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2021
Copyright © 2021 Thalissa Betineli
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É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL E PARCIAL DESTA OBRA, DE QUALQUER FORMA
OU POR QUALQUER MEIO ELETRÔNICO, MECÂNICO, INCLUSIVE POR MEIO DE
PROCESSOS XEROGRÁFICOS, INCLUINDO AINDA O USO DA INTERNET, SEM A
PERMISSÃO EXPRESSA DA AUTORA (LEI 9.610 DE 19/02/1998).
ESTA É UMA OBRA DE FICÇÃO. NOMES, PERSONAGENS, LUGARES E
ACONTECIMENTOS DESCRITOS SÃO PRODUTOS DA IMAGINAÇÃO DA AUTORA.
QUALQUER SEMELHANÇA COM ACONTECIMENTOS REAIS É MERA COINCIDÊNCIA.
TODOS OS DIREITOS DESTA EDIÇÃO RESERVADOS PELA AUTORA.
PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
CAPÍTULO 34
CAPÍTULO 35
CAPÍTULO 36
CAPÍTULO 37
CAPÍTULO 38
CAPÍTULO 39
CAPÍTULO 40
CAPÍTULO 41
CAPÍTULO 42
CAPÍTULO 43
CAPÍTULO 44
CAPÍTULO 45
CAPÍTULO 46
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
REDES SOCIAIS
Isso nã o é d e a d m ira r, p ois o p róp rio Sa ta ná s se d isfa rç a d e a njo d e luz.
2 Coríntios 11 :1 4
Dias atuais
Lucca, Itália
Medo e culpa foi o que senti. Tão profundos que não era capaz de
compreendê-los. Aguentaria o peso dessa cruz nos dias futuros, mas agora
não me esforçaria para desvendá-los.
Confuso, entrei na casa, guiado por sua mão. Ligou o abajur da sala.
A luz amarelada se derramou sobre a mesinha de canto, nos sofás e
poltronas, criando sombras contra as cortinas brancas da sacada no lado
oposto. Deixou-me sozinho ali, observei os porta-retratos com fotos de
formatura, de prováveis amigos.
Quem estava ali, o padre Armando ou o homem que silenciei por
tantos anos? Com uma mulher descrente, da ciência. Se analisasse seus
objetos pessoais, aprenderia mais sobre ela?
Não, não poderia conhecê-la de forma tão pessoal. A carnal era mais
simples.
Se ultrapassasse esse nível, seria o meu fim.
— Você gosta do silêncio. — Sua voz chegou antes dela, que
retornou com duas taças e um vinho.
Parado, sozinho na casa de uma mulher.
Quando perdi a cabeça?
Foi quando me sentei? Quando seus pés descalços me atraíram? Ou
na forma como se inclinou sobre a mesinha de centro e encheu ambas as
taças de vinho?
— Moro sozinho, me acostumei ao silêncio.
— Também moro, mas nem por isso fico em um silêncio
constrangedor desses. Parece que estamos prestes a cometer um assassinato.
— Uma ironia cruel, pois eu realmente estava. Mataria de vez o meu
celibato.
Ansiei desligar minha consciência. Deixar escapulir o meu senso de
certo e errado.
— O silêncio, às vezes, é bom.
— Para pessoas com mente pura, talvez sim. — Uma pontada de
deboche acompanhada do riso baixo.
Limpei o suor das mãos na calça.
Mônica me ofereceu uma taça.
— Não bebo — disse sem jeito perante seu sorriso indecifrável.
— Nunca bebeu? — Arqueou as sobrancelhas.
— Já bebi, só deixei o costume de lado quando decidi me tornar
padre.
— O que é mais um pecado para quem já é um pecador? — Alargou
o sorriso, insistindo na taça. Aceitei-a, relutante, dizendo a mim mesmo que
o álcool me ajudaria.
— Você não precisa fazer uma celebração com esse vinho, não
estamos em uma missa. — Não deixou passar a oportunidade de debochar.
Encarei-a.
— Você não necessita falar apenas de religião comigo.
— Desculpe, padre — enfatizou.
— Armando. — Um pedido vindo do meu íntimo. — Não me chame
de padre neste momento.
— Se arrependeu de ter vindo? Posso levá-lo embora, se isso
realmente o atormenta.
— Sim, me atormenta. Me aflige a compreensão de que cedi ao
desejo — confessei. Um vinco se formou na sua testa, surpresa com a
franqueza. — De que me adianta ir embora agora, quando não satisfazer o
meu anseio também me atormentará? Estou diante de uma encruzilhada,
qualquer caminho que eu tomar, me queimará.
— Então aproveite o fogo ao invés de apenas se martirizar, pad... —
Hesitou, sorridente. — Armando. Todos nós arderemos um dia, segundo a
sua crença, ou não?
Bebi um longo gole.
Por um átimo fechei os olhos, experimentando o gosto do vinho. O
líquido queimou minha garganta e esquentou o meu corpo.
— Dizendo assim, parece que acredita que todos irão para o inferno.
Os lábios na borda da taça, captando a minha atenção, tão erótico
para mim.
— Todos nós somos humanos, falhos, e segundo o que dizem, quem
peca primeiro arderá no inferno, ou não?
— Se há arrependimento. — Por que estávamos nesse assunto?
— Por que fazem Deus parecer tão severo? Ele deveria entender.
— Por favor... Religião não é um assunto que eu gostaria de
conversar agora — cortei-a, mas ainda assim fiquei refletindo sobre sua
frase.
Não acreditava que Ele era severo, ou que muito menos não
compreendia as falhas humanas. Pelo contrário, me aferrava nessa crença,
como se para aliviar um pouco a culpa.
— Desculpe-me. — Bebeu um longo gole, acabando com o vinho da
taça. Se serviu de mais, observando a minha ainda cheia. — E qual é o
assunto?
Desviei o olhar.
— Você está sem jeito.
— Não estou mais acostumado a frequentar a casa de mulheres.
— Talvez precise se acostumar.
Seu celular sobre a mesa de centro vibrou, acendendo a tela,
deixando à mostra o nome Vicenzo. Mônica não desviou o olhar de mim.
— Está incomodado?
— Quem é Vicenzo? — A pergunta saiu sem controle.
Ela mirou o celular.
— O meu erro.
Minhas suspeitas foram confirmadas.
Eu deveria recuar?
— Eu... — Hesitei pelo tempo que pareceu uma eternidade. — Por
que ligou?
— Ele quer atenção.
Fitei-a, surpreso.
— E irá dar? — Essa era uma das perguntas que, por mais que
fizéssemos, não desejávamos mesmo ouvir a resposta.
Não queria escutar, mas Mônica foi rápida.
— Não, não voltarei atrás do que disse. Não me envolvo com
pessoas comprometidas. Vicenzo foi um erro. — Semicerrou os olhos. —
Está com ciúme?
Estava. Isso foi um alerta.
— Preciso ir. — Levantei-me de supetão, tão apressado quanto as
palavras.
Dei as costas para ela, visando a porta.
Precisava fugir.
Como deixei tudo isso acontecer?
Era capricho contra dez anos construídos. Trocaria todos os anos,
o meu milagre... por sexo?
E o fato de ser Mônica, tão bela como um anjo, e tão maliciosa como
um diabo, tornava tudo mais tentador.
Antes que eu chegasse até a porta, ouvi sua voz.
— Armando. — Parou-me.
Fitei-a sobre o ombro, com um pedido silencioso que me deixasse ir,
que entendesse que eu não estava mais aguentando. Eu precisava de
respostas que nunca encontraria, enquanto ela não tinha perguntas, porque
não necessitava de respostas.
Éramos opostos. Eu seria o seu prazer passageiro, e ela o meu
pecado eterno.
Como lidar? Como suportar?
Como não tornar o carnal em paixão?
O corpo, o toque, o cheiro, as sensações, o conhecimento, a
intimidade. Uma vez conquistada, me arrasaria.
— Não posso — disse sôfrego.
— Podemos.
— Deixe-me ir.
— Eu o quero aqui. — Exigiu de mim o que meu âmago também
ansiava. Volvi-me para a porta. — Se sair da minha casa, saiba que não
voltarei a procurá-lo.
Era o que eu necessitava ouvir, mas não o que queria.
Saí da casa. O vento frio, os pingos grossos da garoa, o barulho
inquietante da chuva. Entretanto, travei, a porta aberta atrás de mim, o céu
tempestuoso à minha frente.
O fim da tentação.
O final. Mas por que não me sinto satisfeito? Por que anseio em me
abrigar ao invés de fugir debaixo da chuva?
Era o fim para ela, não para mim, mesmo que eu partisse.
Suspirei, exausto.
Que Deus me perdoe mais essa vez, pensei ao escancarar a porta,
avançar pelo corredor, retribuir o olhar pasmo de Mônica e a agarrar.
Segurei o seu rosto, me perdendo de vez no fogo que ela era.
Eu já estava caído, por que não pecar mais?
É q ua se im p ossív e l c onc ilia r a s e x ig ê nc ia s d o instinto se x ua l c om a s d a
c iv iliza ç ã o.
Fre ud .
— Pedi que não viesse — disse assim que a última pessoa, exceto
Mônica, saísse da igreja.
— Não gosto quando mandam, foi bom ver a sua surpresa. — Com
pura malícia, se aproximava. — Sabia que eu viria.
— E me constrangeu durante todo o tempo. — Sorriu, do outro lado
do altar.
— Se constrangeria só de pensar, minha presença não mudou nada.
Suspirei, encarando-a por alguns segundos.
— Pediu porque não quer que eu o veja com a batina.
— Pare.
— Ou temeu que eu fosse queimada ao pisar na igreja? — debochou.
— Não penso assim — murmurei, sem conter o sorriso ao pensar nas
comparações que já fiz.
— Fica bonito de batina. — Arregalei os olhos.
— Não fale assim. Respeite.
— Não faltei com respeito só porque elogiei.
— Não buscamos a estética.
— Se Deus não buscasse, por que os anjos são tão belos?
— Essa ideia foi criada por nós.
— Como pode ter certeza?
— E como você também pode ter? — retruquei.
Ela deu de ombros.
— Quando olho para você, tenho certeza de que Deus o escolheu,
além da devoção, pela beleza.
— Pare — implorei, retirando a batina e o colarinho. Guardei-os.
— Está incomodado.
— Sim, estou.
— Quer que eu vá embora?
Encarei-a.
— Quero que vá para casa comigo — confessei.
— Esperarei você lá fora.
Saiu em silêncio, mas, em minha mente, o caos reinava.
Temia ser visto... mas por quem? Era como se eu fosse um anjo
fugindo dos portões do Céu, tentando escapar da fúria ao desfrutar da
criação.
E não era o que eu estava fazendo?
Fadado ao fracasso, aceitando o sofrimento, afundando-me nele.
Organizei o restante das coisas, agoniado pela noção do errado, e fui
atrás de Mônica. Tranquei a igreja e avistei a mulher no carro, me
aguardando.
A cada passo, supliquei a Deus que me perdoasse. A batina já não
poderia mais conter a minha paixão por Mônica.
— Está feliz — sussurrei ao me sentar ao seu lado.
— Você não? — Deu partida.
— Deveria?
— Por que não? Temos tão poucos momentos na vida, deveríamos
desfrutar o agora.
— E o que seria o agora?
— Um momento em que podemos esquecer nossos problemas por
estarmos com quem queremos. — E com isso, ela arrancou um sorriso meu.
Abaixei a cabeça, sem graça, e assenti.
Estava fascinado pela face mais íntima que Mônica apresentava.
— Estacione longe — sugeri assim que avistei as quadras da minha
casa.
— Por quê?
— Seria estranho um carro de mulher na frente da casa de um padre.
— Está com medo de continuar? — Fitou-me pelo canto do olho.
Anuí, sem vergonha de mostrar minha fragilidade.
— Estou com medo do que temos pela frente.
— Quer parar? — Estacionou, se volvendo na minha direção.
De verdade? Já não me via retornando a vida de antes.
— Não, não mais.
— Eu também não. — Sorriu radiante. — Vamos. — Desceu do
carro.
Segui-a, olhando ao redor como um criminoso, o coração apertado
no peito e a respiração suspensa até cruzar a entrada da minha casa e nos
refugiarmos lá dentro.
Parada no meio da minha sala, retirando o casaco como se estivesse
confortável, me peguei fascinado.
— O que foi? — indagou, surpresa.
— Não nos imaginava assim...
Jogou o casaco para o lado, retirando os sapatos.
— Assim como?
— Você... — Senti vergonha.
Dei as costas e depositei o casaco no gancho, larguei os sapatos no
canto e fui até ela. Mônica já estava relaxada, deitada no meu sofá.
