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UMA “AFRONTA AOS IDEAIS LAICOS

DO ESTADO”: CULTURA VERSUS


RELIGIÃO NA PLATAFORMA ELEITORAL
DE UM PASTOR-CANDIDATO*

Emanuel Freitas da Silva**

Resumo: O objetivo desse artigo é analisar os argumentos postos em circulação por um


pastor, Elionai Muralha, candidato a deputado federal pelo estado da Bahia,
em 2014, e que se diferenciava de outros candidatos religiosos por defender não
uma maior participação, mas a retirada da religião da esfera pública. Por meio
do que considerava ser uma “denúncia” da reiterada exposição do “povo da
Bahia” às imagens de orixás nas vias públicas de Salvador, Muralha buscava
legitimar-se como um fiador da modernidade laicizante e não da intolerância
religiosa, apregoando uma defesa do estado laico. Nossa problemática, assim,
é a seguinte: a partir de que elementos um ator do campo religioso busca le-
gitimar-se com uma plataforma política encenada como laicizante? Como me-
todologia, utilizamo-nos da análise de conteúdo dos vídeos postados nas redes
sociais do candidato, sobretudo em seu canal no YouTube. Tecemos algumas
considerações acerca das relações entre religião e mundo moderno, a partir
da análise de dois dos “clássicos” da Sociologia, e breves considerações sobre
como têm sido analisadas as relações entre religião e política no Brasil con-
temporâneo.

Palavras-chave: Modernidade. Laicidade. Cultura religiosa.

A
disputa eleitoral de 2014, sem dúvida alguma a mais concorrida em número
de candidatos1 desde a redemocratização brasileira ocorrida no final dos anos
1980, reposicionou atores sociais, até então esquivados do jogo político, dentro
da disputa em curso, exigindo destes uma tomada de posição mais precisa em
–––––––––––––––––
* Recebido em: 23.09.2019. Aprovado em: 07.11.2019.
** Doutor em Sociologia (UFC). Mestre em Ciências Sociais (UFRN). Especialista em Ciên-
cias Políticas (UCAM). Bacharel em Ciências Sociais (UECE). Professor de Teoria Política
(UECE/FACEDI). E-mail: emanuel.freitas@uece.br

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relação Acesso eleitoral.
aos rumos do processo em: 07 abr. 2019.eles, podemos destacar atores
Dentre
do campo religioso, sobretudo do cristianismo evangélico, que têm tomado parte
nas diversas disputas eleitorais.
Nesse sentido, a atuação deliberada de atores do campo religioso na política eleitoral
nos permite compreender o ativismo religioso que, caucionado numa visão
negativa da política brasileira (à qual devem “salvar” por meio de sua partici-
pação), vai mobilizando-se na perspectiva de construção de uma nova cultura
política no país, crente no “dever moral” de interferir nos rumos das disputas.
Durante as eleições de 2014, no conjunto das candidaturas ao Legislativo por parte de
lideranças religiosas, em especial evangélicas, uma campanha em particular
despertou nossa atenção: a do pastor Elionai Muralha. Baiano, negro, natural
da cidade de Lauro de Freitas, candidatou-se ao cargo de deputado federal
pelo estado da Bahia. Filiado ao Partido da Renovação Trabalhista Brasileiro
(PRTB), pela coligação Por uma Bahia livre e justa, com o Partido Ecológico
Nacional (PEN), de estreita ligação com a Igreja Assembleia de Deus, Elionai
obteve apenas 444 votos (0,001% do total de votos válidos na Bahia, ficando
posicionado no 202º lugar).
Mas, qual a importância de proceder-se com uma análise de sua candidatura? Que
elementos ímpares deram a ela um relevo diferencial do que tem sido a pla-
taforma de outras candidaturas de atores do campo religioso (evangélico)?
Compreendemos que a dimensão cultural das práticas e dos discursos forne-
cem elementos por demais ricos para a análise sociológica, em especial por
produzirem e reproduzirem os elos de ligação entre os sujeitos sociais, mas
também por portarem importantes elementos de conflito, uma vez que olhar
para as formas como a “cultura” é apresentada ou referenciada aponta impor-
tantes maneiras de perceber o “social”.
Foi por esse motivo que decidimos analisar a campanha do referido candidato. Apre-
sentando-se com o slogan “#pelatransposiçaodosorixás”, Muralha valeu-se,
durante a campanha, da utilização de vídeos curtos, postados no canal Youtu-
be, nos quais se mostrava deslocando-se por lugares importantes da cidade de
Salvador: Dique do Tororó, Correio da Pituba e Praia de Itapuã; a escolha dos
lugares, ao que parece, foi devidamente pensada para aquilo que seria sua pla-
taforma: a retirada – que ele nomeava de “transposição” – de imagens/monu-
mentos de divindades cultuadas nas religiões de matrizes africanas, os orixás.
Denunciando aquilo que nomeava como uma “exposição permanente do povo da
Bahia” a objetos de culto afro, “disfarçados de obra de arte”, em prédios de
órgãos públicos ou em vias públicas, o que se constituía como uma “afronta
aos ideais de um Estado Laico”, o pastor-candidato buscava legitimar-se como
um candidato para além da religião, se assim podemos dizer, não elencando
os valores do cristianismo (pois não falava dos orixás como “demônios”2),

