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C3

“Você tem alguma religião?”

“Não... Elas nunca me quiseram por perto...”

Todos as sextas Maria ouvia o som dos tambores que vinham do terreiro atrás da sua
casa.
“Esses macumbeiros e seus barulhos” pensava Maria enquanto fazia o jantar do seu
marido.
Mais do que ninguém ela sabia que não terminaria tão cedo aquela barulheira de
tambores, gritos, gargalhadas e vozes roucas que pareciam vir da profundeza da terra.
Maria se concentrou na sua sopa de legumes e pé de galinha, olhando o líquido aguado
e oleoso borbulhar, fazendo saltar os cubos coloridos e tremer como se estivesse vivos
os pés de galinha.
Não era a comida mais bonita, mas era o que tinha, era o que a fome aceitava como
oferta para apaziguar a dor.
A dor da fome, a dor de perder mais um filho ainda na barriga.
A som da porta da frente abrindo anuncia a chegada do seu marido, sem desgrudar os
olhos da sopa ela ouve os passos firmes e pesados, vindo calmamente para a cozinha.
“Boa noite meu amor, da rua da pra sentir o cheiro dessa sopa, deve estar deliciosa” ela
ouve aquela voz grossa e profunda, vibrando atrás dela.
Maria se vira e vê, como sempre, seu marido batendo a poeira que sempre trás da
serraria.
“Jô, eu já num disse pra você NÃO bater essa poeira de madeira dentro de casa?”
Ele a olha com um olhar de surpresa culpada e sorri, aquele sorriso que a fez se
apaixonar por ele.
“Desculpa Ma, vou correr pro banheiro”
Ele a beija na bochecha, deixando um sorriso e um pouco de pó de madeira no rosto de
Maria.

Sentados a mesa, Maria observa seu amado comer a sopa com pão francês de ontem,
devorando um, dois, três pratos, como se não houvesse mais sopa no mundo, ao lado, os
pequenos ossos dos pés de galinha trucidados na boca do seu marido, faze um momente
no canto da mesa, como um sinal de algo ruim, como um augoro à meia-noite.
Maria desvia o olhar e mira seu prato, ainda pela metade, como ela mesma, que também
se sente pela metade.
“Ma!” Ela ouve seu marido lhe chamar pelo apelido carinhoso, que sempre a chamou
desde o dia do primeiro “Eu te amo”.
“Você tem que comer” diz ele com olhar preocupado
“O doutor disse que seria bom pra você, principalmente depois... Depois do que
aconteceu.”
A voz imbuída de afeto e cuidado, também soa um canto de tristeza, de pesar.
Maria tenta sorrir, pega a colher e fala com olhar tenro “Eu prometo que vou me
esforcar”
E põe uma colherada na boca para a fome, uma colherada na boca para a dor no útero
ainda frágil do aborto espontâneo, mais uma colher na boca para o primeiro que perdeu
enquanto trabalhava lavando roupa, outra colher para o segundo que se foi na rua
quando voltava para casa, a terceira colher entrou tremendo em sua boca, porque ela
ainda sentia o terceiro filho mexer na barriga, ainda sentia o peso da vida, ainda sentia o
frágil e pequeno pese dele nas mãos, e se perguntou: “Como a vida podia ser tão
frágil?”
As lágrimas caíram na sopa, caíram na colher, caíram nos ombros do marido que a
abraçava, caíram no chão a caminho da cama, caíram no conforto do peito do seu amor,
que aprotegeu e cuidou de todas as quedas.

O sono veio como sempre vem todos esses dias, no conforto das lágrimas, no cansaço
do corpo.
Sonhou que estava em um quintal de barro batido, estava meio escuro. Nas paredes que
protegia o quintal havia muitas plantas e árvores, mas Maria mal conseguia distinguir
elas, eram sombras e silhuetas, a única luz vinha de uma pequena fogueira no meio da
terra batida.
Olhando mais atenta, ela viu que a sua frente, do outro lado da fogueira havia uma
pessoa, ela conseguia ver os pés, negros como azeitona preta, mas o resto do corpo
estava nas sombras.
“Jô? É você?” Ela perguntou.
Não houve resposta.
“Quem tá aí?” Perguntou ela.
O pé se mexeu, pouco, como se limpasse a sola barro vermelho.
Maria se aproximou mais da fogueira, para ver se conseguia ver mais nitidamente a
pessoa,
Os pés deram um passo e junto com ele um grave começou a subir da terra batida, como
se cantasse, como se orasse, a cada passo dado esse som ressoava fazendo a terra
tremer, como se viesse das batidas dos pés na terra.
Quando a luz da pequena fogueira iluminou a pessoa, Maria não o conseguiu ver, pois
seus corpo estava coberto dos pés a cabeça por uma palha longa e seca. Apenas se via os
pés.
Maria caiu no chão assustada, sem voz, sem ar, sem forças para correr ou se levantar.
Essa coisa vestida de palha se aproximou da fogueira, próxima o suficiente para ser
iluminada mas não tocada pelas pequenas chamas.
Maria estava paralisada de pavor, e nesse seu pavor ela viu as palhas da frente do corpo
da criatura irem se abrindo e caindo aos lados como uma curtina, lentamente, em meio
às palhas, uma cabeça pequena foi sugindo, as palhas passando levemente, como que
acariciasse a pequena criança que ia surgindo, segurada pelos braços longos, fortes e
negros.
Os braços lhe ofereciam a criança.
De primeiro Maria teve medo, receio, mas depois pensou que a criança poderia estar me
melhor nas mãos delas que na daquela coisa de palha, ela se ajoelhou e esticou os
braços, quando a coisa de palha estava se curvando para dar a criança que dormia
serena, Maria acordou assustada.
Suada em baixo do lençol e dos braços do seu amado que continuavam a protegê-la.
Acordou acordou atordoada com o sonho, ouvindo os tambores no meio da madrugada.
“Macumbeiros filhos da puta”
Penseou ela em fúria, abraçando seu marido, tentando voltar a dormir com o barulho
dos tambores.

A cada dia que passa se tornava mais difícil se alimentar, Maria mal tinha forças para
lavar as suas roupas e a do seu marido. Jô começou a trabalhar o dobrou para poder
pagar as contas, o aluguel e com o pouco que sobrava, comprava comida, que era pouca,
quase nada.
Uma manhã dessas, que a força de vontade é maior que a tristeza e a fome, Maria foi
varrer a calçada de casa, estava muito suja por causa das folhas do pé de castanhola que
ficava na calçada entre sua casa e a da vizinha. Mesmo com a sombra da grande árvore,
o calor a castigava, como uma penitência mandada por Deus.
Quando estava colocando as folhas secas no saco, elas os viu, duas mulheres e um
homem, todos de branco, com aqueles colares coloridos no pescoço, rindo e fumando,
como se não houvesse tristeza no mundo. Maria sentiu nojo e penas pelas almas
daquelas pessoas.
O rapaz a olhou nos olhos, como se a observasse por dentro. Maria sentiu um arrepio
dos pés a cabeça, fez o sinal da cruz e entrou apressada para dentro de casa. Deixando
as folhas secas serem levadas de qual quer jeito pelo vento.

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