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A
disputa eleitoral de 2014, sem dúvida alguma a mais concorrida em número
de candidatos1 desde a redemocratização brasileira ocorrida no final dos anos
1980, reposicionou atores sociais, até então esquivados do jogo político, dentro
da disputa em curso, exigindo destes uma tomada de posição mais precisa em
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* Recebido em: 23.09.2019. Aprovado em: 07.11.2019.
** Doutor em Sociologia (UFC). Mestre em Ciências Sociais (UFRN). Especialista em Ciên-
cias Políticas (UCAM). Bacharel em Ciências Sociais (UECE). Professor de Teoria Política
(UECE/FACEDI). E-mail: emanuel.freitas@uece.br
Pensar as relações entre modernidade, religião e sociedade nos conduz a buscar nos clás-
sicos do pensamento sociológico importantes caminhos pelos quais podemos
analisar essas relações. Dois desses clássicos da Sociologia figuram como de
fundamental importância nesse exercício analítico: Max Weber (1864-1920) e
Georg Simmel (1858-1918). Cada um deles, a seu modo, apontaram possíveis
enfrentamentos entre as religiões e a ordem cultural em que se inseriam, em
especial o cristianismo, dada sua vocação soteriológica.
A contribuição maior de Max Weber para uma “Sociologia da Religião”, sobretudo
para uma “Sociologia do Protestantismo”, talvez tenha sido demonstrar como
esta prática religiosa, nascida junto com a Modernidade, encontrou o mundo
como seu espaço de realização par excellence, forjando-se numa ética intra-
mundana, fazendo do mundo material, visível, o espaço primordial da ação
dos “eleitos de Deus”. A religião transformava-se numa ética e, por isso mes-
mo, contrapunha-se às culturas nas quais se inserira.
Em seu texto sobre As rejeições religiosas do mundo e suas direções, depois de diferen-
ciar as “religiões de ritual” das “religiões de salvação” – que apresentavam ao fiel
uma nova realidade, construída somente em torno de aspectos espirituais, fazen-
do aumentar assim suas tensões com o mundo anterior – Weber aborda a tensão
irreconciliável que parece haver entre as ordens sociais e políticas nascidas na
Modernidade com a ética, de pretensão universalista, das “religiões de salvação”:
Assim, apregoando uma salvação a seus adeptos, é antes de tudo uma salvação do mun-
do que a religião soteriológica oferece a seus adeptos, que passam de seguido-
O famoso “quem não está comigo, está contra mim” representa um dos grandes
pontos de inflexão da história universal em matéria de Sociologia da religião. Se
alguém acreditava em Wotan ou em Vitzliputzli não significava, de modo algum,
que estava “contra” Zeus ou Baal: cada deus interessava apenas a seus fiéis, e
cada comunidade interessava apenas a seu deus. Assim, nenhum deus invadia a
esfera do outro, com a pretensão de ser aí venerado. O deus cristão é o primeiro
a estender seu reino até aqueles que nele creem e também aos que não creem
nele. [...] Quando o outro deus não é simplesmente o deus de outra pessoa, mas
um falso deus desprovido de existência, a tolerância é uma contradição lógi-
ca, tanto quanto a intolerância o seria em religiões particularistas (SIMMEL,
2010, p. 81-82).
A análise das disputas eleitorais nas duas últimas décadas permitiu à parte da produ-
ção das Ciências Sociais perceber um dado significativo: a presença cada vez
mais atuante de uma semântica religiosa6, seja para interpretar a disputa em
curso, seja para legitimar a agenda política de lideranças religiosas frente aos
candidatos mais competitivos (e, assim, legitimar as próprias lideranças reli-
giosas frente ao campo político), ou mesmo para inscrever a agenda moral dos
grupos religiosos na agenda dos candidatos competitivos. Estudos produzidos
neste campo têm destacado a forma como “os atores religiosos movimentam-se
e trazem a público sua linguagem, seu ethos, suas demandas, nas mais diversas
direções” (BURITY, 2008, p. 84), ressaltando as demandas por maior visibi-
lidade dos valores cristãos que têm sido publicizadas por tais atores, seja nos
momentos de disputas eleitorais, seja no cotidiano das Casas Legislativas7.
Se desde os trabalhos realizados pela Assembleia Nacional Constuinte, entre os anos
de 1987 e 1988, vimos uma deliberada atuação, por parte de evangélicos, por
“visibilidade para si diante da opinião pública” e uma “presença ativa na es-
fera pública propriamente dita” (PIERRUCI, 1996, p. 167), o que se veria no
ano seguinte, no envolvimento destes com a eleição de Fernando Collor de
Melo para a presidência da República (MARIANO; PIERRUCI, 1996), será
a partir de 2010 que veríamos “uma reposição dos temas na agenda política
da maioria dos grupos religiosos favorecendo as questões de cunho moral e
privado” (MACHADO, 2012, p. 34).