— E como eu parecia para você? — Retomou o assunto, zombeteira.
Desviei o olhar, sem coragem de manter o contato visual.
— Bem... — Refleti sobre a primeira vez que a vi. — Não pensei em
nada quando a conheci, já estava acostumado a manter distância.
— E como foi? — A malícia surgiu.
— Um homem não costuma falar das suas impressões. — Tentei
mudar o foco.
— Muito menos um padre. — Riu baixo. — E aqui estamos.
Neguei devagar, fitando minhas meias escuras.
— Pareceu vinda do inferno — disse de uma vez.
— Não estou perguntando sobre aquela noite na cabana. Quero saber
de agora.
— Agora? — Encarei-a, erguendo as sobrancelhas.
— Antes de nos envolvermos desse jeito.
— Acreditava que era frívola. — Fui franco.
— Frívola? — Alargou o sorriso.
— Você parecia não se importar com o meu sofrimento e nem com o
que era importante para mim. Tive a impressão de que esperava muito de
mim, mas também buscava o que poderia ter com outros homens.
— Vicenzo?
— Ainda fala com ele?
— Trabalho com ele. Isso incomoda você?
— Poderia significar algo a mais?
— Venha aqui. — Sentou-se, me dando espaço no sofá. — Não —
respondeu após eu me acomodar.
— Então não me preocupo.
— E agora?
— Agora o quê?
— Como eu pareço? — Sorriu.
— Mais real, de carne e osso, não tão inalcançável.
Pegou minha mão, colocando-a sobre sua face.
— Gosta de tocar em mim?
— Não apenas dessa forma — murmurei, sem graça. — Digo no
sentido de compartilhar a intimidade.
Aproximou-se até se deitar contra o meu peito, me forçando a relaxar
no encosto do sofá.
— Parece que você pensa muito antes de falar.
— E você, não?
— Pensar demais é um mal.
— Não pensar também.
— Iremos testar. — Riu.
— De que forma?
— Quero sair com você.
— Mas estamos saindo.
— Não desse jeito. — Se levantou, indo até um porta-retratos da
minha estante. Pegou-o, me mostrando. — Onde é?
— Cortona — respondi, ainda sem entender.
— É isso o que quero. — Os olhos iluminados. — Sair com você
sem esse seu medo de sermos vistos, sem que pense no celibato, pecado,
tormento ou julgamentos. — Vislumbrei ansiedade em seu semblante. —
Quero que se sinta livre ao meu lado.
— Por que está pedindo isso?
— Só o vejo sofrer. — Depositou o porta-retratos no lugar de volta.
— Sei que quer estar comigo, mas o quero completo. — Encarou-me.
— É um passo a mais que quer dar?
— Talvez. Quero conhecer você longe dessa melancolia.
— Isso a fará escolher? — questionei. Fugiu com o olhar, ciente ao
que me referia. — Responda — supliquei. — Caso contrário, negarei seu
pedido.
Sorriu, sem jeito, e volveu a me fitar.
— Poderia não sentir mais medo. — Ouvir sua voz frágil pela
primeira vez, repleta de receios, me surpreendeu.
— Qual medo?
Antes que respondesse, meu celular tocou distante.
— Alguém está ligando. — Tentou escapar.
— Não. — Segurei seu braço.
— É a sua mãe. — Espiou o celular no sofá, ao longe. — Não irá
atender?
— Mas...
Esquivou-se e pegou o aparelho, atendendo e me entregando.
— Armando — ela chamou assim que coloquei na orelha.
— Mãe.
O olhar afiado de Mônica em mim.
— Desculpe-me ligar já tarde. Está em casa?
— Sim. — Franzi o cenho. — Aconteceu alguma coisa?
— Seu pai não passou bem, estamos em Lucca.
— Em qual hospital? — Meu coração pareceu congelar no peito.
— Ele está estável, pode vir amanhã.
— Não — insisti, Mônica curiosa ao meu lado. — Em qual hospital?
— No mesmo que o tratamos há anos.
— Estou a caminho.
— Armando... — Desliguei, sem ouvir o resto.
— O que aconteceu? — Mônica já não sorria mais.
— Meu pai está no hospital — murmurei, agoniado.
— O que ele tem?
— Ainda não sei. — Olhei ao redor, um pouco perdido. — Só
preciso ir para lá.
— Calma. — Pegou minha mão, me forçando a prestar atenção nela.
— Dou uma carona para você.
— O que a minha mãe pensaria quando nos visse? — Ergui as
sobrancelhas.
— Sou médica, posso dizer que estava trabalhando quando encontrei
você. — Hesitou. — Ou posso dizer...
— Não diga nada para a minha mãe — pedi.
— Sua mãe não é burra, mas não falarei.
— Obrigado.
Calcei os sapatos, peguei o casaco de volta e, em poucos minutos, já
estávamos dentro do carro de Mônica, a caminho do hospital.
Em momento algum eu falei. Absorto em meus medos e
preocupações, só conseguia pensar no meu pai e em seu estado de saúde. No
que eu acreditava. No que eu estava fazendo.
Subi com Mônica pelo elevador, e tão logo chegamos ao andar,
avistei minha mãe na sala de espera. Veio ao nosso encontro, surpresa ao ver
Mônica.
— Armando. — Minha mãe me abraçou, sem disfarçar o olhar na
mulher ao meu lado.
— O que aconteceu? Onde ele está?
— No quarto, já adormeceu — explicou, tentando me puxar para
sentar, no entanto, não me movi.
— Irei vê-lo.
— Espere até amanhã.
— Não — neguei veemente.
— Vá — Mônica murmurou, entrando na conversa. — Só assim você
se acalmará.
Assenti, minha mãe aceitando a derrota, mas interessada na médica.
E essa retribuiu o olhar que lancei.
Iria confiar nela.
— É o quarto 402 — minha mãe me informou.
— Obrigado. — Dei as costas, vagando pelo corredor. O ambiente
me perturbava, evocava lembranças tristes, e quando avistei alguns quartos
com portas abertas e os doentes em seus leitos, compreendi o que Mônica
dizia sobre a morte: ela não era calorosa, muito menos aconchegante. Fria,
seca e muitas vezes impactante demais para assimilar. O que um descrente
sentiria perante a morte senão um vazio, que tomaria todas as suas
preocupações e momentos alegres? A vida se tornaria sem sentido. Essa era
a cruz que Mônica aguentou em silêncio quando veio me pedir ajuda.
Uma descrença que a fazia sofrer por conviver com a morte.
Ela não buscou uma crença, mas um pouco de paz.
Avistei o número do quarto e parei diante da porta, tentando
controlar a aflição. Não poderia perdê-lo, não aceitaria. Não quando tinha
fé, quando também sentiria culpa.
Abri a porta e entrei em silêncio para não acordar meu pai.
— Sua mãe te ligou, então — disse desgostoso, acordado.
— Pensei que estaria dormindo.
— Não gosto das camas de hospital.
Assenti, sem reação.
— Não precisa se preocupar. — Tentou me acalmar.
Fui até ele e me sentei na poltrona bege ao lado da cama.
— Não? — indaguei temeroso.
— Não — suspirou. — Os médicos ainda estão me examinando. Não
me enterre antes do tempo. — Tentou fazer uma piada.
— Não penso nisso. — E nem conseguiria imaginar essa situação. —
Há alguma suspeita?
— Veio ser meu médico ou conversar? — Fugiu da pergunta. — Se
houvesse, saberíamos. Não vamos sofrer antes do tempo.
— Tenho fé que voltaremos para casa. — Engoli o choro, mantendo
o sorriso de fachada. — Eu deveria ter me preocupado.
Deveria ter pensado no que aconteceu há dez anos. No que acreditei.
Sua recaída não seria minha culpa?
— Se preocupado com o quê? Não temos poder sobre o futuro.
Acreditava mesmo não ter?
— Temos sobre os nossos atos.
— Não, não sobre todos eles — refutou. — Já percebeu que quando
agimos, inúmeros acontecimentos ocorrem como consequência?
— Sim.
— Acredito nisso. Não apenas em efeitos ruins, mas nos bons
também. É mais tranquilizador pensar assim.
— É o que acha da morte? — Era difícil não voltar ao assunto.
— Não sobre a morte. — Encarou-me, com firmeza. — Mas sobre a
vida.
— Não a teme?
— A morte? — perguntou surpreso e riu. — E de que me adiantaria
temer? Todos nós morreremos, essa é a consequência de termos nascido,
algo por qual todos passarão, seja ele bom, mau, pobre, rico ou qualquer
gênero. Não devemos temer a morte. — Estendeu a mão na minha direção.
Segurei-a, acariciando sua pele manchada com pequenas pintas mais
escuras. — Nós devemos temer morrer e continuar vivo. — Estreitou os
olhos. — Morrer por dentro é um mal da humanidade. Uma morte dolorosa,
que demora mais do que qualquer outra.
— Não seria uma vida.
— Não, não seria. Está mais para um castigo. — Pausou, ponderando
se continuaria, o olhar me estudando. — Sabe do que sinto medo?
— Do quê?
— Que quem esteja no leito não seja eu... mas você.
— Não... — Espantei-me. — Por que diz isso?
— É feliz? — perguntou, direto. — Não me refiro a momentos
felizes, quero saber por dentro, se está feliz.
Encarei-o, os olhos tão parecidos com os meus, as rugas da idade.
O que eu responderia?
Sofri, porque não queria magoá-lo, tampouco mentir.
— Estou buscando a felicidade — murmurei.
— Não demore muito para encontrá-la, está bem? — Envolveu minha
mão com as suas. — Às vezes passamos a vida inteira buscando uma
felicidade que estava perto de nós.
Minha batina.
Mônica.
Suas palavras pesaram tanto, que me senti crucificado, sentado
naquela poltrona. A forma como ele me confortou, sem dizer uma palavra,
me fez querer desabafar.
Desviei o olhar, sem saber como agir, se era certo.
— Estou em um caminho difícil, eu sei — suspirei. — Tomei uma
decisão há dez anos por amor, só que agora encontrei outra forma de amor.
— Sofri ao dizer. Doeu como se facas transpassassem meu peito, o nó na
garganta ardeu e as lágrimas se acumularam. — Pai, eu... — Hesitei. Eu
estava ruindo diante dele? Meu queixo tremeu, e quando ergui os olhos,
vendo o seu sorriso de compaixão, perdi a luta contra as lágrimas. — Me
envolvi com uma mulher.
— Uma mulher? — Sorriu, me chocando.
Virei o rosto, mortificado.
— Sim. Uma médica. É tão errado — admiti. — Começou errado —
enfatizei. — Só que... esqueci-me de como era me apaixonar, e quando fui
tomado por esse sentimento, não consegui lidar.
— Como ela se chama? — Apertou minha mão.
— Mônica, é uma pediatra deste hospital e... — Olhei-o, angustiado.
— Ela não acredita em Deus.
— E como foi se envolver com um padre?
— Não sei — murmurei. — Talvez, por não crer, viu-me apenas
como um homem.
— Ah! — ele suspirou, como se fosse uma notícia maravilhosa.
Arregalei os olhos. — Então ela viu você como eu o vejo.
— Como assim?
— Como um homem, filho.
Meneei a cabeça, tentando negar.
— Não tenha medo — ele continuou.
— Mas eu tenho — lamentei. — Porque há mais, o que aconteceu
há...
— Não se responsabilize por tudo o que acontece ao seu redor. Não
há poder maior do que o amor, e se você o sente, não é maldade. E nem
errado.
— Mas, e você? — Saiu sem que eu controlasse.
— Estou feliz por saber que meu filho finalmente se permitiu ser
feliz, por isso, peço que não se culpe, não pague por falhas que não são...
— Não vamos falar sobre isso — cortei-o. Não havia palavras que
mudariam meus pensamentos.
— Mônica deve ser uma mulher incrível. — Aceitou o pedido.
— Ela é — suspirei. — É uma mulher decidida.
— Pelo jeito, decidiu por você.
Não respondi, o olhar fixo no dele por alguns segundos.
— Sua mãe sabe?
— Não, não quero dar esperanças quando não sei o futuro.
— Por que hesita em tentar?
— Há mais do que amor, pai. — Exasperei, limpando as lágrimas. —
Existe minha fé, meus motivos, todo o caminho. Sou um padre!
— É o meu filho mesmo antes de usar a batina. Não me importo com
tudo isso que citou, apenas com a sua felicidade.
— Eu serei feliz independentemente do que escolher. — Tentei
acreditar.
— Sou um velho, não demore muito. Quero ver a sua felicidade, que
vá nos visitar. Reformamos a casa. Quem sabe você não leva a médica para
que possamos conhecê-la?
