em contato
com Jennifer Chase para perguntar a ela se a vontade dos digientes de serem
incorporados poderia torná-los inadequados para os propósitos da Binary
Desire. Chase lhe disse que os clientes da Binary Desire vão ter a liberdade
de atribuir características corporativas às suas cópias de digientes. Na
verdade, se os seus sentimentos em relação aos digientes se tornarem tão
intensos quanto a Binary Desire espera, a expectativa é que um grande
número deles proceda assim. É a resposta correta, do ponto de vista de
Derek, mas uma parte dele ainda esperava que lhe dessem a resposta errada
e, dessa forma, uma razão mais concreta para recusar a proposta. Em vez
disso, a decisão agora está nas mãos dele. Nas dele e nas de Marco.
Ele pensou bastante no argumento de Ana, sobre o fato de os digientes
não terem capacidade para aceitar a oferta da Binary Desire por causa da
inexperiência com relações românticas e empregos. O argumento faz
sentido se você pensar nos digientes como crianças humanas. Contudo, ele
também implica que, enquanto estiverem con nados à Data Earth,
enquanto a vida deles continuar sendo tão radicalmente isolada, os digientes
nunca se tornarão maduros o bastante para tomar uma decisão dessa
magnitude.
Entretanto, talvez os padrões de maturidade para um digiente não
devessem ser tão altos quanto o são para um ser humano; talvez Marco já
seja tão maduro quanto precisa ser para tomar essa decisão. Ele parece à
vontade ao pensar em si mesmo como um digiente e não como um ser
humano. É possível que não considere o aspecto total das consequências do
que está sugerindo, mas Derek não consegue afastar a ideia de que Marco,
na verdade, entende a própria natureza melhor do que seu dono. Marco e
Polo não são humanos, e talvez pensar neles como se o fossem seja um
equívoco, forçando-os a se manterem dentro das expectativas de Derek em
vez de serem eles mesmos. O que é mais respeitoso: tratá-los como seres
humanos ou reconhecer que não o são?
Em outras circunstâncias, esta seria uma questão acadêmica, algo que ele
poderia deixar para resolver depois, mas o fato é que esse debate in uencia
diretamente a decisão que ele precisa tomar aqui e agora. Se aceitar a oferta
da Binary Desire, não haverá necessidade de Ana ir trabalhar na Polytope,
de modo que o problema pode ser formulado da seguinte maneira: o que é
melhor, modi car a química mental de Marco ou a de Ana?
Ana sabe o que vai acontecer caso ela aceite o emprego, sabe disso bem
melhor que Marco. Mas Ana é uma pessoa, e não importa quanto Derek
ache Marco uma criatura estupenda, ele dá mais valor a Ana. Se um deles
tem que sofrer uma manipulação neuroquímica, Derek não quer que seja
ela.
Na tela, ele abre o modelo de contrato enviado pela Binary Desire.
Depois, chama Marco e Polo, ambos nos seus corpos de robôs.
— Preparado assinar contrato? — pergunta Marco.
— Vocês sabem que não precisam fazer isso se for apenas para ajudar os
outros — diz Derek. — Só precisam fazer se for o que querem mesmo. — E
ca pensando se isso é verdade.
— Não precisa car pedindo e pedindo — fala Marco. — Sentir o mesmo
antes. Quer fazer.
— E você, Polo?
— Estar de acordo.
Os digientes estão dispostos, até mesmo ansiosos, e talvez isso fosse o
su ciente para encerrar a questão. Há, porém, outras considerações, de
ordem puramente egoísta.
Se Ana assumir o emprego na Polytope, isso vai criar um afastamento
entre ela e Kyle, um afastamento do qual Derek pode se bene ciar. Não é um
pensamento honroso, mas ele não pode ngir que não lhe ocorreu. Ao passo
que, se ele aceitar a oferta da Binary Desire, o afastamento acontecerá entre
ele e Ana; pode até estragar para sempre as suas chances de car com ela. Ele
está pronto para abrir mão disso?
Talvez ele nunca tenha tido uma chance com Ana; talvez tenha enganado
a si mesmo durante todos esses anos. Nesse caso, seria melhor abrir mão
dessa fantasia, se isso signi ca se libertar de um desejo que nunca poderá ser
satisfeito.
— Esperando o quê? — pergunta Marco.
— Nada — responde Derek.
Com os dois digientes observando, ele assina o contrato da Binary Desire
e o envia para Jennifer Chase.
— Quando ir para a Binary Desire? — pergunta Marco.
— Vamos tirar um retrato completo seu depois que eu receber minha
cópia do contrato assinada — responde ele. — E aí mandamos para eles.
— Ok — diz Marco.
Enquanto os digientes conversam animados sobre o signi cado daquilo
tudo, Derek ca pensando no que vai dizer a Ana. Não pode falar que está
fazendo isso por ela, é claro. Ela se sentiria muito culpada se achasse que ele
está sacri cando Marco para bene ciá-la. A decisão foi dele, e é melhor que
Ana ponha a culpa nele.
• • •

Ana e Jax estão jogando Jerk Vector, um jogo de corrida que Ana trouxe há
pouco tempo para a Data Earth; eles pilotam os hovercars por cima de uma
superfície tão acidentada quanto uma embalagem de ovos. Ana consegue
adquirir velocidade em uma baixada, o que lhe possibilita saltar uma ravina,
enquanto Jax não consegue fazer o mesmo, e seu hovercar capota lá atrás.
— Espera eu alcançar — diz ele pelo intercomunicador.
— Está bem — diz Ana, e coloca o hovercar em ponto morto. Enquanto
espera Jax subir de volta a longa trilha que corta o paredão da ravina, abre
outra janela para checar as mensagens. E o que vê a deixa atônita.
Felix mandou uma mensagem para todo o grupo de usuários,
comentando de maneira triunfal uma contagem regressiva para o primeiro
contato da humanidade com os Xenoterianos. De início, ela pensa que não
entendeu direito devido ao modo excêntrico com que Felix usa a linguagem,
mas umas poucas mensagens de outras pessoas con rmam que o transporte
do Neuroblast já está em processamento, custeado pela Binary Desire.
Alguém do grupo vendeu seu digiente para transformá-lo em um boneco
erótico.
Então, ela vê uma mensagem con rmando que Derek vendeu Marco.
Está prestes a fazer um post dizendo que aquilo não podia ser verdade, mas
se detém. Em vez disso, volta para a janela da Data Earth.
— Jax, preciso fazer uma ligação. Por que não ca aí um pouco,
praticando o salto sobre a ravina?
— Vai se arrepender — diz Jax. — Ganhar próxima corrida.
Ana transfere o jogo para o modo de treino, a m de que Jax possa
repetir os saltos sem ter de enfrentar toda a subida de volta cada vez que
cair. Então abre uma janela de videofone e liga para Derek.
— Me diga que não é verdade — diz ela, mas basta um olhar para o rosto
dele para ver que é.
— Não queria que casse sabendo assim. Eu ia ligar para você, mas…
Ana está tão pasma que mal consegue encontrar palavras.
— Por que fez isso? — Derek hesita por tanto tempo que ela faz outra
pergunta. — Foi pelo dinheiro?
— Não! Claro que não. Apenas achei que os argumentos de Marco faziam
sentido, e que ele já tinha idade para fazer as próprias escolhas.
— Nós conversamos sobre isso. Você concordou que era melhor esperar
até que ele tivesse mais experiência.
— Eu sei. Mas depois, bem, depois achei que estava sendo cauteloso
demais.
— Cauteloso demais? Você não está correndo o risco de que Marco rale o
joelho. A Binary Desire vai fazer uma cirurgia cerebral nele. É possível ser
cauteloso demais em uma situação como essa?
Ele faz uma pausa, antes de responder:
— Achei que era hora de deixá-lo ir.
— Deixá-lo ir? — Como se a ideia de proteger Marco e Polo fosse alguma
fantasia infantil que ele tivesse conseguido superar. — Não sabia que era
assim que encarava a questão.
— Eu também não, até pouco tempo atrás.
— Isso signi ca que você não tem planos de um dia transformar Marco e
Polo em corporações?
— Não, ainda pretendo fazer isso. Só não quero continuar mantendo
essa… — Ele hesita. — Essa xação.
— Fixação. — Ana ca pensando quanto conhece de verdade Derek. —
Bom para você, acho.
Ele parece magoado ao escutar aquilo, o que a deixa satisfeita.
— Vai ser bom para todo mundo — diz ele. — Os digientes vão ganhar
acesso à Real Space…
— Eu sei. Eu sei.
— Sério, acho que assim é melhor — diz ele, mas sem parecer acreditar
muito nas próprias palavras.
— Como pode ser melhor? — pergunta ela. Derek não responde, e ela o
encara. — Falo com você depois — diz Ana, fechando a janela no telefone.
O fato de pensar nas maneiras como Marco pode vir a ser usado — sem
sequer entender que está sendo usado — a deixa de coração partido. Não dá
para salvar todos, pensa ela. Só que nunca havia lhe ocorrido que Marco
poderia vir a correr tal risco. Ela presumia que Derek se sentia do mesmo
modo que ela e entendia a necessidade de fazer sacrifícios.
Na janela aberta da Data Earth, ela pode ver Jax pilotando alegremente o
hovercar, subindo e descendo ladeiras como um garoto em uma montanha-
russa sem trilhos. Ela não quer contar sobre o contrato assinado com a
Binary Desire naquele momento; teriam que discutir o que isso vai signi car
para Marco, e ela não tem energia para essa conversa agora. Por ora, tudo
que ela quer é car vendo Jax e, aos poucos, tentar se acostumar à ideia de
que o transporte do Neuroblast está sendo encaminhado. É uma sensação
peculiar. Ela não pode dizer que é um alívio, devido ao enorme preço que foi
cobrado, mas sem dúvida é bom que esse enorme obstáculo ao futuro de Jax
tenha sido removido, e que ela não precise mais aceitar a oferta de trabalho
da Polytope para que isso acontecesse. Vai levar meses até que o trabalho do
transporte seja nalizado, mas, agora que existe um nal à vista, o tempo vai
passar mais depressa. Jax poderá ter acesso à Real Space, ver de novo os
amigos e se reunir ao restante do seu universo social.
Não que o futuro pareça ser tranquilo. Ainda há uma série interminável
de obstáculos pela frente, mas ao menos ela e Jax terão a possibilidade de
enfrentá-los. Por pouco tempo, Ana sente otimismo, fantasiando sobre o
que lhes pode acontecer se eles tiverem êxito.
Ela imagina Jax amadurecendo com o passar dos anos, tanto na Real
Space quanto no mundo exterior. Imagina-o se transformando em uma
corporação, uma pessoa sob os olhos da lei, com um emprego e um salário.
Imagina-o como participante de uma subcultura digiente, uma comunidade
com dinheiro e talentos su cientes para ser capaz de se transportar para
novas plataformas sempre que surgir a necessidade. Imagina-o sendo aceito
por uma geração de humanos que cresceram cercados de digientes e que os
veem como possíveis parceiros em diferentes tipos de relação, de uma forma
que os membros da geração dela jamais foram capazes de ver. Imagina-o
amando e sendo amado, discutindo e fazendo concessões. Imagina-o
fazendo sacrifícios, alguns difíceis e outros mais fáceis por envolverem entes
queridos.
Passam-se alguns minutos, e Ana diz a si mesma para deixar de
devaneios. Não há garantia de que Jax será capaz de realizar qualquer uma
dessas coisas. Mas se um dia ele tiver a chance de tentar, vai ter que dar
continuidade à tarefa que está diante dela: ensinar a ele, da melhor maneira
que puder, como viver.
Ana dá início ao processo de desligamento do jogo e chama Jax no
intercom.
— O jogo acabou, Jax — diz ela. — Está na hora de fazer o dever de casa.
A BABÁ AUTOMÁTICA foi uma criação de Reginald Dacey, um matemático
nascido em Londres em 1861. O propósito original de Dacey era o de
construir uma máquina de ensino. Inspirado pelos recentes avanços na
tecnologia dos gramofones, ele tencionava converter os maquinismos
aritméticos da Máquina Analítica proposta por Charles Babbage em um
mecanismo capaz de ensinar gramática e aritmética automaticamente.
Dacey não o encarava como um substituto para o ensino humano, mas
como um instrumento cuja função era poupar trabalho, a ser utilizado por
professores e governantas.
Durante anos, Dacey trabalhou com a nco em sua máquina de ensino, e
até mesmo a perda de sua esposa, Emily, que morreu durante o parto em
1894, não diminuiu a velocidade dos seus esforços.
O que mudou a direção de suas pesquisas foi a descoberta, vários anos
depois, da forma que seu lho, Lionel, estava sendo tratado pela babá, uma
mulher conhecida como Nanny Gibson. O próprio Dacey havia sido criado
por uma babá muito afetuosa e, durante anos, presumiu que a mulher
contratada por ele estava tratando seu lho da mesma maneira, chegando
até a adverti-la, vez ou outra, para que não fosse tolerante demais. Ficou
chocado ao descobrir que Nanny Gibson espancava regularmente o garoto e
o obrigava a tomar Pó de Gregory (um laxante poderoso e de sabor
intolerável) como castigo. Percebendo que o lho vivia em terror constante
com a babá, Dacey a despediu de imediato. Em seguida, realizou entrevistas
minuciosas com várias candidatas ao posto, e se surpreendeu ao perceber a
enorme variedade de abordagens entre elas no que dizia respeito à educação
de crianças. Algumas babás enchiam seus protegidos de afeição, enquanto
outras aplicavam medidas ainda mais duras do que as de Nanny Gibson.
Dacey en m contratou uma babá substituta, mas mandava-a levar Lionel
regularmente à o cina para poder mantê-lo sob supervisão. Isso deve ter
sido um verdadeiro paraíso para o menino, que, na presença de Dacey, não
manifestava outra coisa senão obediência; a discrepância entre os relatos de
Nanny Gibson sobre o comportamento de Lionel e as observações do
próprio Dacey o levaram a iniciar uma investigação quanto à melhor
conduta para se criar um lho. Dada sua inclinação matemática, ele via o
estado emocional de uma criança como um exemplo de sistema em
equilíbrio instável. Seus diários desse período incluem a seguinte
observação: “A permissividade leva ao mau comportamento, que, por sua
vez, irrita a babá e a leva a ministrar um castigo mais severo do que o
merecido. Ela, então, sente remorso, e, subsequentemente, procura
compensar isso com mais permissividade. O processo torna-se um pêndulo
invertido, com oscilações de magnitude cada vez maior. Se pudermos
manter o pêndulo na posição vertical, não haverá necessidade de correções
posteriores.”
Dacey tentou transmitir sua loso a de educação infantil a uma série de
babás de Lionel, mas sempre recebeu relatos de que o menino não as
obedecia. Parece não ter lhe ocorrido que o menino se comportava de uma
maneira com as babás e de outra com o pai. Ele acabou concluindo que as
babás eram muito temperamentais para seguir suas instruções à risca. Em
um aspecto, ele concordava com a sabedoria popular de sua época, que dizia
que a natureza emotiva das mulheres fazia delas indivíduos pouco indicados
para a criação de lhos; o ponto em que ele divergia era sua noção de que a
punição em demasia podia ser tão prejudicial quanto o excesso de afeição.
Acabou concluindo que a única babá capaz de seguir os procedimentos por
ele esboçados seria uma que ele próprio viesse a construir.
Em cartas a colegas, Dacey expôs múltiplas razões para seu interesse por
uma babá mecânica. Em primeiro lugar, uma máquina assim seria mais fácil
de construir do que uma cuja nalidade era ensinar, e a venda desta
proporcionaria um modo de levantar os fundos necessários para o
aperfeiçoamento da outra. Em segundo lugar, ele via nisso uma
oportunidade para fazer uma intervenção antecipada: ao colocar as crianças
sob os cuidados de máquinas enquanto bebês, ele estaria se certi cando de
que elas não adquiririam maus hábitos que precisariam ser erradicados
posteriormente. “Crianças não nascem pecadoras, mas tornam-se devido à
in uência daqueles a quem encarregamos sua instrução”, escreveu ele. “Uma
criação racional produzirá crianças racionais.”
É um bom indicador do pensamento vitoriano em relação a crianças o
fato de que, em nenhum momento, Dacey sugere que elas deveriam ser
criadas pelos pais. Sobre a participação dele próprio na criação de Lionel, ele
escreveu: “Estou consciente de que minha presença traz consigo os próprios
perigos que procuro evitar, pois, embora seja mais racional do que qualquer
mulher, não sou imune às expressões de satisfação ou de acabrunhamento
do menino. Contudo, o progresso pode acontecer apenas passo a passo, e
mesmo que já seja tarde demais para que Lionel possa receber com
plenitude os benefícios de meu trabalho, meu lho compreende a
importância dele. O aperfeiçoamento desta máquina signi ca que outros
pais serão capazes de criar seus lhos em um ambiente mais racional do que
eu pude proporcionar ao meu.”
Para a fabricação da Babá Automática, Dacey rmou um contrato com a
omas Bradford & Co., uma fabricante de máquinas de costurar e de lavar.
A parte principal do torso da Babá era ocupada por um mecanismo de rodas
dentadas movido a molas, que controlava a programação da alimentação e
do acalentamento. Durante a maior parte do tempo, os braços assumiam
uma posição de aconchego para ninar o bebê. A intervalos programados, a
máquina erguia o pequeno até a posição de ser amamentado e lhe oferecia
um mamilo de borracha conectado a um reservatório cheio de líquido
preparado com uma fórmula alimentícia. Além da manivela maior,
destinada a acionar a mola principal, a Babá tinha uma manivela pequena
para acionar o gramofone que reproduzia as canções de ninar; era preciso
um gramofone excepcionalmente pequeno para ser encaixado no interior da
cabeça da Babá, e apenas discos fabricados para aquele aparelho podiam ser
reproduzidos. Havia também um pedal próximo à base da Babá que,
acionado pelo pé, pressurizava a bomba de sucção encarregada de sugar,
através de dois tubos, as excreções depositadas na fralda do bebê e transferi-
las para um vasilhame.
A Babá Automática chegou ao mercado em março de 1901, com o
seguinte anúncio publicado no e Illustrated London News:

Não deixe mais sua criança aos cuidados de uma mulher cujo caráter
você desconhece. Adote a prática moderna do acompanhamento
cientí co de bebês adquirindo a

BABÁ AUTOMÁTICA PATENTEADA DE DACEY


As VANTAGENS deste SUBSTITUTO ÚNICO para uma babá são:

Ela ensina seu bebê a obedecer a um horário regular de alimentação e


de sono.
Ela acalma seu bebê sem recorrer à administração de narcóticos
estupefacientes.
Ela trabalha dia e noite, não requer acomodações próprias e não furta.
Ela não vai expor seu bebê a in uências pouco recomendáveis.

Considere a opinião destes clientes:

“Nosso lho agora se comporta de maneira perfeita e é uma


companhia maravilhosa.”
Sra. Menhenick, Colwyn Bay.

“Um incomparável melhoramento em relação à moça irlandesa que a


antecedeu. Uma bênção para o nosso lar.”
Sra. Hastings, Eastbourne.

“Eu gostaria de ter sido criada por uma babá assim.”


Sra. Godwin, Andoversford

THOMAS BRADFORD & CO.


68, FLEET STREET, LONDRES
E MANCHESTER

É digno de nota que, em vez de fazer propaganda da criação racional dos


lhos, a mensagem publicitária apela para os medos dos pais relativos a
amas de leite pouco con áveis. Isso pode se dever à esperteza mercadológica
da parte de omas Bradford & Co., os parceiros de Dacey, mas alguns
historiadores consideram que a característica revela os motivos reais do
matemático para criar a Babá Automática. Embora Dacey sempre tenha
descrito seu projeto de máquina de ensino como um instrumento auxiliar
para as governantas, ele lançou a Babá Automática como um substituto
completo da babá humana. Como as babás costumam vir das classes
trabalhadoras, enquanto as governantas tipicamente são oriundas de uma
classe superior, isso sugere um preconceito de classe inconsciente da parte
do inventor.
Fossem quais fossem os motivos de seu apelo para o público, a Babá
Automática gozou de um breve período de popularidade, com mais de cento
e cinquenta unidades vendidas em seis meses. Dacey sustentava que as
famílias que usavam a Babá Automática estavam satisfeitas com a qualidade
dos cuidados proporcionados pela máquina, embora não exista maneira de
veri car essa informação; os testemunhos usados nos anúncios eram muito
provavelmente ctícios, como era o costume da época.
O que se sabe com certeza é que, em setembro de 1901, um bebê
chamado Nigel Hawthorne foi fatalmente arremessado por uma Babá
Automática quando sua mola principal se partiu. A notícia da morte da
criança logo se espalhou, e Dacey se deparou com um dilúvio de famílias
devolvendo suas Babás Automáticas. Ele examinou a Babá da família
Hawthorne e descobriu que alguém havia modi cado seu mecanismo em
uma tentativa de fazer com que a máquina trabalhasse por um tempo maior
antes de precisar de mais corda. Ele publicou um anúncio de página inteira
no qual — tentando não colocar a culpa nos Hawthorne — insistia que a
Babá Automática era segura quando operada da maneira correta. Os
esforços dele, porém, foram em vão. Ninguém mais queria con ar seus
bebês aos cuidados da máquina de Dacey.
Para demonstrar que a Babá Automática era segura, Dacey ousadamente
anunciou que seu próximo lho caria aos cuidados de uma. Se tivesse
levado seu plano a cabo com sucesso, poderia ter restaurado a con ança na
máquina, mas Dacey nunca teve a chance, devido ao hábito de anunciar seus
planos futuros quanto à prole a esposas em potencial. O inventor fazia suas
propostas de casamento parecerem um convite para participar de uma
enorme empreitada cientí ca, e cava perplexo quando nenhuma das
mulheres considerava esta uma perspectiva atraente.
Depois de vários anos de rejeição, Dacey desistiu de tentar vender a Babá
Automática a um público hostil. Concluindo que a sociedade não era
esclarecida o su ciente para apreciar os benefícios de uma máquina capaz de
cuidar de crianças, abandonou inclusive os planos de construir uma
máquina de ensino, e voltou a seus trabalhos anteriores em matemática
pura. Publicou vários estudos sobre a teoria dos números e ministrou aulas
em Cambridge até sua morte, em 1918, durante a pandemia de gripe
espanhola.
A Babá Automática poderia ter sido esquecida por completo não fosse a
publicação de um artigo no London Times em 1925 intitulado “Reveses da
ciência”. O texto descrevia, em tons zombeteiros, certo número de invenções
e experimentos malsucedidos, entre eles a Babá Automática, que era referida
como “uma geringonça monstruosa cujo inventor decerto desprezava
crianças”. O lho de Reginald, Lionel Dacey, que, àquela altura, tinha se
tornado um matemático e continuava as pesquisas do pai em teoria dos
números, cou ultrajado. Escreveu uma carta de linguagem forte ao jornal
exigindo retratação e, quando isso lhe foi recusado, deu início a uma ação
judicial contra os editores, que veio a perder subsequentemente. Sem
desanimar, Lionel Dacey deu início a uma campanha para provar que a Babá
Automática se baseava em princípios humanos e sensatos de cuidados com a
infância, e publicou por conta própria um livro sobre as teorias de seu pai a
respeito da educação racional das crianças.
Lionel Dacey procedeu a uma reforma completa das Babás Automáticas
que foram mantidas na propriedade da família, e, em 1927, ofereceu-as
novamente à venda no mercado, sem conseguir encontrar um único
comprador. Pôs a culpa disso na obsessão por prestígio das classes altas
britânicas; como os aparelhos domésticos estavam agora sendo divulgados
junto à classe média como “criados elétricos”, a rmou que as famílias da
classe alta insistiam em contratar babás humanas apenas para manter as
aparências, sem se preocupar em saber se elas proporcionavam cuidados
melhores ou não. Pessoas que trabalhavam com Lionel Dacey atribuíram o
insucesso à recusa dele em modernizar o modelo original da Babá
Automática; ele ignorou as recomendações de um consultor empresarial
para que substituísse o mecanismo de molas por um motor elétrico e
demitiu outro que sugeriu relançá-la no mercado sem o nome de Dacey.
Tal como o pai, Lionel Dacey decidiu criar o próprio lho com a ajuda da
Babá Automática, mas, em vez de procurar uma noiva com boa vontade,
anunciou em 1932 que adotaria uma criança. Não divulgou novas
informações nos anos seguintes, o que levou um colunista de fofocas a
sugerir que a criança teria morrido nas mãos de uma das máquinas, mas,
àquela altura, o interesse pela Babá Automática era tão reduzido que
ninguém sequer se deu ao trabalho de investigar a sugestão.
A verdade sobre a criança jamais teria vindo à tona não fosse pelos
esforços do dr. ackery Lambshead. Em 1938, Lambshead estava
consultando no Instituto Brighton de Subnormalidade Mental (atualmente
conhecido como Casa Bayliss) quando encontrou um menino chamado
Edmund Dacey. De acordo com os formulários de admissão, Edmund fora
criado, com sucesso, por uma Babá Automática até os dois anos de idade,
quando Lionel Dacey achou apropriado transferi-lo para os cuidados
humanos. Ele, porém, constatou que o menino não respondia a seus
comandos, e, em seguida, um médico diagnosticou Edmund como “débil
mental”. Considerando que o garoto seria um exemplo inadequado para
provar a e cácia da Babá, Lionel Dacey o deixou aos cuidados do Instituto
Brighton.
O que levou a equipe do Brighton a buscar a opinião de Lambshead foi a
estatura diminuta de Edmund: embora contasse cinco anos, sua altura e seu
peso eram, em média, de um garoto de três anos de idade. As crianças do
Instituto Brighton eram em geral mais altas e saudáveis do que as de abrigos
semelhantes, re exo do fato de que os pro ssionais do Brighton não
seguiam a prática ainda comum de manter uma interação mínima com os
pacientes. Proporcionando afeição e contato físico, as enfermeiras estavam
evitando a condição hoje conhecida como “nanismo psicossocial”, em que o
estresse emocional reduz os níveis de hormônios de crescimento, condição
esta que prevalecia nos orfanatos da época.
De modo bastante razoável, as enfermeiras presumiram que o retardo no
crescimento de Edmund Dacey se devia à substituição do contato humano
natural pelos cuidados mecânicos da Babá Automática, e esperavam que,
sob sua supervisão, ele viesse a ganhar peso. Entretanto, após dois anos no
Instituto Brighton, durante os quais as enfermeiras o encheram de atenções,
Edmund mal crescera, o que as levaram a procurar alguma causa siológica
subjacente.
Lambshead propôs a hipótese de que a criança indubitavelmente sofria
de nanismo psicossocial, mas de uma rara variedade invertida: o que
Edmund precisava não era de mais contato com pessoas, mas, sim, de
contatos com uma máquina. Seu tamanho reduzido não era o resultado dos
anos passados aos cuidados da Babá Automática, era o resultado de ter sido
privado dela depois de seu pai ter decidido que o menino estava pronto para
receber atenção de humanos. Se essa teoria estivesse correta, colocar
Edmund mais uma vez sob os cuidados da máquina faria com que ele
retomasse o processo de crescimento.
Lambshead procurou Lionel Dacey para adquirir uma Babá Automática.
O médico deixou um registro do encontro entre os dois em uma monogra a
escrita anos depois:

[Lionel Dacey] falou sobre seus planos de repetir a experiência com


outra criança assim que pudesse se assegurar de que a mãe seria de
origem adequada. Sua impressão era de que a experiência com
Edmund fracassara apenas por causa da “imbecilidade nata” do
garoto, cuja culpa ele atribuía à mãe. Perguntei-lhe o que ele sabia
sobre os pais da criança, e ele respondeu, talvez com excesso de ênfase,
que nada sabia. Algum tempo depois, visitei o orfanato onde Lionel
Dacey havia adotado Edmund e descobri nos arquivos que a mãe do
menino era uma mulher chamada Eleanor Hardy, que trabalhara
como criada na casa de Lionel Dacey. Ficou óbvio, para mim, que
Edmund é de fato lho ilegítimo de Lionel.

Lionel Dacey recusou-se a doar uma Babá Automática para o que


considerava um experimento fadado ao fracasso, mas concordou em vender
uma a Lambshead, que, em seguida, providenciou para que fosse instalada
no quarto de Edmund no Instituto Brighton. A criança abraçou a máquina
assim que a viu e, nos dias seguintes, passou a distrair-se alegremente com
brinquedos, desde que a Babá estivesse por perto. Ao longo dos meses, as
enfermeiras registraram um aumento constante na altura e no peso do
menino, o que con rmava o diagnóstico de Lambshead.
Os médicos do Instituto Brighton haviam presumido que o retardo
cognitivo de Edmund era de natureza congênita, e se deram por satisfeitos
com o fato de ele estar evoluindo física e emocionalmente. Lambshead, no
entanto, pôs-se a pensar se as consequências do vínculo de Edmund com a
máquina não seriam de natureza mais ampla do que suspeitavam. Ele
especulou que o garoto havia sido diagnosticado como débil mental porque
não dera atenção aos seus instrutores humanos e que talvez respondesse
melhor a um instrutor mecânico. Infelizmente, não havia meios para testar a
nova hipótese: mesmo que Reginald Dacey tivesse construído com sucesso
sua máquina de ensino, ela não poderia proporcionar o tipo de instrução
requerida por Edmund.
Não foi senão em 1946 que a tecnologia alcançou o nível necessário para
isso. Como resultado de suas conferências sobre radiointoxicação,
Lambshead mantinha boas relações com cientistas que trabalhavam no
Laboratório Nacional Argonne, em Chicago, e estava presente em uma
demonstração dos primeiros manipuladores remotos, braços mecânicos
projetados para o manuseio de material radioativo. Ele reconheceu de
imediato o potencial deles para a educação de Edmund, e logo conseguiu
adquirir um par para o Instituto Brighton.
Edmund contava treze anos à época. Sempre tinha permanecido
indiferente aos esforços dos médicos para ensinar-lhe algo, mas os braços
mecânicos atraíram sua atenção de pronto. Usando um sistema intercom
que imitava o áudio de baixa delidade do gramofone da Babá Automática
original, as enfermeiras conseguiram fazer com que Edmund entendesse
suas vozes de um modo que lhes fora impossível quando falavam
diretamente a ele. Dentro de poucas semanas, cou aparente que Edmund
não sofria de retardamento cognitivo conforme se acreditara até então; a
equipe apenas não dispunha dos meios adequados para estabelecer contato
com o menino.
De posse de todas essas novidades, Lambshead conseguiu persuadir
Lionel Dacey a visitar o Instituto Brighton. Vendo que Edmund
demonstrava uma viva curiosidade e uma natureza inquisitiva, Lionel Dacey
percebeu quanto impedira o crescimento intelectual do garoto. Lambshead
faz o seguinte relato:

Ele lutou visivelmente para conter a emoção ao ver o que tinha


produzido com a tentativa de trazer para a realidade a visão de seu
pai: uma criança tão ligada às máquinas que não conseguia
reconhecer outros seres humanos. Ouvi-o murmurar: “Lamento
muito, pai.”
“Tenho certeza de que seu pai entenderia que suas intenções eram
boas,” falei.
“O senhor não compreende, dr. Lambshead. Fosse eu qualquer
outro cientista, meus esforços para con rmar a tese de meu pai teriam
sido um tributo à in uência dele, independentemente dos resultados.
Entretanto, como sou lho de Reginald Dacey, acabei desmentindo
sua teoria por duas vezes, porque minha vida inteira tem sido uma
demonstração do impacto que a atenção de um pai pode ter sobre o
lho.”

Logo após essa visita, Lionel Dacey fez instalar em sua casa
manipuladores remotos e um intercom e trouxe Edmund para morar
consigo. Ele se dedicou à interação mediada por máquinas com o lho até
Edmund sucumbir a uma pneumonia em 1966. Lionel Dacey faleceu no ano
seguinte.
A Babá Automática em exibição aqui é a que foi adquirida pelo dr.
Lambshead para melhorar os cuidados de Edmund no Instituto Brighton.
Todas as Babás ainda mantidas por Lionel Dacey foram destruídas após a
morte de Edmund. O Museu Nacional de Psicologia agradece ao dr.
Lambshead pela doação do raro artefato.
QUANDO MINHA FILHA NICOLE era bebê, li um ensaio em que era sugerido que
talvez não fosse mais necessário ensinar as crianças a ler ou a escrever,
porque as técnicas de reconhecimento e síntese vocal em breve tornariam
essas habilidades desnecessárias. Minha esposa e eu camos horrorizados
diante daquela perspectiva, e decidimos que, independentemente de quão
so sticadas as tecnologias viessem a se tornar, as aptidões de nossa lha
sempre teriam a instrução tradicional como base.
No m das contas, tanto nós quanto o articulista tínhamos um pouco de
razão: agora adulta, Nicole sabe ler tão bem quanto eu. Em certo sentido,
porém, ela perdeu a capacidade de escrever. Ela não dita as mensagens e
pede a um assistente virtual que leia de volta o que foi dito, como o
articulista previra: Nicole subvocaliza, seu projetor retiniano exibe as
palavras em seu campo visual e ela faz as revisões usando uma combinação
de gestos e movimentos dos olhos. Para todos os propósitos práticos, ela é
capaz de escrever. Contudo, se retirarmos o so ware que a auxilia e lhe
dermos um teclado como o que estou usando, ao qual permaneço el, ela
terá di culdade para soletrar muitas das palavras desta frase. Nessas
circunstâncias, seu próprio idioma se torna uma espécie de segunda língua
para ela, uma que Nicole consegue falar uentemente, mas que mal
consegue escrever.
Pode parecer que estou desapontado com as conquistas intelectuais de
minha lha, mas não é o caso. Ela é inteligente e muito dedicada ao seu
trabalho em um museu de arte, quando poderia estar ganhando mais
dinheiro em qualquer outro lugar, e sempre me orgulhei de seus triunfos.
No entanto, ainda há aquele meu eu antigo que caria chocado ao constatar
que a lha não sabe soletrar, e não posso negar que existe uma continuidade
entre ele e eu.
Já vão mais de trinta anos desde que li o artigo em questão, e, nesse
período, nossa vida sofreu inúmeras mudanças que eu teria sido incapaz de
prever. A mais catastró ca delas foi quando a mãe de Nicole, Angela,
declarou que merecia uma vida mais interessante do que a que eu vinha lhe
proporcionando, e passou a década seguinte viajando pelo mundo. Contudo,
as mudanças que conduziram à forma peculiar de alfabetização de Nicole
foram mais comuns e graduais: uma sucessão de aplicativos que não só
prometiam, como também proporcionavam utilidade e conveniência, tanto
que não z objeção a nenhum deles na época em que ela os adotou.
De fato, nunca tive o hábito de profetizar o Fim dos Tempos toda vez que
uma nova tecnologia era anunciada; recebo-as tão bem quanto qualquer
outra. No entanto, quando a Whetstone lançou sua nova ferramenta de
busca, o Remem, o programa me trouxe preocupações que nenhum de seus
predecessores me causara.
Milhões de pessoas, algumas da mesma idade que eu, mas, em geral, mais
jovens, vêm mantendo biologs, diários biográ cos de si mesmos, há anos e
anos, usando câmeras pessoais que capturam sem parar vídeos do cotidiano.
As pessoas consultam esses biologs por uma grande variedade de motivos —
desde o desejo de reviver seus momentos favoritos até descobrir a causa de
uma reação alérgica —, mas apenas de modo intermitente; ninguém quer
passar a vida inteira propondo buscas e ltrando resultados. Esses biologs
são os álbuns de fotogra as mais completos que alguém poderia conceber, e,
como a maioria dos álbuns de fotogra as, cam em repouso exceto em
ocasiões especiais. Agora, a Whetstone pretende mudar isso. Eles anunciam
que os algoritmos do Remem podem varrer todo o palheiro antes mesmo
que você termine de dizer “agulha”.
O Remem monitora as conversas buscando referências a eventos
passados, e exibe vídeos desses eventos no canto inferior esquerdo de seu
campo visual. Se você diz a alguém “Lembra aquele casamento em que você
dançou a conga?”, o Remem exibe o vídeo. Se a pessoa com quem está
conversando menciona “a última vez em que fomos à praia”, o Remem exibe
o vídeo. E ele não funciona apenas quando se está conversando com outra
pessoa: o Remem também monitora suas subvocalizações. Se você lê as
palavras “o primeiro restaurante de culinária sichuana em que jantei”, suas
cordas vocais se movem como se você estivesse lendo aquilo em voz alta, e o
Remem exibe o respectivo vídeo.
Não se pode negar a utilidade de um so ware capaz de responder à
pergunta “Onde foi que coloquei as chaves?”. Mas a Whetstone está
direcionando o marketing do Remem para mostrá-lo como algo além de um
prático assistente virtual: eles querem substituir sua memória biológica.
• • •

Foi no verão em que Jijingi completou treze anos que um europeu veio
morar no vilarejo. O poeirento vento harmatão mal começara a soprar do
norte quando Sabe, o ancião considerado líder por todas as famílias locais,
fez o anúncio.
A reação inicial de todos foi de alarme, é claro.
— O que zemos de errado? — perguntou o pai de Jijingi a Sabe.
Os europeus chegaram à terra dos Tivs pela primeira vez há muitos anos,
e, embora alguns anciãos a rmassem que eventualmente eles iriam partir e a
vida voltaria a ser como era, até que esse dia chegasse os Tivs precisariam
conviver com eles. Isso signi cava muitas mudanças no estilo de vida dos
Tivs, mas, até então, nenhum europeu fora morar com eles. O motivo mais
comum da vinda deles era recolher impostos pelas estradas que
construíram; alguns clãs eram visitados com mais frequência, porque as
pessoas se recusavam a pagar os impostos, mas isso não havia acontecido
com os membros do clã Shangev. Sabe e os anciãos dos outros clãs
concordaram que a melhor estratégia era pagar os impostos.
Sabe disse a todos para não se preocupar.
— Este europeu é um missionário; isso signi ca que ele não faz outra
coisa além de rezar. Não tem autoridade para nos punir, mas, se o
recebermos bem, deverá agradar aos homens da administração.
Ele ordenou que duas cabanas fossem construídas para o missionário,
uma para dormir e outra para receber pessoas. Durante vários dias, todos
reservaram uma parte do tempo que dedicariam à colheita do sorgo para
ajudar a assentar tijolos, en ar postes no terreno, tecer capim para a
cobertura do teto. Foi durante a fase nal, a de bater e nivelar o chão, que o
missionário chegou. Seus carregadores chegaram primeiro, e as caixas que
traziam foram as primeiras coisas visíveis a distância, enquanto eles abriam
caminho entre os campos de mandioca; o missionário foi o último a surgir,
aparentemente exausto, embora não carregasse nada. Seu nome era Moseby,
e ele agradeceu a todos que tinham ajudado a construir as cabanas. Ele
tentou ajudá-los, mas logo cou claro que não sabia fazer coisa alguma, de
modo que acabou sentado à sombra de uma alfarroba, enxugando o rosto
com um pedaço de pano.
Jijingi observou o missionário com curiosidade. O homem abriu uma das
caixas e tirou dali o que, a princípio, pareceu um bloco de madeira.
Contudo, ele o abriu ao meio, e Jijingi percebeu que era um monte de folhas
de papel rmemente presas umas às outras. O menino já tinha visto papel:
quando os europeus vinham receber o pagamento dos impostos, eles davam
papéis em troca, para que o vilarejo pudesse provar que o valor estava pago.
Mas os papéis que o missionário olhava eram, obviamente, de um tipo
diferente, e deviam ter outra função.
O homem percebeu Jijingi olhando para ele, e o chamou para mais perto.
— Meu nome é Moseby — disse ele. — Como você se chama?
— Eu sou Jijingi e meu pai é Orga, do clã Shangev.
Moseby desdobrou uma folha de papel e fez um gesto na direção dela.
— Já ouviu a história de Adão? — perguntou ele. — Adão foi o primeiro
homem. Todos nós somos lhos de Adão.
— Aqui somos descendentes de Shangev — respondeu Jijingi. — E todos
na terra dos Tivs são descendentes de Tiv.
— Sim, mas o seu antepassado Tiv é descendente de Adão, tal como os
meus. Somos todos irmãos. Você compreende?
O missionário falava como se a língua fosse grande demais para a boca,
mas Jijingi conseguia entender o que dizia.
— Sim, compreendo.
Moseby sorriu, e apontou o papel.
— Este papel conta a história de Adão.
— Como um papel pode contar uma história?
— É uma arte que nós, europeus, conhecemos. Quando um homem fala,
fazemos marcas em um papel. Depois, quando outro homem olha para o
papel, ele vê as marcas e sabe quais foram os sons que o primeiro homem
fez. Assim, o segundo homem pode ouvir o que o primeiro disse.
Jijingi se lembrou de uma coisa que seu pai dizia a respeito do velho
Gbegba, que era muito habilidoso em rastreamento no mato. “Enquanto eu
ou você não enxergamos nada além da relva remexida, ele é capaz de ver que
um leopardo matou um rato-do-pântano naquele ponto e o levou consigo.”
Gbegba era capaz de olhar para o solo e saber o que havia acontecido,
mesmo sem ter estado presente. Esta arte dos europeus devia ser
semelhante: os que conheciam a técnica de interpretação das marcas podiam
ouvir a história mesmo não tendo estado presentes quando ela foi contada.
— Conte a história que há nesse papel — pediu ele.
Moseby contou-lhe a história sobre Adão e sua esposa sendo enganados
por uma serpente. Então, perguntou a Jijingi:
— Gostou?
— Você narra muito mal, mas a história é interessante.
Moseby riu.
— Tem razão, não sou muito bom com o idioma Tiv. Mas é uma boa
história, sim. É a história mais antiga que temos. Ela foi contada pela
primeira vez muito antes do seu antepassado Tiv ter nascido.
Jijingi duvidou.
— Esse papel não pode ser tão velho.
— Não, o papel não é. Mas as marcas nele foram copiadas de papéis mais
velhos. E as marcas destes, de papéis ainda mais velhos. E assim por diante,
diversas vezes.
Aquilo seria extraordinário, se fosse verdade. Jijingi gostava de histórias,
e as mais antigas costumavam ser as melhores.
— Quantas histórias tem aí?
— Muitas. — Moseby folheou com o dedo as numerosas folhas, e Jijingi
pôde ver que cada página estava coberta de marcas de uma ponta à outra.
Devia haver mesmo muitas, muitas histórias ali.
— Essa arte que você mencionou, de interpretar marcas em um papel, é
apenas para europeus?
— Não, posso ensinar a você. Gostaria?
Cautelosamente, Jijingi fez que sim com a cabeça.
• • •

