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TÍTULO ORIGINAL
Exhalation
PREPARAÇÃO
Ulisses Teixeira
REVISÃO
Eduardo Carneiro
Juliana Pitanga
ARTE DE CAPA
Na Kim
ADAPTAÇÃO DE CAPA
Antonio Rhoden
PROJETO DE MIOLO
Equatorium Design | Julio Moreira
REVISÃO DE E-BOOK
Maria Fernanda Slade
GERAÇÃO DE E-BOOK
Joana De Conti
E-ISBN
978-65-5560-239-5
1a edição
@intrinseca
editoraintrinseca
@intrinseca
intrinsecaeditora
SUMÁRIO
[Avançar para o início do texto]
Folha de rosto
Créditos
Mídias sociais
Sumário
Dedicatória
Sobre o autor
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PARA MARCIA
Ó PODEROSO CALIFA e comandante dos éis, estou aqui, humilde, diante do
esplendor de vossa presença; um homem não pode desejar bem maior
enquanto estiver vivo. A história que tenho para contar é em verdade
estranha, e, se um dia fosse ela tatuada por inteiro no canto do olho de
alguém, a maravilha dessa apresentação não poderia ser maior que a dos
eventos que nela se contam, porque é um aviso para os que precisam ser
avisados e um aprendizado para os que querem aprender.
Meu nome é Fuwaad ibn Abbas e nasci em Bagdá, a Cidade da Paz. Meu
pai era mercador de cereais, mas por muito tempo trabalhei como
comerciante de tecidos nos, negociando seda de Damasco, linho do Egito e
lenços de pescoço do Marrocos, bordados em ouro. Eu prosperava, mas meu
coração vivia em con ito, e nem a aquisição de objetos de luxo ou a
distribuição de doações eram capazes de sossegá-lo. Agora estou aqui, diante
de Vossa Senhoria, sem um único dirhan na bolsa, mas em paz.
Alá é o princípio de todas as coisas, mas, com a permissão de Vossa
Majestade, darei início a minha história no dia em que estava caminhando
pelo distrito dos ferreiros. Precisava comprar um presente para um homem
com quem estava para fechar um negócio, e tinham me dito que ele
apreciaria receber uma bandeja de prata. Após procurar por meia hora,
notei que uma das maiores lojas no mercado fora adquirida por um novo
comerciante. Era um ponto muito valorizado que devia ter custado bem
caro; portanto, entrei ali para apreciar as mercadorias.
Nunca antes vira tal acúmulo de preciosidades. Perto da entrada havia
um astrolábio com sete placas incrustadas de prata, um relógio de água que
tocava as horas e um rouxinol feito de latão que cantava quando o vento
passava por ele. Mais adiante, havia mecanismos ainda mais engenhosos do
que estes, e eu os observava da mesma maneira que um menino vê um
malabarista, quando um homem idoso surgiu por uma porta na parede dos
fundos.
— Bem-vindo a minha humilde loja, meu senhor — disse ele. — Meu
nome é Bashaarat. Em que posso ajudá-lo?
— São artigos extraordinários estes que o senhor tem aqui. Negocio com
mercadores de todos os cantos do mundo e, no entanto, nunca vi nada
parecido. Onde, se me permite perguntar, o senhor adquire estas
mercadorias?
— Fico agradecido por suas palavras gentis. Tudo que vê aqui foi
fabricado em minha o cina, por mim mesmo ou por um de meus
assistentes, sob minha orientação.
Fiquei impressionado com o fato de que aquele homem pudesse ser tão
pro ciente em tantas artes. Perguntei-lhe sobre os variados instrumentos
que havia na loja e escutei-o enquanto ele discorria eruditamente sobre
astrologia, matemática, geomancia e medicina. Conversamos por mais de
uma hora, e minha fascinação e meu respeito desabrocharam como uma or
aquecida pela aurora, até que ele mencionou seus experimentos com a
alquimia.
— Alquimia? — indaguei. Aquilo me deixou surpreso, porque ele não me
parecia o tipo de homem capaz de fazer tais alegações, típica de vigaristas.
— Quer dizer, então, que consegue transformar metais inferiores em ouro?
— Sim, senhor, mas não é isso que a maioria procura na alquimia.
— E o que é, então?
— Uma fonte de ouro menos custosa do que extraí-lo do chão. A
alquimia descreve uma maneira de fabricar o ouro, mas o processo é tão
árduo que, por comparação, escavar embaixo de uma montanha é algo tão
fácil quanto colher frutas de uma árvore.
Sorri.
— Uma resposta inteligente. Ninguém pode contestar que o senhor é um
homem instruído, mas sei o bastante para duvidar da alquimia.
Bashaarat olhou para mim e re etiu por um instante.
— Construí recentemente algo que pode fazê-lo mudar de opinião. O
senhor será a primeira pessoa a quem mostrarei. Gostaria de olhar?
— Seria um grande prazer.
— Siga-me, por favor.
Ele me conduziu pela porta na parede dos fundos. A sala seguinte era
uma o cina, repleta de artefatos cujas funções eu não conseguia adivinhar:
barras de metal envoltas com os de cobre grandes o su ciente para se
desenrolar até o horizonte, espelhos montados sobre uma laje circular de
granito utuando em mercúrio... Mas Bashaarat passou por todos esses
objetos sem lhes lançar um único olhar.
Em vez disso, ele me conduziu até um pesado pedestal, que ia até meu
peito, no qual estava montado de pé um sólido aro metálico. A abertura
dessa argola tinha a largura de duas mãos espalmadas, e sua borda era tão
grossa que mesmo o homem mais forte a teria carregado com muito esforço.
O metal era escuro como a noite, polido até car tão liso que, fosse de uma
cor diferente, poderia ter servido de espelho. Bashaarat me colocou parado
de tal modo que tinha uma visão lateral desse aro, enquanto ele se postou
junto à abertura.
— Por favor, observe — disse ele.
Bashaarat en ou o braço através do aro, do lado direito, mas o membro
não surgiu do outro lado. Em vez disso, foi como se o braço tivesse sido
decepado à altura do cotovelo, e ele agitou o toco para cima e para baixo
antes de puxá-lo de volta, intacto.
Eu não esperara ver um homem de tanto estudo executar um truque de
prestidigitador, mas foi bem-feito, e aplaudi polidamente.
— Agora, espere um instante — disse ele, enquanto recuava, se afastando.
Aguardei, e eis que um braço apareceu no aro, do lado esquerdo, sem
corpo algum para sustentá-lo. A manga que esse braço vestia era idêntica à
do traje de Bashaarat. O braço se agitou para cima e para baixo, depois
retornou para dentro do aro e desapareceu.
Eu achava que o primeiro truque tinha sido hábil, mas este parecia muito
superior, pois o pedestal e o aro eram estreitos demais para esconder uma
pessoa.
— Excelente! — exclamei.
— Obrigado, mas não se trata de uma mera prestidigitação. O lado
direito do aro está vários segundos adiantado em relação ao outro.
Atravessar o aro signi ca atravessar essa duração de imediato.
— Não entendi.
— Deixe-me repetir a demonstração.
E mais uma vez ele en ou o braço através do aro, e o membro
desapareceu. Ele sorriu e moveu o braço para a frente e para trás como se
estivesse fazendo cabo de guerra. Então recolheu o braço e estendeu a mão
para mim, com a palma aberta. Sobre ela estava um anel que reconheci.
— É meu anel! — Olhei para a minha mão e vi que o anel continuava no
dedo. — O senhor produziu uma réplica.
— Não. Este é o verdadeiro anel. Espere.
Mais uma vez, um braço surgiu do lado esquerdo. Na tentativa de
descobrir o segredo do truque, corri até lá e o agarrei pela mão. A mão não
era falsa, pois era tão quente e viva quanto a minha. Eu a puxei, e ela me
puxou de volta. Então, com a agilidade de um ladrão, a mão retirou o anel
do meu dedo e o braço recuou para dentro do aro, desaparecendo.
— Meu anel sumiu! — exclamei.
— Não, senhor — disse ele. — Seu anel está aqui. — E ele me entregou o
anel que segurava. — Perdoe-me por esta pequena brincadeira.
Recoloquei o anel no dedo.
— O senhor tinha o anel antes que ele me fosse tirado.
Nesse momento, um braço reapareceu, só que, desta vez, do lado direito
do aro.
— O que é isso? — indaguei.
Mais uma vez o reconheci pela manga do traje, antes que desaparecesse,
mas não tinha visto Bashaarat pôr o braço ali.
— Não esqueça. O lado direito precede o esquerdo — comentou. Então,
ele caminhou para o lado esquerdo do aro e en ou o braço através da
abertura, onde o membro voltou a desaparecer.
Vossa Majestade decerto já o percebeu, mas foi apenas então que
compreendi: o que quer que acontecesse do lado direito do aro era
complementado, alguns segundos depois, por algo que acontecia do lado
esquerdo.
— É bruxaria? — perguntei.
— Não, senhor. Nunca encontrei um djinn e, se encontrasse, não
con aria nele para atender a meus pedidos. É uma forma de alquimia.
Ele me ofereceu uma explicação em que falava de sua busca por
minúsculos poros na pele da realidade, como os túneis que um verme
produz no interior da madeira, e, como depois de encontrar um, ele era
capaz de expandi-lo e esticá-lo do mesmo modo que um vidraceiro
transforma uma bolota de vidro em fusão em um tubo comprido e estreito,
além de fazer o tempo escorrer como água por uma abertura e torná-lo
espesso como xarope na outra. Confesso que não compreendi
verdadeiramente suas palavras e tampouco posso testemunhar sua
veracidade. Tudo que pude dizer em resposta foi:
— O senhor criou algo de fato espantoso.
— Obrigado, mas isso é apenas um prelúdio do que pretendo lhe mostrar.
Ele me pediu que o seguisse até o interior de outra sala, mais ao fundo.
Ali erguia-se um portal circular cuja moldura maciça era feita do mesmo
metal preto polido. O artefato estava montado no meio da sala.
— O que lhe mostrei foi um Portal dos Segundos — informou. — Este é
um Portal dos Anos. Os dois lados deste portal estão separados por um
intervalo de vinte anos.
Confesso que não entendi de imediato o que ele estava dizendo.
Imaginei-o en ando o braço do lado direito do portal e esperando vinte
anos até ele aparecer do lado oposto, e este me pareceu um truque de mágica
bastante obscuro. Falei isso, e Bashaarat riu.
— Pode muito bem ser usado assim — respondeu —, mas considere o
que aconteceria se o senhor o atravessasse. — Parado do lado direito, ele fez
um gesto pedindo que me aproximasse, e então apontou para o portal. —
Veja.
Assim o z e percebi que, do outro lado, parecia haver tapetes e
almofadas diferentes dos que eu vira ao entrar. Movi a cabeça e constatei
que, quando eu olhava através do portal, via outra sala, e não a sala em que
estávamos.
— O senhor está vendo uma sala que ca vinte anos no futuro —
explicou Bashaarat.
Pisquei os olhos, como uma pessoa faria diante de uma miragem no
deserto, mas minha visão não mudou.
— E está me dizendo que eu poderia atravessar este portal? — perguntei.
— Poderia. E, dando esse passo, visitaria a Bagdá do futuro. Poderia
procurar seu eu mais velho e conversar com ele. Depois, poderia atravessar
de volta o Portal dos Anos e voltar ao dia de hoje.
Ouvindo aquelas palavras, senti-me tonto.
— Já fez isso? — perguntei. — Já passou através dele?
— Sim, e também muitos outros clientes meus.
— O senhor me disse antes que eu era o primeiro a quem mostrava este
portal.
— Este portal, sim. Mas, durante muitos anos, tive uma loja no Cairo, e
foi lá que construí o primeiro Portal dos Anos. Há muitos a quem mostrei
aquele portal, e que zeram uso dele.
— E o que eles aprenderam quando conversaram com os seus eus mais
velhos?
— Cada pessoa aprende uma coisa diferente. Se quiser, posso lhe contar a
história de uma delas.
Bashaarat começou então a me contar essa história, e, se agradar a Vossa
Majestade, eu a recontarei aqui.
A HISTÓRIA DO FABRICANTE DE CORDAS AFORTUNADO
Raniya estava casada com Hassan fazia muitos anos, e os dois viviam a mais
feliz das vidas. Um dia, ela viu o marido jantando com um jovem — e
reconheceu a imagem de Hassan quando se casara com ele. Tão grande foi
seu espanto que mal pôde se conter e não interromper a conversa. Depois
que o jovem saiu, ela pediu que Hassan lhe dissesse quem era ele, e o marido
lhe contou uma história inacreditável.
— Falou para ele sobre mim? — perguntou ela. — Já sabia, então, o que o
futuro nos guardava, quando nos encontramos pela primeira vez?
— Soube que me casaria com você no momento em que a vi — disse
Hassan, sorrindo —, mas não porque alguém me falou de você. Certamente,
esposa, você não quer estragar essa surpresa para ele, não?
E, assim, Raniya não se dirigiu ao seu marido mais jovem, mas se limitou
a acompanhar a conversa deles a distância, olhando-o de longe. Seu pulso
acelerava ao ver aquelas feições tão jovens — às vezes, nossas lembranças
são tão doces que nos enganam, mas, quando ela via os dois homens
sentados um em frente ao outro, conseguia enxergar, sem exagero, a beleza
do mais jovem. À noite, cava sem dormir pensando nele.
Alguns dias depois de se despedir de seu eu mais jovem, Hassan precisou
deixar o Cairo para negociar com um comerciante em Damasco. Em sua
ausência, Raniya descobriu a loja que o marido tinha lhe descrito e
atravessou o Portal dos Anos até ao Cairo de sua juventude.
Ela se lembrava do lugar em que ele morava na época e, desse modo,
pôde localizar o jovem Hassan e segui-lo. Enquanto o observava, sentiu por
ele um desejo mais intenso do que sentira pelo Hassan mais velho em anos,
pois eram muito fortes suas lembranças de quando faziam amor na
juventude. Ela sempre fora uma esposa el e leal, mas agora estava diante de
uma oportunidade que jamais se repetiria. Decidida a agir de acordo com
seu desejo, Raniya alugou uma casa e comprou a mobília nos dias seguintes.
Assim que a casa cou pronta, ela seguiu Hassan discretamente enquanto
criava coragem para abordá-lo. No mercado de joias, a mulher o seguiu
quando ele foi a um joalheiro, mostrou-lhe um colar com dez belas pedras
preciosas e perguntou quanto o homem pagaria por ele. Raniya reconheceu
o colar como um que Hassan lhe dera dias após o casamento — não sabia
que o marido um dia tentara vendê-lo. Ficou um pouco distante e escutou,
ngindo que examinava alguns anéis.
— Traga-o amanhã e pagarei mil dinares por ele — disse o joalheiro.
O jovem Hassan concordou com o preço e foi embora.
Enquanto o via se afastando, Raniya escutou dois homens que
conversavam por perto.
— Viu aquele colar? É um dos nossos.
— Tem certeza? — perguntou o outro.
— Tenho. Foi esse bastardo que desenterrou o nosso baú.
— Vamos avisar o chefe. Depois que ele vender o colar, tomamos o
dinheiro e tudo o mais que ele tiver.
Os dois homens se afastaram sem perceber a presença de Raniya, que
cou imóvel e com o coração disparado, como uma corça que vê um tigre
por perto. Ela entendeu que o tesouro que Hassan tinha desenterrado devia
pertencer a um bando de ladrões e que aqueles homens eram dois deles.
Estavam vigiando os joalheiros do Cairo para identi car a pessoa que
roubara o tesouro.
Raniya sabia que, uma vez que ainda possuía o colar, o jovem Hassan não
o tinha vendido. Sabia também que os bandidos não podiam ter matado
Hassan. Mas a vontade de Alá não podia ser que ela casse sem fazer nada.
Alá devia tê-la levado até ali porque queria usá-la como seu instrumento.
Ela retornou ao Portal dos Anos, voltou ao tempo de onde tinha saído e
encontrou o colar dentro de sua caixa de joias. Então, usou o portal
novamente, mas, em vez de entrar nele pelo lado esquerdo, entrou pelo
direito, de modo a chegar ao Cairo de vinte anos depois. Lá, ela procurou a
sua eu mais velha, uma mulher idosa. A Raniya mais velha a acolheu
calorosamente e foi buscar o colar dentro da caixa de joias. As duas
combinaram, então, a forma como iriam ajudar o jovem Hassan.
No dia seguinte, os dois ladrões voltaram à loja, acompanhados de um
terceiro homem que Raniya presumiu ser o chefe. Ficaram observando
enquanto Hassan apresentava o colar ao joalheiro.
Enquanto o homem examinava a joia, Raniya se aproximou e disse:
— Que coincidência! Joalheiro, quero vender um colar igual a este. — E
tirou o colar da bolsa que trazia.
— Mas é extraordinário! — exclamou o joalheiro. — Nunca vi dois
colares tão parecidos.
Então, a Raniya idosa também se aproximou.
— O que é isso que estou vendo? Decerto estou sendo enganada pelos
meus olhos. — E ela apresentou um terceiro colar idêntico. — Comprei-o
com a garantia de que se tratava de uma peça única. Isso prova que fui
enganada.
— Talvez devesse devolvê-lo — comentou Raniya.
— Isso depende — disse a Raniya mais velha. E perguntou a Hassan: —
Quanto ele lhe ofereceu por esse colar?
— Mil dinares — respondeu Hassan, perplexo.
— É mesmo? Joalheiro, gostaria de comprar este outro também?
— Acho que preciso reconsiderar minha oferta — ponderou o joalheiro.
Enquanto Hassan e a Raniya idosa barganhavam com o joalheiro, Raniya
recuou o bastante para car mais próxima dos três homens e ouviu o chefe
repreendendo os outros dois:
— Seus tolos. É um colar comum. Vocês teriam nos feito matar metade
dos joalheiros do Cairo e ter toda a guarda armada nos procurando.
Dando um tapa na cabeça dos cúmplices, ele os conduziu para fora da
loja.
Raniya voltou sua atenção para o joalheiro, que tinha acabado de retirar a
oferta de pagar mil dinares pelo colar de Hassan.
— Muito bem — disse a Raniya idosa. — Vou tentar devolver o meu ao
homem de quem o comprei.
E, quando a mulher se retirou, Raniya percebeu que ela estava sorrindo
por baixo do véu.
Raniya se virou para Hassan.
— Parece que nenhum de nós vai conseguir vender um colar hoje —
disse ela.
— Quem sabe em outro dia? — respondeu Hassan.
— Preciso levar o meu para casa e guardá-lo em um lugar seguro — disse
Raniya. — Poderia me acompanhar?
Hassan concordou e caminhou com Raniya até a casa que ela havia
alugado. Ali ela o convidou a entrar, ofereceu-lhe vinho e, depois de
beberem um pouco, o levou para o quarto. Fechou as janelas com pesadas
cortinas e apagou todas as lâmpadas, deixando o cômodo escuro como a
noite. Somente então tirou o véu e o conduziu para a cama.
Raniya estava ansiosa por aquele momento e cou surpresa ao perceber
que os movimentos de Hassan eram desajeitados, pouco à vontade. Ela se
lembrava com muita clareza da primeira noite de seu casamento: Hassan
tinha se mostrado con ante, e seu toque a deixara sem fôlego. Ela sabia que
faltava pouco tempo para que ele conhecesse a Raniya mais jovem e, por um
momento, não entendeu como aquele rapaz tão canhestro poderia mudar
tão depressa. E então, é claro, a resposta cou evidente.
Assim, todas as tardes durante vários dias, Raniya e Hassan se
encontravam na casa alugada e ela lhe ensinava a arte do amor e, ao fazer
isso, demonstrou que, como dizem, as mulheres são a mais maravilhosa das
criações de Alá.
— O prazer que se dá retorna na forma do prazer que se recebe — disse
ela.
Por dentro, sorria para si mesma e pensava quanto aquelas palavras eram
verdadeiras. Em pouco tempo, Hassan adquiriu a atitude experiente da qual
ela se lembrava tão bem, e ela extraiu disso um prazer ainda maior do que o
que sentira quando jovem.
Logo chegou o dia em que Raniya disse ao jovem Hassan que estava na
hora de partir. Ele prudentemente não quis pressioná-la para saber os
motivos, mas perguntou se eles se encontrariam de novo. Ela lhe disse,
carinhosa, que não. Então vendeu toda a mobília da casa e voltou pelo Portal
dos Anos para a própria época.
Quando o velho Hassan voltou da viagem de Damasco, Raniya o
esperava em casa. Ela o recebeu cheia de afeto, mas guardou seus segredos
consigo.
• • •
O NOME DELA É ANA ALVARADO, e ela está tendo um dia péssimo. Passou a
semana inteira se preparando para uma entrevista de emprego — a primeira,
após meses tentando, até que chegou o momento da videoconferência. E
então, assim que o rosto do recrutador apareceu na tela, ele a informou de
que a empresa decidira contratar outra pessoa. Agora, ela está sentada diante
do computador, usando sua melhor camisa, para nada. Ela faz algumas
tentativas desanimadas de sondagem com outras empresas, e logo começa a
receber mensagens automáticas de rejeição. Depois de uma hora inteira
assim, Ana resolve que precisa se divertir um pouco e abre uma janela da
Next Dimension para jogar seu jogo predileto atual: Era de Iridium.
A cabeça de ponte na praia está lotada, mas o avatar dela usa a cobiçada
armadura de combate em madrepérola, e não demora muito alguns
jogadores a convidarem para se juntar à equipe. Eles cruzam a zona de
combate, passando por entre a fumaça dos carros em chamas, e durante uma
hora se empenham em exterminar os mantídeos entrincheirados em uma
casamata. É a missão ideal para o estado de espírito de Ana: fácil o bastante
para deixá-la con ante na vitória, mas desa adora o su ciente para lhe dar
alguma satisfação. Seus companheiros de equipe estão prontos para aceitar
outra missão quando uma janela de telefone se abre no canto do vídeo. É
uma chamada de voz da sua amiga Robyn, e Ana transfere o microfone para
a ligação.
— Oi, Robyn.
— Oi, Ana. Como estão as coisas?
— Vou dar uma dica: estou jogando EdI.
Robyn sorri.
— Teve uma manhã difícil?
— E como.
Ela relata como foi o cancelamento da entrevista.
— Bem, tenho uma notícia que pode lhe deixar mais animada. Pode
encontrar comigo na Data Earth?
— Claro. Só me dê um minuto para sair daqui.
— Vou estar em casa.
— Vejo você daqui a pouco.
Ana pede licença à equipe e fecha a janela da Next Dimension. Faz o
login na Data Earth e a janela dá um zoom imediato no último lugar em que
ela esteve, um festival de dança na face de uma imensa falésia. A Data Earth
tem os próprios continentes destinados a jogos — Elderthorn, Orbis Tertius
—, mas eles não fazem muito o tipo de Ana, de modo que ela dedica seu
tempo ali aos continentes sociais. Seu avatar ainda está usando o traje da
última visita — ela o troca por uma roupa mais convencional e abre um
portal que conduz ao endereço de Robyn. Basta dar um passo e ela está na
sala de visitas virtual de Robyn, um aeróstato residencial que utua sobre
uma cachoeira semicircular com um quilômetro e meio de diâmetro.
Os avatares delas se abraçam.
— Então, quais são as novidades? — pergunta Ana.
— Demos a partida na Blue Gamma — conta Robyn. — Entrou mais
uma rodada de nanciamento, e estamos contratando. Mostrei seu currículo
para o pessoal, e eles estão loucos para conhecer você.
— Eu? Por causa da minha vasta experiência?
Ana tinha acabado de concluir o curso de teste de so ware. Robyn foi
professora nas classes introdutórias, e foi assim que as duas se conheceram.
— Na verdade, é exatamente por isso. Foi seu último emprego que os
deixou bem interessados.
Ana passou seis anos trabalhando em um zoológico, e foi o fechamento
deste que a fez voltar a estudar.
— Sei que as coisas são meio doidas em uma empresa startup — diz ela
—, mas tenho certeza de que vocês não precisam de uma cuidadora de
animais de zoológico.
Robyn dá uma risada.
— Me deixa mostrar para você o que a gente está fazendo. Eles disseram
que posso lhe dar acesso para ver, sob um termo de sigilo.
Isso é importante. Até aquele ponto, Robyn não tinha autorização para
dar a ela nenhuma informação sobre a natureza do seu trabalho na Blue
Gamma. Ana assina o termo de sigilo e Robyn abre o portal.
— Temos uma ilha particular. Venha, vamos dar uma olhada.
Os dois avatares caminham para aquele espaço.
Ana tinha certa expectativa de ver uma paisagem deslumbrante assim
que a janela carregasse, mas, em vez disso, seu avatar surge em um local que,
à primeira vista, parece uma creche. Depois, ela pensa que lembra mais uma
cena de livro infantil, porque avista um pequeno lhote de tigre
antropomór co deslizando contas perfuradas ao longo dos arames de uma
grade, um panda examinando um carrinho de brinquedo e uma versão
cartunizada de um chimpanzé brincando com uma bola de espuma.
As palavras que surgem na tela identi cam todos eles como digientes,
organismos digitais que vivem em ambientes como a Data Earth, mas eles
não se parecem com nada que Ana já tenha visto. Eles não são aqueles
bichinhos de estimação idealizados que o mercado direciona para as pessoas
que são incapazes de se dedicar a um animal de verdade. Falta-lhes um
perfeccionismo de imagem, e seus movimentos são um pouco desajeitados.
Também não parecem com os habitantes de um dos biomas da Data Earth
— Ana já visitou o arquipélago de Pangeia, já viu o canguru unipedal e as
cobras bidirecionais que evoluíram nas diversas estufas. Estes digientes,
visivelmente, não são originários dali.
— É isso que a Blue Gamma faz? Digientes?
— Sim, mas não digientes convencionais. Veja só.
O avatar de Robyn vai até o chimpanzé que brinca com a bola e se agacha
diante dele.
— Oi, Pongo. Está fazendo o quê?
— Pongo binca bala — responde o digiente, e Ana leva um pequeno
susto.
— Brincando com a bola? Que legal. Posso brincar também?
— Não. Bala de Pongo.
— Por favor?
O chimpanzé olha em torno e, sem largar a bola, engatinha até um canto
cheio de blocos de madeira. Empurra um deles na direção de Robyn e diz:
— Robyn binca bóco.
Ele volta a sentar onde estava.
— Pongo binca bala.
— Tá legal, então. — Robyn caminha de volta para junto de Ana. — E aí,
o que achou?
— Impressionante. Não sabia que os digientes já estavam tão avançados.
— É tudo muito novo ainda. Nosso pessoal de desenvolvimento
contratou uns Ph.Ds. depois de assistir a uma conferência que eles zeram
no ano passado. Agora, produzimos uma ferramenta genômica que
chamamos de Neuroblast, que comporta mais desenvolvimento cognitivo do
que qualquer outra coisa existente. Essa rapaziada aqui — ela faz um gesto
indicando os habitantes da creche — são os mais espertos que produzimos
até agora.
— E vão vendê-los como bichinhos de estimação?
— A ideia é essa. Vamos mostrá-los como animais caseiros com quem
você pode conversar e ensinar uma porção de truques bacanas. Aqui na
empresa, a gente criou o slogan não o cial: “Toda a diversão dos macacos,
mas sem o cocô.”
Ana sorri.
— Estou começando a ver como minha experiência com animais pode
vir a ser útil.
— Sim. Nem sempre conseguimos fazer esses caras nos obedecerem. E
não sabemos em que medida isso se deve aos genes ou se é apenas porque
não estamos usando a técnica certa.
Ela observa o digiente em forma de panda pegar o carrinho de brinquedo
com uma das patas e examiná-lo por baixo; com a outra, ele bate devagar
nas rodinhas.
— Cada digiente desses começa em qual estágio de conhecimento?
— Praticamente do zero. Vou lhe mostrar.
Robyn ativa um monitor de vídeo em uma parede da creche, que mostra
a gravação de um salão pintado em cores primárias, com um grupo de
digientes no chão. O aspecto físico deles não é diferente do aspecto dos que
estão agora na creche, mas seus movimentos são aleatórios, espasmódicos.
