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Jesus subterrâneo - cumplicidades inumanas na terra-brasil

Lucas Omer Severen Surjus

Resumo: O artigo reflete sobre uma suposta tensão contemporânea no Brasil que se daria entre Boi, Bíblia e
Bala sob a luz de filosofias da inumanidade. Argumenta que nossa concepção de economia política não dá conta
de explicar o fenômeno, introduzindo portanto a ideia de ctonomia, que privilegia as trocas que se dão entre
diferentes regimes energéticos. Realiza uma cartografia das imagens da terra-brasil e testa eventualmente uma
hipótese que figura a Guerra de Canudos como modelo de crise da sociedade brasileira. Para tanto, testa-a a fim
de verificar de que maneira Boi, Bíblia e Bala estão tramados às Revoltas de Junho de 2013 e de que maneira são
elas, à moda de Canudos, uma revolta da terra. Por fim explica como é essa mesma agência da Terra que
recolocara Lula no poder.

Palavras-chave: Inumanidade; Reza Negarestani; Euclides da Cunha.

Subterranean Jesus - inhuman complicities in brazil-earth

Abstract: The article reflects upon a supposed contemporary tension in Brazil which would be given between
bull, Bible and bullet under the light of philosophies of the inhumanity. It argues that our conception of political
economy is unable of efficiently explaining the phenomenon, thus introducing the idea of ctonomics, which
privileges exchanges that happen between different energetic regimes. It does a cartography of images of
earth-brazil and eventually tests a hypothesis that figures the Canudos War as a model of crisis of the brazilian
society. To do so, it tests it as to verify in which way Bull, Bible and Bullet are screwed to the June 2013 Protests
and in which way they are, Canudos-like, a revolt of the earth. By the end it explains how this agency of the
Earth is the same that put Lula back into power.

Key-words: Inhumanity; Reza Negarestani; Euclides da Cunha.

Jésus souterrain - complicités inhumaines sur terre-brésil

Résumé : L'article réfléchit sur une supposée tension contemporaine au Brésil qui aurait lieu entre Ox, Bible et
Bullet à la lumière des philosophies de l'inhumanité. Il soutient que notre conception de l'économie politique
n'est pas en mesure d'expliquer le phénomène, introduisant ainsi l'idée de ctonomie, qui favorise les échanges qui
s'opèrent entre différents régimes énergétiques. Il réalise une cartographie des images Terre-Brésil et teste
finalement une hypothèse qui fait de la guerre de Canudos un modèle de crise de la société brésilienne. Pour ce
faire, il le teste afin de vérifier comment Ox, Bible et Bala sont liés aux révoltes de juin 2013 et comment ils
sont, à la manière de Canudos, un soulèvement de la terre. Enfin, il explique comment c'est cette même agence
sur Terre qui a remis Lula au pouvoir.

Mots-clés : Inhumanité ; Reza Negarestani ; Euclide de Cunha.

Introdução

Cientistas políticos, filósofos e analistas de toda a laia, de esquerda à direita, parecem ter
chegado a uma conclusão após 4 anos de governo Bolsonaro e a subsequente apertadíssima vitória de
Lula: já não é mais possível pensar numa governança mínima no Brasil caso continue-se a ignorar uma
parcela da população que seria mais frequentemente que o suposto intelectual e culturalmente
marginalizada nos escalões em que discute-se esse tipo de coisa. Quanto a que fração social
corresponderia exatamente esse grupo marginalizado, porém, já há divergência. Uns apontam para o
neopentecostalismo - os evangélicos. Seria essa a camada da população a qual é necessário buscar
maneiras mais eficientes de se dialogar com, visto que a parcela da sociedade que se identifica como
tal é cada vez maior e ela representaria um hiper-protestantismo em que a aliança entre a ontologia de
negócios do neoliberalismo e a reificação do cristianismo constroem uma textura social despreocupada
com conceitos queridos à modernidade, como democracia e direitos humanos.
Outros apontam contudo para a realidade “emergente” do agrarismo - em contraposição ao
ruralis mo, que diria respeito de fato às comunidades rurais, o agrarismo está muito mais ligado à
ideia paradoxal de uma indústria nacional que quer a todo custo preservar a noção do Brasil como
“celeiro do mundo”. A atual magnitude e complexidade econômica e cultural do agrarismo tornam-lhe
quase inegociável. É a análise de Mathias Alencastro, professor de relações internacionais da UFABC,
quando fala na agora intransponível realidade do “Mega-centra-oeste”1, que estenderia-se do Mato
Grosso até Ribeirão Preto, até Campinas. Um terceiro grupo diria ainda que a palavra que melhor
designa do que é que estamos falando é fascista. Isso se dá majoritariamente numa via mais kitsch
característica da militância em massa, em que a depuração da teoria corresponderia, em tese, ao seu
potencial de alcance. De qualquer maneira, a política e a economia parecem tensionar no Brasil numa
relação entre Bala, Boi e Bíblia. Nisso aparentam todos concordar. Se a esquerda observa esse
Complexo BBB como um grande mal, é ele também central para a direita, no sentido inverso: o
problema da bala, do boi e da Bíblia seria, em essência, que há de menos de todos eles por aí.
Minha análise parte do pressuposto que entender o Complexo BBB pode ser dado por uma
outra via que não a do fascismo, ou ainda do marxismo, ou da luta de classes. Tampouco a da
antropologia ou da psicologia de massas, enfim, nenhuma filosofia que esteja preocupada com
economia, com política e, no limite, com humanos. Isso não significa dizer que explicações que optem
por se dar por esses caminhos estejam erradas, de maneira alguma. Significa dizer apenas que há,
certamente, outras análises que podem ser feitas, e que mais produtivas elas podem ser quão mais
distanciem-se de acordos em comum com outras análises pretéritas - com quem ao buscar dialogar
potencia e provavelmente rediagramariam-se irresolutivelmente em seus comuns acordos. Caso nossa
proposta seja bem sucedida, não estarão todas as discussões preocupadas com essas questões nada
senão beneficiadas.
Dito isso, proponho uma análise que é radical: analisemos a coisa na raiz. Aproveitemos então
para realizar um pequeno porém elucidativo exercício ao pensar por um breve instante na dicotomia
popularesca raiz x nutella. O raiz é o bom, o moral, o nutella é o ruim, o “sem moral”; é menos. E a
raiz vem diretamente da terra, ela entra nela e se estende, muitas vezes, por uma distância maior do
que a que podemos vê-la romper o céu. Nutella, por outro lado, é um alimento ultra-processado com
um gosto voluptuoso de nada e tudo ao mesmo tempo e que é extremamente apelativo até mesmo do
ponto de vista visual - um creme de aparência suculenta e que parece chocolate mas não é.
Haveria um certo valor no que é raiz, no que vem da terra, da mesma forma que atribuímos
valor a esse texto ao designar-lhe radical por ir na raiz do problema. Estaríamos portanto diante de um
feliz acidente em que ser radical e ir na raiz do problema implicaria pensar uma literal raiz? A fim de
ilustrar os impasses impostos pela visão da terra como geradora da riqueza - que é o que fia nossa
oportuna coincidência etimológica da raiz radical -, façamos uma breve reflexão meta-acadêmica: as
implicações econômico-políticas de nossas pesquisas - o que mais comumente é chamado de seu valor.

1
ALENCASTRO, Mathias. Primeiro turno no Brasil mostrou que será preciso governar com o 'Mega-Centro-Oeste'.
Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/colunas/mathias-alencastro/2022/10/primeiro-turno-mostrou-que-sera-preciso-governar-com
-o-mega-centro-oeste.shtml>. Acesso em: 05 mai. 2023.
As incursões nas áreas das humanidades parecem prover seu valor quando conseguem inserir-se de
maneira adequada à economia política. “Tudo é político”, popularizou-se recentemente.
Ao mesmo tempo, etimologicamente a própria economia não é nada senão tudo que discute-se
o tempo todo, “as regras da casa”, em grego. Tudo é uma questão de economia política, ou pode ser
explicado ou reduzido a diagramas de economia política. Não à toa há na academia e em seus círculos
sociais um eterno discurso quanto à utilidade de nossas pesquisas, e a elas são agregados valores
quando somos capazes de comprovar que ainda que estejamos realizando, por exemplo, a arqueologia
de um única palavra que um determinado filósofo falou numa passagem específica, ela ainda assim
tem um valor político-econômico - tem um valor “material”. Há contudo um nível ainda mais
fundamental de registro do que o das regras da casa, e esse nível mais fundamental seria o nível da
fundação da casa. As regras da fundação, ou ainda, para realizarmos um corte em que estabeleceremos
a economia da superfície para cima, as regras do subsolo, da profundeza - uma catanomia, ou
ctonomia, que corresponderia aos regimes energéticos. Abaixo da economia política, abaixo de seus
meio-termos e super-termos, há as dinâmicas energéticas. Ou nas palavras de Nick Land, “A pulsão de
morte não é o desejo de morte, mas uma tendência hidráulica à dissipação de intensidades” (LAND,
2011, p. 283)
Peguemos o exemplo da termodinâmica. Ela é fundamentada em leis empiricamente
estabelecidas que dizem, grosso modo, que a entropia do universo tende ao máximo. É algo facilmente
observável: café esfria e sorvete derrete - o fato de que a probabilidade imediata de caos é superior à
probabilidade de ordem mas que no tempo cósmico não é só a ordem provável como certa e que por
isso a potência energética de um objeto é sempre reversamente proporcional à quantidade de entropia
presente nele. Isto é, um copo na beirada de uma mesa tem um potencial energético, expresso no
potencial cinético de sua provável queda, muito maior do que um copo já no chão, ao mesmo tempo
que o copo já no chão exprime um estado entrópico, isto é, um estado de incapacidade de alteração de
seus estados, muito maior do que o copo ainda na mesa; exprime um estado entrópico ainda muito
maior caso já esteja inclusive quebrado, visto que todos os copos, em todos os lugares do planeta Terra
e onde mais possivelmente existam copos, todos eles vão eventualmente se quebrar e na verdade vão
todos eventualmente sublimar em calor estelar.
Pode-se então argumentar que a termodinâmica não é o nível fundamental de registro, posto
que inúmeras outras áreas mesmo na física que levam o sufixo “-dinâmica”, sem falar na física de
partículas e e na física quântica - certamente um registro mais fundamental. Contudo, acatar a essa
demanda é entrar num jogo que é o jogo com que se dá a economia política. A ontologia onde essa
conversa se dá é justamente a que não só permite, como na realidade exige, a fim da não resolução do
ciclo de retroalimentação termodinâmica elaborado entre a energia potencial e a entropia, que
divida-se as coisas infinitamente. O materialismo não é, de maneira alguma, uma corrente de
pensamento preocupada com os materiais. O materialismo é uma corrente de pensamento obcecada
com a capacidade humana para a matemática, eternamente maravilhada com nossos poderes analíticos,
com nossa capacidade de criar ferramentas, utilizá-las e então derivar seus resultados numa infinidade
de sistemas linguísticos e numéricos que nós mesmos criamos.
E desde o Experimento da Fenda Dupla2 realizado por Werner Heisenberg em 1927, é sabido
para além de qualquer dúvida que o resultado de um experimento está inexoravelmente atrelado ao
instrumento utilizado. Mede-se a luz como partícula, ela se comporta como partícula; mede-se a luz
como onda, ela se comporta como onda. É como se a maldita luz estivesse esperando para ver qual
instrumento iríamos utilizar para decidir de que modo apareceria, como consta de famoso lamento

2
O Experimento da Dupla Fenda é um clássico experimento físico voltado à averiguação do estatuto material da luz. Tendo
sido realizado pela primeira vez por Thomas Young em 1801, os resultados progressivamente apresentaram-se contraditórios,
até que Heisenberg enunciou o Princípio da Incerteza, o que explicaria as contradições tendo em vista que há um limite
fundamental e atrelado aos instrumentos para a precisão das medições.
pré-quântico3 - o próprio Schrödinger, considerado um dos pais da teoria quântica, até mesmo
arrependia-se de ter se envolvido com ela4. Mas mesmo essa justificativa, de que existem partículas
menores, e partículas menores ainda, como sendo aquela a que se recorreria a fim de apontar a
inesgotabilidade do materialismo seria ainda sim ela mesmo particularmente antropocêntrica. O objeto
da crítica do resultado em decorrência do instrumento é ainda o instrumento. A perspectiva
cientificista é uma cobra mordendo o próprio rabo até mesmo para o caso de querermos pensar os
materiais em si. O materialismo, afinal, não tem nada a ver com a matéria; é sobre o humano.
Acatar à demanda por posicionar nosso registro numa camada que seria supostamente ainda
mais fundamental que a termodinâmica seria encarnar novamente ouroboros, posto que na realidade
até mesmo a física quântica é só uma sofisticação sem fim para registrar cada vez com mais e mais
detalhes processos termodinâmicos, complicando-lhes na medida exata em que supostamente os
explicaria sem, contudo, prover de maneira alguma nada senão uma masturbatória exaltação dos
nossos sistemas simbólicos, uma que ainda que ejacule, não goza. E é esse caráter narcísico da
ontologia materialista o que permitirá, como diz o coletivo Gruppo di Nun5, “degolar Ouroboros em
todo instante, para desenrolar sob nossos olhos todos os mistérios do cosmos.”
Além dessas questões ontológicas, há outros motivos pelos quais acreditamos existirem vias
melhores para explicar a ascensão do poderíamos chamar de fascismo no Brasil do que aquela,
curiosamente, da economia política. Para sair completamente então do registro da economia política,
por enquanto, e não ter que repetir “entender o que está acontecendo no Brasil”, coloquemos nos
seguintes termos: há maneiras mais eficientes, e quando diz-se eficiente diz-se aquilo que possui um
maior potencial de engendrar mudanças, ou ainda, aquilo mais provido de energia potencial
(revertendo ainda que platonicamente a entropia), de pensar-se os violentos dispêndios energéticos
ocorridos no Brasil nos últimos anos do que aqueles designados pela economia política, que, ainda
que, evidentemente, preocupe-se com um subsolo material, ignora a realidade inumana e
majoritariamente anônima onde grande parte das trocas energéticas, ainda que o materialismo prefira
ignorar, ocorrem.
É preciso, primeiro, reconhecer uma estranheza no discurso quanto ao entendimento desse
suposto Brasil paralelo, que é: essas populações não são, de maneira alguma, marginalizadas. Uma vez
que grande parte das análises parte do pressuposto de que na verdade elas são, as reflexões na
esquerda são mais vezes do que não completamente estéreis e mordem mais uma vez o próprio rabo. É
verdade que o crente já foi, décadas atrás, vítima de um certo preconceito generalizado. O passado da
pessoa rural é mais complexo: é simultaneamente forte e detentora de uma sabedoria quase mágica, ao
mesmo tempo que é fraca e estúpida. Mas penso que ninguém discordaria que são hoje dos grupos
mais vocais da sociedade brasileira. Essa nova versão da voz da terra, é claro, acompanha
perfeitamente a mudança do ruralismo para o agrarismo e a resolução da secular discussão entre a
vocação rural do Brasil e sua industrialização, consolidada numa indústria natural em que capitais
imensos mobilizam a indústria para um fim que não é em seu âmago industrial. Não à toa, a música
sertaneja hoje desmembrou-se num subgênero que é o agronejo, onde, grosso modo, festeja-se acima
de tudo a energia potencial não da terra mas do agronegócio: seu maquinário e seu capital.
Em seu lado, os evangélicos ostentam também sua energia potencial: desde os barulhentos
cultos que somem com a mesma velocidade com que aparecem em barracões periféricos até os
3
Maybe Logic - The lives and ideas of Robert Anton Wilson. Direção: Lance Baushcer. YouTube. 2003. 81 min. Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=8w3fMoqL2yU>. Acesso em: 23 mai. 2023.
4
YAM, Phillip. Bringing Schrödinger's Cat to Life. Disponível em:
<https://www.scientificamerican.com/article/bringing-schrodingers-quantum-cat-to-life/>. Acesso em: 21 mai. 2023.
5
Coletivo de filosofia e ocultismo responsável pelo Manifesto pela demonologia revolucionária (2019), traduzido por Cássia
Siqueira. Disponível em:
<https://texturaberta.wordpress.com/2019/10/30/um-manifesto-pela-demonologia-revolucionaria-por-gruppo-di-nun/>.
Acesso em: 23 mai. 23.
falsos-espontâneos louvores em shopping centers6, tudo dentro da estética neopentecostal revela uma
aparente enorme preocupação com não só uma demonstração de força, mas uma demonstração
também de uma ainda maior força porvir. É uma visão que talvez mais que filósofos, cineastas
brasileiros já capturaram e exprimiram em filmes como Raquel 1:1 (2022), de Mariana Bastos,
Medusa (2021), de Anita Rocha da Silveira e Divino Amor (2019), de Gabriel Mascaro. Já quanto a
explicação que encerra-se em fascismo foi tema central do mais aclamado filme brasileiro da última
década, Bacurau (2019), de Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.
Também no lado do agrarismo a estética exerce um papel fundamental: o que a romantização
de uma roça idílica realizada por frentes de direita como o Quinto Movimento, de Aldo Rebelo, e a
Nova Resistência e sua vertente ainda mais ufanista Sol da Pátria, ambas infiltradas no PDT, faz, é
apagar conflitos de classe no campo na medida exata em que faz essa exaltação; é um verniz muito
conveniente que revela o cerne do caráter estético do nazismo - e o cerne do caráter nazista do
pensamento campônes heiddegeriano. É duvidoso contudo se, como o fora pelo cinema brasileiro a
provável relevância porvir do neopentecostalismo e do fascismo brasileiros pensada, tenha já sido
devidamente pensada não só a provável relevância porvir do agrarismo como, mais importante, sua
relação com o fascismo e com o neopentecostalismo.
Comungamos da ideia geral de que seja o Complexo BBB aquilo que deve ser explicado, isto
é, como articulam-se as relações entre o Boi, a Bíblia e a Bala. Discordamos contudo que a explicação
mais eficiente se dê no registro da economia política, ou da psicologia, ou da sociologia, da
antropologia - para por numa palavra, qualquer ramo do conhecimento não só preocupado com o que
se passa na superfície da terra mas que coloque o ser humano como elemento central de análise. Como
dito, não argumento que essas explicações estejam obrigatoriamente erradas, apenas quero pensá-las
num nível que seria mais fundamental: o nível da literal fundação, da fornalha que é a termodinâmica,
onde poderemos pensar as agências inumanas que atuam no Brasil. Finda a introdução, procurarei
delimitar qual é exatamente nosso objeto (do que estamos falando e o que implicaria filosoficamente a
suposta relação entre boi, bíblia e bala), contrastando suas interpretações econômicas de suas
interpretações ctonômicas (as que privilegiam o registro dos regimes energéticos). Então sobrevoarei
qual seria a análise do marxismo kitsch7 (aquele mais comumente encontrado na boca da militância, de
universitários de esquerda e de figuras que ocupam uma marginal parcela de representatividade na
grande mídia que é referente a uma “cota de esquerda”) quanto ao Complexo BBB e, por fim, testarei
a hipótese de Jairo Dias Carvalho d’A Guerra de Canudos como modelo de crise da sociedade
brasileira a fim de explicar a magnitude do Complexo BBB e de que maneira tal capilaridade está
relacionada a outra importante revolta da terra brasileira: as Revoltas de Junho de 2013, no que deve,
enfim, estar clara a visão ctonômica (ou inumana, ou meta-humana, daemônica) desses fenômenos.