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mas os valores da própria Modernidade, que tem como um dos seus pilares,
exatamente, a laicidade. Não eram, pois, os valores cristãos que a “constante
exposição” do povo da Bahia, segundo seu discurso, afrontava, mas a própria
laicidade do Estado; um discurso, portanto, que buscava legitimar-se como
secularizante3.
Assim, sua promessa maior, senão a única, enquanto candidato era fazer a “trans-
posição das imagens dos orixás para os terreiros”. Em outras palavras, o
pastor-candidato prometia a seu eleitorado devolver a religião (aquela religião
representada pelas imagens dos Orixás) a um espaço que era o seu, o espaço
privado dos terreiros, retirando-a, assim, do espaço público onde, segundo
repetira inúmeras vezes, permanecia inadvertidamente impondo-se ao “povo
da Bahia”.
Foi assim que, analisando os vídeos pelos quais se apresentava ao eleitor baiano e fazia
com que este conhecesse melhor sua plataforma de campanha, fomos perceben-
do duas particularidades importantes: 1) Elionai partia de uma premissa que o
diferenciava, ao menos nos termos em que se davam seus enunciados, de outras
candidaturas de pastores ou mesmo de outras relações traçadas entre religião e
política no Brasil contemporâneo; sua “denúncia” pretendia apresentar-se em
termos “culturais”; era uma “cultura” – a do “povo baiano” - que servia como
“disfarce” a uma exposição permanente de objetos sagrados de uma religião, o
Candomblé, que o pastor estava a denunciar, e sua denúncia não se dava em ter-
mos religiosos ou espirituais, mas em termos culturais e mesmo elencando valo-
res tidos como próprios da Modernidade, conforme salientamos anteriormente;
2) era a primeira vez que observávamos um ator do campo religioso buscar le-
gitimar-se como candidato elencando a necessidade de “retirada” (transposição)
de uma religião (que não era a sua, reforce-se isso) do espaço público e defender
os ideais da laicidade do Estado, e não uma maior presença da religião no espaço
público, como o fazem outros atores desse mesmo campo. .
Partindo do ponto de vista do ator social em questão, pastor Elionai Muralha, pusemos
como objetivo desse texto compreender a linguagem por ele utilizada para le-
var adiante sua postulação ao cargo de deputado federal pelo estado da Bahia,
a partir de um deslocamento na sua posição de fala: a fachada, para pensar nos
termos de Goffman (2011), não parecia ser construída a partir de elementos
discursivos próprios ao campo da religião, mas a partir de um léxico advindo
do campo da Modernidade, encenando uma defesa do Estado Laico e da liber-
dade religiosa, valendo-se da “denúncia” da presença dominante de elementos
sagrados das religiões de matrizes africanas – as imagens dos Orixás – nos
diversos espaços públicos da cidade de Salvador.
Em vez de uma retórica pautada por uma lógica espiritual, por uma disputa entre “os
eleitos de Deus” e os “outros”, estávamos ali diante de uma candidatura que

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nos remetia à problemática da laicidade do Estado, da necessidade de se asse-
gurar-lhe o devido respeito, deslocando a religião para o espaço privado4. Isso
porque, ao que parece, o enfrentamento proposto por Elionai era “cultural”,
uma vez que encarar a presença em massa de elementos religiosos próprios
aos credos afro-brasileiros nas ruas de Salvador como “obra de arte” era algo
próprio ao mundo cultural soteropolitano, e era essa evidência, essa natura-
lização da presença de tais símbolos religiosos, o que o candidato estava a
denunciar nos vídeos reproduzidos para sua campanha.
Assim sendo, o objetivo desse artigo é analisar os argumentos postos em circulação pelo pas-
tor-candidato, identificando os mecanismos pelos quais buscou legitimar-se como
um religioso-candidato que se apresentava como candidato-não-religioso, dis-
tinguindo-se em meio a um universo cada vez mais numeroso de outros religio-
sos-candidatos nas eleições brasileiras, sobretudo para o Legislativo, que, ao contrá-
rio do religiosos aqui em questão, buscam legitimar-se como candidatos religiosos.
Como metodologia, utilizamo-nos da análise de conteúdo dos vídeos postados nas re-
des sociais do candidato, sobretudo em seu canal no YouTube, que havíamos
arquivado na pesquisa realizada durante o pleito de 2014 e que agora apresen-
tamos na oportunidade ímpar desta publicação. Antes dessa análise, porém,
teceremos algumas (rápidas) considerações acerca das relações entre religião
e mundo moderno, a partir da análise de dois dos “clássicos” da Sociologia, e,
depois, algumas também breves considerações sobre como têm sido analisa-
das as relações entre religião e política no Brasil contemporâneo.

AS RELAÇÕES ENTRE RELIGIÃO E SOCIEDADE COMO PROBLEMÁTICA


NA SOCIOLOGIA CLÁSSICA

Pensar as relações entre modernidade, religião e sociedade nos conduz a buscar nos clás-
sicos do pensamento sociológico importantes caminhos pelos quais podemos
analisar essas relações. Dois desses clássicos da Sociologia figuram como de
fundamental importância nesse exercício analítico: Max Weber (1864-1920) e
Georg Simmel (1858-1918). Cada um deles, a seu modo, apontaram possíveis
enfrentamentos entre as religiões e a ordem cultural em que se inseriam, em
especial o cristianismo, dada sua vocação soteriológica.
A contribuição maior de Max Weber para uma “Sociologia da Religião”, sobretudo
para uma “Sociologia do Protestantismo”, talvez tenha sido demonstrar como
esta prática religiosa, nascida junto com a Modernidade, encontrou o mundo
como seu espaço de realização par excellence, forjando-se numa ética intra-
mundana, fazendo do mundo material, visível, o espaço primordial da ação
dos “eleitos de Deus”. A religião transformava-se numa ética e, por isso mes-
mo, contrapunha-se às culturas nas quais se inserira.

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Se, pois, engendrava uma ética, uma forma de condução no mundo, o cristianismo
produzia uma forma de impor-se a tal mundo, às formas de via nele existentes,
à ética deste mundo, lutando contra ela no intuito de, vendendo-a, conquistar
mais sujeitos para a sua ética própria.
Nesse sentido, Weber afirma que, não podendo existir fora do mundo encontrado, a
religião tende a forjar com este uma relação de tensão entre dois modos de
existir (duas éticas): a do mundo e a sua própria, uma vez que, como religião
de salvação, aponta para um mundo vindouro que nasce do rompimento etio-
lógico com este mundo. Isso porque:

A ética religiosa interfere na esfera da ordem social em profundidade muito di-


versa [...] Quanto mais sistemático-racional é o modo como o mundo é moldado
em um cosmos, sob aspectos religiosos, tanto mais fundamental pode tornar-se
a tensão ética entre ele e as ordens intra-mundanas (WEBER, 1999, p. 386).