— Ela está aqui — murmurei, fitando o chão.
— Por que não a trouxe para o quarto?
— Queria ficar a sós com o senhor, ela ficou com a mãe.
Ele riu, me chamando a atenção.
— Sabe que Ivette a encherá de perguntas. — Sorri. — Um dia a sua
mãe, quando ainda éramos jovens — contou, animado —, decidiu passar
uma tarde com a minha falecida mãe. Foram juntas para um vinhedo.
— Elas se davam bem.
— Ivette era uma filha para ela. Mas antes, antes de casarmos ainda,
as duas passaram essa tarde juntas. Quando chegamos. — Deu uma risada.
— Elas já haviam até escolhido os nomes dos nossos futuros filhos! Estava
tudo arranjado.
— Armando?
— É. Uma variação italiana de Amadeo, aquele que ama a Deus.
Tivemos você, que é amor.
— Então devo me preocupar com as duas juntas.
— É. — Gargalhou. — Quando voltar, elas terão os nomes já.
— Seria o sonho da mãe — resmunguei.
— Seria o nosso — afirmou, me encarando. — Se tivéssemos uma
menina, ela se chamaria Alessa ou Geo.
— Geovanna?
— Não, apenas Geo.
— Mas foi apenas um menino.
— Que valeu por todos os anos da minha vida. — Deu tapinhas na
minha mão e se acomodou na cama, bocejando.
— Irei deixá-lo descansar. — Levantei-me, um pouco mais calmo. —
Amanhã estarei aqui.
— Não fugirei. — Ele sorriu, balançando a cabeça.
— Amo você — murmurei. — Boa noite.
Ele respondeu baixo enquanto eu me afastava, e antes que eu saísse
do quarto, disse:
— Nunca se esqueça, o maior pecado é não viver o que Deus deu
para nós.
— Obrigado. — Atormentado por seu conselho, o deixei, voltando
pelo corredor frio de antes.
Ao longe, vi minha mãe conversando com Mônica.
Aqueles minutos com o meu pai trouxeram um pouco de conforto,
como se sua mão pousasse na minha cabeça e me desse uma aprovação.
Nã o é p ossív e l c onv e nc e r um c re nte d e c oisa a lg um a , p ois sua s c re nç a s nã o se
ba se ia m e m e v id ê nc ia . Ba se ia m -se num a p rofund a ne c e ssid a d e d e a c re d ita r.
Ca rl Sa g a n.
Existe paz no inferno? No meu sim. Uma paz que não senti nem nos
meus dias castos. No entanto, ela não é consequência do tormento? Se não
o experimentássemos, não distinguiríamos a paz.
Como nos levantaríamos, sem estar no chão? Como desejaríamos a
bondade, se não houvesse maldade? Um não seria elevado se o outro não
caísse. Dependentes para existir.
Logo, se há perdão, não é porque deve existir o erro e o pecado?
Uma ilusão para me confortar por estar deitado em um sofá, em
Cortona, relaxado após o orgasmo, com uma mulher adormecida contra o
meu peito?
Uma que possuí com tanta gana, que implorei por sexo anal, e a tive
de várias maneiras, pele com pele. Pecado com pecado. Não eram só nossos
dedos e pernas entrelaçados, mas suores e êxtases. Entretanto, ainda não foi
o bastante.
Era um prazer sublime ter Mônica, gozar com ela, ouvir sua
respiração descompassada, sentir meu coração prestes a explodir.
Suspirei, voltando a adormecer, para acordar com a ausência do seu
calor.
Sentei-me, olhando ao redor.
— Mônica? — chamei-a, vestindo as roupas.
— Estou aqui — anunciou sua presença.
Sentada na varanda dos fundos, ela contemplava o vinhedo.
— Acordou faz tempo? — Sentei-me ao seu lado, curioso com a sua
feição insondável.
— O celular me despertou.
— Por que não me acordou? — Queria colocar meu braço sobre seu
ombro, mas me contive.
Ela abraçou as pernas flexionadas.
— Já teve momentos em que gostaria de estar sozinho? — perguntou.
Enruguei a testa, preocupado.
— Quer que eu a deixe sozinha?
— Não. — Sorriu, pegando a minha mão.
— É por causa de antes? — Ocultei meu receio.
— O sexo? — Olhou-me, surpresa. — Não, foi mais prazeroso e
íntimo do que eu poderia imaginar. Estava até começando a acreditar em
bondade... como se houvesse sim uma explicação para acontecimentos bons.
— O que aconteceu?
— Vicenzo me ligou. — Congelei ao seu lado, incapaz de falar. —
Uma das minhas pacientes prematuras acabou falecendo durante a manhã.
Outra que perdi.
— Por isso está assim — lamentei.
Assentiu, angustiada.
— Você deve estar se perguntando o porquê sofro, quando já passei
por isso antes, estudei por anos e vivenciei muitas mortes. — Não me deixou
responder. — Também gostaria de entender. Acredito que seja porque antes
não me apegava às pessoas. — Olhou-me de canto, com certa cautela. — Um
erro que evitei tanto cometer.
— Talvez seja nossa aproximação. Em contato comigo, se pergunta
mais sobre a morte do que antes — sugeri, afagando sua mão.
— Sugere que estou questionando minha própria descrença?
— E por que não? Todos podem se questionar.
— Não deveríamos ter esse assunto, não depois de um sexo tão bom
— cortou-me com um suspiro. — Só que, exatamente por isso, parece mais
angustiante. Uma notícia dessas proceder o deleite.
Dei o seu tempo, calado ao seu lado.
Mônica continuou a fitar ao longe por alguns minutos, puxei-a contra
o meu peito, a abraçando, imaginando a sua desolação. Mesmo atormentado,
me culpando e sofrendo, eu acreditava em algo, e isso confortava.
A fé, mesmo nos momentos mais obscuros, é capaz de nos erguer e
nos mover. No entanto, e se ela não existisse?
Compreendi a falta de sentido da vida e da morte para Mônica, que
até então ela não tinha questionado, por não ter proximidade com a fé.
Comigo ao seu lado, crente, e por ironia, padre, ela percebeu o vazio.
Eu a fiz enxergar sua completa descrença ao mostrar minha fé. Não
importava onde estávamos, se era em Cortona ou no paraíso, existia a
amargura das crenças.
Queria ajudá-la, dar paz, independentemente se o assunto me
incomodasse.
Beijei o topo da sua cabeça, contente com a sua entrega nos meus
braços. Apertei-a contra o meu peito.
— Qual é a sua angústia? — sussurrei contra os seus cabelos. — Me
conte, já ouvi vários descrentes e os medos mais...
— Não me compare aos seus devotos, Armando. — Meu nome soou
ríspido. Estava voltando a se fechar.
— Não estou.
— Cada descrença é diferente da outra, assim como nossa visão de
mundo — murmurou.
— Então me conte algo para que eu possa ajudar — supliquei.
Ela não respondeu de imediato, o silêncio mais pesado.
— Estaria sendo maldosa ao pedir sua ajuda — confessou.
Queria ver seu rosto, mas ter suas costas repousando contra o meu
peito também me satisfez.
— Não, gosto de ajudar as pessoas.
— Eu também, mas de forma diferente — disse, irônica.
— Estamos juntos aqui — enfatizei.
Suspirou, cedendo, mas só falou após minutos.
— Depois que Vicenzo me contou que a paciente, Giulia, faleceu,
pensei no seu Deus.
— Por qual motivo?
— Questionei o significado de tirar a vida de alguém tão novo e
inocente. Como desejar Sua existência se, para isso, necessita assumir que
Ele é o responsável por essa decisão? Seria maldade, não bondade.
— Você atribui à morte um peso de maldade, quando só precisa
aceitar como é, uma passagem para um plano maior.
— Sem viver antes? Então, por que a fez nascer? — Mais dura.
— Na fé, acreditamos que há motivos que apenas Deus conhece e
que, juntos a Ele, compreenderemos seus ensinamentos.
— Parece tirar as palavras da Bíblia — retrucou, indignada.
— Não as tiro, aprendi com elas. — Relutei em lembrar os motivos
que tive como ensinamento.
Buscando acalmar os fantasmas de Mônica, eu reencontrava os meus,
velhos e esquecidos por baixo da batina.
— Isso o conforta? — Não estava convencida.
— Sim.
Confortou-me quando fiz minha escolha e arquei com ela, e queria
que continuasse, ainda mais com meu pai no hospital.
— E se não houver Deus? — Tentou mascarar a aflição da voz, mas
seus olhos, ao me fitar sobre o ombro, a relevaram. Buscava uma resposta
que a contrariasse.
E eu a dei.
— Que provas temos que Ele não existiu? Como nós e o mundo
existiriam, sem um Criador? Viemos da evolução? Mas então, por que há a
religião por tanto tempo?
— Uma criação do homem.
— E de onde veio essa criação? — Rebati com a mesma certeza com
a qual ela fazia as perguntas.
— A Bíblia não foi escrita por Deus, muito menos por aquele que
chamam de Jesus. Foram homens buscando um povo que acreditava mais em
um deus do que no imperador. — Por mais convicção que tivesse ao dizer,
estava angustiada.
— Mas para isso, Jesus precisou existir. — Entrelacei nossos dedos.
— Não a julgo por não acreditar. Às vezes, as pessoas têm fé e creem por
necessitarem de algo que as mantêm fortes perante o sofrimento e o medo. A
fé sustenta e dá um norte — confessei uma parte minha.
— Para você, o que é?
Mirei ao longe, pego por sua pergunta.
— Ambos. Acredito em Deus, em seus ensinamentos. Esse foi o
motivo que lutei tanto por me envolver com você. — E porque no meu
caminho eu tinha escolhido a batina. Anos no seminário, me preparando,
além da devoção. Era muito tempo para abandonar sem temer. Sentia tanto
medo quanto o Diabo em seu julgamento, no entanto, não contaria. Nossos
demônios nos mantêm racionais quando não os enxergamos. Levá-los para
a luz é trazer a loucura. — Creio que nossa estada neste plano é para nos
redimir, buscarmos uma forma de subirmos aos Céus... mesmo que eu vá
para o inferno. — Ela riu, deixando passar. Calei-me, me contendo.
Mônica percebeu.
— O que quer me falar?
Respirei fundo.
— Você teme mais a ausência de Deus do que Sua existência.
Balançou a cabeça, cansada.
— Temo minha própria descrença.
— Por isso está sofrendo agora, não é? Está comigo e busca entender
os motivos do nosso envolvimento, o porquê da felicidade, se há a desgraça.
— Uma explicação do por que na bondade, há a maldade — disse
seca e fria.
— Se refere à morte? — Ela pareceu relutar. — Quer aceitá-la?
— Depois de estar com você. — Um vinco surgiu no meio das suas
sobrancelhas. — Quero desejar que exista algo bom, um motivo honesto. E
que mesmo diante da tragédia, eu encontre um significado que me reconforte
como você se sente. Você me faz desejar uma fé igual a sua.
— Me vê como exemplo?
— Não, só é solitário pensar que de um momento para outro,
deixamos de existir e o que vivemos foi em vão. Pó que se torna pó, sem
propósito. Essa é a minha descrença. — Apertou minha mão. — Não aceito
que nossos momentos sejam em vão.
— Eles não são — afirmei, perplexo. Virei seus ombros, frente a
frente.
— Me diga no que acreditar — murmurou. — Fale que não é errado
eu não dar a devida importância à sua fé, não me sentir culpada.
— Não posso — desabafei, sofrendo com sua luta. — Não posso
implantar uma fé em você, da qual não acredita.
— Por que é padre?
Ri diante da pergunta.
— Não percebeu que agora não sou? Aqui só sou um homem. E
talvez eu não seja mais padre nem no futuro. — Doeu confessar.
— Então, ao invés de você me levar para a fé, eu o tirei da sua.
— Não. — Fui firme. — Usar ou não a batina, não mudará minhas
crenças, pelo contrário. Quero seguir por um caminho que sempre eleve
minhas escolhas.
— A fé é crer sem provas? É acreditar em algo sem certezas?
— Diferente da ciência — concordei. — Isso a torna ainda mais
bela. Crer que há Deus, que Ele veio por nós. Acreditar que está acima,
como um Criador cuidando dos Seus filhos. Muitas vezes, as mortes e
tragédias são consequências do nosso livre-arbítrio. Deus não ordena, não
impõe Suas vontades. Ele dá escolhas, e precisamos arcar com as
consequências.
Mônica refletiu, vidrada em mim.
— Mesmo que recaia em outros?
— Não controlamos... — Engoli em seco, a angústia começando a me
afetar. Não queria pensar. — Os efeitos colaterais.