1. Saudades da roça: o complexo agro-industrial

As Galáxias Falam e a Terra Grita, todo mundo sabe essas


coisas, ainda que não se admita
LAND, Nick. 2015. p. 109.

6
LOPES, Leilaine. Projeto leva evangélicos a louvar em shoppings e cenas viralizam. Disponível em:
<https://pleno.news/fe/projeto-leva-evangelicos-a-louvar-em-shoppings-e-cenas-viralizam.html>. Acesso em: 23 mai. 23.
7
O conceito foi elaborado por Reza Negarestani em O trabalho do inumano (2014), traduzido por Jean Pierre Caron.
Disponível em: <https://zazie.com.br/produto/reza-negarestani/>. Acesso em: 29 mai. 23.
Antes de sobrevoarmos qual seria uma explicação econômica habitual ao Complexo BBB,
para então oferecermos qual seria a explicação ctonômica da coisa, cabe, antes de definirmos
ctonomia, averiguarmos qual é a visão de mundo que fia o agrarismo, e de que maneira ele
relaciona-se à religiosidade brasileira, delimitando assim o objeto. À ctonomia vamos dar o nome a
explicação dos encadeamentos fenomênicos quando privilegiam o registro das trocas energéticas,
sejam elas entre agentes humanos ou inumanos. Realizar essa explicação significa também complicar
os fenômenos em diagramas relacionais que estruturam esses agentes em cumplicidades diversas, o
que fornecerá um campo analítico cosmopolítico onde figura não apenas o ser humano, sendo
tampouco composto apenas pela adição dos mais geralmente lembrados animais e plantas, mas
também por entes que ainda que desafiem o próprio estatuto de ser vivo, como pedras e buracos,
podem ser esquematizados em circuitos energéticos (econômicos, religiosos, libidinais etc.)
explicativos. Chamemos esses entes de daemons. Não nos interessa saber se as pedras estão vivas, se o
vento pensa ou se os gatos estão planejando dominar o mundo; para a ctonomia interessa apenas que
as forças e as coisas da natureza podem ser diagramadas como se tivessem uma agência, sendo para os
efeitos da análise irrelevante seu aspecto hipotético. Com nossa ferramenta em mãos, portanto,
comecemos o trabalho.
A formação da mentalidade agrária é, conforme Jairo Dias de Carvalho8, composta por
decisões formadas quanto a um quarteto de querelas mais ou menos constitutivas do pensamento
econômico brasileiro, uma espécie de Quatro Cavaleiros do Apocalipse da economia brasileira, e na
verdade, como se verá, essas querelas são consecutivamente consequências da primeira querela
(verá-se também que são essencialmente as mesmas que encontram-se sendo até hoje discutidas nos
cadernos de economia dos jornais brasileiros): 1) querela da fonte do valor, isto é, se o trabalho, como
refletimos na introdução, gera valor apenas quando trabalha a terra, constituindo então uma fisiocracia,
ou se outras práticas humanas podem também gerar o valor que é significativo na sociedade (outras
formas de -cracias); 2) querela da vocação brasileira, isto é, deve o Brasil industrializar ou somos na
realidade o celeiro do mundo?; 3) querela da industrialização (indústria natural x indústria artificial),
isto é, no caso do Brasil vir a industrializar-se, se essa industrialização deveria dar-se única e
exclusivamente mediante a matéria-prima disponível no território nacional (indústria natural) ou se sua
matriz deve permitir a utilização de matéria-prima indisponível no território brasileiro (indústria
artificial); 4) devemos taxar, novamente admitindo a possibilidade de industrialização, produtos
estrangeiros que somos capazes de fabricar dentro do país, ainda que mais custosamente?
O agrarismo brasileiro se dá, inicialmente, de maneira essencialmente fisiocrata. E na verdade
a fisiocracia é até hoje um elemento constitutivo da política brasileira; é o ponto de contato onde tanto
esquerda e direita parecem concordar, no caso através do MST e sua contraparte Agrishow. É por isso
que a coisa parece irresoluta, e setores da esquerda e da direita aparentam sentirem-se incapazes de
sequer dialogar uns com os outros: porque concordam. No fundo concordam: a ideia seminal e quase
indiscutível do pensamento agrário de que todo o valor provém da terra, que a riqueza é o
desenvolvimento da terra, no que a terra, de certa forma, trabalharia “de graça”. Mas é através de um
posterior movimento anti-fisiocrata, na realidade, que o agrarismo brasileiro ganha sua face e sua
capilaridade. Isso se dá mediante o atravessamento de uma outra querela brasileira que em certo
sentido extrapola a esfera econômica: interior x litoral. O litoral seria urbano, cosmopolita e voltado e
produzindo para o exterior; excêntrico e modernizante, seria ao mesmo tempo superficial e “vendido”
(nutella). O interior, por outro lado, é a promessa de redenção, ao mesmo tempo que é o supra-sumo
do atraso; o sertanejo, que é “antes de tudo um forte” (CUNHA, Euclides da, 2020, p. 68), ao mesmo
tempo “não sabe trabalhar”, é considerado preguiçoso etc, sendo porém portador de uma sabedoria
ancestral e misteriosa (raiz).

8
Texto de aula. 22 mai. 23.
Essa dupla dualidade (ambos os polos trazendo em si uma contradição) teria sido expressa no
mundo agrário dentro de uma disputa intraclassista: a oligarquia interiorana viria posicionar-se contra
a oligarquia litorânea, vindo a ser chamada de oligarquia bagageira (que vinha na bagagem de São
Paulo). Há um movimento concêntrico que, na mesma altura, comunga com outro importante
movimento concêntrico: A Semana de 22. É preciso voltar-se para o interior, e isso implica, no caso do
agrarismo, numa estrutura econômica que não mais privilegiasse o funcionamento de uma produção
rural voltada para a exportação - a produção realizada pela oligarquia de elite do litoral. Até quase
meados do século XX o Brasil importava a maior parte da comida consumida no país, fato
potencialmente chocante para leitores que estejam lendo no ou próximo do ano de redação desse texto
(2023), tão acostumados com a envergadura que a produção agrícola tomou na nação9. Urge questionar
também, num país que, noutro meio século, este imediatamente pregresso, tinha até mesmo carros
nacionais, o que teria acontecido com nossa indústria - hoje, em contraste, muitos dos carros de marcas
estrangeiras detentoras até mesmo de fábricas em território brasileiro são importados10, o que se não é
chocante, pois é fato sabido, é um pouco absurdo.
E é esse o desenho na aurora do século XXI porque, um século antes, essa grande
movimentação concêntrica que atravessa o Brasil é expressa, economicamente, na primazia da
produção agrícola voltada para o consumo interno - a produção realizada pela oligarquia interiorana, a
oligarquia até então bagageira - através duma cumplicidade com o processo de industrialização que
não veta a indústria artificial, porque não precisa vetar, mas instala entre o mundo industrial brasileiro
e o mundo agrícola brasileiro um circuito retroalimentativo que não desmantela, mas como que
falsifica o sentido do que chamamos de Quatro Cavaleiros do Apocalipse da economia brasileira,
conservando não só uma aparência desse paradigma mas preservando a ideia de que essas coisas
realmente ainda estão em debate.
Primeiro, quanto à fonte do valor, se dissemos que o agrarismo é essencialmente fisiocrata, o
instante em que ele irrompe enquanto matriz econômica brasileiro é justamente quando torna-se mais
do que fisiocrata: a fonte do valor não é apenas a terra, pois a terra pode ser transformada, através da
técnica, e pode vir a gerar um valor ainda maior, o que transmuta toda a incongruência num verdadeiro
paradoxo: ao mesmo tempo que é necessário industrializar, é o Brasil o celeiro do mundo, de maneira
que, na realidade, a indústria deve servir ao desenvolvimento agrícola. O verniz saudade da roça que
figura nas letras de agronejo na realidade quer dizer transformação agro-industrial da roça - há no
geral uma exaltação mais ou menos velada do maquinário agrícola e músicas que são até mesmo
propaganda de GPS agrícola11 e de pulverizadores de veneno12, fantasiadas de músicas sertanejas
modernas.
Resolvida a segunda querela (é justamente por não ser só fisiocrata que o Brasil ao mesmo
tempo deve industrializar-se como é o celeiro do mundo), a terceira vai por tabela: a indústria deve ser
majoritariamente natural, de forma a estimular o desenvolvimento, através do desenvolvimento
industrial, das fontes de matérias primas nacionais, formando um loop entre a industrialização e a
produção agrícola do Brasil. “De certa forma esse movimento concêntrico teria sido a verdadeira
revolução copernicana brasileira”, diz Jairo Dias de Carvalho (2023). Há um estranho
agro-progressismo. E ele não parece ter uma voz humana. “Os interesses de frações de classe estão, no
Brasil, geograficamente localizados. A luta de classes é regionalizada em sub-sistemas que não
9
Embrapa. Trajetória da agricultura brasileira. Disponível em:
<https://www.embrapa.br/visao/trajetoria-da-agricultura-brasileira>. Acesso em: 03 jul. 23.
10
CABRAL, Júlio. Esses são os carros importados que a Ford irá vender no Brasil. 2021. Disponível em:
<https://autoesporte.globo.com/mercado/noticia/2021/01/esses-sao-os-carros-importados-que-a-ford-ira-vender-no-brasil-bro
nco-em-2021-maverick-e-f-150-em-2022.ghtml>. Acesso em 03 jul. 2023.
11
Adson e Alana. País do agro. 2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=WeeK7EhtKlg>. Acesso em 03
jul. 2023.
12
____________. Galera da rodagem. 2022. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=NLNdkI69l7g>. Acesso
em 03 jul. 2023.
compõem um regime econômico” (CARVALHO, Jairo Dias)13, o que gera uma aberração, a saber, uma
indústria voltada não a si mesma mas a um outro, no caso uma produção agrícola altamente
diversificada e que é majoritariamente destinada a seu intra-consumo.
É verdade que se todas essas querelas estão mais ou menos presentes em países de grandes
extensões (nações imperiais, mais vezes do que não constituídas pela responsabilidade de ter de
administrar um deserto), é essa terceira querela (indústria natural x indústria artificial) a que melhor
ilustra os possíveis posicionamentos. A questão subjacente, é claro, é: como industrializar se não
temos todo o tipo de matéria prima em nosso território? Para olharmos para um exemplo
contemporâneo, o maior império do nosso tempo, os Estados Unidos da América, resolveu essa
questão da que talvez seria a maneira mais fácil possível: vai-se lá onde há o que se precisa, pega-se e
pronto. Será que quem defende o nacional-desenvolvimentismo deveria, caso não quisesse rodar
eternamente em círculos, defender que o Brasil invada outros países? Talvez. E se for afeito ao
oximorônico desenvolvimento-sustentável, definitivamente.
A quarta e última querela, taxar ou não taxar produtos que caso privilegiássemos a produção
interna poderíamos estimular o complexo agro-industrial nacional, ainda que os produtos fossem mais
caros, é a única que, sendo também a mais contemporânea consequência da querela original, seguiria
mais ou menos irresoluta. E isso se dá devido ao mesmo motivo que levara a essa série de resoluções
em primeiro lugar: luta intraclassista. Pensemos que o próprio domínio do complexo agro-industrial
referente à oligarquia bagageira implica a inexistência, dentro da produção nacional, de determinados
produtos. Seria suposto então, e em tese, o complexo agro-industrial nacional ser capaz de prover
alternativas satisfatórias a esses produtos, o que, sendo dependente de matéria-prima apenas no
território nacional encontrada, é obviamente incapaz de sempre fazer. A querela fora revivida mais
uma vez no primeiro semestre de Lula III quando o ministro da fazenda Fernando Haddad considerou
taxar importadoras chinesas (império que ao que tudo indica opera numa solução oposta à americana,
onde invés de ativa e frequentemente invadir-se os vizinhos14, abre-se um longuíssimo tempo onde há
espaço para toda sorte de negociação) que operam através do que seria uma comunicação com um
suposto civil no lugar do cliente final.
A possibilidade de fraudar-se esse sistema e comprar-se em grande quantidade escapando de
impostos referentes a pessoas jurídicas, isto é, como que realizar uma tentativa de hackeamento
(domínio de código acima do previsto pelo sistema de segurança) econômico infraclassista (oligarquia
infiltrada à contra-gosto na classe média) é o que levantou o debate. O governo a princípio iria taxar as
empresas do tipo, mas depois do que talvez fora o mais rico debate sobre economia no primeiro
semestre de Lula III, decidiu por não o fazer. Do ponto de vista do agrarismo devia-se, é claro, taxar
esses produtos. Contudo, ainda que o complexo agro-industrial (que chamamos anteriormente de
complexo BBB, no que chegaremos em breve à Bíblia e à bala) seja atualmente dominante, esses
produtos não são taxados, e isso não se dá por algum tipo de planejamento macro-econômico, mas
porque há na classe média uma fração da oligarquia de elite que faliu e que faz boa parte de suas
compras na Shein e no Alibaba Express.
A oligarquia litorânea, subvertida na concepção do sistema agrário brasileiro, volta como um
fantasma que ao mesmo tempo que assombra o sistema agro-industrial como um eterno litoral, um
eterno Grande Fora, eterno outro, é o que assusta-lhe ao ponto de impedir-lhe de virar socialista, isto é,
interrompe um processo de ramificação interna (a agro-indústria não mono-cultura não-exportadora)
de transformar-se num processo de ramificação para fora ao introduzir uma série de restrições mais ou
menos negociáveis mas que são sempre via de regra restritivas - traço elementar do movimento
concêntrico a propriedade obrigatória do interior.