— Esses foram instanciados recentemente. Precisam de um tempo
subjetivo de alguns meses para aprender o básico: como interpretar
estímulos visuais, como mover os membros, como os objetos sólidos se
comportam. Nós os produzimos dentro de uma estufa durante essa fase, e
assim o processo demora apenas uma semana. Quando são considerados
prontos para aprender linguagem e interação social, retardamos sua
aceleração para o tempo normal. É aí que você entraria.
O panda empurra o carrinho de brinquedo para a frente e para trás,
várias vezes, e então solta uma espécie de bramido, mo mo mo. Ana percebe
que o digiente está rindo.
Robyn continua:
— Sei que você estudou comunicação com primatas. Aqui vai ter uma
chance de botar isso em prática. O que me diz? Tem interesse?
Ana hesita. Não era isso que tinha imaginado para si mesma quando
entrou na faculdade e, por um momento, se pergunta como tinha chegado
ali. Quando era garota, sonhava em seguir Fossey e Goodall até a África. No
entanto, ao terminar a graduação, o número de gorilas sobreviventes era tão
escasso que sua melhor opção foi trabalhar no zoológico. E agora estava
encarando uma proposta para trabalhar com animais domésticos virtuais.
Ao longo da sua carreira, via-se uma diminuição da presença do mundo
natural, cada vez mais tênue.
Ah, sai dessa, diz a si mesma. Talvez não fosse o que tivesse em mente,
mas é um emprego na área de so ware, um dos motivos para voltar a
estudar. E treinar macacos virtuais podia ser mais divertido do que car
rodando baterias de testes, de modo que, se a Blue Gamma estivesse
oferecendo um salário decente, por que não?
• • •
O nome dele é Derek Brooks, e ele não está muito satisfeito com a tarefa que
recebeu. Derek desenha os avatares para os digientes da Blue Gamma, um
trabalho que em geral o deixa satisfeito, mas ontem os gerentes de produção
lhe pediram algo que ele considerou uma má ideia. Tentou dizer isso a eles,
mas a decisão não é de Derek, de modo que agora precisa descobrir uma
maneira decente de fazer o que lhe pediram.
Derek estudou para ser animador, assim, em certo sentido, a criação de
seres digitais lhe cabe bem. Em outros aspectos, contudo, seu trabalho é bem
diferente do de um animador convencional. Normalmente, ele criaria o
andar e os gestos de um personagem, mas com digientes esses traços são
propriedades que emergem do próprio genoma. O que ele tem que fazer é
criar um corpo que manifeste os gestos do digiente de uma forma que possa
ser compreendida pelas pessoas. É por causa dessas diferenças que muitos
animadores, inclusive sua esposa, Wendy, não trabalham com formas de
vida digitais, mas Derek adora. Ele acha que ajudar uma nova forma de vida
a se exprimir é a função mais extasiante que um animador pode exercer.
Concorda totalmente com a loso a da Blue Gamma para o design de
inteligências arti ciais: a experiência é a melhor professora, de modo que,
em vez de programar a I.A. com o que se deseja que ela saiba, é melhor fazer
com que elas sejam capazes de aprender, vender os digientes que podem
fazer isso e deixar que os donos lhes ensinem. Para que o público adquira
motivação quanto a isso, os digientes têm de ser atrativos: a personalidade
deve ser encantadora, algo em que os desenvolvedores estão trabalhando
bastante, e os respectivos avatares precisam ser uma gracinha, e é aí que
Derek entra. Mas ele não pode apenas dar aos digientes olhos imensos e
narizinhos curtos. Se parecerem com desenhos animados, ninguém vai levá-
los a sério. Por outro lado, se carem parecidos demais com um animal
verdadeiro, as expressões faciais, unidas à capacidade de falar, podem ser
um pouco incômodas. É uma manobra que exige um equilíbrio delicado, e
ele passa horas e horas examinando imagens de animaizinhos, e, por m,
acabou produzindo rostos híbridos que são simpáticos, mas sem exageros.
Sua missão atual é um pouco diferente. Não satisfeitos com gatos,
cachorros, macacos e pandas, os produtores decidiram que deveria haver
outro tipo de avatar, algo diferente de lhotes de animais. E sugeriram
robôs.
Essa ideia não faz o menor sentido para Derek. Toda a estratégia da Blue
Gamma repousa na a nidade que os seres humanos têm com os animais. Os
digientes aprendem através de reforço positivo, como os animais, e suas
recompensas vão desde receber um cafuné até porções de comidinhas
virtuais. Isso faz sentido com um avatar animal, mas com um robô parece
uma coisa cômica, forçada. Se estivessem vendendo brinquedos físicos, os
robôs teriam a vantagem de serem mais baratos para fabricar do que
animais de aspecto convincente, mas, no reino virtual, os custos de
produção são os mesmos, e faces de animais são muito mais expressivas.
Oferecer avatares robóticos parece colocar uma imitação misturada aos
produtos de verdade na prateleira da loja.
O uxo de seu pensamento é interrompido por uma batida na porta, que
está aberta: é Ana, a mais nova integrante da equipe de testes.
— Oi, Derek. Você devia dar uma olhada no vídeo da sessão de
treinamento de hoje de manhã. Foi bem engraçada.
— Obrigado. Vou olhar, sim.
Ela vai se afastando, mas para e volta.
— Parece que você está tendo um dia difícil.
Derek acha que contratar alguém que já trabalhou em um zoológico foi
uma boa ideia. Não apenas ela conseguiu planejar um sistema de treinos
para os digientes, como também deu uma ótima sugestão de como melhorar
a alimentação deles.
Outras empresas que vendem digientes oferecem uma variedade limitada
de porções de comida, mas Ana sugeriu que a Blue Gamma abrisse
radicalmente o leque de opções de alimentos. Ela lembrou que uma dieta
variada deixa os animais do zoológico mais satisfeitos e torna a hora do
almoço mais divertida para o público. A produção concordou, e as equipes
de desenvolvimento editaram o mapa básico de recompensas dos digientes,
de modo a conseguir reconhecer uma grande diversidade de comidas
virtuais. Eles não eram capazes de simular de verdade os compostos
químicos — a simulação física da Data Earth ainda não era tão avançada —,
mas inseriram parâmetros para classi car os sabores e as texturas do
alimento, e projetavam para o so ware de alimentação uma interface que
permitia aos usuários prepararem suas próprias receitas. Isso se tornou um
grande sucesso: cada digiente tinha sua comida predileta, e os testadores
beta relataram que gostavam muito de atender às preferências dos seres
digitais.
— A produção decidiu que avatares de animais não bastam — diz Derek.
— Querem avatares de robôs também. Acredita nisso?
— Parece uma boa ideia — responde Ana.
Ele ca surpreso.
— Você acha? Eu seria capaz de jurar que os preferia como animais.
— Todo mundo aqui pensa nos digientes como animais — disse ela. — A
questão é que os digientes não se comportam como qualquer animal que
exista de verdade. Eles têm essa qualidade não animal em si, então parece
que estamos vestindo uma porção de roupas de circo neles quando tentamos
torná-los parecidos com macacos ou pandas.
Ele ca um pouco magoado ao ouvir seu trabalho, feito com tanto
cuidado, ser comparado a trajes circenses. O rosto dele deve mostrar isso,
porque ela logo diz:
— Não que uma pessoa comum vá perceber. É só porque passei muito
mais tempo com os animais do que uma pessoa comum.
— Está certo. É bom ouvir uma perspectiva diferente.
— Desculpe. Os avatares são ótimos, juro. O lhote de tigre, então, é o
melhor.
— Está tudo bem. Sério.
Ela acena um pedido de desculpas e sai pelo corredor, enquanto Derek
ca pensando no que Ana falou.
Talvez ele esteja mesmo tão envolvido com os avatares animais que
começou a ver nos digientes um tipo de ser que eles, na verdade, não são.
Ana está certa, é claro, em mostrar que os digientes não são mais animais do
que robôs, e quem poderá dizer que uma das analogias é mais precisa do
que a outra? Se, ao fazer seu trabalho, ele partir da premissa de que um
avatar robô é, para essa nova forma de vida, um modo tão legítimo de se
expressar quanto o de um avatar animal, talvez assim consiga criar um
avatar que o deixe satisfeito.
• • •
Um ano depois, e a Blue Gamma está a poucos dias de lançar seu produto
no mercado. Ana está trabalhando no cubículo dela, na mesma ala de Robyn
— as duas trabalham de costas uma para a outra —, mas, neste instante, os
dois monitores mostram a Data Earth, onde seus avatares estão parados lado
a lado. Perto dali, uma dúzia de digientes corre pelo playground,
perseguindo uns aos outros ao longo de uma pontezinha ou por baixo dela,
subindo um curto lance de escada e deslizando rampa abaixo. Esses
digientes são os que estão prontos para o lançamento. Dentro de alguns dias,
eles — ou réplicas bastante próximas — estarão disponíveis para serem
adquiridos pelo público do mundo real e da Data Earth.
Em vez de ensinar aos digientes novos comportamentos nesses últimos
dias do prazo, Ana e Robyn estão encarregadas, em teoria, de fazer com que
eles quem praticando o que já aprenderam. Elas estão bem no meio de uma
sessão quando Mahesh, um dos fundadores da Blue Gamma, passa pelos
seus cubículos. Ele para e dá uma espiada.
— Não se incomodem comigo. Continuem o que estão fazendo. Qual é a
habilidade de hoje?
— Identi cação de formas — diz Robyn. Ela instancia uma porção de
blocos coloridos no chão, diante do seu avatar, e diz a um dos digientes: —
Vem cá, Lolly.
Um lhote de leão se aproxima, com passos inseguros.
Enquanto isso, Ana chama Jax, cujo avatar é um robô neovitoriano feito
de cobre reluzente. Derek fez um belo trabalho ao criá-lo, desde as
proporções dos membros até o formato do rosto. Ana acha Jax adorável. Ela
também instancia um grupo de blocos coloridos com formas diferentes e
chama a atenção de Jax para eles.
— Está vendo os blocos, Jax? De que forma é o bloco azul?
— Triango — diz Jax.
— Muito bem. De que forma é o bloco vermelho?
— Cadado.
— Muito bem. De que forma é o bloco verde?
— Ciclo.
— Muito bem, Jax. — Ana lhe dá uma bolinha de comida, que ele devora
com entusiasmo.
— Jax sabido — diz Jax.
— Lolly sabida também — comenta Lolly.
Ana sorri e acaricia a cabeça dos dois.
— Sim, vocês dois são muito sabidos.
— Os dois sabidos — conclui Jax.
— É isso que eu gosto de ver — diz Mahesh.
Os candidatos a lançamento representam o resultado nal de um sem-
número de testes, a nata da produção em termos de aprendizado. Em parte
foi uma busca por inteligência, mas foi também uma busca por certo
temperamento, por uma personalidade que não vai deixar os futuros
compradores frustrados. Um elemento importante nisso é a capacidade de
brincar com os outros digientes. A equipe de desenvolvimento tentou
reduzir o comportamento hierárquico entre eles — a Blue Gamma não quer
vender um animal de estimação sobre o qual os clientes precisem rea rmar
sua autoridade a toda hora —, mas isso não quer dizer que não surjam
situações de competição aqui e ali. Os digientes adoram atenção, e se um
deles nota que Ana está elogiando outro, tenta ser incluído nessa ação. Na
maior parte do tempo não há problemas, mas sempre que um digiente se
mostrou particularmente ressentido em relação aos seus iguais ou a Ana, ela
o assinala, e seu genoma especí co será excluído da próxima geração. O
processo parece um pouco com a produção de cães de raça, mas, na
verdade, se assemelha mais a uma imensa cozinha experimental, onde
bandejas e mais bandejas de biscoitos são assados no forno e depois têm sua
textura e seu sabor testados, em busca da receita ideal.
Os exemplos atuais dos candidatos ao lançamento serão mantidos como
mascotes e cópias deles serão colocadas à venda, mas a expectativa é de que
a maior parte das pessoas vai querer comprar digientes mais jovens, ainda
em estágio pré-linguístico. Ensinar um digiente a falar é metade da diversão
— as mascotes servem mais como exemplos do tipo de resultado que se
pode esperar. A venda de digientes pré-linguísticos também permite que
eles sejam comercializados em países que não falam inglês, mesmo com a
Blue Gamma dispondo apenas de pessoal capaz de treinar as mascotes nessa
língua.
Ana manda Jax de volta para o parquinho e chama um digiente panda
chamado Marco. Ela está a ponto de testá-lo para reconhecimento de formas
quando Mahesh indica um canto da sua tela.
— Ei, veja só isso.
Dois digientes estão na colina próxima ao parquinho, rolando encosta
abaixo.
— Que legal — diz ela. — Nunca vi eles fazerem isso antes.
Ela conduz seu avatar até a colina, enquanto Jax e Marco a acompanham
e se juntam aos outros digientes. Na primeira tentativa de Jax, ele para de
rolar quase de imediato, mas, depois de praticar um pouco, consegue rolar
até o sopé da colina. Faz isso algumas vezes e depois corre para Ana.
— Ana viu? — pergunta Jax. — Jax desceu deitado!
— Sim, eu vi! Você rolou ladeira abaixo!
— Rolô ladêra baxo!
— Foi ótimo! — E ela acaricia a cabeça dele outra vez.
Jax corre de volta e recomeça a descer pela encosta. Lolly também adere
com entusiasmo à nova atividade. Assim que ela chega ao sopé da colina,
continua rolando pelo chão até bater em uma das pontes do parquinho.
— Eh, eh, eh — diz Lolly. — Merda.
De repente, todas as atenções se voltam para a digiente.
— Onde foi que ela aprendeu isso? — pergunta Mahesh.
Ana muta o microfone e faz seu avatar ir até Lolly para confortá-la.
— Não sei — responde. — Deve ter escutado por aí.
— Bem, não podemos botar no mercado um digiente que diz “merda”.
— Estou checando isso — diz Robyn.
Em uma janela separada do monitor, ela puxa os arquivos das sessões de
treinamento e faz uma busca nas faixas de áudio.
— Parece que é a primeira vez que um dos digientes diz isso. Quanto a
algum de nós ter dito, vamos ver…
Os três observam enquanto os resultados da busca se acumulam na
janela. Ao que parece, o culpado é Stefan, um dos treinadores do escritório
australiano da Blue Gamma. A empresa mantém equipes trabalhando na
Austrália e na Inglaterra, para treinar os digientes quando os escritórios da
Costa Oeste estão fechados. Os digientes não precisam dormir — ou, para
ser mais preciso, o processo de integração que é o equivalente deles a sono
pode ser rodado em alta velocidade — e, dessa forma, podem ser treinados
em ciclos contínuos de 24 horas.
Eles exibem todos os trechos de vídeo em que Stefan diz a palavra
“merda” durante as sessões de treinamento. O desabafo mais forte é o de três
dias atrás. É difícil ter certeza observando seu avatar na Data Earth, mas, ao
que parece, ele bateu com o joelho na quina de uma mesa. Há outros
exemplos de semanas atrás, mas nenhum tão alto e demorado.
— O que quer que a gente faça? — pergunta Robyn.
Há uma solução bastante clara. Eles não podem, tão perto da data de
lançamento, repetir semanas inteiras de treinamento. Será que devem se
arriscar e presumir que as exclamações anteriores não causaram impressão
nos digientes? Mahesh pensa durante algum tempo e decide.
— Muito bem. Vamos voltar tudo até três dias atrás e recomeçar desse
ponto.
— Todos eles? — indaga Ana. — Ou só Lolly?
— Não podemos arriscar. Vamos todos voltar. E quero uma marcação de
alerta acompanhando as sessões de treinamento de agora em diante. Na
próxima vez que alguém falar um palavrão, retroagimos tudo até o ponto de
recuperação mais recente.
E, assim, os digientes perdem três dias de experiência. Inclusive a
primeira vez em que rolaram ladeira abaixo.
2
Ele continua a ler aqui e ali. Um minuto depois, vê outra questão que lhe
parece interessante.
Derek suspira. Não deve haver a menor chance de fazer esse indivíduo
mudar de ideia. O mais provável, porém, é que ele apenas ponha o digiente
em suspensão, em vez de continuar a criá-lo da maneira errada. A Blue
Gamma tem feito o possível para minimizar os abusos. Todos os digientes
do Neuroblast são equipados com disjuntores acionados pela dor, o que os
deixa imunes a torturas e, portanto, desinteressantes para os sádicos.
Contudo, não há como proteger digientes de coisas como a mera
negligência.
• • •
Depois que mais um ano se passa, torna-se o cial: a Blue Gamma está
encerrando suas operações. Não há compradores em número su ciente para
se arriscar na obtenção de digientes dóceis para sempre. Dentro da
companhia, muitas propostas chegaram a ser debatidas, inclusive a de uma
variedade de digientes capazes de entender a linguagem, mas não de falar;
porém, já era tarde. A base de consumidores já havia se estabilizado em uma
pequena comunidade de usuários de digientes, mas ela não gerava recursos
su cientes para manter a Blue Gamma funcionando. A empresa vai lançar
uma versão gratuita do so ware gerador de comida para aqueles que
pretendem manter seus digientes em funcionamento pelo tempo que
quiserem, mas, fora isso, os usuários estão entregues à própria sorte.
A maioria dos empregados já passou antes pela falência de empresas, de
modo que, para eles, ainda que um pouco triste, a situação é apenas outro
episódio na história da indústria da informática. Para Ana, no entanto, o m
das operações da Blue Gamma lhe traz à memória o fechamento do zoo,
uma das piores experiências da sua vida. Seus olhos ainda se enchem de
lágrimas quando ela se lembra da última vez em que viu os primatas de que
cuidava, querendo ser capaz de explicar-lhes por que nunca mais a veriam,
esperando que fossem capazes de se adaptar às suas novas casas. Quando
decidiu entrar para a indústria de so ware, cou feliz por nunca mais ter
que enfrentar esse tipo de despedida. E agora lá está ela, contra todas as
expectativas, confrontando-se com uma situação estranhamente similar.
Similar, mas não igual. A Blue Gamma não precisa encontrar novos lares
para as suas dezenas de mascotes; pode apenas suspendê-las, sem nenhuma
das implicações que uma eutanásia traria. A própria Ana já colocou em
suspensão milhares de digientes durante o processo de produção, e eles não
estão mortos nem se sentindo abandonados. O único sofrimento produzido
pela suspensão de mascotes seria no caso dos treinadores; Ana dedicou
parte do seu tempo às mascotes todo dia nos últimos cinco anos, e não quer
dizer adeus a elas. Há uma alternativa, porém: um empregado pode manter
uma mascote como criatura de estimação na Data Earth, enquanto que não
haveria a menor possibilidade de manter um grande símio no seu
apartamento.
Mesmo sendo tão fácil, Ana se surpreende diante do fato de poucos
empregados quererem adotar uma mascote. Ela sabe que Derek com certeza
vai car com uma — ele se preocupa com os digientes tanto quanto ela —,
mas os treinadores se mostram inesperadamente relutantes. Todos gostam
dos digientes, mas a maioria acha que manter um seria como continuar
fazendo um trabalho pelo qual você não está mais recebendo salário. Ana
sabe que Robyn vai car com um, mas a própria amiga se antecipa e lhe traz
notícias durante o almoço.
— Não íamos contar a ninguém por enquanto — diz ela. — Mas… estou
grávida.
— É mesmo? Parabéns!
Robyn sorri.
— Obrigada!
Robyn, então, passa a liberar uma torrente de informações represadas: as
opções que ela e sua companheira, Linda, consideraram, o processo de fusão
de óvulos no qual decidiram arriscar, a sorte fantástica quando tiveram êxito
logo na primeira tentativa. Ana e Robyn conversam sobre a procura de
novos empregos e licenças-maternidade. A certa altura, voltam ao tópico da
adoção de mascotes.
— É claro que você vai estar cheia de trabalho — diz Ana —, mas já
pensou em adotar a Lolly?
Seria fascinante observar as reações de Lolly a uma gravidez.
— Não — diz Robyn, balançando a cabeça. — Já superei a fase dos
digientes.
— Superou?
— Estou pronta para a coisa de verdade, entende o que eu digo?
Ana responde com cuidado:
— Não sei bem se entendi.
— As pessoas dizem que o desejo por bebês é parte da evolução humana,
e eu sempre achei isso conversa ada. Não mais. — A expressão facial de
Robyn é de êxtase; ela não está mais falando propriamente com Ana. —
Gatos, cães, digientes: todos são substitutos para o que desejamos de
verdade. Depois de um tempo, você começa a entender o que um bebê
signi ca, o que signi ca mesmo, e tudo muda. E, nesse momento, você
percebe que os sentimentos que tinha antes não eram… — Robyn para. —
Quero dizer, no meu caso, foi uma nova maneira de ver as coisas.
Mulheres que trabalham com animais ouvem isso o tempo todo: que esse
amor provém de um desejo inerente de ter lhos. Ana está cansada desse
estereótipo. Ela gosta de crianças, mas elas não são o padrão de acordo com
o qual devam ser medidos os outros tipos de apego. Cuidar de animais é
uma coisa que vale a pena por si só, uma vocação que não precisa de
pretextos. Ela não teria dito o mesmo a respeito dos digientes quando
começou a trabalhar na Blue Gamma, mas agora vê que isso pode valer
também para eles.
4
Ana trouxe Jax consigo para o Siege of Heaven, o primeiro novo continente
de jogos a aparecer na Data Earth em um ano. Ela o conduz através da
Argent Plaza, onde os jogadores se reúnem e socializam entre as missões; é
um amplo pátio de mármore, lápis-lazúli e ligranas de ouro, situado no alto
de uma nuvem cúmulo-nimbo. Ana tem de usar seu avatar de jogos, um
misto de querubim e falcão, mas Jax mantém seu tradicional avatar de robô
de cobre reluzente.
Quando passeiam por entre os outros jogadores, Ana consulta na tela
uma anotação relativa a um digiente. O avatar dele é um anão com
hidrocefalia, padrão entre os Drayta, digientes do Sophonce com talento
para resolver quebra-cabeças lógicos encontrados nos continentes de jogos.
O dono do Drayta original o treinou usando um gerador de quebra-cabeças
pirateado do continente da Five Dynasties na plataforma Real Space, e
depois liberou as cópias para o público. Agora, há tantos jogadores levando
digientes Drayta consigo nas suas missões que as companhias de jogos estão
considerando a possibilidade de redesenhá-los por completo.
Ana chama a atenção de Jax para o digiente.
— Está vendo aquele ali? É um Drayta.
— É? — Jax já ouviu falar dos Draytas, mas é a primeira vez que encontra
um. Ele vai na direção do anão. — Oi. Eu sou Jax.
— Quer resolver quebra-cabeças — diz o Drayta.
— Que quebra-cabeças gosta?
— Quer resolver quebra-cabeças. — O Drayta está cando ansioso e
começa a correr pelo pátio. — Quer resolver quebra-cabeças.
Um jogador próximo, usando um avatar misto de sera m e águia-
pescadora, faz uma pausa na conversa para apontar na direção do Drayta: o
digiente congela no meio da corrida, reduz-se a um ícone e salta para dentro
de um compartimento no cinto do jogador como se tivesse sido puxado por
um elástico.
— Drayta estranho — diz Jax.
— Era mesmo, não?
— Todos desse jeito?
— Acho que sim.
O sera m vem na direção de Ana.
— Que tipo de digiente é esse? Não vi nenhum desse tipo.
— O nome dele é Jax. Ele roda no genoma do Neuroblast.
— Não conheço. É novo?
Um dos companheiros do sera m, usando um avatar de nefelim, se
aproxima e diz:
— Não, é antigo.
O sera m assente.
— Ele é bom em quebra-cabeças?
— Não muito — responde Ana.
— O que ele faz, então?
— Eu gosto cantar — diz Jax.
— É mesmo? Cante alguma coisa para nós, então.
Jax não precisa de outro encorajamento, e começa a mostrar sua
interpretação de “Mack Navalha”, da Ópera dos três vinténs. Ele sabe a letra
completa, mas a melodia que canta é, na melhor das hipóteses, uma sombra
distante da original. Ao mesmo tempo, Jax pratica uma dança que ele
mesmo criou, em sua maior parte uma série de poses e gestos com as mãos
que copiou de um vídeo indonésio de hip-hop de que gosta.
Os outros jogadores riem muito durante a performance. Jax naliza com
uma curvatura, e eles aplaudem.
— Brilhante — diz o sera m.
— Isso quer dizer que ele gostou — respondeu Ana. — Diga obrigado.
— Obrigado.
— Isso não vai ser muito útil nos labirintos, não acha? — indaga o
sera m a Ana.
— Ele me diverte — diz ela.
— Aposto que sim. Mande uma mensagem para mim se um dia ele
aprender a resolver quebra-cabeças, eu compro uma cópia. — Nesse
momento, ele percebe que todo o seu grupo já está reunido. — Bem, lá
vamos nós para a próxima missão. Boa sorte na sua.
— Boa sorte — diz Jax. Ele acena em despedida enquanto o sera m e
seus companheiros de equipe alçam voo e mergulham em formação rumo a
um vale distante.
Ana se recorda desse diálogo dias depois, quando está lendo uma
discussão em um dos fóruns de usuários.
Ana está se preparando para ir dormir quando escuta o barulho. Corre até a
sala para ver o que foi.
Jax está usando o corpo de robô e examina o próprio pulso. Um dos
azulejos da parede perto dele está quebrado. Ele vê Ana entrando e diz:
— Sentir muito.
— O que você estava fazendo? — pergunta Ana.
— Sentir muito mesmo.
— Me diga o que você fez.
Com relutância, Jax responde:
— Cartwheel.
— E seu pulso cedeu e você bateu na parede.
Ana dá uma olhada no pulso do robô. Como ela temia, vai ter de ser
substituído.
— Eu não crio essas regras para você não se divertir. Mas é isso que
acontece quando você dança no corpo do robô.
— Sei que você falou. Mas tentar dançar só um pouco, e corpo bem.
Tentar mais, e corpo ainda bem.
— E aí você tentou mais um pouco, e agora vamos ter que pagar por um
pulso e um azulejo novos. — Ela calcula quando será possível substituir
aquelas coisas e se conseguirá evitar que Kyle, que está viajando a trabalho,
acabe descobrindo o que aconteceu. Alguns meses atrás, Jax dani cou um
pedaço de uma escultura que Kyle adorava, e é melhor não fazê-lo se
lembrar desse incidente.
— Sentir muito muito mesmo — a rma Jax.
— Muito bem, de volta para a Data Earth. — Ana aponta para a
plataforma de recarga.
— Eu admitir erro…
— Vamos, agora.
Jax obedece, mas, antes de pisar na plataforma, ele diz baixinho:
— Não é Data Earth. — E o capacete do robô ca às escuras.
Jax andou se queixando sobre a versão da Data Earth que foi montada
pelo grupo de usuários do Neuroblast, duplicando muitos dos continentes
da original. Em um aspecto, é bem melhor do que a ilha particular que eles
usavam como refúgio na época das invasões dos hackers da FLI, porque o
processamento agora é tão barato que é possível administrar dezenas de
continentes; em outro aspecto, é muito pior, porque esses continentes são
quase inteiramente desprovidos de habitantes.
O problema não é apenas que todos os humanos se mudaram para a Real
Space. Os digientes Origami e Fabergé foram para essa plataforma também,
e Ana não tem como condenar os donos deles; ela teria feito o mesmo se
tivesse a oportunidade. Muito mais estressante é car sabendo que grande
parte dos digientes do Neuroblast desapareceu, inclusive muitos amigos de
Jax. Alguns membros do grupo de usuários se afastaram depois que a Data
Earth fechou, outros adotaram uma estratégia de “esperar para ver”, mas
caram desanimados quando viram como a Data Earth privada estava
empobrecida, preferindo suspender os digientes a criá-los em uma cidade
fantasma. E, o pior de tudo, é com isso que a Data Earth privada se parece:
uma cidade fantasma do tamanho de um planeta. Há enormes extensões de
terreno projetado para se andar sem rumo, mas não existe ninguém com
quem se possa conversar a não ser pelos tutores que vão até lá para ministrar
as aulas. Há masmorras sem aventuras, shoppings sem movimento, estádios
sem eventos esportivos. É o equivalente digital de uma paisagem pós-
apocalíptica.