— Ele deu liberdade para a Sua Criação — ela murmurou.
— Assim ela pôde evoluir — complementei sua ideia.
Sorriu.
— Desejo que minhas consequências não estraguem o que temos —
suspirou e se calou.
Franzi a testa, sem entender.
— O que poderia estragar?
— Já fiz isso ao questionar nossas crenças, não poderia... Não... —
Ela tentou dar um basta no assunto, no entanto, a mantive no meu abraço.
— Apenas me diga — insisti. — Está buscando realmente acreditar?
— Sim. Diante da felicidade, não suporto a ausência de sentidos,
quero que exista um depois.
— Então acredite, seja na sua ciência ou em qualquer outra coisa. É
sua decisão ter fé. — E antes que ela negasse, puxei meu crucifixo do peito,
o tirei e o passei por sua cabeça.
Ela sorriu, sem graça.
— É um milagre um ateu desejar crer?
Ri, negando.
— É um milagre ele ansiar por isso.
— E se eu tiver fé. — A vulnerabilidade deu lugar à malícia. —
Serei muito pecadora por desvirtuar um padre?
— Não estou aqui obrigado, não carregue essa culpa sozinha.
Mônica voltou a ficar aflita.
— E se eu necessitar de provas para crer? Pois na morte... não vejo
o que você fala.
— A prova é você. — Toquei no seu rosto. — É cada pessoa que
vive, é o mundo. Se quiser prova, abra a Bíblia pelo menos uma vez e a leia
sem criticar ou com um olhar cético. A fé já é a prova, crer em algo que
nunca viu é um milagre.
Ela emudeceu, abaixou a cabeça e olhou para o crucifixo.
— Estamos aqui por um motivo, é o que diz.
— Isso pode confortar você.
— Torna os momentos mais belos e menos trágicos. — Olhou-me. —
E a culpa menos pesada.
— Qual é a sua culpa?
A pergunta perdurou.
Mônica se levantou, fingindo não escutar, no entanto, antes de entrar,
respondeu:
— Queria contar agora, mas não quero estragar nossa viagem. —
Tinha pesar na sua voz.
— Não irá. — Eu estava atônito.
— Outra hora, outro dia, por favor. — Ela nunca tinha pedido desse
modo.
— Tudo bem. Pelo menos eu a ajudei?
Levantei-me.
— Sim. Em meio à descrença, você me mostrou uma fé que posso
crer. — Hesitou. — Agora vamos desfazer as malas. — E entrou na casa.
Segui-a, ajudando a acomodar as nossas coisas no quarto, arejar
cada aposento, e durante a conversa e organização, notei uma leveza que
antes não tinha, como um vestígio de tranquilidade nela, talvez um pouco de
fé. Não questionei sobre o que queria me contar, dei o seu tempo, e ao
entardecer, depois de andarmos por uma trilha entre as vinhas, nos
acomodamos na cozinha.
— Beberá comigo? — Aproximou-se, segurando uma taça.
— Trouxe vinho? — Ao invés de pegar a taça, enlacei sua cintura,
mantendo Mônica rente a mim, e me escorei no balcão.
— Sim, está no armário. — Sorriu, envolvendo meu pescoço com os
braços. — Abra para mim?
— Me dê um beijo — murmurei, recebendo um casto.
Afastou-se, abriu um dos armários e pegou a garrafa de vinho.
— Aqui. — Estendeu em minha direção.
Usei o saca-rolhas, o estouro me fez dar um pulo, seguido do riso de
Mônica.
— Obrigada. — Parou ao meu lado.
Enchi sua taça, deixando o vinho sobre a bancada.
— O que fará? — Espiei as panelas sobre o fogão. Mônica
bebericou o vinho, deixando a taça em um canto e começou a cozinhar.
Sondei-a por alguns minutos.
— Algo rápido, não sou a melhor pessoa na cozinha. Amanhã você
fará o jantar.
Assenti.
Havia algo em seu olhar que não soube dizer, só estava lá por
aqueles minutos em que se dedicava às panelas. Talvez fosse a forma mais
espontânea, ou o sorriso sincero, ou a total ausência de cautela e deboche.
Prendeu os cabelos em um coque, as bochechas coradas, e por um
átimo me olhou, o que bastou para que eu a puxasse e a prendesse entre o
meu corpo e o balcão. Com a mão em sua cintura, senti suas curvas através
do vestido solto, e com a outra sustentei sua cabeça erguida.
— Você está feliz? — Queria ter certeza do que via.
Encostei nossas testas, sem a perder de vista.
— O que acha?
— Acho que você não quer dizer as palavras que eu já proferi. —
Acariciei o contorno da sua mandíbula, mantendo-a presa.
— O que você falou? — Roçou nossos corpos, a malícia à espreita.
Ela sabia.
— Diga — insisti, trincando o maxilar, firme na decisão.
Suspirou, as mãos pousaram nos meus ombros, inclinou a cabeça, e
como se o inferno subisse pelo meu corpo, me incinerando, um paraíso de
fogo, a verdade transpareceu em seus olhos, seguida das palavras.
— Estou apaixonada por você.
Se fossem oferecidos o céu ou perdão, ainda assim escolheria a
paixão de Mônica. Esse era o meu paraíso.
"Pa ra Ad ã o, o p a ra íso e ra ond e e sta v a Ev a . "
Ma rk Twa in.
Queria que o meu envolvimento com Mônica não fosse errado e que
não afetasse tudo aquilo em que eu acreditava. Que não respingasse em meu
pai, nem na minha fé.
Deus era bondoso, não era?
Agarrei-me nessa crença, tentando silenciar os receios no meu peito,
mesmo que esses se tornassem tormentos na minha mente na primeira
oportunidade.
Mereço ser julgado por minha escolha?
— Como escolheu pediatria? — Minha mãe, cozinhando, me acordou
dos pensamentos.
Ajeitei-me na cadeira da cozinha, próximo de Mônica.
— Sempre gostei de crianças, de ajudar pessoas. E de alguma forma,
salvá-las — ela respondeu, me fitando.
— Algumas nem sempre podem ser salvas — minha mãe respondeu,
picando alguns vegetais.
— É, eu sei — murmurou.
— Mas assim como morrem, elas também nascem. — A indireta foi
para mim.
Ri, constrangido.
— Mãe, não precisa dar tantas indiretas.
— Eu entendo a vontade da sua mãe de querer netos — Mônica
interveio. — Ainda mais quando havia perdido as esperanças, não é?
Minha mãe a olhou por cima do ombro, o sorriso estampado no rosto.
— Tinha perdido quando Armando se tornou padre. Como não voltar
a sentir agora?
— Estamos nos conhecendo — argumentei.
— Quem sabe um dia. — Mônica alargou o sorriso. Encolhi-me na
cadeira, mortificado. — Não estou dizendo que teremos. — Suavizou.
— Nem brinque com isso. — Desviei o olhar. — E como está o pai?
— Voltei-me para a minha mãe. — Receberá alta?
— Os médicos disseram que em breve. — Foi sucinta, me
incomodando.
Essa perturbação durou todo o jantar, o silêncio estranho da minha
mãe, os olhares receosos de Mônica.
Afastei o prato, já sem aguentar.
— O que tem o pai? — Fui direto.
Minha mãe ficou sem reação.
— Armando... — Mônica tentou ajudar.
— Não, eu preciso saber.
Ela suspirou, olhou para a médica ao meu lado e balançou a cabeça.
Seus olhos se encheram de lágrimas.
— Não precisamos conversar sobre isso agora.
— Sim, precisamos — disse impassível.
— Armando. — Ela apoiou o cotovelo na mesa e a testa contra a
mão. — Sempre soubemos que poderia voltar. Sabíamos — lamentou. —
Nos agarramos às esperanças.
Mônica pegou minha mão sobre a mesa, apertou-a, como se quisesse
me confortar.
— O câncer dele está pior, não é? — perguntou no meu lugar.
— Sim — minha mãe suspirou em meio às lágrimas. — Melanoma.
A primeira vez foi descoberto no primeiro estágio, há doze anos. Tratou por
dois anos e melhorou.
— Sinto muito.
Ela sentia, eu me torturava.
Era um castigo? Foram minhas escolhas que resultaram no retorno?
— Não houve mais sinais? — Mônica continuou.
— Não agora. Notamos tarde demais.
Encarei-a, desolado, meus olhos cheios de lágrimas.
— O quanto está mal? — sussurrei.
— Os médicos disseram — mais lágrimas — que é metástase
cerebral. Desculpe-me, Armando, eu não sabia como contar.
— Nunca é fácil. — A mulher ao meu lado suspirou.
— Ele morrerá? — O nó na minha garganta ardeu, latejou e se
irradiou como um sufocamento para o meu peito.
— Talvez um milagre outra vez — falou, tímida. E emendou diante
do meu desespero estampado: — Não é sua culpa.
Não tive condições de continuar na mesa.
Levantei-me abruptamente, devastado pela noção de que meu
milagre... Minha culpa...
— Armando — Mônica me chamou, me seguindo.
Subi as escadas a passos largos.
— Quero ficar quieto — pedi.
— Não, não ficará em silêncio desta vez. Eu entendi o que sua mãe
disse! — Exasperou, me acompanhando até o quarto.
Adentrei, vendo-a parada na porta.
— Do que está falando?
— Suas escolhas.
— Minhas escolhas?
— O milagre. — Hesitou. — Sua batina foi o milagre?
Abri a boca, angustiado por pensar na situação.
— É meu milagre, mas também me trouxe tormentos — sussurrei. —
Só, por favor, não... — Dei as costas, a dor tão grande no meu peito, o
desespero me transtornando. Senti-me sem rumo, sem chão, sem controle
sobre meu corpo.
Ruí, me sentando na cama.
— Talvez o seu milagre tenha sido a medicina.
— Milagres são impossíveis para uma descrente. — Não consegui
refrear as palavras.
— Estou mais crente do que jamais estive, porque também preciso
— contradisse-me, se aproximando.
— Não...
Antes que eu pudesse escapar, Mônica parou na minha frente e se
agachou, segurando minhas mãos.
— Olhe para mim. — Obedeci, o sofrimento me sufocando. — Estou
tentando acreditar que nossas vidas são milagres — sussurrou. — E que
Deus é mais bondoso do que a maldade deste mundo. — Não respondi. —
Não precisa me dizer qual foi o seu milagre, porque compreendi, mas
entenda que somos humanos. — Apertou minhas mãos. — E talvez a
medicina também tenha feito a sua parte.
As lágrimas escorreram por minha face enquanto fitava o rosto
apreensivo de Mônica.
— Você confia mais na medicina — balbuciei.
— Confio mais em fatos. Talvez Deus tenha intercedido, talvez agora
Ele também possa, mas não se culpe por algo que é natural. — Sorriu,
amarga. — Como você já me disse. Não pense que é por estar largando a
batina, que Deus retiraria o milagre. Não é sua culpa. — Enfatizou: — Não é
nossa culpa.
Curvou-se, se ajoelhando, e beijou minhas mãos.
Abalado pela visão da sua cabeça abaixada, do contato físico, da
torrente de dor dentro de mim, não conseguia não jogar esse peso.
E não conseguia calar minha aflição.
— E se for... — lamuriei.
— Amar não é maldade. — Ergueu o rosto. — Escolher também não
é. Se confia tanto em Deus, não o julgue como um juiz irredutível, mas como
um Pai que olha com bondade para o filho, vendo o seu sofrimento e o
quanto as suas escolhas cobram um preço alto em sua consciência. — Sua
convicção transpareceu na voz. — Ele não faria a doença do seu pai retornar
porque largou a batina. O câncer, principalmente o melanoma, é muito grave,
e seu pai teve sorte na primeira vez. Já vi casos de pessoas que não tiveram
segundas chances. — Sorriu, triste. — Isso não é obra divina, é do nosso
organismo. Não me diga que Deus poderia criar o câncer, porque se for
assim, eu não poderia aceitá-lo como quero.
— Por... quê? — Pisquei devagar, aturdido.
Devastado, cada palavra como um chicote contra minhas feridas
internas, que sangravam. Os buracos latejando, meu coração gritando.
— Talvez Deus tenha nos unido.
Ri, perplexo.
— Não diga algo em que não acredita.
— Estou tentando confortar você, explicar que mesmo se não
tivéssemos nos conhecidos, seu pai poderia ainda estar naquele hospital.
— Nunca saberemos. — Minha voz saiu dura, pesada.
E amarga.
Um julgamento silencioso contra mim mesmo.
— Como também nunca saberemos o que é certo ou errado. Quero
acreditar que para tudo há um motivo, então não perca a fé em si mesmo na
minha frente. — Pausou. — Porque senão também perderei.