13
Dito na aula do dia 17 de abril de 2023.
14
O Tibet representa uma exceção, e a peculiaridade da situação extrapola o escopo do texto.
Resumidamente, o que explicaria a capilaridade do complexo agro-industrial (e a virtual
inexistência de uma indústria não agro-orientada) seria o circuito retroalimentativo formado entre a
indústria natural e a agricultura policultora manifesta na expressão econômica de um grande
movimento concêntrico que atravessara o Brasil no começo do século XX e que vinculara a
industrialização do país a um complexo agrícola que é voltado para o consumo interno. A
possibilidade de algo como a não taxação das grandes importadoras chinesas queridas à classe média
brasileira é dissipação de calor desse sistema termodinâmico - a soma de todas as taxas de tolerâncias
de cada uma das partes montadas, palpável então no que torna-se crítico (sai às vistas) ao tornar-se,
também, uma decisão crítica para o governo.
O funcionamento normal da máquina, contudo, é um que se, por um lado, trava o
desenvolvimento industrial do país (torna-se impossível empreitar processos industriais sofisticados,
de forma que não só nossa tecnologia cotidiana é estrangeira, o que implica uma série de delicadas
questões imperiais e geopolíticas, recentemente manifestas na ultrajante porém não surpreendente
reação das gigantes das tecnologias ao PL 2630/2020, vulgo Lei das Fake News15, como torna-se nada
menos que uma piada de mau gosto aventar algo como tecnologia aeroespacial, micro-chips,
nanotecnologia biomédica e outros supostos suprassumos da engenharia humana), implica também
toda uma transformação na relação do homem com a terra que vai manifestar-se numa metafísica
fatalista, pois a estrutura do complexo agro-industrial, já ela fatal (a indústria deve desenvolver-se, e
deve fazer isso através de uma indústria natural em prol da agricultura), não se dá “nonada”, mas em
grandes sertões que são eles próprios caracterizados por um grande fatalismo. A relação do homem
com a terra não se dá apenas através da técnica; ela é, na verdade, informada pela concepção mítica e
religiosa que o homem tem dela. Cabe portanto investigar qual é a concepção mítica e religiosa que o
brasileiro tem da sua terra.

2. Deus e o Diabo na Terra do Sol: a metafísica do Sertão

As imagens correntes da terra brasileira não vieram apenas a constituir, é claro, a imagem do
sertão. A própria dualidade sertão x litoral surge duma concepção da terra em que a concepção
litorânea aparece através duma cismogênese da imagem de sertão. Se o litoral é urbano e cosmopolita
em contraposição a um sertão supostamente “atrasado”, poderia argumentar-se que é apenas o desenho
econômico oriundo de cinco séculos de História - o Brasil foi majoritariamente colonizado no litoral,
sendo nada menos que natural que, voltada ao Atlântico (e portanto às civilizações), a região costeira
do país fosse mais “desenvolvida” que a lenta e preguiçosa região interior. Mas quanto dessa História
não se deu justamente em decorrência da concepção que o colonizador tinha da terra colonizada? Não
seria o litoral em decorrência (da imagem) do interior e não o contrário? Isso quer dizer que pensar
sertão x litoral implica pensar o sertão, o que implica pensar a concepção que o colonizador tinha da
terra colonizada e, os portugueses, ao chegaram ao Brasil, tiveram grande dificuldade em decidir se
estavam diante do paraíso ou do inferno.
Ou seja, não só a gênese da dualidade (sertão x litoral, ou ainda, em sua versão mais
contemporânea, raiz x nutella) está na concepção da terra, como é ela mesma constituída por uma
dualidade. Nesse sentido, “aparece uma imagem fundamental que recobre esta posição agrária e que
sintetiza um movimento geral: o sertão enquanto chave principal de interpretação do Brasil”, diz Jairo
Dias de Carvalho16. “O sertão torna-se uma imagem da terra, da terra-brasil” diz ele17. Cabe agora

15
LACERDA, Marcelo. PL das Fake News pode aumentar a confusão sobre o que é verdade ou mentira. 2023. Disponível
em: <https://blog.google/intl/pt-br/novidades/iniciativas/pl2630-2/>. Acesso em: 03 jul 2023.
16
Texto de aula.08 de maio de 2023.
17
Ibid.
portanto realizarmos uma breve cartografia da imagem da terra-brasil. Os eixos de interpretação se
dão, como dito, numa visão mítica e religiosa que divide a terra brasileira, grosso modo, em paraíso e
inferno, e já no primeiro objeto percebe-se esta tensão. A primeira imagem do Brasil, presente na carta
de Pero Vaz de Caminha, é uma que ainda que poderia enquadrar-se na visão de paraíso, pertence, é
verdade, mais a um registro do exótico e da estupefação (registro que, como veremos, retorna em
seguida como aparente contraponto). Ela nos fornece porém um peculiar (e falando de maneira
relativamente anacrônica) indício do pensamento agrário brasileiro. Senão vejamos o que ele diz
quanto à terra brasileira e qual é o conselho que ele acaba dando ao rei:

Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas


vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e muito
cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é toda praia parma,
muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar,
muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão
terra com arvoredos, que nos parecia muito longa. Nela, até
agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa
alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é
de muito bons ares, assim frios e temperados como os de Entre
Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos
como os de lá. Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é
graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem
das águas que tem. Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer,
me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal
semente que Vossa Alteza em ela deve lançar.
(DE CAMINHA, 1500)

Já dizia Pero Vaz de Caminha: é necessário engendrar uma mudança - e ela é informada por
uma concepção mítica e religiosa, no caso, “salvar esta gente”. A terra é paradisíaca mas seus
habitantes são desgraçados. Noutras visões a própria terra vai ser ela mesmo demonizada, sendo o
autor seminal dessa visão o Padre Anchieta, que, dramaturgo, era capaz de ser particularmente
dramático: “O mal se espalha nos matos ou se esconde nas furnas e nos pântanos (...) Ensombradas
florestas dominadas por selvagens. (...) Enormes precipícios medonhos que pareciam descer ao abismo
do inferno” (ANCHIETA, X). Há construções mui criativas para todos os apreciadores da literatura de
horror na obra do Padre Anchieta, e esse traço também retornará quando nos aproximarmos da síntese
da imagem-brasil. Já a visão do paraíso, diz Jairo Dias de Carvalho que

aparece no ufanismo e de certo cristianismo medieval originado


numa literatura cujo tema era a localização e descrição do Paraíso
Terrestre, literatura que foi retomada na Renascença sob o
impacto de correntes milenaristas e proféticas. As grandes
navegações foram vistas como um alargamento das fronteiras do
visível. Elas “descobriram” um Mundo Novo, que foi tomado
como o Paraíso Terrestre ou o Jardim do Éden. O mundo novo
teria lugar nas chamadas “Ilhas Afortunadas ou Ilhas Bem
Aventuradas”, lugar abençoado, onde reinariam primavera e
juventude eternas e onde homens e animais conviveriam em paz.
O Paraíso Terrestre é o jardim perfeito de vegetação luxuriante e
bela, flores e frutos perenes, feras dóceis e amigas, em profusão
inigualável, temperatura amena, nem muito frio, nem muito
quente, primavera eterna contra o outono do velho mundo e
esperança de restituição da origem. Esta concepção deu origem a
uma concepção mítica do Brasil: o país-jardim
(CARVALHO, 2023)
As visões subsequentes do Brasil, ainda que eventualmente abram mão do léxico estritamente
religioso, são virtualmente incapazes tanto de resolver quanto de desmontar a visão dual da terra.
Poderia-se argumentar que Glauber Rocha fora bem sucedido, mas isso apenas poderia ser afirmado
sem a acusação de hipérbole caso tivesse a visão dele realmente engendrado uma alteração radical na
concepção que o povo brasileiro tem de si e sua terra. Não é o que se passou: Bacurau, o mais popular
filme brasileiro dos últimos anos e que é com frequência comparado à obra de Glauber Rocha,
recoagula todas tensões que o cineasta baiano dissolvera em Deus e o Diabo na Terra do Sol, onde ele
apresenta uma visão inumana do sertão - ou, ao menos, uma que dá voz aos agentes inumanos que
estão presente no deserto brasileiro.
No filme de 1964 há um jogo entre quem seria, em dado momento da trama, deus e quem seria
o diabo. Há camadas interpretativas. Na mais exterior delas Deus estaria encarnado na religiosidade e
no messianismo nos quais o protagonista Manoel se vê cooptado, e o Diabo seria a vida criminosa a
que ele fora obrigado a recorrer uma vez que o movimento pelo qual fazia parte foi destruído. Nesse
sentido, Deus seria Sebastião, o messias, e o Diabo Corisco, o bandido. Contudo, uma vez que o
movimento messiânico é destruído por forças da lei, e que dum ponto de vista econômico o processo
que leva Manoel a tornar-se cangaceiro é de uma progressiva exclusão social engatilhada justamente
por abusos por parte das figuras de lei, surge uma outra interpretação na qual Deus estaria encarnado,
em linhas gerais, no povo e o Diabo portanto na força-motriz da desigualdade. Chame-no-la,
praticando rapidamente um marxismo kitsch, de capital, visto que, ainda segundo esse raciocínio, o
que deflagra os acontecimentos no filme é um evento de mais-valia agravado por circunstâncias do
acaso, isto é, porque algumas das cabeças de gado que Manoel era suposto transportar ao fazendeiro
morrem acidentalmente, o fazendeiro toma de Manuel alguma das vacas que seriam suas. Nesse
sentido, então, Deus, o povo, o Diabo, o capital.
É possível, ainda, transferir a divindade do povo, permanecendo nessa divisão, para a natureza
no geral. O Sol não é nosso inimigo, diz Sebastião ao povo em determinado momento. Ou seja, Deus
seria tudo de material e o Diabo seria as motivações que levam as pessoas a furtar ou privarem dos
outros o acesso à matéria. Nesse sentido Deus poderia ser o próprio Sol, encarando ainda como tudo
na Terra pode ser lido não só como efeito do Sol mas, com algum esforço hermenêutico, tudo na Terra
pode ser lido como o próprio Sol. Da seca à pouca flora, à fauna, os homens e as mulheres inclusos,
tudo seria a visualização de um mesmo fluxo solar, em que Glauber Rocha é profundamente
batailliano18. Dentro dessa visão não aparenta haver motivo plausível para separar as atividades
humanas desse fluxo, de forma que se Deus é o Sol, e tudo na Terra é o Sol, onde está o Diabo? Não
seria contudo o Diabo esse enigma que jaz no mistério de progressivamente, do fóton, à planta, à vaca
etc., acumular-se energia conforme ela é ingerida, o que nos causa grande estranhamento e engendra
das mais diversas ideações sobre o que se fazer com isso? Não é isso que convenciona-se chamar,
também, em determinadas ontologias, de capital? De forma então que o Sol seria Deus e o Diabo
seria, portanto, qualquer tentativa de controlar o fluxo da luz (no que o modo de vida baseado nesse
controle seria portanto o capitalismo)? (Seria Glauber da Rocha, para além de comunista, um
heliocrata?)
É assim que chegamos na terceira e última interpretação, catalisada por uma série de reflexões
que o comportamento da personagem Rosa, esposa de Manoel, levanta. Durante toda a trama Rosa
parece mais ou menos indiferente aos delírios megalomaníacos do marido. “Vamos só voltar pra roça,”
ela diz para Manoel. O marido a ignora e se, a princípio, ela responde no mesmo tom, Rosa