Os amigos humanos de Jax da turma do tetrabrake costumavam logar na
Data Earth privada apenas para visitá-lo, mas essas visitas estão rareando
cada vez mais; todos os eventos ligados ao tetrabrake agora acontecem na
Real Space. Jax pode mandar e receber gravações de coreogra as, mas boa
parte da cena musical de lá consiste em encontros ao vivo onde a coreogra a
é improvisada, e é impossível para ele participar disso. Jax está perdendo a
maior parte da vida social que tinha no mundo virtual e não consegue
encontrar uma no mundo real: o corpo de robô está registrado como um
veículo de trânsito livre não pilotado, de modo que ele só pode ir a espaços
públicos se Ana ou Kyle o acompanharem. Con nado ao apartamento, Jax
se torna entediado e irritadiço.
Durante semanas, Ana tentou fazer com que Jax entrasse no corpo do
robô, sentasse diante do computador e logasse na Real Space, mas ele se
recusa. Houve di culdades com a interface do usuário — a inexperiência
dele com o manejo de um computador de verdade, agravada pela
performance irregular da câmera ao captar gestos feitos pelo corpo do robô
—, mas ela acredita que os dois poderiam tê-las superado. O maior
problema é que Jax se recusa a controlar o avatar de forma remota: ele quer
ser o avatar. Para ele, o teclado e a tela são péssimos substitutos para a
experiência de estar ali, tão insatisfatórios quanto um videogame de selva
seria para um chimpanzé trazido do Congo.
Todos os digientes do Neuroblast que sobraram passam pela mesma
frustração, deixando bem claro que uma Data Earth privada é apenas um
remendo temporário. É necessário descobrir uma maneira de rodar os
digientes na Real Space, permitindo que eles se movimentem à vontade,
interagindo com o ambiente e os habitantes. Em outras palavras, a solução é
transportar a ferramenta do Neuroblast: reescrevê-la de modo a poder rodar
na plataforma Real Space. Ana conseguiu persuadir os antigos donos da
Blue Gamma a liberar o código-fonte do Neuroblast, mas é preciso que
apareçam desenvolvedores experientes para reescrevê-lo. O grupo de
usuários postou anúncios em fóruns de códigos abertos na tentativa de
atrair voluntários.
A única vantagem da queda da Data Earth é que os digientes deles estão a
salvo do lado tenebroso do mundo das mídias sociais. Na Real Space, uma
empresa chamada Edgeplayer começou a distribuir uma câmara de tortura
para digientes. Para evitar acusações de cópia não autorizada, eles usam
digientes em domínio público como vítimas. O grupo de usuários entrou em
um acordo de que, assim que o transporte da ferramenta do Neuroblast for
feito, o processo de conversão deverá incluir um registro pleno de
propriedade: nenhum digiente do Neuroblast será movido para a Real Space
sem alguém que esteja comprometido a cuidar dele.
• • •
Dois meses se passam. Derek está dando uma olhada no fórum do grupo de
usuários, lendo as respostas a uma postagem que questionava como ia o
transporte do Neuroblast. Infelizmente, as notícias não são animadoras: as
tentativas de recrutar um grupo de desenvolvedores não foram bem-
sucedidas. O grupo promoveu eventos de portas abertas na Data Earth
privada, para que outras pessoas pudessem interagir com os digientes, mas
poucas foram aceitas.
O problema é que as ferramentas genômicas não são mais novidade.
Desenvolvedores são atraídos por projetos novos e estimulantes, e, no
momento, isso signi ca trabalhar com interfaces neurais ou so wares de
nanomedicina. Há dezenas de ferramentas genômicas de nhando em
estados variados de inconclusão nos repositórios de códigos abertos, todas
precisando de programadores voluntários, e a perspectiva de fazer o
transporte de uma ferramenta como o Neuroblast, de doze anos de idade,
para uma nova plataforma, deve ser uma das menos excitantes que há.
Apenas um grupo de estudantes contribui com esse trabalho, e,
considerando o pouco tempo que podem se dedicar a isso, a própria
plataforma Real Space já deverá estar obsoleta quando a função for
concluída.
A alternativa é contratar desenvolvedores pro ssionais. Derek já
conversou com alguns pro ssionais com experiência em ferramentas
genômicas e pediu orçamentos para o transporte do Neuroblast. Os valores
que recebeu foram bem razoáveis dada a complexidade do projeto, e, para
uma companhia com centenas de milhares de clientes, a decisão mais
sensata seria seguir adiante. No entanto, para um grupo de usuários cujo
contingente minguara para mais ou menos vinte pessoas, o preço é alto
demais.
Derek dá uma olhada nos comentários mais recentes exibidos no fórum e
depois liga para Ana. Ver os digientes con nados em uma Data Earth
privada tem sido difícil, mas, para ele, há também um lado bom: ele e Ana
têm um motivo para se falarem todo dia, seja a respeito do avanço do
transporte do Neuroblast, seja sobre a organização de atividades recreativas
para os digientes. Durante os últimos anos, quando começaram a ter
interesses próprios, Marco e Polo se distanciaram de Jax, mas agora os
digientes do Neuroblast têm apenas a si mesmos como companhia, de modo
que ele e Ana procuram atividades em que todos possam agir em conjunto.
Ele já não tem mais uma esposa para reclamar disso, e o namorado de Ana,
Kyle, não parece se incomodar, de modo que ele liga para ela sem culpa.
Passar tanto tempo com ela é uma forma dolorosa de prazer e seria mais
saudável interagir menos com Ana, mas ele não quer parar.
O rosto dela aparece em uma tela menor de telefone.
— Você viu o post do Stuart? — pergunta Derek. Stuart havia calculado
quanto cada um teria que pagar se os custos fossem divididos igualmente, e
indagava quantos dos membros poderiam desembolsar um valor daqueles.
— Acabei de ler — diz Ana. — Talvez ele ache que esteja sendo útil, mas
o que está fazendo é deixar as pessoas mais nervosas.
— Concordo — diz ele. — Mas enquanto não sugerirmos uma boa
opção, esse custo por pessoa será a única coisa em que todo mundo vai
pensar. Você se encontrou com o pessoal que angaria fundos? — Ana tinha
marcado uma conversa com a amiga de uma amiga, uma mulher que cria
campanhas para angariar fundos a m de salvar santuários da fauna nativa.
— Na verdade, acabei de almoçar com ela.
— Legal! O que ela disse?
— A má notícia é que ela não acha que possamos nos quali car para o
status de sem ns lucrativos, porque estamos pedindo dinheiro em benefício
de um grupo limitado de indivíduos.
— Mas qualquer um vai poder usar a nova ferramenta…
Derek se detém. É verdade que devem existir milhões de digientes do
Neuroblast registrados, guardados em arquivos mundo afora, mas o grupo
de usuários não pode dizer com sinceridade que está trabalhando em prol
deles. Sem alguém que queira se responsabilizar por eles, nenhum desses
digientes se bene ciaria de uma versão Real Space do Neuroblast. Os únicos
digientes que o grupo pretende ajudar são os seus.
Ana assente, sem dizer nada; ela deve ter pensado a mesma coisa.
— Tudo bem — diz Derek —, não podemos ser não lucrativos. E a boa
notícia, qual é?
— Ela diz que podemos pedir contribuições ainda assim, mesmo que seja
fora do modelo não lucrativo. Só precisamos contar uma história que faça
nascer uma simpatia pelos digientes. É dessa forma que alguns zoológicos
conseguem pagar por coisas como cirurgias em elefantes.
Ele pensa naquilo por um instante.
— Acho que podemos postar alguns vídeos sobre os digientes, para tocar
no fundo do coração das pessoas.
— Exato. E se conseguirmos criar uma boa comoção popular, podemos
receber doações de tempo, não apenas de dinheiro. Qualquer coisa que faça
aumentar o prestígio dos digientes vai aumentar as chances de atrair
voluntários da comunidade de código aberto.
— Vou reassistir aos meus vídeos para colher algumas cenas com Marco
e Polo — diz ele. — Há muito material simpático de quando eles eram
novinhos. Não tenho certeza quanto ao material mais recente. Ou devíamos
adotar a abordagem tipo “partir corações”?
— Devíamos conversar para ver o que funciona melhor — sugere Ana. —
Vou postar no fórum perguntando a todo mundo.
Derek se lembra de uma coisa.
— Por falar nisso, recebi uma ligação ontem que pode ser útil. Mas é um
tiro no escuro.
— O que foi?
— Você se lembra dos Xenoterianos?
— Os digientes que eram para ser alienígenas? Esse projeto ainda existe?
— Mais ou menos.
Ele explica que foi contatado por um rapaz chamado Felix Radcliffe, que
é um dos últimos participantes do projeto Xenoterianos. A maior parte dos
membros mais antigos já desistiu anos atrás, exaustos pela di culdade de
inventar toda uma cultura alienígena a partir do zero. Entretanto, há um
pequeno grupo que ainda resiste, e seus participantes se tornaram quase
monomaníacos. Pelo que Derek conseguiu entender, são na maioria
desempregados que quase nunca deixam o quarto onde moram na casa dos
pais, vivendo apenas na Data Mars. Felix é o único indivíduo entre eles
disposto a tomar a iniciativa de contatar alguém de fora.
— E as pessoas chamam a gente de fanáticos — diz Ana. — Por que ele
procurou você?
— Felix ouviu falar que estamos trabalhando para fazer o transporte do
Neuroblast e quer ajudar. Reconheceu o meu nome porque fui eu que
desenhei os avatares deles.
— Sorte sua — diz ela, sorrindo, e Derek faz uma careta. — Por que eles
se interessam pelo transporte do Neuroblast? Pensei que o conceito
principal da Data Mars era manter os Xenoterianos isolados.
— No começo era, mas agora ele decidiu que os digientes estão prontos
para conviver com seres humanos e quer organizar um experimento de
primeiro contato. Se a Data Earth ainda estivesse funcionando, ele
permitiria que os Xenoterianos zessem uma expedição aos continentes
principais, mas isso não é mais uma opção. Portanto, Felix e nós estamos no
mesmo barco: ele quer que seja feito o transporte do Neuroblast para que os
digientes deles passem para a Real Space.
— Bem… Isso eu acho que posso entender. E você falou que talvez ele
nos ajude a angariar fundos?
— Ele está tentando gerar interesse entre antropólogos e exobiólogos.
Acredita que esses caras vão querer tanto estudar os Xenoterianos que
podem até nanciar o transporte.
Ana ca com uma expressão de dúvida.
— Eles pagariam mesmo por algo assim?
— Duvido — responde Derek. — Os Xenoterianos não são alienígenas de
verdade. Acho que Felix teria mais sorte com companhias produtoras de
videogames que precisassem de alienígenas para povoar seus planetas, mas a
decisão é dele. Mas penso que se ele não abordar as pessoas com quem
estamos falando, não vai ameaçar nossas chances, e há uma possibilidade de
que possa vir a ser útil.
— Mas se ele for tão desajeitado quanto parece, como vai poder
persuadir alguém?
— Bem, não vai ser pelos seus talentos como vendedor. Ele tem um vídeo
dos Xenoterianos que está exibindo para os antropólogos, a m de despertar
o interesse deles. E me deixou ver um trecho.
— Que tal?
Ele encolhe os ombros e ergue as mãos.
— Pelo que senti, era o mesmo que estar vendo uma velha colônia de
robôs-jardineiros.
Ana dá uma risada.
— Bem, talvez seja uma coisa boa. Talvez quanto mais alienígenas eles
parecerem, mais interessantes possam ser para alguém.
Derek ri também, imaginando a ironia: depois de todo o trabalho que
tiveram na Blue Gamma para tornar os digientes fo nhos, e se os mais
bizarros fossem aqueles que atrairiam mais interesse do público?
7
Ana não tem a menor dúvida do que diz quando posta essas palavras no
fórum, mas a conversa ca mais difícil quando, dias depois, o próprio Jax
aborda o assunto. Os dois estão na Data Earth privada, onde ela está lhe
mostrando um novo continente de jogos. É um clássico, que Ana adorava
anos atrás e agora foi liberado para acesso livre, de modo que o grupo
instanciou uma cópia para os seus digientes. Ela tenta transmitir todo o
entusiasmo que sente, mostrando o que distingue aquele continente dos
outros, continentes dos quais os digientes já estão cansados. No entanto, Jax
só vê o que o continente é de verdade: mais uma tentativa de mantê-los
ocupados enquanto o transporte do Neuroblast não se realiza.
Quando caminham por uma praça deserta de uma vila medieval, ele diz:
— Às vezes preferir estar suspenso, não ter esperar mais. Reiniciar
quando entrar na Real Space, sem sentir que tempo passou.
O comentário pega Ana desprevenida. Nenhum digiente tem acesso aos
fóruns dos grupos de usuários, então Jax deve ter chegado àquela ideia
sozinho.
— É isso mesmo o que você quer? — pergunta ela.
— Não mesmo. Queria car acordado, saber acontecimentos. Mas às
vezes frustrante. — Então ele pergunta: — Você às vezes preferia não cuidar
de mim?
Ela se assegura de que Jax está olhando para o rosto dela ao responder:
— Minha vida seria bem mais simples se eu não tivesse que cuidar de
você, mas não seria nada feliz. Eu te amo, Jax.
— Amo você também.
• • •
Ana foi à reunião da Binary Desire como uma atitude meramente formal, a
m de garantir algum dinheiro ao escutar uma proposta de compra. Agora,
depois de ter ouvido a proposta, ela passa a pensar bastante nela.
Ana não tem prestado atenção ao mundo do sexo virtual desde a
faculdade, quando um namorado dela, também estudante, teve que passar
um semestre no exterior. Os dois compraram juntos os acessórios
periféricos, antes de ele viajar, equipamentos com estojos rígidos e interiores
de silicone que davam uma sensação engraçada. Depois, cada um gravou no
seu equipamento o número de série do outro, garantindo assim a delidade
da genitália virtual. As primeiras sessões foram divertidas, mas não
demorou muito para a novidade ir se esvaindo e as limitações daquela
tecnologia se tornarem evidentes. Fazer sexo sem beijar era algo incompleto,
e ela sentia falta do rosto dele quase colado ao seu, do peso do corpo dele,
do cheiro do suor dele. Poder ver o outro em uma tela não era um substituto
à altura, por mais próxima que a câmera estivesse. A pele dela sentia falta do
seu toque de uma forma que nenhum periférico podia compensar, e, no m
do semestre, ela sentia que estava a ponto de explodir. Claro que desde então
a tecnologia avançara, mas era ainda uma maneira pobre de substituir a
intimidade verdadeira.
Ana lembra a enorme diferença de quando viu Jax usando um corpo de
verdade pela primeira vez. Se um digiente fosse transferido para um boneco
erótico, isso tornaria a ideia do sexo mais atraente? Não. Ela já esteve com o
rosto a um palmo do de Jax, limpando manchas das lentes ou à procura de
arranhões, e não era como estar de frente a uma pessoa. Com um digiente
não existe a sensação de estar invadindo um espaço pessoal, nem mesmo
aquela atitude de con ança de quando um cachorro permite que você
acaricie a barriga dele. Na Blue Gamma, eles tinham decidido não atribuir
aos digientes esse senso de autoproteção — não faria sentido, no contexto do
produto —, mas o que signi ca intimidade física quando não há barreiras a
serem transpostas? Ela não duvida de que seja possível dar a um digiente
uma excitação tão próxima da humana que os neurônios-espelho de ambos
os parceiros se vejam envolvidos. Mas será que a Binary Desire poderia
ensinar a um digiente a vulnerabilidade que surge quando camos nus na
frente de outra pessoa e tudo o que estamos dizendo a ela quando
a rmamos a nossa disposição de tirar a roupa diante dos seus olhos?
No entanto, talvez nada disso tenha importância. Ana roda a gravação da
teleconferência mais uma vez, escuta Chase dizendo que se trata de uma
nova fronteira, sexo com um parceiro não humano. Não tem o propósito de
ser a mesma coisa que transar com outra pessoa, será um tipo diferente de
sexo, e talvez venha acompanhado de um novo tipo de intimidade.
Ela se lembra de um incidente ocorrido quando trabalhava no zoológico
e um orangotango fêmea morreu. Todo mundo cou arrasado, mas o
treinador favorito do orangotango fêmea cou inconsolável. Depois de
algum tempo, ele confessou que estava fazendo sexo com ela, e, logo depois,
foi demitido. Ana cou chocada, é claro, ainda mais porque ele não parecia
um pervertido sórdido como ela sempre imaginara que um zoó lo fosse —
a dor dele era profunda e verdadeira, a mesma de alguém que perde uma
pessoa amada. Ele já tinha sido casado também, o que a surpreendeu. Ela
imaginava que pessoas assim eram incapazes de arranjar uma namorada,
mas só então percebeu que estava incorrendo nos estereótipos a respeito de
funcionários de zoológico: o de a rmar que eles cuidavam de animais
porque não conseguiam se relacionar com seres humanos. E, tal como zera
naquela época, Ana tenta agora entender por que relações não sexuais com
animais podem ser saudáveis, enquanto relações sexuais não podem, saber
por que o limitado consentimento que os animais proporcionam é o
bastante para mantê-los como bichos de estimação, mas não como parceiros
sexuais. E, mais uma vez, ela não consegue chegar a algum argumento que
não se baseie na sua repulsa pessoal, e não está certa de que isso seja o
bastante.
Quanto à questão de os digientes transarem uns com os outros, este é um
tópico que já foi discutido no passado, e Ana sempre achou que os usuários
têm sorte em não precisarem lidar com isso, porque a maturidade sexual é
justamente quando muitos animais se tornam difíceis de lidar. Não existe
nem sequer a culpa que poderia haver se Jax tivesse que ser castrado por
meio de uma cirurgia, porque ela não está privando o digiente de um
aspecto fundamental da sua natureza. Agora, porém, surge uma linha de
discussão no fórum que a leva a reconsiderar algumas coisas.
Ana e Jax estão jogando Jerk Vector, um jogo de corrida que Ana trouxe há
pouco tempo para a Data Earth; eles pilotam os hovercars por cima de uma
superfície tão acidentada quanto uma embalagem de ovos. Ana consegue
adquirir velocidade em uma baixada, o que lhe possibilita saltar uma ravina,
enquanto Jax não consegue fazer o mesmo, e seu hovercar capota lá atrás.
— Espera eu alcançar — diz ele pelo intercomunicador.
— Está bem — diz Ana, e coloca o hovercar em ponto morto. Enquanto
espera Jax subir de volta a longa trilha que corta o paredão da ravina, abre
outra janela para checar as mensagens. E o que vê a deixa atônita.
Felix mandou uma mensagem para todo o grupo de usuários,
comentando de maneira triunfal uma contagem regressiva para o primeiro
contato da humanidade com os Xenoterianos. De início, ela pensa que não
entendeu direito devido ao modo excêntrico com que Felix usa a linguagem,
mas umas poucas mensagens de outras pessoas con rmam que o transporte
do Neuroblast já está em processamento, custeado pela Binary Desire.
Alguém do grupo vendeu seu digiente para transformá-lo em um boneco
erótico.
Então, ela vê uma mensagem con rmando que Derek vendeu Marco.
Está prestes a fazer um post dizendo que aquilo não podia ser verdade, mas
se detém. Em vez disso, volta para a janela da Data Earth.
— Jax, preciso fazer uma ligação. Por que não ca aí um pouco,
praticando o salto sobre a ravina?
— Vai se arrepender — diz Jax. — Ganhar próxima corrida.
Ana transfere o jogo para o modo de treino, a m de que Jax possa
repetir os saltos sem ter de enfrentar toda a subida de volta cada vez que
cair. Então abre uma janela de videofone e liga para Derek.
— Me diga que não é verdade — diz ela, mas basta um olhar para o rosto
dele para ver que é.
— Não queria que casse sabendo assim. Eu ia ligar para você, mas…
Ana está tão pasma que mal consegue encontrar palavras.
— Por que fez isso? — Derek hesita por tanto tempo que ela faz outra
pergunta. — Foi pelo dinheiro?
— Não! Claro que não. Apenas achei que os argumentos de Marco faziam
sentido, e que ele já tinha idade para fazer as próprias escolhas.
— Nós conversamos sobre isso. Você concordou que era melhor esperar
até que ele tivesse mais experiência.
— Eu sei. Mas depois, bem, depois achei que estava sendo cauteloso
demais.
— Cauteloso demais? Você não está correndo o risco de que Marco rale o
joelho. A Binary Desire vai fazer uma cirurgia cerebral nele. É possível ser
cauteloso demais em uma situação como essa?
Ele faz uma pausa, antes de responder:
— Achei que era hora de deixá-lo ir.
— Deixá-lo ir? — Como se a ideia de proteger Marco e Polo fosse alguma
fantasia infantil que ele tivesse conseguido superar. — Não sabia que era
assim que encarava a questão.
— Eu também não, até pouco tempo atrás.
— Isso signi ca que você não tem planos de um dia transformar Marco e
Polo em corporações?
— Não, ainda pretendo fazer isso. Só não quero continuar mantendo
essa… — Ele hesita. — Essa xação.
— Fixação. — Ana ca pensando quanto conhece de verdade Derek. —
Bom para você, acho.
Ele parece magoado ao escutar aquilo, o que a deixa satisfeita.
— Vai ser bom para todo mundo — diz ele. — Os digientes vão ganhar
acesso à Real Space…
— Eu sei. Eu sei.
— Sério, acho que assim é melhor — diz ele, mas sem parecer acreditar
muito nas próprias palavras.
— Como pode ser melhor? — pergunta ela. Derek não responde, e ela o
encara. — Falo com você depois — diz Ana, fechando a janela no telefone.
O fato de pensar nas maneiras como Marco pode vir a ser usado — sem
sequer entender que está sendo usado — a deixa de coração partido. Não dá
para salvar todos, pensa ela. Só que nunca havia lhe ocorrido que Marco
poderia vir a correr tal risco. Ela presumia que Derek se sentia do mesmo
modo que ela e entendia a necessidade de fazer sacrifícios.
Na janela aberta da Data Earth, ela pode ver Jax pilotando alegremente o
hovercar, subindo e descendo ladeiras como um garoto em uma montanha-
russa sem trilhos. Ela não quer contar sobre o contrato assinado com a
Binary Desire naquele momento; teriam que discutir o que isso vai signi car
para Marco, e ela não tem energia para essa conversa agora. Por ora, tudo
que ela quer é car vendo Jax e, aos poucos, tentar se acostumar à ideia de
que o transporte do Neuroblast está sendo encaminhado. É uma sensação
peculiar. Ela não pode dizer que é um alívio, devido ao enorme preço que foi
cobrado, mas sem dúvida é bom que esse enorme obstáculo ao futuro de Jax
tenha sido removido, e que ela não precise mais aceitar a oferta de trabalho
da Polytope para que isso acontecesse. Vai levar meses até que o trabalho do
transporte seja nalizado, mas, agora que existe um nal à vista, o tempo vai
passar mais depressa. Jax poderá ter acesso à Real Space, ver de novo os
amigos e se reunir ao restante do seu universo social.
Não que o futuro pareça ser tranquilo. Ainda há uma série interminável
de obstáculos pela frente, mas ao menos ela e Jax terão a possibilidade de
enfrentá-los. Por pouco tempo, Ana sente otimismo, fantasiando sobre o
que lhes pode acontecer se eles tiverem êxito.
Ela imagina Jax amadurecendo com o passar dos anos, tanto na Real
Space quanto no mundo exterior. Imagina-o se transformando em uma
corporação, uma pessoa sob os olhos da lei, com um emprego e um salário.
Imagina-o como participante de uma subcultura digiente, uma comunidade
com dinheiro e talentos su cientes para ser capaz de se transportar para
novas plataformas sempre que surgir a necessidade. Imagina-o sendo aceito
por uma geração de humanos que cresceram cercados de digientes e que os
veem como possíveis parceiros em diferentes tipos de relação, de uma forma
que os membros da geração dela jamais foram capazes de ver. Imagina-o
amando e sendo amado, discutindo e fazendo concessões. Imagina-o
fazendo sacrifícios, alguns difíceis e outros mais fáceis por envolverem entes
queridos.
Passam-se alguns minutos, e Ana diz a si mesma para deixar de
devaneios. Não há garantia de que Jax será capaz de realizar qualquer uma
dessas coisas. Mas se um dia ele tiver a chance de tentar, vai ter que dar
continuidade à tarefa que está diante dela: ensinar a ele, da melhor maneira
que puder, como viver.
Ana dá início ao processo de desligamento do jogo e chama Jax no
intercom.
— O jogo acabou, Jax — diz ela. — Está na hora de fazer o dever de casa.
A BABÁ AUTOMÁTICA foi uma criação de Reginald Dacey, um matemático
nascido em Londres em 1861. O propósito original de Dacey era o de
construir uma máquina de ensino. Inspirado pelos recentes avanços na
tecnologia dos gramofones, ele tencionava converter os maquinismos
aritméticos da Máquina Analítica proposta por Charles Babbage em um
mecanismo capaz de ensinar gramática e aritmética automaticamente.
Dacey não o encarava como um substituto para o ensino humano, mas
como um instrumento cuja função era poupar trabalho, a ser utilizado por
professores e governantas.
Durante anos, Dacey trabalhou com a nco em sua máquina de ensino, e
até mesmo a perda de sua esposa, Emily, que morreu durante o parto em
1894, não diminuiu a velocidade dos seus esforços.
O que mudou a direção de suas pesquisas foi a descoberta, vários anos
depois, da forma que seu lho, Lionel, estava sendo tratado pela babá, uma
mulher conhecida como Nanny Gibson. O próprio Dacey havia sido criado
por uma babá muito afetuosa e, durante anos, presumiu que a mulher
contratada por ele estava tratando seu lho da mesma maneira, chegando
até a adverti-la, vez ou outra, para que não fosse tolerante demais. Ficou
chocado ao descobrir que Nanny Gibson espancava regularmente o garoto e
o obrigava a tomar Pó de Gregory (um laxante poderoso e de sabor
intolerável) como castigo. Percebendo que o lho vivia em terror constante
com a babá, Dacey a despediu de imediato. Em seguida, realizou entrevistas
minuciosas com várias candidatas ao posto, e se surpreendeu ao perceber a
enorme variedade de abordagens entre elas no que dizia respeito à educação
de crianças. Algumas babás enchiam seus protegidos de afeição, enquanto
outras aplicavam medidas ainda mais duras do que as de Nanny Gibson.
Dacey en m contratou uma babá substituta, mas mandava-a levar Lionel
regularmente à o cina para poder mantê-lo sob supervisão. Isso deve ter
sido um verdadeiro paraíso para o menino, que, na presença de Dacey, não
manifestava outra coisa senão obediência; a discrepância entre os relatos de
Nanny Gibson sobre o comportamento de Lionel e as observações do
próprio Dacey o levaram a iniciar uma investigação quanto à melhor
conduta para se criar um lho. Dada sua inclinação matemática, ele via o
estado emocional de uma criança como um exemplo de sistema em
equilíbrio instável. Seus diários desse período incluem a seguinte
observação: “A permissividade leva ao mau comportamento, que, por sua
vez, irrita a babá e a leva a ministrar um castigo mais severo do que o
merecido. Ela, então, sente remorso, e, subsequentemente, procura
compensar isso com mais permissividade. O processo torna-se um pêndulo
invertido, com oscilações de magnitude cada vez maior. Se pudermos
manter o pêndulo na posição vertical, não haverá necessidade de correções
posteriores.”
Dacey tentou transmitir sua loso a de educação infantil a uma série de
babás de Lionel, mas sempre recebeu relatos de que o menino não as
obedecia. Parece não ter lhe ocorrido que o menino se comportava de uma
maneira com as babás e de outra com o pai. Ele acabou concluindo que as
babás eram muito temperamentais para seguir suas instruções à risca. Em
um aspecto, ele concordava com a sabedoria popular de sua época, que dizia
que a natureza emotiva das mulheres fazia delas indivíduos pouco indicados
para a criação de lhos; o ponto em que ele divergia era sua noção de que a
punição em demasia podia ser tão prejudicial quanto o excesso de afeição.