Em seu texto sobre As rejeições religiosas do mundo e suas direções, depois de diferen-
ciar as “religiões de ritual” das “religiões de salvação” – que apresentavam ao fiel
uma nova realidade, construída somente em torno de aspectos espirituais, fazen-
do aumentar assim suas tensões com o mundo anterior – Weber aborda a tensão
irreconciliável que parece haver entre as ordens sociais e políticas nascidas na
Modernidade com a ética, de pretensão universalista, das “religiões de salvação”:

Quando a profecia de salvação criou comunidades de fundamento puramente


religioso, a primeira força com a qual entrou em conflito foi a comunidade na-
turalmente dada, o clã, o qual temia sua desvalorização por aquela. Quem não
pode hostilizar os membros da casa, o pai e a mãe, não pode ser discípulo de
Jesus: “Não vim trazer a paz, mas a espada” (Mt 10,34) está dito nesse contex-
to (e, notar bem: apenas nesse). É certo que a maioria esmagadora de todas as
religiões regulamentou também os laços de piedade filial intramundana. Mas,
quanto mais abrangente e internalizadamente se concebeu o escopo da salva-
ção, tanto mais evidente se considerou que o crente deve estar mais próximo, an-
tes de tudo, do salvador, do profeta, do sacerdote, do confessor e do irmão na fé
do que da parentela natural e da comunidade matrimonial enquanto puramente
tais. Com a desvalorização, ao menos relativa, dessas relações e o rompimento
da vinculação mágica e exclusiva ao clã, a profecia, sobretudo onde se transfor-
mou numa religiosidade soteriológica congregacional, criou uma comunidade
social nova (WEBER, 1979, p. 377).

Assim, apregoando uma salvação a seus adeptos, é antes de tudo uma salvação do mun-
do que a religião soteriológica oferece a seus adeptos, que passam de seguido-

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res a fiéis. Tal salvação passaria por uma denúncia deste mundo, uma renúncia
a ele e, por fim, o empenho por pôr-lhe um fim, seja por meio de sua conversão
(dimensão ética) seja por meio da pregação (a dimensão missionária).
Segundo compreendemos, vemos aí Weber desnudar a desagregação com o mundo no
qual se vivia, acompanhada de uma necessária congregação, com outros fiéis
que igualmente denunciaram e renunciaram ao mundo, tomando tal congre-
gação ares sectários; por meio desse tipo de adesão a uma religião, o choque
com a cultura e com a ordem social torna-se inevitável, denunciando-a initer-
ruptamente, seguindo-se à sua vivência uma tensão fundante como condição
de existência de tais práticas religiosas, engendrando a construção de um novo
mundo cultural ancorado nos valores da crença religiosa, que institui novos
laços entre os sujeitos5.
Semelhante foi o caminho analítico traçado por Simmel na análise do fenômeno reli-
gioso na Modernidade. Para este, o cristianismo, religião do mundo moder-
no, constituiu-se desde seus primórdios tendo como fundamento a pretensão
de universalidade, acompanhada de uma intolerância frente aos valores e aos
deuses de outros povos. Na verdade, diz Simmel, esta foi a religião que pri-
meiro pretendeu estender-se a todos os povos, fazendo dos outros deuses não
apenas “deuses dos outros”, mas “deuses falsos”, contra os quais os cristãos
deveriam insurgir-se.

O famoso “quem não está comigo, está contra mim” representa um dos grandes
pontos de inflexão da história universal em matéria de Sociologia da religião. Se
alguém acreditava em Wotan ou em Vitzliputzli não significava, de modo algum,
que estava “contra” Zeus ou Baal: cada deus interessava apenas a seus fiéis, e
cada comunidade interessava apenas a seu deus. Assim, nenhum deus invadia a
esfera do outro, com a pretensão de ser aí venerado. O deus cristão é o primeiro
a estender seu reino até aqueles que nele creem e também aos que não creem
nele. [...] Quando o outro deus não é simplesmente o deus de outra pessoa, mas
um falso deus desprovido de existência, a tolerância é uma contradição lógi-
ca, tanto quanto a intolerância o seria em religiões particularistas (SIMMEL,
2010, p. 81-82).

Da leitura desse trecho depreender-se que Simmel analisava o cristianismo a partir


daquilo que lhe era fundante: a pretensão de uma universalidade. Em sua men-
sagem soteriológica de dirigir-se a “todos os povos” – “Ide pelo mundo e fazei
discípulo meu toda criatura” -, havia uma incongruência originária no cristia-
nismo, sem a qual ele não poderia existir, que o distanciava da mensagem plu-
ral tolerante, por assim dizer, do universo religioso do mundo antigo, contra
o qual ele, agora, se contrapunha. A ideia de uma irmandade universal exigia

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uma uniformidade de crença, o que produziria a condenação das mais diversas
práticas dos outros povos, incluindo desde seus modos de vida até seus cultos.
Anunciando “a verdade” que era o Cristo, os seus mensageiros lutavam contra
todo um mundo alicerçado em inúmeras mensagens/verdades.
Simmel, pois, segundo nossa leitura, assim como Weber, aponta as relações de tensão e
intolerância produzidas pelo cristianismo com o mundo social, sendo tais rela-
ções elementos constituintes do próprio modus operandi deste credo à medida
que conquistava novos espaços socioculturais. Sua análise da religião é im-
portante porque, nela, esta é compreendida como geradora de relações sociais,
formas de sociação que dão a tonalidade dos laços sociais produzidos pelos
indivíduos; logo, uma religião de confronto com o mundo cultural produz,
com este, relações tensas levadas a cabo pelos indivíduos.