18
Em A parte maldita, Georges Bataille desenvolve o que ele chama de economia geral: uma economia baseada no fluxo
solar e na ideia de que através dele a energia sempre aumenta, sendo obrigatoriamente despendida gloriosa ou
catastroficamente em seguida. Deus e o Diabo na Terra do Sol é um filme que insere-se no registro da economia geral.
Porque iremos contrapor a ideia de ctonomia à ideia de economia geral como possível alternativa à economia política,
optamos por explicar desprovidos desse léxico.
progressivamente manifesta mais e mais sua desaprovação quanto a maneira como estão levando sua
vida, até que Manoel acusa-a, perante toda a comunidade de Sebastião, de ser bruxa. O que se segue é
que Manoel agride Rosa e o episódio é utilizado por Sebastião como punição exemplar, no que o
messias afirma que sim, é necessário pagar os pecados e, na verdade, mais que isso, oferecer
sacrifícios de sangue. Manoel procede então a oferecer um bebê para Sebastião, que o mata. Rosa
então levanta-se do chão, pega o punhal das mãos de Sebastião e, sem pestanejar, mata o suposto
messias.
A segunda cena que chama atenção no comportamento de Rosa, sempre aparentemente tão
indiferente e quase invisível, é quando ela e Manoel já estão juntos do cangaceiro Corisco e sua esposa
e, ao invadirem uma festividade, Rosa pega um véu de noiva e coloca-o docemente na cabeça, como
se não estivessem em meio a um banho de sangue. A esposa de Corisco vem a ela e elas brincam e
chamam atenção à graça do véu. Num terceiro episódio, sem muita cerimônias também e em meio a
cenas de violência entre os homens, Rosa e a esposa de Corisco compartilham um momento de
sensualidade, acariciando-se e ensaiando um beijo. Num quarto e último momento Rosa beija Corisco
- igualmente de repente. Se essas parecem as cenas mais deslocadas do filme, podem também revelar
alguma coisa quanto à visão glauberiana. Deus e o diabo é um jogo de homens. Na terra do Sol só há
espaço para a luz, e as mulheres, em sua capacidade de brincar e serem doces, em sua energia yin são
quem estão realmente preocupadas com o surgimento do novo, e, enfim, não com controlar a luz, mas
dar a luz. Haveria uma cumplicidade entre o feminino e o inumano e Glauber Rocha vislumbra isso ao
desmontar a mentalidade agrária brasileira rompendo logo com seu traço fundamental, fazendo ruir
toda a construção, no que o valor não vem da terra mas do Sol. Por tabela, não viria do homem, mas da
mulher, não viria do trabalho, mas do ócio, e não engendraria morte, mas vida. (Seria Glauber Rocha
xenofeminista?19)
Bacurau resgata todos os códigos masculinistas que a concepção mítica e religiosa do sertão
fornecem à mentalidade agrária, porém com a chave virada para o outro lado ao trazer na cabeça um
boné do MST. Não à toa, os vilões morrem no final, num espetacular banho de sangue. Já o filme de
Glauber Rocha, que é constituído desde o início por cenas de violência, encerra-se sob relativa paz,
com uma das protagonistas grávidas. E eles estão indo embora do sertão, quem sabe para o Grande
Sertão de Guimarães Rosa, com suas veredas, ou ainda lugares outros, num indício talvez de
imagens-brasis que sejam outras que não esse sanguinário mito reencontrado novamente em Bacurau,
de onde ninguém quer ir embora no fim da história. E no caso, porque é novamente a visão
paradisíaca: as pessoas são fortes e detentoras de um saber ancestral particularmente ressaltado nesse
filme, em que é demonstrada uma grande comunhão com o telúrico (totalmente ignorando a relação
que a terra possa ter não só conosco, mas com a esfera urânica, relação essa explorada em Deus e o
Diabo na Terra do Sol, e com a esfera ctônica, essa elaborada na obra Os Sertões, de Euclides da
Cunha, a qual chegaremos em breve), no que a população de Bacurau tem por hábito o consumo de
uma planta alucinógena que é o que, ao que tudo indica, permite à cidade tornar-se uma espécie de
inteligência artificial em que às próprias paredes e o chão da cidade são cúmplice, junto a seus
moradores, do massacre que é o clímax do filme. O valor vem da terra. Ao mesmo tempo, os
moradores de Bacurau estão totalmente limitados quanto a suas capacidades técnicas. É o traço
invertido da agroindústria: se a indústria serve apenas à agricultura, onde não há agricultura não há
indústria. Não há portanto sentido sequer em falar-se nas outras duas querelas (indústria natural x
artificial e taxação), visto que como não há agricultura, não há indústria e, como não há nem
agricultura nem indústria mal há comércio. Os habitantes de Bacurau estão relegados a um tempo fora
do tempo particular à concepção mítica e religiosa da terra brasileira, eternamente nonada. Sumira,
inclusive, do mapa.
19
O xenofeminismo é uma filosofia aceleracionista feminista e neorracionalista em cuja visão qualquer racionalismo, na
verdade, haveria de ser feminista e vice-versa caso contrário não nenhuma das duas coisas seria.
Se o filme mais associado a Glauber Rocha na história do cinema brasileiro contemporâneo
lhe compreende tão mal, o que possivelmente há mais a dizer quanto à capilaridade de sua visão? Só
resta lamentar, no que Glauber Rocha permanece como um ponto fora da curva cuja potência criativa e
revolucionária fora jamais, em decorrência da brevidade da vida do artista e, talvez, da espinhosidade
de sua obra, materializada; ao mesmo tempo torna-se reificada a influência do cineasta e por isso,
também, a compreensão de sua obra. Espécie de versão cinematográfica dum cartum do Carlos Latuff,
Bacurau é uma platitude semiótica: não há nada a ser interpretado. O didatismo pedante do filme
torna-se quase idiotizante em suas linhas finais: “Você acha que o Lunga exagerou?” (ao decepar a
cabeça dos invasores), “Não.” (MENDONÇA FILHO e DORNELES, 2019). É difícil estar tão
distante de Glauber Rocha. Não porque não pudessem cabeças serem decepadas (o cineasta tem
inclusive um filme chamado Cabeças Cortadas) mas porque ele era contrário a qualquer tipo de
narrativa pedagógica. Segundo Bruna Carvalho, ao tratar do manifesto Estética do Sonho, lido por
Glauber Rocha na Universidade de Columbia, nos EUA, em 1971,

Ao desenvolver suas ideias sobre o que seria uma arte


revolucionária, o cineasta atesta que o fracasso da esquerda se
deveu, em grande parte, pela manutenção de uma “razão
conservadora” em suas criações culturais e artísticas, com a qual
seria necessário romper. “Uma obra de arte revolucionária
deveria não só atuar de modo imediatamente político como
também promover a especulação filosófica, criando uma estética
do eterno movimento humano rumo à sua integração cósmica”
(ROCHA, 1981, p. 219). O cineasta entende que os artistas de
esquerda, ao tratar as “massas pobres” com paternalismo,
somente inverteram o sinal, sem, contudo, alterar a lógica do
mesmo pensamento colonizador e racionalista pregado pelas
correntes mais conservadoras da sociedade. Escreve: “A razão de
esquerda revela herdeira da razão revolucionária burguesa
europeia. A colonização, em tal nível, impossibilita uma
ideologia revolucionária integral que teria na arte sua expressão
maior, porque somente a arte pode se aproximar do homem na
profundidade que o sonho desta compreensão possa permitir”
(idem, ibidem). Glauber defende, nesse manifesto, que as
vanguardas do pensamento não construam uma resposta baseada
na razão para combater a razão opressiva: a revolução deveria
ser, a seu ver, uma cruzada anti-razão, e, portanto, baseada no
transe, na possessão, no caos que brota dos afetos, do
inconsciente.
(CARVALHO, Bruna, 2019, p. 97)

Para resumir utilizando os termos de Glauber Rocha em Estética do Sonho, Bacurau é um


filme paternalista que apenas libera a “força revolucionária da mitologia popular” sem contudo abrir
mão de seu padrão racionalista e conservador, dando vida a uma obra “imediatamente política”,
quando dizia o cineasta: “Minha ação política nascia de minha visão cinematográfica e não de uma
simples instrumentalização didática do meu trabalho e de uma possível comercialização” (ROCHA,
1997, 421-422 apud CARVALHO, Bruna, 2019, 98-100). Panfletário, Bacurau acaba resgatando o
conservadorismo particular da mentalidade agrária ao querer traduzir pedagogicamente determinadas
posições políticas cuja essência, em decorrência da necessidade de didatismo, desaparece e apenas
reestrutura-se a ideia dual da terra fazendo da esquerda uma estética - a reiteração da mentalidade
agrária, porém com sinal invertido ao trazer na cabeça um boné do MST. Considerando o impacto do
filme e que haveria uma suposta influência glauberiana (que como vimos, é puramente cenográfica), é
duvidoso portanto que já tenha alguma vez sido bem sucedida qualquer tentativa de romper
efetivamente com essa ideia dual da terra. Via de regra, as imagens da terra-brasil seguem ainda hoje
inserindo-se no registro espacial de paraíso x inferno, tendo sido pela primeira vez suas abertamente
religiosas vestes notoriamente despidas no século XIX com a obra de Augusto dos Anjos e Graça
Aranha, e na verdade ela introduz uma novidade que é o que vai nos permitir, enfim, adentrarmos a
terra e inserimos-nos no registro duma filosofia da energia, ou meta-humana (ou inumana, ou
daemonológica), que é um aspecto ctônico que vai manifestar-se em Augusto dos Anjos através da
putrefação, em João Cabral de Melo Neto através da mineralidade e adquirir em Graça Aranha um
aspecto fantástico semelhante ao do assim chamado horror cósmico. O elemento subterrâneo e seus
circuitos retroalimentativos com a superfície e o que há acima dela é o que vai, por fim, trancar a
mentalidade agrária numa inexorável metafísica fatalista.

3. “A podridão me serve de Evangelho”: cumplicidades orgânico-minerais

O movimento concêntrico de volta para o interior adquire então um segundo sentido. Poderia
argumentar-se que a despeito de suas contradições, a ida para o interior foi bem sucedida. Afinal,
como dissemos na introdução, há um verdadeiro Mega Centro-Oeste a movimentar a economia. Ou
seja, ainda que a coisa seja um barco furado, de alguma maneira misteriosa, ele segue navegando. Essa
impressão se dá porque a visão econômica da coisa ignora um sentido do que significa voltar-se para o
interior (no que verá-se que não há barco furado algum; apenas assim o pensamos porque julgamos o
barco ser nosso; o barco não é nosso). Voltar-se para o interior não significa apenas adentrar
geograficamente a superfície do território onde se encontra, mas também adentrar-se para o interior do
terreno. Seria talvez mais preciso dizer que o circuito agro-industrial roda não através do humano mas
a despeito dele. O que aparentaria dizer respeito a uma economia entre frações de classes, no limite de
nossa perspectiva humana, pode ser encarado sob a perspectiva de um telúrico com seus outros - o
ctônico e urânico (abaixo da superfície, acima da superfície). Argumentamos, como dito, que não há
qualquer motivo para atribuir a explicação unicamente à sua humanidade; da mesma forma não
haveria motivo para explicá-la unicamente através de sua inumanidade. Mesmo se desconsiderarmos a
possibilidade dessa hipótese ser mais precisa, é também nada senão forçoso, numa época onde muito
se fala em transição energética, pensar então uma perspectiva das fontes energéticas, e há poucos
espaços tão propícios a emergência de agências inumanas (ou meta-humanas ou, ainda,
daemonológicas) quanto o espaço da putrefação.
Os processos de decaimento são o ponto de contato entre realidades ontológicas diversas, o
canal de comunicação entre o ctônico, o telúrico e o urânico. Não à toa, a Inquisição teve, na Idade
Média, uma fixação quase obsessiva por um moleiro que, ao observar o processo de cura do queijo,
julgou ter entendido Deus, passando então a pregar toda uma metafísica da podridão. “O mundo tem
origem na putrefação”, disse Mennochio, no caso relatado no célebre O queijo e os vermes, do
historiador italiano Carlo Ginzburg, de 1980. A quantidade de vezes que Mennochio fora levado a
depor perante a Inquisição parece revelar que, acima de tudo, tinham os inquisidores uma enorme
curiosidade sobre como ele chegara àquelas conclusões. No Brasil, a realidade do mundo ínfero se
apresenta, como quase sempre se dá entre as visões de mundo, primeiro na arte. Vale notar que boa
parte da literatura do Padre Anchieta já trazia um elemento de horror que tanto caracteriza a realidade
interior, mas essa visão aparece já mais elaborada apenas com Augusto dos Anjos, já no século XIX:

Aquele ruído obscuro de gagueira. Que à noite, em sonhos


mórbidos, me acorda, Vinha da vibração bruta da corda, mais
recôndita da alma brasileira! Aturdia-me a tétrica miragem. De
que, naquele instante, no Amazonas. Fedia, entregue a vísceras
glutonas, A carcaça esquecida de um selvagem. A civilização
entrou na taba. Em que ele estava. O gênio de Colombo Manchou
de opróbrios a alma do mazombo, Cuspiu na cova do
morubixaba! E o índio, por fim, adstrito à étnica escória. Recebeu
tendo o horror no rosto impresso, Esse achincalhamento do
progresso Que o anulava na crítica da História!... De repente,
acordando na desgraça, Viu toda a podridão de sua raça...Na
tumba de Iracema!...Ah! Tudo, como um lúgubre ciclone. Exercia
sobre ela ação funesta desde o desbravamento da floresta À
ultrajante invenção do telefone. E sentia-se pior que um
vagabundo Microcéfalo vil que a espécie encerra. Desterrado na
sua própria terra. Diminuído na crônica do mundo! (Canto IV- Os
Doentes)

“Desterrado na sua própria terra.” Augusto dos Anjos nada menos que introduz a inumanidade
à imagem de terra-brasil. Como é possível haver um desterro em própria terra? Isso não pode se dar
não senão porque não é a humanidade (desterrada) o que encerra a terra. Há forças outras em ação, e
elas engendram processos fisiológicos e metabólicos em que o humano é com sorte apenas espectador,
e com sorte pois mais vezes do que não lhe é a própria carapaça:

Sou uma Sombra! Venho de outras eras. Do cosmopolitismo das


moneras... Pólipo de recônditas reentrâncias, Larva de caos
telúrico, procedo. Da escuridão do cósmico segredo, Da
substância de todas as substâncias! (...) Com um pouco de saliva
quotidiana, mostro meu nojo à Natureza Humana. A podridão me
serve de Evangelho... Amo o esterco, os resíduos ruins dos
quiosques. E o animal inferior que urra nos bosques é com
certeza meu irmão mais velho!

Quem sou eu? Eu sou a putrefação. Eu sou o limiar ontológico entre uma coisa ser uma coisa e
uma coisa tornar-se outra coisa - e ser outra coisa. Eu sou o seco que se umidifica, o vazio que se
preenche, a completude que desmorona, a maciez que vira pedra. Eu sou a vida que vira morte e a
morte que vira vida, eu sou o ciclo. Augusto dos Anjos está falando de circuitos daemonológicos
retroalimentativos, em que o humano é um mero detalhe. Conforme Reza Negarestani em Undercover
Softness (Maciez Disfarçada), a putrefação seria um processo criativo mascarado num processo
destrutivo, em que a construção se dá através de uma crescente exteriorização de suas interioridades,
fazendo com que coesões tópicas abram-se para agentes ontológicos alienígenas (xenoagentes) que
vão transformar-lhes radicalmente, virando-lhes do avesso. Diz o filósofo iraniano:

O processo construtivo da decomposição é subtrativo, que quer


dizer que é concomitantemente intensivamente negativo e
extensivamente positivo. Assim como o vetor de uma subtração
perpétua acrescenta ao montante subtraído ao deduzir do que é
subtraído, o processo de decomposição gera formas diferenciais
ao limitropicamente subtrair do objeto apodrecido. Esse processo
é manifesto vivamente na fruta apodrecida conforme ela gera
gradientes de decomposição e diferencia em próximas e distantes
derivações da fruta apodrecendo - seu cheiro rançoso, vermes,
mudanças de cor, enzimas secretadas etc. - que constituem o
vetor positivo da construção da decomposição. Enquanto a fruta
ainda murchar, ela dá vazão a suas derivativas ou gradações de
decomposição. Na verdade, quanto mais um objeto murcha, mais
remotas e portanto estranhas se tornam as derivações pútridas e
as formas diferenciais. O processo de decomposição, portanto,
exacerba a escurecedora indeterminância impregnada no coração
de toda cosmogênesis subtrativa: não é mais possível determinar
quanto um pode perder ou encolher antes que se torne vazio e
zero e quanto um pode vomitar e gerar antes que se torne a
natureza ou Deus.