Como jornalista, desde cedo aprendi a valorizar a utilidade de um biolog


para determinar os fatos relativos a um tema. É difícil encontrar um
procedimento legal, criminal ou civil que não faça uso do biolog de alguém,
e é assim que deve ser. Quando o interesse público está envolvido, descobrir
o que de fato aconteceu tem uma grande importância: a justiça é parte
fundamental do contrato social, e não se pode ter justiça enquanto não se
souber a verdade.
No entanto, tenho sido mais cético quanto ao uso dos biologs em
situações pessoais. Assim que a produção dos biologs se tornou popular,
muitos casais pensaram em usá-los para resolver discussões sobre quem
tinha realmente falado o quê, usando algum vídeo para provar que tinham
razão. Muitas vezes, porém, não era fácil encontrar o trecho exato do vídeo,
e a maioria deles acabava desistindo, a não ser que fosse dos mais
obstinados. Esse inconveniente agia como uma barreira, limitando as buscas
nos biologs àquelas situações em que o esforço era recompensado, ou seja,
situações em que a aplicação da justiça era o fator de motivação.
Com o Remem, encontrar um momento exato se tornou fácil, e biologs
que antes jaziam praticamente esquecidos estão sendo vasculhados como se
fossem cenas de crimes, repletos de provas úteis em brigas domésticas.
Em geral, escrevo na seção de notícias, mas também produzo matérias
especiais de vez em quando. Portanto, quando sugeri ao meu editor um
artigo sobre os possíveis efeitos negativos do Remem, ele me deu sinal verde.
Minha primeira entrevista foi com um casal a quem chamarei de Joel e
Deirdre, um arquiteto e uma pintora, respectivamente. Não foi difícil fazê-
los falar a respeito do Remem.
— Joel está sempre dizendo que sabia de tudo o tempo todo — falou
Deirdre —, mesmo quando não sabia. Isso costumava me deixar louca,
porque eu não conseguia fazê-lo admitir que antes ele tinha falado uma
coisa diferente. Agora consigo. Por exemplo, há pouco tempo, estávamos
conversando sobre o caso do sequestro do bebê dos McKittridge.
Ela me mandou o vídeo de uma discussão que tivera com Joel. Meu
projetor retiniano exibiu as imagens de um encontro entre amigos; o ponto
de vista era o de Deirdre, e Joel falava a um grupo de pessoas: “Estava bem
claro que ele era o culpado, desde o dia em que foi preso.”
A voz de Deirdre: “Você nem sempre pensou assim. Durante meses, falou
que ele era inocente.”
Joel balança a cabeça. “Não, você não está lembrando direito. O que eu
disse foi que, mesmo as pessoas que são obviamente culpadas, merecem um
julgamento justo.”
“Não foi isso que você disse. Você disse que ele estava sendo forçado a
confessar.”
“Você deve estar pensando em outra pessoa. Não fui eu.”
“Não, foi você mesmo. Olhe.”
Uma segunda janela de vídeo se abre, um trecho do biolog dela que
Deirdre acabou de localizar e compartilhar com as pessoas com quem
conversam. No segundo vídeo, Joel e Deirdre estão sentados em um café, e
Joel diz: “Ele é um bode expiatório. A polícia precisava tranquilizar o público e
prendeu um suspeito que pareceu adequado. Agora ele está ferrado.” Deirdre
replica: “Acha que tem alguma chance de ele ser solto?” Joel responde: “Não, a
menos que possa pagar por um bom escritório de advogados, e aposto que não
pode. Gente da posição dele nunca tem um julgamento justo.”
Fecho ambas as janelas, e Deirdre diz:
— Sem o Remem, eu nunca poderia tê-lo convencido de que ele mudou
de posição. Agora, tenho a prova.
— Está bem, você tinha razão daquela vez — disse Joel. — Mas não
precisava fazer aquilo na frente dos nossos amigos.
— Você me corrige o tempo todo na frente deles. Está me dizendo que
não posso fazer o mesmo?
Este era o limite em que a busca da verdade deixava de ser uma virtude.
Quando as únicas pessoas afetadas mantêm uma relação pessoal, há
prioridades maiores, e essa busca detetivesca pela verdade pode se tornar
perigosa. É mesmo tão importante saber de quem foi a ideia daquelas férias
que acabaram se revelando um desastre? É mesmo necessário saber, em um
casal, qual dos dois é mais relapso em cumprir as tarefas que o outro pediu?
Eu não era especialista em casamento, mas sabia o que os conselheiros
matrimoniais sempre diziam: culpar o outro não é a resposta. Em vez disso,
as duas pessoas precisam ter em mente os sentimentos alheios e encarar os
problemas em conjunto.
Em seguida, entrevistei uma porta-voz da Whetstone, Erica Meyers.
Durante algum tempo, ela me repassou um típico discurso corporativo a
respeito dos benefícios do Remem.
— Tornar informações mais acessíveis por si só já é um benefício — disse
ela. — O vídeo ubíquo revolucionou a aplicação da lei. Os negócios se
tornam mais e cientes para quem adota as práticas corretas de manutenção
de registros. O mesmo ocorre conosco, indivíduos, quando nossas
lembranças se tornam mais precisas: melhoramos não apenas em nosso
trabalho, mas em nossa vida pessoal.
Quando lhe perguntei a respeito de casais como Joel e Deirdre, ela
respondeu:
— Se o seu casamento é sólido, o Remem não vai afetá-lo. Entretanto, se
você é o tipo de pessoa que está o tempo todo tentando provar que está certa
e que seu companheiro está errado, então o casamento vai enfrentar
problemas independentemente de você usar o Remem ou não.
Concordei que ela podia ter razão naquele aspecto em particular. Mas,
perguntei, ela não achava que o Remem aumentava as oportunidades para
que discussões do tipo acontecessem, já que era tão fácil manter registros?
— De jeito nenhum — disse ela. — O Remem não produz nas pessoas
uma mentalidade “registradora”; isso elas desenvolvem sozinhas. Outro
casal pode, com a mesma facilidade, usar o Remem para constatar que
ambos não estavam se lembrando direito das coisas e se tornarem mais
benevolentes quando erros como esses acontecerem. Minha previsão é que o
segundo cenário vai ser o mais numeroso entre nossos clientes.
Eu gostaria de compartilhar o otimismo de Erica Meyers, mas sabia que
novas tecnologias nem sempre fazem brotar o melhor nas pessoas. Quem
nunca desejou ser capaz de provar que a sua versão pessoal dos fatos é a
correta? Eu podia facilmente me imaginar usando o Remem da mesma
maneira que Deirdre, e não tinha certeza de que fazer isso seria bom para
mim. Qualquer pessoa que já desperdiçou horas e mais horas na internet
sabe que a tecnologia pode encorajar péssimos costumes.
• • •

Toda semana, Moseby proferia um sermão no dia que era dedicado ao


descanso e ao preparo e consumo de cerveja. Ele parecia desaprovar a
cerveja, mas não queria fazer os sermões durante os dias de trabalho, de
maneira que o dia da cerveja foi o único que sobrou. Ele falava sobre o deus
europeu, e dizia às pessoas que, se elas seguissem as regras dele, a vida de
todos melhoraria, mas as explicações dele sobre como isso iria acontecer
não eram muito convincentes.
No entanto, Moseby também tinha certa habilidade para medicar
pessoas, e estava disposto a aprender a trabalhar nos campos, de modo que,
pouco a pouco, as pessoas começaram a aceitá-lo. O pai de Jijingi o deixava
visitar o missionário de vez em quando para aprender a arte da escrita.
Moseby se ofereceu para ensinar às outras crianças também, e, durante
algum tempo, os garotos da idade de Jijingi apareceram lá, principalmente
para provar uns aos outros que não tinham medo de car perto de um
europeu. Logo eles se entediaram e deixaram de aparecer, mas, como Jijingi
continuou interessado e seu pai achou que isso deixaria os europeus
contentes, ele recebeu permissão para ir lá todos os dias.
Moseby explicou a Jijingi de que maneira cada som falado por uma
pessoa podia ser indicado por uma marca diferente no papel. As marcas
eram dispostas em las, como plantas em um roçado; você olhava para as
marcas como se estivesse andando ao longo de uma la, produzindo o som
que cada marca indicava, e, assim, acabava falando o que a outra pessoa
tinha dito. Moseby lhe ensinou como fazer cada uma daquelas marcas
diferentes em uma folha de papel, usando um pequeno bastão de madeira
que tinha um miolo parecido com carvão.
Em uma aula típica, Moseby falava e depois escrevia o que acabara de
dizer.
— Quando chegar a noite, eu vou dormir. Tugh mba a ile yo me yav. Há
duas pessoas. Ioruv mban mba uhar.
Jijingi copiava com cuidado as marcas escritas na folha de papel e,
quando acabava, Moseby olhava para conferir.
— Muito bem. Mas você precisa deixar espaços quando escreve.
— Eu deixei. — Jijingi apontou o espaço entre uma la e outra.
— Não, não é isso. Está vendo os espaços dentro de cada linha? — Ele
mostrou a própria folha de papel.
Jijingi entendeu.
— Suas marcas estão agrupadas. As minhas estão divididas por igual.
— Não são somente agrupamentos de marcas. São… não sei como
chamá-las. — Ele pegou um maço no de folhas na mesa e o examinou. —
Não estou encontrando aqui. No lugar de onde venho, chamamos de
“palavras”. Quando escrevemos, deixamos espaços entre as palavras.
— Mas o que são as palavras?
— Como posso explicar? — Ele pensou por um momento. — Quando
você fala devagar, você faz uma pequena pausa depois de cada palavra. É por
isso que deixamos um espaço nesses lugares, quando escrevemos. Assim:
quantos. Anos. Você. Tem? — Ele foi escrevendo no papel à medida que
falava, deixando um espaço a cada pausa: Anyom a ou kuma a me?
— Mas você fala devagar porque é estrangeiro. Eu sou Tiv e não preciso
fazer pausas quando falo. Minha escrita não deveria ser do mesmo jeito?
— Não importa a velocidade com que você fala. As palavras são as
mesmas, quer fale devagar, quer fale depressa.
— Então, por que você disse que faz uma pausa depois de cada palavra?
— É a maneira mais fácil de percebê-las. Tente dizer isso bem devagar. —
Ele apontou para o que acabara de escrever.
Jijingi falou bem devagar, como um homem que tenta disfarçar a
embriaguez.
— Por que não há uma pausa entre an e yom?
— Porque anyom é uma palavra só. Não precisa fazer uma pausa no meio
dela.
— Mas eu também não faço pausa depois de anyom.
Moseby suspirou.
— Vou pensar melhor em como explicar o que quero dizer. Por
enquanto, deixe espaços nos lugares em que eu deixo espaços.
Que arte estranha era a escrita. Quando se planta em um roçado, é bom
deixar os buracos das sementes espaçados com regularidade; o pai de Jijingi
teria lhe batido se ele agrupasse os buracos do modo como Moseby
agrupava as marcas no papel. Mas ele estava determinado a aprender aquela
arte da melhor maneira possível, e se para isso precisasse fazer as marcas
daquele jeito, amontoadas, ele o faria.
Foi apenas muitas aulas depois que Jijingi en m entendeu onde devia
deixar os espaços vazios e o que Moseby queria dizer quando se referia a
“palavra”. Não se pode saber, ouvindo, onde uma palavra começa e onde
termina. Os sons que uma pessoa faz quando fala são contínuos e sem
separações, como o couro da perna de um bode, mas as palavras eram como
os ossos por dentro da carne, e o espaço entre elas eram as juntas onde é
preciso cortar quando se quer separá-las em pedaços. Deixando espaços ao
escrever, Moseby estava tornando visíveis os ossos daquilo que falava.
Jijingi percebeu que, se pensasse bastante a respeito, era capaz de
identi car as palavras quando as pessoas falavam em uma conversa normal.
Os sons que saíam da boca das pessoas eram os mesmos, mas ele os
entendia de modo diferente agora; estava consciente das partes que
formavam o todo. Ele próprio tinha passado a vida inteira falando em forma
de palavras. Só não tinha entendido isso até então.
• • •

A facilidade de busca proporcionada pelo Remem é impressionante, mas ela


mal arranha a superfície do que a Whetstone vê como o verdadeiro
potencial do produto. Quando Deirdre checou as a rmações ditas pelo
marido, ela estava fazendo buscas bem especí cas usando o Remem. A
Whetstone, entretanto, espera que, conforme as pessoas forem se
acostumando com o produto, essas buscas tomem o lugar dos processos
costumeiros de recordação e o Remem venha a se integrar à atividade
normal do pensamento. Quando isso acontecer, vamos nos tornar ciborgues
cognitivos, incapazes de nos lembrarmos equivocadamente de qualquer
coisa. O vídeo digital, armazenado em silício capaz de autocorrigir erros,
assumirá o papel antes desempenhado pelos nossos falíveis lobos temporais.
Como seria a experiência de ter a memória perfeita? Até onde sabemos, o
indivíduo com a melhor memória já registrada foi Solomon Shereshevskii,
que viveu na Rússia na primeira metade do século XX. Os psicólogos que o
testaram descobriram que ele era capaz de ouvir uma série de palavras e
números apenas uma vez e lembrá-la com exatidão meses ou até anos
depois. Sem nenhum conhecimento da língua italiana, Shereshevskii foi
capaz de recitar estrofes da Divina comédia que haviam sido lidas para ele
quinze anos antes.
Contudo, ter a memória perfeita não é a bênção que alguém pode
imaginar. A leitura de qualquer passagem de um texto evocava tantas
imagens na mente de Shereshevskii que ele muitas vezes não conseguia focar
no que estava sendo dito, e sua consciência de incontáveis exemplos
especí cos di cultava o entendimento de conceitos abstratos. Às vezes, ele
se esforçava para esquecer coisas. Escrevia, em pedacinhos de papel,
números que pretendia esquecer, e depois os queimava, em uma espécie de
tática para limpar o matagal da memória, mas isso de nada adiantava.
Quando sugeri à porta-voz da Whetstone, Erica Meyers, a possibilidade
de que uma memória perfeita pudesse ser uma desvantagem, ela já tinha a
resposta pronta.
— Isso não é diferente da preocupação que as pessoas tinham em relação
aos projetores retinianos — disse ela. — Temia-se que o ato de olhar as
atualizações a toda hora pudesse se transformar em uma distração ou
sobrecarregar o usuário, mas todos nós nos adaptamos.
Evitei mencionar que nem todo mundo considerava esta uma mudança
positiva.
— E o Remem é inteiramente personalizável — disse ela. — Se a qualquer
momento você achar que ele está fazendo um número excessivo de buscas,
pode diminuir o nível de resposta. Entretanto, de acordo com as análises,
nossos clientes não têm feito isso. À medida que cam mais à vontade com o
uso do so ware, percebem que o Remem é mais útil quando sua resposta é
mais rápida.
Mas mesmo se o Remem não estivesse constantemente atulhando seu
campo de visão com imagens indesejadas do passado, imaginei se não
haveria problemas decorrentes do mero fato de as imagens serem tão exatas.
“Esquecer e perdoar”, diz o ditado. Para nossas personalidades
idealizadas e magnânimas, é tudo que é necessário. Contudo, para nossas
personalidades verdadeiras, a relação entre essas duas ações não é tão direta
assim. Na maioria dos casos, temos que esquecer um pouco antes de
conseguir perdoar; quando a dor sentida não é mais recente, ca mais fácil
perdoar a ofensa, o que, por sua vez, a torna menos memorável, e assim por
diante. Esse “círculo virtuoso” torna certas ofensas, que antes nos deixavam
furiosos, mais perdoáveis quando vistas em retrospecto.
Meu temor era de que o Remem acabasse com esse ciclo. Ao xar cada
detalhe de um insulto em um vídeo indelével, ele podia evitar a suavização
necessária da memória para que o processo de perdão tivesse início.
Lembrei-me do que Erica Meyers dissera a respeito da incapacidade do
Remem de abalar um casamento estável. Se o casamento de alguém tinha
como alicerce — por mais irônico que pareça — o esquecimento, que direito
a Whetstone tinha de interferir nisso?
A questão não se limitava a casamentos. Toda relação se baseia na
capacidade de esquecer e perdoar. Minha lha, Nicole, sempre teve uma
personalidade forte: rebelde quando criança, abertamente desa adora na
adolescência. Ela e eu tivemos discussões furiosas naquela época, discussões
que depois fomos capazes de deixar para trás, e agora temos uma relação
boa. Se tivéssemos o Remem, ainda estaríamos nos falando?
Não quero dizer com isso que o esquecimento é a única maneira de
consertar as relações. Embora eu não seja mais capaz de recordar cada um
dos bate-bocas que tive com Nicole — e sou grato por isso —, uma das
brigas de que me lembro com clareza foi a que me levou a me tornar um pai
melhor.
Aconteceu quando Nicole tinha dezesseis anos, e estava no ensino médio.
Fazia cerca de dois anos que Angela, a mãe dela, nos deixara, talvez os dois
anos mais difíceis tanto de minha vida quanto da dela. Não me lembro mais
do que deu início à discussão — alguma coisa banal, sem dúvida —, mas ela
foi aumentando e, em pouco tempo, Nicole despejava sobre mim a mágoa
que guardava da mãe.
— Você é a razão de ela ter ido embora! Você a afastou! Por mim pode ir
embora também, eu nem ligo. Tenho certeza de que estaria bem melhor sem
você.
E para demonstrar o que dizia, ela saiu de casa, em um rompante de
fúria.
Eu sabia que Nicole não tinha planejado falar aquilo — não acho que o
planejamento fosse um fator relevante naquela fase da vida dela —, mas
minha lha não podia ter dito algo mais doloroso. Eu tinha cado arrasado
após a partida de Angela, e vivia imaginando o que poderia ter feito de
diferente para mantê-la comigo.
Nicole voltou para casa apenas no dia seguinte, e passei aquela noite
inteira me revolvendo em recordações. Mesmo sem acreditar que eu fosse o
responsável pela partida da mãe dela, a acusação me serviu como um alerta.
Eu não estivera consciente daquilo, mas percebi que sempre tinha me visto
como a vítima principal da partida de Angela, para sempre mergulhado em
autopiedade pela injustiça da posição em que me via agora. A ideia de ter
lhos nem sequer fora minha; era Angela quem queria ter crianças, e agora
ela tinha ido embora e deixado aquela função em minhas mãos. Quem em
sã consciência me deixaria como o único responsável pela criação de uma
adolescente? Como uma tarefa tão difícil podia ser responsabilidade de
alguém com tão pouca experiência?
A acusação de Nicole me fez perceber que a condição dela era pior do
que a minha. Eu, ao menos, assumira aquele dever por vontade própria,
mesmo tendo sido muito tempo atrás, mesmo sem saber a totalidade dos
compromissos que estava aceitando. Já Nicole fora convocada para aquele
papel sem que ninguém tivesse pedido sua opinião. Se havia alguém ali com
o direito de ter ressentimento era ela. E, mesmo que eu achasse que estava
me saindo bem no ofício paterno, cou bastante claro que precisava
melhorar.
Mudei de comportamento. Nossa relação não melhorou do dia para a
noite, mas, ao longo dos anos, consegui voltar às boas graças de Nicole.
Lembro-me da maneira como ela me abraçou no dia de sua formatura, e
percebi que meus anos de esforço foram recompensados.
Todos aqueles anos de reparação teriam sido possíveis com o Remem?
Mesmo se cada um de nós tivesse evitado colher as provas do mau
comportamento recíproco para esfregá-las nos respectivos rostos, a mera
possibilidade de poder car a sós, vendo e revendo os vídeos de nossas
brigas, seria algo pernicioso. Lembranças vívidas do modo como eu e ela
gritávamos um para o outro durante as discussões poderiam manter a raiva
sempre viva e ter impedido a reconstrução de nosso relacionamento.
• • •
Jijingi queria escrever algumas das histórias sobre as origens do povo Tiv,
mas os contadores de histórias falavam rápido demais, e ele não conseguia
escrever com velocidade su ciente para acompanhá-los. Moseby lhe disse
que ele melhoraria com a prática, mas Jijingi se desesperava ao pensar que
jamais alcançaria a rapidez necessária.
Então, certo verão, uma mulher europeia chamada Reiss veio visitar o
vilarejo. Moseby disse que ela era “uma pessoa que estuda outros povos”,
mas não conseguiu explicar o que aquilo queria dizer, apenas que ela queria
aprender coisas sobre a terra dos Tivs. Ela fazia perguntas a todos, não
somente aos anciãos, mas aos jovens também, inclusive mulheres e crianças,
e escrevia o que lhe contavam. Ela não tentou fazer ninguém adotar
costumes europeus: enquanto Moseby insistira em a rmar que maldições
não existiam e que tudo acontecia pela vontade de Deus, Reiss perguntava
como as maldições funcionavam, e escutava com atenção as explicações de
como seus parentes pelo lado paterno podiam amaldiçoar você, enquanto
seus parentes do lado materno podiam protegê-lo dessas maldições.
Certa noite, Kokwa, o melhor contador de histórias do vilarejo, narrou a
história de como o povo Tiv se dividiu em diferentes linhagens, e Reiss
escreveu tudo como lhe foi contado. Depois disso, ela copiou a história
usando uma máquina barulhenta na qual batia com os dedos, e assim obteve
uma cópia que era limpa e fácil de ler. Quando Jijingi perguntou se ela podia
fazer uma cópia para ele, ela concordou, e isso o deixou muito
entusiasmado.
A versão escrita da história era curiosamente desapontadora. Jijingi se
lembrava bem de que, quando começou a entender o que era a escrita,
imaginara que essa arte lhe proporcionaria a visão de uma história sendo
contada de forma tão vívida como se o contador estivesse ali. Mas a escrita
não era assim. Quando Kokwa contava a história, ele não usava somente as
palavras: usava o tom da voz, os movimentos das mãos, o brilho dos olhos.
Contava a história com o corpo inteiro, e as pessoas a absorviam da mesma
maneira. Nada daquilo era transportado para o papel: só era possível
registrar as palavras. E ler somente as palavras produzia apenas uma sombra
da experiência de ouvir Kokwa em pessoa, como se alguém estivesse
lambendo uma panela em que quiabo foi cozinhado em vez de comer o
quiabo propriamente dito.
Mas Jijingi ainda estava satisfeito de ter consigo a versão em papel, e
costumava lê-la de tempos em tempos. Era uma boa história, e merecia estar
preservada no papel. Nem tudo que estava gravado em papel tinha o mesmo
valor. Durante os sermões, Moseby costumava ler em voz alta histórias de
seu livro, e estas costumavam ser boas, mas ele também lia palavras que não
eram histórias, eram apenas declarações de que aprender mais coisas sobre o
deus europeu iria melhorar a vida do povo Tiv.
Um dia, quando Moseby tinha terminado de falar com eloquência, Jijingi
o elogiou.
— Sei que você tem seus sermões em alta conta, mas o de hoje foi muito
bom.
— Obrigado — disse Moseby, sorrindo. E, depois de um momento,
perguntou: — Por que diz que tenho meus sermões em alta conta?
— Porque você acha que as pessoas vão querer lê-los daqui a muitos
anos.
— Eu não acho isso. Por que pensa assim?
— Você escreve tudo antes de dá-los. Antes mesmo de as pessoas
ouvirem o sermão, você já o escreveu para as gerações futuras.
Moseby deu uma risada.
— Não, não é por isso que os escrevo.
— Por quê, então? — Ele sabia que não era para que o sermão fosse lido
por pessoas de outros vilarejos, porque, às vezes, mensageiros traziam
papéis para Moseby, e ele nunca mandava os sermões por eles.
— Escrevo as palavras para não esquecer o que pretendo falar quando
estiver dando o sermão.
— Como pode esquecer aquilo que quer dizer? Nós dois estamos
conversando agora, e nenhum dos dois precisa de um papel para isso.
— Um sermão é diferente de uma conversa. — Moseby fez uma pausa
para pensar a respeito. — Quero ter certeza de que vou dar o melhor sermão
possível. Não vou esquecer o que quero falar, mas talvez esqueça a melhor
maneira de falar. Se escrever, não preciso me preocupar. Mas o fato de
escrever as palavras faz mais do que me ajudar a lembrar. Me ajuda a pensar
melhor.
— Como a escrita pode ajudá-lo a pensar melhor?
— Esta é uma boa pergunta — disse ele. — Estranho, não é? Não sei
como explicar, mas o ato de escrever me ajuda a decidir o que quero dizer.
De onde eu venho, há um velho provérbio: Verba volant, scripta manent. Em
Tiv, vocês diriam: as palavras faladas voam, as palavras escritas
permanecem. Isso faz sentido?
— Sim — responde Jijingi, apenas por educação; pois não fazia sentido
algum. Esse missionário não era velho o bastante para estar senil, mas a
memória dele devia ser terrível, e ele só não queria admitir. Jijingi contou
tudo isso aos amigos, e todos passaram dias fazendo gracejos a respeito.
Todas as vezes que contavam algum boato uns aos outros diziam “Vai se
lembrar do que falei? Isso talvez ajude”, e imitavam o gesto de Moseby
escrevendo à mesa.
Em uma noite, já no ano seguinte, Kokwa anunciou que iria contar a
história de como o povo Tiv se dividira em duas linhagens diferentes. Jijingi
trouxe a versão escrita que tinha, para poder ler a história ao mesmo tempo
em que Kokwa a contava. Às vezes, ele conseguia acompanhar a narrativa,
mas, na maior parte do tempo, cava confuso, porque as palavras de Kokwa
não coincidiam com as que estavam escritas no papel. Depois que Kokwa
acabou, Jijingi lhe disse:
— Você não contou a história do mesmo jeito do ano passado.
— Absurdo — falou Kokwa. — Quando eu conto uma história, ela não
muda, não importa quanto tempo tenha se passado. Me peça para contar de
novo daqui a vinte anos, e contarei da mesma forma.
Jijingi apontou para o papel que segurava.
— Este papel é a história que você contou no ano passado, e há muitas
diferenças. — Ele apontou uma da qual se lembrava. — Na última vez, você
disse: “Os Uyengis capturaram as mulheres e as crianças e as zeram de
escravas.” Desta vez, você falou: “Eles escravizaram as mulheres, e não só
isso, escravizaram as crianças também.”
— É a mesma coisa.
— É a mesma história, mas você mudou a maneira de contar.
— Não — disse Kokwa —, contei da mesma forma que da última vez.
Jijingi não queria explicar a ele o que eram palavras. Em vez disso, falou:
— Se tivesse contado da mesma forma que da última vez, teria dito: “Os
Uyengis capturaram as mulheres e as crianças e as zeram de escravas.”
Por um momento, Kokwa olhou para ele e depois riu.
— É isso que você acha importante, agora que aprendeu a arte da escrita?
Sabe, que estava escutando os dois, censurou Kokwa.
— Você não tem o direito de julgar Jijingi. A lebre gosta de uma comida,
o hipopótamo prefere outra. Deixe cada um usar seu tempo da maneira que
preferir.
— É claro, Sabe, é claro — disse Kokwa, mas lançou um olhar de
desprezo para Jijingi.
Depois disso, Jijingi se lembrou do provérbio que Moseby mencionara.
Mesmo que Kokwa estivesse contando a mesma história, ele podia arrumar
as palavras de maneira diferente a cada vez que a contasse; ele era um
contador habilidoso, e um simples arranjo de palavras não fazia diferença.
Era diferente para Moseby, que não fazia nenhum tipo de encenação durante
os sermões: para ele, somente as palavras tinham importância. Jijingi
percebeu que Moseby escrevia os sermões não porque sua memória fosse
terrível, mas porque estava à procura de um arranjo especí co de palavras.
Quando encontrava o arranjo que achava melhor, mantinha-se el a ele
durante todo o tempo necessário.
Por curiosidade, Jijingi tentou imaginar que tinha de fazer um sermão, e
começou a escrever o que iria falar. Sentado na raiz de uma mangueira com
o caderno que Moseby lhe dera, ele compôs um sermão sobre a tsav, a
qualidade que dava a certos homens poder sobre os demais, um assunto que
Moseby não compreendia e descartava como tolice. Ele leu o primeiro
esboço para um amigo, que o considerou terrível, o que levou os dois a uma
breve escaramuça corporal, mas, depois, Jijingi precisou admitir que o
amigo tinha razão. Tentou escrever o sermão pela segunda vez e depois uma
terceira, antes de se cansar daquilo e ir tratar de outra coisa.
À medida que praticava, Jijingi começou a entender o que Moseby queria
dizer: a escrita não era apenas um modo de preservar o que alguém dizia,
ela podia também ajudar a pessoa a decidir o que falar antes mesmo de dizê-
lo. E as palavras não eram apenas pedaços da fala; eram pedaços do
pensamento. Quando você escrevia, manejava os pensamentos como se
segurasse tijolos, e, assim, era capaz de dispô-los em diferentes arranjos. A
escrita lhe permitia olhar seus pensamentos de uma maneira que seria
impossível se estivesse apenas falando, e, ao vê-los, era possível melhorá-los,
torná-los mais fortes e elaborados.
• • •

Os psicólogos fazem distinção entre memória semântica — o conhecimento


de fatos gerais — e memória episódica — a lembrança de experiências
pessoais. Usamos complementos tecnológicos para a memória semântica
desde a invenção da escrita: primeiro, livros, depois, ferramentas de busca.
Por sua vez, historicamente temos resistido ao emprego desses auxílios no
que diz respeito à memória episódica; são poucas as pessoas que mantêm
diários pessoais e álbuns de fotos, comparadas às que possuem livros. A
razão mais óbvia é a conveniência; se quisermos consultar um livro sobre os
pássaros da América do Norte, podemos recorrer a uma obra escrita por um
ornitólogo. No entanto, se quisermos um diário de nossa vida pessoal, nós
mesmos temos que escrevê-lo. Mas imagino se outra razão para isso não
será o fato de que, de forma subconsciente, consideramos as memórias
episódicas parte tão integrante de nossa identidade que hesitamos em
externalizá-las, relegá-las a uma porção de livros em uma estante ou a
arquivos de computador.
Isso pode estar a ponto de mudar. Durante anos, pais vêm registrando
cada momento na vida dos lhos, de modo que, mesmo que as crianças não
estivessem usando câmeras pessoais, seus biologs estariam sendo
compilados de qualquer forma. Agora, os pais estão fazendo os lhos
usarem projetores retinianos com pouca idade, para que possam usufruir
cada vez mais cedo os benefícios da assistência feita por so wares. Imagine
o que acontecerá se as crianças começarem a usar o Remem para acessar
esses biologs: seu modo de cognição vai divergir do nosso, porque o ato de
recordar será diferente. Em vez de pensar em um acontecimento do passado
e visualizá-lo na mente, a criança vai subvocalizar uma referência a ele e
observar as imagens lmadas, com os próprios olhos. A memória episódica
se tornará totalmente mediada por tecnologia.
Uma limitação óbvia dessa dependência é a possibilidade de as pessoas
sofrerem de amnésia virtual sempre que o so ware apresentar problemas.
Mas eu me preocupo tanto com a perspectiva de fracasso tecnológico
quanto com a de sucesso: até que ponto será alterada a percepção que uma
pessoa tem de si quando ela viu o próprio passado apenas através do olho
implacável de uma câmera? Assim como existe um círculo virtuoso no
processo de suavizar as memórias desagradáveis, existe também algo que
nos proporciona a romantização das recordações de infância, e a
interrupção desse processo terá consequências.
Meu aniversário mais remoto que consigo recordar é o de quatro anos;
lembro-me de apagar as velinhas do bolo, lembro-me da excitação ao rasgar
o papel que embrulhava os presentes. Não há vídeos do evento, mas há fotos
no álbum de família, e elas são consistentes com as lembranças que tenho.
Na verdade, suspeito que nem me lembro mais do dia em si. O mais
provável é que eu tenha manufaturado as lembranças quando vi as fotos pela
primeira vez, e, com o passar do tempo, fui projetando nelas a emoção que
imagino ter sentido naquele dia. Pouco a pouco, com a repetição dos
momentos de recordação, fui criando para mim mesmo uma lembrança
feliz.
Outra de minhas lembranças mais remotas é a de estar brincando no
tapete da sala de estar, empurrando carrinhos de brinquedo, enquanto
minha avó trabalhava na máquina de costura; de vez em quando, ela se
virava para mim e me dava um sorriso afetuoso. Não há fotos desse
momento, de modo que sei que essa lembrança é minha, e apenas minha. É
uma memória linda e idílica. Será que eu gostaria que alguém me
apresentasse uma lmagem real do que aconteceu naquela tarde? Não, com
certeza não.
Ao discutir o papel da verdade em uma autobiogra a, o crítico Roy
Pascal escreveu: “De um lado existe a verdade dos fatos e do outro, a
verdade dos sentimentos do autor, e a área em que as duas coincidem não
pode ser indicada por antecipação por nenhuma autoridade externa.” Nossas
lembranças são autobiogra as privadas, e aquela tarde com minha avó
aparece com destaque em minha “autobiogra a” devido aos sentimentos que
estão associados a ela. E se uma lmagem revelasse que o sorriso dela era
arti cial, que, na verdade, ela estava aborrecida porque sua costura não
estava indo bem? O que é importante para mim nessa lembrança é a
felicidade que está associada a ela, e eu jamais gostaria de colocá-la em risco.
O que me parece é que um vídeo ininterrupto de minha infância inteira
estaria repleto de fatos, mas vazio de sentimentos, simplesmente porque
câmeras não conseguem captar a dimensão emocional do que acontece. No
que diz respeito à câmera, aquela tarde com minha avó era indistinguível de
centenas de outras. E se eu tivesse crescido com acesso a todas as imagens
lmadas, não teria razões para projetar um peso emocional maior a
qualquer dia em particular e não teria nenhum núcleo que pudesse envolver
com minha saudade.
E quais serão as consequências quando as pessoas alegarem que são
capazes de recordar a própria infância? Posso imaginar com facilidade uma
situação em que, se você perguntar a uma pessoa jovem qual é sua
lembrança mais antiga, ela cará perplexa; a nal de contas, ela tem vídeos
que remontam ao dia de seu nascimento. A incapacidade de se lembrar dos
primeiros anos de vida — o que os psicólogos chamam de amnésia da
infância — pode se tornar, em breve, coisa do passado. Nunca mais os pais
vão contar histórias aos lhos dizendo “você não se lembra disso porque era
só um bebê”. É como se a amnésia da infância fosse uma característica da
infância da humanidade, e, como a serpente ouroboros engolindo a própria
cauda, nossa juventude vai desaparecer da lembrança.
Uma parte de mim queria acabar com aquilo, queria proteger a
capacidade das crianças de verem o começo de suas vidas como que através
de uma neblina, e impedir que suas histórias originais fossem substituídas
por um vídeo frio e realista. Talvez, no entanto, elas experimentem um calor
emocional em relação a essas implacáveis memórias digitalizadas que seja
comparável ao de minhas memórias orgânicas e incompletas.
As pessoas são feitas de histórias. Nossas lembranças não são o acúmulo
imparcial de cada segundo que vivemos, são uma narrativa que montamos a
partir de momentos selecionados. É por isso que, mesmo quando
experimentamos os mesmos acontecimentos que outros indivíduos, nunca
construímos narrativas idênticas: os critérios usados para selecionar
momentos são diferentes para cada um de nós e re etem nossa
personalidade. Cada indivíduo percebe os detalhes que atraem nossa
atenção e lembra o que lhe parece importante; e as narrativas que
construímos, por sua vez, ajudam a moldar nossa personalidade.
Entretanto, imagine se todos recordassem de tudo, nossas diferenças não
seriam varridas por completo? O que aconteceria com o senso do eu de cada
um? A mim parecia que uma memória perfeita não poderia constituir uma
narrativa, assim como imagens não editadas de uma câmera de segurança
não podiam constituir um lme.
• • •

Quando Jijingi estava com vinte anos, um funcionário da administração


veio até o vilarejo para conversar com Sabe. Trazia consigo um jovem Tiv
que havia frequentado a escola da missão em Katsina-Ala. A administração
queria ter um relatório escrito de todas as disputas trazidas às cortes tribais,
e, para tal, estavam enviando a cada chefe um desses rapazes para servir de
escrivão. Sabe pediu a Jijingi que se adiantasse, e disse ao funcionário:
— Sei que vocês não têm escrivães su cientes para toda a terra dos Tivs.
Este é Jijingi, que aprendeu a escrever; ele pode servir como nosso escrivão,
e vocês podem mandar esse rapaz para outro vilarejo.
O funcionário testou a capacidade de Jijingi para a escrita, mas Moseby
tinha lhe ensinado bem, e, por m, o funcionário permitiu que ele se
tornasse o escrivão de Sabe.
Depois que o funcionário foi embora, Jijingi perguntou a Sabe por que ele
não queria o rapaz de Katsina-Ala como escrivão.
— Ninguém que venha da escola da missão merece nossa con ança —
respondeu Sabe.
— Por que não? Os europeus os transformaram em mentirosos?
— Parte da culpa é deles, mas parte da culpa também é nossa. Anos atrás,
quando os europeus recrutaram meninos para a escola da missão, a maior
parte dos anciãos lhes deu aqueles dos quais queriam se ver livres, os
preguiçosos e os insatisfeitos. Agora, esses rapazes voltaram, e eles não têm
laços com ninguém. Usam seu conhecimento da escrita como uma arma:
exigem que os chefes lhes deem esposas, senão escreverão mentiras sobre
eles e os líderes acabarão sendo depostos pelos europeus.
Jijingi conhecia um rapaz que estava sempre se queixando e procurando
uma maneira de fugir do trabalho; seria um desastre se alguém como ele
tivesse poder sobre Sabe.
— E você não pode dizer isso aos europeus? — perguntou.
— Muitos o zeram — disse Sabe. — Foi Maisho, do clã Kwande, que me
preveniu a respeito dos escrivães; eles foram para os vilarejos de Kwande
antes de todos os demais. Maisho teve sorte de os europeus acreditarem nele
e não nas mentiras do escrivão, mas ouviu falar de outros chefes que não
foram tão afortunados. Os europeus muitas vezes acreditam mais no papel
do que nas pessoas. Pre ro não me arriscar. — Olhou para Jijingi muito
sério. — Você é sangue do meu sangue, Jijingi, e sangue de todos que vivem
no vilarejo. Con o que vai escrever o que eu disser.
— Sim, Sabe.
A corte tribal acontecia todo mês, do amanhecer até o m da tarde,
durante três dias seguidos, atraindo sempre uma grande audiência; às vezes,
tão grande que Sabe precisava pedir que todos se sentassem para que a brisa
pudesse chegar ao centro do círculo. Jijingi sentou-se perto de Sabe e
registrou todos os detalhes de cada disputa em um livro que o funcionário
deixara para este m. Era um trabalho agradável; ele era pago com uma
parte da taxa depositada pelos querelantes, e tinham lhe fornecido não
somente uma cadeira, mas também uma pequena mesa, que ele podia usar
para escrever mesmo quando não houvesse sessão. As queixas que eram
apresentadas a Sabe eram de todo tipo — uma podia ser sobre uma bicicleta
roubada, outra sobre um homem a quem era atribuído o fracasso da colheita
do vizinho —, mas a maioria tinha a ver com esposas. Para uma dessas
disputas, Jijingi escreveu o seguinte:

Girgi, esposa de Umem, fugiu de casa e voltou para junto da


família. Um dos homens de seu clã, Anongo, tentou convencê-la a
car com o marido, mas Girgi se recusou, e Anongo nada pôde fazer.
Umem exige que lhe devolvam as onze libras que pagou pela noiva.
Anongo diz que não tem dinheiro no momento e diz também que
Umem pagou apenas seis libras.
Sabe convocou testemunhas de ambos os lados. Anongo diz que
tem testemunhas, mas que estão viajando. Umem trouxe uma
testemunha, que prestou juramento. Ela assegurou ter contado
pessoalmente as onze libras que Umem pagou a Anongo.
Sabe pede a Girgi que volte para o marido e seja uma boa esposa,
mas ela diz que fez tudo que podia para suportá-lo. Sabe determina
que Anongo pague de volta as onze libras de Umem. O primeiro
pagamento deve ser dentro de três meses, quando será possível vender
a colheita. Anongo concorda.