AS DINÂMICAS DAS RELAÇÕES ENTRE RELIGIÃO E POLÍTICA NO BRASIL

A análise das disputas eleitorais nas duas últimas décadas permitiu à parte da produ-
ção das Ciências Sociais perceber um dado significativo: a presença cada vez
mais atuante de uma semântica religiosa6, seja para interpretar a disputa em
curso, seja para legitimar a agenda política de lideranças religiosas frente aos
candidatos mais competitivos (e, assim, legitimar as próprias lideranças reli-
giosas frente ao campo político), ou mesmo para inscrever a agenda moral dos
grupos religiosos na agenda dos candidatos competitivos. Estudos produzidos
neste campo têm destacado a forma como “os atores religiosos movimentam-se
e trazem a público sua linguagem, seu ethos, suas demandas, nas mais diversas
direções” (BURITY, 2008, p. 84), ressaltando as demandas por maior visibi-
lidade dos valores cristãos que têm sido publicizadas por tais atores, seja nos
momentos de disputas eleitorais, seja no cotidiano das Casas Legislativas7.
Se desde os trabalhos realizados pela Assembleia Nacional Constuinte, entre os anos
de 1987 e 1988, vimos uma deliberada atuação, por parte de evangélicos, por
“visibilidade para si diante da opinião pública” e uma “presença ativa na es-
fera pública propriamente dita” (PIERRUCI, 1996, p. 167), o que se veria no
ano seguinte, no envolvimento destes com a eleição de Fernando Collor de
Melo para a presidência da República (MARIANO; PIERRUCI, 1996), será
a partir de 2010 que veríamos “uma reposição dos temas na agenda política
da maioria dos grupos religiosos favorecendo as questões de cunho moral e
privado” (MACHADO, 2012, p. 34).
Por sua vez, Joanildo Burity (2015), ao tratar das dimensões da religião na cena pú-
blica, elenca como uma chave de compreensão para as atuais modalidades de
tal “encenação” as noções de “agência” e “antagonismo”. Para o autor, a atual
mobilização política de grupos religiosos em torno de agendas públicas que,

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de uma forma ou de outra, lhe dizem respeito, pode ser compreendida como
uma “agenda reativa” às inúmeras mudanças em temáticas que lhes são ca-
ras (comportamentos, direitos de minorias, cotas etc), “rápidas” por demais e
que, por isso mesmo, ameaçam “profundamente valores e práticas tradicio-
nais, provocando assim uma tentativa de reinserção de vozes religiosas” num
mundo cada vez mais tendente à secularização, tendo, pois uma “conotação
conservadora”, pois busca interromper ou reverter mudanças que tragam pre-
juízos à pregação religiosa; ou como uma “agenda construtiva”, por meio da
qual os grupos religiosos buscariam refazer suas posições para responder aos
desafios contemporâneos que lhes são impostos pela sociedade.
Completando o quadro de análise, Maria das Dores Machado (2015) destaca que, ape-
sar de já se verificarem interesses pelos processos eleitorais desde os anos
1990, os últimos anos têm apresentado um importante aumento desse seg-
mento nas Casas Legislativas, engendrando, junto com políticos advindos das
Igrejas Pentecostais, “uma posição de ativismo político com o propósito de
restaurar ou criar uma nova cultura política no país”, postando-se, tais polí-
ticos, como “farol ético da sociedade brasileira” (MACHADO, 2005, p. 48).
Isso porque tais lideranças veem-se como arautos de um “dever moral de participar da
política e de mudá-la”, em especial com o avanço de pautas identificadas com
os Direitos Humanos ou com pautas de minorias, representadas por tais seg-
mentos como “trevas” a serem combatidas pela participação política, encarada
nos termos de uma “batalha espiritual”:

[...] atentos aos movimentos culturais que questionam a ordem de gênero e a


moralidade sexual cristã e percebendo a importância crescente da normati-
vidade legal e do ideário dos direitos humanos na sociedade contemporânea,
pentecostais e carismáticos se esforçam para readequar seus discursos e suas
formas de atuação na sociedade mais ampla [...] associação da evangelização
a uma forma de batalha, na qual os que não seguem o cristianismo devem ser
combatidos. Ou seja, o discurso predominante tanto entre carismáticos como
entre pentecostais parece advir da teologia da guerra ao mal que, em diferentes
momentos da história ocidental, gerou perseguições às minorias culturais (MA-
CHADO, 2015, p. 65-66).

Estaríamos, pois, diante de um “neoconservadorismo evangélico” cuja bandeira maior,


que possui uma considerável atuação nas mídias digitais, seria a “salvação da
família”, em especial contra o que consideram ser uma “ditadura gayzista”
que busca “impor o seu estilo de vida” ao conjunto da população; e, assim,
essa bandeira torna-se uma “única” a congregar católicos e evangélicos na luta
“contra a ideologia de gênero” e a favor de um “político cristão”.

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Assim sendo, a atuação de atores do campo religioso na política eleitoral nos permite com-
preender o ativismo religioso conservador que, caucionado numa visão negativa
da política brasileira, da qual precisariam “libertar” o país, vai mobilizando-se na
perspectiva de construção de uma nova cultura política no país, crente no “dever
moral” de interferir nos rumos das disputas. Contudo, os argumentos autolegi-
timadores da candidatura de Elionai Muralha interessaram-nos exatamente por
não constarem nesse repertório já estabelecido entre candidatos advindos desse
campo. Vejamos, pois, a retórica enunciativa do candidato.

A VOZ DAS RUAS: “EM NOME DA LAICIDADE”, FORA COM OS ORIXÁS!