Com a poesia podre de Augusto dos Anjos, realiza a imagem sertaneja da terra-brasil uma
incursão a esse potencialmente infinito mundo ínfero. O pensamento agrário estaria ligado à podridão,
no que inicia-se uma expedição rumo ao hadeano. Permanece a terra brasileira infernal. Há agora uma
nova dualidade, no caso, quanto à natureza deste inferno: antes apenas destrutivo, a perspectiva da
putrefação introduz uma criação-na-destruição; intensivamente negativo e extensivamente positivo,
como disse Negarestani (ao subtrair-se não apenas se decompõem mas também soma-se o montante
subtraído). A descida ao interior, do ponto de vista da imagem da terra-brasil, representa, de certa
forma, uma troca das vestes abertamente religiosas por vestes fantásticas. O mundo torna-se mágico e
a natureza viva:

O cupim negro broca o âmago fino, do teto. E traça trombas de


elefantes, com as circunvoluções extravagantes, do seu
complicadíssimo intestino O lodo obscuro trepa-se nas portas
Amontoadas em grossos feixes rijos. As lagartixas, dos
esconderijos, estão olhando aquelas coisas mortas! Fico a pensar
no Espírito disperso. Que unindo a pedra ao gneiss e a árvore à
criança, como um anel enorme de aliança, Une todas as coisas do
Universo! E assim pensando, com a cabeça em brasas Ante a
fatalidade que me oprime, Julgo ver este Espírito sublime,
Chamando-me do sol com as suas asas! Gosto do sol ignívomo e
iracundo. Como o réptil gosta quando se molha. E na atra
escuridão dos ares, olha melancolicamente para o mundo!
(Gemidos de Arte)

Como é comum na literatura fantástica, há uma linha tênue entre a maravilha e o terror. Não à
toa, na língua inglesa, horror é a raiz etimológica tanto de horrific (como que “ótimo”) e horrifying
(como que “horrificante”). Esse traço, novamente ambíguo, torna-se mais evidente no que chegamos
ao segundo autor seminal dos subterrâneos da terra brasilis: Graça Aranha, que descreve um Brasil que
em sua natureza colossal, torna-se para todos os efeitos incompreensível, antecipando o assim
chamado horror cósmico lovecraftiano, caracterizado pela estupefação paralizante perante o encontro
com seres e realidades de natureza que seriam quase incognoscíveis para nós, no que o eventual
momento de cognição dessa ontologia diversa implica o próprio momento em que poderia perde-se até
mesmo a sanidade. Na obra de Graça Aranha é a própria terra brasileira um monstro alienígena; o
Brasil seria incompreensível, um assombro, encantado com a própria natureza:

Aqui o espírito é esmagado pela estupenda majestade da


natureza. Nós nos dissolvemos na contemplação. E, afinal, aquele
que se perde na adoração é o escravo de uma hipnose: a
personalidade se escapa para difundir na alma do Todo. A floresta
no Brasil é sombria e trágica. Ela tem em si o tédio das coisas
eternas. (...) O espetáculo de uma grande mata brasileira é
assombroso, não é?. É. A verdade, porém, é que, ao tocarmos a
região do assombro, tal espetáculo nos priva da liberdade, de ser,
e afinal nos constrange. É o que acontece com esta força, esta luz,
esta abundância. Nós passamos por aqui em êxtase, não
compreendemos o mistério.
É com Graça Aranha, também, que surge o elemento final na constituição da
metafísica fatalista, e ele é essencialmente inumano, no que é, para todos os efeitos, a opressão do Sol
o que torna no Brasil as coisas como são. Como diz Jairo Dias Carvalho, “Para Graça Aranha, a
natureza tropical luxuriante é um poder opressor. (...) Para esta visão, (...) somos incapazes de
controlar, organizar e superar o assombro da imensidão produzido nos trópicos e permanecemos
‘encantados’ com a natureza.” É difícil não pensar numa certa mentalidade contemporânea (ano de
redação: 2023) que se reapresenta toda vez em que algo minimamente histórico (algo com uma chance
de figurar nos livros de História do futuro) acontece no país: como essa coisa não faz o menor sentido,
é absolutamente inexplicável, e não só só pode haver um roteirista por trás disso tudo, como ele
certamente enlouqueceu. Há uma obra que encerra essa ideia, a web-série, não à toa abandonada após
o segundo episódio, Sala de Roteiro, de 2020.
A série, que contava com um elenco estelar, imaginava como seria se o Brasil fosse, ele
mesmo, uma série, e como seria a sala de roteiro dessa série. Escrita por Antônio Prata, Sala de
Roteiro brincava com, por exemplo, o redator-chefe recusar-se a colocar o personagem Fabrício
Queiroz (um dos principais capangas do ex-presidente Jair Bolsonaro) escondido na casa do Wassily
Wassef, já que Wassef é advogado da família Bolsonaro e seria muito inverossímil que o Queiroz,
então desaparecido, estivesse lá escondido. No fim, a equipe decide seguir com essa decisão para
poupar gastos, visto que a casa do Wassef fica em Atibaia, no interior de São Paulo, e a cidade já tinha
sido usada como locação para a temporada sobre o sítio do presidente Lula. Contudo, como dito, não
mais que dois episódios foram lançados. Teriam os realizadores da série concluído que é impossível
competir com o Brasil?
A literatura dum Brasíl ínfero introduz a ideia de que a natureza do Brasil seria
inampreensível. Por isso mesmo, diz Graça Aranha, “Não é possível haver civilização neste país…”,
da mesma forma que não é possível haver uma história, uma série, no caso, que trate efetivamente
desse horror cósmico brasileiro. “A terra só por si, com esta violência, esta exuberância”, continua
Graça Aranha, “é um embaraço imenso...” Resta apenas resignar-se às coisas que fazem sentido.
Certamente não o Brasil, onde seguimos todos diariamente estupefatos. O país do futuro nunca chega
porque, enquanto, por exemplo, na sociedade chinesa o presente não é empurrado pelo passado, mas
desenrolado do novelo do futuro, no Brasil o passado está o futuro está implicado na manutenção do
passado: qualquer coisa significativa que possa acontecer é quase inacreditável porque há uma
inversão entre causa e efeito: invés do efeito explicar a causa (ou a causa explicar o efeito), o efeito é
sempre incausado. Do ponto de vista de economia política, o futuro que deve reiterar o passado é
também presente: deve-se industrializar, mas essa industrialização deve servir à agricultura apenas,
fechando-se assim o buraco-de-minhoca. Diz Graça Aranha:

A natureza é uma prodigiosa magia. E no Brasil ela mantém nas


almas um perpétuo estado de deslumbramento e de êxtase. É a
eterna feiticeira. Tudo é um infinito e esmagador espetáculo, e os
personagens do drama do sortilégio são a luz que dá o ouro aos
semblantes das cousas, as formas extravagantes, as cores que
assombram, o mar imenso, os rios volumosos, as planícies cheias
da melancolia do deserto, a floresta invasora, tenaz, as arvores
sussurrantes, castigadas pelos ventos alucinados ... E o espirito do
homem desvaira... Ele não se sente em comunhão com a
natureza. A imaginação faz surgir uma mythologia selvagem, que
floresce em seres fantásticos, deuses e lendas. Há um grande
enigma no prestigio da natureza sobre o homem, e quase sempre
esse é a imagem espiritual do meio físico em que se formou e
viveu despercebido. Se ele é um homem do mar, é como um
rochedo meditabundo, calado. Se é um camponês, a sua intima
representação é a da arvore, imóvel, silente, fecundo. Se é um
mineiro, participa da essência misteriosa da terra. No Brasil, o
espirito do homem rude, que é o mais significativo, é a passagem
moral, o reflexo da esplendida e desordenada mata tropical. Há
nele uma floresta de mythos. São lendas de todas as partes que ali
se encontram... deformadas em longas peregrinações e
entrelaçadas às lendas toscas, grosseiras, vindas na invasão negra,
e àquelas que nascem nas selvas americanas, mythos physicos da
natureza, formando um só e intricado todo, misterioso e
extravagante, que é a alma do homem brasileiro. E para esta os
personagens fabulosos têm uma vida real, são tangíveis e ativos,
sejam as belas e enigmáticas mães d'agua ou os errantes e
tenebrosos curupiras. E o objetivismo mythologico é tão intenso
nos espíritos ainda primitivos que não se pôde precisar onde
começa para eles a realidade objetiva e onde acaba o sonho na
floresta dos mythos.

Essa floresta de mythos característica do fatalismo que é a eterna estupefação que se dá em


virtude da natureza obrigatória e essencialmente incompreensível e opressiva do Brasil é o que vai
terminar de constituir a concepção mítica e religiosa que a pessoa brasileira tem da sua terra ao
introduzir uma espécie de livre-misticismo. Não é nada incomum no Brasil que a crença e a prática
religiosa da população brasileira se dê através duma verdadeira magia do caos totalmente sincretista e
utilitária. Se realizar-se uma pesquisa ao fim de qualquer missa católica que possa eventualmente estar
agora acontecendo, uma grande porcentagem das pessoas entrevistadas ao dela sair provavelmente
responderia sem titubear, caso indagada, que acredita em reencarnação - elemento inexistente no
cristianismo, onde invés de reencarnar-se, ressuscita-se. E isso se dá porque o verdadeiro deus dos
brasileiros não é YHWH, mas alguma espécie de Jesus subterrâneo, pois há também na terra, através
da putrefação, a oportunidade de (uma certa) ressurreição. E a postura perante essa divindade é uma
que é caracterizada, a despeito das práticas ordinárias perante uma divindade, como sua adoração, pelo
horror cósmico. Vivemos simultaneamente horrorizados e maravilhados com o Brasil o tempo todo
porque o agrarismo, mentalidade predominante no território brasileiro, seria um culto à morte, um
deus morto.
Do ponto de vista inumano, isso é expresso no fato de adubo ser basicamente dejeto orgânico,
no fato de aditivos agrícolas serem basicamente constituídos de misturas orgânico-minerais
(telúrico-hadeanas) e pelas máquinas agrícolas, imensos monstros bebedores de óleo, serem
alimentados por essencialmente nada menos que o suco hadeano que é o petróleo. É isso que vai
explicar, também, no que encerramos a parte de economia política, enfim, o crescente poder da
população evangélica. O neopentecostalismo, em particular, apresenta-se como superestrutura perfeita
para o livre-misticismo fatalista. E o motivo disso é o mesmo pelo qual tem problema com as religiões
de matriz afro-brasileiras os evangélicos: estão disputando as forças da terra, estão disputando
daemons20 que correm soltos numa floresta de mythos que em decorrência da visão dual da terra (a
indecidibilidade quanto à natureza ora paradisíaca, ora infernal da terra), lançara-lhe num mundo
fantástico em que as coisas são excessivamente significativas, por definição inampreensiveis, gerando
uma situação fatalista onde não só os eventos não poderiam ter se dado de outra forma, é ao mesmo
tempo, de alguma misteriosa maneira, impossível explicar de fato que causa teria gerado tal efeito, o
que leva, por um lado, a essa eterna mistura de maravilha e horror perante os eventos do cotidiano

20
brasileiro e, por outro, a um encantamento das coisas todas que vai substituir o catolicismo por uma
espécie de politeísmo vulgar cujas agências podem ser acessadas através da comunhão com o telúrico.

No catolicismo, não há comunhão com o telúrico pois é uma religião essencialmente telúrica
(“Do pó viemos, ao pó voltaremos”, Gênesis 3:19). A comunhão com o divino se dá uma esfera acima:
no urânico, o mundo celestial para onde olhamos quando pensamos em Deus ou em outras coisas
misteriosas. A comunhão com o divino ctônico característico da sociedade brasileira se dá, na mesma
lógica, uma esfera acima, no caso, no telúrico. O neopentecostalismo apresenta-se como carapaça
apropriada a nosso Jesus subterrâneo, alimentado pelas forças da terra, sejam elas quais forem, não
apenas porque não tem, em tese, imagens, mas porque é capaz de trabalhar, também, em seus fiéis, as
energias telúricas. Enquanto na missa católica fala pela maior parte do tempo um padre, uma única
pessoa, mais vezes do que desejaria-se, em absoluto monotom, entremeado por um número de antigas
e monótonas canções católicas, o culto evangélico tem potencial para ser uma arrebatadora
experiência audiovisual. Verdadeiros shows, não há para a cultura evangélica qualquer ritmo que não
seja apropriado ao culto. Na realidade, a lógica de territorialização e desterritorialização
neo-pentecostal é uma que é uma espécie de demonologia às avessas: qualquer coisa, não importa
quão aparentemente distante esteja da moral pretendida, pode ser diagonalizada rumo à sua essência
inversa.
Se heavy-metal é coisa do diabo, agora há heavy-metal cristão; se funk é coisa do diabo, agora
há funk cristão etc. Há uma colheita de significantes que reifica-lhes cada um deles no caminho e
sobra-se nada senão pedra, puro fóssil. Ao invés de entender cada coisa à sua maneira, o
neo-pentecostalismo falsifica todas as potências no inverso do que pretenderia, sendo pretensamente
monoteísta. Num monoteísmo eficiente não há necessidade de traduzir todas coisas no que se entende
por essência ou imagem de Deus; cada coisa, por mais díspar que possa parecer, seria um modificação
do único Deus - é essa a novidade do judaísmo. Ou seja, ao ver-se obrigado a trazer todas as coisas
para uma certa visão do divino, o neo-pentecostalismo faz a proeza não de não ser nem, no âmago,
politeísta, nem monoteísta de maneira eficiente. Confunde as duas posições numa anti-daemonologia
que, na verdade, considerando que a prática religiosa bem feita é, no fim, proveitosa ao ser humano,
traduz-se numa prática religiosa essencialmente inumana. Do e para o inumano.
Como no processo de putrefação, o mecanismo neopentecostal de reificação engata a alma
humana num processo de deicamento, impelindo-a animar as coisas todas. Os objetos, é claro, não são
realmente afetados; é a humanidade que é esfacelada, pois se poderia parecer que trata-se dum
antropocentrismo, mais preciso seria falar em algo nas linhas dum antropo-libido-centrismo, pois é a
força do desejo, no caso um desejo de comunhão com esse Cristo plutônico, residente nas entranhas do
mundo e nas crescentes e solapadas entranhas que apresentam-se em série na decomposição, o que
informa a mentalidade neo-pentecostal perante as coisas todas. O mundo torna-se a versão putrefata do
homem, exteriorizado para além do reconhecimento. Não só o mundo é extremamente perigoso, ele
torna-se realmente horrível, e é esse horror o que vai acoplar-se, como um vírus, aos circuitos
libidinais da mentalidade neopentecostal. Pode parecer que essa camada da população tem um grande
problema com o que concebem por imoralidade, mas a verdade é que esse momento, o momento da
denúncia do imoral, é o momento do gozo. E quão maior a imoralidade, no que parentes, colegas e
políticos inundam nossas redes sociais com as notícias mais asquerosas da face da Terra, maior o gozo.
Ou seja, se a comunidade neopentecostal “vencesse a batalha” que julga estar travando, já não mais
existiria, pois é constituída de negatividade pura.
Contudo, como disse Negarestani, o processo de decomposição (que no caso o
neopentecostalismo engendra) não é inteiramente negativo. Ele é apenas intensivamente negativo
(para dentro, no que, no caso em tela, a alma humana vai sendo subtraída a fim de animar cada um dos
objetos, o que “não funciona” pois cada objeto tem sua própria ontologia); do ponto de vista do para
fora, isto é, extensivamente, a putrefação é positiva, no que, ao passo que as coisas vão sendo
falsificadas para dentro do neopentecostalismo, também são as pessoas, no que a população evangélica
passou de 15,4% em 2000 para 26% em 2022 (medições essas que, é claro, ignoram o livre-misticismo
caoísta da religiosidade brasileira). O ente apodrecente, nesse processo, murcha na medida exata em
que varia limitropicamente, e como diz Negarestani,

O processo de decomposição, (...) exacerba a escurecedora


indeterminância impregnada no coração de toda cosmogênesis
subtrativa: não é mais possível determinar quanto um pode perder
ou encolher antes que se torne vazio e zero e quanto um pode
vomitar e gerar antes que se torne a natureza ou Deus.

Perpetuamente subtraída ao ser impelida a animar as coisas todas, que não pediram por isso, a
alma humana é, no neopentecostalismo, esvaziada, e assume a consciência a voz ínfera que habita as
profundezas hadeanas e as intra-profundezas exteriorizadas nos processos de putrefação. Não sobra
humanidade alguma no ultra-libidinismo, como bem dissera Georges Bataille: “” Através do
neopentecostalismo, é a morte quem fala. Lançando mão duma premissa que ainda que performe um
monoteísmo às avessas, aparente ser não contraditória, em que Deus está ausente da maioria das
coisas, tendo que ser até elas levado, sua realização imediata e obrigatoriamente lhe contradiz. O
secularismo brega do neopentecostalismo é a versão esfarrapada do ser humano. Como diz
Negarestani na Cyclonopedia (2008)21, “a maciez da putrefação”, isto é, sua capacidade de afetar-se e
variar-se, “é precisamente a produção de sua ironia.”
Voltaremos a isso em breve, quando terminarmos de traçar nosso desenho. Visto como se
estrutura o complexo agro-industrial (Boi), e como ele se relaciona, através duma cumplicidade
telúrico-ctônica, à religiosidade mística e fatalista do povo brasileiro (Bíblia), resta adentrarmos agora
o campo da Bala. Dando continuidade à nossa análise das imagens da terra-brasil, chegamos a que é
possivelmente o mais paradigmático desse signos: Os Sertões, de Euclides da Cunha, o notório relato
do fim da Guerra de Canudos precedido por uma minuciosa e exaustiva descrição primeiro da terra e
em seguida do homem sertanejo, escrito por um engenheiro a serviço do jornal O Estado de São
Paulo, vulgo Estadão, curiosa e talvez ironicamente aquele que é provavelmente o mais conservador
dos grandes jornais brasileiros. Será testada nesse artigo a hipótese de Jairo Dias Carvalho de que a
Guerra de Canudos pode ser compreendida, à luz d’Os Sertões, como modelo de crise da sociedade
brasileira. Para tanto, explicaremos à luz desse modelo, que demonstraremos ser um que trata da
inumanidade, a mais recente grande crise da sociedade brasileira, as Revoltas de Junho de 2013. É essa
compreensão (da relação entre o inumano e a história humana) o que vai, no fim, explicar o Complexo
BBB.