Afastei minhas mãos, abalado.
— Meu pai está morrendo, me desculpe se não posso corresponder
ao que espera.
Mais lágrimas escaparam.
— Não posso confortá-lo dizendo palavras bonitas. — Levantou-se.
— Porque é isso o que você faz. Sabe que não aceito a morte e agora você
também não. — Sentou-se ao meu lado e respirou fundo. — Posso abraçá-lo,
como alguém que quer tomar a sua dor. — Puxou meu braço. — A morte não
é fácil, nunca é, e as pessoas que pensam que acreditam, talvez, no fim,
também vacilem.
— Por que está sofrendo? — Olhei-a, confuso pela angústia dos seus
olhos que, mesmo profundos, ainda não se comparavam ao poço de tristeza e
medo em minha alma.
— Também estou assustada com a situação do seu pai — confessou,
o queixo tremeu, suas mãos me buscaram e antes que eu pudesse recuar, me
abraçou com força. — Eu sinto a perda por você — sussurrou no meu
ouvido.
— Não sinta as minhas dores — supliquei.
— Como não, se você faz isso comigo? — Afastou-se, segurando
meu rosto entre as mãos. — Quero um milagre também, mas em todos os
casos, estarei ao seu lado.
Desviei o olhar e afastei suas mãos, destroçado demais para
concordar.
— Ele morrerá em breve? — Ouvi-me perguntando o que temia.
— Não sei dizer. Talvez dure meses, talvez semanas ou dias. Tudo
dependerá do organismo do seu pai, mas...
— Mas? — Fitei-a de canto.
— Por ser metástase cerebral, é complicado dizer o quanto os
resultados poderão ser bons. Não sou especialista nessa área, não posso
afirmar e nem quero supor. Assim como você não pode se culpar.
— Não posso... — repeti em um lamento.
— Não. — Envolveu-me nos seus braços. Deixei-me ser levado,
beijado e embalado. — Não pode.
— Não me deixe. — Fechei os olhos, o rosto contra os seus cabelos
e o choro entalado. — Me culpar por isso.
— Não deixarei, não somos errados — sussurrou, me confortando,
alisando meus cabelos.
Permaneci abraçado com Mônica por minutos, em silêncio,
acalmando meus demônios, implorando para Deus que meus piores temores
não se concretizassem.
E que isso não fosse uma consequência das minhas escolhas.
— Vamos descer. — Mônica se levantou, me arrastando junto. —
Sua mãe também precisa de você.
— Sim — concordei a contragosto, seguindo-a escadas abaixo.
— Armando. — Minha mãe veio ao meu encontro assim que nos viu,
os olhos molhados e avermelhados. — Desculpe-me.
— Tudo bem. — Abracei-a. — Está tudo bem.
— Passaremos por isso, Ari é forte, seu pai vai melhorar.
A atmosfera, mesmo com todas as conversas banais que minha mãe e
Mônica iniciaram, se manteve um tanto quanto mórbida para mim. Pegava-
me em devaneios, recordando de anos atrás, de escolhas e de aflições.
E a cada vez que ambas me olhavam, na esperança de que eu também
conversasse, esboçava um sorriso falso para não trazer à tona como a noção
do estado do meu pai estava me corroendo.
O sentimento permaneceu, não apenas naquela noite, após minha mãe
ir embora e Mônica voltar para a sua casa, mas em todos os dias da semana
que se passaram. Um estado de choque em que, por mais que eu visse as
horas passando, ainda estava preso a determinados momentos.
Largar a batina.
Ficar com Mônica.
Meu pai doente.
Pontos que me sufocavam. Que me engoliam.
Cada visita ao hospital, fosse sozinho ou com minha mãe e Mônica,
me trazia fantasmas.
Só que eu não poderia dizer que Mônica era um lado ruim da minha
vida, não mais, quando, em toda a semana que se passou, ela permaneceu
comigo. No hospital, em casa, nas jantas. A cada horário vago.
Ela era o meu anjo em meio ao inferno.
Foi um conforto, sem usar palavras, mas através dos olhares e
toques.
A batina permaneceu guardada. Um substituto no meu lugar e a
desculpa da enfermidade do meu pai, me manteve um pouco menos
atormentado por me afastar da Igreja naquele momento. Logo, entraria com
um processo para solicitar minha desvinculação no Tribunal Diocesano.
Deixaria de ter fé? De ser devoto?
Não. A devoção por Deus não precisava de uma batina para ser
mantida, ela habitava dentro de mim, e continuaria em cada dia que buscaria
o perdão, para pagar por meus pecados.
E diminuir meus erros.
Duas semanas se passaram, e o estado do meu pai se manteve
estável. Ora ele conversava conosco, ora dormia por um bom período.
— Mônica virá? — Minha mãe se levantou assim que retornei do
quarto do meu pai.
— Não, precisou ir para casa, acho que... — Hesitei diante do olhar
de satisfação da minha mãe. — O que foi?
— Estou feliz por você.
— Não — suspirei, meneando a cabeça. — Acho que irei até lá,
levar um jantar. — Ignorei a fala da minha mãe. — Quer ir também?
— Não, logo voltarei para o hotel, ficarei só mais alguns minutos
aqui.
— Está bem.
— Já está acostumado com o carro? — perguntou, se referindo ao
carro que deixou comigo.
— Um pouco. — Abracei-a. — Boa noite.
— Boa noite. — Beijou minha bochecha, me seguindo com o olhar
enquanto me afastava.
No caminho, passei em um restaurante para levar o nosso jantar.
Faria uma surpresa, por mais que Mônica odiasse ser pega
desprevenida. Era mais uma coisa da sua personalidade que eu tanto
conhecia. Assim como sabia cada pinta, cada curva do seu corpo, as partes
que coravam, a forma como seus pelos se arrepiavam ou como sua
respiração acelerava.
Sabia como seu gênio às vezes era tempestuoso, e sempre impactante
com sua forma direta de lidar e ver a vida.
De como seu olhar era mais significativo do que muitas palavras e
como o seu sorriso malicioso era uma blindagem. E, também, um ataque.
Eu a amava.
Tão ligado a ela que me sentia em casa com a sua presença e se
tornou comum tê-la no meu quarto, jantando, almoçando, me acompanhando
ou me enviando mensagens.
Como poderia ser ruim?
Não.
Talvez Deus tenha me dado um anjo.
Bati à sua porta, a chave que me dera tinha ficado em casa. Demorou
alguns segundos até que ouvisse a chave girar, e prestes a encará-la com o
meu sorriso mais amoroso, me deparei com outros olhos.
Ou talvez tenha sido o Diabo me dando um demônio?
Encarou-me tão surpresa quanto eu, e diante do meu inferno,
compreendi que ela estava viva.
Os silêncios de Mônica, suas respostas vagas sobre a família, a falta
do luto. Tudo o que eu havia notado e ignorado, agora estava escancarado na
minha frente.
Enganou-me por todo esse tempo?
— Padre Armando? — Cecília estava tão espantada quanto eu.
Diante da tragédia que se tornou minha vida, não encontrei palavras, apenas
retribuí seu olhar, tão incrédulo.
Em meu calvário, fui jogado contra a minha cruz, meus tormentos
sussurraram que eu amava um anjo caído, que me levou consigo até o fundo
do inferno e lá me deixou sozinho.
Tod a a p a ix ã o te m o se u c a m inho d e c a lv á rio.
Cond e ssa Ma rie d e Be a usa c q .
Quando nos damos demais, às vezes não sobra nada para nós. E
nesse nada, um abismo escuro e profundo nos puxa para o desespero ao
refletir sobre o fim. Esse, visto de forma descrente, é o término, enquanto
para quem tem fé, pode ser o recomeço.
O grande problema não está nele, mas no apego. Como aceitar o
final de um amor que até então acreditávamos verdadeiro? O verdadeiro
pavor não está em findar, mas na imaginação do que poderia ter sido, do
que foi. A tristeza sentida é compreender a intimidade perdida e o que
antes era tido como seu, agora é desconhecido.
Em meios às minhas lamentações silenciosas, senti o fim.
Não do amor, mas do encanto.
Devorado pela raiva, me acusei de ter dado minha batina por
Mônica, de ter acreditado mais do que deveria.
Não havia volta, não perante a mentira sobre Cecília.
Mônica se divertiu com meu sofrimento?
Deu risada de mim quando encontrei sua mãe?
Era esse o seu objetivo? Levar-me ao limite para me humilhar?
Cego de ira e mágoa, tão sujo e decadente, parei antes que me
afastasse demais e a encarei.
— Não me acuse com esse olhar. — O seu estava avermelhado.
— Não me peça mais nada. — Minha voz saiu sem controle. — Não
tem esse direito.
— Nunca tive, mas sempre pedi. — Mesmo com palavras diretas,
faltava sua confiança de sempre.
— E agora eu já não estou mais disposto a aceitar.
— Me deixe explicar. — A tristeza transpareceu na sua feição.
— Explicar uma mentira? Me dará outras?
— Não queria ter mentido. — Juntou as sobrancelhas, balançando a
cabeça. — Queria ter contado.
— Faz parecer muito difícil ser verdadeira.
— Na situação que estávamos, era. E isso não era sobre você.
— Não? — ironizei, erguendo a voz, a testa enrugada. — Não me
envolvia? Me culpei por achar que sua mãe morreu! — acusei-a, dando um
passo em sua direção. — Lembra-se de quando e como nos conhecemos? Eu
não me esqueci dessa maldita noite durante meus tormentos. Me senti
culpado! Sequer pensou nisso? Nunca me pediu desculpas por me enganar e
eu nunca exigi. Você não teve consideração, me fez achar que era por tristeza
que evitava falar da sua mãe.
— Não era para ser assim — balbuciou, as lágrimas brotando, se
acumulando nas laterais.
— E como seria? Me explique! — Exaltei-me, os punhos cerrados,
os dentes trincados.
Desviou o olhar no átimo em que uma lágrima escorreu por sua
bochecha.
Tão perdida, parecia buscar respostas no vazio da noite.
— Queria me vingar. — Sôfrega. — Não negarei essa crueldade.
Não foi apenas contra você. — Olhou-me. — Também queria ferir... minha
mãe.
Ri, incrédulo.
— Você...
— Ao invés de pedir o divórcio. — Seu queixo tremeu, mais
lágrimas deslizaram, furiosas. — Ela arrastava meu pai no casamento,
presenciei sua tristeza enquanto minha mãe o traía. Meu pai tentou perdoá-la.
— As palavras saíram ásperas. — Eles tentaram, ainda a amava. Eu apoiava
o divórcio, entretanto, não me envolvi nas decisões. Até ela retornar para
casa e contar que estava apaixonada por um homem. — O final saiu em um
suspiro.
— E aí você agiu como o juiz e o carrasco.
— Não foi justo, eu sei! Senti raiva, também sou humana e sofri com
a minha família destruída! Meu irmão deu as costas, meu pai estava no chão
e minha mãe apaixonada. Quando retornei de viagem, encontrei-a
desacordada... A internamos, e depois, veio o divórcio. — Pausou, o soluço
escapou dos seus lábios e fez tremer seu corpo. — Minha família acabou.
— Ao invés de apoiá-los, você se voltou contra mim!
— Porque não achava justo você e ela saírem impunes. Estava cega
pelo ódio, perdi o amor que uma filha pode sentir pela mãe... A vi como uma
mulher maldosa e insensível. — Chorou, a mão contra os lábios. — Só que
agora, não é sobre o passado. Apaixonei-me pelo homem que você é, sei que
não é culpado.
Mesmo com seu pranto desesperado, com as lágrimas ardendo e o nó
na garganta sufocando o meu peito, não cedi.
Não desviei meu rancor.
— Quem você é para julgar o que é justo ou não? Deus?
— Deus não existe! Só nós podemos julgar o que é certo ou errado.
— Hesitou, vendo meu susto. — Não diga que está surpreso. Como acreditar
na bondade de Deus, se estou sofrendo de novo?
— Não coloque Deus nos seus erros.
— Meus erros... Meu erro foi apoiar meu pai?
— Seu erro foi julgar sua mãe — respondi seco, ela arregalou os
olhos. — Cecília errou ao trair, eu falhei ao não ver em como ela se iludia,
mas você — apontei o dedo, mais um passo na sua direção — julgou, se
meteu no relacionamento dos seus pais não como um filho imparcial, mas
como uma mulher nutrindo ódio pela outra, e me fez entrar nessa história, me
fez acreditar na culpa e na morte. Enganou-me e me levou a amar você, sem
nenhuma verdade.
— Eu fiz tudo isso? — rosnou.
— Você começou e acabou.
— O que mudaria se eu tivesse contado tudo ainda no início?