Esta foi a última disputa do dia, e, àquela altura, Sabe estava cansado.
— Vender verduras para devolver o pagamento por uma noiva — disse
ele depois, balançando a cabeça. — Quando eu era rapaz, esse tipo de coisa
não acontecia.
Jijingi sabia o que Sabe queria dizer. No passado, diziam os anciãos, as
trocas eram efetuadas com itens semelhantes: se você queria uma cabra,
podia trocá-la por galinhas; se queria uma esposa, oferecia uma mulher de
seu clã como noiva para alguém de outra família. Então os europeus
disseram que não aceitariam verduras como pagamento de impostos,
insistindo que deviam ser pagos em moeda. Em pouco tempo, tudo podia
ser trocado por dinheiro; podia-se usá-lo para comprar qualquer coisa,
desde uma cabaça até uma esposa. Os anciãos consideraram aquilo um
absurdo.
— Os velhos costumes estão desaparecendo — concordou Jijingi.
Ele não comentou que os jovens preferiam as coisas como eram agora,
porque os europeus também haviam decretado que o pagamento por uma
noiva só podia ser feito se a mulher concordasse com o casamento. No
passado, uma jovem podia ser prometida a um homem idoso com as mãos
cobertas de lepra e os dentes podres, e não tinha escolha senão se casar com
ele. Agora, uma mulher podia casar com o homem que preferisse, desde que
ele tivesse como pagar a soma correspondente. O próprio Jijingi já estava
economizando dinheiro para isso.
Às vezes, Moseby aparecia para observar, mas ele achava toda aquela
cerimônia bastante confusa, e, por diversas vezes, depois de tudo acabado,
enchia Jijingi de perguntas.
— Por exemplo: essa disputa entre Umem e Anongo sobre o dinheiro que
era devido pela noiva. Por que apenas a testemunha prestou juramento?
— Para garantir que ele iria dizer o que aconteceu.
— Mas se Umem e Anongo prestassem juramento também, isso
garantiria que também diriam o que aconteceu. Anongo só foi capaz de
mentir porque não prestou juramento.
— Anongo não mentiu — disse Jijingi. — Ele falou o que considerava
certo, tal como Umem fez.
— Mas o que Anongo falou não foi o mesmo que a testemunha.
— Isso não signi ca que ele estivesse mentindo. — Então, Jijingi lembrou
algo a respeito da língua dos europeus, e entendeu a confusão de Moseby. —
Nosso idioma tem duas palavras diferentes para o que, na língua de vocês,
quer dizer “verdadeiro”. Existe o que é certo, mimi, e o que é exato, vough.
Em uma disputa, os envolvidos dizem o que consideram certo; eles falam
mimi. As testemunhas, no entanto, juram dizer o que aconteceu; elas falam
vough. Quando Sabe escuta o relato do que aconteceu, ele pode decidir qual
a ação que será mimi para todo mundo. Contudo, se os envolvidos não
falam vough, não é considerado uma mentira, desde que eles falem mimi.
Moseby visivelmente desaprovava aquilo.
— De onde eu venho, todo mundo que depõe em uma corte tem que
jurar que vai falar vough, inclusive os querelantes.
Jijingi não vê a nalidade daquilo, mas tudo que disse foi:
— Toda tribo tem os próprios costumes.
— Sim, os costumes podem variar, mas a verdade é a verdade; ela não
muda de uma pessoa para outra. E lembre-se do que a Bíblia diz: a verdade
vos libertará.
— Sim, eu me lembro — disse Jijingi. Moseby dissera que era o
conhecimento da verdade divina que tornara os europeus tão bem-
sucedidos. Ninguém podia negar sua riqueza e seu poder, mas quem podia
saber de verdade qual era a causa?
• • •

A m de escrever sobre o Remem, o mais justo era que eu mesmo o


experimentasse. O problema era que eu não mantinha um biolog que ele
pudesse indexar: em geral, eu só ativava a câmera pessoal quando estava
entrevistando alguém ou cobrindo um evento. Mas decerto eu convivia com
pessoas que mantinham biologs, e podia usar o material gravado por elas.
Embora todo o material gravado em biologs traga controles de privacidade
embutidos, a maior parte das pessoas cede alguns direitos básicos de
compartilhamento: se suas ações estiverem gravadas no biolog, você
consegue ter acesso às imagens de onde está presente. Sendo assim,
encarreguei um agente de levantar um biolog parcial do material gravado
por outras pessoas, usando meu histórico de GPS como base para a busca.
No transcorrer de uma semana, meu pedido foi multiplicado através das
redes sociais e de arquivos públicos de vídeo, e fui recompensado com o
envio de fragmentos de vídeo que iam de uns poucos segundos de duração
até algumas horas; não apenas imagens de câmera de segurança, mas
excertos de biologs de amigos, conhecidos e até mesmo de desconhecidos
completos.
O biolog resultante era, é claro, bastante fragmentado quando comparado
com o que eu poderia ter em mãos caso eu mesmo tivesse gravado os vídeos,
e as imagens eram todas na perspectiva de terceira pessoa, em vez da
primeira pessoa que a maioria dos biologs exibe, mas o Remem conseguia
trabalhar com material assim. Minha expectativa era de que o material seria
mais volumoso nos anos mais recentes, devido apenas à popularidade
crescente dos biologs. Para minha surpresa, ao olhar para um grá co de
minha cobertura em formato de vídeo, notei um salto brusco cerca de uma
década atrás. Nicole vinha mantendo um biolog desde que chegara à
adolescência, de modo que um trecho inesperadamente volumoso de minha
vida doméstica estava ali.
De início, quei inseguro sobre como deveria testar o Remem, uma vez
que, é claro, não poderia pedir ao aparelho que evocasse um acontecimento
do qual não tinha lembrança. Decidi começar com algo que eu lembrava, e
subvocalizei: “Aquela vez em que Vince me contou sobre sua viagem a
Palau.”
Meu projetor retiniano exibiu uma janela no canto inferior esquerdo de
meu campo visual: estou almoçando com meus amigos Vincent e Jeremy.
Vincent também não mantinha um biolog; portanto, as imagens eram do
ponto de vista de Jeremy. Fiquei escutando durante um minuto Vincent
falando com entusiasmo sobre o mergulho submarino que fez.
Minha tentativa seguinte foi algo de que eu tinha apenas uma vaga
lembrança. “O banquete em que me sentei entre Deborah e Lyle.” Não fazia
ideia de quem mais estava sentado àquela mesa, e imaginei que o Remem
me ajudaria a identi cá-los.
De fato, Deborah tinha gravado aquela noite, e, com o vídeo feito por ela,
pude usar um aplicativo de reconhecimento para identi car todas as pessoas
sentadas.
Depois desses sucessos iniciais, tive uma sequência de fracassos, o que
não era de surpreender, considerando as lacunas de meu biolog. Entretanto,
ao longo de uma hora inteira examinando acontecimentos passados, a
performance do Remem, de modo geral, foi notável.
Por m, me pareceu ter chegado a hora de testar o Remem com
lembranças mais carregadas de emoção. Minha relação com Nicole me
parecia agora forte o bastante para me permitir revisitar algumas brigas que
tivemos quando ela era mais nova. Decidi começar por uma discussão da
qual eu tinha uma lembrança bastante clara e, depois, recuar para as mais
antigas.
Subvocalizei: “Aquela vez em que Nicole me disse: ‘Ela foi embora por sua
causa.’”
A janela mostrou a cozinha da casa onde morávamos quando Nicole era
adolescente. A imagem é do ponto de vista dela, e estou parado diante do
fogão. É óbvio que estamos brigando.
“Você é a razão de ela ter ido embora! Você a afastou! Por mim pode ir
embora também, eu nem ligo. Tenho certeza de que estaria bem melhor sem
você.”
As palavras eram exatamente como eu as lembrava, mas não era Nicole
quem estava dizendo.
Era eu.
Meu primeiro pensamento foi que aquilo era uma falsi cação, que Nicole
editara o vídeo para pôr aquelas palavras em minha boca. Ela devia ter
tomado conhecimento de meu pedido de acesso àquelas imagens e armara
aquilo para me dar uma lição. Ou talvez fosse um lme que havia criado
para mostrar aos amigos, a m de corroborar as histórias que contava sobre
mim. Mas por que ela ainda estaria tão furiosa comigo, a ponto de fazer tal
coisa? Já não tínhamos superado essa fase?
Comecei a examinar melhor o vídeo, procurando inconsistências capazes
de indicar onde ele tinha sido cortado e recomposto. As cenas seguintes
mostravam Nicole correndo para fora de casa, tal como eu lembrava, então
não deveria haver qualquer sinal de inconsistência ali. Voltei o vídeo e
comecei a assistir à discussão de novo.
A princípio quei irritado enquanto assistia, irritado com Nicole por ter
se dado ao trabalho de criar aquela mentira, porque tudo que antecedia
aquela fala era consistente com o fato de ter sido eu quem gritou aquilo.
Então, algumas das coisas que eu estava dizendo começaram a soar bastante
familiares: eu me queixava por ter sido chamado mais uma vez à escola por
ela ter se metido em confusões, acusava-a de passar o tempo dela com as
pessoas erradas. Mas não era esse o contexto em que eu iria dizer aquelas
coisas, não é? Eu estava apenas expondo minhas preocupações, sem
menosprezar minha lha. Nicole devia ter adaptado algumas coisas que eu
dissera em outro momento, para tornar aquele vídeo calunioso mais
plausível. Era a única explicação, não?
Pedi ao Remem que examinasse a marca-d’água do vídeo, e ele respondeu
que o vídeo não tinha sido modi cado. Percebi que o Remem tinha sugerido
uma correção nos meus termos de busca: onde eu pedira “Aquela vez em
que Nicole me disse…”, ele corrigira para “Aquela vez em que eu disse a
Nicole…”. A correção deve ter sido exibida ao mesmo tempo que o primeiro
resultado da busca, pois não a havia percebido. Desliguei o Remem enojado,
furioso com o produto. Já estava a ponto de iniciar uma busca sobre as
possibilidades de se falsi car uma marca-d’água, para provar que o vídeo era
forjado, mas logo me detive, percebendo que aquele era um ato de
desespero.
Eu teria testemunhado, jurado com a mão sobre uma pilha de Bíblias, ou
empregando qualquer outra coisa que me fosse exigida, que tinha sido
Nicole a me acusar de ter feito a mãe dela nos abandonar. Minha recordação
daquela briga era tão clara quanto qualquer outra lembrança que eu tinha,
mas não era essa a única razão para me fazer achar aquele vídeo
inacreditável: era também minha consciência de que — fossem quais fossem
meus defeitos e minhas imperfeições — eu nunca tinha sido o tipo de pai
capaz de dizer algo assim para a própria lha.
E, no entanto, lá estava: um vídeo provando que eu fora exatamente
aquele tipo de pai. E, mesmo que eu não fosse mais o mesmo homem, não
podia negar que existia uma continuidade entre mim e ele.
Mais revelador ainda era o fato de que, por muitos anos, eu havia
escondido com sucesso a verdade de mim mesmo. Falei há pouco que os
detalhes que escolhemos para lembrar são re exos de nossa personalidade.
O que revelava sobre mim o fato de eu ter posto aquelas palavras na boca de
Nicole, em vez de na minha?
Lembro-me de que aquela briga foi um momento decisivo para mim. Eu
havia imaginado uma narrativa de redenção e autoaperfeiçoamento na qual
eu era o heroico pai solteiro, erguendo-me à altura de um desa o. Mas a
realidade era… qual? Das coisas que nos aconteceram desde então, quantas
se deviam a mim?
Reiniciei o Remem e comecei a ver o vídeo da formatura de Nicole.
Aquele era um evento que eu também havia gravado, de modo que tinha
imagens do rosto de Nicole, e ela parecia feliz por eu estar presente. Estaria
escondendo seus verdadeiros sentimentos para que eu não os percebesse?
Ou, se nossa relação de fato melhorara, como isso aconteceu? Obviamente
eu tinha sido um pai bem pior do que pensara, catorze anos atrás; era
tentador concluir que avançara desde então, mas eu não podia mais con ar
em minhas percepções. Será que Nicole tinha agora sentimentos positivos
em relação a mim?
Eu não iria usar o Remem para responder àquela pergunta; precisava ir
direto à fonte. Liguei para Nicole e deixei uma mensagem dizendo que
precisava conversar com ela e perguntando se podia ir ao apartamento dela
naquela noite.
• • •

Alguns anos depois, Sabe começou a comparecer a uma série de encontros


entre os líderes do clã Shangev. Ele explicou a Jijingi que os europeus não
queriam mais lidar com tantos chefes, e exigiam que toda a terra dos Tivs
fosse dividida em oito grupos, que denominavam septos. Como resultado,
Sabe e os outros chefes tinham que discutir a qual septo o clã Shangev
deveria se juntar. Embora não houvesse necessidade de um escrivão, Jijingi
estava curioso para ouvir as deliberações e perguntou a Sabe se podia
acompanhá-lo. Sabe concordou.
Jijingi nunca tinha visto antes tantos anciãos reunidos em um só lugar;
alguns deles tinham o temperamento equilibrado e digno de Sabe, enquanto
outros eram faladores e vociferavam o tempo todo. Discutiram durante
horas sem parar.
Na noite depois que regressaram ao vilarejo, Moseby perguntou como
fora a reunião. Jijingi deu um suspiro.
— Mesmo quando não estão berrando uns com os outros, eles se
comportam como gatos selvagens.
— O que Sabe pensa? A quem vocês vão se juntar?
— Deveríamos nos juntar aos clãs de que somos mais próximos; é essa a
tradição dos Tivs. Já que Shangev era lho de Kwande, nosso clã deveria se
juntar ao clã Kwande, que vive mais ao sul.
— Faz sentido — disse Moseby. — Então, onde está a discordância?
— Os membros do clã Shangev não vivem perto uns dos outros. Alguns
habitam as terras cultivadas a oeste, perto do clã Jechira, e seus anciãos são
amigos dos anciãos Jechiras. Eles prefeririam que o clã Shangev se juntasse
ao clã Jechira porque, assim, viriam a ter mais in uência dentro do futuro
septo.
— Entendo — Moseby pensou por um momento. — Será que os
Shangevs do oeste poderiam se juntar a outro septo, que não o dos Shangevs
do sul?
Jijingi balançou a cabeça
— Nós, os Shangevs, temos todos o mesmo pai, e devemos permanecer
juntos. Todos os anciãos concordam quanto a isso.
— Mas se a linhagem é tão importante, como podem os anciãos do oeste
pedir que o clã Shangev se junte aos Jechiras?
— É esse o ponto de discordância. Os anciãos do oeste a rmam que
Shangev era lho de Jechira.
— Espere um pouco. Vocês não sabem quem eram os pais de Shangev?
— Claro que sabemos! Sabe pode recitar a lista de nossos ancestrais até
chegar ao próprio Tiv. Nossos anciãos do oeste estão simplesmente ngindo
que Shangev era lho de Jechira porque se bene ciariam ao se juntar ao clã
Jechira.
— Mas se o clã Shangev se juntasse ao clã Kwande, seus anciãos não se
bene ciariam também?
— Sim, mas Shangev era lho de Kwande. — Então Jijingi entendeu o
que Moseby estava sugerindo. — Você pensa que nossos anciãos estão
ngindo!
— Não, de forma alguma. Apenas me parece que os dois lados têm
argumentos bons, e não há como dizer quem tem razão.
— Sabe tem razão.
— Claro — disse Moseby. — Mas como você pode fazer os outros
admitirem isso? De onde eu venho, muitas pessoas escrevem as próprias
linhagens no papel. Desse modo, podemos reconstituir nossa ancestralidade
com precisão, até muitas gerações atrás.
— Sim, vi as linhagens na Bíblia, indo de Abraão até Adão.
— Claro. Mas, mesmo fora da Bíblia, as pessoas anotam quem são seus
antepassados. Quando precisam saber de quem descendem, podem
consultar os papéis. Se vocês tivessem papéis, os outros anciãos teriam de
admitir que Sabe está falando a verdade.
Era um bom argumento, concordou Jijingi. Se ao menos o clã Shangev já
estivesse usando papéis há mais tempo! Então uma ideia lhe ocorreu.
— Quanto tempo faz que os europeus chegaram à terra dos Tivs?
— Não sei ao certo. Ao menos uns quarenta anos.
— Acha que eles podem ter escrito alguma coisa sobre a linhagem do clã
Shangev assim que chegaram?
Moseby cou pensativo.
— Talvez. A administração mantém uma grande quantidade de registros.
Os que existem devem estar depositados no posto do governo em Katsina-
Ala.
Havia um caminhão que passava na estrada para Katsina-Ala, levando
mercadorias, de cinco em cinco dias, quando havia feira. A próxima feira
seria dali a dois dias. Se ele partisse na manhã seguinte, poderia alcançar a
estrada a tempo de pegar uma carona.
— Acha que eles me deixariam ver os papéis?
— Será mais fácil se houver um europeu com você — respondeu Moseby,
sorrindo. — Devemos nos preparar para uma viagem?
• • •

Nicole abriu a porta do apartamento e me convidou para entrar. Estava


visivelmente curiosa sobre o motivo de minha visita.
— Então, sobre o que quer conversar?
Eu não sabia muito bem por onde começar.
— Bem, vai soar um pouco estranho.
— Certo — disse ela.
Eu lhe contei a respeito de ter visto uma parte de meu biolog usando o
Remem, e que tinha revisitado nossa discussão de quando ela tinha
dezesseis anos, na qual acabei gritando e ela saindo de casa.
— Lembra-se daquele dia?
— Claro que sim. — Ela parecia pouco à vontade, sem saber aonde aquilo
ia nos levar.
— Eu lembrava também, ou, ao menos, pensava que sim. Mas eu me
lembrava de um jeito diferente. Na minha cabeça, era você que dizia aquilo
para mim.
— O que eu dizia?
— Na minha lembrança, você dizia que, por você, eu podia ir embora,
que viveria muito melhor sem mim.
Nicole me encarou por um longo tempo.
— Durante todos esses anos, era assim que você se lembrava daquele dia?
— Sim. Até hoje.
— Isso seria engraçado, se não fosse tão triste.
Senti o estômago embrulhar.
— Lamento muito. Não posso dizer quanto lamento.
— Lamenta ter dito aquilo ou lamenta ter imaginado que fui eu que
disse?
— As duas coisas.
— Bem, devia lamentar mesmo! Sabe como quei me sentindo depois?
— Nem posso imaginar. Sei que me sentia muito mal quando pensava
que você tinha dito a mim.
— Só que isso era invenção sua. Mas comigo aconteceu de verdade. — Ela
balançou a cabeça, incrédula. — Porra, isso é típico de você.
Fiquei magoado ao ouvir isso.
— É mesmo? De verdade?
— Claro — disse ela. — Você está sempre se comportando como a
vítima, como o cara legal que merecia estar sendo bem tratado.
— Do jeito que você fala, parece que sou um louco.
— Não é loucura. É só cegueira para tudo que não seja você mesmo.
Isso me encrespou um pouco.
— Estou tentando pedir desculpas.
— Certo, certo. Isso aqui é sobre você.
— Não, você tem razão, eu lamento. — Esperei até que ela me zesse um
gesto pedindo que eu continuasse. — Acho que sou mesmo… cego a tudo
que não seja eu. Meu problema em admitir isso é que pensei que tinha
aberto os olhos e superado todo aquele problema.
Ela franziu a testa.
— Como assim?
Contei-lhe como passei a sentir que, naquele momento, mudei de atitude
como pai e reconstruí todo o nosso relacionamento, culminando no
momento de reencontro na formatura dela. Nicole não foi abertamente
irônica, mas a expressão dela me calou. Era bastante óbvio que eu estava
constrangendo-a.
— Você ainda me detestava quando se formou? — perguntei. — Ou será
que era tudo imaginação minha, que nós dois ali estávamos bem?
— Não, nós estávamos bem quando me formei. Mas isso não foi porque
você se transformou em um bom pai em um passe de mágica.
— O que foi, então?
Ela fez uma pausa, respirou fundo e disse:
— Eu comecei a frequentar uma terapeuta quando entrei para a
faculdade. — Fez outra pausa. — Ela praticamente salvou minha vida.
Minha primeira reação foi: por que Nicole precisaria de uma terapeuta?
Empurrei o pensamento para longe e disse:
— Nunca soube disso.
— Claro que não. Você seria a última pessoa a quem eu contaria. De
qualquer modo, na época em que eu estava terminando o curso, ela tinha
conseguido me convencer de que eu me sentiria melhor se não tivesse tanta
raiva de você. Era por isso que nós dois estávamos tão bem na minha
formatura.
Então, eu criara mesmo uma narrativa que tinha pouca semelhança com
a realidade. O esforço foi todo de Nicole e nem um pouco meu.
— Acho que não conheço você de verdade.
Ela deu de ombros.
— Me conhece tão bem quanto é preciso.
Aquilo me magoou também, mas eu não podia me queixar.
— Você merecia algo melhor — falei.
Nicole deu uma risada breve, pesarosa.
— Sabe, quando eu era mais nova, um dos meus sonhos era ouvir você
falando isso. Mas agora… bem, não podemos dizer que isso resolve alguma
coisa, não é?
Percebi que minha esperança era de que ela me perdoasse ali, naquele
instante, e que, então, tudo caria bem. Entretanto, para consertar nosso
relacionamento, seria necessário mais do que pedir desculpas.
Algo me ocorreu.
— Não posso mudar as coisas que z, mas pelo menos posso parar de
ngir que não as z. Vou usar o Remem para tentar fazer um retrato
honesto de mim mesmo, uma espécie de inventário pessoal.
Nicole me observou, avaliando a minha sinceridade.
— Que bom — disse ela. — Mas vamos deixar uma coisa bem clara: não
venha correndo para mim cada vez que se sentir culpado por ter me tratado
como se eu fosse lixo. Fiz um esforço muito grande para deixar tudo aquilo
para trás, e não quero passar por isso de novo só para que você que se
sentindo bem consigo mesmo.
— Claro. — Vi que ela estava a ponto de chorar. — E sinto muito se
incomodei você ao trazer essa questão de volta.
— Está tudo bem, pai. Agradeço pelo que está tentando fazer. Só…
vamos dar um tempo sem fazer isso de novo, tá bom?
— Tá bom. — Dei um passo na direção da porta para ir embora e parei.
— Só queria dizer que… se for possível, se houver algo que eu possa fazer
para consertar as coisas…
— Consertar as coisas? — Ela parecia incrédula. — Não sei. Basta ter um
pouco mais de consideração pelos outros, talvez?
E é isso que estou tentando fazer agora.
• • •

No posto do governo havia realmente documentos de quarenta anos atrás, o


que os europeus chamavam relatórios de avaliação, e a presença de Moseby
foi su ciente para garantir a eles acesso ao material. Os papéis estavam
escritos na língua europeia, que Jijingi não sabia ler, mas incluíam diagramas
de ancestralidade de diversos clãs, e ele conseguiu identi car os nomes Tivs
naqueles diagramas sem di culdade, e Moseby con rmou que a
interpretação dele estava correta. Os anciãos das plantações do oeste
estavam certos e Sabe estava errado: Shangev não era lho de Kwande, mas
de Jechira.
Um dos homens no posto do governo concordou em fazer uma cópia
datilografada da página em questão, para que Jijingi a levasse de volta ao
vilarejo. Moseby decidiu car em Katsina-Ala para visitar outros
missionários, mas Jijingi voltou para casa. Durante a viagem de volta, ele se
sentia como uma criança impaciente, e desejou poder fazer o trajeto inteiro
de caminhão, em vez de saltar na rodovia e cumprir o último trecho a pé.
Assim que chegou ao vilarejo, foi direto falar com Sabe.
Encontrou Sabe no caminho que levava a uma plantação vizinha. Alguns
moradores tinham detido o ancião ali para ajudar a resolver uma disputa
sobre a distribuição dos lhotes de uma cabra. Quando por m todos
caram satisfeitos, Sabe retomou seu caminho. Jijingi caminhava ao lado
dele.
— Bem-vindo de volta — disse Sabe.
— Sabe, estive em Katsina-Ala.
— Ah. E por que foi lá?
Jijingi lhe mostrou o papel.
— Isso foi escrito muito tempo atrás, assim que os europeus chegaram.
Eles conversaram com os anciãos do clã Shangev daquela época, e, quando
eles lhes contaram a história do clã Shangev, disseram que Shangev era lho
de Jechira.
A reação de Sabe foi tranquila.
— A quem os europeus perguntaram?
Jijingi olhou o papel.
— A Batur e Iorkyaha.
— Eu me lembro deles — disse ele, anuindo. — Eram homens sábios.
Não teriam dito uma coisa como essa.
Jijingi apontou para o papel.
— Mas eles disseram!
— Talvez você esteja lendo errado.
— Não estou! Eu sei ler!
Sabe deu de ombros.
— Por que você trouxe esse papel para cá?
— Porque o que ele diz é importante. Ele diz que o certo seria nos
juntarmos ao clã Jechira.
— Acha que nosso clã devia con ar em sua decisão sobre esse assunto?
— Não estou pedindo que o clã con e em mim. Estou pedindo que
con e em homens que eram anciãos quando todos vocês eram jovens.
— E eles deviam con ar. Mas aqueles homens não estão mais aqui. Tudo
que você tem é um papel.
— O papel diz o que eles diriam se estivessem aqui.
— Será mesmo? Um homem não fala somente uma coisa. Se Batur e
Iorkyaha estivessem aqui, eles concordariam comigo e diriam que devemos
nos juntar ao clã Kwande.
— Como poderiam fazer isso, se Shangev era lho de Jechira? — Ele
apontou para a folha de papel. — Os Jechiras são nosso clã mais próximo.
Sabe parou de caminhar e encarou Jijingi.
— Questões de parentesco não podem ser resolvidas por um papel. Você
hoje é um escrivão porque Maisho, do clã Kwande, me preveniu a respeito
dos rapazes da escola da missão. Maisho não teria nos procurado se não
tivéssemos o mesmo pai. A posição que você tem hoje é uma prova de
quanto nossos clãs são próximos, mas você se esquece disso. Você vai
procurar nos papéis uma coisa que já devia saber aqui. — Ele bateu no peito
de Jijingi. — Será que estudou tanto os papéis que se esqueceu do que é ser
Tiv?
Jijingi abriu a boca para protestar, mas percebeu que Sabe tinha razão.
Todo aquele tempo que passara estudando a escrita tinha feito com que ele
pensasse como um europeu. Estava con ando mais no que estava escrito do
que no que as pessoas diziam, e os Tivs não eram assim.
O relatório de avaliação dos europeus era vough, exato e preciso, mas não
era o bastante para resolver a questão. A escolha sobre a qual clã se devia
pertencer precisava ser uma escolha correta para toda a comunidade; tinha
que ser mimi. Apenas os anciãos podiam determinar o que era mimi, era
responsabilidade deles decidir o que era o melhor para o clã Shangev. Pedir a
Sabe que obedecesse ao papel era pedir que agisse contra o que ele
considerava correto.
— Tem razão, Sabe — disse ele. — Perdoe-me. Você é meu ancião, e foi
errado de minha parte sugerir que o papel podia saber mais do que você.
Sabe assentiu e recomeçou a caminhar.
— Você é livre para fazer o que quiser, mas acho que mostrar esse papel
aos outros vai causar mais mal do que bem.
Jijingi considerou aquilo. Os anciãos das plantações do oeste iriam, sem
dúvida, dizer que o relatório de avaliação dava apoio à posição deles,
prolongando um debate que já se arrastava há bastante tempo. Havia mais,
porém: isso tudo iria induzir os Tivs a con ar no papel como uma fonte da
verdade, fazendo-os mergulhar em águas onde os velhos costumes se
dissolveriam, e ele não via benefício algum nisso.
— Concordo — disse Jijingi. — Não vou mostrar o papel a ninguém.
Sabe aquiesceu.
Jijingi caminhou de volta para a cabana, re etindo sobre o que
acontecera. Mesmo sem frequentar a escola da missão, ele estava começando
a pensar como um europeu; sua prática da escrita nos cadernos o levara a
desrespeitar seus anciãos sem sequer perceber o que estava fazendo. Saber
escrever o ajudava a pensar com mais clareza, ele não podia negar, mas não
era motivo para con ar mais nos papéis do que nas pessoas.
Como escrivão, ele tinha que anotar as decisões de Sabe na corte tribal.
Mas não precisava manter os outros cadernos, aqueles em que tinha anotado
seus pensamentos. Ele os usaria para acender o fogo quando fosse cozinhar.
• • •

Em geral, não pensamos assim, mas a escrita é uma tecnologia, o que


signi ca que uma pessoa alfabetizada é alguém cujos processos de
pensamento são mediados por essa tecnologia. Nós nos tornamos ciborgues
cognitivos assim que começamos a ler com uência, e as consequências
disso são profundas.
Antes de adotar o uso da escrita, uma cultura tem seus conhecimentos
transmitidos apenas de forma oral, e pode facilmente revisar a própria
história. Isso não é proposital, mas é inevitável: pelo mundo inteiro, bardos e
griots vêm adaptando seu material poético às plateias para as quais cantam, e
assim vão aos poucos ajustando o passado às necessidades do presente. A
ideia de que relatos do passado não podem ser modi cados é um produto
da reverência que as culturas alfabetizadas têm em relação à escrita.
Antropólogos nos dirão que as culturas orais entendem o passado de
maneira diferente: para elas, suas histórias não precisam ser tão exatas, mas,
sim, validar o entendimento que a comunidade tem de si mesma. Desse
modo, não seria correto a rmar que suas histórias não merecem con ança;
as histórias fazem o que eles precisam que elas façam.
Nesse momento, cada um de nós é uma cultura oral. Reescrevemos o
passado para suprir nossas necessidades e dar apoio à narrativa que
construímos para nós mesmos. Com as lembranças, todos somos culpados
de uma interpretação whig de nossas histórias pessoais, ou seja, vemos
nossos “eus” do passado como meros estágios na direção de nosso glorioso
“eu” do presente.
Mas isso está chegando ao m. O Remem é apenas o primeiro exemplar
de uma geração inteira de próteses para a memória, e, à medida que esses
produtos forem ganhando uma aceitação generalizada, vamos substituir as
memórias orgânicas e maleáveis pela perfeição dos arquivos digitais.
Teremos gravações de tudo que de fato zemos, em vez de histórias que vão
evoluindo cada vez que são recontadas. Dentro de nossa mente, cada um de
nós vai se transformar de uma cultura oral em uma cultura alfabetizada.
Seria fácil para mim a rmar que as culturas alfabetizadas são melhores
do que as orais, mas minha tendência a preferir uma delas deve ser óbvia, já
que estou escrevendo estas palavras e não dizendo-as diretamente para você.
Em vez disso, direi que é mais fácil apreciar os benefícios da alfabetização e
mais difícil reconhecer tudo que ela nos fez perder. A alfabetização encoraja
uma cultura a atribuir mais valor à documentação e menos à experiência
subjetiva, e, no cômputo geral, considero que o lado positivo tem mais peso.
Registros escritos são suscetíveis a muitos tipos de erro, e sua interpretação
pode mudar, mas as palavras na página permanecem as mesmas. Há um
mérito nisso.
No que diz respeito às memórias individuais, estou do outro lado da
linha divisória. Como qualquer um cuja identidade foi forjada através da
memória orgânica, sinto-me ameaçado pela perspectiva de remover a
subjetividade do processo de recordar os acontecimentos. Já me costumei a
pensar que poderia ter um alto valor, para um indivíduo, a capacidade de
contar histórias sobre si mesmo, um valor que seria inexistente para outras
culturas, mas sou produto de meu tempo, e os tempos mudam. Não
podemos impedir a introdução das memórias digitais, tal como as culturas
orais não puderam impedir a alfabetização; portanto, o máximo que posso
fazer é procurar o lado positivo disso tudo.
E acho que descobri o verdadeiro benefício da memória digital. A
questão não é provar que estávamos certos, mas admitir que estávamos
errados.
A nal, todos nós estivemos errados em um momento ou outro, fomos
cruéis ou hipócritas, e acabamos nos esquecendo dessas ocasiões. E isso
signi ca que, na verdade, não conhecemos a nós mesmos. Que tipo de
autoconhecimento posso ter, se não tenho como con ar em minha
memória? E você? Provavelmente está pensando que, mesmo que suas
memórias não sejam perfeitas, nunca se envolveu em um revisionismo da
mesma magnitude que o meu. No entanto, eu tinha a mesma certeza e
estava errado. Você pode dizer: “Sei que não sou perfeito, já cometi erros.” E
eu estou aqui para dizer que você já cometeu mais erros do que imagina, que
algumas das premissas essenciais em que sua autoimagem se baseia são, na
verdade, um punhado de mentiras. Passem algum tempo usando o Remem,
e vão acabar descobrindo.
Mas a razão pela qual eu agora recomendo o Remem não são as
lembranças constrangedoras que ele nos traz do passado, mas, sim, para
evitar a necessidade delas no futuro. Foi a memória orgânica que me
possibilitou construir uma narrativa maquiada de meus talentos como pai.
Contudo, usando a memória digital de agora em diante, espero evitar que
isso se repita. A verdade sobre meu comportamento não me será
apresentada por outrem, colocando-me na defensiva; não será sequer uma
coisa que descobrirei como um choque íntimo, me forçando a uma
reavaliação. Com o Remem fornecendo apenas os fatos sem retoque, minha
imagem de mim mesmo nunca poderá se afastar muito da verdade.
A memória digital não nos impedirá de contar histórias sobre nós
mesmos. Como disse antes, somos feitos de narrativas, e nada vai modi car
isso. O que a memória digital nos trará é a mudança dessas narrativas de
fabulações que enfatizam os nossos melhores atos e escondem os piores para
outras que — espero — reconheçam nossa falibilidade e nos tornem menos
severos para com as falhas alheias.
Nicole também já começou a usar o Remem, e acabou descobrindo que
suas lembranças dos acontecimentos também não são perfeitas. Isso não a
fez me perdoar pelo modo como a tratei — nem deveria, porque os erros
dela foram bem menores que os meus —, mas fez diminuir sua mágoa
quanto à maneira errada como eu me lembrava de minhas ações, porque
agora ela percebe que isso acontece com todos. E co constrangido em
admitir que é precisamente este o cenário que Erica Meyers predisse quando
falou dos efeitos do Remem sobre os relacionamentos.
Isso também não signi ca que mudei de ideia quanto aos efeitos
negativos da memória digital; eles são muitos, e as pessoas precisam ser
avisadas. Só acho que não posso mais discutir o assunto com qualquer tipo
de imparcialidade. Abandonei o artigo que estava planejando escrever sobre
as próteses de memória; repassei para uma colega a pesquisa que havia feito,
e ela escreveu um ótimo texto sobre os prós e os contras do so ware, um
artigo sem paixão, livre de toda a angústia e interrogação íntima que teriam
impregnado qualquer coisa que eu tivesse escrito. No lugar disso, escrevi
este texto.
O relato que z a respeito dos Tivs se baseia em fatos, mas não é
exatamente el. Houve sem dúvida uma disputa entre os Tivs em 1941 sobre
a qual clã os Shangevs deveriam se juntar, uma disputa baseada em
diferentes relatos sobre a liação do fundador do clã, e registros
administrativos demonstram que os relatos dos anciãos sobre a própria
genealogia se modi caram com o tempo. Contudo, muitos dos detalhes
especí cos que escrevi são inventados. Os acontecimentos reais foram mais
complicados e menos dramáticos, como em geral são; portanto, tomei
algumas liberdades para construir uma narrativa melhor. Inventei uma
história para poder expor a verdade. E reconheço a contradição que há
nisso.
Quanto ao meu relato sobre a discussão que tive com Nicole, tentei fazê-
lo da maneira mais exata possível. Tenho gravado tudo desde que comecei a
trabalhar nesse projeto, e consultei constantemente as gravações enquanto
escrevia estas linhas. Contudo, em minha escolha dos detalhes que deveria
incluir e dos que deveria deixar de fora, acabei, quem sabe, inventando outra
história. Apesar de meus esforços para ser in exível, será que acabei fazendo
um retrato lisonjeiro de mim mesmo? Terei distorcido os acontecimentos
para que eles seguissem mais de perto o arco narrativo que se espera das
con ssões? A única maneira de vocês julgarem é comparando meu relato às
gravações propriamente ditas, então estou fazendo algo que nunca pensei
ser capaz de fazer: com a permissão de Nicole, concedo acesso público ao
meu biolog, do jeito que está. Dê uma olhada nos vídeos e decida por si
mesmo.
E se achar que não fui honesto, me diga. Eu quero saber.
A HUMANIDADE USA O OBSERVATÓRIO de Arecibo para procurar por
inteligência extraterrestre. Seu desejo de fazer contato é tão forte que ela
criou um ouvido capaz de escutar até os con ns do universo.
Mas eu e meus irmãos papagaios continuamos aqui. Por que eles não têm
interesse em escutar nossas vozes?
Somos uma espécie não humana capaz de estabelecer comunicação com
eles. Não seremos exatamente aquilo que os humanos procuram?
• • •

O universo é tão vasto que a vida inteligente deve ter brotado nele inúmeras
vezes. E é também tão antigo que mesmo uma única espécie tecnológica
teria tido tempo de se expandir e ocupar a galáxia inteira. No entanto, não
há nenhum sinal de vida em lugar algum, a não ser na Terra. Os humanos
chamam isto de “o paradoxo Fermi”.

Uma das soluções propostas para o paradoxo Fermi é que as espécies


inteligentes tentam por todos os meios disfarçar sua existência, para não
serem localizadas por invasores hostis.
Falando em nome de uma espécie que quase foi levada à extinção pelos
humanos, posso con rmar quanto essa estratégia é sensata.
Faz sentido tentar car quieto, sem atrair as atenções.
• • •

O paradoxo Fermi é chamado às vezes de “O Grande Silêncio”. O universo


deveria ser uma cacofonia de vozes, mas, em vez disso, ele é de uma
quietude assustadora.
Alguns humanos teorizam que as espécies inteligentes acabam se
extinguindo antes de poderem se expandir pelo espaço. Se isso estiver
correto, então a quietude do céu noturno é o silêncio de um cemitério.
Centenas de anos atrás, minha espécie era tão abundante que a oresta de
Río Abajo ressoava com nossas vozes. Agora, estamos quase extintos. Em
breve, essa oresta tropical estará tão silenciosa quanto o restante do
universo.
• • •

Existiu um dia um papagaio-cinzento africano chamado Alex. Ele cou


famoso pelas suas habilidades cognitivas. Quer dizer, famoso entre os
humanos.
Uma pesquisadora humana chamada Irene Pepperberg passou trinta
anos o estudando. Ela descobriu que Alex não apenas sabia as palavras que
indicavam formas e cores, mas também entendia os conceitos de forma e de
cor.
Muitos cientistas viam com ceticismo a ideia de que um pássaro fosse
capaz de dominar conceitos abstratos. Os humanos gostam de pensar que
são únicos. Mas depois de algum tempo Pepperberg conseguiu convencê-los
de que Alex não estava apenas repetindo palavras, e sim que ele entendia o
que estava dizendo.
De todos os meus primos, Alex foi o que chegou mais perto de ser levado
a sério pelos humanos como um parceiro de comunicação.
Ele morreu de repente, quando era ainda relativamente jovem. Na
véspera de sua morte, Alex disse a Pepperberg: “Você é boa. Eu amo você.”
Se os humanos estão procurando contato com a inteligência não humana,
o que mais podem pedir?
• • •

Todo papagaio tem um chamado típico que usa para se identi car. Os
biólogos se referem a isso como “chamado de contato”.
Em 1974, os astrônomos usaram Arecibo para transmitir uma mensagem
no espaço, com o intuito de fornecer uma prova da inteligência humana. Era
o chamado de contato da espécie humana.
Na vida selvagem, os papagaios se dirigem uns aos outros usando nomes.
Um pássaro imita o chamado de contato do outro para chamar a atenção.
Se os humanos chegarem a detectar a mensagem de Arecibo sendo
transmitida de volta à Terra, saberão que existe alguém tentando chamar a
atenção.
• • •

Os papagaios são capazes de aprendizado vocal. Aprendemos a produzir


novos sons depois que os escutamos. É uma habilidade que poucos animais
possuem. Um cachorro pode aprender dezenas de comandos, mas nunca
produzirá mais do que latidos.
Os humanos também aprendem vocalmente. Temos isso em comum.
Desse modo, humanos e papagaios compartilham uma relação muito
especial com os sons. Nós não produzimos ruídos, apenas. Nós
pronunciamos. Enunciamos.
Talvez seja por isso que os humanos construíram Arecibo conforme foi
feito. Um receptor não precisa ser também um transmissor, mas Arecibo é
ambas as coisas. É um ouvido à escuta e uma boca para falar.
• • •

A humanidade viveu cercada de papagaios durante milhares de anos, e só


recentemente considerou a possibilidade de que nós talvez fôssemos
inteligentes.
Acho que não posso culpá-los. Nós, papagaios, não achávamos os
humanos muito inteligentes. É difícil encontrar algum sentido num
comportamento que é tão diferente do nosso.
Mas os papagaios são mais parecidos com os humanos do que qualquer
espécie extraterrestre poderia ser, e podemos ser observados de perto por
eles, que podem nos encarar olho no olho. Como acham que podem
reconhecer uma inteligência alienígena quando tudo que fazem é espreitar a
cem anos-luz de distância?
• • •

Não é coincidência que a palavra “aspiração” signi ca ao mesmo tempo


“esperança” e “o ato de inalar”.
Quando falamos, usamos o ar em nossos pulmões para dar uma forma
física aos nossos pensamentos. Os sons que produzimos são ao mesmo
tempo as nossas intenções e a nossa força vital.
Falo, logo existo. Seres que aprendem a falar, como os papagaios e os
humanos, são talvez os únicos capazes de entender por completo esta
verdade.
• • •
Existe um prazer especí co em formar sons usando a boca. É algo tão
primal e visceral que, através de toda a história, os humanos consideraram
essa atividade uma rota para o divino.
Os místicos pitagóricos acreditavam que as vogais representam a música
das esferas, e entoavam seus cânticos para extrair o poder que elas contêm.
Os cristãos pentecostais acreditam que quando falam em línguas
estranhas estão falando a língua usada pelos anjos no paraíso.
Os hindus brâmanes acreditam que quando recitam mantras estão
fortalecendo a própria estrutura do mundo real.
Somente uma espécie capaz de aprendizado vocal poderia atribuir
semelhante importância ao som em suas mitologias. Nós, papagaios, somos
capazes de apreciar isso.
• • •

De acordo com a mitologia hindu, o universo foi criado com um som: “om”.
É uma sílaba que contém em si tudo que já foi e tudo que será.
Quando o telescópio de Arecibo está apontado para o espaço entre as
estrelas, ele ouve um tênue zumbido.
Os astrônomos chamam isso de radiação cósmica de fundo em micro-
ondas. É a radiação residual do Big Bang, a explosão que criou o universo há
cerca de catorze bilhões de anos.
Mas também se pode ver isso como uma reverberação apenas audível do
“om” original. Esta sílaba ressoou de maneira tão profunda que o céu
noturno continuará vibrando enquanto existir o universo.
Quando Arecibo não está escutando outra coisa, está ouvindo a voz da
criação.
• • •
Nós, papagaios porto-riquenhos, temos nossos próprios mitos. São mais
simples do que as mitologias humanas, mas acho que os humanos os
ouviriam com prazer.
É uma pena, mas nossos mitos estão se perdendo à medida que nossa
espécie se extingue. Duvido que os humanos consigam decifrar nossa
linguagem antes que tenhamos desaparecido.
Desse modo, a extinção da minha espécie não signi ca apenas a perda de
um grupo de pássaros. É também o desaparecimento de nossa linguagem,
nossos rituais, nossas tradições. É o silenciamento de nossa voz.
• • •