Acabou concluindo que a única babá capaz de seguir os procedimentos por
ele esboçados seria uma que ele próprio viesse a construir.
Em cartas a colegas, Dacey expôs múltiplas razões para seu interesse por
uma babá mecânica. Em primeiro lugar, uma máquina assim seria mais fácil
de construir do que uma cuja nalidade era ensinar, e a venda desta
proporcionaria um modo de levantar os fundos necessários para o
aperfeiçoamento da outra. Em segundo lugar, ele via nisso uma
oportunidade para fazer uma intervenção antecipada: ao colocar as crianças
sob os cuidados de máquinas enquanto bebês, ele estaria se certi cando de
que elas não adquiririam maus hábitos que precisariam ser erradicados
posteriormente. “Crianças não nascem pecadoras, mas tornam-se devido à
in uência daqueles a quem encarregamos sua instrução”, escreveu ele. “Uma
criação racional produzirá crianças racionais.”
É um bom indicador do pensamento vitoriano em relação a crianças o
fato de que, em nenhum momento, Dacey sugere que elas deveriam ser
criadas pelos pais. Sobre a participação dele próprio na criação de Lionel, ele
escreveu: “Estou consciente de que minha presença traz consigo os próprios
perigos que procuro evitar, pois, embora seja mais racional do que qualquer
mulher, não sou imune às expressões de satisfação ou de acabrunhamento
do menino. Contudo, o progresso pode acontecer apenas passo a passo, e
mesmo que já seja tarde demais para que Lionel possa receber com
plenitude os benefícios de meu trabalho, meu lho compreende a
importância dele. O aperfeiçoamento desta máquina signi ca que outros
pais serão capazes de criar seus lhos em um ambiente mais racional do que
eu pude proporcionar ao meu.”
Para a fabricação da Babá Automática, Dacey rmou um contrato com a
omas Bradford & Co., uma fabricante de máquinas de costurar e de lavar.
A parte principal do torso da Babá era ocupada por um mecanismo de rodas
dentadas movido a molas, que controlava a programação da alimentação e
do acalentamento. Durante a maior parte do tempo, os braços assumiam
uma posição de aconchego para ninar o bebê. A intervalos programados, a
máquina erguia o pequeno até a posição de ser amamentado e lhe oferecia
um mamilo de borracha conectado a um reservatório cheio de líquido
preparado com uma fórmula alimentícia. Além da manivela maior,
destinada a acionar a mola principal, a Babá tinha uma manivela pequena
para acionar o gramofone que reproduzia as canções de ninar; era preciso
um gramofone excepcionalmente pequeno para ser encaixado no interior da
cabeça da Babá, e apenas discos fabricados para aquele aparelho podiam ser
reproduzidos. Havia também um pedal próximo à base da Babá que,
acionado pelo pé, pressurizava a bomba de sucção encarregada de sugar,
através de dois tubos, as excreções depositadas na fralda do bebê e transferi-
las para um vasilhame.
A Babá Automática chegou ao mercado em março de 1901, com o
seguinte anúncio publicado no e Illustrated London News:
Não deixe mais sua criança aos cuidados de uma mulher cujo caráter
você desconhece. Adote a prática moderna do acompanhamento
cientí co de bebês adquirindo a
Logo após essa visita, Lionel Dacey fez instalar em sua casa
manipuladores remotos e um intercom e trouxe Edmund para morar
consigo. Ele se dedicou à interação mediada por máquinas com o lho até
Edmund sucumbir a uma pneumonia em 1966. Lionel Dacey faleceu no ano
seguinte.
A Babá Automática em exibição aqui é a que foi adquirida pelo dr.
Lambshead para melhorar os cuidados de Edmund no Instituto Brighton.
Todas as Babás ainda mantidas por Lionel Dacey foram destruídas após a
morte de Edmund. O Museu Nacional de Psicologia agradece ao dr.
Lambshead pela doação do raro artefato.
QUANDO MINHA FILHA NICOLE era bebê, li um ensaio em que era sugerido que
talvez não fosse mais necessário ensinar as crianças a ler ou a escrever,
porque as técnicas de reconhecimento e síntese vocal em breve tornariam
essas habilidades desnecessárias. Minha esposa e eu camos horrorizados
diante daquela perspectiva, e decidimos que, independentemente de quão
so sticadas as tecnologias viessem a se tornar, as aptidões de nossa lha
sempre teriam a instrução tradicional como base.
No m das contas, tanto nós quanto o articulista tínhamos um pouco de
razão: agora adulta, Nicole sabe ler tão bem quanto eu. Em certo sentido,
porém, ela perdeu a capacidade de escrever. Ela não dita as mensagens e
pede a um assistente virtual que leia de volta o que foi dito, como o
articulista previra: Nicole subvocaliza, seu projetor retiniano exibe as
palavras em seu campo visual e ela faz as revisões usando uma combinação
de gestos e movimentos dos olhos. Para todos os propósitos práticos, ela é
capaz de escrever. Contudo, se retirarmos o so ware que a auxilia e lhe
dermos um teclado como o que estou usando, ao qual permaneço el, ela
terá di culdade para soletrar muitas das palavras desta frase. Nessas
circunstâncias, seu próprio idioma se torna uma espécie de segunda língua
para ela, uma que Nicole consegue falar uentemente, mas que mal
consegue escrever.
Pode parecer que estou desapontado com as conquistas intelectuais de
minha lha, mas não é o caso. Ela é inteligente e muito dedicada ao seu
trabalho em um museu de arte, quando poderia estar ganhando mais
dinheiro em qualquer outro lugar, e sempre me orgulhei de seus triunfos.
No entanto, ainda há aquele meu eu antigo que caria chocado ao constatar
que a lha não sabe soletrar, e não posso negar que existe uma continuidade
entre ele e eu.
Já vão mais de trinta anos desde que li o artigo em questão, e, nesse
período, nossa vida sofreu inúmeras mudanças que eu teria sido incapaz de
prever. A mais catastró ca delas foi quando a mãe de Nicole, Angela,
declarou que merecia uma vida mais interessante do que a que eu vinha lhe
proporcionando, e passou a década seguinte viajando pelo mundo. Contudo,
as mudanças que conduziram à forma peculiar de alfabetização de Nicole
foram mais comuns e graduais: uma sucessão de aplicativos que não só
prometiam, como também proporcionavam utilidade e conveniência, tanto
que não z objeção a nenhum deles na época em que ela os adotou.
De fato, nunca tive o hábito de profetizar o Fim dos Tempos toda vez que
uma nova tecnologia era anunciada; recebo-as tão bem quanto qualquer
outra. No entanto, quando a Whetstone lançou sua nova ferramenta de
busca, o Remem, o programa me trouxe preocupações que nenhum de seus
predecessores me causara.
Milhões de pessoas, algumas da mesma idade que eu, mas, em geral, mais
jovens, vêm mantendo biologs, diários biográ cos de si mesmos, há anos e
anos, usando câmeras pessoais que capturam sem parar vídeos do cotidiano.
As pessoas consultam esses biologs por uma grande variedade de motivos —
desde o desejo de reviver seus momentos favoritos até descobrir a causa de
uma reação alérgica —, mas apenas de modo intermitente; ninguém quer
passar a vida inteira propondo buscas e ltrando resultados. Esses biologs
são os álbuns de fotogra as mais completos que alguém poderia conceber, e,
como a maioria dos álbuns de fotogra as, cam em repouso exceto em
ocasiões especiais. Agora, a Whetstone pretende mudar isso. Eles anunciam
que os algoritmos do Remem podem varrer todo o palheiro antes mesmo
que você termine de dizer “agulha”.
O Remem monitora as conversas buscando referências a eventos
passados, e exibe vídeos desses eventos no canto inferior esquerdo de seu
campo visual. Se você diz a alguém “Lembra aquele casamento em que você
dançou a conga?”, o Remem exibe o vídeo. Se a pessoa com quem está
conversando menciona “a última vez em que fomos à praia”, o Remem exibe
o vídeo. E ele não funciona apenas quando se está conversando com outra
pessoa: o Remem também monitora suas subvocalizações. Se você lê as
palavras “o primeiro restaurante de culinária sichuana em que jantei”, suas
cordas vocais se movem como se você estivesse lendo aquilo em voz alta, e o
Remem exibe o respectivo vídeo.
Não se pode negar a utilidade de um so ware capaz de responder à
pergunta “Onde foi que coloquei as chaves?”. Mas a Whetstone está
direcionando o marketing do Remem para mostrá-lo como algo além de um
prático assistente virtual: eles querem substituir sua memória biológica.
• • •
Foi no verão em que Jijingi completou treze anos que um europeu veio
morar no vilarejo. O poeirento vento harmatão mal começara a soprar do
norte quando Sabe, o ancião considerado líder por todas as famílias locais,
fez o anúncio.
A reação inicial de todos foi de alarme, é claro.
— O que zemos de errado? — perguntou o pai de Jijingi a Sabe.
Os europeus chegaram à terra dos Tivs pela primeira vez há muitos anos,
e, embora alguns anciãos a rmassem que eventualmente eles iriam partir e a
vida voltaria a ser como era, até que esse dia chegasse os Tivs precisariam
conviver com eles. Isso signi cava muitas mudanças no estilo de vida dos
Tivs, mas, até então, nenhum europeu fora morar com eles. O motivo mais
comum da vinda deles era recolher impostos pelas estradas que
construíram; alguns clãs eram visitados com mais frequência, porque as
pessoas se recusavam a pagar os impostos, mas isso não havia acontecido
com os membros do clã Shangev. Sabe e os anciãos dos outros clãs
concordaram que a melhor estratégia era pagar os impostos.
Sabe disse a todos para não se preocupar.
— Este europeu é um missionário; isso signi ca que ele não faz outra
coisa além de rezar. Não tem autoridade para nos punir, mas, se o
recebermos bem, deverá agradar aos homens da administração.
Ele ordenou que duas cabanas fossem construídas para o missionário,
uma para dormir e outra para receber pessoas. Durante vários dias, todos
reservaram uma parte do tempo que dedicariam à colheita do sorgo para
ajudar a assentar tijolos, en ar postes no terreno, tecer capim para a
cobertura do teto. Foi durante a fase nal, a de bater e nivelar o chão, que o
missionário chegou. Seus carregadores chegaram primeiro, e as caixas que
traziam foram as primeiras coisas visíveis a distância, enquanto eles abriam
caminho entre os campos de mandioca; o missionário foi o último a surgir,
aparentemente exausto, embora não carregasse nada. Seu nome era Moseby,
e ele agradeceu a todos que tinham ajudado a construir as cabanas. Ele
tentou ajudá-los, mas logo cou claro que não sabia fazer coisa alguma, de
modo que acabou sentado à sombra de uma alfarroba, enxugando o rosto
com um pedaço de pano.
Jijingi observou o missionário com curiosidade. O homem abriu uma das
caixas e tirou dali o que, a princípio, pareceu um bloco de madeira.
Contudo, ele o abriu ao meio, e Jijingi percebeu que era um monte de folhas
de papel rmemente presas umas às outras. O menino já tinha visto papel:
quando os europeus vinham receber o pagamento dos impostos, eles davam
papéis em troca, para que o vilarejo pudesse provar que o valor estava pago.
Mas os papéis que o missionário olhava eram, obviamente, de um tipo
diferente, e deviam ter outra função.
O homem percebeu Jijingi olhando para ele, e o chamou para mais perto.
— Meu nome é Moseby — disse ele. — Como você se chama?
— Eu sou Jijingi e meu pai é Orga, do clã Shangev.
Moseby desdobrou uma folha de papel e fez um gesto na direção dela.
— Já ouviu a história de Adão? — perguntou ele. — Adão foi o primeiro
homem. Todos nós somos lhos de Adão.
— Aqui somos descendentes de Shangev — respondeu Jijingi. — E todos
na terra dos Tivs são descendentes de Tiv.
— Sim, mas o seu antepassado Tiv é descendente de Adão, tal como os
meus. Somos todos irmãos. Você compreende?
O missionário falava como se a língua fosse grande demais para a boca,
mas Jijingi conseguia entender o que dizia.
— Sim, compreendo.
Moseby sorriu, e apontou o papel.
— Este papel conta a história de Adão.
— Como um papel pode contar uma história?
— É uma arte que nós, europeus, conhecemos. Quando um homem fala,
fazemos marcas em um papel. Depois, quando outro homem olha para o
papel, ele vê as marcas e sabe quais foram os sons que o primeiro homem
fez. Assim, o segundo homem pode ouvir o que o primeiro disse.
Jijingi se lembrou de uma coisa que seu pai dizia a respeito do velho
Gbegba, que era muito habilidoso em rastreamento no mato. “Enquanto eu
ou você não enxergamos nada além da relva remexida, ele é capaz de ver que
um leopardo matou um rato-do-pântano naquele ponto e o levou consigo.”
Gbegba era capaz de olhar para o solo e saber o que havia acontecido,
mesmo sem ter estado presente. Esta arte dos europeus devia ser
semelhante: os que conheciam a técnica de interpretação das marcas podiam
ouvir a história mesmo não tendo estado presentes quando ela foi contada.
— Conte a história que há nesse papel — pediu ele.
Moseby contou-lhe a história sobre Adão e sua esposa sendo enganados
por uma serpente. Então, perguntou a Jijingi:
— Gostou?
— Você narra muito mal, mas a história é interessante.
Moseby riu.
— Tem razão, não sou muito bom com o idioma Tiv. Mas é uma boa
história, sim. É a história mais antiga que temos. Ela foi contada pela
primeira vez muito antes do seu antepassado Tiv ter nascido.
Jijingi duvidou.
— Esse papel não pode ser tão velho.
— Não, o papel não é. Mas as marcas nele foram copiadas de papéis mais
velhos. E as marcas destes, de papéis ainda mais velhos. E assim por diante,
diversas vezes.
Aquilo seria extraordinário, se fosse verdade. Jijingi gostava de histórias,
e as mais antigas costumavam ser as melhores.
— Quantas histórias tem aí?
— Muitas. — Moseby folheou com o dedo as numerosas folhas, e Jijingi
pôde ver que cada página estava coberta de marcas de uma ponta à outra.
Devia haver mesmo muitas, muitas histórias ali.
— Essa arte que você mencionou, de interpretar marcas em um papel, é
apenas para europeus?
— Não, posso ensinar a você. Gostaria?
Cautelosamente, Jijingi fez que sim com a cabeça.
• • •
Esta foi a última disputa do dia, e, àquela altura, Sabe estava cansado.
— Vender verduras para devolver o pagamento por uma noiva — disse
ele depois, balançando a cabeça. — Quando eu era rapaz, esse tipo de coisa
não acontecia.
Jijingi sabia o que Sabe queria dizer. No passado, diziam os anciãos, as
trocas eram efetuadas com itens semelhantes: se você queria uma cabra,
podia trocá-la por galinhas; se queria uma esposa, oferecia uma mulher de
seu clã como noiva para alguém de outra família. Então os europeus
disseram que não aceitariam verduras como pagamento de impostos,
insistindo que deviam ser pagos em moeda. Em pouco tempo, tudo podia
ser trocado por dinheiro; podia-se usá-lo para comprar qualquer coisa,
desde uma cabaça até uma esposa. Os anciãos consideraram aquilo um
absurdo.
— Os velhos costumes estão desaparecendo — concordou Jijingi.
Ele não comentou que os jovens preferiam as coisas como eram agora,
porque os europeus também haviam decretado que o pagamento por uma
noiva só podia ser feito se a mulher concordasse com o casamento. No
passado, uma jovem podia ser prometida a um homem idoso com as mãos
cobertas de lepra e os dentes podres, e não tinha escolha senão se casar com
ele. Agora, uma mulher podia casar com o homem que preferisse, desde que
ele tivesse como pagar a soma correspondente. O próprio Jijingi já estava
economizando dinheiro para isso.
Às vezes, Moseby aparecia para observar, mas ele achava toda aquela
cerimônia bastante confusa, e, por diversas vezes, depois de tudo acabado,
enchia Jijingi de perguntas.
— Por exemplo: essa disputa entre Umem e Anongo sobre o dinheiro que
era devido pela noiva. Por que apenas a testemunha prestou juramento?
— Para garantir que ele iria dizer o que aconteceu.
— Mas se Umem e Anongo prestassem juramento também, isso
garantiria que também diriam o que aconteceu. Anongo só foi capaz de
mentir porque não prestou juramento.
— Anongo não mentiu — disse Jijingi. — Ele falou o que considerava
certo, tal como Umem fez.
— Mas o que Anongo falou não foi o mesmo que a testemunha.
— Isso não signi ca que ele estivesse mentindo. — Então, Jijingi lembrou
algo a respeito da língua dos europeus, e entendeu a confusão de Moseby. —
Nosso idioma tem duas palavras diferentes para o que, na língua de vocês,
quer dizer “verdadeiro”. Existe o que é certo, mimi, e o que é exato, vough.
Em uma disputa, os envolvidos dizem o que consideram certo; eles falam
mimi. As testemunhas, no entanto, juram dizer o que aconteceu; elas falam
vough. Quando Sabe escuta o relato do que aconteceu, ele pode decidir qual
a ação que será mimi para todo mundo. Contudo, se os envolvidos não
falam vough, não é considerado uma mentira, desde que eles falem mimi.
Moseby visivelmente desaprovava aquilo.
— De onde eu venho, todo mundo que depõe em uma corte tem que
jurar que vai falar vough, inclusive os querelantes.
Jijingi não vê a nalidade daquilo, mas tudo que disse foi:
— Toda tribo tem os próprios costumes.
— Sim, os costumes podem variar, mas a verdade é a verdade; ela não
muda de uma pessoa para outra. E lembre-se do que a Bíblia diz: a verdade
vos libertará.
— Sim, eu me lembro — disse Jijingi. Moseby dissera que era o
conhecimento da verdade divina que tornara os europeus tão bem-
sucedidos. Ninguém podia negar sua riqueza e seu poder, mas quem podia
saber de verdade qual era a causa?
• • •
O universo é tão vasto que a vida inteligente deve ter brotado nele inúmeras
vezes. E é também tão antigo que mesmo uma única espécie tecnológica
teria tido tempo de se expandir e ocupar a galáxia inteira. No entanto, não
há nenhum sinal de vida em lugar algum, a não ser na Terra. Os humanos
chamam isto de “o paradoxo Fermi”.
Todo papagaio tem um chamado típico que usa para se identi car. Os
biólogos se referem a isso como “chamado de contato”.
Em 1974, os astrônomos usaram Arecibo para transmitir uma mensagem
no espaço, com o intuito de fornecer uma prova da inteligência humana. Era
o chamado de contato da espécie humana.
Na vida selvagem, os papagaios se dirigem uns aos outros usando nomes.
Um pássaro imita o chamado de contato do outro para chamar a atenção.
Se os humanos chegarem a detectar a mensagem de Arecibo sendo
transmitida de volta à Terra, saberão que existe alguém tentando chamar a
atenção.
• • •
De acordo com a mitologia hindu, o universo foi criado com um som: “om”.
É uma sílaba que contém em si tudo que já foi e tudo que será.
Quando o telescópio de Arecibo está apontado para o espaço entre as
estrelas, ele ouve um tênue zumbido.
Os astrônomos chamam isso de radiação cósmica de fundo em micro-
ondas. É a radiação residual do Big Bang, a explosão que criou o universo há
cerca de catorze bilhões de anos.
Mas também se pode ver isso como uma reverberação apenas audível do
“om” original. Esta sílaba ressoou de maneira tão profunda que o céu
noturno continuará vibrando enquanto existir o universo.
Quando Arecibo não está escutando outra coisa, está ouvindo a voz da
criação.
• • •
Nós, papagaios porto-riquenhos, temos nossos próprios mitos. São mais
simples do que as mitologias humanas, mas acho que os humanos os
ouviriam com prazer.
É uma pena, mas nossos mitos estão se perdendo à medida que nossa
espécie se extingue. Duvido que os humanos consigam decifrar nossa
linguagem antes que tenhamos desaparecido.
Desse modo, a extinção da minha espécie não signi ca apenas a perda de
um grupo de pássaros. É também o desaparecimento de nossa linguagem,
nossos rituais, nossas tradições. É o silenciamento de nossa voz.
• • •
Senhor, eu me posto em vossa presença e peço que vossa luz ilumine meu
coração no momento em que volto a contemplar este dia, para que eu possa
ver com mais clareza a vossa graça em tudo que aconteceu.
Tal como eu temia, as relíquias da lojinha eram de fato roubadas. Mas
não quero me deter nesse fato e ignorar todo o resto. O dia de hoje me deu
numerosas razões para pensar em vós, e não devo ignorá-las.
Meu primeiro dia em San Francisco começou bem. Dou graças pela noite
repousante que tive na cama de um hotel. Os dias que passei viajando de
trem cobraram um preço alto, ou, melhor dizendo, as noites. Sempre tive
di culdade para dormir em trens, de modo que eles são minha última opção
para viajar. Preferiria mil vezes atravessar um deserto de carro e dormir ao
ar livre.
San Francisco é uma cidade onde é impossível esquecer vossa presença,
Senhor. No momento em que deixei o hotel, uma pessoa me abordou
pedindo donativos para a Catedral de Yosemite. Suponho que estejam
postados diante de todos os hotéis, tendo como alvos os visitantes de fora,
uma vez que os moradores da cidade já devam estar cansados daquilo. Não
doei nada, mas admirei as pinturas nas placas que estavam em exposição
bem ali ao lado. Havia belas reproduções de como deverá car a catedral
assim que as obras forem concluídas. Fiquei impressionada por uma que
mostrava a galeria principal, iluminada pelo sol poente. Li em algum lugar
que essa galeria deverá ter trezentos metros de altura, do chão ao teto, e a
pintura representava muito bem essa imensa escala.
Ninguém pode negar, Senhor, que vós esculpistes uma paisagem de
grande beleza na superfície da Terra. Tive a sorte de poder visitar três
continentes, onde vi falésias de calcário branco, des ladeiros de arenito,
colunas de basalto — tudo espetacular. Mas, para mim, a consciência de que
eles não passam de uma fachada decorativa acaba relativizando minha
apreciação. Talvez seja minha mente cienti camente treinada que me faz
querer ir mais fundo. Tenho muito mais reverência pelo granito que jaz por
baixo da superfície de tudo aquilo, o oceano de pedra de que a Terra é de
fato constituída. Assim, é nos lugares onde vejo esse granito exposto, nos
lugares onde a verdadeira essência da Terra é visível, que sinto uma
comunhão mais profunda com vosso trabalho de criação.
O vale do Yosemite é um desses lugares, e eu gostaria de ter podido
visitá-lo um século atrás, quando ele era virgem e intocado. Vi fotogramas
das formações de rochas antes de elas começarem a ser escavadas, e era
magní co. Não quero com isso criticar a decisão da arquidiocese. Ou talvez
queira. Perdoai-me, Senhor. Sei que a Catedral de Yosemite será uma
extraordinária fonte de inspiração depois que estiver concluída, e espero que
isso ocorra durante meu tempo de vida. Sem dúvida vai fazer com que um
número incalculável de pessoas se aproxime de vós. O que acho, apenas, é
que a visão da montanha de granito, por si só, poderia ter o mesmo efeito.
Será errado da minha parte questionar se a construção de catedrais é
mesmo, à medida que nos aproximamos do século XXI, a melhor utilização
de tantos milhões de dólares e o esforço de gerações inteiras? Reconheço que
um projeto mais longo que a extensão de uma vida humana induz em seus
participantes aspirações que vão além da esfera temporal. Entendo até a
motivação para se escavar uma catedral no interior do próprio substrato da
Terra, criando assim um monumento às arquiteturas humana e divina. Mas
para mim a ciência é a verdadeira catedral moderna, um edifício do
conhecimento, tão majestoso quanto qualquer outro feito de pedra. Ela
concretiza os mesmos objetivos da Catedral de Yosemite e ainda mais, e eu
gostaria que mais pessoas fossem capazes de entender isso.
Talvez eu esteja apenas com inveja da capacidade da Igreja em arrecadar
dinheiro — perdoai-me, Senhor, se for esse o caso. Eles estão tentando
celebrar vossa glória, Senhor, tanto quanto nós da comunidade cientí ca,
então não posso discordar deles em demasia. O que temos em comum é
mais importante do que nossas diferenças.
Fui à agência dos correios onde Martin Osborne recebia sua
correspondência e sentei no banco de uma parada de ônibus do outro lado
da rua. Eu tinha lacrado o pacote com uma ta adesiva colorida para
reconhecê-lo com facilidade, e precisei apenas car à espera e de olhos
atentos. Não me senti à vontade e achei que chamava um pouco a atenção,
pois as pessoas chegavam, subiam nos ônibus, e eu permanecia ali. Passou-
se uma hora, depois outra, e mais de uma vez me perguntei se tinha bem
planejado aquilo tudo. Estou mais acostumada a caçar ossos enterrados do
que presas vivas, Senhor, sei tão pouco a respeito das artes da emboscada e
da camu agem.
Por m, avistei o pacote. Quase me passou despercebido, porque eu
estava esperando ver um homem, mas foi uma mulher bastante jovem que
saiu com ele e o pousou na calçada enquanto acenava para um táxi. Não
teria mais do que dezoito anos, talvez até menos, jovem demais para ser
funcionária de um museu. De início, imaginei que ela fosse uma cúmplice
de Martin Osborne, talvez alguém que ele tivesse cooptado para seu plano,
mas depois achei que estava sendo tão chauvinista quanto aqueles homens
cujos preconceitos tantas vezes me causam irritação.
Aproximei-me dela e perguntei se ela era “Martin Osborne”. Ela hesitou
por um longo momento e depois, admitindo que tinha sido descoberta,
disse: “Sim, sou. Foi você quem enviou o correiograma?” Respondi que sim.
Eu estava preparada para reagir a acusações ferozes por parte do marginal
que esperava encontrar, mas, quando me deparei com aquela jovem, quei
sem saber como agir. Apresentei-me, e ela disse que seu nome era
Wilhelmina McCullough. O sobrenome me soou familiar, e, movida por
uma súbita suspeita, perguntei-lhe se ela tinha algum parentesco com
Nathan McCullough. Ela respondeu que sim, era seu pai.
Aquilo deixou as coisas mais claras. A garota era lha do diretor do
Museu de Filoso a Natural, da Universidade da Alta Califórnia, em
Oakland. Nenhum daqueles funcionários iria estranhar a presença da lha
do diretor nas instalações do museu.
— Isto signi ca que as relíquias não estão nesse pacote? — perguntou ela.
Respondi que não estavam, e ela apanhou o pacote e o jogou numa caixa
de lixo próxima.
— Agora que me descobriu, o que vai fazer?
Expliquei que por enquanto ela poderia me contar por que tinha roubado
as relíquias do museu do pai.
— Não sou ladra, dra. Morrell. Ladrões roubam para benefício pessoal.
Eu peguei essas relíquias para o benefício de Deus.
Perguntei por que motivo tinha pedido que as relíquias fossem vendidas
por um preço bem baixo, se queria contribuir com a construção da Catedral
de Yosemite.
— Acha que eu estava levantando fundos para a catedral? Não ligo a
mínima para isso. O que eu queria era que o maior número possível de
pessoas fosse capaz de admirar as relíquias. Eu teria distribuído todas elas de
graça, mas, se zesse isso, quem iria acreditar que eram de verdade? Eu não
poderia vendê-las pessoalmente, então achei melhor doá-las para quem
pudesse.
Eu disse que as pessoas poderiam admirar as relíquias visitando o museu.
— Ninguém iria ver as relíquias que peguei. Estavam cobertas de poeira
nos armários. Não faz o menor sentido a universidade acumular tanta coisa
que não consegue exibir.
Argumentei que todos os curadores de museus gostariam de poder expor
mais material de suas coleções. Expliquei que é por isso que promovem
rodízio de exposições.
— Há uma quantidade enorme de itens que jamais serão expostos —
respondeu ela.
Não pude negar aquilo. Ela tirou um objeto da bolsa: era uma concha
primordial, com uma secção lisa seguida por uma série de anéis de
crescimento.
— Eu mostro esta aqui às pessoas quando lhes falo a respeito de Deus, e
todos que a veem cam impressionados. Pense em quantas pessoas teriam a
fé reforçada se pudessem contemplar as relíquias que cam trancadas nos
porões do museu. Estou apenas tentando fazer bom uso delas.