Como corpus de análise para este artigo decidimos analisar 4 vídeos, daqueles
disponibilizados pelo pastor, que tiveram o maior número de acessos no Youtube:
os gravados no Dique do Tororó, na Sereia de Itapuã, no Correio da Pituba e na
Praia de Itapuã, todos localizados na cidade de Salvador. Os quatro vídeos são
curtos, com duração em torno de dois e sete minutos, onde o pastor aparece
como protagonista. Há uma interlocução direta dele com o telespectador-eleitor,
fazendo-o falar diretamente a quem assiste aos vídeos.
Antes mesmo de apresentá-los e analisar seus conteúdos, importa que se ressalte o
tom em que Elionai conduz seus argumentos: o pastor toma para si o papel de
denunciante, alguém que fala tendo como fundamento o bem comum, a liber-
dade de crença, a defesa do estado laico. Seu discurso distanciava-se de uma
moldura religiosa (que o levava a referir-se àquelas imagens de outra maneira)
para postar-se como um defensor da liberdade de crença, que não permitiria a
suposta hegemonia no espaço público de imagens sagradas de um credo parti-
cular, o das religiões de matrizes africanas8.
Uma “razão superior” à sua própria crença, o protestantismo, o faz postar-se como de-
fensor de todas as crenças, da liberdade de todas elas, mas em âmbito privado.
Na verdade, interpretamos sua encenação como uma utilização de um imagi-
nário, “uma imagem que interpreta a realidade”, e que, no seu caso, valia-se
de um suposto “imaginário da cidadania” (CHAREAUDEAU, 2006), através
do qual abria mão da defesa da particularidade de sua fé – e denunciar o paga-
nismo daquelas imagens – para abraçar uma causa mais universal: a liberdade
de crença9 e a “transposição” daqueles elementos sagrados aos seus lugares de
culto naturais, os terreiros de Candomblé ou de Umbanda.
Nesse sentido é que, à medida em que assistimos aos vídeos compartilhados pelo
candidato, pareceu-nos um tanto quanto difícil localizar os argumentos do
pastor-candidato dentro de uma lógica ou de uma cosmovisão que pudesse
afirmar tratar-se de um “representante” evangélico. Se seus argumentos para a
“transposição dos Orixás”, como veremos mais adiante, não eram argumentos

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religiosos, como localizar sua fala dentro de algo que representasse (no sentido
que Bourdieu [2012] emprega o termo, de falar em nome do grupo, valer-se
da notoriedade do grupo para legitimar-se) o campo religioso evangélico? Em
nome de que e de quem ele falava?). Esta foi a pergunta que nos guiou. Onde
estava a legitimação de sua fala, se não era encenada em termos religiosos?
Tais questões eram pensadas e nos guiavam na interpretação e problematização dos
vídeos, uma vez que estávamos diante de um ator do campo religioso-político
que procurava, ao mesmo tempo, ser legitimado como um representante de um
segmento – em nenhum momento ele deixou de se apresentar como “pastor” –
mas que propunha falar em termos de defesa das religiões e da ordem pública,
buscando universalizar sua fala, tornando-a mais representativa, alcançando
um número maior de possíveis eleitores. Da mesma forma que Barreira (1998,
p. 28), percebemos como a

[...] dimensão da representação constituiu o grande eixo fundador das análises


das campanhas, considerando o fato de que o objetivo fundamental dessa vali-
dação da política no espaço público é delegação e legitimação de poderes. [...]
Existe, portanto, a construção de um lugar que, na política, faz dos candidatos
personagens recriados para o desempenho da trama eleitoral.

Passemos, agora, à descrição das mensagens presentes em cada um dos vídeos e, em


seguida, concluiremos com as análises dos mesmos.
Vídeo 1: Elionai está no Dique do Tororó, ponto turístico de Salvador, embaixo de uma
árvore e, à medida em que fala, imagens do local vão sendo exibidas durante
o vídeo. O lugar, visitado sobretudo por turistas que vão à cidade, possui um
imenso lago com 12 imagens de Orixás (divindades do Candomblé), conforme
se pode ver na imagem abaixo:

Figura 1: Dique do Tororó

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Vejamos a transcrição do conteúdo do vídeo:

Estamos aqui, nesse momento, em uma área de proteção ambiental. Você sabia
que o Dique do Tororó é uma área de proteção ambiental, e, portanto, é invio-
lável? A exposição permanente de Orixás no Dique só podia ser arbitrária e
compulsória. No ano de 1998 nós elegemos para governador Cesar Borges. E
depois disso ele colocou no Dique essas doze imagens de Orixás, que muitos
chamam de obra de arte. Não! Isso é litúrgico (...) É preciso transpor para os
terreiros requalificados. Foram gastos milhões na requalificação de terreiros.
(...) é oportuno porque depois de se investir tanto nisso, para que manter Orixás
numa área de proteção ambiental? Os baianos não aceitam mais o braço, a for-
ça, a luta dos poderosos contra os mais fracos. Nós não aceitamos mais órgãos
sendo braços de culto. Na Bahia você chega no Centro Administrativo e pensa
que está num lugar de culto, numa capela, num lugar católico, e de 98 para cá
a exposição de Orixás (...) Isso é contrário ao amplo respeito da liberdade de
crença. (...) Eu sai do anonimato para reivindicar a transposição os Orixás de
toda a Bahia. Chega das autoridades fomentarem crenças, não considerando o
estado laico, não considerando a liberdade de crença (...) estamos compulsoria-
mente sendo obrigados a conviver com a exposição permanente no Dique (...) é
um direito de cada um crer, mas eu não sou obrigado a passar pelo Dique e ser
exposto permanentemente a Orixás. Isso é pra local de culto. Não é para área
de proteção ambiental.10