Ri, em cólera, incapaz de conter a fúria desmedida.
— Eu jamais teria me envolvido! — disse entredentes. — Não me
envolveria no meio de vocês duas!
— Apoiar o meu pai não tem nada a ver conosco.
— Você me envolveu quando disse que era vingança, quando me fez
sofrer.
— Mas você não a amava.
— Tinha consideração por Cecília!
— Você nunca me disse. — Recuou, perplexa, as lágrimas ainda
avançando por seu rosto.
O silêncio perdurou por alguns segundos enquanto, ofegante, eu
tentava voltar à razão.
— E você nunca me disse que sua mãe estava viva, nem que tinha
problemas familiares, ou que nutria tanto ódio pela mãe, sem entender que
um casamento é feito pelo homem e pela mulher. Ambos possuem culpa em
um divórcio.
— Não fale do meu pai!
— Não me acuse por ter sido ignorante por tanto tempo. Você julgou
e executou a sentença, e, com isso, me fez sofrer do início ao fim. Como
pode insistir em nós?
— Não vejo maldade nisso. — Fechou os olhos por um instante,
molhados pelo pranto.
— Como pode ser cruel e estar apaixonada?
Fitou-me.
Balancei a cabeça, indignado. Frustrado.
Decepcionado.
Tão abalado que até a ira me dava vontade de chorar.
— Volte para a sua casa. — Desviei o olhar. — Se resolva com a sua
mãe. Ela pode ter traído o seu pai, não ter pensado no casamento, assim
como pode ser insensível como diz, mas ainda assim, é a sua mãe! Estou
farto de vocês.
— Armando...
— Apoiar apenas o seu pai não a torna certa, nem odiar sua mãe.
Perdoá-los por serem humanos e me deixar ir embora é o correto.
Tentou segurar o choro, os lábios franzidos, os olhos inchados.
Dei alguns passos para trás, uma lágrima teimou percorrer minha
face.
— É pela mentira?
— Não é só por isso.
— Não pode me perdoar?
— Não — sussurrei, enfatizando com a cabeça. — Peça para Deus...
O Diabo brincou comigo.
— Não coloque o Diabo nessa situação — acusou-me. — Eles não
existem! Você tem fé, e me amou. Que Deus é esse que permite tamanha dor?!
— É o nosso livre-arbítrio.
— Então ele nos jogou e nos mandou tentar a sorte. — Foi dura. —
Desculpe-me, mas não vejo como você, não olho para o que vivemos com
desprezo ou vendo falhas. Não quero me castigar e...
— Não foi Deus quem criou o seu sofrimento, Mônica! Só você! —
No entanto, só Ele pode perdoá-la.
Fitei o céu, perdido na agonia, todo o meu ser ruía, cada célula
latejava de decepção. Um gosto amargo.
— Não buscarei perdão divino... se acha que é isso que eu preciso.
Meu pai está depressivo e sozinho, enquanto minha mãe aparece no meio da
noite pedindo para conversar. Queria ser bondosa, mas não sou.
— Seus problemas familiares são seus, não culpe Deus! Nossos
dilemas... — Aquilo pareceu dar um clique na minha mente, soou pela minha
alma. — São apenas nossos — declarei, como se finalmente pudesse
entender. — Agora percebo que estarmos juntos não é culpa de Deus nem do
Diabo, somente nossa.
Limpei a lágrima, ciente que mais uma rolaria.
— Você parece ser mais forte. — Riu, amargurada.
— Aprendemos a mascarar as nossas tristezas.
— Se há tristeza, há dor. Como poderia Deus criar isso? Estou
odiando esse Ser, se Ele for real — sussurrou, descontando sua ira em algum
lugar.
— Não quero mais conversar sobre isso. Irei embora.
— Há outro motivo também. — Ergueu a voz, me impedindo. — Que
milagre é esse que você teme que seja tirado de você? Deus é tão punitivo?
— Chega! — Quase gritei. — Culpa Deus por esse momento, quando
na verdade estou ganhando um presente por me afastar de você!
Ela se calou, abismada.
O silêncio perdurou por segundos, em que nos encaramos, até ser
cortado pelo som de gotas de chuvas.
— Acabou? — sussurrou, o desespero no timbre.
— O amor não, o encanto sim. É uma mulher com problemas
familiares que precisam ser resolvidos, e eu sou um homem que necessita
encontrar seu caminho de volta. — Senti o peso das palavras e fechei os
olhos. — Volte para casa e converse com Cecília. O rancor só machucará
você.
— Você também sente rancor por mim.
— E esse é o meu tormento. — Encarei-a, triste por estarmos cara a
cara, em nossa feiura.
Desabei os ombros, exausto.
— Queria ser como você imaginou, contudo, aos poucos
descobrimos os problemas e defeitos um do outro. Com isso, acaba o
fascínio, o que resta senão um amor que também se findará? — sussurrou,
melancólica, as lágrimas livres. — Sou de carne e osso, guardo rancor e me
vinguei, julguei e machuquei. O que pareço agora, despida das mentiras?
Não pisquei, as lágrimas rolaram, meu corpo sucumbiu ao tremor.
Com a respiração suspensa, o peito apertado e a dor querendo sair aos urros,
sorri, exprimindo a desolação da minha alma.
— É uma mulher, assim como Cecília. Vocês sofrem. Por mais que
esteja apaixonado, por mais que eu a ame — ela fechou os olhos —, não me
envolverei mais.
Desabou aos prantos, cobrindo o rosto, o choro convulsivo abalando
toda a sua estrutura. Seu real motivo era por mim? Ou era o desgaste
emocional? Finalmente estava expressando suas feridas em relação à
família?
Por um instante, senti compaixão. Talvez eu pudesse chegar até ela, a
abraçar, confortar.
Não!
No meu íntimo, ainda retumbava a mágoa. Por mais que seu choro
fosse minha fraqueza, me mantive decidido. Cobri os olhos com os dedos,
apertando-os e enxugando as lágrimas.
De tudo, ver Mônica desabar em seu desespero, foi o que mais me
devastou.
— É isso... — balbuciei. — Espero que encontre o seu perdão,
enquanto eu busco minha redenção.
Dei as costas e corri.
Corri, porque se eu vacilasse, acabaria cobrindo aquela mulher com
meus braços e me odiando por ter raiva na mesma medida que a amava. Por
saber o quanto ela foi cruel, e mesmo assim, sentir que me machucava mais
me afastar.
Sem rumo, vaguei por alguns minutos antes de retornar para o carro,
sem prender o choro, que percorreu minha garganta e saiu aos soluços. Os
olhos vermelhos e a roupa molhada, com os pingos cada vez mais grossos e
rápidos.
A chuva desabou junto com a minha noção de que fui enganado.
Estava sem Mônica. E sem minha castidade.
As sua s m á g oa s q ue im a v a m -lhe a a lm a c om o um a forna lha .
Vic tor H ug o.
Às vezes o que não foi dito dói e pesa mais do que as palavras. O
silêncio cria um abismo tão grande entre as pessoas, que não conseguimos
alcançar o outro lado, e a cada segundo, esse espaço é aumentado.
Vi esse silêncio nos olhos de Armando, o seu abismo quando me deu
as costas, e por mais que eu quisesse alcançá-lo, eu mesma aumentava o
buraco entre nós.
Sem fundo, escuro e sufocante.
A chuva me lavou, as lágrimas se uniram aos pingos enquanto fitava
a rua deserta, o choro subindo e descendo o meu peito, as mãos trêmulas e o
frio me assolando.
De todas as emoções que vi refletidas no rosto de Armando, a que
me devastava era a piedade. Mesmo com raiva, sentiu compaixão pelo meu
sofrimento, essa sua bondade me abalou.
Retornei para casa minutos depois, sem assimilar minha subida para
o quarto e nem o banho. No automático, me deitei, ciente de que não
dormiria.
Foi o teto que fitei durante a noite inteira, consumida pelas palavras
de Armando, por cada momento que tivemos juntos, por cada instante que
deixei passar em contar a verdade.
O trabalho durante o dia inteiro foi mais exaustivo, meu lado
emocional despedaçado se revelava nos meus olhos, a noção pesada de que
Armando não mais estaria comigo, e que tudo o que idealizara, se desfez em
minutos. Ainda assim, eu precisei manter minha postura de sempre.
Essa durou todo o caminho para casa durante a noite, até me deparar
com a minha mãe na porta, me aguardando.
— Não deveria ter vindo. — Fechei a expressão, irritada, o cansaço
da noite sem dormir se unindo à tristeza.
— Mônica...
— Deixe-me passar. — Defronte para ela, ergui a chave.
— Por favor, precisamos conversar. — Deu-me passagem, abri a
porta e antes que eu conseguisse fechar, ela a segurou. — Mônica!
— Quer conversar? — Enfrentei-a, cedendo. Dei as costas, sem me
importar se ela me seguisse ou não. Larguei a bolsa no aparador, tirei os
sapatos e de meias fui para a sala. — Estou cansada. — Ergui a voz. —
Então seja breve, pois será nosso último encontro. — Acendi as luzes da
sala, minha mãe parou debaixo do arco, sem tirar os olhos de mim.
Refutei a sua tristeza com o meu desdém e me sentei na poltrona,
apontando o sofá.
— Somos duas mulheres adultas, não precisa agir como se eu fosse
uma vilã — declarei.
— Não estou. — Sentou-se, atenta.
Fiquei quieta, mirando olhos iguais aos meus, a sensação de solidão
me engolindo.
Não queria ser como minha mãe.
Por isso, relutava em aceitar continuar a mesma, pois a antiga
Mônica era um reflexo da mulher em que se espelhou quando nova.
— Está decepcionada comigo — sussurrou.
Foi como uma bala, que me atingiu violentamente.
Sim, a decepção que eu sentia por minha mãe era como a que
Armando sentia por mim.
— Sim — murmurei. — Como não estar, quando me lembro de você
se confessando para mim que se apaixonou por um padre, contando sobre
ele... implorando minha compreensão enquanto o meu pai definhava em
tristeza? Quando quem sentiu o divórcio foi ele?!
— Não.
— Sim! Um casamento desgastado por suas traições! — acusei-a. —
E ele tentou levar! Como tentou! E você fez pouco do amor dele.
— Mônica. — Sua voz vacilou, os olhos se encheram de lágrimas.
Só quando as minhas lágrimas caíram, que percebi que também
chorava, que meu corpo expressava o meu desespero.
— Meu pai entrou em depressão, você destruiu nossa família.
— Eu sei.
— Como espera — ofeguei — que eu a perdoe? — Armando dissera
que era necessário o perdão, mas como?
— Eu sei. — Fungou, em um lamento, cabisbaixa. — Isso pesa na
minha consciência todos os dias.
— Você é a culpada! — E eu, por fazer o mesmo com Armando,
apunhalando-o.
— Sou, mas, por favor...
Dor. Raiva. Mágoa.
E muita fúria.
O meu choro era de tudo que me assolava por dentro, que me fazia
sentir o peito doer, meu estômago embrulhar, e o descontrole emocional
guiar minhas palavras.
— Percebe que não há diálogo? As chances se esvaíram quando
nossa família acabou.
— Família não é dessa forma.
— Não me importo com o divórcio em si, nem se o amor entre você
e meu pai acabou. É com respeito, e você faltou com ele quando insistiu em
um casamento para então largar tudo por uma paixão. Por atos
irresponsáveis, uma mulher sem pudor.
— Eu sou uma mulher! — Exaltou-se, desesperada. — Sou mãe, mas
também tenho anseios!
— Quando meu pai pediu entre o divórcio e a tentativa, e você
concordou em tentar, poderia ter recusado! — Alterei-me. — Deu falsas
esperanças!
— Se eu soubesse...
— Se soubesse, teria feito igual, não minta! E as traições?! A forma
como desgastou todos de casa?!
— É passado, Mônica, por favor. Eu sei que errei.
— E eu sei que está aqui para pedir um perdão que eu não sou capaz
de dar. — Fui dura, tão dura quanto as lágrimas que escorriam por minha
face, como a dor que latejava em meu peito e o desgosto que me corroía.
Não esquecia a tristeza do meu pai, as situações agoniantes antes do
divórcio.
— E ainda assim — balbuciou, a súplica em toda a sua presença. —
Eu continuo sendo a sua mãe.
Calei-me, o peso da palavra refreando a minha ira.
— Sei que está magoada, mas quero o seu amor de volta —
implorou. — Não podemos continuar assim, distantes.
— Nosso caminho não precisa ser igual, muito menos junto, quando
tudo o que você faz é me magoar.
— Peço perdão. — Inclinou-se para frente, os ombros desabados, as
mãos unidas contra o colo. — Arrependo-me dos meus erros.