A atividade dos humanos levou minha espécie à beira da extinção, mas eu


não os culpo. Não o zeram por maldade. Apenas não estavam prestando
atenção.
E os humanos sabem criar mitos tão belos! Que imaginação a deles!
Talvez seja por isso que suas aspirações sejam tão imensas. Olhem para
Arecibo. Uma espécie animal capaz de criar tal coisa forçosamente traz a
grandeza dentro de si.
Minha espécie provavelmente não permanecerá aqui por muito mais
tempo. O mais provável é que morramos cedo, indo fazer parte do Grande
Silêncio. Mas, antes de desaparecermos, estamos mandando uma mensagem
para a humanidade. Nossa única esperança é que o telescópio de Arecibo os
ajude a ouvi-la.
A mensagem é esta:
Vocês são bons. Nós amamos vocês.
SENHOR, VENHO À VOSSA PRESENÇA, e peço que vossa luz ilumine meu
coração no momento em que examino os acontecimentos do dia de hoje,
para que eu possa ver com mais clareza a vossa graça em tudo que
aconteceu.
Nesse momento, estou contente e grata por um dia tão satisfatório, mas
ele não principiou de maneira auspiciosa. Meu estado de espírito não era
dos melhores quando o avião em que eu viajava pousou pela manhã.
Enquanto eu examinava o terminal à procura do ponto de táxi, um homem
pensou que eu estava perdida e tentou me ajudar. Disse que Chicago não era
lugar para uma mulher viajar sozinha, e respondi que tinha me saído
bastante bem na Mongólia, que duvidava que Chicago fosse pior. Perdoai-
me, Senhor, por ter sido áspera com um homem que tentava apenas me
ajudar. Peço vosso auxílio para ser paciente com aqueles para quem as
mulheres são criaturas desprotegidas.
Admito que parar aqui não era bem minha intenção. Já faz tanto tempo
que escrevi meu livro que minha atenção já se transferiu para outras coisas,
e no mês passado estive inteiramente focada em preparar a escavação no
Arizona. Depois do correiograma elétrico do dr. Janssen, a única coisa em
que eu conseguia pensar eram naquelas pontas de lança e as revelações que
elas poderiam nos trazer. Quando meu editor conseguiu marcar uma
conferência pública para mim, aqui, achei que ele estava apenas
aproveitando meu plano de viagem e dando um jeito para que eu divulgasse
o livro sem precisar gastar outra passagem aérea — e para mim era somente
uma pequena demora a mais, apenas isso.
Minha disposição melhorou depois que cheguei ao hotel e encontrei uma
representante do teatro onde eu deveria fazer minha palestra. De início, ela
me disse quanto estava ansiosa para me ouvir — e achei que tivesse sido
apenas gentileza, mas ela começou a explicar detalhadamente como meu
livro lhe dera uma nova visão a respeito do trabalho dos cientistas, e percebi
que seu entusiasmo era sincero. Ouvir uma reação desse tipo, vinda de um
leitor, foi muito grati cante, só que o mais importante é que isso me
lembrou de que a educação é uma parte tão essencial do trabalho de um
arqueólogo quanto a pesquisa de campo. Obrigada, Senhor, por me mostrar
com tanta sutileza quanto eu estava sendo egoísta ao considerar aquela
palestra pública uma mera tarefa rotineira.
Fiz uma refeição leve no hotel e segui para o teatro. Sem dúvida, era a
maior plateia que eu já tive. Homens e mulheres amontoados no auditório
como papagaios-do-mar numa praia. Não me iludi pensando que aquela
a uência pudesse ser re exo da minha popularidade — o nome “Dorothea
Morrell” num cartaz nunca atraiu muita gente. Eles estavam ali porque as
múmias do Atacama estavam percorrendo o país numa exposição para
arrecadar fundos, e a primeira parada era ali, em Chicago. A arqueologia
está agora presente nos pensamentos de todo mundo, e eu era apenas uma
bene ciária colateral. Mas por mim estava ótimo. Sentia-me feliz em falar
para uma plateia tão grande, fosse qual fosse o motivo.
Comecei minha palestra com uma explicação dos anéis internos de um
tronco de árvore, e de como a espessura de cada anel depende da
precipitação de chuvas durante cada ano do crescimento da árvore, de forma
que uma sucessão de anéis muito estreitos corresponde a um período de
secas. Expliquei que, contando retroativamente a partir do ano em que a
árvore foi derrubada, podemos reconstituir uma cronologia dos padrões
climáticos ao longo de várias décadas, mais longe do que a memória de
qualquer ser humano vivo. O passado deixou suas marcas no mundo, e só
nos resta aprender a ler essas marcas.
Depois, descrevi a técnica de datação cruzada: comparar o padrão dos
anéis de crescimento de diferentes árvores. Citei um exemplo em que vemos
uma sequência idêntica de anéis largos e anéis estreitos em dois pedaços de
madeira: em um dos casos, está próximo do centro de uma árvore recém-
abatida, enquanto no outro está perto do perímetro de um pedaço de
madeira encontrado numa velha construção. Sabemos que o período de vida
dessas duas árvores coincidiu em parte — a primeira era apenas uma árvore
nova e a outra já estava madura, mas ambas experimentaram a mesma
sequência de seca e abundância de chuvas. Podemos observar os anéis de
crescimento na árvore mais velha para ampliar nosso registro dos padrões
do clima, rumo ao passado. Graças à datação cruzada, não estamos mais
limitados ao período de vida de nenhuma árvore individual.
Falei para a plateia que os arqueólogos examinaram a madeira
encontrada em construções cada vez mais antigas, comparando seus
padrões de anéis. Mesmo sem o auxílio de registros escritos, sabemos que a
madeira usada no topo da Catedral de Trier, na Alemanha, veio de árvores
cortadas em 1074, enquanto a madeira da base veio de árvores cortadas em
1042: basta examinar os anéis de crescimento de cada uma. E fui adiante,
contando que havia madeira ainda mais antiga que podíamos usar, tais
como as estacas da ponte romana na cidade de Colônia e os caibros que
sustentam as minas de sal de Bad Nauheim. Cada uma daquelas toras de
madeira servia como volume de um livro de história escrito pela própria
natureza, um almanaque das chuvas anuais que se estendia até os tempos do
nascimento de Cristo.
Depois, disse a eles que pesquisar ainda mais longe no passado era algo
complicado. Implicava estudar troncos retirados de pântanos, vigas
recolhidas em escavações arqueológicas, e até mesmo pedaços grandes de
carvão encontrados nas antigas fogueiras dos habitantes das cavernas.
Expliquei que isso se assemelhava à montagem de um gigantesco quebra-
cabeça. Às vezes, encontrávamos muitas peças que se encaixavam umas nas
outras, mas não sabíamos sua posição certa enquanto não achássemos outra
peça capaz de conectá-las com nossa cronologia principal. Ao longo do
tempo, fomos preenchendo as lacunas, até que nosso registro de anéis de
crescimento chegou a cinco mil anos de extensão contínua e, depois, a sete
mil anos. Comentei com eles quanto era emocionante examinar um pedaço
de madeira e saber que a árvore de onde ele provinha tinha sido derrubada
oito mil anos atrás.
Mas tal emoção não pode se comparar com a provocada pelo exame de
pedaços de madeira com algumas centenas de anos a mais do que isso.
Porque nesses troncos de árvore existe um ponto onde os anéis de
crescimento acabam. Contando retroativamente a partir do momento atual,
o anel de crescimento mais antigo se formou oito mil, novecentos e doze
anos atrás. Não existem anéis de crescimento antes disso, expliquei, porque
esse foi o ano em que vós criastes o mundo, Senhor. No centro de cada
árvore daqueles tempos existe um círculo de madeira perfeitamente claro e
uniforme, e o diâmetro dessa área sem anéis indica o tamanho que a árvore
tinha no momento da criação. São as árvores primordiais, criadas
diretamente pela vossa mão, e não a partir de sementes.
Eu disse a todos que a ausência de anéis de crescimento nas secções
dessas árvores é algo tão signi cativo quanto a ausência de umbigos nas
múmias do Atacama. Na verdade, as secções das árvores nos dizem coisas
que os restos mortais humanos, sejam esqueletos, sejam corpos
mumi cados, não podem nos dizer. Sem a cronologia fornecida pelos anéis
de crescimento, não teríamos nenhum meio de saber quando aqueles
humanos primordiais surgiram. Seus corpos nos dizem que a humanidade
foi criada no mundo todo, mas as secções das árvores nos dizem exatamente
quando foi que isso aconteceu.
Em seguida, expliquei que, enquanto as árvores sem anéis de crescimento
e os corpos sem umbigos são extraordinários e surpreendentes, são também
logicamente necessários. Para podermos entender melhor o porquê, pedi-
lhes que considerassem a alternativa. O que signi caria, Senhor, se vós
tivésseis criado as árvores primordiais com anéis de crescimento aparecendo
até o centro dos seus troncos? Signi caria que teríeis criado provas da
existência e verões e invernos que nunca aconteceram. Seria uma enganação,
como se tivésseis dado a um dos homens primordiais uma cicatriz na testa
como indício de um ferimento sofrido durante uma infância que nunca
aconteceu. E para con rmar essa memória falsi cada, teríeis de criar os
túmulos dos pais que criaram esse homem durante sua infância ctícia.
Esses pais decerto teriam mencionado os próprios pais, de modo que teríeis
de produzir túmulos para eles também, Senhor. Para manter a consistência,
teríeis de encher a terra com as ossadas de incontáveis gerações do passado,
tão numerosas que, sempre que escavássemos, cada pá de terra arrancada
estaria invadindo a tumba de um ancestral. A Terra não seria outra coisa
senão um cemitério in nito.
Obviamente, disse eu, não é este o mundo em que vivemos. O mundo a
nossa volta não pode ser in nitamente antigo, então ele deve ter tido um
princípio, e é lógico que, quando procurarmos com atenção su ciente,
encontremos con rmações desse princípio. Árvores sem anéis de
crescimento e homens sem umbigos con rmam nosso raciocínio. Mais do
que isso, porém, disse eu: eles nos proporcionam conforto espiritual.
Pedi que imaginassem como seria viver em um mundo onde, por mais
fundo que alguém escavasse, continuasse a encontrar sinais de épocas cada
vez mais antigas. Pedi para imaginarem que se deparavam com provas de
um passado tão estendido que os números perdiam todo sentido: cem mil
anos, um milhão de anos, dez milhões de anos. Então perguntei: Vocês não
se sentiriam perdidos, como náufragos perdidos no oceano do tempo? A
única reação sensata seria o desespero.
Falei que não estamos tão desgarrados assim. Jogamos uma âncora, e ela
se cravou no fundo. Podemos car certos de que a praia está próxima,
mesmo que não possamos vê-la. Sabemos que vós zestes este universo com
um propósito em mente; sabemos que há um cais a nossa espera. Disse a
eles que nosso método de navegação é o questionamento cientí co. E,
concluí, é por esta razão que sou cientista: porque pretendo descobrir quais
seus propósitos para nós, Senhor.
Eles aplaudiram quando acabei de falar, e admito ter sentido prazer com
isso. Perdoai meu orgulho, Senhor. Ajudai-me a lembrar que todo o trabalho
que faço — seja a escavação de ossos no deserto, seja fazer conferências em
público — não é para minha própria glória, mas para a vossa. Não me
deixeis esquecer que minha missão é mostrar aos outros a beleza de vossa
obra e, com isso, trazê-los para mais perto de vós.
Amém.
• • •
Senhor, eu me posto em vossa presença, e peço que vossa luz ilumine meu
coração no momento em que volto a contemplar este dia, para que eu possa
ver com mais clareza a vossa graça em tudo que aconteceu.
O dia de hoje foi cheio de lembranças de Vossa Majestade, pelas quais
sou agradecida, mas me trouxe também perturbações. Começou com o café
da manhã na companhia da prima Rosemary e seu marido, Alfred. Não a
vejo muito, mas sempre aprecio qualquer tempo que passamos juntas.
Obrigada, Senhor, por me dar pelo menos um parente que considera a
arqueologia uma pro ssão adequada para uma mulher, e que não vive me
perguntando quando vou me casar e ter lhos.
Depois que Rosemary me transmitiu as novidades sobre seu lado da
família, revelou que tinha um motivo adicional para vir tomar café comigo.
— Comprei uma relíquia semana passada, mas Alfred acha que é uma
falsi cação — comentou.
— É por causa do preço que ela pagou — explicou Alfred. — Se algo é
bom demais para ser verdade, provavelmente não é verdade. Esse é meu
lema.
— Ficamos com a esperança de que você pudesse resolver o assunto —
disse Rosemary, e falei que caria feliz em ajudá-los.
Quando terminamos a refeição, ela foi até o balcão e pegou um pacote
que tinha deixado com os recepcionistas do hotel, e fomos todos para um
sofá desocupado num recanto do saguão.
Dentro da caixa, envolto em quase um metro de tecido de musselina,
estava o fêmur de um cervo, muito velho mas em excelente estado de
conservação, e percebi de imediato que não era um osso comum. O osso não
tinha uma linha epi sária, o remanescente da placa de crescimento na qual a
nova cartilagem vai sendo acrescentada à medida que os ossos de um animal
jovem vão se transformando em ossos adultos. Ele nunca tinha sido mais
curto do que era naquele momento. O cervo a que ele pertencera nunca
tinha sido um lhote. Era o fêmur de um cervo primordial, criado já na
idade adulta pela vossa mão, Senhor.
Expliquei a Rosemary e Alfred que o osso era verdadeiro — ela cou
triunfante e ele um tanto encabulado, ambos atenuando suas reações por
causa da minha presença, mas eu era capaz de ver que longas discussões se
seguiriam. Rosemary me agradeceu, e eu lhe disse que não era nada, mas
gostaria de saber onde ela o comprara.
— Fui ver a exposição das múmias. Você deve estar acostumada a ver
esse tipo de coisa, mas eu achei espetacular. De qualquer modo, há uma
lojinha de suvenires que acompanha a mostra. Em geral, ela oferece postais e
livros sobre as múmias, mas havia também algumas relíquias à venda.
Conchas e mexilhões, é claro, mas também alguns itens pouco comuns:
ossos como este, conchas de abalones.
Aquilo chamou minha atenção. Ela tinha certeza de que eram conchas de
abalones?
— Sim! — a rmou ela. — Já comprei relíquias antes, e nunca tinha visto
uma concha de abalone. Tive que perguntar ao vendedor o que era. Fiquei
com vontade de comprá-la somente pela novidade, mas não dá para ver as
linhas.
Entendi o que ela queria dizer. As conchas dos moluscos comuns e dos
mexilhões têm círculos concêntricos de crescimento, semelhantes aos das
árvores. Mas as conchas dos bivalvulados primordiais são estranhamente
lisas perto do centro — elas só exibem linhas junto às bordas, cada uma
indicando um ano de crescimento após a criação. Tais conchas são as
relíquias mais populares entre os colecionadores, porque não são muito
caras por serem relativamente comuns, mas exibem provas evidentes de
terem sido criadas pela vossa mão, Senhor. Um abalone, ao contrário, é
univalvulado, e as camadas de crescimento em sua concha só são visíveis se
alguém zer uma perfuração e olhar com um microscópio. A olho nu, a
concha de um abalone primordial não se distingue da de outro abalone
qualquer.
Mas não foi essa a razão de minha surpresa ao saber que elas estavam
sendo vendidas numa loja de suvenires. É porque eu conhecia um único
lugar onde haviam sido descobertas conchas de abalones primordiais, e não
sabia como poderiam estar à venda. De modo que, depois de me despedir de
Rosemary e Alfred, peguei o ônibus até a igreja onde as múmias do Atacama
estavam sendo expostas.
Havia uma extensa la de visitantes do lado de fora, e acho que eu
poderia ter evitado a exposição, indo diretamente à lojinha. Mas, ao
contrário do que Rosemary pensava, eu jamais havia examinado a múmia de
um humano primordial. Li trabalhos acadêmicos sobre as múmias e
examinei as fotogra as que os acompanhavam, mas até então isso era o mais
próximo que eu tinha chegado de uma múmia verdadeira. De modo que,
apesar de questionar alguns aspectos daquela exposição, decidi comprar um
ingresso e esperar na la.
Enquanto estava ali, escutei a conversa de duas pessoas atrás de mim,
falando sobre as múmias. Um menino, com uns dez anos de idade,
perguntou à mãe se era um milagre o fato de aqueles corpos terem cado
intactos desde a criação. A mãe respondeu que não, e explicou que eles
tinham sido preservados devido a um ambiente extraordinariamente árido.
Disse ao garoto, de modo bastante correto, que no deserto chileno de
Atacama chove tão pouco que as pegadas das mulas ainda podem ser vistas
depois de cinquenta anos, e que condições atmosféricas desse tipo impedem
os corpos sepultados ali de entrarem em decomposição.
Achei isso muito animador, porque há pessoas tão apressadas em
classi car qualquer coisa como milagre que isso acaba desvalorizando a
palavra. É esse tipo de pensamento que leva as pessoas a ir ver as múmias
em busca de uma cura qualquer, quando a medicina não pode mais ajudá-
las. Mesmo a Igreja não fazendo mais qualquer referência a poderes
curativos das relíquias, isso ainda não é o bastante para dissuadir os
desesperados. Entre as pessoas na la havia pelo menos um cego e duas
pessoas em cadeiras de rodas, todos com a esperança de que a proximidade
a um milagre pudesse induzir outro. Oro para que o sofrimento deles possa
ser minorado, Senhor, mas sigo o secular consenso de que houve apenas um
milagre comprovado — a criação do universo —, e nós todos estamos
equidistantes dele.
Devo ter esperado cerca de uma hora na la antes de chegar a minha vez,
mas é um cálculo que estou fazendo retrospectivamente, pois o fato é que
vê-las foi uma experiência tão profunda que me fez esquecer tudo relativo à
espera. Havia duas, ambas de homens, cada uma delas dentro de sua caixa
transparente, com temperatura e umidade controladas. A pele delas parecia
tão delicada quanto a do papel de um ninho de vespas, e ao mesmo tempo
estava esticada por cima dos crânios, tão retesada quanto a pele de um
tambor. Imaginei que uma sacudidela leve poderia rasgá-la. Ambas as
múmias usavam apenas peles de guanaco em volta dos quadris, e estavam
deitadas de rosto para cima nas esteiras de capim em que tinham sido
enterradas. Seus abdomens estavam expostos.
Já manuseei, antes, restos de esqueletos de humanos primordiais, Senhor,
e por mais miraculoso que seja segurar um crânio que não possui suturas ou
o fêmur que não tem linha epi sária, francamente, nada se compara à
experiência de ver um corpo desprovido de umbigo. A diferença reside,
creio eu, no fato de que não temos consciência sobre as minúcias estruturais
de nossos próprios ossos, sendo necessário saber um pouco de anatomia
para reconhecer os traços que distinguem um esqueleto primordial. Mas
todos nós sabemos que temos um umbigo, de modo que a visão de um torso
em que ele não apareça produz em nós um espanto mais visceral, um
assombro mais íntimo.
Quando deixei a área da exposição, ouvi o menino e sua mãe
conversando mais uma vez. A mãe estava conduzindo o garoto em oração, e
eles vos agradeciam, Senhor, por terdes garantido que as múmias fossem
descobertas pelos arqueólogos da Igreja e não pelos seculares, porque agora
elas estavam sendo exibidas ao público, e não escondidas nos salões
privados dos museus, onde somente cientistas escolhidos teriam acesso a
elas. Fiquei menos animada ao escutar aquilo. Não porque eu discorde dela.
Mas porque nessa questão especí ca eu me vejo dividida.
Sei quanto é profunda a experiência de ver as múmias pessoalmente, e
esta exposição fará com que dezenas ou centenas de milhares de pessoas se
aproximem de vós, Senhor, por meio dessa experiência. Mas, como cientista,
acho que a preservação dos tecidos é a prioridade. Não importa quanto a
Igreja tome suas precauções: a exposição dessas múmias através do país
inteiro tende a causar mais deterioração do que se elas estivessem trancadas
em segurança dentro de um museu. Quem pode saber quais técnicas para
análise de tecidos delicados podem ser aperfeiçoadas no futuro? Os biólogos
acreditam estar perto de identi car as partículas da hereditariedade pelas
quais os organismos transmitem suas características a seus descendentes.
Talvez um dia eles sejam capazes de ler as informações que essas partículas
conduzem. Quando esse dia chegar, poderemos ter acesso à programação
original da espécie humana, não corrompida pela passagem do tempo. Uma
descoberta assim traria a humanidade inteira mais para perto de vós,
Senhor, mas é preciso que sejamos pacientes e não dani quemos esses
tecidos.
Em todo caso, encaminhei-me para a loja de suvenires, onde certa
quantidade de visitantes já se postava na la para a compra de cartões-
postais. Enquanto esperava algum dos vendedores car disponível, olhei o
balcão envidraçado onde estavam as relíquias. Tal como Rosemary havia
dito, ali estavam os abalones no meio das conchas mais convencionais à
venda. Eu tinha imaginado se a loja a rmaria que as conchas de abalone
tinham vindo do Chile juntamente com as múmias, mas na verdade o cartão
que as descrevia dizia que tinham sido encontradas na ilha de Santa Rosa,
na costa da Alta Califórnia. E que foram achadas no fundo de um sambaqui,
aqueles montes em que o lixo das comunidades pré-históricas se acumula.
Assim que diminuiu o uxo dos visitantes fazendo compras, um
vendedor da lojinha veio me atender. Talvez ele estivesse acostumado a ver
reações de estranheza das pessoas diante do fato de as conchas serem
achadas em montes de lixo, de modo que veio me explicar que isso apenas
aumentava seu valor.
— Não apenas essas conchas são de moluscos primordiais, como foram
de fato manuseadas por humanos primordiais. Homens feitos diretamente
por Deus as tiveram nas mãos.
Falei para ele que estava curiosa a respeito das conchas de abalone:
tinham sido encontradas por arqueólogos da Igreja, como sucedera com as
múmias?
— Estas foram doadas por um colecionador particular. Foi ele quem deu
as informações que estão nos cartões.
Perguntei se ele podia me passar o nome do colecionador, e ele quis saber
o motivo. Foi então que me apresentei e expliquei que era arqueóloga. Ele
me disse que se chamava sr. Dahl. Expliquei que as únicas escavações na ilha
de Santa Rosa foram patrocinadas pela Universidade da Alta Califórnia.
Toda e qualquer relíquia descoberta ali fazia parte das coleções dos museus
daquela universidade, portanto, não deveria haver nenhuma concha de
abalone primordial nas mãos de colecionadores privados.
— Eu não sabia disso — confessou ele. — Se soubesse, teria feito mais
perguntas. Acha que elas podem ter sido roubadas?
Respondi que não podia ter certeza, e que bem poderia haver uma
explicação inocente para aquilo, mas que eu estava muito interessada em
saber qual era.
O sr. Dahl estava visivelmente preocupado.
— Já recebemos doações de colecionadores particulares antes, e nunca
tivemos nenhum problema com a origem das peças.
Ele consultou um registro e depois copiou à mão para mim o nome e o
endereço do doador, sr. Martin Osborne, e uma caixa postal em São
Francisco.
— Ele enviou uma grande quantidade de peças antes de começarmos a
viajar com a exposição e pediu apenas que os itens fossem vendidos por um
preço baixo, para que fossem de fácil acesso. Era um sentimento tão
generoso que logo concordei, mesmo que signi casse fundos menos
vultosos para a Catedral de Yosemite. Ele teria feito isso caso tivesse roubado
as peças de algum museu?
Respondi que não sabia. Agradeci a ele pela ajuda e disse que lhe
escreveria assim que tivesse veri cado a origem das relíquias doadas. Sugeri
que, para evitar maiores complicações, ele evitasse vendê-las, até que eu
voltasse a fazer contato, e ele concordou.
Agora, devo confessar que a próxima coisa que z foi dizer uma mentira.
Perdoai-me, Senhor, mas não pude pensar em nenhuma outra maneira de
encontrar esse sr. Osborne caso ele fosse de fato culpado de um furto. Enviei
um correiograma elétrico para ele, alegando ser o sr. Dahl, dizendo acreditar
que as relíquias doadas por ele eram roubadas e que as estava remetendo de
volta, imediatamente. Também preparei um pacote endereçado ao sr.
Osborne, a m de ser remetido por via ferroviária para San Francisco.
Troquei também meus bilhetes aéreos de modo que, em vez de pegar o voo
para o Arizona no dia seguinte, embarcarei no mesmo trem em que segue
meu pacote. Uma vez em San Francisco, tudo que tenho a fazer é vigiar a
agência dos correios e interrogar a pessoa que for recolher o pacote. Se ela
não puder justi car como adquiriu as relíquias, vou denunciá-la às
autoridades. Depois, embarcarei no trem em direção ao sul, para Los
Angeles, e de lá tomarei providências a m de seguir nalmente para as
escavações no Arizona.
Sei quanto tudo isso é pouco ortodoxo. Se o sr. Osborne tivesse fornecido
um endereço residencial, eu bateria na porta dele. O fato de que ele está
usando como endereço uma caixa postal não apenas torna mais difícil
confrontá-lo, mas também me faz pensar que ele tem motivos para
empregar tal subterfúgio. Espero que estas não sejam conclusões
precipitadas.
Guiai-me através das ações mais acertadas, Senhor. Reconheço que meu
desejo de buscar respostas, embora necessário em minhas empreitadas
cientí cas, nem sempre é adequado fora delas. Ajudai-me a saber quando é
correto continuar buscando e quando é preferível abandonar minhas
dúvidas. Deixai-me continuar sendo sempre inquisitiva, mas nunca
descon ada.
Amém.
• • •

Senhor, eu me posto em vossa presença e peço que vossa luz ilumine meu
coração no momento em que volto a contemplar este dia, para que eu possa
ver com mais clareza a vossa graça em tudo que aconteceu.
Tal como eu temia, as relíquias da lojinha eram de fato roubadas. Mas
não quero me deter nesse fato e ignorar todo o resto. O dia de hoje me deu
numerosas razões para pensar em vós, e não devo ignorá-las.
Meu primeiro dia em San Francisco começou bem. Dou graças pela noite
repousante que tive na cama de um hotel. Os dias que passei viajando de
trem cobraram um preço alto, ou, melhor dizendo, as noites. Sempre tive
di culdade para dormir em trens, de modo que eles são minha última opção
para viajar. Preferiria mil vezes atravessar um deserto de carro e dormir ao
ar livre.
San Francisco é uma cidade onde é impossível esquecer vossa presença,
Senhor. No momento em que deixei o hotel, uma pessoa me abordou
pedindo donativos para a Catedral de Yosemite. Suponho que estejam
postados diante de todos os hotéis, tendo como alvos os visitantes de fora,
uma vez que os moradores da cidade já devam estar cansados daquilo. Não
doei nada, mas admirei as pinturas nas placas que estavam em exposição
bem ali ao lado. Havia belas reproduções de como deverá car a catedral
assim que as obras forem concluídas. Fiquei impressionada por uma que
mostrava a galeria principal, iluminada pelo sol poente. Li em algum lugar
que essa galeria deverá ter trezentos metros de altura, do chão ao teto, e a
pintura representava muito bem essa imensa escala.
Ninguém pode negar, Senhor, que vós esculpistes uma paisagem de
grande beleza na superfície da Terra. Tive a sorte de poder visitar três
continentes, onde vi falésias de calcário branco, des ladeiros de arenito,
colunas de basalto — tudo espetacular. Mas, para mim, a consciência de que
eles não passam de uma fachada decorativa acaba relativizando minha
apreciação. Talvez seja minha mente cienti camente treinada que me faz
querer ir mais fundo. Tenho muito mais reverência pelo granito que jaz por
baixo da superfície de tudo aquilo, o oceano de pedra de que a Terra é de
fato constituída. Assim, é nos lugares onde vejo esse granito exposto, nos
lugares onde a verdadeira essência da Terra é visível, que sinto uma
comunhão mais profunda com vosso trabalho de criação.
O vale do Yosemite é um desses lugares, e eu gostaria de ter podido
visitá-lo um século atrás, quando ele era virgem e intocado. Vi fotogramas
das formações de rochas antes de elas começarem a ser escavadas, e era
magní co. Não quero com isso criticar a decisão da arquidiocese. Ou talvez
queira. Perdoai-me, Senhor. Sei que a Catedral de Yosemite será uma
extraordinária fonte de inspiração depois que estiver concluída, e espero que
isso ocorra durante meu tempo de vida. Sem dúvida vai fazer com que um
número incalculável de pessoas se aproxime de vós. O que acho, apenas, é
que a visão da montanha de granito, por si só, poderia ter o mesmo efeito.
Será errado da minha parte questionar se a construção de catedrais é
mesmo, à medida que nos aproximamos do século XXI, a melhor utilização
de tantos milhões de dólares e o esforço de gerações inteiras? Reconheço que
um projeto mais longo que a extensão de uma vida humana induz em seus
participantes aspirações que vão além da esfera temporal. Entendo até a
motivação para se escavar uma catedral no interior do próprio substrato da
Terra, criando assim um monumento às arquiteturas humana e divina. Mas
para mim a ciência é a verdadeira catedral moderna, um edifício do
conhecimento, tão majestoso quanto qualquer outro feito de pedra. Ela
concretiza os mesmos objetivos da Catedral de Yosemite e ainda mais, e eu
gostaria que mais pessoas fossem capazes de entender isso.
Talvez eu esteja apenas com inveja da capacidade da Igreja em arrecadar
dinheiro — perdoai-me, Senhor, se for esse o caso. Eles estão tentando
celebrar vossa glória, Senhor, tanto quanto nós da comunidade cientí ca,
então não posso discordar deles em demasia. O que temos em comum é
mais importante do que nossas diferenças.
Fui à agência dos correios onde Martin Osborne recebia sua
correspondência e sentei no banco de uma parada de ônibus do outro lado
da rua. Eu tinha lacrado o pacote com uma ta adesiva colorida para
reconhecê-lo com facilidade, e precisei apenas car à espera e de olhos
atentos. Não me senti à vontade e achei que chamava um pouco a atenção,
pois as pessoas chegavam, subiam nos ônibus, e eu permanecia ali. Passou-
se uma hora, depois outra, e mais de uma vez me perguntei se tinha bem
planejado aquilo tudo. Estou mais acostumada a caçar ossos enterrados do
que presas vivas, Senhor, sei tão pouco a respeito das artes da emboscada e
da camu agem.
Por m, avistei o pacote. Quase me passou despercebido, porque eu
estava esperando ver um homem, mas foi uma mulher bastante jovem que
saiu com ele e o pousou na calçada enquanto acenava para um táxi. Não
teria mais do que dezoito anos, talvez até menos, jovem demais para ser
funcionária de um museu. De início, imaginei que ela fosse uma cúmplice
de Martin Osborne, talvez alguém que ele tivesse cooptado para seu plano,
mas depois achei que estava sendo tão chauvinista quanto aqueles homens
cujos preconceitos tantas vezes me causam irritação.
Aproximei-me dela e perguntei se ela era “Martin Osborne”. Ela hesitou
por um longo momento e depois, admitindo que tinha sido descoberta,
disse: “Sim, sou. Foi você quem enviou o correiograma?” Respondi que sim.
Eu estava preparada para reagir a acusações ferozes por parte do marginal
que esperava encontrar, mas, quando me deparei com aquela jovem, quei
sem saber como agir. Apresentei-me, e ela disse que seu nome era
Wilhelmina McCullough. O sobrenome me soou familiar, e, movida por
uma súbita suspeita, perguntei-lhe se ela tinha algum parentesco com
Nathan McCullough. Ela respondeu que sim, era seu pai.
Aquilo deixou as coisas mais claras. A garota era lha do diretor do
Museu de Filoso a Natural, da Universidade da Alta Califórnia, em
Oakland. Nenhum daqueles funcionários iria estranhar a presença da lha
do diretor nas instalações do museu.
— Isto signi ca que as relíquias não estão nesse pacote? — perguntou ela.
Respondi que não estavam, e ela apanhou o pacote e o jogou numa caixa
de lixo próxima.
— Agora que me descobriu, o que vai fazer?
Expliquei que por enquanto ela poderia me contar por que tinha roubado
as relíquias do museu do pai.
— Não sou ladra, dra. Morrell. Ladrões roubam para benefício pessoal.
Eu peguei essas relíquias para o benefício de Deus.
Perguntei por que motivo tinha pedido que as relíquias fossem vendidas
por um preço bem baixo, se queria contribuir com a construção da Catedral
de Yosemite.
— Acha que eu estava levantando fundos para a catedral? Não ligo a
mínima para isso. O que eu queria era que o maior número possível de
pessoas fosse capaz de admirar as relíquias. Eu teria distribuído todas elas de
graça, mas, se zesse isso, quem iria acreditar que eram de verdade? Eu não
poderia vendê-las pessoalmente, então achei melhor doá-las para quem
pudesse.
Eu disse que as pessoas poderiam admirar as relíquias visitando o museu.
— Ninguém iria ver as relíquias que peguei. Estavam cobertas de poeira
nos armários. Não faz o menor sentido a universidade acumular tanta coisa
que não consegue exibir.
Argumentei que todos os curadores de museus gostariam de poder expor
mais material de suas coleções. Expliquei que é por isso que promovem
rodízio de exposições.
— Há uma quantidade enorme de itens que jamais serão expostos —
respondeu ela.
Não pude negar aquilo. Ela tirou um objeto da bolsa: era uma concha
primordial, com uma secção lisa seguida por uma série de anéis de
crescimento.
— Eu mostro esta aqui às pessoas quando lhes falo a respeito de Deus, e
todos que a veem cam impressionados. Pense em quantas pessoas teriam a
fé reforçada se pudessem contemplar as relíquias que cam trancadas nos
porões do museu. Estou apenas tentando fazer bom uso delas.
Perguntei há quanto tempo ela vinha subtraindo relíquias do museu, e ela
disse que tinha começado recentemente.
— A fé das pessoas vai ser submetida a testes em breve, e algumas delas
vão precisar de algum tipo de reforço. Por isso é importante que as relíquias
estejam acessíveis, para dissipar as dúvidas das pessoas.
Perguntei-lhe quais testes seriam aqueles.
— Há um artigo cientí co que vai ser publicado em breve — contou ela.
— Sei a respeito dele porque meu pai o recebeu para examinar. Quando as
pessoas o lerem, muitas vão perder a fé.
Perguntei se o artigo tinha conseguido abalar a fé dela, e a jovem deu de
ombros.
— Minha fé é absoluta. Já a do meu pai...
A ideia de que o pai dela pudesse estar sujeito a uma crise de fé me
parecia inacreditável: sendo um cientista, ele seria a última pessoa a ter
motivos para dúvida. Perguntei-lhe que tipo de artigo cientí co era aquele.
— É sobre astronomia — disse ela.
Admito, Senhor, que nunca dei muita importância à astronomia. Sempre
me pareceu a mais entediante das ciências. As ciências da vida são
aparentemente ilimitadas: a cada ano, descobrimos novas espécies de plantas
e de animais, e com isso aprofundamos nossa admiração por vossa
engenhosidade ao criar tudo que existe na Terra. O céu noturno, ao
contrário, é uma coisa tão nita. Todas as cinco mil, oitocentas e setenta e
duas estrelas foram catalogadas em 1745, e desde então nem uma só foi
descoberta. Sempre que os astrônomos examinam uma delas mais
detalhadamente, con rmam que é idêntica, em tamanho e composição, a
todas as demais, e para quê? É da própria essência das estrelas que elas
tenham tão poucas características. Elas são o pano de fundo de encontro ao
qual a Terra se destaca, para nos lembrar de quanto somos especiais.
Escolhê-las para objeto de estudo sempre me pareceu algo comparável a
tentar saborear o prato em que os alimentos são servidos.
Desse modo, não me surpreendeu saber que um artigo cientí co sobre
astronomia poderia fazer algumas pessoas perderem de vista o que é
realmente importante, embora eu esperasse ver essa reação num leigo, não
num cientista. Perguntei a Wilhelmina sobre o que dizia o artigo, e ela
respondeu: “Absurdos.” Pedi-lhe que fosse mais especí ca, mas tudo que ela
comentou foi que se tratava de uma teoria destinada a semear a dúvida.
— E tudo com base em coisas avistadas por um telescópio! — disse ela.
— Cada relíquia que eu distribuo é uma prova concreta, que a pessoa pode
tocar com a própria mão, sabe que aquilo é verdade porque pode sentir.
Ela pressionou a concha na minha mão e esfregou meu polegar para a
frente e para trás, entre a área lisa e a área coberta de anéis.
— Como é que alguém pode ter dúvidas sobre isso?!
Eu disse a Wilhelmina que precisava conversar com os pais dela sobre o
que ela havia feito. Ela não pareceu se preocupar.
— Não vou pedir desculpas por ter trazido as pessoas para mais perto de
Deus. Sei que para isso andei violando algumas regras, mas são as regras que
precisam mudar, não o meu comportamento.
Eu disse que as pessoas não podem sair desobedecendo às regras só
porque não concordam com elas, e que a sociedade deixaria de funcionar se
todo mundo se comportasse assim.
— Não seja boba — retrucou ela. — Você mentiu quando enviou aquele
correiograma dizendo que era o sr. Dahl. Por quê? Porque você acredita que
todo mundo é livre para mentir? Claro que não. Você avaliou a situação e
concluiu que a mentira era justi cada. Está preparada para assumir a
responsabilidade pelo que fez, não está? Bem, eu também estou. É isso que a
sociedade espera de nós, e não que obedeçamos a regras sem pensarmos por
conta própria.
Eu gostaria de ter tido aquela mesma autocon ança quando tinha a idade
dela. Na verdade, gostaria de tê-la naquele mesmo instante. É só quando
estou executando um trabalho de campo que me vem a certeza de estar
seguindo vossa vontade, Senhor. Mas, quando se trata de assuntos dessa
natureza, paira sempre alguma incerteza em minha mente.
— Meu pai está hoje em Sacramento — disse Wilhelmina. — Se quiser
conversar com ele, pode vir a nossa casa amanhã pela manhã, antes das
nove.
Eu disse que era melhor que ela estivesse presente também, e ela pareceu
ofendida.
— Claro que vou estar presente. Não me envergonho do que z. Não
ouviu o que acabei de dizer?
Amanhã, portanto, vou conversar com o dr. McCullough e sua esposa.
Nada disso aconteceu do jeito que eu imaginava quando deixei Chicago.
Estava pronta para levar um criminoso à justiça, e em vez disso vou
comunicar a um pai e uma mãe o mau comportamento de uma lha. Ela
não é uma criança, e também não é uma criminosa, mas não tenho certeza
de como devo classi cá-la. Se ela fosse uma criminosa, minha posição seria
mais segura. Em vez disso, estou perplexa.
Ajudai-me a entender os posicionamentos das outras pessoas, Senhor,
mesmo sem compartilhá-los. Ao mesmo tempo, dai-me forças para não
fazer vista grossa às más ações simplesmente por serem cometidas por uma
pessoa bem-intencionada. Permita que eu manifeste compaixão, mas que
me mantenha rme em minhas convicções.
Amém.
• • •