O primeiro elemento a se destacar é a negação do qualificativo “arte” para as obras ali


presentes. Ao que me parece, num duplo sentido: não é arte por não merecer
tal qualificativo; não é arte porque é símbolo religioso. Segundo: a afirma-
ção de que “milhões” foram utilizados para requalificar os terreiros da Bahia;
logo, é para lá que devem ir. Depois, apresenta-se o candomblé como “a for-
ça”, a “luta” dos “poderosos contra os mais fracos”. Depois, apesar de fa-
lar da presença de imagens católicas no Centro Administrativo da Bahia, não
opõe-se a elas. Por fim, considera o candomblé como crença fomentada pelas
“autoridades”.
Assim, nesse primeiro vídeo observa-se uma retórica que, além de apresentar as ima-
gens sacras do Candomblé como símbolo dos poderosos, ainda as apresentam
como uma imposição, mesmo visual, aos indivíduos, “disfarçando-se” de cul-
tura.
Vídeo 2: Elionai está na Praia de Itapuã, importante ponto turístico de Salvador, conhe-
cida por seu Farol. Itapuã possui algumas imagens de sereias dentro do mar e
na orla. Nesse vídeo, Elionai fala com o eleitor de um ponto da orla, de onde
apresenta diversos closes da sereia esculpida no calçadão.

165 , Goiânia, Especial, v. 17, p. 155-175, 2019.


Figura 2: Sereia em Itapuã
Fonte: Foto de Felipe Santana

(...) pasmem, estamos na avenida principal de Itapuã. São milhares de veículos


que trafegam, pedestres, turistas... nos deparamos com a exposição permanente,
via pública não é lugar de exibição permanente de imagem, de crença. Não po-
demos aceitar isso: as autoridades, o poder público fomenta desenfreadamente
a crença na Bahia. Elas devem guardar o estado laico, a isonomia, o amplo
respeito à diversidade de crenças... Estamos aqui de fato (close na imagem da
sereia) é real, a exposição de orixás, iemanjás, sereias. Eu, pastor Elionai, com-
pro essa briga: contra a exposição permanente de imagens de orixás.11

Ao questionar a presença da imagem de uma sereia, que simboliza Iemanjá, na paria


de Itapuã, o pastor-candidato informa que “via pública não é lugar de exibi-
ção permanente de crença”. Quais seriam os principais desdobramentos de tal
afirmação? Como ela seria levada a cabo e sendo aplicada a todas as crenças?
Para ele, “guardar o estado laico” requer livrar-se de tal exposição. Laicidade,
portanto, parece ter um primeiro sentido de não estar exposto, como cidadão,
a imagens de uma crença particular. Tal compreensão, ao que me parece, le-
varia a sociedade a uma empreitada por crenças que utilizam-se de imagens
e símbolos, o que não inclui igrejas protestantes, afetando, diretamente, o ca-
tolicismo e as religiões afro. Assim, sua argumentação acaba sendo por uma
laicidade que o privilegiaria.

166 , Goiânia, Especial, v. 17, p. 155-175, 2019.


Video 3: Ainda na Praia de Itapuã, Elionai apresenta as imagens de uma outra sereia,
desta vez esculpida nas pedras que ficam dentro do mar. Além disso, procura
convencer seu eleitor exibindo imagens de “oferendas” deixadas por adeptos
do Candomblé no calçadão da orla, como se estas se constituíssem como um
“lixo amontoado”:

Figura 3: Sereia de Itapuã


Fonte: Foto de Pelipe Panoramio

O amplo respeito à diversidade de crença, precisa ser trabalhado e eu como


candidato estou com essa bandeira. É uma crença aqui, olhe só (mostra a se-
reia). Não estou aqui para desfazer da crença de ninguém. Muito pelo contrá-
rio. Nós entendemos que o respeito a diversidade de crença, a não-utilização
de imagens em praças e vias vai resultar em grandes milagres para o povo
baiano. Olhem só isso aqui (mostra o chão com algumas oferendas, comidas,
perfumes, no calçadão). Nós estamos numa praça, de frente à praia, tendo
que conviver com a exposição permanente de imagens e com oferendas. Não
tem cabimento. Seja a favor da transposição dos orixás e do amplo respeito à
liberdade de crença.12

Não bastasse a exposição contínua de imagens religiosas, na forma de símbolos cultu-


rais, ao povo da Bahia, as imagens ainda trariam um problema ambienta, uma
vez que oferendas são entregues à imagens dentro do mar, poluindo-o. Logo,
se o eleitor não entendia o que vinha a ser laicidade, por certo entenderia o que
é poluição ambiental.
Vídeo 4: Elionai vai até à frente da sede dos Correios, no bairro da Pituba, para dar mais
mostras do que ele chama “exposição permanente” do povo da Bahia a Orixás,
denunciando as várias imagens destes no muro da instituição:

167 , Goiânia, Especial, v. 17, p. 155-175, 2019.


Estamos na Avenida Paulo VI, no bairro da Pituba, Salvador. De frente ao cor-
reio. E podemos ver daqui que as pessoas que trafegam convivem com a exposi-
ção permanente de imagens. Só ali há cinco imagens de orixás (mostra o muro
com os Orixás) a instituição está comprometida, o laicismo está completamente
sendo violado e não podemos aceitar isso.

Figuras 4 e 5: Correio da Pituba

Aqui, pois, além de identificar a presença das imagens com o rompimento da laicidade,
o candidato ainda relaciona tal presença com o funcionamento da instituição.
Que comprometimento seria esse?
Depois de exibir e denunciar as imagens, Elionai entrevista uma mulher que, suposta-
mente, ia passando em frente ao prédio dos Correios:

-Quero saber o que essa pessoa entende dessa exposição permanente. A senhora
acha que essa exposição contraria o estado laico?
-Acho que sim. Esse prédio é publico e não deveria ter esses Orixás não. (close
na imagem de um Orixá).
-A senhora respeita a crença dos outros?
-Ah sim. É direito né?
-Mas entende que o Correio não deve ser palco de crença, não é? Quem gosta
disso, tudo bem. Respeitamos o gosto diverso. Mas essa exposição permanente
tem que acabar.13

168 , Goiânia, Especial, v. 17, p. 155-175, 2019.