Desviei o olhar, doía demais.
E queria que ela também sentisse, pois quando amamos alguém
demais e essa pessoa nos destrói, a mágoa é do tamanho do amor.
— Está me pedindo perdão? — Meus olhos cravados no chão. —
Quero que saiba — inspirei fundo, soltando o ar devagar, tentando me
controlar — que Armando largará a batina.
Encarei-a.
— O quê? — Uniu as sobrancelhas, sem entender.
— Quando você assinou o divórcio, logo após parar no hospital, fui
atrás do padre que você me contou. Transei com ele. — Minha voz, firme,
escondeu o caos dentro de mim. — Nos envolvemos.
— Mônica... — Perdeu a fala, chocada, os olhos molhados,
arregalados. No entanto, não previ que falar dele também seria uma tortura
para mim. Meu queixo tremeu, meu coração pareceu vacilar, em frangalhos.
— Era por isso que...
— Nos encontramos depois em Lucca — cortei-a, passei as mãos
pelas bochechas, limpando as lágrimas, e novas caíram. — E começamos um
relacionamento. Armando me ama, por isso, deixará de ser padre. A sua
presença aqui — rosnei —, me fez perceber o quanto eu fui cruel, e o fez ver
essa maldade minha. Novamente... — Silencie-me. Queria culpá-la, mas, no
fundo, essa parte era só minha culpa.
Ela cobriu a boca aberta, em choque ainda.
Sorri, amargurada, o rosto manchado de lágrimas.
— Pode me odiar agora. — Senti-me como a mulher que Vicenzo e
Armando rotularam: fria e maldosa.
— Não. — Balançou a cabeça. — Jamais a odiaria, é minha filha, e
mesmo depois de todo ódio e vingança, ainda a amo.
— Mas eu não mais.
— Estou aqui para reconstruir o que destruí, por favor... Sou humana,
também erro.
— Seus erros me machucaram demais. Às vezes, as falhas custam
muito caro para os outros, como eu... como Armando.
— Não foi intencional.
— Mas machucou.
— E sou tão má a ponto de não poder me redimir? Meu erro foi tão
grande que não posso pedir perdão? — Chorou baixinho.
Aquilo me abalou. Por um momento, vacilei.
Revesti-me, lutando para me manter firme, e me levantei.
— Estou apaixonada por Armando, e também por sua culpa ele foi
embora.
— O que espera que eu diga?
— Que assuma que não veio pedir perdão. — Encarei-a. — Que só
está com medo de ficar sozinha. — Porque se, de fato, viesse por
misericórdia, iria criar uma rachadura na imagem que pintara para odiar.
— Eu tenho medo, mas é sobre não ter o amor dos meus filhos.
Sua honestidade me fez recuar.
— Não consigo — confessei. — Não agora, não hoje. Estou muito
machucada.
— Ao menos pense, por favor. — Levantou-se. — Nutrir mágoa por
algo que já passou, quando poderíamos estar bem, quando eu poderia tentar
ser uma boa mãe... Sei que foi um divórcio turbulento, que os filhos sofrem
mais que os pais. Eu deveria ter pensado nisso, mas falhei como mãe.
— E eu falharei como filha, pois não poderei perdoá-la.
— Só peço um tempo.
— Então me dê esse tempo. — Encolhi-me. — Tudo o que fez foi se
vitimizar, dizendo estar mal, sem perguntar sobre a dor dos seus filhos.
Invadiu minha casa, retornou para a minha vida achando que eu correria aos
seus braços por um pouco de afeto.
— Eu sei...
— Mágoa não se desfaz apenas com palavras, leva tempo, e se eu
conseguir, avisarei. — Decretei o fim da conversa. — Não preciso
acompanhá-la até a porta, não é?
— Não, não precisa. — Enxugou as lágrimas, fungando. —
Obrigada. — Saiu da sala, devagar, como se esperasse uma reviravolta.
Nada aconteceu, o silêncio foi cortado pelo bater da porta e
desmoronei na poltrona, chorando por algo dentro de mim ter se quebrado
dessa forma, envolto de mentiras, traições e raiva.
A mágoa não passava, mesmo que eu amasse minha mãe. E chorei
também por Armando, por sua ausência, pela angústia de tê-lo machucado,
tudo se perdendo.
Todos nós sofríamos, e o perdão era parecido com a minha fé:
inalcançável. Toda vez que eu tentava, o rancor ou as feridas, me desviavam
do rumo.
Deveria ser imparcial com meus pais, acolher o pranto da minha
mãe, não julgar, porque eu também era falha.
Julguei, apontei o dedo, e machuquei outras pessoas no processo.
Ri, em meio às lágrimas, me recordando de como Armando já me
chamara de anjo. Sim, só que ele não sabia que eu tinha caído há muito
tempo.
Continuaria levando-o para o fundo comigo? Já não bastava fazê-lo
sofrer? Confrontar sua fé com a minha descrença?
Não, se algo de útil veio da conversa da minha mãe, foi ver que
éramos falhos, que eu estava em meio a uma tempestade que não passava, e
se eu a julgava como cruel, deveria mudar o meu jeito.
Não seria má com Armando.
Abriria mão para que ele seguisse seu caminho, mesmo apaixonada.
Não o envolveria nos meus problemas. Essas eram as nossas decisões, que
passariam por cima do amor como a mágoa fez.
Cobri o rosto com as mãos, aceitando a tristeza, o desespero e todas
as emoções que me fizeram prantear alto, um lamento do meu íntimo.
Por mais que doesse, que os dias seguintes fossem difíceis sem ele,
desejava a melhora do seu pai e que ele voltasse ao caminho que escolhera
como certo.
Não suportaria que a minha maldade tirasse a sua bondade.
Nã o há m a ior d or d o q ue re c ord a r a fe lic id a d e nos te m p os d e m isé ria .
Da nte Alig hie ri
Minha mãe estava certa. Sempre fugindo, buscava abrigo na fé, como
se ela pudesse me dar respostas fáceis, caminhos retos e me livrar da
escolha.
Com a base rachada, não tinha como me agarrar nela, forçado a
encarar meus tormentos, como fiz com Mônica ao retribuir seu olhar, imóvel
diante de mim, metros nos separando, e, ainda assim, era como se eu a
tocasse.
Calado, tentava engolir junto à saliva um pouco do desconforto do
peito.
Meu coração estava batendo ainda? Parecia ausente, roubando meu
raciocínio e me privando do controle.
Não existia mais bancos, paredes, vitrais ou qualquer coisa que
desviasse minha atenção. Por aquela mulher na minha frente, eram como se
espinhos se cravassem em minhas solas para me ferir. Sangrar, sem o
vermelho, lágrimas implorando para chegarem aos meus olhos que,
vidrados, se esqueceram de piscar.
Fascinado pela vulnerabilidade de Mônica, duelando com a sua
cabeça erguida.
— Por que pediu que eu esperasse? — A segurança que faltava no
semblante estava na voz.
Vacilei, evitei falar tão rápido, senão gaguejaria.
Inspirei.
— Por que está vindo nas missas?
— Não posso buscar Deus? — Foi um desafio, misturado com
amargura.
Elevei as sobrancelhas, acometido pelo seu jeito.
— Na última conversa, disse que era descrente.
— E você disse que me amava. — Toda a sua presença me acusou.
— Não menti sobre isso. — Agradeci por ter o altar na minha frente,
me sustentei nele.
— Está vestindo uma batina, reza as missas que eu vou e retornou ao
celibato. — Olhou ao redor, certificando-se que estávamos sozinhos. — Um
padre pode continuar a amar uma mulher? — Voltou sua atenção em mim.
— Você mentiu. — Não era assim que eu queria. Não, uma conversa
tranquila, um diálogo razoável. — Me enganou desde o início.
— E como poderia ser diferente? — Alterou-se, sem erguer a voz.
— Como eu poderia acabar com algo que estávamos vivendo — hesitou —,
quando estávamos felizes?
— A verdade não seria o fim.
— Sim, seria! — Avançou alguns passos, se engrandecendo. — Você
não teria se envolvido se soubesse que minha mãe estava viva. Fugiria do
sentimento como o Diabo foge da cruz e seria igual agora: nega qualquer
envolvimento, sem admitir que o afastamento é por causa da presença da
minha mãe, e não por eu ter mentido.
— E o que espera que eu faça, Mônica? Que ignore o que há entre
você e ela? Que eu fique cego pelas desavenças?
Balançou a cabeça, os ombros caídos, a postura de quem estava
indignada. Foi para o lado e se sentou em um banco, fitando as mãos.
Seu silêncio criou expectativas que, a cada segundo, aumentavam, me
engolindo e rasgando meus nervos.
— Cecília veio até a minha casa. — Ela levantou a cabeça, em
choque.
— O que minha mãe foi fazer? — A mágoa transpareceu.
— Pedir que eu perdoasse você. — Ergui o queixo.
Ela sorriu, irônica.
— O que isso mudaria para ela?
— É a sua mãe e quer a sua felicidade. — Ela negou. — Você
condena Cecília, enquanto ela foi até mim, buscando o seu bem.
— É por isso que quis conversar? — inquiriu, seca, se levantando.
— Não — suspirei, desviando o olhar para o altar. — Não é por
isso. — Abaixei a voz.
— Então, pelo quê?
Três palavras, com um peso tão grande que pareciam me prensar
contra o chão. E de lá, eu não conseguia me reerguer, afundado no seu
significado, na importância que tinha na minha vida. Como me arrancava da
calmaria, me dava cobiça, luxúria, sonhos.
Ressentimento.
Um imenso rio sem fundo e escuro, desolado e quieto. Era onde me
encontrava.
— Eu a amo — sussurrei, sem erguer a cabeça. — Ainda a amo,
mesmo escolhendo a batina.
— Por que escolheu? — Tinha a firmeza que me faltou.
— Eu... — A saliva desceu dolorosa e antes que eu raciocinasse, a
fitei, minha angústia esparramada pelas rugas na testa. — Eu não posso ficar
entre você e a sua mãe, seria egoísmo da minha parte só pensar no que sinto.
— E me julgar não foi egoísmo? — Arregalei os olhos. — Quando
sei que há mais sobre você do que me contou?
— Nada que pudesse machucar você.
— Ainda assim, não revela por completo o homem com quem dormi.
— Perdeu a fraqueza nos olhos, revelando a minha. — Seja franco,
Armando. Nunca esteve certo do que queria, temia seu milagre acabar,
apavorado por um julgamento divino — pausou — e, mesmo assim, amou.
Na primeira oportunidade, se escondeu.
— Não diga isso. — Fechei os olhos, sua feição era como uma faca.
— Entendo não querer estar no meio de um conflito familiar e que
isso o faria se sentir culpado. No entanto, não fuja quando uma decisão é
necessária. — Sua voz soou mais próxima. — Esperei você naquela noite e
em muitas outras. Uma mensagem, um olhar, uma simples presença. Você
fugiu de dar um fim decente ou de ter uma conversa clara.
— Nós conversamos. — Encarei-a.
Subiu os degraus.
— Não, você conversou, enquanto eu pedia desculpas por uma falha
minha. Errei, e mesmo que não me arrependa, pois sei que se tivesse
contado, não teríamos vivido momentos tão bons, pedi perdão. Sofri quando
vi a sua dor — meneou a cabeça, estremeci diante da forma como me mirou
— e presumi que você não suporta mentiras e omissões porque sobrevive em
uma delas. — Sua acusação arrancou os últimos pregos que seguravam
minha sanidade.
Perturbado, dei um passo para trás.
— Entenda como quiser, se acredita que só tivemos uma conversa da
minha parte. Falhei como padre e como homem, não preciso que me aponte o
dedo quando conheço meus demônios — disse sôfrego. O tremor da minha
voz não confessou nem uma ínfima parte da opressão no meu peito.
— Pare de se esquivar! — Exaltou-se. — Quanto mais você se
esconde deles, maiores ficam!
— E como quer que eu não fuja? — Sua alteração foi o meu gatilho.
Transtornado, botei para fora. — Se quando eu decido largar a batina por
você, pronto para entregar meus anseios e traumas, recebo mentiras em
troca?
— Não é só isso — retrucou.
— Sim! Tem a ver com Cecília. Como posso proceder quando
participei dos problemas da sua mãe? — Ofeguei, meu corpo tremia, o suor
brotava com a mesma aflição que as batidas aceleradas contra meu tórax.
Abaixei a cabeça, me sentindo incapaz de expressar meu desgosto
desmedido. — Se eu pudesse esquecer a mentira, apagar os desencontros...