4. Terra em Transe: A Guerra de Canudos como modelo de crise da sociedade brasileira

Na guerrilha urbanizada, balas são - de maneira


inteiramente não-metafórica - a nova população da
cidade, e as cidades são urbanizadas tanto pelos
movimentos, trajetórias, calor e barulho das balas
quanto por sua superfície química. Balas são
cidadãos perfeitos. (...) Se o calor é, nas atuais
megalópoles, um indicador e uma prova existencial

21
do avanço da civilização, então o calor produzido
por balas em terrenos urbanos é maior do que todas
as contemporâneas medições de densidade,
modernização, população, velocidade e
complexidade civilizacionais. Balas podem
terminalmente modernizar uma cidade inteira numa
noite.
Reza Negarestani (Ciclonopedia)

Numa das incontáveis descrições da terra sertaneja que realiza em Os Sertões, Euclides da
Cunha comenta, no segundo capítulo referente à Quarta Expedição, como aquela floras estranhas, com
sua topografias atormentadas, estão22 “Escritas numa página revolta da terra que ainda ninguém lera.”
É duvidoso que seja amplamente compreendida a absoluta literalidade da afirmação. A imagem da
terra-brasil euclidiana é uma que não só sintetiza o percurso que estamos realizando (e que como
vimos brevemente, fora criticada, sem contudo engendrar uma virada, na obra de Glauber Rocha)
como na realidade nos fornece as ferramentas para que possamos não só encaminharmos-nos para a
conclusão de nossa expedição pelo BBB, no que poderemos investigar o terceiro dos Bs (bala), como
também para pensarmos uma verdadeira ctonomia política brasileira. A síntese euclidiana, vai dizer
Jairo Dias Carvalho23, “se baseia numa peculiar concepção da terra que é uma verdade analógica para
nosso mundo.” Isso quer dizer que, num sentido, “o mundo” é uma metáfora para o que ocorre na terra
- para o que ocorre dentro dela. Os acontecimentos na superfície do planeta seriam apenas dissipação
de intensidades geológicas.
O sertão, imagem paradigmática da terra-brasil, emaranhado de dualidades aninhadas em
tensões aparentemente irresolutas, apenas assim se apresenta às ciências e às artes ocupadas com
pensar o Brasil pois é ponto de partida tão pacificado que sequer vale-se a pena mencionar, ou
defender-se que assim seja, o ser humano como centro da discussão. Do ponto de vista da terra e das
agências inumanas que nela habitam, faz tudo o mais perfeito sentido. O martírio do brasileiro
apresenta-se duplamente fatal (é simultaneamente incontornável e inexplicável, no que as relações de
causa e efeito são colapsadas numa metafísica do horror que encanta a vida brasileira num
livre-misticismo ultra-supersticioso) porque é, na realidade, apenas expressão ou modo menor do
martírio da terra. Diz Jairo Dias Carvalho:

A dualidade do sertão é internalizada. (...) (Há) a fúria dos


elementos e luta contra eles. Há um componente não humano e
humano no enfrentamento. A seca (o mal antigo, o flagelo trágico
e cíclico) será uma das traduções do martírio da terra para o
homem e os outros seres vivos já que as plantas também a
enfrentam.

Retomando nossa reflexão cinematográfica, enquanto em Bacurau a terra é dotada de uma


inteligência que é perfeitamente cúmplice dos humanos e de suas complexidades, ajudando a
população de Bacurau a expulsar justamente quem eles queriam expulsar, no caso, os gringos, em
Deus e o Diabo na Terra do Sol, verdadeira expressão da inumanidade, o sertão expulsa a todos. O
sertão, em sua luta contra a seca, é, também à maneira da putrefação, uma eterna exteriorização de
interioridades, um eterno jogar pra fora. Não à toa, é o êxodo o que caracteriza a vida sertaneja e,
como o filme de Glauber Rocha deixa claro, não apenas da vida humana no sertão, mas de toda a
22
23
existência sertaneja, no que jaz no horizonte impossível sua completa inversão ontológica, em que o
sertão, de alguma forma, vai virar mar. E é essa potência de ressurreição que há na terra o que vai não
só permitir como praticamente pedir pela intervenção na terra, autorizando assim a cosmovisão
tecno-religiosa do Complexo BBB.
Como vimos, a potência de ressureição que há na terra é uma que se dá através de
cumplicidades orgânico-minerais. Como no mito de Perséfone, a fertilidade da terra vem apenas após
um acordo com a mansão dos mortos24. Na literatura brasileira, a entrada no mundo ínfero ensaia uma
substitução da estética religiosa por uma fantástica que varia entre a maravilha e o horror. Refletimos
brevemente quanto ao fatalismo que essa mentalidade implica. Há contudo uma outra conclusão que se
tira dessa ideia dum Brasil onde a natureza é forte e o homem é fraco: a natureza precisa ser
exterminada. O Brasil apresenta-se, nesse sentido, como matadouro. Voltar-se para o interior retorna
como, talvez, voltar-se para o interior como guerra? Estaria certo Benjamin Moser quando diz que o
Brasil é um país auto-imperialista25? Mas não seriam todos os impérios também auto-imperialistas? De
que outra maneira explicar, por exemplo, a taxa de encarceramento da população negra nos EUA26? De
qualquer forma, foi mencionado na introdução mas é necessária a lembrança: há músicas de agronejo
que são propaganda de veneno fantasiadas de “canções”. E haveria essa ideia de extermínio justamente
porque a mentalidade espacial predominante no Brasil é uma expressão da própria relação desse
espaço com o mundo e, no caso, o sertão é, ele mesmo, a luta da terra contra a seca. Ou seja, é a luta
da terra contra o Sol, o que significa que as implicações gáicas a quais estamos submetidos se dão em
virtude da luta do telúrico, em comunhão com o ctônico, contra o urânico. A luta de Gaia contra o céu.
O Sol machuca a terra e a tudo seca. O motivo da metafísica fatalista e do livre-misticismo
poder engendrar, através do neopentecostalismo, uma decomposição do homem é que o sertão, em si,
não permite decomposição - sendo exatamente isso, portanto, o que ele projeta a quem nele busque se
informar. Euclides da Cunha descreve, em dado momento27, um soldado que, morto, não apodrecera.
Passados dias, não era visível qualquer sinal de decomposição. O corpo do soldado, na verdade, secara
e tornara-se um fóssil. Tamanha é a dimensão do circuito: os grandes seres que a superfície habitam,
geralmente tão agenciáveis, estão já no limiar topológico, pura casquinha. “A terra é um organismo”,
disse Euclides28 ao observar o sertão (muito antes, diga-se de passagem, da hipótese gáica29), e o
inimigo da terra é o deserto. E o sertão nada mais é do que o desertão.
Há, contudo, uma diferença radical entre o deserto brasileiros e outros desertos. Diferente da
imagem clássica de deserto, o mesmo encontrado nas histórias bíblicas, o sertão não é constituído por
uma topografia totalmente sublimada (só areia), mas sim por bolsões de ranhuras. Há, é claro, outros
tipos de deserto, como o deserto verde das plantações de soja, onde a soja se regozija em
cumplicidades diversas, e desertos gelados como na Sibéria, onde é, inversamente (clássica reversal
russa), a ausência do Sol o que dificulta a vida. Nosso deserto é semelhante ao deserto americano, o
velho oeste, contudo o posicionamento estadunidense perante o deserto é informado por uma
concepção diversa, em que o deserto é “um lugar que deve ser transformado num jardim cercado pelos
santos”30. Bem diferente da cosmovisão oriunda da dualidade original (paraíso x inferno) trazida ao
Brasil pelos portugueses. Cosmovisão essa que é enfim perfeitamente sintetizada quando Euclides da
Cunha interioriza a dualidade, transformando a moléstia cíclica que é a vida do homem sertanejo em
tradução do próprio ciclo vida-morte da natureza que é maximizado no sertão - extrapolado a ponto

24
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29
30
das coisas não mais, como vimos, decomporem-se. A linha entre a vida e a morte torna-se uma
navalha muito fina, uma fotografia onde o limiar quase eterno e ontologicamente criativo da
putrefação dá vez a um ser cuja aparência da morte não difere-se radicalmente da aparência da vida.
Ao mesmo tempo, nada está mais distante da morte no deserto do que a vida, posto que em outras
naturezas a morte de uns (nós, por exemplo) é o nascimento de outros (vermes, no caso).
Há um problema: nosso espaço, o do deserto, é o da ressurreição. Devido ao caráter inóspito
do deserto, o pós-vida, nas religiosidades tradicionais do deserto, implica, grosso modo, que
renasça-se noutro lugar, um lugar muito melhor. Em contra-parte, via de regra, as religiosidades
oriundas de povos que habitam regiões de fartura falam em reencarnação: volta-se para cá, esse lugar
maravilhoso. O espaço da mentalidade agrária, o do deserto, é um espaço para a ressureição, contudo a
mentalidade que nele se estrutura é uma que está baseada em cumplicidades orgânico-minerais
correspondentes aos ciclos da terra. Ou seja, acredita-se em reencarnação num espaço de ressurreição
onde nada, realmente, morre. O resultado religioso disso é que, para todos os efeitos, o
neopentecostalismo - disputando com as religiosidades afrobrasileiras os daemons que são liberados
quando todo pano de fundo passa a dar-se nas esferas inumanas - ao buscar encarnar as coisas todas
ao querer animá-las, subtrai-se perpetuamente e nada mais do que dá vida a verdadeiros mortos-vivos.
Há um devir-zumbi.
Isso acontece não senão porque o neopentecostalismo, ao travar o fatalismo e o
livre-misticismo num processo de desterritorialização e reterritorialização alimentado por um circuito
libidinal do horror, vence a batalha pela religiosidade sertaneja pois a divindade em questão é um Jesus
subterrâneo e o sertão nada mais é, como diz Euclides da Cunha, “a terra virando do avesso”31.
Comungando de sua geo-filosofia, não haveria qualquer motivo para supor que uma religiosidade
nesse espaço fundamentada não faria com seus adeptos o mesmo, isto é, virar-lhes do avesso. A
própria Guerra de Canudos, segundo a visão euclidiana, nada mais seria do que a exteriorização de
interioridades geológicas. Ou, em suas palavras32: “É natural que estas camadas profundas de nossa
estratificação étnica se sublevassem numa anticlinal extraordinária.” Traduzindo o euclidiano, é óbvio
que uma vida e uma religiosidade informadas pela metafísica do sertão ia acabar em movimentos
reacionários, messiânicos e mortais que quando apresentam-se aparentam desafiar toda a concepção
republicana da brasilidade (não é possível que possamos ser tão reacionários e tão estúpidos). “No
começo da obra”, diz Jairo Dias Carvalho33, “Euclides fala de camadas primitivas que desaparecem
sotopostas (colocadas por baixo) a camadas mais modernas. Este conceito geológico será usado para
representar Canudos, que aparece como afloramento do passado, registro das falhas da nossa
evolução.” Diz Euclides34 ainda no primeiro capítulo da Quarta expedição:

Canudos era uma tapera miserável, fora dos nossos mapas,


perdida no deserto, aparecendo, indecifrável, como uma página
truncada e sem número das nossas tradições. Só sugeria um
conceito — e é que, assim como os estratos geológicos não raro
se perturbam, invertidos, sotopondo-se uma formação moderna a
uma formação antiga, a estratificação moral dos povos por sua
vez também se baralha, e se inverte, e ondula riçada de sinclinais
abruptas, estalando em flaults, por onde rompem velhos estádios
há muito percorridos

31
32
33
34
Euclides sintetiza nesse trecho sua filosofia, que pode ser resumida na ideia de que haveria
uma relação profunda e imediata entre a geologia e os acontecimentos humanos. No caso da Guerra de
Canudos, Antônio Conselheiro seria um estrato que veio à tona, e isso é uma afirmação inteiramente
não-metafórica. Diz Jairo Dias Carvalho35 “Antônio Conselheiro, como a dobra, teria se originado das
forças internas à sociedade sertaneja, dela se destacando apenas em função do rebaixamento do meio
que o cercava.”. Como disse Euclides36, “se destinou à história como poderia ter seguido para o
hospício.” Teve essa “sorte” Antônio Conselheiro porque, no espaço e no tempo em que se encontrava,
foi expressão direta do martírio da terra. Diz Jairo Dias Carvalho:

Canudos possuía uma atração concêntrica, mas voltar-se para o


interior (o sertão) era ao mesmo tempo ascender e transcender. O
sertão de Canudos levava ao céu. O livro todo é uma tomada de
consciência desses estratos, da movimentação da interioridade da
terra em seu martírio determinando as gentes e a vida. O sertão é
a periferia enquanto profundidade do ponto de vista da
verticalidade e não da horizontalidade. Não é oposição entre
litoral e interior, mas entre interior da terra e sua superfície. O
sertão é a entranha da terra.

Essa imagem do sertão como a terra virando do avesso é bastante ressaltada por Euclides da
Cunha:

Definido pelas mesmas camadas silurianas, que vimos noutros


trechos, o núcleo da terra, ali, aflora à medida que a ablação das
torrentes lhe remove às formações sedimentárias mais modernas.
(...) E nesse exumar-se a serra primitiva ressurge espelhando na
ousadia das curvas hipsométricas a potências dos elementos que
há longos séculos a combatem.

Ou seja, no sertão o núcleo da terra não só pode ser visto, como isso se dá através dum
processo de exumação da terra que, como dissemos no item anterior, dá “vida” a zumbis - sejam eles
zumbis humanos ou zumbis históricos. As pessoas não morriam em Canudos, durante a guerra.
Simplesmente não morriam nunca, para crescente estupefação e despesa do exército brasileiro. Tudo
era rediagramado em seu inverso, até mesmo a morte: quando Antônio Conselheiro morreu, vítima de
estilhaços de uma granada, isso foi visto como algo bom, como sinal de esperança, no que o messias
fora aos céus e retornará com Deus ao seu lado37. Com sua população morando no que seria então o
núcleo da terra volvido à superfície, faminta, atacada e embriagada dum messianismo milenarista
essencialmente hadeano, enquanto era ao mesmo tempo substituída pela nova população da cidade,
balas, a realidade em Canudos beirava uma psicodelia que faria um filme do Glauber Rocha parecer
um comercial de banco. É claro que, enfim, as pessoas morreram todas, mas isso só aconteceu quando,
simplesmente, explodiram Canudos - o que só se deu quando o General Fulano de Tal percebeu que os
moradores de Canudos tinham um importante aliado com quem o exército não sabia conversar: o
próprio sertão38. O sertão, como dissemos, há tudo e todos expulsa; mas ao tornar-se zumbi, o
sertanejo pode transformar-se num pedaço do sertão. Quem é expulsa é sua alma, que dá lugar àquela

35
36
37
Percebe-se que nesse momento de síntese permanece, no fundo, ainda, toda a mentalidade que os portugueses nos
encucaram, no que o Brasil reproduz então sua própria versão do sebastianismo. O quanto Lula não perfeitamente interpreta
esse papel hoje? No caso um Sebastião que voltou da Batalha de Alcácer-Quibir (ou da morte, ou da prisão, enfim).
38
dos estratos geológicos, transformando-lhes em verdadeiros exumados. E como explica Negarestani na
Cyclonopedia39, a exumação

é a invocação das potências do solo antes dela serem atualizadas


por e para o solo. Exumação captura as potências acordando-se
com alguma coisa outra que o status quo ou as atualidades do
solo, por isso qualquer coisa que ela gerar ou desterrar é marcada
por inadequação - isto é, por ser fundamentalmente
fora-do-tempo, fora-do-ritmo. O ato da exumação está associado
tanto com Insurgências Telúricas (degenerando a inteireza da
terra) e com magia temporal (destrancando escalas temporais que
não podem ser sincronizadas pelo tempo cronológico). Já que o
desterro ou a exumação incapacita os poderes constituintes da
terra, a terra não pode ser mais narrada por sua superfície externa,
mas apenas por seus buracos na trama, traços vermiculares da
exumação.