Figura 6: Elionai entrevista transeunte

Uma leitura atenta dessas transcrições fornece inúmeros elementos para a análise so-
ciológica. Há menções ao estado laico, à liberdade religiosa, às questões de
proteção ambiental, questões de direitos, de tolerância, de hegemonia cultural.
Esses são alguns dos elementos pelos quais a Modernidade foi sendo constituí-
da e que são reclamados como pertencentes a si. Ao menos explicitamente, em
nenhum momento das falas acima transcritas o pastor-candidato fez referências
religiosas para justificar sua proposta de “transposição” das imagens dos Orixás;
não se trata de opor-se às imagens porque representariam falsos deuses, demô-
nios, ídolos ou outras adjetivações que fazem parte do repertório das igrejas
evangélicas para referirem-se aos orixás. Não se tratava de uma oposição em
termos espirituais, mas políticos, modernizantes, argumentos de defesa da lai-
cidade, dos direitos, do respeito.
Depois de assistir atentamente a cada um dos vídeos, decidimos por separar os argu-
mentos de cada um em grupos, buscando montar uma certa estrutura narrativa
presente em cada um deles. Para facilitar o entendimento, montamos o esque-
ma abaixo:

I-Distinção público/privado
Vídeo 1:
- Você sabia que o Dique do Tororó é uma área de proteção ambiental, e, por-
tanto, é inviolável? A exposição permanente de Orixás no Dique só podia ser
arbitrária e compulsória.

169 , Goiânia, Especial, v. 17, p. 155-175, 2019.


- Chega das autoridades fomentarem crenças, não considerando o estado laico,
não considerando a liberdade de crença.
Vídeo 2:
-Via pública não é lugar de exibição permanente de imagem, de crença.
Vídeo 3:
-Estamos na Avenida Paulo VI, no bairro da Pituba, Salvador. De frente ao cor-
reio. E podemos ver daqui que as pessoas que trafegam convivem com a exposi-
ção permanente de imagens.
II-Denúncia do Candomblé como religião dominante
Vídeo 1:
- No ano de 1998 nós elegemos para governador Cesar Borges. E depois disso
ele colocou no Dique essas doze imagens de Orixás.
Vídeo 2:
- Não podemos aceitar isso: as autoridades, o poder público fomentam desenfrea­
damente a crença na Bahia. Elas devem guardar o estado laico, a isonomia, o
amplo respeito à diversidade de crenças.
Vídeo 3:
- Não estou aqui para desfazer da crença de ninguém. Muito pelo contrário. Nós
entendemos que o respeito a diversidade de crença, a não-utilização de imagens
em praças e vias vai resultar em grandes milagres para o povo baiano.
Vídeo 4:
- Só ali há cinco imagens de orixás (mostra o muro com os Orixás) a instituição
está comprometida, o laicismo está completamente sendo violado e não pode-
mos aceitar isso.
III-Intolerância religiosa
Vídeo 1:
- (...) é um direito de cada um crer, mas eu não sou obrigado a passar pelo Dique
e ser exposto permanentemente a Orixás.
Vídeo 2:
- Seja a favor da transposição dos orixás e do amplo respeito à liberdade de
crença.
IV-Elementos religioso disfarçados de cultura
Vídeo 1:
- E depois disso ele colocou no Dique essas doze imagens de Orixás, que muitos
chamam de obra de arte. Não! Isso é litúrgico
Vídeo 2:
-Quero saber o que essa pessoa entende dessa exposição permanente. A senhora
acha que essa exposição contraria o estado laico?
-Acho que sim. Esse prédio é público e não deveria ter esses Orixás não (close
na imagem de um Orixá).

170 , Goiânia, Especial, v. 17, p. 155-175, 2019.


-A senhora respeita a crença dos outros?
-Ah sim. É direito né?
-Mas entende que o Correio não deve ser palco de crença, não é? Quem gosta
disso, tudo bem. Respeitamos o gosto diverso. Mas essa exposição permanente
tem que acabar.

V- A condição de “denunciante” da arbitrariedade contra as outras crenças


Vídeo 1:
- Eu saí do anonimato para reivindicar a transposição os Orixás de toda a Bahia.
Vídeo 2:
- O amplo respeito à diversidade de crença, precisa ser trabalhado e eu como
candidato estou com essa bandeira.
Vídeo 3:
- Foram gastos milhões na requalificação de terreiros. (...) é oportuno porque
depois de se investir tanto nisso, para que manter Orixás numa área de proteção
ambiental?
VI- A exposição das imagens como ameaça à ordem pública e ao Direito
Vídeo 1:
- (...) estamos compulsoriamente sendo obrigados a conviver com a exposição
permanente no Dique.
Vídeo 2:
-(...) pasmem, estamos na avenida principal de Itapuã. São milhares de veículos
que trafegam, pedestres, turistas... nos deparamos com a exposição permanente.
-Nós estamos numa praça, de frente à praia, tendo que conviver com a exposição
permanente de imagens e com oferendas. Não tem cabimento.
Vídeo 3:
- Olhem só isso aqui (mostra o chão com algumas oferendas, comidas, perfumes,
no calçadão).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho analítico realizado neste artigo pretendeu inscrever-se no conjunto de traba-


lhos, sobretudo no campo das Ciências Sociais, que nos últimos anos têm pos-
sibilitado compreender as dinâmicas das relações entre religião e política no
Brasil contemporâneo. Ao apresentarmos um curo estudo de caso sobre a can-
didatura do pastor Elionai Muralha ao cargo de deputado federal pela Bahia,
buscamos identificar os traços distintivos de sua argumentação, possibilitando
identificá-lo como um candidato que destoou de todas as outras candidaturas
de lideranças evangélicas, ao encenar a defesa não dos valores cristãos, ata-
cando as imagens de orixás espalhadas pelas cidade de Salvador, mas, sim, a