Senhor, estou muito amedrontada por causa das coisas que ouvi hoje.
Preciso desesperadamente de vossa orientação. Por favor, ajudai-me a impor
algum sentido a tudo que me aconteceu.
Tomei a balsa para Oakland hoje, e lá aluguei um carro para ir até o
endereço fornecido por Wilhelmina. Uma criada abriu a porta. Eu me
apresentei e disse que precisava conversar com os McCullough a respeito da
lha deles, Wilhelmina. Eles apareceram um minuto depois.
— Você é uma das professoras de Mina? — perguntou o dr. McCullough.
Expliquei que sou arqueóloga e trabalho no Museu de Filoso a Natural
de Boston. A sra. McCullough reconheceu meu nome.
— Você escreve aqueles textos de popularização cientí ca — disse ela. —
Como cou conhecendo nossa lha?
Sugeri que entrássemos para conversar. Os dois se viraram e olharam
para Wilhelmina, que estava parada na escada, no fundo do cômodo, e me
deixaram entrar.
Depois que nos instalamos no escritório do dr. McCullough, contei para
eles como cheguei à suspeita de que as relíquias estavam sendo subtraídas
dos depósitos do museu, e também como descobri que Wilhelmina estava
por trás daquilo. O dr. McCullough se virou para Wilhelmina e perguntou se
tudo aquilo era verdade.
— Sim, é verdade — disse ela, sem demonstrar vergonha nem
agressividade.
O dr. McCullough estava incrédulo.
— Mas por que você faria tal coisa?
— Você sabe por quê. Para fazer as pessoas se lembrarem daquilo que
elas esqueceram.
O rosto dele se avermelhou.
— Vá para seu quarto. Conversaremos mais tarde — avisou ele.
— Quero conversar agora — disse ela. — Vocês não podem continuar
negando...
— Faça o que seu pai mandou — pediu a sra. McCullough.
Wilhelmina se afastou com relutância, e o dr. McCullough se virou para
mim.
— Obrigado por chamar minha atenção para estes fatos — disse ele. —
Pode ter certeza de que nenhum outro item pertencente às coleções da
universidade será retirado de suas instalações.
Falei que estava agradecida por ouvir aquilo, mas que gostaria de saber
qual a motivação por trás dos atos de Wilhelmina. Ela parecia estar reagindo
a algo que ele teria feito ou dito. Era verdade?
— Isso não deve preocupá-la — comentou ele. — Vamos resolver tudo
como um problema de família.
Disse ao dr. McCullough que não tinha intenção de ser invasiva, mas que
o roubo de material pertencente ao museu poderia ser legitimamente
considerado um problema de interesse dos patrocinadores, e que eu
precisava de uma explicação mais detalhada para car mais confortável no
caso de não levar nada ao conhecimento deles. Perguntei ao doutor se, no
caso de nossas posições estarem invertidas, ele caria satisfeito com aquela
explicação. Seu rosto assumiu uma expressão tão irritada que, se ele fosse
meu chefe, eu deixaria o assunto de lado. Só que não era, de modo que
parecíamos ter chegado a um impasse.
Então a esposa disse a ele:
— Conte a ela sobre o artigo, Nathan. Ela fez uma viagem tão longa e,
além do mais, daqui a pouco todo mundo vai car sabendo.
O dr. McCullough cedeu.
— Muito bem, então. — Ele foi até a escrivaninha e pegou um
manuscrito. — Pediram que eu escreva um comentário para um artigo que
será publicado no Jornal de Filoso a Natural.
Ele me estendeu o manuscrito, e vi que o título era “A respeito do
movimento relativo do Sol e o éter luminífero”. Sou uma leiga a respeito do
éter, o meio condutor dos raios de luz: sei que, assim como um som tem um
alcance maior quando se desloca a favor do vento do que contra, a
velocidade da luz varia relativamente ao movimento da Terra através do éter.
Foi o que comentei com o dr. McCullough.
— Seu entendimento é correto, até esse ponto. No entanto, medições
feitas com extrema precisão sugerem que as variações na velocidade da luz
não são causadas apenas pelo movimento da Terra em torno do Sol. Em vez
disso, parece haver um vento etérico constante atravessando nosso sistema
solar por inteiro. A maior parte dos físicos acredita que isso é um fato de
pouca importância, mas o astrônomo Arthur Lawson propõe uma
explicação diferente: ele sugere que o Sol, na verdade, não está imóvel, mas
se deslocando em relação ao éter — que seria, sim, imóvel.
Era como se alguém visse uma ventania incessante soprando por um
deserto e concluísse que este estava em movimento, enquanto a atmosfera
estaria parada. O dr. McCullough se antecipou a minha objeção.
— Sim, reconheço que parece um pouco rebuscado, mas acompanhe meu
raciocínio. Lawson nos pede que suponhamos a existência de outra estrela
cujo movimento relativo ao Sol é o mesmo do vento etérico. Essa estrela
seria estacionária com relação ao éter luminífero, e consequentemente
estaria em imobilidade absoluta.
“Só há pouco tempo os astrônomos começaram a mapear os movimentos
propriamente ditos das estrelas, mas já puderam detectar alguns padrões
gerais, de modo que Lawson começou a observar a secção do céu onde as
velocidades das estrelas são semelhantes à do vento etérico. Ele encontrou
várias estrelas cujas velocidades são aproximadas, mas nenhuma com
velocidade idêntica à observada por ele.
“Então, ele chegou a 58 Eridani, uma estrela na constelação de Eridanus.
Com base no efeito Doppler de sua luz, Lawson concluiu que 58 Eridani
estava se movendo em nossa direção a uma velocidade de milhares de
quilômetros por segundo. Isso por si só já seria extraordinário, mas
medições posteriores demonstraram que esse movimento não era
consistente, se alternava. A estrela estava se movendo em nossa direção e
depois se afastando, sempre numa velocidade de milhares de quilômetros
por segundo.”
Argumentei que aquilo era resultado de algum erro de medição.
— Lawson também achou isso. Mas, depois de eliminar todas as causas
possíveis de erro, ele pediu a astrônomos de outro observatório para darem
uma olhada: eles con rmaram aquelas descobertas. Juntos, eles
estabeleceram o fato de que o movimento de 58 Eridani variava num
período de exatamente vinte e quatro horas. Lawson acredita que ela está se
movendo num círculo.
Perguntei se não se tratava de uma órbita em torno de um astro maior, e
ele disse que um objeto deslocando-se daquela maneira não poderia estar
sendo retido pela gravidade. Aquilo colocava em xeque tudo que sabíamos
sobre a mecânica celeste. Indaguei se ele achava que um fato como aquele
podia ser considerado miraculoso, se não seria uma prova mais que evidente
de vossa constante e ativa intervenção no universo, Senhor.
— Evidente que sim — disse o dr. McCullough. — Mas a verdadeira
questão diz respeito ao signi cado desse milagre. O que nos diz esse
prodígio sobre os desígnios divinos?
“Bem, Lawson sugere uma explicação. Ele imagina que 58 Eridani está,
na verdade, orbitando em torno de um corpo celeste menor, pequeno
demais para ser detectado daqui, um planeta do tamanho da Terra. A estrela
está se deslocando de tal modo que produz um ciclo de dia e noite, com
duração de vinte e quatro horas, para um planeta estacionário. Ele acredita
que isso con gura um sistema solar geocêntrico.
“E ele vai mais além. Sugere que 58 Eridani está orbitando em volta de
um planeta estacionário em relação ao éter luminífero, o que quer dizer que
ele é o único objeto no universo que está absolutamente imóvel. Nesse
planeta, e apenas nesse planeta, a velocidade da luz seria exatamente a
mesma, não importa em que direção essa luz se movesse. E, embora não
haja meios para detectar se há vida nesse planeta, Lawson sugere que ele seja
habitado, e que seus habitantes sejam a razão pela qual Deus criou o
universo.”
Fiquei sem fala por alguns instantes. Depois perguntei como Lawson
explicava a existência da humanidade e a vida sobre a Terra. O dr.
McCullough pegou o manuscrito que eu segurava e folheou as páginas até
encontrar a seção que tinha em mente. Então me devolveu os papéis.
Ao ler, vi que Lawson propunha três hipóteses para a presença da
humanidade. A primeira era de que a humanidade teria sido o resultado de
um ato de criação em separado, um experimento ou um teste realizado
como ensaio para a atividade principal. A segunda era que a criação da
humanidade teria sido um efeito colateral não previsto, uma espécie de
“vibração simpática” induzida pela semelhança do nosso sistema solar com
o de 58 Eridani. A terceira era de que a humanidade na Terra teria sido de
fato a tarefa principal, e que a vida em 58 Eridani seria o ensaio ou o efeito
colateral. Ele rejeitou a última hipótese, classi cando-a como improvável,
porque, se presumirmos que os milagres são um sinal da atenção de nosso
Senhor, então um milagre constante como uma estrela orbitando um planeta
é uma indicação clara do que Ele considerou mais importante.
Lawson encerrava o artigo reconhecendo que muitas de suas conclusões
eram necessariamente de natureza especulativa, e pedia que fossem
propostas outras hipóteses que explicassem os fatos tanto quanto a dele, ou
melhor. Enquanto eu olhava as páginas impressas, tentei conceber alguma
explicação alternativa, mas nenhuma me ocorreu. Ergui os olhos para
McCullough, que fez um sinal de assentimento, como se eu fosse uma
estudante que tivesse dado a resposta certa.
— É uma teoria instigante — comentou ele em tom azedo. — E ca ainda
mais quando consideramos que ela responde a muitas questões pendentes.
A multiplicidade das línguas, por exemplo.
Percebi que ele tinha razão. Por que motivo as línguas do mundo são tão
diferentes? Os lólogos têm se esforçado para reconciliar a enorme
variedade delas com a idade da Terra e a quantidade de tempo necessária
para que elas se tornem tão diferenciadas entre si. Se vós tivésseis inculcado
em todos os humanos primordiais o conhecimento de uma língua em
comum, Senhor, nossa expectativa seria de que todas as línguas do mundo
tivessem algum grau de semelhança, como ocorre com as línguas indo-
europeias. Mas as imensas diferenças entre as línguas do mundo signi cam
que deve ter havido mais de uma dúzia de línguas distintas sendo faladas
imediatamente após a criação. Temos nos perguntado tanto por que teríeis
feito assim, Senhor. Mas, se as populações distintas dos homens primordiais
tivessem inventado suas linguagens de modo independente, então não
haveria enigma a solucionar: a multiplicidade de línguas seria acidental, e
um projeto a ser seguido.
— Bem, agora você já sabe — disse o dr. McCullough. — O artigo vai ser
publicado em breve e todos vão lê-lo. Eu gostaria de recomendar que ele
fosse recusado, mas não pude encontrar nenhuma razão plausível. Meu
compromisso com a prática cientí ca me obrigou a aprovar o texto. — Ele
fez uma careta. — Mas e se toda a nossa prática cientí ca estiver
fundamentada em falsas premissas? Quando era menino, eu desejava que
Deus tivesse dado aos homens primordiais o dom da escrita, porque assim
eles teriam sido capazes de anotar as datas em que novas estrelas apareciam
no céu noturno. Então, saberíamos com precisão a distância de cada uma
delas, porque saberíamos, com exatidão de dias, quando a luz de cada uma
delas chegou à Terra pela primeira vez. Mas o homem só veio a inventar a
escrita muito tempo depois do aparecimento das estrelas, de modo que os
astrônomos são forçados a usar meios indiretos para deduzir suas distâncias.
Meus professores diziam: Deus quer que raciocinemos por conta própria.
Mas se isso não for verdade? E se... — a voz dele falhou nesse ponto — ... e
se Deus não tiver nenhum projeto para nós, no m das contas?
Era esta a crise de fé a que Wilhelmina se referia. Tentei confortá-lo,
desajeitadamente, dizendo que tal descoberta era desconcertante, mas que
ainda podíamos manter nossa fé. O dr. McCullough exclamou:
— Se é assim, você não entendeu nada!
A esposa tocou sua mão e ele reagiu, agarrando a dela, esforçando-se
para conter a emoção. Os dois caram em silêncio por algum tempo. Então
a sra. McCullough se virou para mim.
— Nós tínhamos um lho, dez anos mais velho do que Mina — contou
ela. — O nome dele era Martin. Ele morreu de in uenza.
Eu disse que sentia muito. Lembrei-me de que “Martin” era o nome
usado por Wilhelmina ao fazer a doação das relíquias.
— Você não tem lhos, então não pode compreender como é essa dor —
comentou o dr. McCullough.
Concordei, e a rmei que agora eu percebia por que motivo aquela
descoberta era problemática para eles dois.
— Percebe mesmo? — indagou ele.
Expliquei meu modo de ver a questão: a única coisa que tinha tornado
suportável a morte do lho deles era a consciência de que tudo era parte de
um plano mais vasto. Mas, se a humanidade não fosse de fato o foco de
vossa atenção, Senhor, então tal plano não existe, e a morte do rapaz não
tinha propósito algum.
O dr. McCullough continuou impassível, mas sua esposa assentiu.
— Eu aprecio seus livros, dra. Morrell — disse ela. — Eles me fazem
lembrar as coisas que Nathan dizia quando era meu professor, antes de nos
casarmos. Nas aulas que mostrava como as indagações cientí cas
proporcionam as bases mais sólidas para a fé. Ele dizia “As convicções
pessoais podem variar, mas o mundo físico não pode ser negado”, e eu
acreditava. Assim, quando Nathan mergulhou em suas pesquisas após a
morte de Martin, isso não trouxe consolo apenas para ele, mas para mim
também.
— E eu fui bem-sucedido — comentou o dr. McCullough com calma. —
Descobri oscilações de onda no interior do Sol, os ecos da compressão
inicial que Deus usou para dar início ao colapso gravitacional responsável
pelo calor e pela luz que ele emite.
— Foi como descobrir as impressões digitais de Deus em nosso mundo
— observou a sra. McCullough. — Naquele momento, isso nos forneceu
toda a segurança de que precisávamos.
— Mas agora co imaginando se serve para provar alguma coisa —
retomou ele. — Todas as estrelas devem ter oscilações dentro de si. Não
existe nada que nos torne especiais. Nada do que a ciência descobre tem
algum signi cado.
Eu lhe disse que a ciência pode ser um bálsamo para nossas feridas, mas
que esta não deve ser a única razão para cultivá-la. A rmei que nosso dever
é buscar a verdade.
— A ciência não é apenas a busca da verdade — retrucou ele. — É a
busca de um signi cado.
Eu não soube o que responder. Sempre imaginei que essas duas coisas
eram uma coisa só, mas e se não fossem?
Não sei o que pensar. Causa-me medo pensar que vós não me escutais
durante todo esse tempo.
• • •

Cara Rosemary,
As últimas semanas têm sido muito difíceis para mim, muito mais do que
eu esperava. Estou lhe escrevendo para avisar que estou abandonando
temporariamente as escavações no Arizona.
Como lhe contei em minha última carta, achei que poderia participar
dessas escavações porque, mesmo com tudo que tem acontecido, eu
acreditava que minha a nidade com o lado físico de meu trabalho
arqueológico seria o bastante para me levar adiante, mas não foi bem assim.
As dúvidas instauradas pelas descobertas de Lawson estão roendo minha
mente como ratos famintos. Alguns dias atrás cheguei a ponto de pensar, ao
remover uma ponta de lança do solo: de que adianta? Tudo que estamos
fazendo aqui é irrelevante. Tive de interromper o trabalho por medo de
acabar dani cando algum artefato com o martelo, por pura frustração. Foi
quando percebi que precisava abandonar a escavação. Não sei se havia um
risco real de causar tal tipo de dano, mas o simples fato de aquela
possibilidade surgir em minha mente me mostrou que eu não estava em
condições de prosseguir.
Estou instalada num chalé alugado a uma hora de distância da escavação.
Não consegui explicar a ninguém o motivo de meu afastamento, porque
acredito que não seria adequado fazer comentários sobre o artigo de Lawson
antes de sua publicação. Talvez isso contribua para meu senso de isolamento
enquanto estive lá, mas acho que o motivo maior foi o fato de me sentir
afastada de Deus. Preciso de algum tempo para decidir o que farei agora.
Você me perguntou se a Igreja não devia estar tão abalada por essa
descoberta quanto a comunidade cientí ca secular, e a isso respondo que
sim, ela deve. Mas a Igreja, como instituição, sempre foi capaz de extrair
forças das evidências, quando elas são úteis, e de ignorá-las, quando não são.
Veja a história de Adão e Eva. A Igreja estava pronta para reconhecer que ela
não exprimia uma verdade literal depois que foram descobertos os
esqueletos dos humanos primordiais por todo o mundo, mas insistiu que
essa história continuava a ter uma importância fundamental como alegoria.
E eu, você e todas as mulheres continuamos a viver à sombra de Eva, sem
nenhum outro motivo além do hábito. Espero, portanto, que ela seja capaz
de explicar essa descoberta de maneira semelhante e usá-la para defender os
mesmos valores, como sempre.
Suponho que alguém possa argumentar que a ideia do poligenismo está
presente há séculos, de modo que não foi nenhuma surpresa quando as
descobertas arqueológicas a con rmaram. E é verdade. Os cientistas da
Igreja vêm lutando há muito tempo para explicar como um único casal
poderia ter povoado a Terra tão rapidamente, portanto eles devem ter
considerado teorias alternativas, nos seus debates internos, antes de serem
forçados a mudar a versão o cial. Em contrapartida, nunca ouvi nenhum
argumento sério a rmando que a humanidade não fosse o propósito da
criação — antes do artigo de Lawson. De modo que talvez os cientistas da
Igreja quem tão chocados quanto eu, antes que sua lealdade à doutrina
consiga tranquilizá-los outra vez.
O problema para mim, como cientista secular, é que minha fé sempre foi,
acima de tudo, moldada pelas evidências dos fatos. Admito que antes disso
tudo eu não tinha dado à astronomia a devida importância para o
entendimento profundo de nossa condição, mas agora reconheço que estava
errada. E se adotarmos a premissa de que a humanidade foi a razão para a
criação, então isso deve estar re etido no céu que nos cobre, tanto quanto na
terra sob nossos pés. Se a humanidade é o motivo central do universo, se
nossa espécie é o ônfalo, então um exame mais rigoroso da esfera celeste
deveria con rmar esse status privilegiado. Nosso sistema solar deveria ser o
ponto xo em relação ao qual tudo o mais se desloca. Nosso Sol deveria
estar em imobilidade absoluta. Se as provas não con rmam tal premissa,
então devemos nos perguntar para que direção nossa convicção deve se
voltar.
Posso entender, Rosemary, que tudo isso não cause em você e em Alfred
a mesma perturbação que causa em mim. Não sei como a maioria das
pessoas vai reagir quando a descoberta de Lawson se tornar pública.
Wilhelmina McCullough havia dito que muitos reagiram da mesma maneira
que o pai dela, inclusive eu. Eu gostaria que isso não tivesse me afetado tão
profundamente. Quem me dera poder escolher as coisas que vão me
preocupar. Mas não podemos.
Mas, se achar que isso a perturba, que certa de que pode me contar suas
preocupações, sejam quais forem. Cada um de nós deve encontrar a própria
maneira de atravessar essa oresta de dúvidas, e só vamos conseguir com o
apoio dos demais.
Com muito amor, sua prima
Dorothea
• • •

Senhor, talvez não estejais ouvindo minhas preces. Mas nunca orei com a
expectativa de que isso iria in uir em vossos atos. Orei com a expectativa de
in uenciar os meus. E é assim que estou orando agora, pela primeira vez em
dois meses, porque mesmo que não estejais me ouvindo, preciso da clareza
de pensamento que a prece nos dá.
Abandonei a escavação porque temia que a descoberta de Lawson
tornasse sem sentido toda aquela empreitada. A razão de as pontas de lança
descobertas pelo dr. Janssen serem tão entusiasmantes era o fato de que
restava nelas material su ciente para que pudéssemos usar seus anéis de
crescimento com o objetivo de identi car os anos em que elas foram
fabricadas. Se pudéssemos identi car tendências na técnica de fabricação de
pontas de lança em pedra, nossa esperança era a de descobrir se a habilidade
dos fabricantes cresceu ou diminuiu nas primeiras gerações após a criação, e
a partir disso deduzir quais seriam vossas intenções com respeito ao
conhecimento humano, Senhor. Mas isso se baseava na suposição de que os
humanos primordiais eram a expressão mais direta de vossa vontade. Se a
criação da humanidade não foi deliberada, de vossa parte, então quaisquer
talentos que os humanos primordiais possuíssem não nos diriam nada sobre
vossas intenções. Seus dons seriam algo puramente acidental.
Desde que estou aqui nesse chalé, tenho passado muito tempo pensando
até onde iriam os conhecimentos dos humanos primordiais. Eles não
poderiam ter nascido com as mentes em branco, como um recém-nascido,
porque morreriam rapidamente de fome num ambiente como aquele.
Mesmo os lhotes de tigre têm de aprender com a mãe como caçar para si
mesmos. Não há como alguns seres humanos, partindo do zero, aprenderem
a caçar para comer antes de morrerem de fome. Os humanos primordiais
devem ter tido algum conhecimento a respeito de caça e da construção de
abrigos. Terá sido este um dos experimentos vossos, Senhor? Determinar o
mínimo de habilidades necessárias para que uma espécie pudesse
sobreviver? Ou talvez não passasse de mais um efeito colateral involuntário,
um eco distante de algum tipo de informação inculcada por vós nos
habitantes primordiais de 58 Eridani?
Há outro tipo de informação, tão vital quanto o talento para a
sobrevivência, que eu suponho ser algo que os humanos primordiais
possuíam desde que abriram os olhos: o fato de terem sido criados com um
propósito. A possibilidade de que não soubessem disso é algo em que não
consigo parar de pensar. Em vez de se sentirem cheios de orgulho e
ambições, eles devem ter cado amedrontados e confusos durante seus
primeiros dias. Tento imaginar como seria alguém despertar, com o corpo
plenamente formado, possuindo algumas habilidades mas sem um passado
que pudesse lembrar, perdido no mundo por entre outros amnésicos. Para
mim, parece aterrorizante — mais aterrorizante do que o que tenho vivido
nas últimas semanas.
E isso leva a outra questão. Por que os homens primordiais teriam se
dedicado a construir uma civilização, se não fosse por um desejo de cumprir
um propósito divino? Proteger-se do frio e da fome poderia lhes dar
motivação para satisfazer essas necessidades básicas, mas por que teriam ido
tão além delas? Por que passaram a inventar todas as formas de arte e
tecnologia que tornaram a humanidade o que ela é hoje, se não fosse para
cumprir vossa vontade, Senhor?
Eu não sei, mas esbocei uma teoria.
A arqueologia pode não ser uma ciência exata como a física, mas ela
depende da física para lhe fornecer uma base. São as leis físicas que nos
possibilitam estudar o passado — examinando o estado do universo bem de
perto, podemos inferir seu estado num momento anterior. Cada momento
brota inexoravelmente do momento que o precedeu, e é inexoravelmente
seguido pelo próximo, como elos forjados numa corrente de causas e efeitos.
Mas o instante da criação é o ponto onde todas as correntes de
causalidade se interrompem. As inferências podem nos conduzir até aquele
ponto, mas não além dele. É por isso que a criação do universo é um
milagre, porque o que ocorreu naquele momento não é uma consequência
necessária do que ocorreu antes. Aquela concha primordial que Wilhelmina
leva consigo é, sem dúvida, uma prova de algo: não dos planos de Deus para
a humanidade, mas da existência de milagres. Aquela borda sem anéis de
crescimento marca o limite do poder explicativo das leis físicas. E isso é algo
capaz de nos trazer inspiração.
Porque acho que existem eventos de outra categoria, eventos que também
não estão condicionados a uma cadeia de causalidade: os atos de volição. O
livre-arbítrio é uma espécie de milagre — quando fazemos uma escolha
genuína, produzimos um resultado que não pode ser reduzido ao
funcionamento das leis físicas. Todo ato de volição é, como a criação do
universo, uma primeira causa.
Se não tivéssemos provas do milagre da criação, poderíamos pensar que
as leis físicas bastariam para explicar todos os fenômenos do cosmos, o que
nos levaria a concluir que nossa própria mente não passava também de
processos da natureza. Mas sabemos que existe mais do que as leis físicas
podem abarcar naquilo que observamos — milagres acontecem, e as
escolhas humanas decerto estão entre eles.
Acredito que os humanos primordiais zeram uma escolha. Eles se viram
num mundo pleno de possibilidades e sem ninguém para guiá-los sobre o
que fazer. Eles não zeram o que teríamos esperado, ou seja, não se
limitaram a sobreviver. Em vez disso, procuraram se aperfeiçoar a ponto de
se tornarem os senhores do mundo.
Nós, cientistas, estamos numa situação parecida. As provas sempre
estiveram à vista para serem descobertas: as árvores sem anéis de
crescimento, as múmias sem umbigos, os movimentos de 58 Eridani. Cabe a
nós decidir o que fazer com elas. Nós sempre as vimos como fatores
determinantes do sentido da nossa vida, mas isso não era algo inevitável.
Transformá-las nisso foi uma escolha nossa, o que signi ca que podemos
fazer a escolha oposta.
Devotei minha vida inteira ao estudo do mecanismo maravilhoso que é o
universo, e isso me trouxe um profundo senso de realização. Sempre tive
como certo que, ao fazer isso, estava agindo de acordo com vossa vontade,
Senhor, e com vossas razões para me trazer à existência. Mas se de fato for
verdade que vós não tendes nenhum propósito em relação a mim, então
meu senso de realização brotou unicamente dentro de mim mesma. E isso
demonstra, aos meus olhos, que nós, humanos, somos capazes de criar um
sentido para nossa própria vida.
Não a rmo que vai ser uma caminhada fácil. Não tenho nada a oferecer
aos McCullough, exceto minha esperança de que eles encontrem um sentido
para suas vidas, apesar da ausência do lho. Mas nossa vida já passou por
di culdades, mesmo quando acreditávamos estar obedecendo a um desígnio
divino, e perseveramos. Se de fato estivemos sempre entregues as nossas
forças, então nossos triunfos são, apesar de tudo, uma prova de nossa
capacidade.
Portanto, vou retornar para a escavação do Arizona, Senhor, sob vossos
olhos vigilantes ou não. Mesmo que a humanidade não seja o motivo da
criação do universo, eu ainda quero entender de que modo ele funciona.
Nós, seres humanos, talvez não sejamos a resposta para o “por quê”, mas
continuarei buscando a resposta para o “como”.
Essa busca é o propósito da minha vida, não porque vós me escolhestes,
Senhor, mas porque eu mesma o escolhi.
Amém.
NAT BEM QUERIA ter fumado um cigarro, mas as normas da empresa proibiam
que se fumasse na loja, de modo que ela foi cando cada vez mais nervosa.
Já faltavam quinze para as quatro, e Morrow ainda não voltara. Ela não sabia
como se explicaria caso ele não voltasse a tempo. Mandou uma mensagem
de texto perguntando onde ele estava.
Sininhos soaram quando a porta da frente se abriu, mas não era Morrow.
Um homem de suéter cor de laranja entrou.
— Olá! Eu tenho um prisma para vender.
Nat pousou o celular.
— Certo. Vamos dar uma olhada nele.
O homem se aproximou e pôs o prisma em cima do balcão. Era um
modelo novo, do tamanho de uma pasta de documentos. Nat o girou para
ver o mostrador numérico do outro lado: a data de ativação era de apenas
seis meses atrás, e mais de noventa por cento da sua capacidade ainda estava
disponível. Ela deslizou o teclado para revelar a tela, apertou o botão ON-
LINE e cou à espera. Passou-se um minuto.
— Ele deve estar captando muito tráfego — disse Suéter Laranja, meio
inseguro.
— Tudo bem — respondeu Nat.
Depois de mais um minuto, a luzinha se acendeu. Nat digitou:

Teste de teclado.

Alguns segundos depois veio a resposta:

Parece bom.

Ela mudou para modo visual, e o texto na telinha foi substituído por uma
imagem granulada do rosto dela olhando para si mesma.
Aquele eu paralelo fez um aceno de cabeça para ela.
— Teste de microfone.
— Som perfeito — respondeu ela.
A tela reverteu para texto. Nat não tinha reconhecido o colar que o eu
paralelo usava. Se eles acabassem comprando aquele prisma, ia ter que
perguntar onde ela o conseguira. Olhou para o rapaz de suéter laranja e
ofereceu um preço.
O desapontamento dele foi visível.
— Só isso?
— É o que ele vale.
— Pensei que essas coisas cassem mais valiosas com o passar do tempo.
— E cam. Mas se ele tivesse uns cinco anos de uso, a conversa seria
outra.
— E se lá na outra rami cação estiver acontecendo algo bem
interessante?
— Sim, nesse caso valeria mais. — Nat apontou para o prisma. — Tem
alguma coisa interessante acontecendo lá?
— Eu... não sei.
— Você vai ter que pesquisar isso primeiro e trazer de novo aqui, se
quiser uma oferta melhor.
Suéter Laranja hesitou.
— Se quiser pensar melhor e voltar aqui depois, estamos à disposição —
concluiu ela.
— Pode me dar um minuto?
— À vontade.
Suéter Laranja assumiu o teclado e teve uma breve troca de mensagens
com seu outro eu. Quando terminou, disse:
— Está bem, volto aqui depois — avisou depois de terminar. Dobrou o
prisma e foi embora.
O último cliente da loja tinha encerrado sua conversa e estava pronto
para desligar. Nat foi até a baia onde ele estava sentado, checou o tempo de
uso no prisma e o levou de volta ao depósito. Quando ele concluiu o
pagamento, os três clientes com hora marcada para as quatro já haviam
chegado, incluindo o que usaria o prisma que estava com Morrow.
— Só um minuto — disse ela para os três.
Ela foi ao depósito e trouxe os prismas para os outros dois clientes. Tinha
acabado de instalar os dois, cada qual em sua divisória, quando Morrow
entrou pela porta da frente, carregando uma enorme caixa de papelão, os
cotovelos erguidos. Ela foi ao encontro dele, no balcão.
— Chegou em cima da hora, hein?
Ela estava furiosa.
— Sim, sim, sei disso.
Morrow levou a caixa grande até o depósito e voltou trazendo o prisma.
Ele o instalou numa baia para o terceiro cliente com alguns segundos
faltando. Às quatro em ponto, a luzinha de cada um dos prismas se acendeu,
e os três clientes começaram a conversar com seus eus paralelos.
Nat acompanhou Morrow até o interior do escritório, por trás do balcão.
Ele puxou a cadeira e se sentou à escrivaninha como se nada tivesse
acontecido.
— E aí? Por que demorou tanto? — quis saber ela.
— Estava conversando com um dos enfermeiros da casa de repouso.
Morrow tinha acabado de chegar da visita a uma cliente. Jessica Oehlsen
era uma viúva com mais de setenta anos, quase sem amigos, e cujo lho
único era mais um peso do que um conforto. Pouco menos de um ano atrás,
ela tinha ido à loja para conversar com seu eu paralelo. Sempre reservava
uma das baias privativas, para poder usar o viva-voz. Há dois meses, tinha
sofrido uma queda e fraturado o quadril, e agora estava numa casa de
repouso. Como não podia vir até a loja, Morrow levava o prisma até lá todas
as semanas, para que ela pudesse manter suas conversas com regularidade.
Era uma violação das normas da SelfTalk, mas ela lhe pagava por esse favor
extra.
— O enfermeiro me explicou a condição da sra. Oehlsen.
— E qual é?
— Ela está com pneumonia. Dizem que acontece muito quando a pessoa
fratura o quadril.
— É mesmo? E o que tem um quadril quebrado a ver com pneumonia?
— De acordo com esse cara, é porque as pessoas cam se movimentando
muito pouco, e isso afeta a circulação do oxigênio. Elas não respiram fundo.
De qualquer modo, a sra. Oehlsen está com pneumonia, não há dúvida.
— É coisa séria?
— O enfermeiro acha que ela dura um mês, no máximo dois.
— Poxa. Que pena.
— Pois é.
Morrow coçou o queixo com seus dedos de pontas quadradas, rombudas.
— Mas isso me deu uma ideia.
Ela nem se surpreendeu com aquilo.
— E o que é, desta vez?
— Nesse caso não vou precisar de você. Vou fazer isso sozinho.
— Por mim, tudo bem. Já tenho muito o que fazer.
— É verdade, você tem uma reunião hoje à noite. Como está indo?
Nat deu de ombros.
— Ainda não dá para saber. Acho que estou fazendo algum progresso.
• • •

Todo prisma — o nome era um quase acrônimo da designação original,


“Plaga Intermundos Sinalização Mecânica” — tinha duas luzes de LED: uma
vermelha e outra azul. Quando o prisma era ativado, em seu interior se
processava uma medição quântica, com dois resultados possíveis de igual
probabilidade: um resultado era indicado pelo acender do LED vermelho,
enquanto o outro era indicado pelo azul. Daquele momento em diante, o
prisma permitia a troca de informações entre essas duas rami cações da
função de onda do universo. Em termos coloquiais, o prisma criava duas
linhas do tempo divergentes, uma onde era acesa a luz vermelha e outra
onde se acendia a azul, e permitia a comunicação entre as duas.
O intercâmbio de informação se dava pela utilização de uma matriz de
íons, isolados em cercas magnéticas no interior do prisma. Quando o prisma
era ativado e a função de onda universal se bifurcava, esses íons
permaneciam num estado de superposição coerente, equilibrados num o
de navalha, acessíveis por ambas as rami cações. Cada íon podia ser usado
para transmitir um único “bit” de informação, um sim ou um não, de um
dos ramos para o outro. O ato de ler esse sim/não fazia esse íon perder a
coesão, derrubando-o permanentemente do o da navalha, para um dos
dois lados. Para emitir um novo bit de informação, era necessário outro íon.
Com uma matriz de íons, era possível transmitir uma cadeia de bits que
codi cavam um texto. Com uma matriz de dimensões adequadas, era
possível transmitir imagens xas, sons, até mesmo vídeo em movimento.
A consequência principal disso foi constatar que um prisma não era
como um rádio conectando as duas rami cações. A ativação de uma delas
não implicava captar um transmissor cuja frequência fosse possível
sintonizar à vontade. Era mais como um bloco de notas que os dois planos
distintos compartilhavam, e cada vez que uma mensagem era enviada, uma
tira de papel era rasgada da folha. Quando aquele “bloco de notas” era usado
até o m, não era possível transmitir mais nenhuma informação entre os
dois planos, e eles seguiam seus caminhos separados, incomunicáveis daí em
diante.
Desde a invenção do prisma, os engenheiros vinham trabalhando para
aumentar o número de íons nas matrizes, tornando assim o “bloco de notas”
mais volumoso. Os modelos comerciais mais recentes tinham um gigabyte
de capacidade. Era o bastante para durar uma vida inteira se você se
limitasse a trocar mensagens de texto, mas nem todos os usuários se
satisfaziam com isso. Muitos queriam a possibilidade de manter uma
conversa ao vivo, de preferência com áudio e vídeo simultâneos, queriam ser
capazes de ouvir a própria voz e ter o próprio rosto os encarando. Mesmo
uma transmissão de vídeo em baixa resolução, com poucos frames, era
capaz de consumir o bloco de notas inteiro de um prisma numa questão de
horas — a tendência das pessoas era usá-los apenas ocasionalmente,
recorrendo mais ao texto ou às comunicações via áudio, na maior parte das
vezes, a m de permitir que seu prisma durasse o maior tempo possível.
• • •
A consulta que Dana tinha para as quatro horas era com uma mulher
chamada Teresa. Teresa era cliente há pouco mais de um ano, tinha buscado
a terapia, principalmente, por causa de sua di culdade em sustentar uma
relação romântica a longo prazo. Dana tinha pensado de início que os
problema da cliente derivavam do divórcio de seus pais, quando ela era
adolescente, mas agora descon ava que Teresa tinha uma tendência a estar
sempre buscando alternativas melhores. Na sessão da semana anterior,
Teresa lhe dissera que tinha reencontrado há pouco tempo um ex-
namorado. Cinco anos atrás ela havia recusado uma proposta de casamento
dele, e agora ele estava casado com outra pessoa. Dana tinha a expectativa
de que naquela tarde voltassem a abordar esse assunto.
Teresa costumava iniciar as sessões com gracejos, mas não foi assim
daquela vez.
— Fui à Crystal Ball durante minha hora do almoço hoje — disse ela
assim que se sentou.
— E o que foi perguntar a eles? — perguntou Dana, já prevendo a
resposta.
— Perguntei se eles podiam descobrir como teria sido a minha vida se eu
tivesse casado com Andrew.
— E o que eles disseram?
— Que talvez. Eu não tinha entendido como essas coisas funcionam. Um
homem que trabalha lá me explicou.
Teresa não perguntou se Dana sabia como era. Precisava ir direto ao
assunto, o que era um bom sinal — em geral ela tinha di culdade para botar
as ideias em ordem daquela maneira, com um mínimo de estímulo por parte
de Dana.
— Ele disse que minha decisão de casar ou não com Andrew não
produziu duas rami cações, e que somente a ativação de um prisma tinha
esse efeito. Disse que poderia dar uma olhada nos prismas que tinham sido
ativados nos meses anteriores à proposta que ele me fez. Então, eles
mandariam mensagens para as liais da Crystal Ball naquelas rami cações,
e os funcionários procurariam minhas versões paralelas, para ver se alguma
teria se casado com Andrew. Se uma “de mim” tivesse casado com ele, eles
poderiam entrevistá-la e depois me repassar o que ela falasse. Mas ele disse
que não podia garantir que uma rami cação assim seria achada, e mandar
as mensagens me custaria dinheiro, de modo que eles teriam de me cobrar,
achassem ou não o que eu queria. E, mesmo que achassem, haveria um
preço adicional se eu quisesse entrevistar minha versão paralela. Como eles
estariam recorrendo a prismas já com cinco anos de uso, tudo isso sairia
muito caro.
Dana cou aliviada ao saber que a Crystal Ball tinha sido honesta quanto
ao que podia conseguir. Ela sabia que havia buscadores de dados
prometendo resultados que não eram capazes de conseguir.
— E o que você decidiu? — perguntou.
— Não quis resolver sem falar com você primeiro.
— Tudo bem. Vamos conversar. Como se sentiu depois dessa ida à
Crystal Ball?
— Não sei. Eu não tinha considerado a possibilidade de que eles não
pudessem achar uma rami cação onde eu disse “sim” a Andrew. Por que não
poderiam achá-la?
Dana considerou a opção de conduzir a própria Teresa à resposta, mas
decidiu que não era necessário.
— Talvez isso queira dizer que sua decisão de recusá-lo não foi um
impulso. Talvez tivesse a impressão de estar dividida, mas não estava. Sua
decisão de recusar a proposta dele foi baseada em um sentimento arraigado,
não num mero impulso.
Teresa cou pensativa.
— É bom saber disso, acho. Fico pensando se não devia ter pedido a
pesquisa a eles logo naquela época. Se não acharem uma versão minha que
casou com Andrew, posso pedir que parem por aí mesmo.
— E se eles encontrarem essa versão casada com ele, qual a possibilidade
de que você peça para entrevistá-la?
Ela deu um suspiro.
— Cem por cento.
— E isso signi ca o quê, para você?
— Acho que quer dizer que não devo pedir a eles que façam essa
pesquisa se não tiver certeza de que quero saber a resposta.
— E você quer? Não, vou me expressar de outra forma. Qual a resposta
que você gostaria de ouvir e qual a resposta que tem medo de ouvir?
Teresa fez uma pausa por um minuto.
— Acho que o que eu gostaria de descobrir era que uma versão minha
casou com Andrew e depois se divorciou porque ele não era o homem certo
para mim. O que tenho medo de descobrir é que uma versão minha casou
com ele e hoje é imensamente feliz. Isso é mesquinho da minha parte?
— Nem um pouco. São sentimentos perfeitamente compreensíveis.
— Acho que preciso decidir se quero correr esse risco ou não.
— É uma maneira de encarar o problema.
— Qual seria outra?
— Outra maneira seria você avaliar se algo que viesse a aprender sobre
essa outra rami cação seria mesmo útil. Pode ser que nada que você
descubra sobre essa outra realidade possa mudar sua situação do lado de cá.
Teresa franziu a testa enquanto considerava a questão.
— Talvez não mude nada, mas eu me sentiria melhor sabendo que tomei
a decisão certa.
Teresa cou em silêncio, e Dana esperou.
— Você tem outros clientes que procuraram buscadores de dados? —
quis saber Teresa.
Dana assentiu.
— Sim. Muitos.
— De modo geral, acha que é uma boa ideia usar esses aparelhos?
— Não creio que haja uma resposta geral para isso. Depende
inteiramente de cada indivíduo.
— E você não vai me dizer se eu devo ir em frente ou não.
Dana sorriu.
— Você sabe que a minha função não é essa.
— Sei, mas não custa con rmar. Ouvi dizer que algumas pessoas cam
obcecadas pelos prismas.
— Sim, pode acontecer. Na verdade, faço parte de um grupo de apoio
para pessoas cujos prismas acabaram se tornando um problema.
— É mesmo?
Por um instante, pareceu que Teresa pediria mais detalhes, mas em vez
disso perguntou:
— E não vai me aconselhar a não procurar de novo os serviços da Crystal
Ball?
— Algumas pessoas têm problemas com o álcool, mas nem por isso vou
dizer a meus clientes que não tomem um drinque.
— Acho que faz sentido. — Teresa fez outra pausa antes de perguntar: —
E você? Já usou esses serviços?
Dana abanou a cabeça.
— Não, nunca usei.
— Nem teve vontade?
— Não mesmo.
Ela olhou para Dana com curiosidade.
— Você nunca imagina que pode ter feito uma escolha errada.
Eu não preciso imaginar. Eu sei. Mas, em voz alta, Dana respondeu:
— Claro. Mas procuro me focar no aqui e agora.
• • •

As duas rami cações do tempo conectadas por um prisma começam


idênticas, exceto pelo resultado da medição quântica. Se uma pessoa
resolver basear nessa medição uma decisão de tremendas consequências —
“Se o LED azul se acender, vou detonar esta bomba; se não, vou desarmá-la”
—, então os dois ramos vão divergir de maneira bastante óbvia. Mas, se
ninguém tomar uma decisão especí ca em função do resultado, até que
ponto as duas rami cações se tornarão distintas uma da outra? Um único
evento quântico pode levar a diferenças visíveis entre esses dois universos?
Será possível estudar forças históricas mais amplas através do uso dos
prismas?
Dúvidas como essas têm sido debatidas desde a primeira vez em que foi
demonstrada a possibilidade de comunicação através dos prismas. Quando
foi possível produzir prismas com blocos de notas com 100kb de
capacidade, um cientista atmosférico chamado Peter Silitonga realizou duas
experiências para tirar a prova dessa questão.
Naquela época, um prisma era ainda um conjunto de enormes
equipamentos de laboratório resfriados a nitrogênio líquido, e Silitonga
requisitou um deles para cada um dos experimentos que planejava. Antes de
ativá-los, ele tomou uma série de providências. Primeiro, recrutou mulheres
voluntárias em mais de dez países, que ainda não estavam grávidas mas
estavam tentando ter lhos. Dentro de um ano, os casais que tinham obtido
sucesso concordaram em fazer nos recém-nascidos um teste de DNA de
vinte e um loci. Então, ele ativou o primeiro dos seus prismas, digitando no
teclado o comando que enviava um fóton através de um ltro polarizador.
Seis meses depois, ele programou um so ware para recolher boletins
meteorológicos de vários lugares em volta do globo, ao longo de um mês.
Depois, ativou o segundo dos seus prismas e cou à espera.
• • •

Nat gostava do fato de que, não importa qual fosse o assunto a ser discutido,
as reuniões do grupo de apoio sempre ofereciam café. Ela não se importava
se o café era bom ou ruim, mas segurar aquele copo lhe dava alguma coisa
para fazer com as mãos. E, apesar de o local escolhido para as reuniões não
ser o mais agradável que ela já vira — um típico porão de igreja —, em geral
o café era bastante bom.
Lyle estava junto da cafeteira, servindo-se de um copo, quando Nat se
aproximou.
— Oi — disse ele. Estendeu-lhe o copo que tinha acabado de encher e
começou a servir-se de outro.
— Obrigada, Lyle.
Lyle estava frequentando o grupo há um pouco mais de tempo que ela —
cerca de três meses. Dez meses atrás, ele tinha recebido uma oferta de um
novo emprego e não conseguira decidir se devia aceitá-la ou não. Comprou
um prisma e o usou como quem tira cara ou coroa. LED azul, oferta aceita.
LED vermelho, oferta rejeitada. A luz azul se acendeu aqui na rami cação
onde estava, de modo que ele aceitou o trabalho, enquanto que seu eu
paralelo continuou trabalhando onde já estava. Durante meses, ambos se
sentiram satisfeitos. Mas depois que a impressão de novidade do emprego
recente se evaporou, Lyle se viu decepcionado com suas obrigações,
enquanto seu eu paralelo recebia uma promoção. Sua autocon ança cou
abalada. Ele ngia estar alegre quando entrava em contato com seu eu
paralelo, mas na verdade se debatia com sentimentos de inveja e ciúme.
Ele e Nat se encaminharam para duas cadeiras vazias lado a lado.
— Você gosta de se sentar bem na frente, não? — perguntou ela.
— Sim, mas não é preciso, se você não gostar.
— Por mim, está bem.
Os dois se sentaram e caram bebericando o café enquanto esperavam o
início da reunião.
A coordenadora do grupo era uma terapeuta chamada Dana. Era jovem,
da idade de Nat, mas parecia saber o que estava fazendo. Nat pensou que ela
poderia ter sido útil nos grupos de que já participara antes. Depois que
todos se sentaram, Dana perguntou:
— Alguém quer ser o primeiro a falar hoje?
— Posso começar — disse Lyle.
— Muito bem, fale como foi sua semana.
— Bem, fui dar uma olhada na Becca daqui.
O eu paralelo de Lyle estava saindo há meses com uma mulher chamada
Becca, depois de um encontro casual num bar.
— Má ideia, má ideia — interrompeu Kevin, abanando a cabeça
negativamente.
— Kevin, por favor — disse Dana.
— Desculpa, desculpa.
— Obrigado, Dana — disse Lyle. — Mandei uma mensagem para ela,
expliquei por que a estava procurando, mandei uma foto do meu eu paralelo
e perguntei se a gente podia se encontrar para tomar um café. Ela disse que
tudo bem.
Dana assentiu, sinalizando para que ele continuasse.
— Nós nos encontramos sábado à tarde, e de início tudo pareceu correr
bem. Ela ria das minhas piadas, eu ria das dela, e quei pensando, aposto
que foi exatamente assim quando meu eu paralelo se encontrou com ela. Eu
sentia que estava vivendo o melhor momento da minha vida. — Ele se calou,
parecendo constrangido, e prosseguiu: — E de repente tudo desandou. Eu
estava dizendo como era bacana estar ali com ela e como eu sentia que as
coisas estão virando em meu favor, e antes que eu percebesse estava dizendo
a ela que ter usado o prisma tinha estragado muita coisa para mim. Disse
que tinha cado com ciúmes do meu eu paralelo por ter conhecido a Becca
paralela, e como desde então eu estava o tempo inteiro me comparando, e
assim por diante. Percebi, então, como eu soava patético no momento em
que falava tudo isso. Percebi que a estava perdendo por causa disso, e no
meu desespero eu... — Ele hesitou, e então continuou: — Ofereci a ela meu
prisma para que ela conversasse com a Becca paralela, que lhe diria como eu
podia ser um sujeito bacana. Vocês podem imaginar como tudo correu daí
em diante. Ela foi muito educada, mas deixou bem claro que não queria
voltar a se encontrar comigo.
— Obrigado por compartilhar isso conosco, Lyle — disse Dana. E para o
restante do grupo: — Alguém quer fazer algum comentário?
Era uma boa oportunidade, mas Nat achou que ainda não era a hora.
Achou melhor esperar que outra pessoa falasse primeiro.
Kevin foi quem começou.
— Desculpe aquilo que falei antes. Não quis dizer que você foi burro em
fazer o que fez. Eu só pensei que era o tipo da coisa que eu teria feito, e por
causa disso tive uma premonição ruim sobre o resultado. Lamento que
também não tenha dado certo com você.
— Obrigado, Kevin.
— E na verdade não é má ideia. Vocês dois têm de ser compatíveis, já que
os eus paralelos de ambos estão formando um casal.
— Concordo com Kevin, em pensar que os dois devem ser compatíveis
— comentou Zareenah. — Mas o erro que todos nós continuamos a cometer
é que, quando nossos eus paralelos têm sorte em alguma coisa, acreditamos
que a mesma coisa tem de acontecer conosco.
— Eu não acho que algo tem de acontecer entre mim e Becca —
respondeu Lyle. — Mas ela está à procura de alguém, e eu também. Se temos
alguma compatibilidade, isso não conta para nada? Sei que produzi uma má
impressão no primeiro encontro, mas acho que nossa compatibilidade devia
ser um motivo para que ela não desse tanta importância a isso.
— Seria bom que isso acontecesse, mas ela não tem obrigação de agir
dessa forma.
— Claro — disse Lyle, carrancudo. — Entendo isso. É só que eu me sinto
tão... Bem, acho que digo isso o tempo todo, mas o que sinto é inveja. Por
que tenho de ser assim?
Agora parecia o momento adequado, e Nat interveio:
— Aconteceu algo comigo, recentemente, que parece semelhante ao que
houve com Lyle.
— Continue — disse Dana.
— Então, eu tenho um passatempo, que é fazer joias, geralmente brincos.
Tenho uma pequena loja on-line onde as pessoas podem comprá-los. Não
fabrico as peças pessoalmente, apenas envio o desenho para uma empresa
que as produz e envia para o cliente. — Esta parte era toda verdadeira, o que
era bom, caso alguém tivesse a ideia de checar a loja. — Meu eu paralelo
estava me dizendo que algum in uenciador soube de um dos nossos
produtos, fez algumas postagens dizendo quanto tinha adorado o design, e
na semana passada meu eu paralelo vendeu centenas desses brincos. Ela,
inclusive, viu num café, a distância, uma pessoa usando um deles.