A Cyclonopedia - complicity along anonymous material (cumplicidade entre materiais


anônimos), do iraniano Reza Negarestani, pode ser considerado um livro irmão d’Os Sertões. Ambos
dramatizam relações orgânico-minerais e telúrico-ctônicas do deserto para pensar de que maneira o
que se passa na superfície da terra não é nada mais que expressão duma agência da terra e sua relação
com o mundo. Negarestani, escrevendo quase 100 anos depois, fala sobre o deserto do Oriente Médio,
e como dissemos, há diferenças importantes entre os tipos de deserto. Mas não deixa de saltar aos
olhos o quanto dialogam. Em dado momento d’Os Sertões, diz Euclides da Cunha40:

Surgem necrópoles vastas. Os morros, cuja estrutura em


pontiagudas apófises, em rimas de blocos, em alinhamentos de
peneidas, caprichosamente repartidos semelham de fato grandes
cidades mortas ante as quais o matuto passa, medroso, sem
desfilar a espora dos ilhais do cavalo em disparada, imaginando
lá dentro uma população silenciosa e trágica de almas do outro
mundo.

E diz na Cyclonopedia, Reza Negarestani41 “Montes são entidades telúricas que


implicitamente conectam arqueologia (uma hostil, recôndita ou insondável antiguidade) com o horror
do insider (como no caso d’O Enigma de Outro Mundo e d’O Exorcista) através da exumação.” Pela
voz do deserto, conversam Euclides da Cunha, no sertão dos anos 1900, e Reza Negarestani no Irã dos
anos 2000. Mas mais importante, Negarestani introduz novidades que nos podem ser úteis, a saber, o
que ele chama de buracos de trama (plot-holes) e sua relação com escalas temporais abissais. Cabe
averiguar também de que maneira a ideia que informa a Cyclonopedia pode contribuir para que
pensemos como a Guerra de Canudos pode se apresentar enquanto modelo de crise da sociedade
brasileira. É uma ideia que o filósofo inglês Nick Land vai chamar de geo-trauma42:

Em ‘O Princípio do Prazer’, Freud percorre um número de passos


cruciais em direção ao mapeamento do Inconsciente Geocósmico
como um mega-sistema traumático, com a vida e o pensamento
dinamicamente quantificados em termos de tensão anorgânica,
elasticidade e plexo maquínico. Isso requer uma re-afinação
materialista-anorganizacional de todo um vocabulário: trauma,

39
40
41
42
inconsciente, impulso, associação, memória, tela, condensação,
regressão, deslocamento, complexo, repressão, negação (por
exemplo, os prefixos -des e -im), identidade e pessoa.. Deleuze e
Guattari perguntam: Quem a Terra pensa que é? É uma questão
de consistência. Comece com a história científica, que é assim:
entre quatro ponto cinco e quatro bilhões de anos atrás – durante
a época Hadeana – a terra foi mantida num estado de escória
fundida superaquecida, através da conversão do impacto
meteórico e planetesimal em aumento de temperatura (energia
cinética para térmica). Enquanto o sistema solar condensava, o
ritmo e a magnitude das colisões continuamente diminuíram, e a
superfície terrestre esfriou, devido à radiação do calor em direção
ao espaço, reforçada pelo início do hidrociclo. Durante a época
seguinte – arqueana – o núcleo derretido estava enterrado dentro
de uma concha de crostas, produzindo um insulado reservatório
de trauma exógeno, o motor geocósmico da transmutação
terrestre. E é isso. (...) Está tudo lá: memória anorgânica, loop
plutônico de colisões externas em direção ao conteúdo interior,
trauma impessoal como mecanismo de impulso. A descida ao
corpo da Terra corresponde à regressão através do tempo
geocósmico. (...) Avance a sismologia e você pode ouvir a terra
gritar. Geotrauma é um processo constante cuja tensão é
continuamente expressa – parcialmente congelada – na
organização biológica. (...) Me conte sobre sua mãe e você vai
estar viajando de volta ao meteoro que matou os dinossauros, não
a inconscientes pessoais.

Os Sertões seria expressão desse registro geotraumático, porém há uma especificidade que, na
verdade, afasta-lhe da escala totalmente épica do geo-trauma e curiosamente aproxima-lhe do humano
e da história humana. Enquanto Negarestani, dando continuidade à tradição landiana, escreve no
registro do trauma da terra, Euclides fala é num martírio da terra. É um diferendo fundamental. Em
ambos os casos a vida da terra é constituída por sofrimento, mas enquanto na Cyclonopedia esse
sofrimento se dá no registro esfacelador (por isso o deserto topologicamente sublimado das dunas) do
trauma, n’Os Sertões o sofrimento se dá no registro libidinal (por isso o deserto que adquire curvas e
dobras) do mártir. Das velhas vestes católicas, sabiamente não jogadas fora, apenas dobradas e
guardadas, é tirada a poeira e elas são mais uma vez trajadas, no que o geo-trauma brasileiro é
particularmente cristão. Até a terra, ao que tudo indica, é cristã no Brasil, e ela é crucificada. Em sua
relação conosco ela sofre e morre por um ideal (o complexo agro-industrial) e renasce como o Jesus
subterrâneo que serve de divindade ao neopentecostalismo.
Religiosa ou não, de qualquer maneira, a terra brasileira, como qualquer outra terra, ou para
ser mais específico, o deserto brasileiro, como outros desertos, obedeceria ainda a determinadas
estruturas da expressão geotraumática, no que apresenta-se uma espécie de poiesis fisiológica. As
narrativas superficiais podem mostrar-se insuficientes, estéreis ou redundantes porque visam explicar
no registro humano acontecimentos majoritariamente inumanos. As agências daemonológicas seriam,
segundo a visão negarestaniana, o que está por trás de aparentes buracos na trama (plot-holes; furos de
roteiro). Consideradas as partes todas, seria impossível haver qualquer inconsistência na lógica da
narração. É o mesmo mecanismo que permite ao deus católico perdoar todas as vezes que se lhe pede
perdão: porque está em todos os lugares ao mesmo tempo, “sabe” que não era possível a qualquer um
ter agido de maneira diferente da que agira - caso contrário teria agido. Quando nos arrependemos
esquecemos-nos que dá-se em virtude de fatos posteriormente adquiridos, e que qualquer viagem no
tempo implica também uma viagem no espaço, onde estariamos ainda desprovidos dos fatos que
levaram ao arrependimento em primeiro lugar, de forma que tomaríamos a mesma decisão da qual
viemos a nos arrepender. Como disse Spinoza43, “quem se arrepende é triste duas vezes.”
A aproximação dum registro inumano implica o desaparecimento dos buracos na trama -
chamemos de buracos tramáticos. O registro daemonológico eficiente, na realidade, implicaria sua
total ausência. Também isso explica no judaísmo o maior dos pecados ser a idolatria. Não é apenas
ativamente adorar-se a imagem dum deus outro; isso seria pueril de se contornar. Idolatria significa
quaisquer protuberância de significação, seja ela positiva ou negativa; qualquer buraco tramático. Da
mesma forma que literalmente adorar qualquer coisa que o seja, também deprimir-se seria idolatria,
pois implica dizer que ou deus não existe, ou não é bom, ou não sabe o que está fazendo, o que dá na
mesma e é análogo a ideia de que seja possível uma história, seja ela humana ou a História, ter pontos
de inexplicações, ter plot-holes. Até mesmo a timidez seria um plot-hole, uma idolatria perante o
judaísmo, pois implica-se que o mundo liga mais para nós do que realmente sequer poderia ligar, num
subjetivismo narcísico que rasga a trama no meio. Quantas vezes nós ficamos nervosos perante
eventos que no fim não afetam nem a nós nem a ninguém em nada? Como explicar tamanho disparate
entre a história no filme de nossas vidas e o que realmente está se passando entre nós e o mundo? De
onde surgem esses buracos tramáticos? Diz Negarestani na Cyclonopedia44 que

A trama principal é construída para camuflar outras tramas (que


podem se registrar como buracos na trama) ao sobrepô-las com a
superfície (trama superficialmente dinâmica) ou o tema
fundamentado (N.T.: Negarestani diz grounded theme, o que
também pode significar um tema aterrado). Nos termos de tal
escrita, a trama principal é o mapa ou a planta (N.T.: no sentido
arquitetônico) de concentração de buracos tramáticos (as outras
tramas). Todo buraco é uma planta deixada por pelo menos mais
outra trama que ronda abaixo. Um buraco tramático não opera em
nome de uma ausência (aquele objeto do escrutínio dos críticos),
mas registra e transmite as atividades da vida sub-superfícial.
Buracos tramáticos são indicadores psicossomáticos de pelo
menos mais uma trama densamente poluindo-se nos buracos que
enterra e desterra.

Os buraco tramáticos negarestarianos correspondem analogicamente, como dissemos, à


concepção judaica de idolatria: qualquer aparente falta de sentido narrativo pode ser explicado por
desconhecimento dos fatos, e na verdade é apenas indicador de um fato ainda mais fundamental. Os
buracos tramáticos dariam vazões aos estratos geológicos e suas agências inumanas; as catástrofes que
ocorrem na superfície da Terra, como o próprio nome diz, vêm duma comunhão entre o fosso do
planeta (-cata, de catacumba, por exemplo) e as estrelas (-astro), sendo Gaia o corpo onde se dá esse
nexo. O que jazeria no fundo das incompreensões seria seu verdadeiro sentido absoluto e por
incognoscível e inefável, que é o que constitui a razão judaica em que qualquer coisa menos que viver
com uma espécie de humildade ontológica é o maior dos pecados, a idolatria45 - é acusar buracos
tramáticos de corromperem a narrativa do mundo, ignorando sua natureza daemônica e revelatória.
Nesse sentido, estudar os buracos duma trama implicaria investigar os objetos de adoração. Parece que
resta olhar para qual é então o objeto de idolatria do Complexo BBB; nós o chamamos de Jesus
subterrâneo, porém é verdade também que ele se manifesta e adquire sua forma terrena no dia em que
bolsonaristas acampados na frente dum quartel em Brasília realizaram um culto de devoção a um
pneu46.
43
44
45
Grosso modo, todos os outros pecados seriam derivações da idolatria.
46
Manifestação perfeita das cumplicidades ctônico-telúricas do complexo industrial que
informam a metafísica do sertão e portanto o fatalismo livre-misticista do horror neopentecostal, a
cena pareceria removida dum quadro do Salvador Dali não fosse na verdade a imagem-síntese da
terra-brasil contemporânea. Um objeto de borracha que serve de patas para um monstro bebedor de
gasolina cujo trabalho é trabalhar a terra. É nesse sentido que surge a pergunta: de que maneira esses
mesmos daemons tramados no pneu não estão por trás das Revoltas de Junho de 2013 - acontecimento
iniciado através de manifestações contra o aumento da tarifa dos meios de transporte públicos, também
eles monstros metálicos colossais fissurados por petróleo - que é como diz Negarestani, o suco do
cadáver da Terra? Em seu aniversário de 10 anos as jornadas encontram-se representadas numa
miríade de interpretações que caminham numa série de dualidades: “chocou o ovo da serpente”47,
como diz o marxismo kitsch; mas na verdade também gerou parte importante da esquerda
contemporâneo, através da onda feminista e uma atenção a debates raciais antes quase que
inteiramente soterrados - todo tipo de discussão geralmente enquadrada na panaceia do
pos-modernismo. Noutra dualidade, o problema na esquerda apresenta-se ora como ausência de
verticalidade (a política organizada foi incapaz de capturar um fenômeno tão difuso e por isso mesmo
tal fenômeno falhou em projetar-se), ora como ausência de horizontalidade (manifestantes apartidários
submetendo-se às jurássicas (e defenderia-se: azeitadas) burocracias de assembleias cultivadas pela
esquerda nas universidades e nos sindicatos). Nesse mesmo sentido, ora a presidente Dilma Rousseff
teria manifestado-se tarde demais, no que o sem violência já havia sido terminalmente invertido no
sem partido, ora manifestara-se cedo demais, antes de poder compreender de fato o que estava
acontecendo. Ao mesmo tempo, a própria proposta de Dilma (uma assembleia constituinte parcial; um
oximoro) pode ser encarada tanto como totalmente desconexa com o que a população estava realmente
pedindo (maneira como fora majoritariamente compreendida) ou demasiadamente radical, tentando
sincronizar os tempos abissais dos buracos tramáticos (o que é fadado a falhar) no que Dilma Rousseff
dá all-in: propõe 100% dos royalties do petróleo e 50% de todos os recursos gerados pelo pré-sal
(chama novamente Hades e nós ouvimos) para a educação, conclama a nação a unir-se em prol do
controle da inflação, prospecta um aumento no número de médicos estrangeiros para trabalharem no
SUS, anuncia 50 bilhões de reais em mobilidade urbana e propõe a infame reforma política. “Uma
reforma política pode produzir mudanças na forma de escolha de governantes e parlamentares,
financiamento de campanhas eleitorais, coligações entre partidos, propaganda na TV e no rádio e
outros pontos”48. Dilma responde à revolução na mesma língua: viremos tudo, então, do avesso. E
ainda mais notável, todas essas mudanças seriam engendradas desta constituinte parcial que seria
convocada, no que Dilma seria radicalmente democrata, através de um plebiscito!49
Mas talvez o traço flagrante da libido que corria as ruas brasileiras e que viria manifestar-se
politicamente seja Dilma clamar pela transformação do crime de corrupção em crime hediondo.
Inauguraria-se a fase atual da ontologia brasileira, curiosamente no limiar do centenário do Semana de
22: a da antropofagia. Dilma mina os circuitos de cumplicidade pelos quais o sistema político
brasileiro dissipa suas intensidades; corrupção é um dos significados da putrefação, e como disse
Mennochio50, “O mundo tem origem na putrefação.” Com suas válvulas obstruídas, o sistema político
brasileiro implode. Como o sistema não é hermético, no que a coagulação hidráulica implicaria na
explosão da máquina, as intensidades são dissipadas em seu corpo e, lançado à loucura, o sistema
político brasileiro entra numa fase de autofagia e passa a canibalizar-se a si mesmo, a sacrificar-se - o
que culmina com 700 mil pessoas mortas na pandemia do coronavírus no começo da década de 20. A
pergunta final a fim de testarmos a hipótese d’A Guerra de Canudos como modelo de crise da