Perguntei há quanto tempo ela vinha subtraindo relíquias do museu, e ela
disse que tinha começado recentemente.
— A fé das pessoas vai ser submetida a testes em breve, e algumas delas
vão precisar de algum tipo de reforço. Por isso é importante que as relíquias
estejam acessíveis, para dissipar as dúvidas das pessoas.
Perguntei-lhe quais testes seriam aqueles.
— Há um artigo cientí co que vai ser publicado em breve — contou ela.
— Sei a respeito dele porque meu pai o recebeu para examinar. Quando as
pessoas o lerem, muitas vão perder a fé.
Perguntei se o artigo tinha conseguido abalar a fé dela, e a jovem deu de
ombros.
— Minha fé é absoluta. Já a do meu pai...
A ideia de que o pai dela pudesse estar sujeito a uma crise de fé me
parecia inacreditável: sendo um cientista, ele seria a última pessoa a ter
motivos para dúvida. Perguntei-lhe que tipo de artigo cientí co era aquele.
— É sobre astronomia — disse ela.
Admito, Senhor, que nunca dei muita importância à astronomia. Sempre
me pareceu a mais entediante das ciências. As ciências da vida são
aparentemente ilimitadas: a cada ano, descobrimos novas espécies de plantas
e de animais, e com isso aprofundamos nossa admiração por vossa
engenhosidade ao criar tudo que existe na Terra. O céu noturno, ao
contrário, é uma coisa tão nita. Todas as cinco mil, oitocentas e setenta e
duas estrelas foram catalogadas em 1745, e desde então nem uma só foi
descoberta. Sempre que os astrônomos examinam uma delas mais
detalhadamente, con rmam que é idêntica, em tamanho e composição, a
todas as demais, e para quê? É da própria essência das estrelas que elas
tenham tão poucas características. Elas são o pano de fundo de encontro ao
qual a Terra se destaca, para nos lembrar de quanto somos especiais.
Escolhê-las para objeto de estudo sempre me pareceu algo comparável a
tentar saborear o prato em que os alimentos são servidos.
Desse modo, não me surpreendeu saber que um artigo cientí co sobre
astronomia poderia fazer algumas pessoas perderem de vista o que é
realmente importante, embora eu esperasse ver essa reação num leigo, não
num cientista. Perguntei a Wilhelmina sobre o que dizia o artigo, e ela
respondeu: “Absurdos.” Pedi-lhe que fosse mais especí ca, mas tudo que ela
comentou foi que se tratava de uma teoria destinada a semear a dúvida.
— E tudo com base em coisas avistadas por um telescópio! — disse ela.
— Cada relíquia que eu distribuo é uma prova concreta, que a pessoa pode
tocar com a própria mão, sabe que aquilo é verdade porque pode sentir.
Ela pressionou a concha na minha mão e esfregou meu polegar para a
frente e para trás, entre a área lisa e a área coberta de anéis.
— Como é que alguém pode ter dúvidas sobre isso?!
Eu disse a Wilhelmina que precisava conversar com os pais dela sobre o
que ela havia feito. Ela não pareceu se preocupar.
— Não vou pedir desculpas por ter trazido as pessoas para mais perto de
Deus. Sei que para isso andei violando algumas regras, mas são as regras que
precisam mudar, não o meu comportamento.
Eu disse que as pessoas não podem sair desobedecendo às regras só
porque não concordam com elas, e que a sociedade deixaria de funcionar se
todo mundo se comportasse assim.
— Não seja boba — retrucou ela. — Você mentiu quando enviou aquele
correiograma dizendo que era o sr. Dahl. Por quê? Porque você acredita que
todo mundo é livre para mentir? Claro que não. Você avaliou a situação e
concluiu que a mentira era justi cada. Está preparada para assumir a
responsabilidade pelo que fez, não está? Bem, eu também estou. É isso que a
sociedade espera de nós, e não que obedeçamos a regras sem pensarmos por
conta própria.
Eu gostaria de ter tido aquela mesma autocon ança quando tinha a idade
dela. Na verdade, gostaria de tê-la naquele mesmo instante. É só quando
estou executando um trabalho de campo que me vem a certeza de estar
seguindo vossa vontade, Senhor. Mas, quando se trata de assuntos dessa
natureza, paira sempre alguma incerteza em minha mente.
— Meu pai está hoje em Sacramento — disse Wilhelmina. — Se quiser
conversar com ele, pode vir a nossa casa amanhã pela manhã, antes das
nove.
Eu disse que era melhor que ela estivesse presente também, e ela pareceu
ofendida.
— Claro que vou estar presente. Não me envergonho do que z. Não
ouviu o que acabei de dizer?
Amanhã, portanto, vou conversar com o dr. McCullough e sua esposa.
Nada disso aconteceu do jeito que eu imaginava quando deixei Chicago.
Estava pronta para levar um criminoso à justiça, e em vez disso vou
comunicar a um pai e uma mãe o mau comportamento de uma lha. Ela
não é uma criança, e também não é uma criminosa, mas não tenho certeza
de como devo classi cá-la. Se ela fosse uma criminosa, minha posição seria
mais segura. Em vez disso, estou perplexa.
Ajudai-me a entender os posicionamentos das outras pessoas, Senhor,
mesmo sem compartilhá-los. Ao mesmo tempo, dai-me forças para não
fazer vista grossa às más ações simplesmente por serem cometidas por uma
pessoa bem-intencionada. Permita que eu manifeste compaixão, mas que
me mantenha rme em minhas convicções.
Amém.
• • •
Senhor, estou muito amedrontada por causa das coisas que ouvi hoje.
Preciso desesperadamente de vossa orientação. Por favor, ajudai-me a impor
algum sentido a tudo que me aconteceu.
Tomei a balsa para Oakland hoje, e lá aluguei um carro para ir até o
endereço fornecido por Wilhelmina. Uma criada abriu a porta. Eu me
apresentei e disse que precisava conversar com os McCullough a respeito da
lha deles, Wilhelmina. Eles apareceram um minuto depois.
— Você é uma das professoras de Mina? — perguntou o dr. McCullough.
Expliquei que sou arqueóloga e trabalho no Museu de Filoso a Natural
de Boston. A sra. McCullough reconheceu meu nome.
— Você escreve aqueles textos de popularização cientí ca — disse ela. —
Como cou conhecendo nossa lha?
Sugeri que entrássemos para conversar. Os dois se viraram e olharam
para Wilhelmina, que estava parada na escada, no fundo do cômodo, e me
deixaram entrar.
Depois que nos instalamos no escritório do dr. McCullough, contei para
eles como cheguei à suspeita de que as relíquias estavam sendo subtraídas
dos depósitos do museu, e também como descobri que Wilhelmina estava
por trás daquilo. O dr. McCullough se virou para Wilhelmina e perguntou se
tudo aquilo era verdade.
— Sim, é verdade — disse ela, sem demonstrar vergonha nem
agressividade.
O dr. McCullough estava incrédulo.
— Mas por que você faria tal coisa?
— Você sabe por quê. Para fazer as pessoas se lembrarem daquilo que
elas esqueceram.
O rosto dele se avermelhou.
— Vá para seu quarto. Conversaremos mais tarde — avisou ele.
— Quero conversar agora — disse ela. — Vocês não podem continuar
negando...
— Faça o que seu pai mandou — pediu a sra. McCullough.
Wilhelmina se afastou com relutância, e o dr. McCullough se virou para
mim.
— Obrigado por chamar minha atenção para estes fatos — disse ele. —
Pode ter certeza de que nenhum outro item pertencente às coleções da
universidade será retirado de suas instalações.
Falei que estava agradecida por ouvir aquilo, mas que gostaria de saber
qual a motivação por trás dos atos de Wilhelmina. Ela parecia estar reagindo
a algo que ele teria feito ou dito. Era verdade?
— Isso não deve preocupá-la — comentou ele. — Vamos resolver tudo
como um problema de família.
Disse ao dr. McCullough que não tinha intenção de ser invasiva, mas que
o roubo de material pertencente ao museu poderia ser legitimamente
considerado um problema de interesse dos patrocinadores, e que eu
precisava de uma explicação mais detalhada para car mais confortável no
caso de não levar nada ao conhecimento deles. Perguntei ao doutor se, no
caso de nossas posições estarem invertidas, ele caria satisfeito com aquela
explicação. Seu rosto assumiu uma expressão tão irritada que, se ele fosse
meu chefe, eu deixaria o assunto de lado. Só que não era, de modo que
parecíamos ter chegado a um impasse.
Então a esposa disse a ele:
— Conte a ela sobre o artigo, Nathan. Ela fez uma viagem tão longa e,
além do mais, daqui a pouco todo mundo vai car sabendo.
O dr. McCullough cedeu.
— Muito bem, então. — Ele foi até a escrivaninha e pegou um
manuscrito. — Pediram que eu escreva um comentário para um artigo que
será publicado no Jornal de Filoso a Natural.
Ele me estendeu o manuscrito, e vi que o título era “A respeito do
movimento relativo do Sol e o éter luminífero”. Sou uma leiga a respeito do
éter, o meio condutor dos raios de luz: sei que, assim como um som tem um
alcance maior quando se desloca a favor do vento do que contra, a
velocidade da luz varia relativamente ao movimento da Terra através do éter.
Foi o que comentei com o dr. McCullough.
— Seu entendimento é correto, até esse ponto. No entanto, medições
feitas com extrema precisão sugerem que as variações na velocidade da luz
não são causadas apenas pelo movimento da Terra em torno do Sol. Em vez
disso, parece haver um vento etérico constante atravessando nosso sistema
solar por inteiro. A maior parte dos físicos acredita que isso é um fato de
pouca importância, mas o astrônomo Arthur Lawson propõe uma
explicação diferente: ele sugere que o Sol, na verdade, não está imóvel, mas
se deslocando em relação ao éter — que seria, sim, imóvel.
Era como se alguém visse uma ventania incessante soprando por um
deserto e concluísse que este estava em movimento, enquanto a atmosfera
estaria parada. O dr. McCullough se antecipou a minha objeção.
— Sim, reconheço que parece um pouco rebuscado, mas acompanhe meu
raciocínio. Lawson nos pede que suponhamos a existência de outra estrela
cujo movimento relativo ao Sol é o mesmo do vento etérico. Essa estrela
seria estacionária com relação ao éter luminífero, e consequentemente
estaria em imobilidade absoluta.
“Só há pouco tempo os astrônomos começaram a mapear os movimentos
propriamente ditos das estrelas, mas já puderam detectar alguns padrões
gerais, de modo que Lawson começou a observar a secção do céu onde as
velocidades das estrelas são semelhantes à do vento etérico. Ele encontrou
várias estrelas cujas velocidades são aproximadas, mas nenhuma com
velocidade idêntica à observada por ele.
“Então, ele chegou a 58 Eridani, uma estrela na constelação de Eridanus.
Com base no efeito Doppler de sua luz, Lawson concluiu que 58 Eridani
estava se movendo em nossa direção a uma velocidade de milhares de
quilômetros por segundo. Isso por si só já seria extraordinário, mas
medições posteriores demonstraram que esse movimento não era
consistente, se alternava. A estrela estava se movendo em nossa direção e
depois se afastando, sempre numa velocidade de milhares de quilômetros
por segundo.”
Argumentei que aquilo era resultado de algum erro de medição.
— Lawson também achou isso. Mas, depois de eliminar todas as causas
possíveis de erro, ele pediu a astrônomos de outro observatório para darem
uma olhada: eles con rmaram aquelas descobertas. Juntos, eles
estabeleceram o fato de que o movimento de 58 Eridani variava num
período de exatamente vinte e quatro horas. Lawson acredita que ela está se
movendo num círculo.
Perguntei se não se tratava de uma órbita em torno de um astro maior, e
ele disse que um objeto deslocando-se daquela maneira não poderia estar
sendo retido pela gravidade. Aquilo colocava em xeque tudo que sabíamos
sobre a mecânica celeste. Indaguei se ele achava que um fato como aquele
podia ser considerado miraculoso, se não seria uma prova mais que evidente
de vossa constante e ativa intervenção no universo, Senhor.
— Evidente que sim — disse o dr. McCullough. — Mas a verdadeira
questão diz respeito ao signi cado desse milagre. O que nos diz esse
prodígio sobre os desígnios divinos?
“Bem, Lawson sugere uma explicação. Ele imagina que 58 Eridani está,
na verdade, orbitando em torno de um corpo celeste menor, pequeno
demais para ser detectado daqui, um planeta do tamanho da Terra. A estrela
está se deslocando de tal modo que produz um ciclo de dia e noite, com
duração de vinte e quatro horas, para um planeta estacionário. Ele acredita
que isso con gura um sistema solar geocêntrico.
“E ele vai mais além. Sugere que 58 Eridani está orbitando em volta de
um planeta estacionário em relação ao éter luminífero, o que quer dizer que
ele é o único objeto no universo que está absolutamente imóvel. Nesse
planeta, e apenas nesse planeta, a velocidade da luz seria exatamente a
mesma, não importa em que direção essa luz se movesse. E, embora não
haja meios para detectar se há vida nesse planeta, Lawson sugere que ele seja
habitado, e que seus habitantes sejam a razão pela qual Deus criou o
universo.”
Fiquei sem fala por alguns instantes. Depois perguntei como Lawson
explicava a existência da humanidade e a vida sobre a Terra. O dr.
McCullough pegou o manuscrito que eu segurava e folheou as páginas até
encontrar a seção que tinha em mente. Então me devolveu os papéis.
Ao ler, vi que Lawson propunha três hipóteses para a presença da
humanidade. A primeira era de que a humanidade teria sido o resultado de
um ato de criação em separado, um experimento ou um teste realizado
como ensaio para a atividade principal. A segunda era que a criação da
humanidade teria sido um efeito colateral não previsto, uma espécie de
“vibração simpática” induzida pela semelhança do nosso sistema solar com
o de 58 Eridani. A terceira era de que a humanidade na Terra teria sido de
fato a tarefa principal, e que a vida em 58 Eridani seria o ensaio ou o efeito
colateral. Ele rejeitou a última hipótese, classi cando-a como improvável,
porque, se presumirmos que os milagres são um sinal da atenção de nosso
Senhor, então um milagre constante como uma estrela orbitando um planeta
é uma indicação clara do que Ele considerou mais importante.
Lawson encerrava o artigo reconhecendo que muitas de suas conclusões
eram necessariamente de natureza especulativa, e pedia que fossem
propostas outras hipóteses que explicassem os fatos tanto quanto a dele, ou
melhor. Enquanto eu olhava as páginas impressas, tentei conceber alguma
explicação alternativa, mas nenhuma me ocorreu. Ergui os olhos para
McCullough, que fez um sinal de assentimento, como se eu fosse uma
estudante que tivesse dado a resposta certa.
— É uma teoria instigante — comentou ele em tom azedo. — E ca ainda
mais quando consideramos que ela responde a muitas questões pendentes.
A multiplicidade das línguas, por exemplo.
Percebi que ele tinha razão. Por que motivo as línguas do mundo são tão
diferentes? Os lólogos têm se esforçado para reconciliar a enorme
variedade delas com a idade da Terra e a quantidade de tempo necessária
para que elas se tornem tão diferenciadas entre si. Se vós tivésseis inculcado
em todos os humanos primordiais o conhecimento de uma língua em
comum, Senhor, nossa expectativa seria de que todas as línguas do mundo
tivessem algum grau de semelhança, como ocorre com as línguas indo-
europeias. Mas as imensas diferenças entre as línguas do mundo signi cam
que deve ter havido mais de uma dúzia de línguas distintas sendo faladas
imediatamente após a criação. Temos nos perguntado tanto por que teríeis
feito assim, Senhor. Mas, se as populações distintas dos homens primordiais
tivessem inventado suas linguagens de modo independente, então não
haveria enigma a solucionar: a multiplicidade de línguas seria acidental, e
um projeto a ser seguido.
— Bem, agora você já sabe — disse o dr. McCullough. — O artigo vai ser
publicado em breve e todos vão lê-lo. Eu gostaria de recomendar que ele
fosse recusado, mas não pude encontrar nenhuma razão plausível. Meu
compromisso com a prática cientí ca me obrigou a aprovar o texto. — Ele
fez uma careta. — Mas e se toda a nossa prática cientí ca estiver
fundamentada em falsas premissas? Quando era menino, eu desejava que
Deus tivesse dado aos homens primordiais o dom da escrita, porque assim
eles teriam sido capazes de anotar as datas em que novas estrelas apareciam
no céu noturno. Então, saberíamos com precisão a distância de cada uma
delas, porque saberíamos, com exatidão de dias, quando a luz de cada uma
delas chegou à Terra pela primeira vez. Mas o homem só veio a inventar a
escrita muito tempo depois do aparecimento das estrelas, de modo que os
astrônomos são forçados a usar meios indiretos para deduzir suas distâncias.
Meus professores diziam: Deus quer que raciocinemos por conta própria.
Mas se isso não for verdade? E se... — a voz dele falhou nesse ponto — ... e
se Deus não tiver nenhum projeto para nós, no m das contas?
Era esta a crise de fé a que Wilhelmina se referia. Tentei confortá-lo,
desajeitadamente, dizendo que tal descoberta era desconcertante, mas que
ainda podíamos manter nossa fé. O dr. McCullough exclamou:
— Se é assim, você não entendeu nada!
A esposa tocou sua mão e ele reagiu, agarrando a dela, esforçando-se
para conter a emoção. Os dois caram em silêncio por algum tempo. Então
a sra. McCullough se virou para mim.
— Nós tínhamos um lho, dez anos mais velho do que Mina — contou
ela. — O nome dele era Martin. Ele morreu de in uenza.
Eu disse que sentia muito. Lembrei-me de que “Martin” era o nome
usado por Wilhelmina ao fazer a doação das relíquias.
— Você não tem lhos, então não pode compreender como é essa dor —
comentou o dr. McCullough.
Concordei, e a rmei que agora eu percebia por que motivo aquela
descoberta era problemática para eles dois.
— Percebe mesmo? — indagou ele.
Expliquei meu modo de ver a questão: a única coisa que tinha tornado
suportável a morte do lho deles era a consciência de que tudo era parte de
um plano mais vasto. Mas, se a humanidade não fosse de fato o foco de
vossa atenção, Senhor, então tal plano não existe, e a morte do rapaz não
tinha propósito algum.
O dr. McCullough continuou impassível, mas sua esposa assentiu.
— Eu aprecio seus livros, dra. Morrell — disse ela. — Eles me fazem
lembrar as coisas que Nathan dizia quando era meu professor, antes de nos
casarmos. Nas aulas que mostrava como as indagações cientí cas
proporcionam as bases mais sólidas para a fé. Ele dizia “As convicções
pessoais podem variar, mas o mundo físico não pode ser negado”, e eu
acreditava. Assim, quando Nathan mergulhou em suas pesquisas após a
morte de Martin, isso não trouxe consolo apenas para ele, mas para mim
também.
— E eu fui bem-sucedido — comentou o dr. McCullough com calma. —
Descobri oscilações de onda no interior do Sol, os ecos da compressão
inicial que Deus usou para dar início ao colapso gravitacional responsável
pelo calor e pela luz que ele emite.
— Foi como descobrir as impressões digitais de Deus em nosso mundo
— observou a sra. McCullough. — Naquele momento, isso nos forneceu
toda a segurança de que precisávamos.
— Mas agora co imaginando se serve para provar alguma coisa —
retomou ele. — Todas as estrelas devem ter oscilações dentro de si. Não
existe nada que nos torne especiais. Nada do que a ciência descobre tem
algum signi cado.
Eu lhe disse que a ciência pode ser um bálsamo para nossas feridas, mas
que esta não deve ser a única razão para cultivá-la. A rmei que nosso dever
é buscar a verdade.
— A ciência não é apenas a busca da verdade — retrucou ele. — É a
busca de um signi cado.
Eu não soube o que responder. Sempre imaginei que essas duas coisas
eram uma coisa só, mas e se não fossem?
Não sei o que pensar. Causa-me medo pensar que vós não me escutais
durante todo esse tempo.
• • •
Cara Rosemary,
As últimas semanas têm sido muito difíceis para mim, muito mais do que
eu esperava. Estou lhe escrevendo para avisar que estou abandonando
temporariamente as escavações no Arizona.
Como lhe contei em minha última carta, achei que poderia participar
dessas escavações porque, mesmo com tudo que tem acontecido, eu
acreditava que minha a nidade com o lado físico de meu trabalho
arqueológico seria o bastante para me levar adiante, mas não foi bem assim.
As dúvidas instauradas pelas descobertas de Lawson estão roendo minha
mente como ratos famintos. Alguns dias atrás cheguei a ponto de pensar, ao
remover uma ponta de lança do solo: de que adianta? Tudo que estamos
fazendo aqui é irrelevante. Tive de interromper o trabalho por medo de
acabar dani cando algum artefato com o martelo, por pura frustração. Foi
quando percebi que precisava abandonar a escavação. Não sei se havia um
risco real de causar tal tipo de dano, mas o simples fato de aquela
possibilidade surgir em minha mente me mostrou que eu não estava em
condições de prosseguir.
Estou instalada num chalé alugado a uma hora de distância da escavação.
Não consegui explicar a ninguém o motivo de meu afastamento, porque
acredito que não seria adequado fazer comentários sobre o artigo de Lawson
antes de sua publicação. Talvez isso contribua para meu senso de isolamento
enquanto estive lá, mas acho que o motivo maior foi o fato de me sentir
afastada de Deus. Preciso de algum tempo para decidir o que farei agora.
Você me perguntou se a Igreja não devia estar tão abalada por essa
descoberta quanto a comunidade cientí ca secular, e a isso respondo que
sim, ela deve. Mas a Igreja, como instituição, sempre foi capaz de extrair
forças das evidências, quando elas são úteis, e de ignorá-las, quando não são.
Veja a história de Adão e Eva. A Igreja estava pronta para reconhecer que ela
não exprimia uma verdade literal depois que foram descobertos os
esqueletos dos humanos primordiais por todo o mundo, mas insistiu que
essa história continuava a ter uma importância fundamental como alegoria.
E eu, você e todas as mulheres continuamos a viver à sombra de Eva, sem
nenhum outro motivo além do hábito. Espero, portanto, que ela seja capaz
de explicar essa descoberta de maneira semelhante e usá-la para defender os
mesmos valores, como sempre.
Suponho que alguém possa argumentar que a ideia do poligenismo está
presente há séculos, de modo que não foi nenhuma surpresa quando as
descobertas arqueológicas a con rmaram. E é verdade. Os cientistas da
Igreja vêm lutando há muito tempo para explicar como um único casal
poderia ter povoado a Terra tão rapidamente, portanto eles devem ter
considerado teorias alternativas, nos seus debates internos, antes de serem
forçados a mudar a versão o cial. Em contrapartida, nunca ouvi nenhum
argumento sério a rmando que a humanidade não fosse o propósito da
criação — antes do artigo de Lawson. De modo que talvez os cientistas da
Igreja quem tão chocados quanto eu, antes que sua lealdade à doutrina
consiga tranquilizá-los outra vez.
O problema para mim, como cientista secular, é que minha fé sempre foi,
acima de tudo, moldada pelas evidências dos fatos. Admito que antes disso
tudo eu não tinha dado à astronomia a devida importância para o
entendimento profundo de nossa condição, mas agora reconheço que estava
errada. E se adotarmos a premissa de que a humanidade foi a razão para a
criação, então isso deve estar re etido no céu que nos cobre, tanto quanto na
terra sob nossos pés. Se a humanidade é o motivo central do universo, se
nossa espécie é o ônfalo, então um exame mais rigoroso da esfera celeste
deveria con rmar esse status privilegiado. Nosso sistema solar deveria ser o
ponto xo em relação ao qual tudo o mais se desloca. Nosso Sol deveria
estar em imobilidade absoluta. Se as provas não con rmam tal premissa,
então devemos nos perguntar para que direção nossa convicção deve se
voltar.
Posso entender, Rosemary, que tudo isso não cause em você e em Alfred
a mesma perturbação que causa em mim. Não sei como a maioria das
pessoas vai reagir quando a descoberta de Lawson se tornar pública.
Wilhelmina McCullough havia dito que muitos reagiram da mesma maneira
que o pai dela, inclusive eu. Eu gostaria que isso não tivesse me afetado tão
profundamente. Quem me dera poder escolher as coisas que vão me
preocupar. Mas não podemos.
Mas, se achar que isso a perturba, que certa de que pode me contar suas
preocupações, sejam quais forem. Cada um de nós deve encontrar a própria
maneira de atravessar essa oresta de dúvidas, e só vamos conseguir com o
apoio dos demais.
Com muito amor, sua prima
Dorothea
• • •
Senhor, talvez não estejais ouvindo minhas preces. Mas nunca orei com a
expectativa de que isso iria in uir em vossos atos. Orei com a expectativa de
in uenciar os meus. E é assim que estou orando agora, pela primeira vez em
dois meses, porque mesmo que não estejais me ouvindo, preciso da clareza
de pensamento que a prece nos dá.
Abandonei a escavação porque temia que a descoberta de Lawson
tornasse sem sentido toda aquela empreitada. A razão de as pontas de lança
descobertas pelo dr. Janssen serem tão entusiasmantes era o fato de que
restava nelas material su ciente para que pudéssemos usar seus anéis de
crescimento com o objetivo de identi car os anos em que elas foram
fabricadas. Se pudéssemos identi car tendências na técnica de fabricação de
pontas de lança em pedra, nossa esperança era a de descobrir se a habilidade
dos fabricantes cresceu ou diminuiu nas primeiras gerações após a criação, e
a partir disso deduzir quais seriam vossas intenções com respeito ao
conhecimento humano, Senhor. Mas isso se baseava na suposição de que os
humanos primordiais eram a expressão mais direta de vossa vontade. Se a
criação da humanidade não foi deliberada, de vossa parte, então quaisquer
talentos que os humanos primordiais possuíssem não nos diriam nada sobre
vossas intenções. Seus dons seriam algo puramente acidental.
Desde que estou aqui nesse chalé, tenho passado muito tempo pensando
até onde iriam os conhecimentos dos humanos primordiais. Eles não
poderiam ter nascido com as mentes em branco, como um recém-nascido,
porque morreriam rapidamente de fome num ambiente como aquele.
Mesmo os lhotes de tigre têm de aprender com a mãe como caçar para si
mesmos. Não há como alguns seres humanos, partindo do zero, aprenderem
a caçar para comer antes de morrerem de fome. Os humanos primordiais
devem ter tido algum conhecimento a respeito de caça e da construção de
abrigos. Terá sido este um dos experimentos vossos, Senhor? Determinar o
mínimo de habilidades necessárias para que uma espécie pudesse
sobreviver? Ou talvez não passasse de mais um efeito colateral involuntário,
um eco distante de algum tipo de informação inculcada por vós nos
habitantes primordiais de 58 Eridani?
Há outro tipo de informação, tão vital quanto o talento para a
sobrevivência, que eu suponho ser algo que os humanos primordiais
possuíam desde que abriram os olhos: o fato de terem sido criados com um
propósito. A possibilidade de que não soubessem disso é algo em que não
consigo parar de pensar. Em vez de se sentirem cheios de orgulho e
ambições, eles devem ter cado amedrontados e confusos durante seus
primeiros dias. Tento imaginar como seria alguém despertar, com o corpo
plenamente formado, possuindo algumas habilidades mas sem um passado
que pudesse lembrar, perdido no mundo por entre outros amnésicos. Para
mim, parece aterrorizante — mais aterrorizante do que o que tenho vivido
nas últimas semanas.
E isso leva a outra questão. Por que os homens primordiais teriam se
dedicado a construir uma civilização, se não fosse por um desejo de cumprir
um propósito divino? Proteger-se do frio e da fome poderia lhes dar
motivação para satisfazer essas necessidades básicas, mas por que teriam ido
tão além delas? Por que passaram a inventar todas as formas de arte e
tecnologia que tornaram a humanidade o que ela é hoje, se não fosse para
cumprir vossa vontade, Senhor?
Eu não sei, mas esbocei uma teoria.