“A questão é: o design que tanto chamou a atenção do público não é um que


ela tivesse criado depois que ativei o prisma. É anterior a isso. Os
mesmíssimos brincos estão à venda na minha loja on-line do lado de cá,
mas ninguém os compra! Ela está ganhando dinheiro com algo que criamos
antes de os nossos mundos divergirem, mas eu não! E co ressentida com
isso. Por que ela tem tanta sorte e eu não?
Nat viu algumas pessoas assentindo, com expressão de simpatia.
— E percebi que não é a mesma coisa quando vejo outras pessoas
vendendo montes de joias nas suas lojas on-line. É diferente. — Ela se virou
para Lyle. — Não me acho uma pessoa invejosa por natureza, e também não
acho que você seja. Não estamos o tempo inteiro desejando as coisas que
outras pessoas possuem. Mas, quando se trata de um prisma, não é outra
pessoa, é você! Como não achar que eu merecia ter o que a outra de mim
tem? É natural. O problema não é com você, é com o prisma.
— Obrigada, Nat. Foi bom ter compartilhado isso.
— Por nada.
Progresso. Com certeza, era algum progresso.
• • •

Prepare uma mesa de bilhar e execute uma tacada perfeita. Imagine que a
mesa não tem caçapas e também não oferece atrito, de modo que as bolas
cam ricocheteando o tempo inteiro, sem nunca parar. Com que precisão
será possível prever a trajetória de uma bola qualquer, enquanto ela vai
colidindo com as outras? Em 1978, o físico Michael Berry calculou que é
possível prever até nove colisões antes que seja necessário levar em conta o
efeito gravitacional de uma pessoa parada no salão. Se sua medição inicial
da posição da bola sofrer um desvio, mesmo de apenas um nanômetro, sua
previsão se revelará inútil dentro de alguns segundos.
As colisões entre as moléculas do ar são igualmente contingentes e
podem ser afetadas pelo efeito gravitacional de um simples átomo a um
metro de distância. Assim, mesmo com o interior de um prisma sendo
blindado contra o ambiente externo, o resultado da medição quântica que
ocorre quando o prisma é ativado ainda pode produzir um efeito no mundo
exterior, determinando se duas moléculas de oxigênio colidem ou se passam
uma pela outra sem se tocar. Sem que ninguém tenha tido tal intenção, a
ativação do prisma inevitavelmente produz uma diferença entre as duas
rami cações que são criadas naquele instante. Essa diferença é imperceptível
a princípio, uma discrepância apenas no nível do movimento térmico das
moléculas, mas, quando o ar é turbulento, leva cerca de um minuto para que
uma perturbação no nível microscópico se torne macroscópica, em
turbilhões com cerca de um centímetro de diâmetro.
Para fenômenos atmosféricos em pequena escala, os efeitos dessas
perturbações duplicam de tamanho a cada duas horas. Em termos de
predição, signi ca que um erro de um metro de largura na medição inicial
pode levar a um erro de um quilômetro na previsão do tempo para o dia
seguinte. Em escalas mais amplas, a propagação de tais erros é retardada
devido a fatores como a topogra a e a estrati cação da atmosfera, mas a
coisa não para por aí. Erros eventuais na escala de quilômetros se tornam
erros com dimensão de centenas ou milhares de quilômetros. Mesmo que as
medições iniciais fossem tão minuciosas a ponto de incluir dados sobre cada
metro cúbico da atmosfera da Terra, sua previsão do clima futuro deixaria
de ter validade dentro de um mês. Aumentar a precisão dessas medições
iniciais tem um benefício limitado: como os erros se propagam tão
rapidamente nas escalas ín mas, começar o cálculo com dados de cada
metro cúbico da atmosfera prolongaria a exatidão dessas previsões por
apenas algumas horas.
O aumento proporcional dos erros nas predições climáticas é idêntico à
divergência entre climas nas rami cações opostas criadas por um prisma. A
perturbação inicial é a diferença entre uma colisão de moléculas de oxigênio
quando o prisma é ativado e, no período de um mês, o clima em todo o
globo se mostra diferente. Silitonga con rmou isso quando ele e seu eu
paralelo trocaram boletins meteorológicos um mês depois de seu prisma ter
sido ativado. Os boletins eram coerentes com a estação do ano — não houve
nenhuma locação que experimentasse inverno de um lado e verão do outro
—, mas, a não ser por isso, eram essencialmente não correlatos. Sem que
ninguém tivesse feito esforço algum nesse sentido, as duas rami cações
divergiam visivelmente numa escala global.
Depois que Silitonga publicou seus resultados num artigo intitulado
“Examinando a propagação em alta escala de erros atmosféricos com o
Plaga Intermundos Sinalização Mecânica”, os historiadores começaram a
travar debates acalorados discutindo em que medida o clima era capaz de
afetar o curso da história. Os céticos reconheciam que era possível afetar de
diversas maneiras a vida pessoal dos indivíduos, mas com que frequência já
se viu o resultado de um evento histórico, de grandes proporções, ser
decidido pelas condições climáticas? Silitonga não tomou parte nesses
debates: estava aguardando a conclusão de outro experimento com o
prisma, que tinha um ano de prazo.
• • •

Havia épocas em que os clientes apareciam na ordem certa, e as tardes de


quarta-feira eram assim para Dana. A tarde começou com um de seus
clientes mais exigentes, um homem que lhe pedia para tomar todas as
decisões em nome dele, que choramingava quando ela dizia não e punha a
culpa nela sempre que era forçado a se responsabilizar por uma ação. Por
isso foi um alívio quando logo depois dele ela recebeu Jorge, uma lufada de
ar puro para refrescar o consultório. As questões com que ele estava
envolvido não eram as mais interessantes que ela já vira, mas gostava de tê-
lo como cliente. Jorge era divertido, gentil e sempre bem-intencionado. Era
cauteloso quanto ao processo terapêutico, mas eles vinham fazendo
progressos com relação aos problemas de autoestima dele e às atitudes
negativas que o prejudicavam.
Quatro semanas antes, ocorrera um incidente. O gerente de Jorge era um
tirano, um sujeito de mau caráter, que costumava humilhar as pessoas que
che ava. Um dos temas recorrentes nas sessões de Dana com Jorge era a
necessidade de ajudá-lo a ignorar os insultos do chefe. Um dia, Jorge perdeu
a paciência e furou os quatro pneus do carro do gerente quando se viu
sozinho no estacionamento. O tempo foi passando e pareceu que ele não
seria descoberto. Enquanto uma parte dele queria ngir que nada tinha
acontecido, outra parte se sentia terrivelmente mal com o que zera.
Começaram a sessão com uma conversa leve. Dana tinha a sensação de
que Jorge queria lhe dizer algo. Olhou para ele com expectativa, e ele disse:
— Depois da nossa sessão da semana passada, fui a uma daquelas lojas de
prismas, a Lydoscope.
Dana cou surpresa.
— É mesmo? E para quê?
— Queria ver quantas versões paralelas de mim tinham feito aquilo que
z.
— Conte mais.
— Pedi a eles que pesquisassem seis versões minhas. Como o ponto de
partida ainda é recente, saiu barato, então solicitei vídeo. Hoje de manhã, me
mandaram uma porção de arquivos de vídeo, gravações do que meus eus
paralelos zeram.
— E você cou sabendo o quê?
— Nenhum deles furou os pneus do gerente. Todos comentaram que
tinham apenas fantasiado a respeito, nada mais. Um deles chegou bem perto
de agir, no mesmo dia em que eu o z, mas se controlou a tempo.
— Você acha que isso signi ca o quê?
— Signi ca que meu gesto de furar os pneus dele foi um acidente bizarro.
O fato de que eu o z não diz nada importante sobre mim como pessoa.
Dana sabia de gente que usava os prismas de maneira parecida, mas em
geral era alguém justi cando as próprias ações com a observação de que
poderia ter feito algo bem pior. Ainda não tinha se deparado com esta
versão, onde a autodefesa se baseava no fato de os eus paralelos terem se
comportado melhor. E não esperava aquilo vindo de Jorge.
— Então você acha que o comportamento dos seus outros eus se re ete
em você?
— Nas rami cações examinadas, o ponto de partida era apenas um mês
antes do incidente. Isso signi ca que aqueles outros Jorges eram
praticamente iguais a mim. Não tinham tido tempo de se transformar em
pessoas diferentes.
Ela assentiu. Nesse ponto, ele tinha razão.
— Você acha que o fato de ter dani cado o carro de seu chefe de certa
forma é compensado pelo fato de que seus outros eus não o zeram?
— Não propriamente compensado, mas serve como um indicador do
tipo de pessoa que eu sou. Se todos os meus eus tivessem furado os pneus,
indicaria algo signi cativo sobre minha personalidade. É algo que Sharon
precisaria saber.
Jorge não contara à esposa o que tinha feito: a vergonha o impedira.
— Mas o fato de que eles não zeram nada mostra que não sou uma
pessoa violenta, de modo que contar a Sharon o que z podia dar a ela uma
ideia errada a meu respeito.
Contar tudo à esposa era algo em cuja direção eles vinham avançando
lentamente.
— E o que sente, agora que conseguiu essa informação?
— Acho que sinto alívio. Estava preocupado para saber o signi cado
daquilo que z. Agora já não me preocupo muito.
— Me fale mais sobre essa sensação de alívio.
— Eu sinto como se... — Jorge se mexeu na cadeira, inquieto, como se
procurasse as palavras. Por m, continuou: — É como se eu tivesse recebido
o resultado de um exame médico, e o resultado desse negativo.
— Como se você imaginasse que estava doente, mas a nal não estava.
— Isso! Não era nada sério. Não é alguma coisa que vai se tornar um
problema constante na minha vida.
Dana achou que valia a pena arriscar.
— Então vamos tentar ver como um exame médico. Você tinha alguns
sintomas que poderiam ser sinais de uma doença séria, como câncer. Mas
agora descobriu que não tem câncer.
— Isso!
— Claro que é ótimo o fato de você não ter câncer. Mas ainda tem os
sintomas. Não valeria a pena tentar descobrir o que produziu esses
sintomas?
Jorge cou com uma expressão perplexa.
— Mas... se não é câncer, que importância tem?
— Bem, pode ser alguma outra coisa, algo que eu posso ajudá-lo a
descobrir.
— Já consegui a resposta que queria — disse ele, dando de ombros. —
Por enquanto, isso já me satisfaz.
— Tudo bem, então — comentou Dana.
Não havia necessidade de pressionar. Mas ela tinha certeza de que, cedo
ou tarde, ele chegaria àquele ponto.
• • •

Há uma crença generalizada de que você teria nascido em qualquer


rami cação do tempo em que seus pais se encontrassem e tivessem lhos,
mas nenhum nascimento individual é inevitável. Silitonga pretendia
demonstrar, com seu experimento de um ano de duração, que o ato da
concepção depende largamente das circunstâncias, inclusive do clima que
faz no dia.
A ovulação é um processo gradual e regular, de modo que o mesmo
óvulo emerge do folículo independentemente de naquele dia estar chovendo
ou fazendo sol. O espermatozoide que alcança aquele óvulo, entretanto, é
como a bola de pingue-pongue escolhida por uma tômbola de sorteio que
gira sobre si mesma: é o resultado de forças randômicas. Mesmo que as
circunstâncias externas que cercam um ato sexual pareçam idênticas nas
duas rami cações, basta apenas uma discrepância imperceptível para fazer
com que um espermatozoide, e não outro, chegue a se fundir com o óvulo.
Consequentemente, desde que diferenças meteorológicas possam ser
detectadas entre as duas situações, todas as instâncias do processo de
fertilização são afetadas. Nove meses depois, cada uma das mães em redor
do globo estava dando à luz uma criança diferente, em cada uma das
rami cações. Isso cava óbvio de imediato quando num dos lados a criança
era um menino e no outro uma menina, mas continuava a ser verdade
mesmo quando as duas crianças eram do mesmo sexo. O Dylan recém-
batizado numa rami cação não era o mesmo Dylan da outra. Os dois eram
irmãos.
Foi isso que Silitonga demonstrou quando ele e seu eu paralelo
compararam os testes de DNA das crianças nascidas um ano após a ativação
de um prisma, num artigo intitulado “O efeito da turbulência atmosférica na
concepção humana”. Ele havia usado um prisma diferente do que empregara
para seu artigo “Propagação de erros”, a m de evitar que se sugerisse a
possibilidade de a publicação dos resultados daquele experimento ter, de
algum modo, criado divergências que sem isso não aconteceriam. Na época
da concepção das crianças, nenhuma comunicação tinha ocorrido entre as
duas rami cações. Cada criança tinha uma con guração cromossômica
diferente da de sua contrapartida no lado oposto, e a única causa possível
tinha sido o resultado daquela medição quântica inicial.
Algumas pessoas ainda argumentaram que o curso mais amplo da
história não iria mudar entre as duas realidades paralelas, mas se tornou
cada vez mais difícil defender essa teoria. Silitonga havia demonstrado que
mesmo a menor mudança imaginável acabaria tendo repercussões globais.
Para um hipotético viajante no tempo que desejasse evitar a subida de Hitler
ao poder, essa menor mudança não consistiria em sufocar o Adolf bebê
ainda no berço. Seria necessário apenas viajar até um mês antes de sua
concepção e perturbar uma molécula de oxigênio. Não somente isso
acabaria substituindo Adolf por um irmão seu, mas faria o mesmo com
todas as pessoas de sua idade ou mais jovens. Por volta de 1920, isso
signi caria metade da população mundial.
• • •

Morrow tinha começado a trabalhar na SelfTalk mais ou menos na mesma


época que Nat, portanto nenhum dos dois era funcionário no período
anterior, quando a empresa ia de vento em popa. Quando os prismas eram
uma tecnologia que somente as corporações eram capazes de adquirir, as
pessoas se davam por felizes pela chance de ir a uma loja para se comunicar
com suas versões paralelas. Agora, quando era possível comprar prismas
pessoais, a SelfTalk tinha apenas poucas liais em funcionamento, e seus
clientes eram em sua maior parte adolescentes cujos pais não permitiam que
usassem prismas, ou senhores idosos ainda na fase de achar a ideia dos eus
paralelos uma grande novidade.
Nat se dava por satisfeita com o que já tinha, mas Morrow era cheio de
planos. Foi promovido a gerente da loja depois que inventou uma maneira
de atrair novos clientes. Cada vez que eles adquiriam um novo prisma, ele
checava os registros de acidentes ao longo de um mês depois da ativação
deste e mandava avisos para as pessoas envolvidas. Em geral, elas não
resistiam à oportunidade de ver como estaria sua vida caso as coisas
tivessem ocorrido de outra maneira. Nenhum se tornava um cliente xo — a
maioria entrava em depressão com o que via —, mas aquela tática garantia
um faturamento estável a cada novo prisma comprado.
Na casa de repouso, Morrow estava à espera do lado de fora, diante da
porta do quarto da sra. Oehlsen, enquanto ela conversava com seu eu
paralelo. Elas estavam usando vídeo para suas conversas, em vez de texto —
sabiam que não restava muito tempo, então não fazia sentido preservar o
bloco de notas para uso futuro. Isso, no entanto, tornava as coisas mais
difíceis para a sra. Oehlsen do outro lado, que em última análise estava
vendo os últimos momentos de vida de uma versão de si mesma. A conversa
entre as duas era tensa — Morrow tinha deixado um microfone no quarto e
acompanhava o diálogo por um fone de ouvido —, embora a sra. Oehlsen
moribunda parecesse não reparar.
Quando terminaram, a sra. Oehlsen ergueu a voz e pediu a Morrow que
entrasse.
— Como foi a conversa? — perguntou ele.
— Foi bem. — Sua respiração era difícil. — Se existe uma pessoa com
quem se pode conversar com absoluta franqueza é você mesma.
Morrow retirou o prisma da mesinha de apoio instalada sobre a cama e o
guardou na caixa.
— Sra. Oehlsen, se não se incomoda, eu gostaria de fazer uma sugestão.
— Pode dizer.
— A senhora havia comentado que não conhece ninguém que merecesse
car com seu dinheiro. Se realmente pensa assim, talvez devesse deixá-lo
para seu eu paralelo.
— É possível fazer isso?
O segredo de passar uma mentira adiante é a autocon ança.
— Dinheiro é apenas mais uma forma de informação — disse ele. — Nós
podemos transmiti-lo através de um prisma, do mesmo jeito que
transmitimos informação em forma de áudio ou de vídeo.
— Hummm, é uma ideia interessante. Tenho certeza de que ela iria usá-
lo melhor do que meu lho. — O rosto dela se contraiu um pouco ao pensar
nele. — Mas como posso fazer isso? Peço ao advogado para alterar meu
testamento?
— Poderia ser, mas vai demorar um tempo até que se resolvam todas as
questões do seu espólio, e talvez seja melhor a senhora transferir o dinheiro
agora do que deixar para depois.
— Por quê?
— Há uma nova lei que vai ter validade a partir do mês que vem.
Ele puxou o celular e mostrou um texto que tinha preparado.
— O governo quer desencorajar as pessoas a transferir dinheiro desta
linha do tempo para as outras, e vai cobrar um imposto de cinquenta por
cento sobre as transferências futuras. Se mandar o dinheiro antes de a lei
entrar em vigor, a senhora economiza esse imposto. — Ele viu, pela
expressão do rosto dela, que ela achara a ideia interessante. — A SelfTalk
poderia se encarregar disso para a senhora, a qualquer momento.
— Tome as providências. Vamos fazer isso na próxima semana.
— Vou preparar tudo — disse Morrow.
Quando retornou à SelfTalk, Morrow usou o prisma para mandar uma
mensagem a seu eu paralelo, e pediu que ele participasse. Os dois diriam à
outra sra. Oehlsen que sua versão do lado de cá estava tendo perturbações
mentais devido aos medicamentos, achando que tinha enviado dinheiro
através do prisma, e seria melhor fazer suas vontades durante os dias que lhe
restavam. Isso seria o su ciente, mas, caso fosse necessário, eles poderiam
encerrar as conversas por completo, alegando que outro cliente tinha
esgotado a capacidade do prisma.
Depois de resolver essa parte, Morrow começou a criar a conta falsa que
receberia a transferência. Não esperava ganhar uma fortuna com esse golpe.
A sra. Oehlsen tinha suas economias, mas não era uma mulher rica. A
grande jogada seria aplicada, se eles tivessem sorte, no grupo de apoio de
Nat.
Como parte de seu trabalho na SelfTalk, Morrow mantinha uma lista dos
grupos de apoio psicológico para pessoas que tivessem problemas com o uso
dos prismas. Ele sabia que frequentadores desses grupos muitas vezes
acabavam vendendo seus prismas, então visitava regularmente as igrejas e os
centros comunitários onde tais grupos se encontravam e pregava pan etos
que diziam COMPRO SEU PRISMA: FAÇO A MELHOR OFERTA. Três
meses atrás, Morrow estava colocando um desses pan etos em um mural
enquanto dois membros do grupo de apoio estavam por perto, com copos
de café na mão, esperando que o salão abrisse. Morrow ouviu os dois
conversando.
— Você já imaginou a possibilidade de ter estragado a vida de outra
pessoa quando ativou um prisma?
— O que quer dizer com isso?
— Tipo: talvez alguém morresse num acidente de carro em outra
rami cação, mas não nesta, e tudo porque você ativou um prisma.
— Agora que você falou, lembra aquele acidente de carro que houve em
Hollywood alguns meses atrás? No mundo do meu eu paralelo, quem
morreu naquela batida foi Scott e não Roderick.
— É exatamente disso que estou falando. Você ativou um prisma, e isso
teve uma enorme consequência na vida de outra pessoa. Já parou pra pensar
nisso?
— Não muito. Talvez eu seja muito autocentrado, mas a verdade é que
em geral estou pensando só na minha vida mesmo.
O rapaz tinha se referido a uma dupla de celebridades, o cantor pop Scott
Otsuka e o ator de cinema Roderick Ferris. Os dois iam para a noite de
estreia de um lme quando a limusine deles foi atingida por um caminhão
cujo motorista estava bêbado. Roderick tinha morrido na hora e Scott
sobreviveu como viúvo inconsolável. Mas o prisma daquele rapaz estava
conectado a outro mundo onde o morto era Scott e Roderick, o
sobrevivente.
Aquele prisma podia valer um dinheirão, mas Morrow não podia
abordar o rapaz e fazer uma oferta. Preferiu mandar Nat frequentar o grupo,
ngindo ser uma pessoa desejosa de se livrar do hábito do prisma. O nome
do rapaz era Lyle, e a missão de Nat era car amiga dele. Não havia nada de
sexual envolvido — Morrow sabia que não devia pedir isso a ela. Bastava
que se tornassem colegas de grupo e ele pudesse gostar dela, con ar nela.
Assim ela poderia, aos poucos, convencê-lo a se desfazer do prisma. E,
quando ele estivesse pronto, ela diria ter tomado a mesma decisão, e que
conhecia alguém disposto a pagar um bom preço por prismas usados... Que
tal se os dois vendessem os prismas a ele? E assim ela traria Lyle até a
SelfTalk, onde Morrow compraria os prismas de ambos.
E em seguida Morrow daria um jeito de marcar um encontro com Scott
Otsuka, onde lhe ofereceria um prisma com o qual poderia voltar a
conversar com seu marido morto.
• • •

Nenhum prisma podia fazer contato com uma rami cação que tivesse se
produzido antes do momento de sua ativação — por isso não havia registro
de rami cações onde Kennedy não tinha sido assassinado ou onde os
mongóis tivessem invadido a Europa ocidental. Pelo mesmo princípio, não
havia como fazer fortuna patenteando invenções vislumbradas em
rami cações nas quais o progresso tecnológico tivesse tomado uma direção
diferente. Se houvesse algum benefício de ordem prática com o uso de um
prisma, teria que depender de divergências subsequentes, não de anteriores.
De vez em quando, variações aleatórias tornavam possível evitar um
acidente: uma vez, quando um avião de passageiros caiu, a FAA noti cou
sua equivalente em outra rami cação, que conseguiu fazer pousar o avião e
o submeteu a uma inspeção rigorosa, localizando um componente no
sistema hidráulico que estava a ponto de falhar. Mas nada podia ser feito a
respeito de acidentes que derivavam de erros humanos, que eram diferentes
em cada rami cação. Nem era possível mandar um aviso antes da
ocorrência de desastres naturais: um furacão ocorrendo de um lado não
in uía na probabilidade de ocorrer um furacão em outro, enquanto que
terremotos sempre aconteciam simultaneamente em todas as rami cações,
de modo que era impossível avisar alguém com antecedência.
Um general do Exército comprou um prisma com a intenção de usar a
rami cação oposta como simulador militar radicalmente realista: ele
pretendia fazer seu eu paralelo tomar uma atitude agressiva na outra
rami cação e ver quais seriam as consequências. Descobriu a falha em seu
plano assim que entrou em contato com seu eu paralelo, que revelou a
intenção de usá-lo exatamente com o mesmo propósito. Cada rami cação
era de importância absoluta para quem vivia ali, e ninguém estava disposto a
se comportar como cobaia para um mundo paralelo.
O que os prismas ofereciam de fato era um modo de estudar os
mecanismos da mudança histórica. Pesquisadores se dedicavam a comparar
as manchetes dos jornais de duas rami cações, à procura de discrepâncias
para investigar suas causas. Em alguns casos, a divergência era resultado de
um evento casual, como um bandido em fuga sendo preso em um sinal
fechado. Em outros, a divergência era resultado de um indivíduo escolhendo
ações diferentes nos dois planos — e então os pesquisadores pediam para
fazer uma entrevista, mas, caso se tratasse de uma pessoa pública, ela
raramente ofereceria detalhes sobre o porquê de ter agido daquele jeito. Para
os casos que não se enquadravam nessas categorias, os pesquisadores
tinham de vasculhar o noticiário das semanas anteriores para tentar
localizar as causas da discrepância, o que usualmente os levava a passar um
pente- no nas sacudidelas estocásticas do mercado de ações e das mídias
sociais.
Então, os pesquisadores continuavam a monitorar as notícias durante as
semanas e os meses seguintes, para ver como as divergências cresciam com
o passar do tempo. Na verdade, estavam tentando con rmar o antigo ditado
“por falta de um prego, um reino se perdeu”, em que os círculos concêntricos
das consequências se expandem de maneira constante, mas inteligível. Em
vez disso, o que acabavam encontrando eram outras pequenas discrepâncias,
não relacionadas com aquela que lhes servira de ponto de partida. O clima
estava in uenciando mudanças em toda parte, o tempo todo. Quando, por
m, se observava uma divergência política signi cativa, era difícil apontar
sua causa com precisão. O problema era exacerbado pelo fato de todos os
estudos serem obrigatoriamente encerrados quando o “bloco de notas” do
prisma se esgotava — não importa quanto uma divergência especí ca
pudesse ser interessante, a conexão entre aqueles dois universos era apenas
temporária.
No setor privado, os empreendedores perceberam que embora as
informações obtidas através dos prismas tivessem um valor instrumental
apenas limitado, elas constituíam um conteúdo que podia ser vendido aos
consumidores. Um novo tipo de negociante de dados emergiu: uma empresa
podia propor a troca de notícias sobre assuntos da atualidade pelas suas
versões em mundos paralelos e vender essas informações a seus assinantes.
Notícias esportivas e fofocas de celebridades eram o material mais fácil de
vender — as pessoas pareciam estar tão interessadas no que suas estrelas
favoritas faziam em outras rami cações quanto nesta. Fãs radicais dos
esportes reuniam dados sobre outras rami cações e discutiam quais os times
que tinham melhor performance conjunta e se isso era mais importante do
que sua performance numa rami cação especí ca. Leitores comparavam
diferentes versões de romances publicados em rami cações diferentes, e o
resultado era que os autores se viam forçados a competir com cópias piratas
de livros que poderiam ter escrito. À medida que a fabricação dos prismas
passou a conter blocos de notas com maior capacidade de armazenamento,
as mesmas coisas começaram a acontecer com músicas e depois com lmes.
• • •

Na primeira reunião a que compareceu, Nat tinha cado incrédula diante


das coisas narradas pelos participantes: um homem se via obsessivamente
preocupado com o fato de que seu eu paralelo parecia levar uma vida mais
divertida do que a dele, uma mulher estava prisioneira de uma espiral de
dúvidas porque seu eu paralelo havia votado num candidato diferente. Eram
esses os problemas que a igiam as pessoas comuns? Acordar banhada no
próprio vômito, ter que ir para a cama com um tra cante por não dispor de
dinheiro, isso seriam problemas de verdade. Nat chegou a fantasiar um
pouco a cena em que diria aos participantes que deviam tentar cuidar de
suas próprias vidas, mas claro que não o fez, e não apenas porque isso
poderia ajudar a desmascarar seu papel ali. Ela não estava em condições de
julgá-los. E daí se eles estavam lamentando a vida que tinham? Melhor
mergulhar na autopiedade por causa de uma bobagem do que estar de fato
botando a própria vida a perder.
Nat tinha mudado de vida na esperança de recomeçar do zero, afastando-
se das pessoas e dos lugares que poderiam atraí-la de volta para o vício. O
trabalho na SelfTalk não era grande coisa, mas era bom poder receber um
contracheque honesto, e ela gostava da companhia de Morrow. Os pequenos
golpes que ele aplicava eram divertidos. Ela sempre tinha sido boa naquilo, e
dizia a si mesma que desse modo evitava a recaída na droga, porque o prazer
de tapear as pessoas era um substituto mais seguro para o vício.
Ultimamente, contudo, Nat tinha começado a sentir que estava apenas
enganando a si mesma. Mesmo que não estivesse usando seu dinheiro para
comprar drogas, aquelas pequenas contravenções acabariam levando-a de
volta para aquele caminho. Seria melhor se afastar de tudo aquilo. Tinha que
encontrar outro emprego, longe de Morrow, e isso provavelmente exigiria
uma nova mudança de endereço. Mas para isso precisaria de dinheiro, de
modo que tinha de continuar trabalhando com Morrow até juntar uma
quantia para não precisar trabalhar mais com ele.
Zareenah estava falando.
— Minha sobrinha está terminando o ensino médio, e esses últimos
meses têm sido a época de envio de currículos para as universidades. Esta
semana, a família dela recebeu respostas, e foram boas: ela foi aceita em três
faculdades. Fiquei muito alegre com isso até conversar com meu eu paralelo.
“Bem, quei sabendo que a sobrinha dela foi aceita em Vassar, que era
sua primeira opção. Mas aqui, em nosso universo, esta foi uma das
universidades que recusaram minha sobrinha. Tudo que ocorre diferente
entre as duas rami cações é uma mera consequência do fato de eu ativar o
prisma, certo? Então fui eu que z minha sobrinha ser rejeitada. A culpa é
minha.”
— Você está partindo do princípio de que se não tivesse ativado o
prisma, sua sobrinha teria sido aceita — disse Kevin. — Mas isso não é
necessariamente verdade.
Zareenah começou a rasgar um lenço de papel um hábito que tinha
quando começava a falar de si mesma.
— Mas signi ca que meu eu paralelo fez alguma coisa para ajudar a
sobrinha dela, algo que não z do lado de cá. Então sou culpada, sim, por
omissão.
— Você não tem culpa — comentou Lyle.
— Mas tudo aqui é diferente, por causa do meu prisma.
— Isso não quer dizer que seja culpa sua.
— E por que não seria?
Sem saber mais o que argumentar, Lyle se virou para Dana em busca de
ajuda. Dana perguntou a Zareenah:
— Além de Vassar, houve alguma outra diferença nas aceitações e
rejeições que sua sobrinha e o eu paralelo dela tiveram?
— Não, todo o resto foi igual.
— Então podemos considerar que o nível do pedido de aplicação dela foi
igualmente alto em ambas as rami cações.
— Sim — disse ela, com convicção. — Ela é uma garota inteligente, e
nada que eu faça pode mudar isto.
— Então vamos especular um pouco. Por que motivo Vassar aceitaria sua
sobrinha em outro universo e não neste?
— Não sei — respondeu Zareenah.
Dana relanceou o olhar por toda a sala.
— Alguém tem alguma sugestão?
— Talvez o funcionário que examina os documentos no lado de cá
estivesse num dia ruim quando olhou os papéis dela — sugeriu Lyle.
— E o que poderia ter causado esse dia ruim?
Nat precisava ngir interesse e teve que participar.
— Talvez alguém tivesse dado uma fechada nele no trânsito naquela
manhã.
— Ou então ele deixou o celular cair na privada — disse Kevin.
— Ou as duas coisas — concluiu Lyle.
Virando-se para Zareenah, Dana disse:
— Essas são consequências previsíveis de alguma ação sua?
— Não — admitiu Zareenah. — Acho que não são.
— São apenas resultados aleatórios do fato de o tempo estar diferente nas
duas rami cações. E qualquer coisa pode produzir essas mudanças no
tempo. Se pudéssemos examinar mais de perto, tenho certeza de que
encontraríamos umas cem pessoas cujos prismas conectaram uma
rami cação onde sua sobrinha foi recusada. Se a mesma coisa acontece em
rami cações onde você agiu de forma diferente, então a causa não é você.
— Mas eu ainda acho que a culpa é minha.
Dana assentiu.
— Nós gostamos da ideia de que sempre existe alguém responsável por
qualquer acontecimento, porque isso nos ajuda a encontrar algum sentido
no mundo. Gostamos tanto que às vezes botamos a culpa em nós mesmos,
só para que haja alguém a quem culpar. Mas nem tudo está sob nosso
controle, ou sob o controle de qualquer outra pessoa.
— Compreendo que não é uma reação racional, mas mesmo assim não
deixo de sentir — disse Zareenah. — Acho que tenho certa tendência a me
sentir culpada em relação a minha irmã... — Ela fez uma pausa. — Por causa
da nossa história.
— Gostaria de falar sobre isso? — perguntou Dana.
Zareenah hesitou, mas prosseguiu:
— Anos atrás, quando éramos adolescentes, nós duas estudávamos
dança, mas ela era muito melhor do que eu. Ela conseguiu prestar um exame
para estudar em Juilliard, mas quei com tanto ciúme que a sabotei.
Agora a coisa cava interessante: um comportamento condenável. Nat
nunca tinha ouvido nada parecido naquele grupo, mas teve o cuidado de
não demonstrar curiosidade excessiva.
— Pus cafeína na garrafa de água que ela levava consigo, porque sabia
que isso iria afetá-la. Ela não foi aceita. — Zareenah escondeu o rosto nas
mãos. — Acho que nunca vou poder pagar pelo mal que z. Vocês
provavelmente não vão ser capazes de entender.
Uma expressão magoada surgiu no rosto de Dana, mas ela se recompôs
rapidamente.
— Todos nós cometemos erros — disse ela. — Acredite, já tive os meus.
Mas existe uma diferença entre aceitar a responsabilidade pelas nossas ações
e se sentir culpada por uma falta de sorte aleatória.
Nat examinou a expressão de Dana enquanto ela falava. Seu rosto tinha
voltado à compostura normal de calma e aceitação, mas sua perda
momentânea de serenidade foi perceptível. Nat nunca vira aquilo numa
pessoa que coordenasse um grupo de apoio. A única vez em que vira um
coordenador de grupo, numa clínica de recuperação, narrar fatos do seu
passado, era um homem tão experiente que toda sua história parecia parte
do discurso de um vendedor experiente. E ela cou curiosa. O que Dana
teria feito para ter demonstrado aquele vislumbre passageiro de culpa?
• • •

Quando os prismas com blocos de nota maiores começaram a car


disponíveis no mercado, os negociantes de dados começaram a oferecer
serviços de pesquisa personalizados para pessoas que desejavam conhecer
outros rumos que a vida delas pudesse ter tomado. Este era um projeto mais
arriscado do que o de vender notícias das outras rami cações, por alguns
motivos. Primeiro, talvez levasse anos até que as divergências se tornassem
grandes o bastante para serem interessantes, e os negociantes tinham de
fazer vastos estoques de prismas, ativando-os mas sem colher informações,
deixando seus blocos de nota prontos para uso futuro. Segundo, requeria
um nível de cooperação muito alto entre as versões paralelas da empresa. Se
a cliente Jill queria ter informações sobre os seus eus paralelos, várias
versões da empresa teriam de fazer pesquisas nas respectivas rami cações,
mas Jill poderia pagar apenas a versão da empresa em seu próprio universo
— não havia maneira de transferir dinheiro de uma rami cação para outra.
Esperava-se que essa cooperação entre ramos diferentes zesse com que
cada versão da empresa conseguisse mais clientes no respectivo mundo, e ao
longo do tempo isso traria vantagens para todos os envolvidos: seria uma
forma de altruísmo entre todas as versões paralelas da mesma empresa.
Previsivelmente, alguns indivíduos cavam deprimidos quando
descobriam que seus eus paralelos tinham obtido um sucesso muito maior
do que eles. Durante algum tempo, houve a preocupação de que essas
pesquisas privadas acabassem ganhando a reputação de ser um produto que
trazia a infelicidade a seus usuários. No entanto, a maior parte das pessoas
decidia que estava mais satisfeita com sua vida atual do que com a dos seus
eus paralelos e chegava à conclusão de que tinha tomado as decisões
corretas. Isso talvez fosse apenas um viés de autoa rmação, mas era
generalizado o bastante para que os serviços de pesquisas pessoais
continuassem a ser uma atividade lucrativa para os negociantes de dados.
Algumas pessoas os evitavam, receosos do que poderiam descobrir, mas
outros cavam obcecados. Havia casais nos quais uma das pessoas se
enquadrava numa categoria e seu cônjuge na outra, o que chegava a causar
divórcios. Negociantes de dados zeram várias tentativas de expandir sua
clientela, mas quase nunca tinham sucesso. O produto com mais
possibilidade de seduzir os indecisos era o que se dirigia a pessoas que
tinham perdido um ente querido: os negociantes de dados descobriam uma
rami cação onde aquela pessoa continuava viva e repassavam informações
sobre suas atividades nas mídias sociais, de modo que a pessoa enlutada
podia ver que vida o outro poderia ter vivido. Essa prática servia apenas
para solidi car a crítica mais comum feita pelos especialistas: que os
negociantes de dados estavam promovendo um comportamento pouco
saudável entre seus clientes.
• • •

Nat tinha a expectativa de que Morrow se daria por satisfeito durante algum
tempo, em vista do sucesso de seu plano junto à sra. Oehlsen. A mulher
tinha transferido uma quantia para uma conta-fantasma duas semanas
antes, e seu eu paralelo tinha acreditado na versão de que os medicamentos
a tinham deixado semidelirante. Depois que a cliente faleceu, tudo foi
resolvido de maneira e caz. Mas, em vez de car contente com o desfecho,
Morrow parecia agora disposto a jogar uma cartada ainda mais alta.
Estavam no escritório da SelfTalk comendo tacos que ele trouxera de um
food truck a duas quadras dali quando Morrow tocou no assunto.
— Como estamos em relação a Lyle? — perguntou.
— Estou fazendo progressos — disse Nat. — Tenho certeza de que ele já
está pensando que estaria melhor sem o prisma.
Morrow terminou de comer o taco e bebeu todo o líquido da lata de
soda.
— Nós não podemos car aqui, sentados, esperando que ele decida
passar o prisma adiante.
Nat franziu a testa.
— Sentados? Acha que é isso que tenho feito?
Ele fez um aceno.
— Relaxe. Não foi o que quis dizer. Mas não vamos ter nenhum proveito
se ele resolver car agarrado àquele prisma durante anos. Temos de dar um
jeito para que o prisma seja vendido.
— Sei disso, e é o que estou tentando.
— Eu estava pensando em algo mais concreto.
— Tipo o quê?
— Conheço um cara de um grupo que rouba identidades. Posso pedir a
ele que foque em Lyle e arruíne seu crédito. Depois disso, Lyle não vai mais
car muito interessado no que seu eu paralelo anda fazendo.
Nat fez uma careta de desagrado.
— Nosso trabalho agora envolve esse tipo de coisa?
Ele deu de ombros.
— Se houvesse algum modo de fazer a vida paralela de Lyle parecer
melhor, por mim tudo bem, mas não temos essa opção. A única saída é fazer
a vida dele aqui parecer pior.
Um apelo aos sentimentos nobres não seria capaz de demover Morrow.
Nat precisaria de um argumento mais prático.
— Você não deve fazer com que ele se sinta tão miserável que acabe se
apegando ainda mais ao prisma, por ser seu único contato com uma vida
mais feliz.
Pareceu funcionar.
— É, você tocou num ponto importante — admitiu Morrow.
— Me dê mais alguns encontros, antes de tomar uma decisão.
Morrow amassou a bandeja de papel e a lata e as jogou na cesta de lixo.
— Está bem, vamos tentar da sua maneira mais um pouco. Mas tente dar
uma acelerada.
Ela assentiu.
— Claro. Já tenho uma ideia.
• • •