Por sua vez, Joanildo Burity (2015), ao tratar das dimensões da religião na cena pú-
blica, elenca como uma chave de compreensão para as atuais modalidades de
tal “encenação” as noções de “agência” e “antagonismo”. Para o autor, a atual
mobilização política de grupos religiosos em torno de agendas públicas que,
Como corpus de análise para este artigo decidimos analisar 4 vídeos, daqueles
disponibilizados pelo pastor, que tiveram o maior número de acessos no Youtube:
os gravados no Dique do Tororó, na Sereia de Itapuã, no Correio da Pituba e na
Praia de Itapuã, todos localizados na cidade de Salvador. Os quatro vídeos são
curtos, com duração em torno de dois e sete minutos, onde o pastor aparece
como protagonista. Há uma interlocução direta dele com o telespectador-eleitor,
fazendo-o falar diretamente a quem assiste aos vídeos.
Antes mesmo de apresentá-los e analisar seus conteúdos, importa que se ressalte o
tom em que Elionai conduz seus argumentos: o pastor toma para si o papel de
denunciante, alguém que fala tendo como fundamento o bem comum, a liber-
dade de crença, a defesa do estado laico. Seu discurso distanciava-se de uma
moldura religiosa (que o levava a referir-se àquelas imagens de outra maneira)
para postar-se como um defensor da liberdade de crença, que não permitiria a
suposta hegemonia no espaço público de imagens sagradas de um credo parti-
cular, o das religiões de matrizes africanas8.
Uma “razão superior” à sua própria crença, o protestantismo, o faz postar-se como de-
fensor de todas as crenças, da liberdade de todas elas, mas em âmbito privado.
Na verdade, interpretamos sua encenação como uma utilização de um imagi-
nário, “uma imagem que interpreta a realidade”, e que, no seu caso, valia-se
de um suposto “imaginário da cidadania” (CHAREAUDEAU, 2006), através
do qual abria mão da defesa da particularidade de sua fé – e denunciar o paga-
nismo daquelas imagens – para abraçar uma causa mais universal: a liberdade
de crença9 e a “transposição” daqueles elementos sagrados aos seus lugares de
culto naturais, os terreiros de Candomblé ou de Umbanda.
Nesse sentido é que, à medida em que assistimos aos vídeos compartilhados pelo
candidato, pareceu-nos um tanto quanto difícil localizar os argumentos do
pastor-candidato dentro de uma lógica ou de uma cosmovisão que pudesse
afirmar tratar-se de um “representante” evangélico. Se seus argumentos para a
“transposição dos Orixás”, como veremos mais adiante, não eram argumentos
Estamos aqui, nesse momento, em uma área de proteção ambiental. Você sabia
que o Dique do Tororó é uma área de proteção ambiental, e, portanto, é invio-
lável? A exposição permanente de Orixás no Dique só podia ser arbitrária e
compulsória. No ano de 1998 nós elegemos para governador Cesar Borges. E
depois disso ele colocou no Dique essas doze imagens de Orixás, que muitos
chamam de obra de arte. Não! Isso é litúrgico (...) É preciso transpor para os
terreiros requalificados. Foram gastos milhões na requalificação de terreiros.
(...) é oportuno porque depois de se investir tanto nisso, para que manter Orixás
numa área de proteção ambiental? Os baianos não aceitam mais o braço, a for-
ça, a luta dos poderosos contra os mais fracos. Nós não aceitamos mais órgãos
sendo braços de culto. Na Bahia você chega no Centro Administrativo e pensa
que está num lugar de culto, numa capela, num lugar católico, e de 98 para cá
a exposição de Orixás (...) Isso é contrário ao amplo respeito da liberdade de
crença. (...) Eu sai do anonimato para reivindicar a transposição os Orixás de
toda a Bahia. Chega das autoridades fomentarem crenças, não considerando o
estado laico, não considerando a liberdade de crença (...) estamos compulsoria-
mente sendo obrigados a conviver com a exposição permanente no Dique (...) é
um direito de cada um crer, mas eu não sou obrigado a passar pelo Dique e ser
exposto permanentemente a Orixás. Isso é pra local de culto. Não é para área
de proteção ambiental.10
Aqui, pois, além de identificar a presença das imagens com o rompimento da laicidade,
o candidato ainda relaciona tal presença com o funcionamento da instituição.
Que comprometimento seria esse?
Depois de exibir e denunciar as imagens, Elionai entrevista uma mulher que, suposta-
mente, ia passando em frente ao prédio dos Correios:
-Quero saber o que essa pessoa entende dessa exposição permanente. A senhora
acha que essa exposição contraria o estado laico?
-Acho que sim. Esse prédio é publico e não deveria ter esses Orixás não. (close
na imagem de um Orixá).
-A senhora respeita a crença dos outros?
-Ah sim. É direito né?
-Mas entende que o Correio não deve ser palco de crença, não é? Quem gosta
disso, tudo bem. Respeitamos o gosto diverso. Mas essa exposição permanente
tem que acabar.13
Uma leitura atenta dessas transcrições fornece inúmeros elementos para a análise so-
ciológica. Há menções ao estado laico, à liberdade religiosa, às questões de
proteção ambiental, questões de direitos, de tolerância, de hegemonia cultural.