A arqueologia pode não ser uma ciência exata como a física, mas ela
depende da física para lhe fornecer uma base. São as leis físicas que nos
possibilitam estudar o passado — examinando o estado do universo bem de
perto, podemos inferir seu estado num momento anterior. Cada momento
brota inexoravelmente do momento que o precedeu, e é inexoravelmente
seguido pelo próximo, como elos forjados numa corrente de causas e efeitos.
Mas o instante da criação é o ponto onde todas as correntes de
causalidade se interrompem. As inferências podem nos conduzir até aquele
ponto, mas não além dele. É por isso que a criação do universo é um
milagre, porque o que ocorreu naquele momento não é uma consequência
necessária do que ocorreu antes. Aquela concha primordial que Wilhelmina
leva consigo é, sem dúvida, uma prova de algo: não dos planos de Deus para
a humanidade, mas da existência de milagres. Aquela borda sem anéis de
crescimento marca o limite do poder explicativo das leis físicas. E isso é algo
capaz de nos trazer inspiração.
Porque acho que existem eventos de outra categoria, eventos que também
não estão condicionados a uma cadeia de causalidade: os atos de volição. O
livre-arbítrio é uma espécie de milagre — quando fazemos uma escolha
genuína, produzimos um resultado que não pode ser reduzido ao
funcionamento das leis físicas. Todo ato de volição é, como a criação do
universo, uma primeira causa.
Se não tivéssemos provas do milagre da criação, poderíamos pensar que
as leis físicas bastariam para explicar todos os fenômenos do cosmos, o que
nos levaria a concluir que nossa própria mente não passava também de
processos da natureza. Mas sabemos que existe mais do que as leis físicas
podem abarcar naquilo que observamos — milagres acontecem, e as
escolhas humanas decerto estão entre eles.
Acredito que os humanos primordiais zeram uma escolha. Eles se viram
num mundo pleno de possibilidades e sem ninguém para guiá-los sobre o
que fazer. Eles não zeram o que teríamos esperado, ou seja, não se
limitaram a sobreviver. Em vez disso, procuraram se aperfeiçoar a ponto de
se tornarem os senhores do mundo.
Nós, cientistas, estamos numa situação parecida. As provas sempre
estiveram à vista para serem descobertas: as árvores sem anéis de
crescimento, as múmias sem umbigos, os movimentos de 58 Eridani. Cabe a
nós decidir o que fazer com elas. Nós sempre as vimos como fatores
determinantes do sentido da nossa vida, mas isso não era algo inevitável.
Transformá-las nisso foi uma escolha nossa, o que signi ca que podemos
fazer a escolha oposta.
Devotei minha vida inteira ao estudo do mecanismo maravilhoso que é o
universo, e isso me trouxe um profundo senso de realização. Sempre tive
como certo que, ao fazer isso, estava agindo de acordo com vossa vontade,
Senhor, e com vossas razões para me trazer à existência. Mas se de fato for
verdade que vós não tendes nenhum propósito em relação a mim, então
meu senso de realização brotou unicamente dentro de mim mesma. E isso
demonstra, aos meus olhos, que nós, humanos, somos capazes de criar um
sentido para nossa própria vida.
Não a rmo que vai ser uma caminhada fácil. Não tenho nada a oferecer
aos McCullough, exceto minha esperança de que eles encontrem um sentido
para suas vidas, apesar da ausência do lho. Mas nossa vida já passou por
di culdades, mesmo quando acreditávamos estar obedecendo a um desígnio
divino, e perseveramos. Se de fato estivemos sempre entregues as nossas
forças, então nossos triunfos são, apesar de tudo, uma prova de nossa
capacidade.
Portanto, vou retornar para a escavação do Arizona, Senhor, sob vossos
olhos vigilantes ou não. Mesmo que a humanidade não seja o motivo da
criação do universo, eu ainda quero entender de que modo ele funciona.
Nós, seres humanos, talvez não sejamos a resposta para o “por quê”, mas
continuarei buscando a resposta para o “como”.
Essa busca é o propósito da minha vida, não porque vós me escolhestes,
Senhor, mas porque eu mesma o escolhi.
Amém.
NAT BEM QUERIA ter fumado um cigarro, mas as normas da empresa proibiam
que se fumasse na loja, de modo que ela foi cando cada vez mais nervosa.
Já faltavam quinze para as quatro, e Morrow ainda não voltara. Ela não sabia
como se explicaria caso ele não voltasse a tempo. Mandou uma mensagem
de texto perguntando onde ele estava.
Sininhos soaram quando a porta da frente se abriu, mas não era Morrow.
Um homem de suéter cor de laranja entrou.
— Olá! Eu tenho um prisma para vender.
Nat pousou o celular.
— Certo. Vamos dar uma olhada nele.
O homem se aproximou e pôs o prisma em cima do balcão. Era um
modelo novo, do tamanho de uma pasta de documentos. Nat o girou para
ver o mostrador numérico do outro lado: a data de ativação era de apenas
seis meses atrás, e mais de noventa por cento da sua capacidade ainda estava
disponível. Ela deslizou o teclado para revelar a tela, apertou o botão ON-
LINE e cou à espera. Passou-se um minuto.
— Ele deve estar captando muito tráfego — disse Suéter Laranja, meio
inseguro.
— Tudo bem — respondeu Nat.
Depois de mais um minuto, a luzinha se acendeu. Nat digitou:
Teste de teclado.
Parece bom.
Ela mudou para modo visual, e o texto na telinha foi substituído por uma
imagem granulada do rosto dela olhando para si mesma.
Aquele eu paralelo fez um aceno de cabeça para ela.
— Teste de microfone.
— Som perfeito — respondeu ela.
A tela reverteu para texto. Nat não tinha reconhecido o colar que o eu
paralelo usava. Se eles acabassem comprando aquele prisma, ia ter que
perguntar onde ela o conseguira. Olhou para o rapaz de suéter laranja e
ofereceu um preço.
O desapontamento dele foi visível.
— Só isso?
— É o que ele vale.
— Pensei que essas coisas cassem mais valiosas com o passar do tempo.
— E cam. Mas se ele tivesse uns cinco anos de uso, a conversa seria
outra.
— E se lá na outra rami cação estiver acontecendo algo bem
interessante?
— Sim, nesse caso valeria mais. — Nat apontou para o prisma. — Tem
alguma coisa interessante acontecendo lá?
— Eu... não sei.
— Você vai ter que pesquisar isso primeiro e trazer de novo aqui, se
quiser uma oferta melhor.
Suéter Laranja hesitou.
— Se quiser pensar melhor e voltar aqui depois, estamos à disposição —
concluiu ela.
— Pode me dar um minuto?
— À vontade.
Suéter Laranja assumiu o teclado e teve uma breve troca de mensagens
com seu outro eu. Quando terminou, disse:
— Está bem, volto aqui depois — avisou depois de terminar. Dobrou o
prisma e foi embora.
O último cliente da loja tinha encerrado sua conversa e estava pronto
para desligar. Nat foi até a baia onde ele estava sentado, checou o tempo de
uso no prisma e o levou de volta ao depósito. Quando ele concluiu o
pagamento, os três clientes com hora marcada para as quatro já haviam
chegado, incluindo o que usaria o prisma que estava com Morrow.
— Só um minuto — disse ela para os três.
Ela foi ao depósito e trouxe os prismas para os outros dois clientes. Tinha
acabado de instalar os dois, cada qual em sua divisória, quando Morrow
entrou pela porta da frente, carregando uma enorme caixa de papelão, os
cotovelos erguidos. Ela foi ao encontro dele, no balcão.
— Chegou em cima da hora, hein?
Ela estava furiosa.
— Sim, sim, sei disso.
Morrow levou a caixa grande até o depósito e voltou trazendo o prisma.
Ele o instalou numa baia para o terceiro cliente com alguns segundos
faltando. Às quatro em ponto, a luzinha de cada um dos prismas se acendeu,
e os três clientes começaram a conversar com seus eus paralelos.
Nat acompanhou Morrow até o interior do escritório, por trás do balcão.
Ele puxou a cadeira e se sentou à escrivaninha como se nada tivesse
acontecido.
— E aí? Por que demorou tanto? — quis saber ela.
— Estava conversando com um dos enfermeiros da casa de repouso.
Morrow tinha acabado de chegar da visita a uma cliente. Jessica Oehlsen
era uma viúva com mais de setenta anos, quase sem amigos, e cujo lho
único era mais um peso do que um conforto. Pouco menos de um ano atrás,
ela tinha ido à loja para conversar com seu eu paralelo. Sempre reservava
uma das baias privativas, para poder usar o viva-voz. Há dois meses, tinha
sofrido uma queda e fraturado o quadril, e agora estava numa casa de
repouso. Como não podia vir até a loja, Morrow levava o prisma até lá todas
as semanas, para que ela pudesse manter suas conversas com regularidade.
Era uma violação das normas da SelfTalk, mas ela lhe pagava por esse favor
extra.
— O enfermeiro me explicou a condição da sra. Oehlsen.
— E qual é?
— Ela está com pneumonia. Dizem que acontece muito quando a pessoa
fratura o quadril.
— É mesmo? E o que tem um quadril quebrado a ver com pneumonia?
— De acordo com esse cara, é porque as pessoas cam se movimentando
muito pouco, e isso afeta a circulação do oxigênio. Elas não respiram fundo.
De qualquer modo, a sra. Oehlsen está com pneumonia, não há dúvida.
— É coisa séria?
— O enfermeiro acha que ela dura um mês, no máximo dois.
— Poxa. Que pena.
— Pois é.
Morrow coçou o queixo com seus dedos de pontas quadradas, rombudas.
— Mas isso me deu uma ideia.
Ela nem se surpreendeu com aquilo.
— E o que é, desta vez?
— Nesse caso não vou precisar de você. Vou fazer isso sozinho.
— Por mim, tudo bem. Já tenho muito o que fazer.
— É verdade, você tem uma reunião hoje à noite. Como está indo?
Nat deu de ombros.
— Ainda não dá para saber. Acho que estou fazendo algum progresso.
• • •
Nat gostava do fato de que, não importa qual fosse o assunto a ser discutido,
as reuniões do grupo de apoio sempre ofereciam café. Ela não se importava
se o café era bom ou ruim, mas segurar aquele copo lhe dava alguma coisa
para fazer com as mãos. E, apesar de o local escolhido para as reuniões não
ser o mais agradável que ela já vira — um típico porão de igreja —, em geral
o café era bastante bom.
Lyle estava junto da cafeteira, servindo-se de um copo, quando Nat se
aproximou.
— Oi — disse ele. Estendeu-lhe o copo que tinha acabado de encher e
começou a servir-se de outro.
— Obrigada, Lyle.
Lyle estava frequentando o grupo há um pouco mais de tempo que ela —
cerca de três meses. Dez meses atrás, ele tinha recebido uma oferta de um
novo emprego e não conseguira decidir se devia aceitá-la ou não. Comprou
um prisma e o usou como quem tira cara ou coroa. LED azul, oferta aceita.
LED vermelho, oferta rejeitada. A luz azul se acendeu aqui na rami cação
onde estava, de modo que ele aceitou o trabalho, enquanto que seu eu
paralelo continuou trabalhando onde já estava. Durante meses, ambos se
sentiram satisfeitos. Mas depois que a impressão de novidade do emprego
recente se evaporou, Lyle se viu decepcionado com suas obrigações,
enquanto seu eu paralelo recebia uma promoção. Sua autocon ança cou
abalada. Ele ngia estar alegre quando entrava em contato com seu eu
paralelo, mas na verdade se debatia com sentimentos de inveja e ciúme.
Ele e Nat se encaminharam para duas cadeiras vazias lado a lado.
— Você gosta de se sentar bem na frente, não? — perguntou ela.
— Sim, mas não é preciso, se você não gostar.
— Por mim, está bem.
Os dois se sentaram e caram bebericando o café enquanto esperavam o
início da reunião.
A coordenadora do grupo era uma terapeuta chamada Dana. Era jovem,
da idade de Nat, mas parecia saber o que estava fazendo. Nat pensou que ela
poderia ter sido útil nos grupos de que já participara antes. Depois que
todos se sentaram, Dana perguntou:
— Alguém quer ser o primeiro a falar hoje?
— Posso começar — disse Lyle.
— Muito bem, fale como foi sua semana.
— Bem, fui dar uma olhada na Becca daqui.
O eu paralelo de Lyle estava saindo há meses com uma mulher chamada
Becca, depois de um encontro casual num bar.
— Má ideia, má ideia — interrompeu Kevin, abanando a cabeça
negativamente.
— Kevin, por favor — disse Dana.
— Desculpa, desculpa.
— Obrigado, Dana — disse Lyle. — Mandei uma mensagem para ela,
expliquei por que a estava procurando, mandei uma foto do meu eu paralelo
e perguntei se a gente podia se encontrar para tomar um café. Ela disse que
tudo bem.
Dana assentiu, sinalizando para que ele continuasse.
— Nós nos encontramos sábado à tarde, e de início tudo pareceu correr
bem. Ela ria das minhas piadas, eu ria das dela, e quei pensando, aposto
que foi exatamente assim quando meu eu paralelo se encontrou com ela. Eu
sentia que estava vivendo o melhor momento da minha vida. — Ele se calou,
parecendo constrangido, e prosseguiu: — E de repente tudo desandou. Eu
estava dizendo como era bacana estar ali com ela e como eu sentia que as
coisas estão virando em meu favor, e antes que eu percebesse estava dizendo
a ela que ter usado o prisma tinha estragado muita coisa para mim. Disse
que tinha cado com ciúmes do meu eu paralelo por ter conhecido a Becca
paralela, e como desde então eu estava o tempo inteiro me comparando, e
assim por diante. Percebi, então, como eu soava patético no momento em
que falava tudo isso. Percebi que a estava perdendo por causa disso, e no
meu desespero eu... — Ele hesitou, e então continuou: — Ofereci a ela meu
prisma para que ela conversasse com a Becca paralela, que lhe diria como eu
podia ser um sujeito bacana. Vocês podem imaginar como tudo correu daí
em diante. Ela foi muito educada, mas deixou bem claro que não queria
voltar a se encontrar comigo.
— Obrigado por compartilhar isso conosco, Lyle — disse Dana. E para o
restante do grupo: — Alguém quer fazer algum comentário?
Era uma boa oportunidade, mas Nat achou que ainda não era a hora.
Achou melhor esperar que outra pessoa falasse primeiro.
Kevin foi quem começou.
— Desculpe aquilo que falei antes. Não quis dizer que você foi burro em
fazer o que fez. Eu só pensei que era o tipo da coisa que eu teria feito, e por
causa disso tive uma premonição ruim sobre o resultado. Lamento que
também não tenha dado certo com você.
— Obrigado, Kevin.
— E na verdade não é má ideia. Vocês dois têm de ser compatíveis, já que
os eus paralelos de ambos estão formando um casal.
— Concordo com Kevin, em pensar que os dois devem ser compatíveis
— comentou Zareenah. — Mas o erro que todos nós continuamos a cometer
é que, quando nossos eus paralelos têm sorte em alguma coisa, acreditamos
que a mesma coisa tem de acontecer conosco.
— Eu não acho que algo tem de acontecer entre mim e Becca —
respondeu Lyle. — Mas ela está à procura de alguém, e eu também. Se temos
alguma compatibilidade, isso não conta para nada? Sei que produzi uma má
impressão no primeiro encontro, mas acho que nossa compatibilidade devia
ser um motivo para que ela não desse tanta importância a isso.
— Seria bom que isso acontecesse, mas ela não tem obrigação de agir
dessa forma.
— Claro — disse Lyle, carrancudo. — Entendo isso. É só que eu me sinto
tão... Bem, acho que digo isso o tempo todo, mas o que sinto é inveja. Por
que tenho de ser assim?
Agora parecia o momento adequado, e Nat interveio:
— Aconteceu algo comigo, recentemente, que parece semelhante ao que
houve com Lyle.
— Continue — disse Dana.
— Então, eu tenho um passatempo, que é fazer joias, geralmente brincos.
Tenho uma pequena loja on-line onde as pessoas podem comprá-los. Não
fabrico as peças pessoalmente, apenas envio o desenho para uma empresa
que as produz e envia para o cliente. — Esta parte era toda verdadeira, o que
era bom, caso alguém tivesse a ideia de checar a loja. — Meu eu paralelo
estava me dizendo que algum in uenciador soube de um dos nossos
produtos, fez algumas postagens dizendo quanto tinha adorado o design, e
na semana passada meu eu paralelo vendeu centenas desses brincos. Ela,
inclusive, viu num café, a distância, uma pessoa usando um deles.
Prepare uma mesa de bilhar e execute uma tacada perfeita. Imagine que a
mesa não tem caçapas e também não oferece atrito, de modo que as bolas
cam ricocheteando o tempo inteiro, sem nunca parar. Com que precisão
será possível prever a trajetória de uma bola qualquer, enquanto ela vai
colidindo com as outras? Em 1978, o físico Michael Berry calculou que é
possível prever até nove colisões antes que seja necessário levar em conta o
efeito gravitacional de uma pessoa parada no salão. Se sua medição inicial
da posição da bola sofrer um desvio, mesmo de apenas um nanômetro, sua
previsão se revelará inútil dentro de alguns segundos.
As colisões entre as moléculas do ar são igualmente contingentes e
podem ser afetadas pelo efeito gravitacional de um simples átomo a um
metro de distância. Assim, mesmo com o interior de um prisma sendo
blindado contra o ambiente externo, o resultado da medição quântica que
ocorre quando o prisma é ativado ainda pode produzir um efeito no mundo
exterior, determinando se duas moléculas de oxigênio colidem ou se passam
uma pela outra sem se tocar. Sem que ninguém tenha tido tal intenção, a
ativação do prisma inevitavelmente produz uma diferença entre as duas
rami cações que são criadas naquele instante. Essa diferença é imperceptível
a princípio, uma discrepância apenas no nível do movimento térmico das
moléculas, mas, quando o ar é turbulento, leva cerca de um minuto para que
uma perturbação no nível microscópico se torne macroscópica, em
turbilhões com cerca de um centímetro de diâmetro.
Para fenômenos atmosféricos em pequena escala, os efeitos dessas
perturbações duplicam de tamanho a cada duas horas. Em termos de
predição, signi ca que um erro de um metro de largura na medição inicial
pode levar a um erro de um quilômetro na previsão do tempo para o dia
seguinte. Em escalas mais amplas, a propagação de tais erros é retardada
devido a fatores como a topogra a e a estrati cação da atmosfera, mas a
coisa não para por aí. Erros eventuais na escala de quilômetros se tornam
erros com dimensão de centenas ou milhares de quilômetros. Mesmo que as
medições iniciais fossem tão minuciosas a ponto de incluir dados sobre cada
metro cúbico da atmosfera da Terra, sua previsão do clima futuro deixaria
de ter validade dentro de um mês. Aumentar a precisão dessas medições
iniciais tem um benefício limitado: como os erros se propagam tão
rapidamente nas escalas ín mas, começar o cálculo com dados de cada
metro cúbico da atmosfera prolongaria a exatidão dessas previsões por
apenas algumas horas.
O aumento proporcional dos erros nas predições climáticas é idêntico à
divergência entre climas nas rami cações opostas criadas por um prisma. A
perturbação inicial é a diferença entre uma colisão de moléculas de oxigênio
quando o prisma é ativado e, no período de um mês, o clima em todo o
globo se mostra diferente. Silitonga con rmou isso quando ele e seu eu
paralelo trocaram boletins meteorológicos um mês depois de seu prisma ter
sido ativado. Os boletins eram coerentes com a estação do ano — não houve
nenhuma locação que experimentasse inverno de um lado e verão do outro
—, mas, a não ser por isso, eram essencialmente não correlatos. Sem que
ninguém tivesse feito esforço algum nesse sentido, as duas rami cações
divergiam visivelmente numa escala global.
Depois que Silitonga publicou seus resultados num artigo intitulado
“Examinando a propagação em alta escala de erros atmosféricos com o
Plaga Intermundos Sinalização Mecânica”, os historiadores começaram a
travar debates acalorados discutindo em que medida o clima era capaz de
afetar o curso da história. Os céticos reconheciam que era possível afetar de
diversas maneiras a vida pessoal dos indivíduos, mas com que frequência já
se viu o resultado de um evento histórico, de grandes proporções, ser
decidido pelas condições climáticas? Silitonga não tomou parte nesses
debates: estava aguardando a conclusão de outro experimento com o
prisma, que tinha um ano de prazo.
• • •
Nenhum prisma podia fazer contato com uma rami cação que tivesse se
produzido antes do momento de sua ativação — por isso não havia registro
de rami cações onde Kennedy não tinha sido assassinado ou onde os
mongóis tivessem invadido a Europa ocidental. Pelo mesmo princípio, não
havia como fazer fortuna patenteando invenções vislumbradas em
rami cações nas quais o progresso tecnológico tivesse tomado uma direção
diferente. Se houvesse algum benefício de ordem prática com o uso de um
prisma, teria que depender de divergências subsequentes, não de anteriores.
De vez em quando, variações aleatórias tornavam possível evitar um
acidente: uma vez, quando um avião de passageiros caiu, a FAA noti cou
sua equivalente em outra rami cação, que conseguiu fazer pousar o avião e
o submeteu a uma inspeção rigorosa, localizando um componente no
sistema hidráulico que estava a ponto de falhar. Mas nada podia ser feito a
respeito de acidentes que derivavam de erros humanos, que eram diferentes
em cada rami cação. Nem era possível mandar um aviso antes da
ocorrência de desastres naturais: um furacão ocorrendo de um lado não
in uía na probabilidade de ocorrer um furacão em outro, enquanto que
terremotos sempre aconteciam simultaneamente em todas as rami cações,
de modo que era impossível avisar alguém com antecedência.
Um general do Exército comprou um prisma com a intenção de usar a
rami cação oposta como simulador militar radicalmente realista: ele
pretendia fazer seu eu paralelo tomar uma atitude agressiva na outra
rami cação e ver quais seriam as consequências. Descobriu a falha em seu
plano assim que entrou em contato com seu eu paralelo, que revelou a
intenção de usá-lo exatamente com o mesmo propósito. Cada rami cação
era de importância absoluta para quem vivia ali, e ninguém estava disposto a
se comportar como cobaia para um mundo paralelo.
O que os prismas ofereciam de fato era um modo de estudar os
mecanismos da mudança histórica. Pesquisadores se dedicavam a comparar
as manchetes dos jornais de duas rami cações, à procura de discrepâncias
para investigar suas causas. Em alguns casos, a divergência era resultado de
um evento casual, como um bandido em fuga sendo preso em um sinal
fechado. Em outros, a divergência era resultado de um indivíduo escolhendo
ações diferentes nos dois planos — e então os pesquisadores pediam para
fazer uma entrevista, mas, caso se tratasse de uma pessoa pública, ela
raramente ofereceria detalhes sobre o porquê de ter agido daquele jeito. Para
os casos que não se enquadravam nessas categorias, os pesquisadores
tinham de vasculhar o noticiário das semanas anteriores para tentar
localizar as causas da discrepância, o que usualmente os levava a passar um
pente- no nas sacudidelas estocásticas do mercado de ações e das mídias
sociais.
Então, os pesquisadores continuavam a monitorar as notícias durante as
semanas e os meses seguintes, para ver como as divergências cresciam com
o passar do tempo. Na verdade, estavam tentando con rmar o antigo ditado
“por falta de um prego, um reino se perdeu”, em que os círculos concêntricos
das consequências se expandem de maneira constante, mas inteligível. Em
vez disso, o que acabavam encontrando eram outras pequenas discrepâncias,
não relacionadas com aquela que lhes servira de ponto de partida. O clima
estava in uenciando mudanças em toda parte, o tempo todo. Quando, por
m, se observava uma divergência política signi cativa, era difícil apontar
sua causa com precisão. O problema era exacerbado pelo fato de todos os
estudos serem obrigatoriamente encerrados quando o “bloco de notas” do
prisma se esgotava — não importa quanto uma divergência especí ca
pudesse ser interessante, a conexão entre aqueles dois universos era apenas
temporária.
No setor privado, os empreendedores perceberam que embora as
informações obtidas através dos prismas tivessem um valor instrumental
apenas limitado, elas constituíam um conteúdo que podia ser vendido aos
consumidores. Um novo tipo de negociante de dados emergiu: uma empresa
podia propor a troca de notícias sobre assuntos da atualidade pelas suas
versões em mundos paralelos e vender essas informações a seus assinantes.
Notícias esportivas e fofocas de celebridades eram o material mais fácil de
vender — as pessoas pareciam estar tão interessadas no que suas estrelas
favoritas faziam em outras rami cações quanto nesta. Fãs radicais dos
esportes reuniam dados sobre outras rami cações e discutiam quais os times
que tinham melhor performance conjunta e se isso era mais importante do
que sua performance numa rami cação especí ca. Leitores comparavam
diferentes versões de romances publicados em rami cações diferentes, e o
resultado era que os autores se viam forçados a competir com cópias piratas
de livros que poderiam ter escrito. À medida que a fabricação dos prismas
passou a conter blocos de notas com maior capacidade de armazenamento,
as mesmas coisas começaram a acontecer com músicas e depois com lmes.
• • •
Nat tinha a expectativa de que Morrow se daria por satisfeito durante algum
tempo, em vista do sucesso de seu plano junto à sra. Oehlsen. A mulher
tinha transferido uma quantia para uma conta-fantasma duas semanas
antes, e seu eu paralelo tinha acreditado na versão de que os medicamentos
a tinham deixado semidelirante. Depois que a cliente faleceu, tudo foi
resolvido de maneira e caz. Mas, em vez de car contente com o desfecho,
Morrow parecia agora disposto a jogar uma cartada ainda mais alta.
Estavam no escritório da SelfTalk comendo tacos que ele trouxera de um
food truck a duas quadras dali quando Morrow tocou no assunto.
— Como estamos em relação a Lyle? — perguntou.
— Estou fazendo progressos — disse Nat. — Tenho certeza de que ele já
está pensando que estaria melhor sem o prisma.
Morrow terminou de comer o taco e bebeu todo o líquido da lata de
soda.
— Nós não podemos car aqui, sentados, esperando que ele decida
passar o prisma adiante.
Nat franziu a testa.
— Sentados? Acha que é isso que tenho feito?
Ele fez um aceno.
— Relaxe. Não foi o que quis dizer. Mas não vamos ter nenhum proveito
se ele resolver car agarrado àquele prisma durante anos. Temos de dar um
jeito para que o prisma seja vendido.
— Sei disso, e é o que estou tentando.
— Eu estava pensando em algo mais concreto.
— Tipo o quê?
— Conheço um cara de um grupo que rouba identidades. Posso pedir a
ele que foque em Lyle e arruíne seu crédito. Depois disso, Lyle não vai mais
car muito interessado no que seu eu paralelo anda fazendo.
Nat fez uma careta de desagrado.
— Nosso trabalho agora envolve esse tipo de coisa?
Ele deu de ombros.
— Se houvesse algum modo de fazer a vida paralela de Lyle parecer
melhor, por mim tudo bem, mas não temos essa opção. A única saída é fazer
a vida dele aqui parecer pior.
Um apelo aos sentimentos nobres não seria capaz de demover Morrow.
Nat precisaria de um argumento mais prático.
— Você não deve fazer com que ele se sinta tão miserável que acabe se
apegando ainda mais ao prisma, por ser seu único contato com uma vida
mais feliz.
Pareceu funcionar.
— É, você tocou num ponto importante — admitiu Morrow.
— Me dê mais alguns encontros, antes de tomar uma decisão.
Morrow amassou a bandeja de papel e a lata e as jogou na cesta de lixo.
— Está bem, vamos tentar da sua maneira mais um pouco. Mas tente dar
uma acelerada.
Ela assentiu.
— Claro. Já tenho uma ideia.
• • •
Nat estava saindo do toalete quando ouviu Dana conversando com alguém,
na esquina do corredor. Nat se deteve, apoiou-se na parede e encostou o
celular ao ouvido, como disfarce. Então foi se chegando até ser capaz de
escutar — alguém estava pedindo dinheiro a Dana, mas a situação não era
muito óbvia. Aquela mulher estava aplicando um golpe? Nat decidiu que
tinha de descobrir um pouco mais, para ter certeza de que nenhum
imprevisto iria atrapalhar os planos dela e de Morrow, mas era mais por
curiosidade.