Dana cou um pouco surpreendida quando Nat anunciou ao grupo que


tinha vendido seu prisma. Nos encontros anteriores, ela não teve a
impressão de que Nat estava pronta para esse salto, embora já soubesse que
nem sempre é possível perceber essas coisas antecipadamente. Nat parecia
feliz por ter tomado essa decisão, mas era algo típico: todo mundo se sentia
melhor naqueles primeiros momentos. Ela notou que Nat tinha muito
discretamente observado as reações de Lyle a sua declaração, algo que Dana
já a vira fazendo antes. Não parecia que o interesse dela no rapaz fosse
romântico, ou, se era, ela não estava investindo nisso, talvez para não
complicar as coisas enquanto cuidava de outros problemas.
No encontro seguinte, Nat falou mais do que costumava, descrevendo
como achava que sua atitude tinha melhorado depois de abandonar o
prisma. Mesmo ela não se mostrando entusiasmada em excesso, Dana cou
um pouco preocupada, achando que ela talvez tivesse expectativas pouco
realistas e estivesse se encaminhando para uma decepção. Kevin expressou
um sentimento parecido, de modo até um pouco indelicado, e parecia estar
mais motivado por inveja do que por simpatia. Ele estava no grupo há muito
mais tempo do que Nat, e durante todo esse período tinha obtido um
progresso apenas modesto. Por sorte, Nat não assumiu a defensiva e a rmou
entender que se livrar do prisma não resolveria magicamente todos os
problemas de sua vida. E assim o grupo passou o resto do encontro
focalizado em Kevin e no que ele tinha experimentado durante a semana,
sem que Dana precisasse conduzi-los nessa direção.
Ela cou bem satisfeita com o grupo e consigo mesma, mas sua boa
disposição não durou muito tempo. Tinha acabado de levar a cafeteira de
volta para a cozinha da igreja e estava trancando o salão quando Vinessa
surgiu.
— Oi, Dana.
— Vinessa? O que houve?
— Procurei você no seu escritório — explicou Vinessa —, mas, como não
estava lá, resolvi tentar aqui.
— O que há?
— É sobre o dinheiro.
Claro que era. Vinessa tinha resolvido voltar a estudar e pedira a Dana
que a ajudasse no pagamento das mensalidades.
— E então?
— Preciso dele agora. As inscrições vão se encerrar esta semana.
— Esta semana? Na última vez que a gente conversou, você disse que ia
ser durante o outono.
— Sim, eu sei, mas resolvi que, quanto mais cedo eu começar, melhor.
Pode me arranjar o dinheiro esta semana?
Dana hesitou, pensando como iria recompor seu orçamento.
— Está mudando de ideia?
— Não...
— Porque con ei na sua palavra e baseei meus planos nisso. Se preferir
mudar de ideia, diga.
— Não, não, posso conseguir. Mando para você amanhã, certo?
— Ótimo, obrigada. Não vai se arrepender, prometo. Dessa vez vai ser
pra valer.
— Eu sei que vai.
As duas ainda se demoraram um instante, meio desajeitadas, e então
Vinessa se afastou. Dana olhou enquanto ela se afastava, e cou pensando
qual a palavra mais adequada para descrever a relação das duas.
No ensino médio, tinham sido melhores amigas. Passavam o tempo todo
juntas, trocavam con dências, cada uma chorava de rir com as piadas que a
outra contava. Mais do que isso, Dana admirava o modo como Vinessa não
ligava para a opinião de ninguém, como se recusava a ser rotulada, tinha
boas notas porque para ela era algo fácil e fazia gozações explícitas com os
professores até que eles não tinham alternativa senão lhe aplicar alguma
penalidade. Às vezes, Dana desejava ser corajosa igual à amiga, mas se sentia
confortável no papel de aluna predileta dos professores, e não queria fazer
nada que ameaçasse tal condição.
Então veio a excursão para Washington, D.C. As duas tinham planejado
dar uma festa de despedida no quarto do hotel em que estavam hospedadas,
na última noite que passaram na cidade, mas havia o problema do que fazer
caso algum professor viesse bater na porta. Era difícil esconder as bebidas
alcoólicas e o cheiro de maconha era fácil de detectar. Em vez disso,
conseguiram Vicodin no armário de medicamentos dos pais — sobras da
cirurgia dental do pai de Dana e da histerectomia da mãe de Vinessa, em
quantidade bastante para elas e as amigas.
O que elas não sabiam era que uma das professoras tinha conseguido um
cartão magnético tipo chave-mestra para fazer visitas de surpresa aos
quartos. Na primeira noite, a sra. Archer entrou no momento exato em que
as duas estavam examinando o estoque — duas dúzias de pílulas arrumadas
em las bem certinhas em cima da cômoda.
— Mas o que está acontecendo aqui?!
As duas caram imóveis por um longo momento, como estátuas. Dana
pôde sentir todos os seus projetos de futuro se evaporando como a neblina
ao sol da manhã.
— Nenhuma das duas vai falar?
Foi quando ela disse:
— Isso aí é de Vinessa.
E Vinessa olhou para ela, mais chocada do que qualquer outra coisa.
Podia ter negado, mas ambas sabiam que isso já não faria diferença, ambas
sabiam que acreditariam em Dana e nunca em Vinessa. Houve um
momento em que Dana podia ter voltado atrás no que dissera, podia ter
confessado a verdade, mas não o fez.
Vinessa pegou uma suspensão. Quando voltou à escola, ignorou Dana
acintosamente, e Dana não podia culpá-la, mas a coisa não parou por aí.
Revoltada com o mundo, Vinessa começou a ter um comportamento
chocante, praticando furtos nas lojas, passando a noite fora, chegando à
escola bêbada ou doidona e saindo com colegas que faziam o mesmo. Suas
notas começaram a cair e suas chances de ir para uma boa universidade se
dissiparam. Era como se, antes daquela noite, Vinessa estivesse se
equilibrando no o de uma navalha — ela podia ter se tornado tanto o que a
sociedade considerava uma boa garota quanto uma garota-problema. A
mentira de Dana a havia empurrado para um lado, o lado do mau
comportamento, e depois de receber esse rótulo a vida de Vinessa tomara
outro rumo.
As duas perderam o contato a partir daí, mas Dana a reencontrou por
acaso, vários anos depois. Vinessa disse que a tinha perdoado, que entendia
por que Dana havia feito aquilo. Agora, depois de ter passado algum tempo
na cadeia e um período numa clínica de recuperação, ela estava tentando
colocar a vida nos eixos. Queria assistir a aulas numa escola comunitária,
mas não tinha como pagar sozinha as mensalidades, e seus pais tinham
parado de ajudar. Dana imediatamente se ofereceu para contribuir.
A primeira tentativa não foi bem-sucedida. Vinessa descobriu que não
conseguia se envolver emocionalmente com a escola, e acabou largando o
curso. Depois, tentou começar um negócio on-line e pediu a Dana dinheiro
emprestado para as despesas iniciais. Também não deu resultado: ela
calculara mal quanto precisaria gastar. Agora, ela tinha uma ideia para outro
investimento, mas não era para isso que pedira dinheiro emprestado a Dana.
Seu plano era fazer um curso que a deixasse capaz de estruturar uma
proposta comercial sólida, que apresentaria depois para investidores em
potencial. E agora estava pedindo o dinheiro a Dana para pagar pelo curso.
Dana sabia que Vinessa estava se aproveitando do seu sentimento de
culpa, mas não se importava. Dana era culpada. Devia isso a ela.
• • •

Nat estava saindo do toalete quando ouviu Dana conversando com alguém,
na esquina do corredor. Nat se deteve, apoiou-se na parede e encostou o
celular ao ouvido, como disfarce. Então foi se chegando até ser capaz de
escutar — alguém estava pedindo dinheiro a Dana, mas a situação não era
muito óbvia. Aquela mulher estava aplicando um golpe? Nat decidiu que
tinha de descobrir um pouco mais, para ter certeza de que nenhum
imprevisto iria atrapalhar os planos dela e de Morrow, mas era mais por
curiosidade.
Ela saiu da igreja e do lado de fora encontrou a mulher.
— Desculpe, mas... você conhece Dana?
A mulher a olhou com descon ança.
— Por que quer saber?
— Faço parte de um grupo de apoio que ela coordena. Estava de saída
quando vi vocês duas conversando. Não entendi o que você estava dizendo,
mas você pareceu zangada. Fiquei pensando se você faz parte de algum
outro grupo dela, ou já foi paciente dela, e teve alguma experiência negativa.
Não quero ser indiscreta. Só quei pensando se tem alguma coisa sobre
Dana que eu devesse saber.
A mulher deu uma risada.
— Pergunta interessante. Que tipo de grupo é o seu?
— É para pessoas que têm problemas com o uso dos prismas — contou
Nat. Diante do olhar desdenhoso da outra, resolveu seguir um palpite: — Já
fui dos Narcóticos Anônimos também.
Ela assentiu com brevidade.
— Mas não era Dana a coordenadora desse outro, não?
— Não, não era.
— Bom, porque eu não con aria nela nessa área. Para esse problema com
prismas, acho que ela pode servir. Não precisa se preocupar com isso.
— Mas por que ela não seria con ável com problemas ligados a
narcóticos?
A outra pensou um pouco e então deu de ombros.
— Claro, podemos conversar. Me pague uma bebida.
Foram para um bar que havia nas proximidades. O nome da mulher era
Vinessa, e Nat pediu para ela um uísque Maker’s Mark e para si mesma um
cranberry com soda. Depois, contou uma versão bem pasteurizada de suas
experiências com o uso de drogas, uma que poderia se encaixar
plausivelmente na história com que se apresentara no grupo. Não achou que
Vinessa fosse contar a Dana sobre aquela conversa no bar, mas todo cuidado
era pouco. Assim que se sentiu satisfeita com as credenciais de Nat, Vinessa
começou a falar do próprio passado. Explicou que, em seus tempos de
ensino médio, tinha todo o potencial do mundo, estava encaminhada para
uma universidade de prestígio e uma vida maravilhosa. Tudo isso foi por
água abaixo quando sua melhor amiga a traiu, entregando-a para poder
salvar os próprios projetos pessoais. Desde então, Vinessa vinha trilhando
um caminho pedregoso, e só agora tinha uma chance de sair dessa situação.
— É por isso que eu não a aprovaria num grupo de Narcóticos
Anônimos. Não dá para ter certeza de que ela não vai denunciar.
— Supõe-se que tudo que acontece nesses grupos é con dencial — disse
Nat.
— A gente pensa o mesmo de segredos entre duas melhores amigas!
Algumas pessoas no bar se viraram para olhá-las. Vinessa voltou a
abaixar a voz até um tom normal.
— Não estou dizendo que ela é a pior pessoa do mundo. Pelo menos, teve
a decência de sentir remorso. Mas existem pessoas com as quais você pode
contar para qualquer coisa e há pessoas com que você só pode contar para
isto ou aquilo. É preciso distinguir quem é quem.
— Mesmo assim, vocês continuam se encontrando.
— Bem, é como eu disse: Dana é uma boa pessoa para certas coisas. A
questão é que não é uma boa pessoa para tudo. Aprendi vivendo.
Então, Vinessa começou a falar sobre seus planos para começar um novo
negócio. Nat não lhe perguntou sobre o dinheiro que ela ia receber de Dana,
mas percebeu que não se tratava de um golpe intencional. Vinessa estava
apenas usando Dana, oferecendo-lhe uma chance para se limpar dos
próprios pecados ao nanciar o projeto mais recente da amiga. Nat
agradeceu a Vinessa e prometeu que não comentaria com ninguém a
conversa das duas. Depois, foi direto para casa.
Nat já tinha sido como Vinessa, sempre pronta a culpar alguém pelos
problemas que enfrentava. Durante anos acreditou que era por culpa dos
seus pais que tinha sido presa por arrombamento e invasão de domicílio: se
eles não tivessem mudado as fechaduras da casa, ela não teria arrombado a
porta quando precisou pegar alguma coisa para vender e comprar drogas.
Foi preciso bastante tempo até Nat ser capaz de assumir a responsabilidade
pelas coisas que fazia. Era visível que Vinessa ainda estava longe disso, e
talvez fosse por ter encontrado em Dana alguém disposto a assumir a culpa.
Dana tinha traído a amiga, sem dúvida, mas acontecera anos atrás. Se
Vinessa até agora não tinha sido capaz de aprumar a própria vida, a culpa
era sua e não de Dana.
• • •

Quando os preços dos prismas começaram a car acessíveis para


consumidores individuais, os comerciantes começaram a anunciá-los como
uma alternativa privada aos serviços de um negociante de dados. O alvo da
publicidade eram os pais de recém-nascidos, que eram encorajados a
comprar um prisma, ativá-lo e deixá-lo sem uso até que o lho casse
adulto, e então o lho veria de que maneira diferente sua vida poderia ter
transcorrido. Essa abordagem seduziu alguns compradores, mas o total não
chegou nem perto do que os lojistas esperavam. Em vez disso, cou evidente
que, quando as pessoas podiam comprar prismas para seu próprio uso,
descobriam serventias para eles que iam muito além da exploração de
cenários do tipo “o que poderia ter sido”.
Um uso bem popular do prisma foi o de tornar alguém capaz de
colaborar consigo mesmo, dobrando a própria produtividade através da
divisão das tarefas de um projeto entre as duas versões: cada um executava
uma metade do trabalho e depois compartilhava os resultados. Alguns
indivíduos tentavam comprar vários prismas para com isso compor uma
equipe formada apenas de versões de si mesmos, mas nem todos os eus
paralelos estavam em contato direto com os restantes, o que signi cava que
as informações tinham de ser repassadas de um para o outro, o que
consumia mais rapidamente os respectivos blocos de notas. Alguns projetos
foram interrompidos bruscamente porque alguém subestimou o uso dos
dados, esgotando um prisma antes que o trabalho feito do outro lado
estivesse pronto e deixando-o para sempre inacessível.
Mais do que os negociantes de dados, a eventual facilidade de adquirir
prismas privados teve um impacto profundo na imaginação do público.
Mesmo as pessoas que nunca usaram um prisma começaram a pensar no
enorme papel que a contingência desempenhava em sua vida. Alguns
passavam por crises existenciais, sob a impressão de que seu senso de
identidade era corroído pela existência de incontáveis versões de si mesmos.
Outros compravam vários prismas e tentavam manter seus eus paralelos em
sincronia, obrigando cada um deles a manter o mesmo curso de ação, apesar
de suas rami cações começarem a divergir. Isso se revelava impraticável a
longo prazo, mas os proponentes daquela prática compravam mais prismas e
recomeçavam seus esforços com um novo conjunto de eus paralelos,
argumentando que qualquer tentativa de reduzir sua dispersão era válida.
Muitos tinham receio de que suas escolhas perdessem o sentido pelo fato
de que cada ação que tomassem fosse contrabalançada por uma rami cação
em que faziam a escolha oposta. Os especialistas tentavam explicar que as
tomadas de decisões humanas são um fenômeno da mecânica clássica e não
da quântica, de modo que o ato de fazer uma escolha não era capaz, por si
mesmo, de produzir a existência de novas rami cações. Eram os fenômenos
quânticos que as produziam, e cada escolha pessoal nossa, naquelas
rami cações, era tão signi cativa quanto possível. Apesar desses esforços,
muitas pessoas se convenciam de que os prismas anulavam o peso moral de
suas ações.
Poucos chegavam a cometer atos tão radicais como o homicídio ou
outros crimes graves — as consequências das ações de uma pessoa recaíam
sobre ela no plano em que habitava, e não nos demais. Mas havia uma
mudança de comportamento que, embora não chegando a se caracterizar
como um surto de criminalidade em massa, era perfeitamente discernível
para os cientistas sociais. Edgar Allan Poe tinha empregado a expressão “o
demônio da perversidade” para descrever a tentação de fazer uma coisa
errada simplesmente por ser possível, e para muitas pessoas esse demônio se
tornara mais que persuasivo.
• • •

Nat desejou, e não foi a primeira vez, haver uma maneira clara de saber
como Lyle se sentia a respeito de seu prisma, algum sinal visível de que ela
havia feito algum progresso. Já se passara um mês após sua cartada de
confessar que abandonara o prisma e, embora ela sentisse que Lyle estava
mais próximo de ceder do que antes, não havia como prever quanto tempo
ainda teria que esperar. Mais um mês? Mais seis meses? A paciência de
Morrow acabaria se esgotando, e eles teriam de tentar algo mais drástico.
Depois que todos se sentaram, Lyle se apresentou para falar primeiro.
Virou-se para Dana.
— Quando comecei a frequentar este grupo, você disse que um dos
objetivos aqui era dar a cada um de nós uma relação saudável com seu eu
paralelo.
— Um dos objetivos possíveis, sim — disse Dana.
— Dias atrás eu estava conversando com um cara que frequenta a mesma
academia que eu, e ele parece ter conseguido. Diz que ele e seu eu paralelo
são amigos, que trocam dicas de coisas que aprenderam e encorajam um ao
outro para que tenham um comportamento melhor. Achei incrível.
Nat cou alerta. Será que Lyle ia focar naquilo como seu objetivo dali em
diante? Se o zesse, seria um desastre. Se o zesse, nem mesmo o plano de
Morrow o faria desistir do prisma.
— E percebi — continuou Lyle — que eu nunca, jamais, conseguirei ter
esse tipo de relação com meu eu paralelo. Portanto, decidi me livrar do meu
prisma.
Nat cou tão aliviada que por um momento achou que todos tinham
percebido, mas ninguém reparou.
— Conversou com seu eu paralelo sobre isso? — perguntou Zareenah.
— Sim. Primeiro, ele sugeriu que a gente zesse uma pausa por um
tempo, mas ainda mantendo os prismas. Eu já tinha pensado nisso, porque
nesse caso conseguiria lhe mostrar quando as coisas estivessem melhores
para mim. Mas há uns dois encontros, aqui, Nat comentou que não tinha de
provar nada para ninguém. Acho que, se eu mantiver meu prisma, vou car
preso a isso, querendo provar alguma coisa. Então, avisei meu eu paralelo
sobre o que iria fazer, e ele entendeu. Vamos vender nossos prismas.
— Só porque sua relação com seu eu paralelo não é perfeita não quer
dizer que você tem de abrir mão dela — argumentou Kevin. — É como dizer
que se um casamento não parece um conto de fadas o tempo inteiro então
não vale a pena casar.
— Não concordo — disse Zareenah. — Manter um casamento é muito
mais importante do que manter uma relação com seu eu paralelo. Todo
mundo vivia bem antes de os prismas serem inventados.
— Quer dizer então que o que se espera desse grupo é fazer com que
cada um de nós se livre do seu prisma? Primeiro Nat, agora você. Não sei se
quero me desfazer do meu.
— Não se preocupe, Kevin — disse Dana. — É você quem escolhe seu
objetivo. Nem todo mundo tem de tomar a mesma decisão.
O grupo dedicou um pouco mais de tempo para tranquilizar Kevin e
discutir a validade das diferentes maneiras de conviver com um prisma.
Quando o horário chegou ao m, Nat foi conversar com Lyle.
— Acho que você está tomando a decisão certa — disse ela.
— Obrigado, Nat. Você me ajudou a chegar a essa conclusão.
— Fico feliz em saber disso.
Agora vinha a parte crucial. Nat cou surpresa ao perceber como estava
nervosa. Da maneira mais casual que pôde, sugeriu:
— Sabe, você podia vender seu prisma no mesmo lugar onde vendi o
meu. Eles fazem um bom preço, tanto para você quanto para seu eu paralelo.
— É mesmo? Como se chama?
— SelfTalk, na rua Quatro.
— Ah, sim, acho que já vi alguns pan etos deles por aqui.
— Sim, foi como quei sabendo. Se quiser algum apoio moral quando for
vendê-lo, posso ir com você, e depois a gente pode tomar um café, algo
assim.
Lyle assentiu.
— Claro, vamos, sim.
E assim, como se não fosse nada de mais, o plano inteiro estava se
encaixando.
— Que tal no domingo? — indagou ela.
• • •

Nat estava à espera do lado de fora da SelfTalk, aguardando Lyle. Sabia que
havia risco de ele mudar de ideia, mas ele chegou na hora combinada, com o
prisma. Vê-lo ali era uma espécie de anticlímax: ela e Morrow tinham
trabalhado por aquilo durante meses, mas o prisma não parecia diferente de
nenhum outro modelo recente, só uma caixa de alumínio azulado. Nat
percebeu de repente como aquela situação era ao mesmo tempo
extraordinária e surpreendentemente banal: parecia que todo prisma vinha
de um conto de fadas, uma bolsa contendo uma porta para outro mundo,
mas a maior parte desses mundos não era interessante, a maioria das portas
não tinha grande valor. Aquela ali tinha, mas somente porque poderia
refazer o contato de um príncipe com seu amado.
— Ainda quer fazer isso? — perguntou ela.
— Cem por cento. Conversei hoje de manhã com meu eu paralelo, e ele
continua rme. Deve estar a esta hora lá na outra versão da SelfTalk.
— Ótimo. Vamos, então.
Os dois entraram, e Morrow estava ao balcão.
— Posso ajudar? — quis saber ele.
Lyle respirou fundo.
— Eu gostaria de vender meu prisma.
Morrow fez os procedimentos de sempre, checou o teclado, a câmera de
vídeo, o microfone. Esse momento continha a maior variável no plano deles:
não podiam ter certeza sobre quem estaria do outro lado no balcão, quem
iria fazer uma oferta ao Lyle paralelo. Provavelmente seria o Morrow
paralelo ou a Nat paralela, e aí tudo estaria tranquilo. Mesmo sem saber do
plano que estava em curso, eles seguiriam as ações iniciadas pelo Morrow do
lado de cá. Mas havia sempre o risco de que outra pessoa estivesse agora ao
balcão da SelfTalk na outra rami cação, e isso poderia complicar as coisas.
Nat viu que Morrow estava digitando mais demoradamente do que faria
numa simples veri cação de teclado, o que era um bom sinal. Morrow
estava dizendo à pessoa do outro lado que con asse nele e pagasse pelo
prisma do Lyle paralelo um pouco mais do que o valor de mercado e agisse
com naturalidade, que ele explicaria tudo depois. Por sorte, Lyle não sabia
quanto tempo durava uma inspeção daquele tipo.
Morrow fez uma proposta, e Lyle conferenciou brevemente com seu eu
paralelo. Como os dois já tinham concordado em vender os prismas, não
estavam mais questionando o preço. Era apenas uma despedida nal. Nat se
forçou a não trocar olhares com Morrow enquanto esperavam, mas não
sabia para onde olhar. Não fazia muito sentido car observando Lyle, então
ela cou olhando pela janela, para o lado de fora.
Finalmente, Lyle devolveu o prisma e recebeu o pagamento. Assim que
tudo se encerrou, Nat perguntou:
— E agora, como se sente?
— Meio triste, meio aliviado.
— Vamos tomar um café.
Os dois conversaram por um tempo sentados à mesa do café. Depois se
abraçaram, se despediram e marcaram de se reencontrar na próxima sessão
do grupo. O plano de Nat era comparecer a mais um encontro e depois
anunciar que não achava mais necessário participar daquela atividade.
Quando ela voltou à SelfTalk, faltava meia hora para o horário de fechar,
e havia apenas dois clientes. Morrow estava no escritório, digitando no
prisma de Lyle.
— Chegou bem na hora — avisou ele. — Estou falando com meu eu
paralelo.
Fez um gesto, e ela se aproximou para olhar a tela em que os dois
trocavam mensagens.

Fala, cara.

Pode me dizer por que paguei tão caro por esse


prisma?
Acidente de carro, seis meses atrás. Scott Otsuka
e Roderick Ferris. Quem sobreviveu aí?

Roderick Ferris.

Aqui foi Scott Otsuka.

Genial! Grande sacada, cara.

Sim, hoje é seu dia de sorte. Preste atenção no


que vamos fazer agora.

Morrow já tinha localizado uma cópia impressa de um jornal de seis


meses atrás, cuja manchete anunciava que Roderick Ferris morrera no
acidente, enquanto Scott Otsuka sobrevivera. O trabalho do Morrow
paralelo, agora, seria conseguir uma cópia de um jornal impresso lá do seu
lado, mostrando que Otsuka morrera e Ferris estava vivo. Marcaram de
fazer contato novamente dentro de alguns dias.
Morrow dobrou o teclado e guardou o prisma numa prateleira nos
fundos do depósito. Sorriu para Nat quando voltou ao escritório.
— Você não acreditou que ia dar certo, hein?
Ela tivera dúvidas, e mesmo agora mal podia acreditar.
— Não deu tudo certo ainda.
— A parte mais difícil já passou. O resto vai ser mais tranquilo. — Ele
deu uma risada. — Vamos, se alegre, vamos car ricos.
— Imagino que sim.
O que já era uma preocupação a mais. Para uma ex-viciada, uma entrada
súbita de muito dinheiro podia provocar uma recaída, tanto quanto um
acontecimento traumático.
Como se estivesse lendo a mente dela, Morrow disse:
— Está com medo de voltar aos velhos hábitos? Posso guardar seu
dinheiro num lugar seguro, onde você não vai gastar com coisas erradas.
Nat deu uma breve risada.
— Obrigada, Morrow, mas acho que posso cuidar da minha parte.
— Só quero ajudar.
Nat cou pensando na outra versão dela, no outro lado do prisma. Ela e
essa versão tinham sido a mesma pessoa até cerca de um ano atrás, quando
o prisma fora ativado. Agora, Nat ia car rica e a outra Nat, não. O Morrow
paralelo ia car rico, mas não era do tipo capaz de dividir os ganhos com a
outra Nat. Não que ela merecesse: a Nat paralela não tinha frequentado o
grupo de apoio, não tinha feito nenhum esforço. O Morrow paralelo
também não tivera trabalho algum: era apenas um cara de sorte, porque era
ele quem estava de serviço ao balcão quando o contato foi feito. Se quem
estivesse ali naquele momento fosse Nat, ela provavelmente iria ser obrigada
a dividir os lucros futuros com o Morrow paralelo, pois era ele o patrão. Mas
ela também ganharia uma boa grana somente porque estava no lugar certo
na hora certa. Tudo, en m, se resumia a ter sorte.
Alguém estava entrando pela porta da frente, um homem de seus
quarenta anos vestido com um casaco impermeável. Nat foi até o balcão.
— Posso ajudar?
— Aqui trabalha um sujeito chamado Morrow?
Morrow saiu do escritório.
— Sou eu.
O homem o encarou.
— Sou Glenn Oehlsen. Você roubou vinte mil dólares de minha mãe.
Morrow fez uma cara de estupefação.
— Houve algum engano. Ajudei sua mãe a fazer contato com o eu
paralelo dela, e...
— Sim, e a convenceu a dar o dinheiro que tinha. Esse dinheiro é meu!
— Ele era da sua mãe — disse Morrow. — Ela podia fazer com ele o que
bem quisesse.
— Pois bem, estou aqui agora e quero o dinheiro de volta.
— Não está comigo. Ele foi transferido para o outro lado.
O rosto de Oehlsen se contorceu de desagrado.
— Não venha com essa. Sei que não se pode transferir dinheiro de uma
rami cação para outra. Não sou idiota.
— Se me der alguns dias, posso tentar saber se o eu paralelo de sua mãe
está disposta a restituir...
— Cala a boca.
Oehlsen puxou uma pistola de dentro do casaco e apontou-a para
Morrow.
— Me dá o dinheiro.
Morrow e Nat ergueram as mãos.
— Tudo bem. Vamos ter calma — disse Morrow.
— Vou car calmo quando estiver com o dinheiro.
— Não tem dinheiro algum aqui.
— Para de falar merda.
Do ângulo em que estava, Nat pôde ver que um dos clientes por trás da
divisória percebera o que acontecia e estava ligando para a polícia.
— Tem dinheiro na registradora — comentou ela. — Pode pegar.
— Não sou um assaltante, porra! Só quero o que é meu. Quero o que esse
cara roubou da minha mãe.
Com a mão livre, Oehlsen puxou o celular do bolso e o colocou sobre o
balcão.
— Agora pegue o seu — ordenou a Morrow.
Lentamente, Morrow tirou o celular do bolso e o colocou junto do
aparelho de Oehlsen.
Oehlsen tocou na tela do celular, abrindo o aplicativo bancário.
— Agora você vai fazer a transferência. Vinte mil dólares.
Morrow fez que não com a cabeça.
— Não.
— Acha que estou brincando?
— Não vou dar dinheiro nenhum.
Nat olhou para Morrow com incredulidade.
— Basta!
— Cale a boca — disse Morrow, furioso. Voltou a atenção para Oehlsen e
repetiu: — Não vou dar dinheiro nenhum.
Oehlsen estava desconcertado.
— Acha que não vou atirar? — perguntou Oehlsen.
— Acho que não quer ir para a cadeia.
— Você trabalha com prismas e deve saber que existe uma linha do
tempo em que eu estou atirando em você neste momento exato.
— Ah, sim, mas não creio que seja nesta aqui.
— Se de uma maneira ou de outra isso acontece, por que não seria aqui?
— Se me matar, quem vai para a cadeia é você. E, como eu disse, você
não quer isso.
Oehlsen o encarou por um minuto. Depois abaixou a pistola, recolheu o
celular e saiu da loja.
Nat e Morrow soltaram altos suspiros de alívio.
— Meu Deus, Morrow. No que estava pensando?
Morrow deu um sorriso débil.
— Eu sabia que ele não tinha coragem.
— Quando um cara está apontando uma arma, você faz o que ele manda.
Nat percebeu que seu coração ainda batia acelerado, começou a controlar
a respiração para acalmá-lo. Sua blusa estava encharcada de suor.
— É melhor eu checar os clientes...
Oehlsen surgiu novamente à porta.
— Foda-se — disse ele. — Que diferença faz?
Ergueu a arma, disparou um tiro bem no rosto de Morrow e foi embora.
• • •

A polícia prendeu Glenn Oehlsen a alguns quilômetros dali. Os policiais


interrogaram Nat, os clientes que estavam na loja e um executivo que veio
da matriz da SelfTalk. Nat disse aos policiais que não sabia o que Morrow
andava fazendo, e eles pareceram acreditar. Ela confessou aos policiais saber
que Morrow estava tirando o prisma da loja e levando para a casa de
repouso onde Jessica Oehlsen estava internada, e recebeu uma censura por
não ter comunicado à empresa sobre esse procedimento irregular. No dia
seguinte, um gerente provisório foi à loja, ordenou um inventário de todos
os prismas estocados no estabelecimento e criou um novo regulamento para
a retirada de qualquer um deles do depósito, mas Nat já tinha levado para
casa o prisma que Morrow comprara de Lyle.
No dia marcado para o novo contato com o Morrow paralelo, Nat ativou
o teclado.

Oi, cara.

Aqui não é Morrow. É Nat.

Olá, Nat. Por que você está no prisma?

Tivemos problemas. Morrow está morto.


O quê?! É sério?

Ele tinha aplicado um golpe numa mulher


chamada Jessica Oehlsen. O filho dela, Glenn,
veio aqui e atirou nele. Não sei se você fez algo
assim aí do seu lado, mas se fez, cuidado. O filho
dela é maluco.

Que merda. Foda.

Pois é. E você, o que pretende fazer agora?

Houve uma pausa bem longa até que a resposta apareceu na tela.

A gente pode continuar com o plano. Você vai ter


que cuidar das coisas sozinha por aí. Acha que
consegue?

Nat pensou com cuidado. Vender o prisma a Scott Otsuka implicaria ir


pessoalmente até Los Angeles, uma viagem de ônibus de várias horas, tanto
na ida quanto na volta. Teria de haver um encontro preliminar antes de
concluir a venda, o que signi cava, no mínimo, duas viagens.

Posso dar um jeito, sim.

Pela primeira vez, Nat não seria a compradora. Agora ela iria vender.
Teria de exibir provas que atestassem quanto seu prisma era valioso. Nat e o
Morrow paralelo trocaram fotos dos respectivos jornais com as notícias
impressas. Era algo mais difícil de forjar do que um mero print da página de
um website.
Agora, ela precisava entrar em contato com alguém ligado a Scott
Otsuka, explicar o que estava oferecendo e mandar a fotogra a para
comprovação.
• • •

Ornella tinha trabalhado como assistente pessoal de Scott durante dez anos,
bem antes de ele conhecer Roderick e os dois se casarem. O assistente de
Roderick tinha ido morar na França dois anos atrás e, embora ele tivesse
alguém à mão para acompanhá-lo por ocasião das lmagens em locações ou
fazendo alguma turnê de divulgação, quando Roderick estava em casa
Ornella trabalhava como assistente para ambos. Até seis meses atrás, quando
um motorista bêbado mudara tudo. Agora, ela voltara a trabalhar apenas
para Scott.
Antes do acidente, Ornella nunca dera muita atenção aos prismas. Sabia
que os fãs de Scott circulavam entre si cópias piratas de outras versões das
canções escritas por ele, mas ele nunca se dera ao trabalho de escutá-las, e
ela fazia o mesmo — o mesmo valia para Roderick e seus lmes. Mas, depois
do acidente de carro, parecia que ela estava sendo soterrada por anúncios de
negociantes de dados: “Assine agora e seja o primeiro a ver os lmes que
Roderick Ferris teria feito se continuasse vivo.”
E depois havia as ofertas dos fãs que possuíam prismas e queriam dá-los
de presente a Scott. Eles sabiam, pelas entrevistas dos dois, que nem Scott
nem Roderick tinham prismas e, embora fosse fácil para Scott adquirir um,
queriam aproveitar aquilo para fazer contato, para se tornarem a pessoa que
conseguiu aliviar seu sofrimento. Ornella sabia que Scott tinha pensado em
comprar um prisma. Ele daria qualquer coisa para ver Roderick vivo
novamente. Mas o problema era óbvio: em cada uma das rami cações onde
o acidente não acontecera e seu marido ainda estava vivo, seu eu paralelo
também sobrevivera. Scott passaria a ser, então, um viúvo inconsolável
interferindo na vida de um casal feliz, uma lembrança viva de que uma
catástrofe podia acontecer a qualquer momento, como um espectro durante
um banquete. Não era isso que ele desejava. Se Scott tivesse que se defrontar
com um Roderick paralelo, não queria ser para ele um objeto de piedade
nem uma causa de medo.
Mas essa nova oferta era diferente: um prisma conectado a uma
rami cação do tempo onde não existia um Scott paralelo, apenas um
Roderick enlutado. Isso, sim, era algo que poderia interessá-lo. No entanto,
Ornella não revelaria nada para ele enquanto não se certi casse de que era
uma proposta legítima.
Ela contratou um especialista para examinar a imagem que recebera. Ele
lhe disse que não era uma falsi cação óbvia, mas ele próprio poderia criar
uma com a mesma qualidade, de modo que a imagem em si não servia de
prova para coisa alguma. Ornella disse à vendedora do prisma que precisava
primeiro conversar com a Ornella do outro lado, de modo que acabaram
combinando um horário.
Ficou um pouco surpresa quando a vendedora aparecera. Tinha
imaginado que “Nat” era um homem, mas foi uma mulher que apareceu no
portão da frente, carregando a pasta com um prisma. Nat era magrinha e
poderia ser bonita caso se esforçasse mais, mas pairava nela uma espécie de
tristeza. Anos de trabalho ao lado de Scott tinham dado a Ornella um olhar
clínico para reconhecer pessoas aproveitadoras, mas não foi esta a impressão
que teve, pelo menos naquele primeiro contato.
— Vou ser bastante clara — disse Ornella, depois que Nat entrou. — Você
não vai conversar com Scott hoje. Ele nem sequer está em casa. Se eu car
satisfeita com o que vou ver, então vamos marcar outro encontro.
— Claro, foi o que imaginei — respondeu Nat. Parecia estar quase
pedindo desculpas pelo que fazia.
Ornella instalou o prisma em cima de uma mesinha de café. De início,
Nat entrou numa conversa por texto com a pessoa do outro lado, depois
mudou para vídeo e deslizou o prisma para a frente de Ornella. Um rosto
apareceu na tela, mas não era uma versão paralela de Nat, era um homem,
magro, de rosto no. Um oportunista.
— Quem é você? — quis saber ela.
— Meu nome é Morrow.
Ele deu um passo para o lado e a tela foi preenchida por uma versão dela
mesma. Ornella observou que o aposento por trás dos dois era o mesmo
onde ela estava agora, e reconheceu também a roupa que sua versão paralela
estava usando.
— Isso é de verdade? — perguntou ela, hesitante. — Roderick está vivo aí
no seu lado?
Sua versão paralela estava com a mesma expressão de quase
incredulidade.
— Sim, está. E Scott está vivo aí?
— Sim.
— Tenho algumas perguntas.
— As mesmas que eu tenho, provavelmente.
As duas Ornellas trocaram informações sobre o acidente. Em ambas as
rami cações, ele ocorrera do mesmo modo: a mesma sessão de estreia, o
mesmo motorista bêbado. Só o sobrevivente que era outro.
Concordaram que Ornella falaria com Scott e sua versão paralela avisaria
a Roderick. Presumindo que ambos vissem aquela possibilidade com bons
olhos, as Ornellas marcaram uma data na semana seguinte para fazerem um
teste usando os prismas e decidirem se queriam comprá-los.
— Agora vamos conversar sobre o preço — disse Ornella.
— Não, não vamos — disse Morrow com rmeza, lá do outro lado. —
Depois que os patrões de vocês tiverem testado o produto, vou dizer o preço.
Ou vocês pagam, ou nós vamos embora.
Uma estratégia que fazia sentido: supondo que Scott e Roderick
quisessem fazer a compra, não estariam em condições de pechinchar. Era
bem óbvio que quem estava dando as cartas naquele episódio era o tal de
Morrow.
— Está bem — concordou Ornella. — Voltaremos a conversar.
Ela empurrou o prisma de volta para Nat, que trocou algumas frases
rápidas com Morrow antes de desligar.
— Então é isto — disse Nat. — Semana que vem estarei de volta.
— Ótimo.
Ornella a acompanhou até a porta da frente e elas se despediram.
Quando Nat estava descendo os degraus, Ornella perguntou:
— Por que estou negociando com você?
Nat se virou.
— O que disse?
— Meu eu paralelo está resolvendo isso com um cara chamado Morrow.
Por que do lado de cá estou com você, em vez da outra versão desse
Morrow?
A mulher suspirou.
— É uma longa história.
• • •

Nat se serviu de um copo de café e procurou seu assento. Era sua segunda
reunião com o grupo depois de ter conseguido o prisma de Lyle. Na semana
anterior, ela havia planejado fazer o anúncio de que não voltaria, mas se vira
incapaz de falar fosse o que fosse. Tivera de comparecer pelo menos mais
uma vez, para dizer que ia dar um tempo do grupo. As pessoas cariam
preocupadas se ela deixasse de comparecer.
Dana sorriu para o grupo e disse:
— Quem deseja ser o primeiro hoje?
Quase involuntariamente, Nat começou a falar, no mesmo instante em
que Lyle também dizia algo. Os dois se interromperam.
— Pode falar — disse Nat.
— Não, não, fale primeiro. Acho que, até hoje, você nunca abriu uma
reunião.
Nat percebeu que ele tinha razão. O que acontecera com ela? Abriu a
boca, mas dessa vez não conseguiu pensar em nenhuma mentira
conveniente. Acabou dizendo:
— Um cara com quem eu trabalho, acho que pode ser chamado de meu
supervisor, morreu recentemente. Na verdade, foi assassinado.
O grupo se mostrou chocado, e alguns “oh, meu Deus” foram ditos entre
os sussurros.
— Quer comentar sua relação com ele? — disse Dana.
— Isso. Era seu amigo? — quis saber Kevin.
— Mais ou menos — admitiu ela. — Mas não é isso que está me
preocupando. Sei que isso aqui não é um grupo de apoio para problemas
emocionais... Acho que abordei esse assunto porque queria a opinião de
vocês sobre uma coisa.
— Claro — respondeu Dana. — Continue.
— Não consigo parar de pensar sobre quanto esse assassinato foi uma
coisa aleatória. Quer dizer, quando o cara estava apontando a arma para
meu supervisor, ele disse que alguma versão dele ia puxar o gatilho, então,
por que não ele? Todos nós já ouvimos esse tipo de fala antes, mas nunca
prestei muita atenção. Mas estou pensando: será que quem diz isso tem
mesmo razão?
— Esta é uma boa pergunta — disse Dana. — É verdade que todos nós já
escutamos coisas parecidas. — Ela se dirigiu ao grupo. — Alguém tem
algum comentário? Acham que toda vez que enfurecemos alguém existe
uma rami cação onde essa pessoa pega uma arma e atira?
Zareenah pediu a palavra.
— Li em algum lugar que o número de crimes passionais aumentou
depois que os prismas se tornaram uma coisa popular. Não foi um aumento
enorme, mas era estatisticamente signi cante.
— Sim — disse Kevin. — E é por isso que essa teoria não pode ser
verdadeira. O fato de que houve um aumento, mesmo pequeno, desmente a
teoria.
— Como você pode demonstrar isso? — disse Zareenah.
— As rami cações são produzidas por qualquer evento quântico, certo?
Mesmo antes de termos prismas essas rami cações estavam se produzindo
constantemente. A única diferença era que naquele tempo não tínhamos
como acessá-las. Se fosse verdade que existe sempre uma rami cação onde
você pega uma arma e atira em alguém por mero impulso, então deveria
haver antes da invenção do prisma o mesmo número de crimes aleatórios,
todos os dias, que constatamos depois que ele foi inventado. A invenção do
prisma não faria com que mais crimes desse tipo se acumulassem em uma
rami cação especí ca. Então, se estamos presenciando mais gente matando
outras pessoas, depois que os prismas se multiplicaram, não pode ser porque
sempre existe uma rami cação onde você usa a pistola.
— Entendi o raciocínio — disse Zareenah. — Mas então o que está
provocando o aumento dos assassinatos?
Kevin deu de ombros.
— É como uma onda de suicídios. As pessoas ouvem falar que existem
outras pessoas fazendo aquilo, e cam com a cabeça cheia de ideias.
Nat pensou um pouco a respeito e disse:
— Isso prova que o argumento não está certo, mas não explica por que
está errado.
— Se você con rma que a teoria está errada, para que descobrir mais?
— Porque quero saber por que minhas decisões têm importância! —
Aquilo saiu com mais ênfase do que ela pretendia. Nat respirou fundo, e
continuou: — Esqueça o assassinato. Não é disso que estou falando. Mas,
quando tenho uma chance de fazer a coisa errada ou a coisa certa, estarei
sempre fazendo as duas coisas em universos diferentes? Por que deveria me
preocupar em ser bacana com outras pessoas, se todas as vezes estarei sendo
sacana também?
O grupo se envolveu nessa discussão por algum tempo, mas logo depois
Nat interpelou Dana.
— Pode me dizer o que você pensa?
— Claro — disse Dana, e fez uma pausa para ordenar as ideias. — Em
geral, acho que as ações de uma pessoa são consistentes com o caráter dela.
Pode haver mais de uma ação que você pratique e esteja em conformidade
com seu caráter, porque seu comportamento vai variar, dependendo de seu
estado de espírito, mas há um número maior de coisas que estariam em
desacordo com seu caráter. Se você é alguém que sempre gostou de animais,
não existe uma rami cação em algum lugar onde você chuta um cãozinho
só porque ele latiu para você. Se você é alguém que sempre obedece à lei,
não há uma rami cação onde você de repente assalta uma loja de
conveniência pela manhã, em vez de ir trabalhar.
— E quanto às rami cações que começaram a divergir quando você era
um bebê e sua vida tomou uma direção diferente? — indaga Kevin.
— Não me preocupo com isso — disse Nat. — Estou pensando nas
rami cações onde eu, tendo vivido a vida que vivi, me deparo com uma
escolha.
— Kevin, podemos conversar sobre divergências maiores depois, se
quiser — disse Dana.
— Não, está bem. Continuem.
— Muito bem. Vamos imaginar uma situação na qual você tem duas
opções, e ambos os comportamentos seriam consistentes com seu caráter.
Por exemplo, imagine que o caixa de uma loja lhe devolveu troco a mais, e
você tem a escolha de embolsar o dinheiro ou devolvê-lo. Vamos supor que
você seja uma pessoa capaz de fazer ambas as coisas, dependendo de como
tenha sido seu dia. Nesse caso, eu diria que é possível existir uma
rami cação onde você ca com o dinheiro, tanto quanto uma em que você o
devolve.
Nat pensou e percebeu que não haveria rami cações onde ela devolvia o
troco. Pelo que lhe dizia respeito, se ela estivesse tendo um dia agradável o
ato de embolsar um troco extra dado por engano faria dele um dia melhor
ainda.
— Isso signi ca, então, que não faz diferença se a gente agir como um
sacana? — perguntou Kevin.
— Faz diferença para a pessoa que, nesse lado, vai sofrer os efeitos da sua
sacanagem — disse Zareenah.
— Mas do ponto de vista global? Ser sacana nessa rami cação aumenta a
porcentagem de comportamento sacana em todas as outras?
— Não tenho certeza quanto ao aspecto matemático — respondeu Dana.
— Mas creio com toda a rmeza que nossas escolhas são importantes, sim.
Cada decisão que você toma contribui para seu caráter e molda o tipo de
pessoa que você é. Se você quer ser alguém que sempre devolve o dinheiro
extra ao caixa, as ações que você pratica agora vão contribuir para que seja
essa pessoa.
“A rami cação onde você tem um dia difícil e resolve embolsar o
dinheiro extra se separou de você e cou para trás. Você não pode mais
in uir nela. Mas se age eticamente nessa rami cação, isso ainda tem sentido,
porque produz um efeito nas rami cações que surgirão no futuro. Quanto
mais escolhas éticas você zer, menor a probabilidade de que faça escolhas
egoístas no futuro, mesmo naquelas rami cações onde tem um dia difícil.”
— Isso soa bonito, mas... — Nat pensou quantos anos de ações
recorrentes, sempre iguais, seriam capazes de criar uma espécie de sulcos na
mente de uma pessoa, conduzindo suas ações sempre naquela mesma
direção, sem que ela tivesse consciência. — Mas não é fácil.
— Sei que não é — disse Dana. — Mas a questão era: dado que sabemos
sobre as outras rami cações, vale a pena fazer a escolha certa? Eu acho que
sim, sem a menor dúvida. Nenhum de nós é santo, mas todos podemos
tentar melhorar. Cada vez que você pratica um ato generoso, você está se
de nindo como uma pessoa com mais probabilidade de ser generosa na
próxima vez, e isso pesa.
“E não é somente seu comportamento aqui que você está alterando, e sim
todas as versões de você mesmo que vão se subdividir no futuro. Ao se
tornar uma pessoa melhor, você garante que um número cada vez maior de
rami cações que serão criadas daquele ponto em diante estará habitado por
versões melhores de você.”
Versões melhores de Nat.
— Obrigada — disse ela. — Era o que eu queria saber.
• • •