47
Metáfora para o (res)surgimento do fascismo. Ver: Bergman.
48
49
50
sociedade brasileira é: de que maneira os daemons ctônicos, em suas cumplicidades telúricas
tramadas tanto na Guerra de Canudos quanto no pneu a que se prestou devoção durante os
acampamentos golpistas de 2022, não estão envolvidos no que aconteceu no paradigmático e poroso,
cheio de buracos tramáticos, Junho de 2013, cujo pontapé inicial foram protestos contra o aumento na
tarifa de nada menos menos que ônibus?
As Revoltas de Junho foram movimentos originados como uma luta por mobilidade urbana,
culminando numa das maiores sequências de protestos públicos da história contemporânea, por um
lado e, por outro, talvez ironicamente e reduzindo nossas dualidades a uma apenas, com a “ascensão”
do que seria um fascismo brasileiro moderno. A história contudo contestaria a ironia dessa sequência
de acontecimentos. Da mesma forma que Robespierre, o líder da Revolução Francesa, morreu na
guilhotina51, era impossível que O Anti-Édipo fosse escrito antes de 196852. A revolução sempre vem
quando a sociedade não está pronta; caso contrário não o seria. Analisemos outra pista etimológica
(ainda estamos por verificar nossa raiz radical), o que é uma revolução, ora? Pense numa revolução no
seu corpo. Há é claro procedimentos que alteram como que essencialmente o corpo, como transição de
gênero, hormonismo halterofílico, engenharia biomédica e procedimentos estéticos stricto sensu que
podem configurar uma alteração revolucionária do corpo. Mas há um tipo de revolução corpórea que é
comum a todos e que, na realidade, altera pouco ou muito lentamente a apresentação do corpo, que é
sua revolução interna, comumente chamada de passar mal, e cujo efeito é mais vezes do que não
vomitar. E à despeito do incômodo e do potencial degredo do evento, raramente vomita-se e fica-se
pior.
Uma revolução nada mais é do que a sudorese da terra. Com sorte, vomita, e os substratos,
finalmente, vêm à superfície. Repito um Euclides da Cunha n’Os Sertões: “É natural que estas
camadas profundas de nossa estratificação étnica se sublevassem numa anticlinal extraordinária” (DA
CUNHA, Euclides, 20xx, p. Y). Dito isso, destaco que é nos relegado, nas periferias do academicismo
e da história, um grande esmero com determinadas palavras e uma delas é revolução. Portanto creio já
bastar afirmar que tanto a Guerra de Canudos quanto as Revoltas de Junho foram processos
revolucionários. Que seja o fato para Canudos parece ser menos contestável que para Junho de 2013,
cuja versão do colunismo mesmo de esquerda insiste em pintar ora como nada menos que beabá de
facílima compreensão que conecta a Lava-Jato a Bolsonaro a isso é tudo, ora como um confuso
fenômeno ainda (e na verdade, seguindo essa visão, eternamente, como Maio de 1968)
incompreendido e incompreensível. Mas a verdade é que ambos os acontecimentos foram processos
revolucionários, em que uma janela revolucionária, onde tudo parecia posto a perder (ou a ganhar)
estava colocado, no sentido que revolveram as entranhas do Brasil e fizeram-lhe golfar algo que
julgávamos há muito estar perfeitamente digerido. Se foi chocado o ovo da serpente é porque o ovo é
uma entidade rizomática deleuzeana e dele poderia ter nascido qualquer coisa.
A realidade do complexo BBB, aproximando o registro geopolítico de Euclides com o
fisiológico do geo-trauma stricto sensu, é o que foi expelido das Revoltas de Junho. Não às gerou,
apenas as regurgitou, mediante a janela da alma que é aberta pelas janelas do corpo - tanto a Guerra de
Canudos quanto as Revoltas de Junho têm início, no sentido de ganharem esse nome, com um banho
de sangue; um sacríficio que tornaria-lhes apto e apetitoso aos deuses53. A insolubilidade da guerra
civil, o corpo lutando contra o próprio corpo e que faz-lhe pôr pra fora aquilo que havia de mais
subterrâneo, antigo e potencialmente nojento em si. A escatologia que habitara a boca do presidente
Jair Bolsonaro e seu ideólogo Olavo de Carvalho, essa podemos afirmar com categoria não ser
acidental. Se os quatro anos sob a égide bolso-olavista deu-se sob um léxico que transitava entre um
discurso de morte e uma imagética referente ao fim de processos fisiológicos (quantas vezes não
51
52
53
fomos obrigados a ler “bolsa de cocô” ou ver fotos de Bolsonaro no hospital?), ou seja, deu-se sob
uma escatologia nos dois sentidos da palavra, não seria isso porque esse é o fim de um processo,
também nos dois sentidos da palavra, revolucionário? O governo Bolsonaro nada mais foi que o
vômito das Revoltas de Junho, a matéria digestiva no limiar de transformar-se em fezes e que fora
revolvida numa sequência de dolorosas e eventualmente repulsivas contrações e torções musculares de
volta à boca e então ao mundo.
Compreender o Complexo BBB passa por compreender as Revoltas de Junho não por um
simples encadeamento “lógico” ou temporal (uma coisa levou a outra), mas porque a aparente
intransponibilidade dessa tensão revela o que há de macio sob o chão, aquilo que vai sendo preparado
para ser descartado e agora mesmo informara a coisa toda com sua verdade, isto é, a comida (a ideia)
que nutrira (ou envenenara) o corpo antes de ser processado enquanto fezes. É uma visão do futuro, do
que vai se passar daqui instantes quando o metabolismo metabolizar as novas informações. Da mesma
maneira, compreender as Revoltas de Junho passa por compreender a Guerra de Canudos não por uma
suposta semelhança formal de tratarmos-nas ambas como processos revolucionários, mas porque
ambos esses processos tratam da mesma tensão: aquela entre bala, boi e bíblia. O que acontece no
Brasil desde 2013 é apenas uma longa repetição da Guerra de Canudos ou, mais precisamente, seria,
não tivesse nosso sebastianíssmo Antônio Conselheiro voltado dos mortos, e Lula, como veremos na
conclusão desse artigo, é, de maneira oposta ao subtítulo da Cyclonopedia (cumplicidade entre
materiais anônimos), um célebre cúmplice das agências daemonológicas. É na realidade aliado
declarado, no que elegera-se em 2022 com, sem ironia, uma agenda econômica que podia ser resumida
em: picanha e cerveja. Ao ser brutalmente honesto (da mesma maneira que justificara a não
apresentação dum plano econômico pelo fato de que poderia vir a, na prática, contradizer-se), Lula
colapsa as dualidades superficiais em que se estruturam os conflitos gáicos (ctônico-telúricos e
telúrico-urânicos) naquele que seria talvez o mais profundo dos substratos: o da energia. Do ponto de
vista humano, a proteína e a gordura duma picanha representam energia pura, da mesma maneira que o
álcool da cerveja representa uma abertura energética - potencialmente positiva e negativa, no que
como pode atestar qualquer um afeiçoado às práticas dionisíacas, a linha entre uma bela noite de
bebedeira e uma catastrófica manhã é muito fina. Do ponto de vista inumano ambos os entes estão
implicados absolutamente no complexo agro-industrial, que como estamos vendo, é um regime
libido-energético.
Picanha e cerveja venceram Bala, boi e bíblia no pleito de 2022 não porque contradizem-lhe,
mas porque, funcionando também como metáfora (a metafísica libidinal desse apelo, através desse
Lula-Perséfone, traduz-se em qualquer língua, no que até mesmo um vegano que jamais bebe entendeu
o que significa Picanha e cerveja), performam-lhe a essência num registro ainda mais fundamental,
inteiramente inumano. A Bíblia é inumana, é verdade, mas é um artefato humano, e a bala surge
apenas após um longuíssimo processo com o humano. A cerveja, produzida e consumida há milhares
de anos e a picanha, uma tecnologia de corte bovino muito menos complicada do que tanto a bala
quanto a Bíblia, realizam de maneira mais objetiva a comunicação daemonológica entre o humano e o
inumano. Superstar das relações internacionais, é duvidoso se na ocasião duma conferência alienígena,
não seria Lula o escolhido pelo planeta para representar a Terra. Ao mesmo tempo, parece ser Lula
quem hoje melhor dialoga com os alienígenas do mundo ínfero. Encaminhamos-nos para o final então,
no que Lula III expressa de maneira cristalina como a realidade brasileira pode melhor ser explicada
não pela economia política, mas por uma ctonomia daemono-energética.

5. Conclusão

Afinal parece que não nos encontrávamos, na introdução, diante dum feliz acidente
etimológico quando questionamos se a radicalidade dar-se-ia numa análise da agência da raiz, pois
como vimos, é necessário ir ainda mais para o interior. Mesmo a raiz, aprofundando-se no ctônico e
com sua contra-parte superficial telúrica em comunicação direta com o urânico, mesmo a própria terra,
isto é, não encerra a economia da Terra; é dentro dela que está escrita sua receita. Nesse sentido,
pensamos, sob a luz duma ctonomia, o Complexo BBB através de sua inumanidade. O boi, a Bíblia e a
bala estão em cumplicidades uns com os outros ao posicionarem-se como transformadores que
modificam a tensão da energia libidinal humana ao induzir-lhe correntes ctônicas. Porque a imagem da
terra-brasil que informa a vida nela é, por um lado, oriunda do catolicismo português e, por outro,
dá-se numa história sobre o sertão, isto é, Ctônia volvida à superfície, a mentalidade agrária oriunda
dessa cosmovisão é uma que está numa constante comunicação com o mundo hadeano.
Corporificando as agências ctônicas, o homem sertanejo viveria num mundo em que as agências
telúricas estão, em contra-partida, indomadas, e do catolicismo tradicional a religiosidade aparenta
salvar uma passagem em particular: a descida de Jesus Cristo à Mansão dos Mortos. Para o
neopentecostalismo, Jesus ainda está lá, e o mundo aqui em cima está repleto de demônios (como
chamam, de maneira prejorativa, os daemons), aguardando o retorno de um messias que insiste em não
ressuscitar.
É na verdade reencarnado eternamente no que Ctônia é constantemente trazida à luz no
complexo agro-industrial, servindo simultaneamente de esqueleto e alimento dos outros trabalhadores
agrícolas, as máquinas. Só é possível voltar-se para o interior até um ponto; uma hora o interior vai
voltar-se contra você. É isso que explica podermos compreender a Guerra de Canudos como modelo
de crise da sociedade brasileira, está tudo lá: parasitismo ctônico-humano, exteriorização de
interioridades sotopadas ao ponto de cederem num buraco tramático imprescindível, messianismo
milenarista e putrefação aniquilatória. Argumentamos que são também esses os elementos principais
da constituição do Complexo BBB, e isso pode ser explicado quando se encara as Revoltas de Junho
de 2013 como simultânea revolta da terra contra o homem.
Um século depois de Canudos, a mentalidade agrária encontra-se corrente nos conglomerados
urbanos. Nesse intervalo a indústria brasileira não-agro orientada (potencialmente artificial invés de
natural) existiu por um piscar de olhos, sendo desterritorializada e reterritorializada de cima abaixo
pelo complexo agro-industrial, e a vida urbana encontra-se informada pela mentalidade agrária e seus
conflitos ctônico-telúricos, vindo a constituir um novo modo de dualidade em que o interior,
exteriorizado, vai viver na periferia. Esse interior periférico vai subtramando-se à trama principal até
irromper como buraco tramático, e isso se dá em cumplicidade, principalmente, com os grandes
bebedores de gasolina e seus pneus, primeiro incendiados e depois venerados quando o registro muda
da cumplicidade humano-inumano para a totalmente inumana ao personagem principal ser trocado do
ônibus, que transporta pessoas (amplitude máxima do levante originado em manifestações contra o
aumento na tarifa de transporte público, com confronto policial), pelo caminhão, que transporta coisas
(de 2015/6 para a frente, em que os policiais são saudados). Diferente do ocorrido em Canudos,
contudo, dessa vez a revolta ctônica saiu vitoriosa. Dez anos depois, outro banho de sangue depois,
consolida Ctônia o reino de seu maior aliado: Lula.
Bolsonaro era apenas um fantoche de Ctônia, cujo verdadeiro plano estaria mais nas linhas de
dirigir uma épica reedição teatral do mito de Perséfone tendo Lula no papel principal. Assistimos
embasbacados, no que a brasilidade confere à história sua textura fantástica que nos faz
constantemente repetir: “se fosse ficção, iam achar forçado.” O projeto político picanha e cerveja
vence não porque todo mundo goste, ainda que metaforicamente, dessas coisas, mas porque dá,
finalmente, voz às inumanidades num contexto de tensões inumanas. Não só rediagrama a libido num
circuito que inclui os homens e as mulheres, como também estabelece uma linha de comunicação
direta entre nós e os daemons. O deserto é um acelerador de comunicação daemonológica, e Lula,
volvido à superfície como o sertão, é seu porta-voz. Vimos durante o artigo de que maneira a indústria
brasileira encontra-se trancada num circuito agrícola. Esse desenvolvimento industrial que é no limite
voltado nada menos do que para a agricultura acaba por gerar variantes industriais que vão disputar a
economia com o complexo agrícola, o que causa um vazamento tanto mineral quanto orgânico
expresso na crise econômica: dum lado um bocado de máquinas sem ter onde trabalhar (quebradeira
sucroalcooleiro pós-Dilma) e do outro sementes jamais plantadas e alimentos até hoje esperando
transporte (crise dos tomates no governo Dilma). Essa dualidade que pode ser colocada em termos de
mineral-orgânico é manifesta no óleo de pedra, e o Lula é petróleo. O Lula é a fusão do telúrico com o
hadeano, ele articula o circuito libidinal entre as forças da terra, expressas no drama do trabalho, e as
energias subterrâneas que correspondem simultaneamente a riquezas ocultas, literalmente, e um
inconsciente nacional. Isso diz respeito à peculiaridade do Lula: ele soa ora progressista ora
conservador porque roda nele não um programa antigo cuja realização é futura, mas um programa que
vem do futuro e se acopla a estruturas eternamente resistentes. Há um devir-petróleo que é o que
significa progresso, é o que significa capitalismo, é o que significa rasgar a terra e revelar o que estava
oculto. “O petróleo é o vírus que adoeceu a raça humana com a doença do capitalismo”, diz Reza
Negarestani54. Entrar no jogo do capitalismo e da civilização é ceder à inumanidade que representa o
petróleo e os “avanços” através dele adquiridos. Se o Brasil quiser ser o país que aparenta querer ser
(uma “potência”), é nada menos óbvio que isso se dê, conforme deu-se todas às vezes quando deu
“certo”, numa cumplicidade com o petróleo e outros agentes ctônicos.
É verdade que não só não é necessariamente suposto o país querer ser qualquer coisa, da
mesma forma que caso o quisesse, poderia querer ser qualquer coisa que não essa. Há terras-brasis
alternativas, subtramadas à narrativa agrícola, como a da realidade a ela alienígena da Amazônia,
descrita por Euclides como “uma espécie de naufrágio da terra”55 em que estariam implicadas relações
daemonológicas totalmente diversas. Se a própria mentalidade agrária, contudo, acaba por dar vazão a
um buraco tramático, a verdade é que a mentalidade ameríndia, para permanecermos no exemplo, é
costurada em sub-subtramas - o que poderia implicar um buraco tramático ainda maior quando
eventualmente irrompesse. De qualquer maneira, parece por ora seguro afirmar ser evidente a
incompletude e a decorrente esterilidade do pensamento político-econômico que insiste em ver o
mundo dividido entre os homens e as coisas, no que a história caminha por um desvelar da
inumanidade que ordena o desmantelamento da estruturas de poder do homem - tanto enquanto termo
genérico e sexista para a humanidade quanto enquanto homem branco cisgênero heterossexual. A
inumanidade vem não apenas para dar voz aos misteriosos daemons, mas também a nós mesmos, que
é o que explica as agências ctônicas estarem, no limite, alinhadas à esquerda do espectro político
humano. A direita é apenas o antagonista da História e o futuro é não só feminino, como disse Michel
Houellebecq56, mas é acima de tudo inumano. “A História”, disse James Joyce, “é a história da
manifestação de Deus.”57

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