Esses são alguns dos elementos pelos quais a Modernidade foi sendo constituí-
da e que são reclamados como pertencentes a si. Ao menos explicitamente, em
nenhum momento das falas acima transcritas o pastor-candidato fez referências
religiosas para justificar sua proposta de “transposição” das imagens dos Orixás;
não se trata de opor-se às imagens porque representariam falsos deuses, demô-
nios, ídolos ou outras adjetivações que fazem parte do repertório das igrejas
evangélicas para referirem-se aos orixás. Não se tratava de uma oposição em
termos espirituais, mas políticos, modernizantes, argumentos de defesa da lai-
cidade, dos direitos, do respeito.
Depois de assistir atentamente a cada um dos vídeos, decidimos por separar os argu-
mentos de cada um em grupos, buscando montar uma certa estrutura narrativa
presente em cada um deles. Para facilitar o entendimento, montamos o esque-
ma abaixo:
I-Distinção público/privado
Vídeo 1:
- Você sabia que o Dique do Tororó é uma área de proteção ambiental, e, por-
tanto, é inviolável? A exposição permanente de Orixás no Dique só podia ser
arbitrária e compulsória.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Abstract: The purpose of this article is to analyze the arguments put into circulation by
a pastor, Elionai Muralha, candidate for federal deputy for the state of Bahia
in 2014, who differed from other religious candidates for advocating instead of
a large participation the withdrawal of religion of the public sphere. Through
what he considered to be a “denunciation” of the repeated exposure of the “pe-
ople of Bahia” to the images of orishas in Salvador’s public streets, Muralha
sought to legitimize himself as a guarantor of laicizing modernity, and not of
religious intolerance, preaching a defense of the secular state. Our problem is
thus: from what elements does an actor from the religious field seek to legitimize
himself with a political platform enacted as a laicizing? As a methodology, we
use content analysis of the videos posted on the candidate’s social networks, es-
pecially on their YouTube channel. We make some considerations about the rela-
Notas
1 Disputaram tal eleição: Dilma Rousseff (PT, candidata à reeleição), Aécio Neves (PSDB),
Marina Silva (PSB, que substituiu Eduardo Campos, morto em acidente aéreo), Pastor
Everaldo (PSC), Luciana Genro (PSOL), Levy Fidelix (PRTB), Eduardo Jorge (PV), Zé
Maria (PSTU), José Eymael (PSDC) e Mauro Iasi (PCB) e Rui Costa (PCO). Dilma e Aécio
receberam no primeiro turno, respectivamente, 42 e 33% dos votos válidos, saindo-se a
petista vencedora no segundo turno com uma ligeira margem de vantagem: 52% dos votos
válidos, contra 48% de votos conferidos a seu opositor, margem de vitória bastante diminuta
em relação aos pleitos presidenciais anteriores. (Dados do TSE).
2 O que é feito, por exemplo, por outros sujeitos do campo religioso, como Macedo (1997)
e Abib (2000).
3 O presente texto não tem como objetivo apresentar uma discussão acerca da laicidade. Para
tanto, o leitor pode conferir as análises de Camurça (2017), Giumbelli (2013), Mariano
(2011) e Souza (2017).
4 Embora saibamos que, hoje, tal perspectiva que identificou modernidade com secularização
(ausência da religião na esfera pública ou mesmo seu recrudescimento na vida social) já
tenha sido superada na análise sociológica mais recente, como encontramos nas primorosas
análises de Berger (2017, 2001, 1973).
5 Acerca disso, Weber (1979) também apresenta uma importante análise dos embates entre
religião (no caso, o cristianismo protestante nos EUA) e ordem secular no texto As seitas
protestantes e o espírito do capitalismo. Nele, além da análise sobre as relações entre cal-
vinismo e capitalismo, encontramos uma discussão sobre secularização, protestantismo e
individualismo.
6 Sobre isso, ver a análise de Silva (2018) sobre a argumentação de uma liderança da RCC,
durante as eleições presidenciais de 2014, para legitimar o não-voto em Dilma Rousseff,
então candidata à reeleição pelo Partido dos Trabalhadores (PT).
7 Demandas que vão desde a proibição de mudança na legislação acerca do aborto e de di-
reitos contraceptivos, união entre pessoas do mesmo sexo, eutanásia etc (NATIVIDADE et
al., 2009).
8 Interessante, também, notar que, como protestante, o pastor é um iconoclasta, não tendo
imagens como sagradas, como se sabe acerca dos valores do protestantismo. Assim mesmo,
imagens católicas não se fizeram presentes na “denúncia” do candidato.
9 Nos parece que, a “liberdade de crença” aí presente tem mais o sentindo de um “libertar”
as ruas de Salvador da exposição às imagens do candomblé, como veremos mais adiante.
10 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=NUh2MosmiBc. Acesso em: 10 abr. 2018.
11 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=IqJPvqTVBMg. Acesso em: 11 abr.
2018.
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