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defesa do estado laico, exigindo a retirada, a que chamou de transposição, de
tais imagens para aquilo que seria o seu lócus legítimo: o espaço privado dos
terreiros. Assim, faz-se necessário ainda um considerável material analítico
sobre as diversas candidaturas de religiosos que nos possibilite traçar um mo-
dus operandi acerca das dinâmicas da religião ao encenar-se como importante
ator do campo político no cenário contemporâneo.
Encenando a persona do denunciante, Muralha opta por apresentar uma leitura do estado
atual e localizar “o” seu problema: a contínua exposição às imagens. Isso contra-
riaria os postulados da laicidade, por impor a visualização de entidades de uma
religião particular, não distinguindo devidamente as esferas pública e privada
(onde a religião, ou ao menos esta religião que ele está a denunciar, deveria
estar). Desse modo, seria preciso um exame atento daquilo que está presente na
cultura baiana mas que não pertence a esta, posto ser do universo religioso.
Tentei mostrar, pois, a importância do debate levado a cabo pelo candidato por ter pare-
cido a mim destoar da retórica encenada por outros atores do campo religioso,
apregoando a necessária retirada de elementos de crença do espaço público;
contudo, cumpre perceber que sua defesa de tal retirada move-se ao encon-
tro do reforço de discriminação da presença pública das religiões de matrizes
africanas, nada dizendo acerca da cada vez maior presença de religiosos evan-
gélicos no espaço público, transformando em leis um conjunto de afirmações
que têm origem em suas crenças, também elas particulares. Retirar da esfera
pública as imagens dos orixás também exige a discussão sobre a presença, por
meio de leis e políticas, de outras crenças. Como a do pastor-candidato.

THE “CONFRONTATION WITH THE IDEAL LAY PEOPLE OF THE STATE”:


CULTURE VERSUS RELIGION ON THE ELECTORAL PLATFORM OF
A CANDIDATE PASTOR

Abstract: The purpose of this article is to analyze the arguments put into circulation by
a pastor, Elionai Muralha, candidate for federal deputy for the state of Bahia
in 2014, who differed from other religious candidates for advocating instead of
a large participation the withdrawal of religion of the public sphere. Through
what he considered to be a “denunciation” of the repeated exposure of the “pe-
ople of Bahia” to the images of orishas in Salvador’s public streets, Muralha
sought to legitimize himself as a guarantor of laicizing modernity, and not of
religious intolerance, preaching a defense of the secular state. Our problem is
thus: from what elements does an actor from the religious field seek to legitimize
himself with a political platform enacted as a laicizing? As a methodology, we
use content analysis of the videos posted on the candidate’s social networks, es-
pecially on their YouTube channel. We make some considerations about the rela-

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tions between religion and the modern world, based on the analysis of two of the
“classics” of Sociology, and brief considerations on how the relations between
religion and politics have been analyzed in contemporary Brazil.

Keywords: Modernity. Secularity. Religious culture.

Notas

1 Disputaram tal eleição: Dilma Rousseff (PT, candidata à reeleição), Aécio Neves (PSDB),
Marina Silva (PSB, que substituiu Eduardo Campos, morto em acidente aéreo), Pastor
Everaldo (PSC), Luciana Genro (PSOL), Levy Fidelix (PRTB), Eduardo Jorge (PV), Zé
Maria (PSTU), José Eymael (PSDC) e Mauro Iasi (PCB) e Rui Costa (PCO). Dilma e Aécio
receberam no primeiro turno, respectivamente, 42 e 33% dos votos válidos, saindo-se a
petista vencedora no segundo turno com uma ligeira margem de vantagem: 52% dos votos
válidos, contra 48% de votos conferidos a seu opositor, margem de vitória bastante diminuta
em relação aos pleitos presidenciais anteriores. (Dados do TSE).
2 O que é feito, por exemplo, por outros sujeitos do campo religioso, como Macedo (1997)
e Abib (2000).
3 O presente texto não tem como objetivo apresentar uma discussão acerca da laicidade. Para
tanto, o leitor pode conferir as análises de Camurça (2017), Giumbelli (2013), Mariano
(2011) e Souza (2017).
4 Embora saibamos que, hoje, tal perspectiva que identificou modernidade com secularização
(ausência da religião na esfera pública ou mesmo seu recrudescimento na vida social) já
tenha sido superada na análise sociológica mais recente, como encontramos nas primorosas
análises de Berger (2017, 2001, 1973).
5 Acerca disso, Weber (1979) também apresenta uma importante análise dos embates entre
religião (no caso, o cristianismo protestante nos EUA) e ordem secular no texto As seitas
protestantes e o espírito do capitalismo. Nele, além da análise sobre as relações entre cal-
vinismo e capitalismo, encontramos uma discussão sobre secularização, protestantismo e
individualismo.
6 Sobre isso, ver a análise de Silva (2018) sobre a argumentação de uma liderança da RCC,
durante as eleições presidenciais de 2014, para legitimar o não-voto em Dilma Rousseff,
então candidata à reeleição pelo Partido dos Trabalhadores (PT).
7 Demandas que vão desde a proibição de mudança na legislação acerca do aborto e de di-
reitos contraceptivos, união entre pessoas do mesmo sexo, eutanásia etc (NATIVIDADE et
al., 2009).
8 Interessante, também, notar que, como protestante, o pastor é um iconoclasta, não tendo
imagens como sagradas, como se sabe acerca dos valores do protestantismo. Assim mesmo,
imagens católicas não se fizeram presentes na “denúncia” do candidato.
9 Nos parece que, a “liberdade de crença” aí presente tem mais o sentindo de um “libertar”
as ruas de Salvador da exposição às imagens do candomblé, como veremos mais adiante.
10 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=NUh2MosmiBc. Acesso em: 10 abr. 2018.
11 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=IqJPvqTVBMg. Acesso em: 11 abr.
2018.

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12 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=BKTFVI1BYyo. Acesso em: 13 abr.
2018.
13 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=FezglRxtCsg. Acesso em: 22 abr. 2018.

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