Ornella já havia imaginado que o encontro de Nat e Scott seria um tanto


constrangedor, mas acabou sendo muito mais do que ela esperava. Há meses
que Scott mal conversara com alguém que não fosse da família ou do grupo
de amigos mais próximo, e estava sem muita prática de exibir sua persona
pública. A perspectiva de ver Roderick vivo mais uma vez o deixava ansioso.
Quanto a Nat, ela parecia distante, algo que Ornella não esperava da parte
de alguém que estava prestes a ganhar uma bela quantia em alguns minutos.
Nat instalou o prisma em cima da mesinha de café, mais uma vez.
Ornella ligou o vídeo e viu o rosto de Morrow. Logo em seguida surgiu o seu
eu paralelo, que parecia tão apreensiva quanto ela mesma. Por um instante,
Ornella teve um impulso de cancelar tudo aquilo, receosa de que Scott
acabasse ainda mais magoado do que já estava, mas sabia que eles não
podiam deixar passar essa oportunidade. Fez um gesto para que Scott
sentasse a seu lado, ao mesmo tempo que seu eu paralelo gesticulava para
alguém fora da tela, e então Ornella girou o prisma para que este
enquadrasse Scott.
Na tela havia um rosto, duplamente familiar, primeiro porque era
Roderick, e segundo porque era um rosto devastado por meses de
sofrimento, a mesma expressão que Ornella via no rosto de Scott todos os
dias. Scott e Roderick começaram ambos a chorar ao mesmo tempo, e
Ornella sentiu, mais do que já sentira em qualquer momento no passado,
que aqueles dois homens foram feitos um para o outro, como se cada um
deles pudesse olhar o rosto do outro e ver a si mesmo.
Scott e Roderick começaram a falar ao mesmo tempo. Ornella não queria
que pessoas estranhas presenciassem o que eles diziam, e cou de pé.
— Podemos conceder um pouco de privacidade a eles?
A mulher, Nat, assentiu e esboçou o movimento de se retirar da sala, mas
Ornella ouviu a voz de Morrow do outro lado do prisma.
— Eles podem ter todas as conversas pessoais que quiserem depois que o
prisma for deles. Primeiro, vão ter de comprá-lo.
— Quanto? — perguntaram as duas Ornellas ao mesmo tempo.
Morrow disse um valor. Ornella viu que Nat reagiu, como se aquilo fosse
mais do que ela esperava.
Scott e Roderick não hesitaram.
— Aceito — responderam.
Ornella segurou a mão de Scott e olhou para ele, numa pergunta muda.
Tem certeza? Ele apertou a mão dela e assentiu. Algumas horas antes eles
haviam conversado sobre o fato de que o contato que um prisma oferecia
tinha um m. Por mais que ele e Roderick economizassem, a capacidade de
dados disponíveis no prisma não duraria até o m da vida dos dois. Eles não
se satisfariam em apenas trocar mensagens de texto: iam querer ouvir a voz
um do outro, ver o rosto um do outro, o bloco de notas acabaria se
esgotando, e teriam que dizer adeus. Scott estava disposto a ir em frente com
a transação. Qualquer tempo extra que pudessem compartilhar não tinha
preço, na opinião dele, e, quando aquilo chegasse ao m, não seria de
surpresa.
Ornella cou de pé e virou-se para Nat.
— Venha comigo. Vou fazer o pagamento.
Ela ouviu sua versão paralela dizer a mesma coisa a Morrow. A tela
mudou do rosto de Roderick para o de Morrow, e depois cou escura. Ele
não perderia de vista o prisma até que o dinheiro caísse em sua conta.
Já Nat, contentou-se em deixar seu prisma na mesa, perto de Scott. Ela
olhou para ele desajeitadamente.
— Sinto muito por sua perda.
— Obrigado — disse Scott, enxugando as lágrimas.
Nat seguiu Ornella até o escritório. Ornella destravou seu telefone de
trabalho e abriu o aplicativo bancário. Ela e Nat trocaram os números das
respectivas contas e deixaram os fones lado a lado na mesa. Ornella digitou
o valor a ser transferido e apertou ENVIAR. O celular de Nat con rmou o
recebimento, mas Nat não apertou o botão ACEITAR.
— Imagino que Scott tem uma porção de fãs que entregariam esse prisma
a ele de graça — comentou Nat, olhando a telinha do aparelho.
Ornella assentiu, embora Nat não estivesse olhando para ela.
— Sim. Sem dúvida.
— Deve haver pessoas por aí que nem sequer são fãs dele, mas que fariam
o mesmo, se fosse o caso.
— Provavelmente.
Ornella esteve a ponto de dizer que ainda havia bons samaritanos no
mundo, mas não quis ofender Nat insinuando que ela não seria um deles.
Depois de um longo momento, Ornella disse:
— Já que o dinheiro foi transferido, você se incomoda se eu zer uma
observação pessoal?
— Vá em frente.
— Você não é como Morrow.
— Como assim?
— Entendo por que ele está fazendo isso. — Como dizer aquilo de uma
maneira cuidadosa, cheia de tato? — Ele vê uma pessoa que está sofrendo
como uma oportunidade para obter lucro.
Nat assentiu, com relutância.
— É, ele vê.
— Mas você não é assim. Então, por que está fazendo isso?
— Todo mundo precisa de dinheiro.
Ornella se sentiu audaciosa o bastante para ser franca.
— Se não se importa que eu diga, existem maneiras melhores de ganhar
dinheiro.
— Eu não me importo. Tenho pensado nisso também.
Ornella não tinha certeza se devia insistir. Acabou dizendo:
— Scott está feliz em lhe pagar pelo que você fez. Mas se não car
satisfeita em receber esse dinheiro, ninguém a obrigará a isso.
O dedo de Nat hesitou sobre o botão.
• • •

Durante as semanas mais recentes, Dana teve o cuidado de não mencionar,


em suas sessões com Jorge, o incidente de vandalismo. Em vez disso, os dois
conversaram sobre os esforços dele em reconhecer as boas qualidades que
tinha e em ignorar o que as outras pessoas pudessem ou não pensar a seu
respeito. Ela sentia que os dois estavam fazendo progressos e achou que em
breve seria capaz de tocar naquele assunto.
Desse modo, cou surpresa quando ele abriu uma sessão dizendo:
— Andei pensando se devia voltar lá na Lydoscope e pedir a eles que
entrem de novo em contato com meus eus paralelos.
— É mesmo? Por quê?
— Queria saber se eles tiveram alguma atitude desde a última vez em que
nos falamos.
— Aconteceu alguma coisa para você querer fazer isso?
Jorge descreveu um episódio recente de sua relação com o gerente.
— Depois disso, quei furioso, louco para sair arrebentando tudo. E isso
me fez pensar naquilo que a gente tinha conversado, que era como se eu
tivesse recebido o resultado de um exame médico quando fui à Lydoscope.
Comecei a achar que esse tal exame não tinha sido profundo o bastante.
— E saber que seus eus paralelos praticaram alguma ação recentemente
signi caria que existe algo sério em você que os exames não detectaram?
— Não sei. Talvez.
Dana decidiu forçar mais um pouco.
— Jorge, eu gostaria de fazer uma sugestão. Mesmo que seus eus
paralelos não tenham praticado nenhuma ação violenta nos últimos tempos,
talvez valha a pena você pensar um pouco sobre o que aconteceu aqui, do
nosso lado.
— Mas como posso saber se isso foi um acidente, um ponto fora da
curva, ou não, a menos que eu veri que meus eus paralelos?
— Foi uma coisa que não combina com sua personalidade — explicou
Dana. — Quanto a isso nem se discute. Mas em todo caso foi algo que você
fez. Você, e não os outros.
— Você está dizendo que eu sou um caso grave.
— Não estou dizendo isso — garantiu ela. — Sei que você é uma boa
pessoa. Mas mesmo uma boa pessoa pode sentir raiva. Você cou com raiva
e desabafou. Tudo bem. E é legal você admitir que existe um lado assim na
sua personalidade.
Jorge cou em silêncio por um minuto, e Dana receou ter forçado
demais.
— Talvez você esteja certa. Mas não é importante o fato de ser algo que
não bate comigo, em vez de ser algo caracteristicamente meu?
— Claro que é. Mas mesmo que você estivesse agindo na contramão de
seu caráter, é preciso assumir a responsabilidade pelas suas ações.
Uma expressão de medo cruzou o rosto dele.
— Quer dizer que tenho de contar ao gerente o que z?
— Não me re ro a assumir responsabilidade penal — assegurou Dana. —
Não me importo se seu gerente vai descobrir quem foi ou não. Quando falo
de assumir responsabilidade estou falando de admitir, para você mesmo, o
que fez, e levar isso em consideração quando for decidir, no futuro, se faz ou
não alguma coisa.
Ele suspirou.
— Não posso apenas esquecer que isso ocorreu?
— Se você pensasse de verdade que caria mais feliz esquecendo o que
houve, eu aceitaria sem problema. Mas o fato de já ter despendido tanta
energia discutindo a respeito mostra que esse assunto o incomoda.
Jorge baixou os olhos e assentiu.
— Tem razão. Incomoda mesmo. — Olhou para ela. — O que eu deveria
fazer agora?
— O que acha de contar a Sharon o que aconteceu?
Ele fez uma longa pausa.
— Eu imagino que... se eu também disser a ela que meus eus paralelos
não zeram a mesma coisa, então talvez ela entenda que não é algo
fundamental da minha pessoa. Talvez ela não que com uma ideia errada de
mim.
Dana se permitiu um discreto sorriso: ele acabava de transpor um limite.
• • •

Uma nova cidade, um novo apartamento. Nat ainda não tinha encontrado
um novo emprego, mas ainda era cedo. Tinha sido fácil, contudo, encontrar
um novo grupo de Narcóticos Anônimos. De início, ela havia pensado em
comparecer uma última vez ao grupo de apoio sobre prismas e contar tudo a
eles, só que quanto mais pensava a respeito, mais se convencia de que isso
redundaria em benefício apenas para ela, e para ninguém mais. Lyle estava
numa situação boa — ele não caria feliz se soubesse que durante todo o
tempo em que foram amigos ela estava com segundas intenções. A mesma
coisa valia para o restante do grupo. Era melhor deixá-los pensando que a
Nat que haviam conhecido era a verdadeira Nat.
E este era o motivo da presença dela num encontro dos Narcóticos
Anônimos. Era bem maior do que o grupo dos prismas — prismas jamais
teriam o mesmo apelo popular das drogas — e exibia a mistura habitual:
pessoas que você jamais imaginaria que tinham um vício e pessoas que eram
o viciado típico. Ela não fazia ideia se aquele grupo era radical sobre seguir o
passo a passo ou a submissão a uma autoridade central. Nem sequer sabia se
estava mesmo a m de comparecer aos encontros com regularidade —
decidiu que iria improvisando de acordo com o que acontecesse.
A primeira pessoa a falar foi um homem que narrou a experiência de
despertar de uma overdose para constatar que sua lha de treze anos tivera
que lhe aplicar uma injeção de Narcan. Não era fácil escutar aquilo, mas Nat
achou certo conforto em se ver de novo num grupo de pessoas com
experiências semelhantes às suas. Uma mulher foi a próxima a falar, e depois
outro homem. Nenhum deles contou algo especialmente chocante, e ela se
sentiu aliviada. Ela não gostava de falar logo depois de alguém contar uma
história muito horrorosa.
O líder do grupo era um homem de fala macia, com uma barba
arruivada.
— Estou vendo alguns rostos novos aqui hoje. Gostariam de dizer
alguma coisa ao grupo?
Nat ergueu a mão e apresentou-se.
— Não compareço a um grupo há alguns anos. Tenho conseguido me
manter limpa. Mas recentemente me aconteceram algumas coisas... Não é
que eu precise de um grupo para me impedir de ter uma recaída, mas tenho
pensado numa porção de coisas e acho que queria apenas um lugar para
conversar.
Ela cou em silêncio por alguns instantes — já fazia bastante tempo que
tinha vivido um momento assim —, mas o líder do grupo entendeu que ela
tinha mais coisas a dizer e esperou com paciência. Ela prosseguiu:
— Eu magoei algumas pessoas e acho que nunca conseguirei consertar
isso. Elas nunca me darão uma chance, e não posso culpá-las. Mas suponho,
de certo modo, que isso me fez pensar uma coisa: se não posso agir da
maneira certa com elas, essas pessoas que prejudiquei tanto, então não tem
muita importância se eu for uma boa pessoa para o resto, ou não. De modo
que me mantive limpa, mas não deixei de mentir, não deixei de enganar.
Nada terrível, nada que prejudicasse alguém como eu fazia quando era
usuária. Eu estava somente cuidando de mim mesma, sem pensar muito a
respeito.
“Mas recentemente tive uma... uma oportunidade de fazer uma coisa
realmente boa por alguém. Eu não tinha prejudicado essa pessoa, era apenas
alguém sofrendo. Teria sido fácil para mim agir da maneira como sempre
agi. Mas imaginei como se comportaria alguém que fosse melhor do que eu,
e foi assim que me comportei.
“Fiquei me sentindo bem por ter feito isso, mas não acho que mereço
uma medalha ou algo do tipo. Porque existem outras pessoas para as quais
uma ação generosa brota com facilidade, sem muita luta. E é fácil para elas
porque no passado elas tomaram uma porção de decisões generosas. Foi
difícil para mim porque no meu passado eu tinha tomado muitas decisões
egoístas. Portanto, sou a razão pela qual é tão difícil para mim mesma ser
uma pessoa generosa. Isso é algo que preciso consertar. Ou quero consertar.
Não sei se este grupo é o grupo mais adequado para isso, mas foi o primeiro
lugar que me veio à cabeça.”
— Obrigado — disse o líder. — Você é bem-vinda aos nossos encontros.
O outro novato, um rapaz que parecia ter acabado de concluir o ensino
médio, apresentou-se e começou a falar. Nat se virou para escutar sua
história.
• • •

Quando Dana chegou em casa, havia um pacote à espera. Assim que entrou
no apartamento, ela o abriu e encontrou um tablet. Não era um embrulho
comercial. Tinha apenas um curto bilhete colado à tela: “Para Dana”. Ela
examinou a caixa, mas não havia sinais do remetente.
Dana ligou o tablet. Os únicos ícones na tela eram meia dúzia de arquivos
de imagem, cada um com o nome dela seguido de números em sequência.
Ela tocou com o dedo no primeiro ícone para assistir, e surgiu na tela uma
imagem do seu rosto em baixa resolução. Mas não era ela, era uma versão
paralela sua, falando sobre o passado.
“A sra. Archer entrou de repente no quarto e nos encontrou contando as
pílulas. Ela nos perguntou o que estava acontecendo ali, e por um segundo
quei paralisada. Então eu disse que eram minhas, e que Vinessa não sabia
nada a respeito daquilo. Ela continuou descon ada, porque eu nunca tinha
me metido em problemas antes, mas consegui convencê-la. Em seguida,
peguei uma suspensão da escola, mas nem chegou a causar complicações
como eu temia. Me puseram sob observação, de modo que, se eu não me
metesse em novas encrencas, aquilo não seria registrado no meu histórico.
Eu sabia que teria sido muito pior para Vinessa, por causa de tudo que as
professoras pensavam sobre ela.
“Mas Vinessa começou a me evitar, e, quando nalmente perguntei o
motivo, ela disse que se sentia culpada toda vez que me via. Falei que ela não
precisava sentir culpa de nada, e que eu gostaria que fôssemos amigas, mas
Vinessa disse que aquilo deixava as coisas ainda piores. Me aborreci com ela
e ela se aborreceu comigo. Ela começou a passar a maior parte do tempo
com outras amigas que estavam o tempo todo se metendo em confusão. Daí
em diante, não parou mais. Foi apanhada vendendo drogas dentro da
própria escola, foi expulsa, e passou a entrar e sair da cadeia.
“E não deixo de pensar que, se eu não tivesse dito que as pílulas eram
minhas, tudo seria diferente. Se eu tivesse deixado Vinessa assumir sua
parcela daquela culpa, esse episódio não teria se transformado numa cunha
que lentamente foi nos afastando uma da outra. Teríamos passado por tudo
aquilo juntas, ela não sairia com aquelas garotas problemáticas e a vida dela
teria ido numa direção diferente.”
Mas o que era aquilo? Com os dedos trêmulos, Dana ativou o segundo
vídeo.
Outra Dana:
“Uma das professoras entrou no nosso quarto no momento exato em que
estávamos contando as pílulas! Confessei tudo na mesma hora: disse a ela
que eu e Vinessa tínhamos furtado tudo aquilo dos nossos pais, com o
intuito de dar uma festinha. Pouco depois, a escola nos suspendeu e nos
colocou sob observação. Acho que eles gostariam de ter dado a Vinessa uma
punição maior, mas no caso a punição das duas tinha mesmo que ser igual.
“Vinessa cou furiosa comigo. Disse que devíamos ter dito à professora
que tínhamos acabado de achar aquelas pílulas, e que alguém devia tê-las
en ado na nossa bolsa ainda no aeroporto e estávamos combinando de
contar tudo às professoras. Disse que ninguém teria podido provar que
éramos culpadas, mas, como eu havia confessado, estávamos de castigo e
aquelas professoras que a detestavam teriam um argumento forte contra ela
quando bem entendessem. Ela não ia dar esse poder todo a nenhuma delas.
Assim que o período de castigo acabou, Vinessa chegou bêbada à escola.
Depois que fez isso algumas vezes, acabou sendo expulsa, e em pouco tempo
volta e meia era presa.
“E co aqui pensando... se pelo menos eu não tivesse confessado, tudo
seria diferente. Aquele perigo, se evitado em cima da hora, teria bastado
para prevenir Vinessa e evitar que ela acabasse se envolvendo em delitos de
verdade. Ela só começou a se comportar daquela maneira porque estava
zangada comigo. Se não fosse por isso, poderia ter sido aceita numa boa
universidade, e sua vida teria ido em outra direção.”
Os outros vídeos não faziam nenhuma referência ao episódio das pílulas,
mas todos seguiam um padrão fácil de reconhecer. Em um, Dana se sentia
culpada por ter apresentado Vinessa a um rapaz que acabou conduzindo-a
para o vício das drogas. Em outro, Vinessa praticou um furto numa loja, tão
bem-sucedido que a encorajou a tentar golpes mais audaciosos. Todas essas
Vinessas estavam aprisionadas em padrões de comportamento
autodestrutivo. Todas essas Danas se sentiam culpadas, independentemente
do que tivessem feito ou deixado de fazer.
Se a mesma coisa acontece em rami cações onde você agiu de maneira
diferente, então não é você a causa daquilo.
Ela havia mentido, sim, ao dizer que as pílulas eram de Vinessa, mas não
tinha sido essa mentira a força que fez Vinessa transpor os limites que a
transformaram numa delinquente. Era nessa direção que ela estava
marchando o tempo inteiro, independentemente do que alguma outra
pessoa viesse a fazer. E Dana tinha gastado muitos anos e muitos milhares
de dólares tentando remediar um erro que cometera, tentando consertar a
vida da amiga. Talvez não precisasse mais agir assim.
Dana examinou os metadados dos arquivos de vídeo. Cada arquivo
incluía informações sobre o prisma de onde tinha sido extraído — os
prismas tinham datas de ativação que remontavam a quinze anos no
passado.
Quinze anos era o tempo transcorrido desde a época em que Dana e
Vinessa tinham viajado naquela excursão. Era quando os negociantes de
dados estavam iniciando suas atividades. Os prismas daquela época tinham
blocos de notas muito menores do que os atuais. Ela se surpreendeu ao
constatar que alguém ainda possuísse prismas de modelos tão antigos e,
mais, prismas ainda com capacidade su ciente para transmitir vídeos. Era o
tipo de prisma mais valioso no mercado, e a mera transmissão daqueles
vídeos tinha esgotado de vez sua capacidade.
Quem pagara por aquilo? Devia ter custado uma fortuna.
O MERCADOR E O PORTAL DO ALQUIMISTA
Em meados da década de 1990, o físico Kip orne estava fazendo uma
turnê de lançamento de seu livro, e assisti a uma palestra na qual ele
descreveu como era possível — em teoria — criar uma máquina do tempo
que obedecesse à teoria da relatividade de Einstein. Achei aquilo fascinante.
O cinema e a televisão nos induziram a pensar nas máquinas do tempo
como veículos onde somos transportados, ou como uma espécie de
teleporte que nos envia, como que através de raios, para outra época. Mas o
que orne descrevia parecia mais com um par de portas, onde tudo que
entrasse por uma porta ou saísse dela iria sair ou entrar pela outra, depois de
transcorrido um determinado período de tempo. Várias questões suscitadas
pela ideia das máquinas do tempo veiculares ou teleportadoras — quanto ao
movimento da Terra, ou por que não registramos ainda a visita de viajantes
vindos do futuro — eram respondidas por esse tipo de máquina temporal.
Mais interessante ainda era o fato de que orne tinha desenvolvido uma
análise matemática que indicava ser impossível modi car o passado com
essa máquina, e que só era possível a existência de uma linha temporal única
e autoconsistente.
A maioria das histórias de viagem no tempo presume que é possível
mudar o passado, e aquelas em que isso não é possível são geralmente
trágicas. Embora todos possamos compreender o desejo de alguém de
mudar coisas já passadas, meu propósito era tentar escrever uma história de
viagem no tempo em que a incapacidade de produzir tais mudanças não
fosse necessariamente um motivo de tristeza. Achei que um ambiente
muçulmano poderia ser adequado, porque a aceitação do destino é um dos
pilares da fé islâmica. Então, ocorreu-me a ideia de que a natureza recursiva
das histórias de viagens temporais poderia se harmonizar com a convenção
típica das Mil e uma noites, de histórias dentro de outras histórias, e achei
uma experiência interessante.
EXPIRAÇÃO
Este conto tem duas fontes de inspiração muito diferentes. A primeira foi
um conto de Philip K. Dick, “A formiga elétrica”, que li na adolescência.
Nele, o protagonista vai ao médico para uma consulta de rotina e é
informado, para sua surpresa total, de que na verdade é um robô. Depois, ele
abre o próprio peito e vê um minúsculo rolo de ta magnética que gira
lentamente e onde são produzidas todas as suas experiências subjetivas. Essa
imagem de uma pessoa literalmente olhando para a própria mente marcou
minha memória.
A segunda inspiração veio de um capítulo do livro de Roger Penrose A
nova mente do imperador, no qual ele discute o conceito de entropia.
Penrose chama nossa atenção para o fato de ser incorreto dizer que
absorvemos comida porque precisamos da energia que ela contém. A lei da
conservação de energia signi ca que essa energia não é criada nem é
destruída: nós a irradiamos constantemente, mais ou menos na mesma
medida em que a absorvemos. A diferença é que a energia calorífera que
irradiamos é uma forma energética de alta entropia, ou seja, é desordenada.
A energia química que absorvemos é uma forma energética de baixa
entropia, ou seja, organizada. Na realidade, estamos consumindo ordem e
gerando desordem. Vivemos à custa de aumentar a desordem do universo.
Nossa mera existência só é possível porque o universo teve início num
estado organizado.
A ideia é bastante simples, mas eu nunca a vi expressa dessa maneira até
ler a explicação de Penrose. E quei interessado em descobrir se eu seria
capaz de reproduzi-la sob a forma de uma história de cção.
O QUE SE ESPERA DE NÓS
Há um esquete cômico de Monty Python sobre uma piada tão engraçada
que qualquer pessoa que a leia ou escute morre de rir. É um exemplo de uma
antiga gura narrativa que tem o nome de “o motivo da sensação nefasta”: a
ideia de que você pode morrer apenas por ter visto ou ouvido alguma coisa.
Ou, dependendo da versão, por ter compreendido alguma coisa: no esquete
do programa, pessoas que falam inglês podem recitar em segurança a versão
alemã da piada, desde que não entendam o que estão dizendo.
Muitas versões dessa gura narrativa envolvem algum elemento do
sobrenatural. Por exemplo, a cção de horror apresenta muitas vezes livros
amaldiçoados, que levam as pessoas à loucura. Comecei a imaginar se
poderia existir uma versão não sobrenatural disso e pensei que um possível
candidato seria a existência de um argumento convincente provando que a
vida não tem sentido. Não é algo que faça efeito instantaneamente — o
argumento precisaria de algum tempo para dominar a mente da pessoa, mas
isso signi caria que ele se propagaria cada vez mais, enquanto as pessoas
estivessem ruminando aquela revelação terrível.
A proteção contra isso, é claro, é o fato de que mesmo o mais rigoroso
argumento não é capaz de convencer todas as pessoas que o ouvem.
Argumentos são algo abstrato demais para in uir nas ações de certas
pessoas. Uma demonstração física, por outro lado, teria uma e cácia maior.
O CICLO DE VIDA DOS OBJETOS DE SOFTWARE
A cção cientí ca é cheia de seres arti ciais que, tal como Atena que sai da
cabeça de Zeus, surgem já formados, mas não creio que a consciência
funcione dessa forma. Baseados na nossa experiência com a mente humana,
podemos dizer que são necessários pelo menos uns vinte anos de esforço
constante para produzir uma pessoa útil, e não vejo como a educação de um
ser arti cial poderia ser mais rápida. O que quis foi escrever uma história
narrando o que acontece durante esses vinte anos.
Eu estava interessado também na ideia das relações emocionais entre
humanos e inteligências arti ciais, e não estou me referindo a humanos
apaixonados por robôs sexies. Não é o sexo que torna real uma relação, e
sim a disposição em despender esforço para que essa relação se mantenha.
Alguns namorados rompem um com o outro na primeira briga que
acontece, alguns pais dedicam aos lhos a menor quantidade possível de
esforço, alguns donos de animais de estimação os ignoram sempre que estes
se tornam incômodos. Em todos esses casos, as pessoas não estão dispostas
a grandes esforços. Ter uma relação verdadeira, seja com um amor, seja com
um lho seja com um animal, exige que você esteja disposto a conciliar seus
desejos e suas necessidades com os da outra pessoa.
Já li histórias em que se defende a ideia de que as inteligências arti ciais
merecem ter direitos dentro da lei, mas quando observamos as questões
losó cas mais amplas vemos que existe uma realidade mundana que essas
histórias não levam em conta. É algo parecido com o modo como o cinema
descreve o amor em termos de grandes atitudes românticas, quando, a longo
prazo, o amor também signi ca a necessidade de discutir questões de
dinheiro e de recolher roupa suja. Portanto, a luta para conseguir direitos
civis para as inteligências arti ciais pode ser um passo da maior
importância, mas outro passo igualmente necessário seria fazer com que as
pessoas se dispusessem a se esforçar realmente para manter um
relacionamento com essas criaturas.
E, mesmo que não nos importemos com o fato de eles terem ou não
direitos legais, ainda existem bons motivos para tratarmos máquinas
conscientes de maneira respeitosa. Não precisamos acreditar que cães
farejadores de bombas merecem o direito ao voto para reconhecer que não é
uma boa ideia submetê-los a maus tratos. Mesmo que nossa única
preocupação quanto a eles seja sua capacidade de detectar bombas, é do
nosso interesse que eles sejam bem cuidados. Não tem importância se nós
queremos que as criaturas dotadas de inteligência arti cial devem
desempenhar papéis de empregados, amantes ou animais de estimação —
descon o que eles poderão cumprir melhor qualquer uma dessas funções se,
durante seu desenvolvimento, houver pessoas que sinceramente se
importem com o destino deles.
Finalmente, me permitam citar Molly Gloss, que fez um discurso em que
comentou o impacto que a experiência de ser mãe teve sobre ela como
escritora. Criar um lho, disse ela, “nos põe em contato, de maneira
profunda, inescapável, diária, com algumas questões que mexem conosco: O
que é o amor e como poderemos amar? Por que razão existem no mundo o
mal, a dor e a perda? Como podemos encontrar a dignidade e a tolerância?
Quem está exercendo o poder e por que está ali? Qual a melhor maneira de
resolver con itos?”. Se quisermos deixar grandes responsabilidades a cargo
de uma inteligência arti cial, precisamos achar boas respostas para essas
perguntas. Não podemos conseguir isso transferindo as obras completas de
Kant para a memória de um computador. É uma tarefa que vai exigir um
esforço equivalente ao esforço de pais que se dedicam de verdade.
A BABÁ AUTOMÁTICA PATENTEADA DE DACEY
Geralmente, sou incapaz de escrever um conto sobre um tema
encomendado, mas, em algumas raras ocasiões, dá certo. Jeff VanderMeer
estava editando uma antologia concebida em torno da ideia de um museu
com artefatos imaginários: artistas criariam ilustrações representando tais
artefatos e os escritores forneceriam textos descritivos para acompanhar
essas imagens. O artista Greg Broadmore propôs a ideia de uma “babá
automática”, uma “máquina sub-robótica programada para cuidar de
crianças”, e isso me pareceu um ideia que eu seria capaz de desenvolver.
O psicólogo behaviorista B. F. Skinner projetou um berço especial para
sua lhinha, e há um mito persistente de que ela cresceu psicologicamente
prejudicada, o que acabou por conduzi-la ao suicídio. É uma lenda falsa: ela
cresceu saudável e feliz. Por outro lado, vamos considerar o caso do
psicólogo John B. Watson, conhecido como o fundador do behaviorismo.
Ele aconselhava aos pais: “Quando sentirem a tentação de mimar seus lhos,
lembrem-se de que o amor maternal é um instrumento perigoso.” Ele
moldou o conceito de cuidados com crianças durante a primeira metade do
século XX. E acreditava que sua abordagem agia no melhor interesse da
criança, mas todos os seus lhos sofreram de depressão na vida adulta,
sendo que alguns tentaram o suicídio e um conseguiu.
A VERDADE DOS FATOS, A VERDADE DOS SENTIMENTOS
No m da década de 1990, assisti a uma conferência sobre o futuro dos
computadores pessoais, e o palestrante comentou que um dia seria possível
registrar de forma permanente cada momento da nossa vida. Era uma
a rmação ousada — naquela época, o espaço nos discos rígidos era caro
demais para permitir o armazenamento de imagens em vídeo —, mas
percebi que ele tinha razão: mais cedo ou mais tarde, seríamos capazes de
gravar tudo. E mesmo sem saber de que forma isso poderia ser feito, tive
certeza de que teria um impacto profundo na psique humana.
Intelectualmente, todos nós temos consciência de que nossa memória é
falível, mas raramente temos que nos confrontar com essa realidade. O que
aconteceria se pudéssemos ter uma recordação perfeita dos fatos?
De tempos em tempos essa questão voltava a meus pensamentos e eu a
examinava de novo, mas sem nunca avançar ou construir uma história em
torno dela. Memorialistas já escreveram muitas coisas eloquentes sobre a
maleabilidade da memória, e eu não queria apenas reciclar o que já tinham
dito. Então, li Oralidade e escrita, de Walter Ong, um livro sobre o impacto
da palavra escrita nas culturas orais — apesar de algumas das a rmativas
mais ousadas do livro terem sido alvo de questionamentos, ainda assim foi
uma revelação para mim. Ele me sugeriu que seria possível traçar um
paralelo entre a última vez em que uma nova tecnologia transformou nossos
processos de cognição e a próxima vez em que isso acontecer.
O GRANDE SILÊNCIO
Na verdade, há dois textos meus intitulados “O Grande Silêncio”, e somente
um deles poderia ser encaixado nesta coletânea. Isso requer uma explicação.
Em 2011, participei de um simpósio intitulado Transpondo o Abismo,
cujo propósito era promover o diálogo entre as artes e as ciências. Jennifer
Allora, artista que fazia parte do duo Allora & Calzadilla, era um dos
participantes. Eu não tinha o menor conhecimento do tipo de arte que eles
criavam — formas híbridas de arte performática, escultura e som —, mas
quei fascinado pelas explicações de Jennifer sobre as ideias que lhes
serviam de base.
Em 2014, ela entrou em contato comigo para saber da possibilidade de
uma colaboração minha com ela e seu parceiro, Guillermo. Eles queriam
criar uma instalação de vídeo com múltiplas telas sobre o tema do
antropomor smo, da tecnologia e das conexões entre os mundos humano e
não humano. Sua intenção era fazer uma justaposição de imagens do
radiotelescópio em Arecibo com imagens dos papagaios porto-riquenhos
em vias de extinção, que habitam uma oresta vizinha, e me perguntaram se
eu poderia escrever um texto em forma de legendas que apareceriam numa
terceira tela, uma fábula contada do ponto de vista dos papagaios, “uma
forma de tradução interespécies”. Fiquei hesitante, não apenas porque não
tinha nenhuma experiência com videoarte, mas também porque fábulas não
são o tipo de coisa que escrevo. Mas, depois que eles me mostraram algumas
imagens preliminares, decidi fazer uma tentativa, e nas semanas seguintes
tivemos uma boa troca de ideias sobre tópicos como glossolalia e a extinção
de línguas.
A videoinstalação resultante desse processo, intitulada “O Grande
Silêncio”, foi exibida na Fábrica O cina e Museu da Filadél a, como parte de
uma exposição da obra de Allora & Calzadilla. Tenho de admitir que
quando vi o trabalho pronto acabei me arrependendo de uma decisão
tomada antes. Jennifer e Guillermo haviam me convidado para visitar
pessoalmente o Observatório de Arecibo, mas declinei do convite, por
considerar que não precisaria disso para escrever o texto. Vendo as imagens
do lugar numa tela do tamanho de um mural, lamentei não ter aceitado.
Em 2015, Jennifer e Guillermo foram convidados a colaborar num
número especial da publicação artística e- ux, como parte da 56a Bienal de
Veneza, e sugeriram publicar ali o texto da nossa parceria. Eu não tinha
escrito aquele texto para ser lido isoladamente, mas ele acabou funcionando
muito bem mesmo quando removido do contexto para o qual foi produzido.
E foi assim que surgiu a história “O Grande Silêncio”.
ÔNFALO
O que hoje denominamos “criacionismo da Terra jovem” já foi o bom senso
em outras épocas: até os anos 1600, essa versão de origem recente era muito
bem aceita. Mas, à medida que os naturalistas começaram a investigar seu
ambiente de modo mais preciso, descobriram pistas que colocaram essa
suposição em xeque, e nos últimos quatro séculos essas pistas se
multiplicaram e se interligaram a ponto de constituir o desmentido mais
categórico que se pode imaginar. Como seria o mundo, imaginei, se nele se
con rmasse aquela suposição original?
Alguns aspectos eram fáceis de imaginar: árvores sem anéis de
crescimento, crânios sem suturas. Mas, quando comecei a pensar sobre o
céu noturno, tornou-se muito mais difícil responder satisfatoriamente a essa
questão. Grande parte da astronomia moderna se baseia no princípio de
Copérnico, a ideia de que não estamos no centro do Universo e não o
observamos de nenhuma posição privilegiada. Isso exprime justamente o
contrário do criacionismo da Terra jovem. Mesmo a teoria da relatividade
de Einstein, pressupondo que a física deve ser a mesma não importa a
velocidade com que nos movemos, é um prolongamento do princípio de
Copérnico. Pareceu-me que, se a humanidade fosse de fato o motivo da
criação do universo, a relatividade não deveria ser verdadeira — a física
devia funcionar de forma diferente em diferentes situações, e isso poderia
ser detectado.
A ÂNSIA É A VERTIGEM DA LIBERDADE
Nas discussões a respeito do livre-arbítrio, muitas pessoas dizem que, para
que uma ação nossa seja livremente escolhida — para que cada um de nós
seja responsável pela ação que escolheu —, precisamos ter a capacidade de
poder ter feito outra coisa nas mesmas circunstâncias. Os lósofos têm
discutido interminavelmente o que isso signi ca. Alguns mostraram que
quando Martinho Lutero defendeu suas ações perante a Igreja em 1521,
consta que teria dito “Aqui estou, e não posso ser diferente”, ou seja, ele não
poderia ter agido de outro modo. Mas isso signi ca então que não devemos
dar a Lutero nenhum crédito por suas ações? Certamente não achamos que
ele seria mais digno de elogios se tivesse dito “Eu poderia ter feito qualquer
coisa”.
Há também a questão da mecânica quântica e sua interpretação de
muitos mundos, que popularmente se entende como o fato de que nosso
universo está continuamente se subdividindo num número quase in nito de
diferentes versões. Sou agnóstico a respeito dessa teoria, mas acho que seus
proponentes encontrariam menos resistência se zessem a rmativas mais
modestas quanto as suas implicações. Por exemplo, algumas pessoas
argumentam que isso torna nossas decisões sem sentido, porque não
importa o que você faça, existe sempre outro universo onde você faz a ação
oposta, negando o peso moral de sua decisão.
Acredito que, mesmo que a interpretação dos muitos mundos seja
correta, isso não signi ca que todas as nossas decisões se cancelam
mutuamente. Se dizemos que o caráter de um indivíduo se revela nas
escolhas que ele faz ao longo da vida, então, de modo semelhante, o caráter
desse indivíduo se revela nas escolhas que ele faz em todos esses diferentes
mundos. Se pudéssemos, de alguma maneira, examinar a multiplicação dos
Martinhos Luteros por tantos e tantos mundos, teríamos de procurar muito
até achar um Lutero que não desa asse a Igreja, e isso acabaria nos
revelando algo sobre o tipo de pessoa que ele foi.
AG R A D E C I M E N TO S
Meus agradecimentos a todos os participantes das o cinas de Sycamore Hill
e de Rio Hondo pela leitura de meus primeiros esboços. Obrigado a Karen
Joy Fowler, Molly Gloss, Daniel Abraham, Benjamin Rosenbaum, Meghan
McCarron, Geoff Ryman, Moses Tsenongu, Richard Butner e Christopher
Rowe por suas sugestões em várias destas histórias. Obrigado a Jennifer
Allora e a Guillermo Calzadilla pelo convite para colaborar com eles.
Obrigado a Tim O’Connell por acreditar neste livro e a Kirby Kim por
acreditar em mim. E obrigado a Marcia Glover, por tudo.
S O B R E O AU TO R

© Alan Berner

Ted Chiang nasceu em Port Jefferson, Nova York, em 1967. Formou-se em


Ciência da Computação e frequentou em 1989 o Clarion Workshop, curso
de escrita de cção cientí ca e fantasia na Michigan State University. Já foi
agraciado com diversos prêmios de destaque, dentre eles Nebula, Hugo e
Locus. História da sua vida e outros contos foi publicado em mais de dez
idiomas e inspirou o roteiro hollywoodiano do lme A Chegada, com Amy
Adams.
CO N H E ÇA O U T R O T Í T U LO D O AU TO R

História da sua vida e outros contos


L E I A TA M B É M

Recursão
Blake Crouch

Descender: Estrelas de lata


Jeff Lemire e Dustin Nguyen
Trilha sonora para o m dos tempos
Anthony Marra

Piano mecânico
Kurt Vonnegut

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