Por puro egoísmo, só para poder ter você, como vislumbro em todos os meus
sonhos... Eu faria. — Aquilo doeu como uma chicotada, dilacerando a carne
mais profunda. Seria possível fazer sangrar a alma?
— Armando...
— Me escondo porque mesmo com a batina, quero você. Refugio-me
nos motivos de não conseguir perdoar, que, sim, fazem parte de um passado
desconhecido para você. Ainda estou machucado e nunca me perdoarei por
só ter visto o meu milagre. — Minha voz falhou.
Uma lágrima rolou furiosa pela minha bochecha e pingou no altar,
não a contive. Nem as outras que a seguiram.
— Do que está falando? — Mais do que assombro, era receio.
— Ainda namorava quando escolhi ser padre. — O ar que puxei pela
boca não foi suficiente. — O perdão mais difícil não é aquele que damos
aos outros, mas a nós mesmos. Não me perdoo pelo passado, por amar
você, por não viver essa paixão. Preciso me confortar com a fé, mesmo
vacilando na crença da bondade.
— Não diga isso.
— Julgue-me. — Precisei testemunhar seu abalo, os olhos me
devoraram, urgentes, a tensão explícita em cada membro do seu corpo. —
Me condene como eu faço em todas as noites que sinto sua falta, se isso
aliviará o seu fardo. — O verde incandesceu pelas lágrimas que deslizaram
livres, marcando seu rosto. — Diga-me — supliquei. — O que eu poderia
fazer? Entre mim e a sua mãe, quero que a escolha. — As palavras saíram
firmes, sem mostrar a ruína que eu estava por dentro.
Ela recuou, como se tivesse recebido um tapa.
— Está perdendo a sua fé? — O pavor no tom, em cada lágrima que
escapava dos cílios e percorriam, impetuosas, até o final do seu rosto, o
queixo que tremeu, a forma como abraçou o próprio corpo.
Sua consternação se equiparou a minha.
Chorei, lágrimas furtivas, partes do meu desespero. Curvei os
ombros para frente, pesado demais para sustentar a noção, encontrar
conforto pelo que estava por vir. E em como chegou tão rápido como uma
colisão, me atordoou.
Derrubado pelo que meu coração sussurrava, dei a ele minha voz.
— Perdoo você, Mônica. — Cada pedaço do meu ser ardeu no pior
dos infernos. — Tinha decidido mentir por ser mais fácil. Mas... — Cada
pilar que me sustentava começou a desabar. Um por um, o som oco era do
meu coração, o vazio, a sensação do meu espírito. — Ao expor meus
tormentos para você — precisei tomar fôlego, as lágrimas estavam me
afogando —, eu também expus minha dor e acabei com a fúria que sentia. —
Soergui minhas sobrancelhas, o vinco no meio delas, os lábios curvados, as
mãos apertadas. Tão apertadas quanto o nó na minha garganta, ardente.
Pisquei devagar. Imóvel, Mônica parecia perder a lucidez. — A mágoa que
sentia por você se foi, pois entre ela e o amor, ele ainda é maior. — Sem
sustentação, o colapso escapou através do meu soluço de pranto. Lágrimas,
muitas, irrefreáveis. — A perdoo, porque você não pede desculpas por se
arrepender, mas por me amar. Como posso julgá-la se também erro?
O silêncio caiu sobre nós.
Olhos nos olhos, a atmosfera tão abafada e quase palpável.
Ali, naquele instante, tudo o que vivemos passou diante dos meus
olhos. Cada malícia, cada encontro, insinuação, toque, beijo, sexo, saliva,
braços, pernas, mãos, lençóis, risadas, olhares. Desde os momentos que
escondemos o nosso eu até nos confrontar despidos de defesas.
Seu choro cortou o silêncio antes que seu corpo entrasse em
convulsão, inclinado para frente, as mãos cobrindo a face, sua estrutura
tremendo com os soluços.
Deus, como essa mulher consegue me tocar dessa forma? Me levar
da ira à compaixão, e dos gritos ao avanço urgente para além do altar,
ultrapassar nossa distância e me colocar diante do seu desespero?
Peguei-a nos meus braços, sua cabeça contra o meu peito, minhas
mãos nas costas que conhecia cada pinta, no calor do nosso contato, íntimo,
sem intenções. Um conforto que só quem amava poderia dar. Seu choro
atingia cada célula minha como uma corrente elétrica que arrepiava e dava
curtos-circuitos no meu cérebro. Desligado, somente com o coração eu a
amparei.
Beijei o alto da sua cabeça, afagando os seus cabelos, que escaparam
do contato quando voltou o rosto em minha direção, os olhos avermelhados,
rastros de lágrimas sendo trilhados por novas.
— Como pode me perdoar? — A surpresa com que indagou me fez
compreender a conversa com a minha mãe.
Como alguém que nunca sentiu o perdão, poderia dá-lo?
— Independentemente da minha escolha de me manter distante, ainda
amo você. Por que não perdoá-la? — sussurrei, meu rosto rente ao seu,
minha mão ainda em seus cabelos. — Por que não mostrar que o perdão é
mais libertador do que aparenta?
O riso escapou dos seus lábios, melancólico, levando consigo as
lágrimas.
— Você quer que eu perdoe...
Preciso me manter franco.
— Pode estar magoada pelo divórcio dos seus pais, ter rancor contra
Cecília, mas, entre continuar a nutrir esses sentimentos, escolha o perdão.
Faça como eu, que decidi perdoar ao invés de alimentar o ressentimento por
mais uma mulher que me fez sentir culpado.
— O que fizeram com você? — Antes que eu pudesse reagir, ela
agarrou o meu rosto.
Fechei os olhos.
Como senti falta desse toque, da forma como seus dedos macios
contornavam minhas bochechas.
— Não, não fizeram. — Cobri sua mão com a minha. — Foi o que
não me contaram e o que tiraram de mim.
— Deus não deu o seu milagre?
Encarei-a, nossos olhos ligados pelos oceanos de tristeza.
— É errado dizer que eu só ganhei com a batina. — Veio do fundo,
de um abismo dentro da minha alma, que ocultei de mim mesmo, por ser feio
e assustador. E foi ali, encarando-o, que o desamparo usurpou a fé.
Guiei sua mão até minha boca, beijando-a devagar, os olhos
fechados.
— Não me peça muito, por favor — supliquei em um sussurro contra
sua pele. — Queria poder desabafar, mas se me fere só de pensar no que
poderia ter sido e no que aconteceu, me destruirá dizer em voz alta.
Mirei-a.
— Obrigada — pela primeira vez, vi gratidão em seu olhar — por
me confortar de uma forma que eu não merecia.
— Todos nós merecemos.
— Quem confortará você, se não permite que eu o faça? — Virou a
mão e pegou a minha.
— Desejo que seja Deus. — Foi um medo.
— Está certo disso? — Mais lágrimas inundavam o seu rosto.
— Não, não estou — contei meu pavor. — Não estou mais certo de
nada — confessei. Sussurrávamos. — Minha única certeza é que preciso me
afastar de você.
— Escolher a batina não é um erro?
A minha demora para responder foi uma resposta.
— Sim — confirmei. — Só que agora não é mais uma fuga. É um
conforto por não poder estar com você.
— Não volte — implorou, franzindo a testa, a urgência em cada linha
de expressão. — Você vive o hoje com medo do passado e correndo do
amanhã. Não sabemos como será o futuro.
— Mas conhecemos o hoje, que é o momento em que me encontro
amando você e a empurro em outra direção. — Longe de mim. Ela negou, o
pânico de assimilar o fim. — Sua mãe me perguntou se imaginei um futuro
com você.
— O que disse a ela?
— Não precisei contar, mas falei para a minha mãe.
— O quê...
— Que estávamos em Cortona. — Sorri, mas essa curva expressou a
tristeza da minha alma.
— Só?
— Eu não era mais padre, não existiam omissões, nem culpa ou
pecado. Momentos iguais aos que tivemos lá. — O seu sorriso foi mais
triste. — Você também sonhou?
— Sim, mais do que isso. — Não piscávamos, absortos nos
sussurros.
— O que imaginou?
Negou com a cabeça.
— Se um dia pudermos reviver pelo menos um dos nossos momentos
sem culpa, poderei contar. — Não tinha malícia. Assenti, afastando minha
mão da dela, no entanto, ela a agarrou. — Sua fé é igual a de antes de nos
conhecermos?
Pego desprevenido, desviei o olhar.
No pecado, eu tive fé.
Na desesperança, vacilei.
Tinha mesmo fé? Ou estava desesperado em acreditar nas minhas
palavras, como se, repeti-las incontáveis vezes, as tornassem verdadeiras?
Engoli a angústia que rasgava minha carne.
— Tenho fé que Deus seja bom. — Uma lágrima escorreu, parte dos
pedaços do que fui.
— Não foi essa a pergunta que fiz. — Sua outra mão chamou minha
atenção, segurando meu queixo.
— Sou um padre fracassado por me apaixonar pelo pecado. Duvido
da minha devoção e confiei tanto na minha fé que não vi suas rachaduras. —
Mortificado pela confissão do que me rondava desde a volta do meu pai
para o hospital, quis me ajoelhar e ficar no chão até não existir mais nada.
— Não perca a fé, por favor — implorou, me surpreendendo. —
Mesmo na descrença, ansiei por encontrar algum sentido sem ser o vazio
existencial. Descobri você. Vacilando, continuo a vir, e hoje tive meu
perdão.
— Acredita em Deus? — Não escondi meu espanto.
— Acredito no perdão. Quem sabe, em algum determinado momento,
eu possa acreditar em Deus. — Hesitou. — Não perca sua fé, apenas dê um
voto de confiança na medicina. Seu pai talvez esteja nas mãos dela, e não
nas de Deus.
Fracassado demais para continuar, abaixei a cabeça.
— Obrigado.
— Pelo quê?
— Por me mostrar que, mesmo perdido, eu soube guiá-la de alguma
forma — suspirei aliviado.
Derrotei um dos meus demônios: o da mágoa.
O amor... ainda vivia no meu coração, mas não me faria voltar para
Mônica.
— Não sente mágoa?
— Não mais. — E era verdade.
— Abandonará a batina?
Irei? O que me resta?
O que é certo?
— Se eu abandonar, não será por sua culpa. Espero que também não
seja por descrença, mas por entender que não é o meu caminho. — Apertei
as pálpebras. — E que Deus me perdoe por isso.
Ela largou minha mão, recuando.
— Espero que você encontre o seu perdão, como fez eu encontrar o
meu.
— Tentará? — indaguei, curioso.
— Todo conflito é difícil demais para poder afirmar algo, mas você
fez a sua parte. — Sorriu, as lágrimas diminuindo. — Não podemos dar
certeza se não a temos. Queria poder sair daqui com você, mas se está
acabado, também aceito e não sinto raiva. — Fungou, a desesperança no
olhar. — Não estou magoada, você me ama, mas decidiu seguir o seu
caminho. Tentarei o meu perdão, Armando. Tente ser apenas um homem.
Fechei os olhos.
A verdade machuca quando jogada sobre nós.
Sorri, deixando meu amor partir.
— Boa noite, Mônica. — Admirei-a em toda a sua força, na
imponência com que ergueu a cabeça, retribuiu o triste sorriso e anuiu.
— Boa noite.
Foi embora, não mais como um tormento.
No silêncio da igreja, a solidão me abraçou. Sentei-me nos degraus,
grato por já ser tarde da noite, e me encolhi contra os joelhos.
Não serei mais padre, foi a decisão final. Não por Mônica, mas
porque me careciam certezas.
O perdão que dei, faltava para mim.
No entanto, renunciar à batina não seria fácil. Agoniado pelo medo,
me agarraria à crença de que Deus seria justo e bondoso comigo, aceitaria
minha decisão e manteria meu milagre.
Como continuar sem vocação?
Forçar não destruiria o que restava da minha fé?
Sofri com antecipação, devastado sobre os degraus, me embalando,
tentando me confortar.
A batina tinha sido minha companheira, como seriam os dias sem as
pessoas nas missas? Sem celebrá-las? A rotina criada por longos anos.
Não poderia usar algo que já não servia.
Por não caber, também doeu, por me entender, dilacerou.
Sem Mônica. Sem meu sacerdócio.
Odiei-me por todas as escolhas, e também por escolher o que
precisava, e não o que queria.
Olhei ao redor, os bancos da igreja pareceram retribuir, cada canto
me vigiando, cientes da despedida, lamentando pelo homem sem rumo, falho
e atormentado.
"Nunc a a a lm a hum a na surg e tã o forte e nobre c om o q ua nd o re nunc ia à
v ing a nç a e ousa p e rd oa r um a ofe nsa . "
Ed win H ubbe ll Cha p in.