Ela saiu da igreja e do lado de fora encontrou a mulher.
— Desculpe, mas... você conhece Dana?
A mulher a olhou com descon ança.
— Por que quer saber?
— Faço parte de um grupo de apoio que ela coordena. Estava de saída
quando vi vocês duas conversando. Não entendi o que você estava dizendo,
mas você pareceu zangada. Fiquei pensando se você faz parte de algum
outro grupo dela, ou já foi paciente dela, e teve alguma experiência negativa.
Não quero ser indiscreta. Só quei pensando se tem alguma coisa sobre
Dana que eu devesse saber.
A mulher deu uma risada.
— Pergunta interessante. Que tipo de grupo é o seu?
— É para pessoas que têm problemas com o uso dos prismas — contou
Nat. Diante do olhar desdenhoso da outra, resolveu seguir um palpite: — Já
fui dos Narcóticos Anônimos também.
Ela assentiu com brevidade.
— Mas não era Dana a coordenadora desse outro, não?
— Não, não era.
— Bom, porque eu não con aria nela nessa área. Para esse problema com
prismas, acho que ela pode servir. Não precisa se preocupar com isso.
— Mas por que ela não seria con ável com problemas ligados a
narcóticos?
A outra pensou um pouco e então deu de ombros.
— Claro, podemos conversar. Me pague uma bebida.
Foram para um bar que havia nas proximidades. O nome da mulher era
Vinessa, e Nat pediu para ela um uísque Maker’s Mark e para si mesma um
cranberry com soda. Depois, contou uma versão bem pasteurizada de suas
experiências com o uso de drogas, uma que poderia se encaixar
plausivelmente na história com que se apresentara no grupo. Não achou que
Vinessa fosse contar a Dana sobre aquela conversa no bar, mas todo cuidado
era pouco. Assim que se sentiu satisfeita com as credenciais de Nat, Vinessa
começou a falar do próprio passado. Explicou que, em seus tempos de
ensino médio, tinha todo o potencial do mundo, estava encaminhada para
uma universidade de prestígio e uma vida maravilhosa. Tudo isso foi por
água abaixo quando sua melhor amiga a traiu, entregando-a para poder
salvar os próprios projetos pessoais. Desde então, Vinessa vinha trilhando
um caminho pedregoso, e só agora tinha uma chance de sair dessa situação.
— É por isso que eu não a aprovaria num grupo de Narcóticos
Anônimos. Não dá para ter certeza de que ela não vai denunciar.
— Supõe-se que tudo que acontece nesses grupos é con dencial — disse
Nat.
— A gente pensa o mesmo de segredos entre duas melhores amigas!
Algumas pessoas no bar se viraram para olhá-las. Vinessa voltou a
abaixar a voz até um tom normal.
— Não estou dizendo que ela é a pior pessoa do mundo. Pelo menos, teve
a decência de sentir remorso. Mas existem pessoas com as quais você pode
contar para qualquer coisa e há pessoas com que você só pode contar para
isto ou aquilo. É preciso distinguir quem é quem.
— Mesmo assim, vocês continuam se encontrando.
— Bem, é como eu disse: Dana é uma boa pessoa para certas coisas. A
questão é que não é uma boa pessoa para tudo. Aprendi vivendo.
Então, Vinessa começou a falar sobre seus planos para começar um novo
negócio. Nat não lhe perguntou sobre o dinheiro que ela ia receber de Dana,
mas percebeu que não se tratava de um golpe intencional. Vinessa estava
apenas usando Dana, oferecendo-lhe uma chance para se limpar dos
próprios pecados ao nanciar o projeto mais recente da amiga. Nat
agradeceu a Vinessa e prometeu que não comentaria com ninguém a
conversa das duas. Depois, foi direto para casa.
Nat já tinha sido como Vinessa, sempre pronta a culpar alguém pelos
problemas que enfrentava. Durante anos acreditou que era por culpa dos
seus pais que tinha sido presa por arrombamento e invasão de domicílio: se
eles não tivessem mudado as fechaduras da casa, ela não teria arrombado a
porta quando precisou pegar alguma coisa para vender e comprar drogas.
Foi preciso bastante tempo até Nat ser capaz de assumir a responsabilidade
pelas coisas que fazia. Era visível que Vinessa ainda estava longe disso, e
talvez fosse por ter encontrado em Dana alguém disposto a assumir a culpa.
Dana tinha traído a amiga, sem dúvida, mas acontecera anos atrás. Se
Vinessa até agora não tinha sido capaz de aprumar a própria vida, a culpa
era sua e não de Dana.
• • •
Nat desejou, e não foi a primeira vez, haver uma maneira clara de saber
como Lyle se sentia a respeito de seu prisma, algum sinal visível de que ela
havia feito algum progresso. Já se passara um mês após sua cartada de
confessar que abandonara o prisma e, embora ela sentisse que Lyle estava
mais próximo de ceder do que antes, não havia como prever quanto tempo
ainda teria que esperar. Mais um mês? Mais seis meses? A paciência de
Morrow acabaria se esgotando, e eles teriam de tentar algo mais drástico.
Depois que todos se sentaram, Lyle se apresentou para falar primeiro.
Virou-se para Dana.
— Quando comecei a frequentar este grupo, você disse que um dos
objetivos aqui era dar a cada um de nós uma relação saudável com seu eu
paralelo.
— Um dos objetivos possíveis, sim — disse Dana.
— Dias atrás eu estava conversando com um cara que frequenta a mesma
academia que eu, e ele parece ter conseguido. Diz que ele e seu eu paralelo
são amigos, que trocam dicas de coisas que aprenderam e encorajam um ao
outro para que tenham um comportamento melhor. Achei incrível.
Nat cou alerta. Será que Lyle ia focar naquilo como seu objetivo dali em
diante? Se o zesse, seria um desastre. Se o zesse, nem mesmo o plano de
Morrow o faria desistir do prisma.
— E percebi — continuou Lyle — que eu nunca, jamais, conseguirei ter
esse tipo de relação com meu eu paralelo. Portanto, decidi me livrar do meu
prisma.
Nat cou tão aliviada que por um momento achou que todos tinham
percebido, mas ninguém reparou.
— Conversou com seu eu paralelo sobre isso? — perguntou Zareenah.
— Sim. Primeiro, ele sugeriu que a gente zesse uma pausa por um
tempo, mas ainda mantendo os prismas. Eu já tinha pensado nisso, porque
nesse caso conseguiria lhe mostrar quando as coisas estivessem melhores
para mim. Mas há uns dois encontros, aqui, Nat comentou que não tinha de
provar nada para ninguém. Acho que, se eu mantiver meu prisma, vou car
preso a isso, querendo provar alguma coisa. Então, avisei meu eu paralelo
sobre o que iria fazer, e ele entendeu. Vamos vender nossos prismas.
— Só porque sua relação com seu eu paralelo não é perfeita não quer
dizer que você tem de abrir mão dela — argumentou Kevin. — É como dizer
que se um casamento não parece um conto de fadas o tempo inteiro então
não vale a pena casar.
— Não concordo — disse Zareenah. — Manter um casamento é muito
mais importante do que manter uma relação com seu eu paralelo. Todo
mundo vivia bem antes de os prismas serem inventados.
— Quer dizer então que o que se espera desse grupo é fazer com que
cada um de nós se livre do seu prisma? Primeiro Nat, agora você. Não sei se
quero me desfazer do meu.
— Não se preocupe, Kevin — disse Dana. — É você quem escolhe seu
objetivo. Nem todo mundo tem de tomar a mesma decisão.
O grupo dedicou um pouco mais de tempo para tranquilizar Kevin e
discutir a validade das diferentes maneiras de conviver com um prisma.
Quando o horário chegou ao m, Nat foi conversar com Lyle.
— Acho que você está tomando a decisão certa — disse ela.
— Obrigado, Nat. Você me ajudou a chegar a essa conclusão.
— Fico feliz em saber disso.
Agora vinha a parte crucial. Nat cou surpresa ao perceber como estava
nervosa. Da maneira mais casual que pôde, sugeriu:
— Sabe, você podia vender seu prisma no mesmo lugar onde vendi o
meu. Eles fazem um bom preço, tanto para você quanto para seu eu paralelo.
— É mesmo? Como se chama?
— SelfTalk, na rua Quatro.
— Ah, sim, acho que já vi alguns pan etos deles por aqui.
— Sim, foi como quei sabendo. Se quiser algum apoio moral quando for
vendê-lo, posso ir com você, e depois a gente pode tomar um café, algo
assim.
Lyle assentiu.
— Claro, vamos, sim.
E assim, como se não fosse nada de mais, o plano inteiro estava se
encaixando.
— Que tal no domingo? — indagou ela.
• • •
Nat estava à espera do lado de fora da SelfTalk, aguardando Lyle. Sabia que
havia risco de ele mudar de ideia, mas ele chegou na hora combinada, com o
prisma. Vê-lo ali era uma espécie de anticlímax: ela e Morrow tinham
trabalhado por aquilo durante meses, mas o prisma não parecia diferente de
nenhum outro modelo recente, só uma caixa de alumínio azulado. Nat
percebeu de repente como aquela situação era ao mesmo tempo
extraordinária e surpreendentemente banal: parecia que todo prisma vinha
de um conto de fadas, uma bolsa contendo uma porta para outro mundo,
mas a maior parte desses mundos não era interessante, a maioria das portas
não tinha grande valor. Aquela ali tinha, mas somente porque poderia
refazer o contato de um príncipe com seu amado.
— Ainda quer fazer isso? — perguntou ela.
— Cem por cento. Conversei hoje de manhã com meu eu paralelo, e ele
continua rme. Deve estar a esta hora lá na outra versão da SelfTalk.
— Ótimo. Vamos, então.
Os dois entraram, e Morrow estava ao balcão.
— Posso ajudar? — quis saber ele.
Lyle respirou fundo.
— Eu gostaria de vender meu prisma.
Morrow fez os procedimentos de sempre, checou o teclado, a câmera de
vídeo, o microfone. Esse momento continha a maior variável no plano deles:
não podiam ter certeza sobre quem estaria do outro lado no balcão, quem
iria fazer uma oferta ao Lyle paralelo. Provavelmente seria o Morrow
paralelo ou a Nat paralela, e aí tudo estaria tranquilo. Mesmo sem saber do
plano que estava em curso, eles seguiriam as ações iniciadas pelo Morrow do
lado de cá. Mas havia sempre o risco de que outra pessoa estivesse agora ao
balcão da SelfTalk na outra rami cação, e isso poderia complicar as coisas.
Nat viu que Morrow estava digitando mais demoradamente do que faria
numa simples veri cação de teclado, o que era um bom sinal. Morrow
estava dizendo à pessoa do outro lado que con asse nele e pagasse pelo
prisma do Lyle paralelo um pouco mais do que o valor de mercado e agisse
com naturalidade, que ele explicaria tudo depois. Por sorte, Lyle não sabia
quanto tempo durava uma inspeção daquele tipo.
Morrow fez uma proposta, e Lyle conferenciou brevemente com seu eu
paralelo. Como os dois já tinham concordado em vender os prismas, não
estavam mais questionando o preço. Era apenas uma despedida nal. Nat se
forçou a não trocar olhares com Morrow enquanto esperavam, mas não
sabia para onde olhar. Não fazia muito sentido car observando Lyle, então
ela cou olhando pela janela, para o lado de fora.
Finalmente, Lyle devolveu o prisma e recebeu o pagamento. Assim que
tudo se encerrou, Nat perguntou:
— E agora, como se sente?
— Meio triste, meio aliviado.
— Vamos tomar um café.
Os dois conversaram por um tempo sentados à mesa do café. Depois se
abraçaram, se despediram e marcaram de se reencontrar na próxima sessão
do grupo. O plano de Nat era comparecer a mais um encontro e depois
anunciar que não achava mais necessário participar daquela atividade.
Quando ela voltou à SelfTalk, faltava meia hora para o horário de fechar,
e havia apenas dois clientes. Morrow estava no escritório, digitando no
prisma de Lyle.
— Chegou bem na hora — avisou ele. — Estou falando com meu eu
paralelo.
Fez um gesto, e ela se aproximou para olhar a tela em que os dois
trocavam mensagens.
Fala, cara.
Roderick Ferris.
Oi, cara.
Houve uma pausa bem longa até que a resposta apareceu na tela.
Pela primeira vez, Nat não seria a compradora. Agora ela iria vender.
Teria de exibir provas que atestassem quanto seu prisma era valioso. Nat e o
Morrow paralelo trocaram fotos dos respectivos jornais com as notícias
impressas. Era algo mais difícil de forjar do que um mero print da página de
um website.
Agora, ela precisava entrar em contato com alguém ligado a Scott
Otsuka, explicar o que estava oferecendo e mandar a fotogra a para
comprovação.
• • •
Ornella tinha trabalhado como assistente pessoal de Scott durante dez anos,
bem antes de ele conhecer Roderick e os dois se casarem. O assistente de
Roderick tinha ido morar na França dois anos atrás e, embora ele tivesse
alguém à mão para acompanhá-lo por ocasião das lmagens em locações ou
fazendo alguma turnê de divulgação, quando Roderick estava em casa
Ornella trabalhava como assistente para ambos. Até seis meses atrás, quando
um motorista bêbado mudara tudo. Agora, ela voltara a trabalhar apenas
para Scott.
Antes do acidente, Ornella nunca dera muita atenção aos prismas. Sabia
que os fãs de Scott circulavam entre si cópias piratas de outras versões das
canções escritas por ele, mas ele nunca se dera ao trabalho de escutá-las, e
ela fazia o mesmo — o mesmo valia para Roderick e seus lmes. Mas, depois
do acidente de carro, parecia que ela estava sendo soterrada por anúncios de
negociantes de dados: “Assine agora e seja o primeiro a ver os lmes que
Roderick Ferris teria feito se continuasse vivo.”
E depois havia as ofertas dos fãs que possuíam prismas e queriam dá-los
de presente a Scott. Eles sabiam, pelas entrevistas dos dois, que nem Scott
nem Roderick tinham prismas e, embora fosse fácil para Scott adquirir um,
queriam aproveitar aquilo para fazer contato, para se tornarem a pessoa que
conseguiu aliviar seu sofrimento. Ornella sabia que Scott tinha pensado em
comprar um prisma. Ele daria qualquer coisa para ver Roderick vivo
novamente. Mas o problema era óbvio: em cada uma das rami cações onde
o acidente não acontecera e seu marido ainda estava vivo, seu eu paralelo
também sobrevivera. Scott passaria a ser, então, um viúvo inconsolável
interferindo na vida de um casal feliz, uma lembrança viva de que uma
catástrofe podia acontecer a qualquer momento, como um espectro durante
um banquete. Não era isso que ele desejava. Se Scott tivesse que se defrontar
com um Roderick paralelo, não queria ser para ele um objeto de piedade
nem uma causa de medo.
Mas essa nova oferta era diferente: um prisma conectado a uma
rami cação do tempo onde não existia um Scott paralelo, apenas um
Roderick enlutado. Isso, sim, era algo que poderia interessá-lo. No entanto,
Ornella não revelaria nada para ele enquanto não se certi casse de que era
uma proposta legítima.
Ela contratou um especialista para examinar a imagem que recebera. Ele
lhe disse que não era uma falsi cação óbvia, mas ele próprio poderia criar
uma com a mesma qualidade, de modo que a imagem em si não servia de
prova para coisa alguma. Ornella disse à vendedora do prisma que precisava
primeiro conversar com a Ornella do outro lado, de modo que acabaram
combinando um horário.
Ficou um pouco surpresa quando a vendedora aparecera. Tinha
imaginado que “Nat” era um homem, mas foi uma mulher que apareceu no
portão da frente, carregando a pasta com um prisma. Nat era magrinha e
poderia ser bonita caso se esforçasse mais, mas pairava nela uma espécie de
tristeza. Anos de trabalho ao lado de Scott tinham dado a Ornella um olhar
clínico para reconhecer pessoas aproveitadoras, mas não foi esta a impressão
que teve, pelo menos naquele primeiro contato.
— Vou ser bastante clara — disse Ornella, depois que Nat entrou. — Você
não vai conversar com Scott hoje. Ele nem sequer está em casa. Se eu car
satisfeita com o que vou ver, então vamos marcar outro encontro.
— Claro, foi o que imaginei — respondeu Nat. Parecia estar quase
pedindo desculpas pelo que fazia.
Ornella instalou o prisma em cima de uma mesinha de café. De início,
Nat entrou numa conversa por texto com a pessoa do outro lado, depois
mudou para vídeo e deslizou o prisma para a frente de Ornella. Um rosto
apareceu na tela, mas não era uma versão paralela de Nat, era um homem,
magro, de rosto no. Um oportunista.
— Quem é você? — quis saber ela.
— Meu nome é Morrow.
Ele deu um passo para o lado e a tela foi preenchida por uma versão dela
mesma. Ornella observou que o aposento por trás dos dois era o mesmo
onde ela estava agora, e reconheceu também a roupa que sua versão paralela
estava usando.
— Isso é de verdade? — perguntou ela, hesitante. — Roderick está vivo aí
no seu lado?
Sua versão paralela estava com a mesma expressão de quase
incredulidade.
— Sim, está. E Scott está vivo aí?
— Sim.
— Tenho algumas perguntas.
— As mesmas que eu tenho, provavelmente.
As duas Ornellas trocaram informações sobre o acidente. Em ambas as
rami cações, ele ocorrera do mesmo modo: a mesma sessão de estreia, o
mesmo motorista bêbado. Só o sobrevivente que era outro.
Concordaram que Ornella falaria com Scott e sua versão paralela avisaria
a Roderick. Presumindo que ambos vissem aquela possibilidade com bons
olhos, as Ornellas marcaram uma data na semana seguinte para fazerem um
teste usando os prismas e decidirem se queriam comprá-los.
— Agora vamos conversar sobre o preço — disse Ornella.
— Não, não vamos — disse Morrow com rmeza, lá do outro lado. —
Depois que os patrões de vocês tiverem testado o produto, vou dizer o preço.
Ou vocês pagam, ou nós vamos embora.
Uma estratégia que fazia sentido: supondo que Scott e Roderick
quisessem fazer a compra, não estariam em condições de pechinchar. Era
bem óbvio que quem estava dando as cartas naquele episódio era o tal de
Morrow.
— Está bem — concordou Ornella. — Voltaremos a conversar.
Ela empurrou o prisma de volta para Nat, que trocou algumas frases
rápidas com Morrow antes de desligar.
— Então é isto — disse Nat. — Semana que vem estarei de volta.
— Ótimo.
Ornella a acompanhou até a porta da frente e elas se despediram.
Quando Nat estava descendo os degraus, Ornella perguntou:
— Por que estou negociando com você?
Nat se virou.
— O que disse?
— Meu eu paralelo está resolvendo isso com um cara chamado Morrow.
Por que do lado de cá estou com você, em vez da outra versão desse
Morrow?
A mulher suspirou.
— É uma longa história.
• • •
Nat se serviu de um copo de café e procurou seu assento. Era sua segunda
reunião com o grupo depois de ter conseguido o prisma de Lyle. Na semana
anterior, ela havia planejado fazer o anúncio de que não voltaria, mas se vira
incapaz de falar fosse o que fosse. Tivera de comparecer pelo menos mais
uma vez, para dizer que ia dar um tempo do grupo. As pessoas cariam
preocupadas se ela deixasse de comparecer.
Dana sorriu para o grupo e disse:
— Quem deseja ser o primeiro hoje?
Quase involuntariamente, Nat começou a falar, no mesmo instante em
que Lyle também dizia algo. Os dois se interromperam.
— Pode falar — disse Nat.
— Não, não, fale primeiro. Acho que, até hoje, você nunca abriu uma
reunião.
Nat percebeu que ele tinha razão. O que acontecera com ela? Abriu a
boca, mas dessa vez não conseguiu pensar em nenhuma mentira
conveniente. Acabou dizendo:
— Um cara com quem eu trabalho, acho que pode ser chamado de meu
supervisor, morreu recentemente. Na verdade, foi assassinado.
O grupo se mostrou chocado, e alguns “oh, meu Deus” foram ditos entre
os sussurros.
— Quer comentar sua relação com ele? — disse Dana.
— Isso. Era seu amigo? — quis saber Kevin.
— Mais ou menos — admitiu ela. — Mas não é isso que está me
preocupando. Sei que isso aqui não é um grupo de apoio para problemas
emocionais... Acho que abordei esse assunto porque queria a opinião de
vocês sobre uma coisa.
— Claro — respondeu Dana. — Continue.
— Não consigo parar de pensar sobre quanto esse assassinato foi uma
coisa aleatória. Quer dizer, quando o cara estava apontando a arma para
meu supervisor, ele disse que alguma versão dele ia puxar o gatilho, então,
por que não ele? Todos nós já ouvimos esse tipo de fala antes, mas nunca
prestei muita atenção. Mas estou pensando: será que quem diz isso tem
mesmo razão?
— Esta é uma boa pergunta — disse Dana. — É verdade que todos nós já
escutamos coisas parecidas. — Ela se dirigiu ao grupo. — Alguém tem
algum comentário? Acham que toda vez que enfurecemos alguém existe
uma rami cação onde essa pessoa pega uma arma e atira?
Zareenah pediu a palavra.
— Li em algum lugar que o número de crimes passionais aumentou
depois que os prismas se tornaram uma coisa popular. Não foi um aumento
enorme, mas era estatisticamente signi cante.
— Sim — disse Kevin. — E é por isso que essa teoria não pode ser
verdadeira. O fato de que houve um aumento, mesmo pequeno, desmente a
teoria.
— Como você pode demonstrar isso? — disse Zareenah.
— As rami cações são produzidas por qualquer evento quântico, certo?
Mesmo antes de termos prismas essas rami cações estavam se produzindo
constantemente. A única diferença era que naquele tempo não tínhamos
como acessá-las. Se fosse verdade que existe sempre uma rami cação onde
você pega uma arma e atira em alguém por mero impulso, então deveria
haver antes da invenção do prisma o mesmo número de crimes aleatórios,
todos os dias, que constatamos depois que ele foi inventado. A invenção do
prisma não faria com que mais crimes desse tipo se acumulassem em uma
rami cação especí ca. Então, se estamos presenciando mais gente matando
outras pessoas, depois que os prismas se multiplicaram, não pode ser porque
sempre existe uma rami cação onde você usa a pistola.
— Entendi o raciocínio — disse Zareenah. — Mas então o que está
provocando o aumento dos assassinatos?
Kevin deu de ombros.
— É como uma onda de suicídios. As pessoas ouvem falar que existem
outras pessoas fazendo aquilo, e cam com a cabeça cheia de ideias.
Nat pensou um pouco a respeito e disse:
— Isso prova que o argumento não está certo, mas não explica por que
está errado.
— Se você con rma que a teoria está errada, para que descobrir mais?
— Porque quero saber por que minhas decisões têm importância! —
Aquilo saiu com mais ênfase do que ela pretendia. Nat respirou fundo, e
continuou: — Esqueça o assassinato. Não é disso que estou falando. Mas,
quando tenho uma chance de fazer a coisa errada ou a coisa certa, estarei
sempre fazendo as duas coisas em universos diferentes? Por que deveria me
preocupar em ser bacana com outras pessoas, se todas as vezes estarei sendo
sacana também?
O grupo se envolveu nessa discussão por algum tempo, mas logo depois
Nat interpelou Dana.
— Pode me dizer o que você pensa?
— Claro — disse Dana, e fez uma pausa para ordenar as ideias. — Em
geral, acho que as ações de uma pessoa são consistentes com o caráter dela.
Pode haver mais de uma ação que você pratique e esteja em conformidade
com seu caráter, porque seu comportamento vai variar, dependendo de seu
estado de espírito, mas há um número maior de coisas que estariam em
desacordo com seu caráter. Se você é alguém que sempre gostou de animais,
não existe uma rami cação em algum lugar onde você chuta um cãozinho
só porque ele latiu para você. Se você é alguém que sempre obedece à lei,
não há uma rami cação onde você de repente assalta uma loja de
conveniência pela manhã, em vez de ir trabalhar.
— E quanto às rami cações que começaram a divergir quando você era
um bebê e sua vida tomou uma direção diferente? — indaga Kevin.
— Não me preocupo com isso — disse Nat. — Estou pensando nas
rami cações onde eu, tendo vivido a vida que vivi, me deparo com uma
escolha.
— Kevin, podemos conversar sobre divergências maiores depois, se
quiser — disse Dana.
— Não, está bem. Continuem.
— Muito bem. Vamos imaginar uma situação na qual você tem duas
opções, e ambos os comportamentos seriam consistentes com seu caráter.
Por exemplo, imagine que o caixa de uma loja lhe devolveu troco a mais, e
você tem a escolha de embolsar o dinheiro ou devolvê-lo. Vamos supor que
você seja uma pessoa capaz de fazer ambas as coisas, dependendo de como
tenha sido seu dia. Nesse caso, eu diria que é possível existir uma
rami cação onde você ca com o dinheiro, tanto quanto uma em que você o
devolve.
Nat pensou e percebeu que não haveria rami cações onde ela devolvia o
troco. Pelo que lhe dizia respeito, se ela estivesse tendo um dia agradável o
ato de embolsar um troco extra dado por engano faria dele um dia melhor
ainda.
— Isso signi ca, então, que não faz diferença se a gente agir como um
sacana? — perguntou Kevin.
— Faz diferença para a pessoa que, nesse lado, vai sofrer os efeitos da sua
sacanagem — disse Zareenah.
— Mas do ponto de vista global? Ser sacana nessa rami cação aumenta a
porcentagem de comportamento sacana em todas as outras?
— Não tenho certeza quanto ao aspecto matemático — respondeu Dana.
— Mas creio com toda a rmeza que nossas escolhas são importantes, sim.
Cada decisão que você toma contribui para seu caráter e molda o tipo de
pessoa que você é. Se você quer ser alguém que sempre devolve o dinheiro
extra ao caixa, as ações que você pratica agora vão contribuir para que seja
essa pessoa.
“A rami cação onde você tem um dia difícil e resolve embolsar o
dinheiro extra se separou de você e cou para trás. Você não pode mais
in uir nela. Mas se age eticamente nessa rami cação, isso ainda tem sentido,
porque produz um efeito nas rami cações que surgirão no futuro. Quanto
mais escolhas éticas você zer, menor a probabilidade de que faça escolhas
egoístas no futuro, mesmo naquelas rami cações onde tem um dia difícil.”
— Isso soa bonito, mas... — Nat pensou quantos anos de ações
recorrentes, sempre iguais, seriam capazes de criar uma espécie de sulcos na
mente de uma pessoa, conduzindo suas ações sempre naquela mesma
direção, sem que ela tivesse consciência. — Mas não é fácil.
— Sei que não é — disse Dana. — Mas a questão era: dado que sabemos
sobre as outras rami cações, vale a pena fazer a escolha certa? Eu acho que
sim, sem a menor dúvida. Nenhum de nós é santo, mas todos podemos
tentar melhorar. Cada vez que você pratica um ato generoso, você está se
de nindo como uma pessoa com mais probabilidade de ser generosa na
próxima vez, e isso pesa.
“E não é somente seu comportamento aqui que você está alterando, e sim
todas as versões de você mesmo que vão se subdividir no futuro. Ao se
tornar uma pessoa melhor, você garante que um número cada vez maior de
rami cações que serão criadas daquele ponto em diante estará habitado por
versões melhores de você.”
Versões melhores de Nat.
— Obrigada — disse ela. — Era o que eu queria saber.
• • •
Uma nova cidade, um novo apartamento. Nat ainda não tinha encontrado
um novo emprego, mas ainda era cedo. Tinha sido fácil, contudo, encontrar
um novo grupo de Narcóticos Anônimos. De início, ela havia pensado em
comparecer uma última vez ao grupo de apoio sobre prismas e contar tudo a
eles, só que quanto mais pensava a respeito, mais se convencia de que isso
redundaria em benefício apenas para ela, e para ninguém mais. Lyle estava
numa situação boa — ele não caria feliz se soubesse que durante todo o
tempo em que foram amigos ela estava com segundas intenções. A mesma
coisa valia para o restante do grupo. Era melhor deixá-los pensando que a
Nat que haviam conhecido era a verdadeira Nat.
E este era o motivo da presença dela num encontro dos Narcóticos
Anônimos. Era bem maior do que o grupo dos prismas — prismas jamais
teriam o mesmo apelo popular das drogas — e exibia a mistura habitual:
pessoas que você jamais imaginaria que tinham um vício e pessoas que eram
o viciado típico. Ela não fazia ideia se aquele grupo era radical sobre seguir o
passo a passo ou a submissão a uma autoridade central. Nem sequer sabia se
estava mesmo a m de comparecer aos encontros com regularidade —
decidiu que iria improvisando de acordo com o que acontecesse.
A primeira pessoa a falar foi um homem que narrou a experiência de
despertar de uma overdose para constatar que sua lha de treze anos tivera
que lhe aplicar uma injeção de Narcan. Não era fácil escutar aquilo, mas Nat
achou certo conforto em se ver de novo num grupo de pessoas com
experiências semelhantes às suas. Uma mulher foi a próxima a falar, e depois
outro homem. Nenhum deles contou algo especialmente chocante, e ela se
sentiu aliviada. Ela não gostava de falar logo depois de alguém contar uma
história muito horrorosa.
O líder do grupo era um homem de fala macia, com uma barba
arruivada.
— Estou vendo alguns rostos novos aqui hoje. Gostariam de dizer
alguma coisa ao grupo?
Nat ergueu a mão e apresentou-se.
— Não compareço a um grupo há alguns anos. Tenho conseguido me
manter limpa. Mas recentemente me aconteceram algumas coisas... Não é
que eu precise de um grupo para me impedir de ter uma recaída, mas tenho
pensado numa porção de coisas e acho que queria apenas um lugar para
conversar.
Ela cou em silêncio por alguns instantes — já fazia bastante tempo que
tinha vivido um momento assim —, mas o líder do grupo entendeu que ela
tinha mais coisas a dizer e esperou com paciência. Ela prosseguiu:
— Eu magoei algumas pessoas e acho que nunca conseguirei consertar
isso. Elas nunca me darão uma chance, e não posso culpá-las. Mas suponho,
de certo modo, que isso me fez pensar uma coisa: se não posso agir da
maneira certa com elas, essas pessoas que prejudiquei tanto, então não tem
muita importância se eu for uma boa pessoa para o resto, ou não. De modo
que me mantive limpa, mas não deixei de mentir, não deixei de enganar.
Nada terrível, nada que prejudicasse alguém como eu fazia quando era
usuária. Eu estava somente cuidando de mim mesma, sem pensar muito a
respeito.
“Mas recentemente tive uma... uma oportunidade de fazer uma coisa
realmente boa por alguém. Eu não tinha prejudicado essa pessoa, era apenas
alguém sofrendo. Teria sido fácil para mim agir da maneira como sempre
agi. Mas imaginei como se comportaria alguém que fosse melhor do que eu,
e foi assim que me comportei.
“Fiquei me sentindo bem por ter feito isso, mas não acho que mereço
uma medalha ou algo do tipo. Porque existem outras pessoas para as quais
uma ação generosa brota com facilidade, sem muita luta. E é fácil para elas
porque no passado elas tomaram uma porção de decisões generosas. Foi
difícil para mim porque no meu passado eu tinha tomado muitas decisões
egoístas. Portanto, sou a razão pela qual é tão difícil para mim mesma ser
uma pessoa generosa. Isso é algo que preciso consertar. Ou quero consertar.
Não sei se este grupo é o grupo mais adequado para isso, mas foi o primeiro
lugar que me veio à cabeça.”
— Obrigado — disse o líder. — Você é bem-vinda aos nossos encontros.
O outro novato, um rapaz que parecia ter acabado de concluir o ensino
médio, apresentou-se e começou a falar. Nat se virou para escutar sua
história.
• • •
Quando Dana chegou em casa, havia um pacote à espera. Assim que entrou
no apartamento, ela o abriu e encontrou um tablet. Não era um embrulho
comercial. Tinha apenas um curto bilhete colado à tela: “Para Dana”. Ela
examinou a caixa, mas não havia sinais do remetente.
Dana ligou o tablet. Os únicos ícones na tela eram meia dúzia de arquivos
de imagem, cada um com o nome dela seguido de números em sequência.
Ela tocou com o dedo no primeiro ícone para assistir, e surgiu na tela uma
imagem do seu rosto em baixa resolução. Mas não era ela, era uma versão
paralela sua, falando sobre o passado.
“A sra. Archer entrou de repente no quarto e nos encontrou contando as
pílulas. Ela nos perguntou o que estava acontecendo ali, e por um segundo
quei paralisada. Então eu disse que eram minhas, e que Vinessa não sabia
nada a respeito daquilo. Ela continuou descon ada, porque eu nunca tinha
me metido em problemas antes, mas consegui convencê-la. Em seguida,
peguei uma suspensão da escola, mas nem chegou a causar complicações
como eu temia. Me puseram sob observação, de modo que, se eu não me
metesse em novas encrencas, aquilo não seria registrado no meu histórico.
Eu sabia que teria sido muito pior para Vinessa, por causa de tudo que as
professoras pensavam sobre ela.
“Mas Vinessa começou a me evitar, e, quando nalmente perguntei o
motivo, ela disse que se sentia culpada toda vez que me via. Falei que ela não
precisava sentir culpa de nada, e que eu gostaria que fôssemos amigas, mas
Vinessa disse que aquilo deixava as coisas ainda piores. Me aborreci com ela
e ela se aborreceu comigo. Ela começou a passar a maior parte do tempo
com outras amigas que estavam o tempo todo se metendo em confusão. Daí
em diante, não parou mais. Foi apanhada vendendo drogas dentro da
própria escola, foi expulsa, e passou a entrar e sair da cadeia.
“E não deixo de pensar que, se eu não tivesse dito que as pílulas eram
minhas, tudo seria diferente. Se eu tivesse deixado Vinessa assumir sua
parcela daquela culpa, esse episódio não teria se transformado numa cunha
que lentamente foi nos afastando uma da outra. Teríamos passado por tudo
aquilo juntas, ela não sairia com aquelas garotas problemáticas e a vida dela
teria ido numa direção diferente.”
Mas o que era aquilo? Com os dedos trêmulos, Dana ativou o segundo
vídeo.
Outra Dana:
“Uma das professoras entrou no nosso quarto no momento exato em que
estávamos contando as pílulas! Confessei tudo na mesma hora: disse a ela
que eu e Vinessa tínhamos furtado tudo aquilo dos nossos pais, com o
intuito de dar uma festinha. Pouco depois, a escola nos suspendeu e nos
colocou sob observação. Acho que eles gostariam de ter dado a Vinessa uma
punição maior, mas no caso a punição das duas tinha mesmo que ser igual.
“Vinessa cou furiosa comigo. Disse que devíamos ter dito à professora
que tínhamos acabado de achar aquelas pílulas, e que alguém devia tê-las
en ado na nossa bolsa ainda no aeroporto e estávamos combinando de
contar tudo às professoras. Disse que ninguém teria podido provar que
éramos culpadas, mas, como eu havia confessado, estávamos de castigo e
aquelas professoras que a detestavam teriam um argumento forte contra ela
quando bem entendessem. Ela não ia dar esse poder todo a nenhuma delas.
Assim que o período de castigo acabou, Vinessa chegou bêbada à escola.
Depois que fez isso algumas vezes, acabou sendo expulsa, e em pouco tempo
volta e meia era presa.
“E co aqui pensando... se pelo menos eu não tivesse confessado, tudo
seria diferente. Aquele perigo, se evitado em cima da hora, teria bastado
para prevenir Vinessa e evitar que ela acabasse se envolvendo em delitos de
verdade. Ela só começou a se comportar daquela maneira porque estava
zangada comigo. Se não fosse por isso, poderia ter sido aceita numa boa
universidade, e sua vida teria ido em outra direção.”
Os outros vídeos não faziam nenhuma referência ao episódio das pílulas,
mas todos seguiam um padrão fácil de reconhecer. Em um, Dana se sentia
culpada por ter apresentado Vinessa a um rapaz que acabou conduzindo-a
para o vício das drogas. Em outro, Vinessa praticou um furto numa loja, tão
bem-sucedido que a encorajou a tentar golpes mais audaciosos. Todas essas
Vinessas estavam aprisionadas em padrões de comportamento
autodestrutivo. Todas essas Danas se sentiam culpadas, independentemente
do que tivessem feito ou deixado de fazer.
Se a mesma coisa acontece em rami cações onde você agiu de maneira
diferente, então não é você a causa daquilo.
Ela havia mentido, sim, ao dizer que as pílulas eram de Vinessa, mas não
tinha sido essa mentira a força que fez Vinessa transpor os limites que a
transformaram numa delinquente. Era nessa direção que ela estava
marchando o tempo inteiro, independentemente do que alguma outra
pessoa viesse a fazer. E Dana tinha gastado muitos anos e muitos milhares
de dólares tentando remediar um erro que cometera, tentando consertar a
vida da amiga. Talvez não precisasse mais agir assim.
Dana examinou os metadados dos arquivos de vídeo. Cada arquivo
incluía informações sobre o prisma de onde tinha sido extraído — os
prismas tinham datas de ativação que remontavam a quinze anos no
passado.
Quinze anos era o tempo transcorrido desde a época em que Dana e
Vinessa tinham viajado naquela excursão. Era quando os negociantes de
dados estavam iniciando suas atividades. Os prismas daquela época tinham
blocos de notas muito menores do que os atuais. Ela se surpreendeu ao
constatar que alguém ainda possuísse prismas de modelos tão antigos e,
mais, prismas ainda com capacidade su ciente para transmitir vídeos. Era o
tipo de prisma mais valioso no mercado, e a mera transmissão daqueles
vídeos tinha esgotado de vez sua capacidade.
Quem pagara por aquilo? Devia ter custado uma fortuna.
O MERCADOR E O PORTAL DO ALQUIMISTA
Em meados da década de 1990, o físico Kip orne estava fazendo uma
turnê de lançamento de seu livro, e assisti a uma palestra na qual ele
descreveu como era possível — em teoria — criar uma máquina do tempo
que obedecesse à teoria da relatividade de Einstein. Achei aquilo fascinante.
O cinema e a televisão nos induziram a pensar nas máquinas do tempo
como veículos onde somos transportados, ou como uma espécie de
teleporte que nos envia, como que através de raios, para outra época. Mas o
que orne descrevia parecia mais com um par de portas, onde tudo que
entrasse por uma porta ou saísse dela iria sair ou entrar pela outra, depois de
transcorrido um determinado período de tempo. Várias questões suscitadas
pela ideia das máquinas do tempo veiculares ou teleportadoras — quanto ao
movimento da Terra, ou por que não registramos ainda a visita de viajantes
vindos do futuro — eram respondidas por esse tipo de máquina temporal.
Mais interessante ainda era o fato de que orne tinha desenvolvido uma
análise matemática que indicava ser impossível modi car o passado com
essa máquina, e que só era possível a existência de uma linha temporal única
e autoconsistente.
A maioria das histórias de viagem no tempo presume que é possível
mudar o passado, e aquelas em que isso não é possível são geralmente
trágicas. Embora todos possamos compreender o desejo de alguém de
mudar coisas já passadas, meu propósito era tentar escrever uma história de
viagem no tempo em que a incapacidade de produzir tais mudanças não
fosse necessariamente um motivo de tristeza. Achei que um ambiente
muçulmano poderia ser adequado, porque a aceitação do destino é um dos
pilares da fé islâmica. Então, ocorreu-me a ideia de que a natureza recursiva
das histórias de viagens temporais poderia se harmonizar com a convenção
típica das Mil e uma noites, de histórias dentro de outras histórias, e achei
uma experiência interessante.
EXPIRAÇÃO
Este conto tem duas fontes de inspiração muito diferentes. A primeira foi
um conto de Philip K. Dick, “A formiga elétrica”, que li na adolescência.
Nele, o protagonista vai ao médico para uma consulta de rotina e é
informado, para sua surpresa total, de que na verdade é um robô. Depois, ele
abre o próprio peito e vê um minúsculo rolo de ta magnética que gira
lentamente e onde são produzidas todas as suas experiências subjetivas. Essa
imagem de uma pessoa literalmente olhando para a própria mente marcou
minha memória.
A segunda inspiração veio de um capítulo do livro de Roger Penrose A
nova mente do imperador, no qual ele discute o conceito de entropia.
Penrose chama nossa atenção para o fato de ser incorreto dizer que
absorvemos comida porque precisamos da energia que ela contém. A lei da
conservação de energia signi ca que essa energia não é criada nem é
destruída: nós a irradiamos constantemente, mais ou menos na mesma
medida em que a absorvemos. A diferença é que a energia calorífera que
irradiamos é uma forma energética de alta entropia, ou seja, é desordenada.
A energia química que absorvemos é uma forma energética de baixa
entropia, ou seja, organizada. Na realidade, estamos consumindo ordem e
gerando desordem. Vivemos à custa de aumentar a desordem do universo.
Nossa mera existência só é possível porque o universo teve início num
estado organizado.
A ideia é bastante simples, mas eu nunca a vi expressa dessa maneira até
ler a explicação de Penrose. E quei interessado em descobrir se eu seria
capaz de reproduzi-la sob a forma de uma história de cção.
O QUE SE ESPERA DE NÓS
Há um esquete cômico de Monty Python sobre uma piada tão engraçada
que qualquer pessoa que a leia ou escute morre de rir. É um exemplo de uma
antiga gura narrativa que tem o nome de “o motivo da sensação nefasta”: a
ideia de que você pode morrer apenas por ter visto ou ouvido alguma coisa.
Ou, dependendo da versão, por ter compreendido alguma coisa: no esquete
do programa, pessoas que falam inglês podem recitar em segurança a versão
alemã da piada, desde que não entendam o que estão dizendo.
Muitas versões dessa gura narrativa envolvem algum elemento do
sobrenatural. Por exemplo, a cção de horror apresenta muitas vezes livros
amaldiçoados, que levam as pessoas à loucura. Comecei a imaginar se
poderia existir uma versão não sobrenatural disso e pensei que um possível
candidato seria a existência de um argumento convincente provando que a
vida não tem sentido. Não é algo que faça efeito instantaneamente — o
argumento precisaria de algum tempo para dominar a mente da pessoa, mas
isso signi caria que ele se propagaria cada vez mais, enquanto as pessoas
estivessem ruminando aquela revelação terrível.
A proteção contra isso, é claro, é o fato de que mesmo o mais rigoroso
argumento não é capaz de convencer todas as pessoas que o ouvem.
Argumentos são algo abstrato demais para in uir nas ações de certas
pessoas. Uma demonstração física, por outro lado, teria uma e cácia maior.
O CICLO DE VIDA DOS OBJETOS DE SOFTWARE
A cção cientí ca é cheia de seres arti ciais que, tal como Atena que sai da
cabeça de Zeus, surgem já formados, mas não creio que a consciência
funcione dessa forma. Baseados na nossa experiência com a mente humana,
podemos dizer que são necessários pelo menos uns vinte anos de esforço
constante para produzir uma pessoa útil, e não vejo como a educação de um
ser arti cial poderia ser mais rápida. O que quis foi escrever uma história
narrando o que acontece durante esses vinte anos.
Eu estava interessado também na ideia das relações emocionais entre
humanos e inteligências arti ciais, e não estou me referindo a humanos
apaixonados por robôs sexies. Não é o sexo que torna real uma relação, e
sim a disposição em despender esforço para que essa relação se mantenha.
Alguns namorados rompem um com o outro na primeira briga que
acontece, alguns pais dedicam aos lhos a menor quantidade possível de
esforço, alguns donos de animais de estimação os ignoram sempre que estes
se tornam incômodos. Em todos esses casos, as pessoas não estão dispostas
a grandes esforços. Ter uma relação verdadeira, seja com um amor, seja com
um lho seja com um animal, exige que você esteja disposto a conciliar seus
desejos e suas necessidades com os da outra pessoa.
Já li histórias em que se defende a ideia de que as inteligências arti ciais
merecem ter direitos dentro da lei, mas quando observamos as questões
losó cas mais amplas vemos que existe uma realidade mundana que essas
histórias não levam em conta. É algo parecido com o modo como o cinema
descreve o amor em termos de grandes atitudes românticas, quando, a longo
prazo, o amor também signi ca a necessidade de discutir questões de
dinheiro e de recolher roupa suja. Portanto, a luta para conseguir direitos
civis para as inteligências arti ciais pode ser um passo da maior
importância, mas outro passo igualmente necessário seria fazer com que as
pessoas se dispusessem a se esforçar realmente para manter um
relacionamento com essas criaturas.
E, mesmo que não nos importemos com o fato de eles terem ou não
direitos legais, ainda existem bons motivos para tratarmos máquinas
conscientes de maneira respeitosa. Não precisamos acreditar que cães
farejadores de bombas merecem o direito ao voto para reconhecer que não é
uma boa ideia submetê-los a maus tratos. Mesmo que nossa única
preocupação quanto a eles seja sua capacidade de detectar bombas, é do
nosso interesse que eles sejam bem cuidados. Não tem importância se nós
queremos que as criaturas dotadas de inteligência arti cial devem
desempenhar papéis de empregados, amantes ou animais de estimação —
descon o que eles poderão cumprir melhor qualquer uma dessas funções se,
durante seu desenvolvimento, houver pessoas que sinceramente se
importem com o destino deles.
Finalmente, me permitam citar Molly Gloss, que fez um discurso em que
comentou o impacto que a experiência de ser mãe teve sobre ela como
escritora. Criar um lho, disse ela, “nos põe em contato, de maneira
profunda, inescapável, diária, com algumas questões que mexem conosco: O
que é o amor e como poderemos amar? Por que razão existem no mundo o
mal, a dor e a perda? Como podemos encontrar a dignidade e a tolerância?
Quem está exercendo o poder e por que está ali? Qual a melhor maneira de
resolver con itos?”. Se quisermos deixar grandes responsabilidades a cargo
de uma inteligência arti cial, precisamos achar boas respostas para essas
perguntas. Não podemos conseguir isso transferindo as obras completas de
Kant para a memória de um computador. É uma tarefa que vai exigir um
esforço equivalente ao esforço de pais que se dedicam de verdade.
A BABÁ AUTOMÁTICA PATENTEADA DE DACEY
Geralmente, sou incapaz de escrever um conto sobre um tema
encomendado, mas, em algumas raras ocasiões, dá certo. Jeff VanderMeer
estava editando uma antologia concebida em torno da ideia de um museu
com artefatos imaginários: artistas criariam ilustrações representando tais
artefatos e os escritores forneceriam textos descritivos para acompanhar
essas imagens. O artista Greg Broadmore propôs a ideia de uma “babá
automática”, uma “máquina sub-robótica programada para cuidar de
crianças”, e isso me pareceu um ideia que eu seria capaz de desenvolver.
O psicólogo behaviorista B. F. Skinner projetou um berço especial para
sua lhinha, e há um mito persistente de que ela cresceu psicologicamente
prejudicada, o que acabou por conduzi-la ao suicídio. É uma lenda falsa: ela
cresceu saudável e feliz. Por outro lado, vamos considerar o caso do
psicólogo John B. Watson, conhecido como o fundador do behaviorismo.
Ele aconselhava aos pais: “Quando sentirem a tentação de mimar seus lhos,
lembrem-se de que o amor maternal é um instrumento perigoso.” Ele
moldou o conceito de cuidados com crianças durante a primeira metade do
século XX. E acreditava que sua abordagem agia no melhor interesse da
criança, mas todos os seus lhos sofreram de depressão na vida adulta,
sendo que alguns tentaram o suicídio e um conseguiu.
A VERDADE DOS FATOS, A VERDADE DOS SENTIMENTOS
No m da década de 1990, assisti a uma conferência sobre o futuro dos
computadores pessoais, e o palestrante comentou que um dia seria possível
registrar de forma permanente cada momento da nossa vida. Era uma
a rmação ousada — naquela época, o espaço nos discos rígidos era caro
demais para permitir o armazenamento de imagens em vídeo —, mas
percebi que ele tinha razão: mais cedo ou mais tarde, seríamos capazes de
gravar tudo. E mesmo sem saber de que forma isso poderia ser feito, tive
certeza de que teria um impacto profundo na psique humana.
Intelectualmente, todos nós temos consciência de que nossa memória é
falível, mas raramente temos que nos confrontar com essa realidade. O que
aconteceria se pudéssemos ter uma recordação perfeita dos fatos?
De tempos em tempos essa questão voltava a meus pensamentos e eu a
examinava de novo, mas sem nunca avançar ou construir uma história em
torno dela. Memorialistas já escreveram muitas coisas eloquentes sobre a
maleabilidade da memória, e eu não queria apenas reciclar o que já tinham
dito. Então, li Oralidade e escrita, de Walter Ong, um livro sobre o impacto
da palavra escrita nas culturas orais — apesar de algumas das a rmativas
mais ousadas do livro terem sido alvo de questionamentos, ainda assim foi
uma revelação para mim. Ele me sugeriu que seria possível traçar um
paralelo entre a última vez em que uma nova tecnologia transformou nossos
processos de cognição e a próxima vez em que isso acontecer.
O GRANDE SILÊNCIO
Na verdade, há dois textos meus intitulados “O Grande Silêncio”, e somente
um deles poderia ser encaixado nesta coletânea. Isso requer uma explicação.
Em 2011, participei de um simpósio intitulado Transpondo o Abismo,
cujo propósito era promover o diálogo entre as artes e as ciências. Jennifer
Allora, artista que fazia parte do duo Allora & Calzadilla, era um dos
participantes. Eu não tinha o menor conhecimento do tipo de arte que eles
criavam — formas híbridas de arte performática, escultura e som —, mas
quei fascinado pelas explicações de Jennifer sobre as ideias que lhes
serviam de base.
Em 2014, ela entrou em contato comigo para saber da possibilidade de
uma colaboração minha com ela e seu parceiro, Guillermo. Eles queriam
criar uma instalação de vídeo com múltiplas telas sobre o tema do
antropomor smo, da tecnologia e das conexões entre os mundos humano e
não humano. Sua intenção era fazer uma justaposição de imagens do
radiotelescópio em Arecibo com imagens dos papagaios porto-riquenhos
em vias de extinção, que habitam uma oresta vizinha, e me perguntaram se
eu poderia escrever um texto em forma de legendas que apareceriam numa
terceira tela, uma fábula contada do ponto de vista dos papagaios, “uma
forma de tradução interespécies”. Fiquei hesitante, não apenas porque não
tinha nenhuma experiência com videoarte, mas também porque fábulas não
são o tipo de coisa que escrevo. Mas, depois que eles me mostraram algumas
imagens preliminares, decidi fazer uma tentativa, e nas semanas seguintes
tivemos uma boa troca de ideias sobre tópicos como glossolalia e a extinção
de línguas.
A videoinstalação resultante desse processo, intitulada “O Grande
Silêncio”, foi exibida na Fábrica O cina e Museu da Filadél a, como parte de
uma exposição da obra de Allora & Calzadilla. Tenho de admitir que
quando vi o trabalho pronto acabei me arrependendo de uma decisão
tomada antes. Jennifer e Guillermo haviam me convidado para visitar
pessoalmente o Observatório de Arecibo, mas declinei do convite, por
considerar que não precisaria disso para escrever o texto. Vendo as imagens
do lugar numa tela do tamanho de um mural, lamentei não ter aceitado.
Em 2015, Jennifer e Guillermo foram convidados a colaborar num
número especial da publicação artística e- ux, como parte da 56a Bienal de
Veneza, e sugeriram publicar ali o texto da nossa parceria. Eu não tinha
escrito aquele texto para ser lido isoladamente, mas ele acabou funcionando
muito bem mesmo quando removido do contexto para o qual foi produzido.
E foi assim que surgiu a história “O Grande Silêncio”.
ÔNFALO
O que hoje denominamos “criacionismo da Terra jovem” já foi o bom senso
em outras épocas: até os anos 1600, essa versão de origem recente era muito
bem aceita. Mas, à medida que os naturalistas começaram a investigar seu
ambiente de modo mais preciso, descobriram pistas que colocaram essa
suposição em xeque, e nos últimos quatro séculos essas pistas se
multiplicaram e se interligaram a ponto de constituir o desmentido mais
categórico que se pode imaginar. Como seria o mundo, imaginei, se nele se
con rmasse aquela suposição original?
Alguns aspectos eram fáceis de imaginar: árvores sem anéis de
crescimento, crânios sem suturas. Mas, quando comecei a pensar sobre o
céu noturno, tornou-se muito mais difícil responder satisfatoriamente a essa
questão. Grande parte da astronomia moderna se baseia no princípio de
Copérnico, a ideia de que não estamos no centro do Universo e não o
observamos de nenhuma posição privilegiada. Isso exprime justamente o
contrário do criacionismo da Terra jovem. Mesmo a teoria da relatividade
de Einstein, pressupondo que a física deve ser a mesma não importa a
velocidade com que nos movemos, é um prolongamento do princípio de
Copérnico. Pareceu-me que, se a humanidade fosse de fato o motivo da
criação do universo, a relatividade não deveria ser verdadeira — a física
devia funcionar de forma diferente em diferentes situações, e isso poderia
ser detectado.
A ÂNSIA É A VERTIGEM DA LIBERDADE
Nas discussões a respeito do livre-arbítrio, muitas pessoas dizem que, para
que uma ação nossa seja livremente escolhida — para que cada um de nós
seja responsável pela ação que escolheu —, precisamos ter a capacidade de
poder ter feito outra coisa nas mesmas circunstâncias. Os lósofos têm
discutido interminavelmente o que isso signi ca. Alguns mostraram que
quando Martinho Lutero defendeu suas ações perante a Igreja em 1521,
consta que teria dito “Aqui estou, e não posso ser diferente”, ou seja, ele não
poderia ter agido de outro modo. Mas isso signi ca então que não devemos
dar a Lutero nenhum crédito por suas ações? Certamente não achamos que
ele seria mais digno de elogios se tivesse dito “Eu poderia ter feito qualquer
coisa”.
Há também a questão da mecânica quântica e sua interpretação de
muitos mundos, que popularmente se entende como o fato de que nosso
universo está continuamente se subdividindo num número quase in nito de
diferentes versões. Sou agnóstico a respeito dessa teoria, mas acho que seus
proponentes encontrariam menos resistência se zessem a rmativas mais
modestas quanto as suas implicações. Por exemplo, algumas pessoas
argumentam que isso torna nossas decisões sem sentido, porque não
importa o que você faça, existe sempre outro universo onde você faz a ação
oposta, negando o peso moral de sua decisão.
Acredito que, mesmo que a interpretação dos muitos mundos seja
correta, isso não signi ca que todas as nossas decisões se cancelam
mutuamente. Se dizemos que o caráter de um indivíduo se revela nas
escolhas que ele faz ao longo da vida, então, de modo semelhante, o caráter
desse indivíduo se revela nas escolhas que ele faz em todos esses diferentes
mundos. Se pudéssemos, de alguma maneira, examinar a multiplicação dos
Martinhos Luteros por tantos e tantos mundos, teríamos de procurar muito
até achar um Lutero que não desa asse a Igreja, e isso acabaria nos
revelando algo sobre o tipo de pessoa que ele foi.
AG R A D E C I M E N TO S
Meus agradecimentos a todos os participantes das o cinas de Sycamore Hill
e de Rio Hondo pela leitura de meus primeiros esboços. Obrigado a Karen
Joy Fowler, Molly Gloss, Daniel Abraham, Benjamin Rosenbaum, Meghan
McCarron, Geoff Ryman, Moses Tsenongu, Richard Butner e Christopher
Rowe por suas sugestões em várias destas histórias. Obrigado a Jennifer
Allora e a Guillermo Calzadilla pelo convite para colaborar com eles.
Obrigado a Tim O’Connell por acreditar neste livro e a Kirby Kim por
acreditar em mim. E obrigado a Marcia Glover, por tudo.
S O B R E O AU TO R
© Alan Berner
Recursão
Blake Crouch
Piano mecânico
Kurt Vonnegut