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DICIONÁRIO:
CEM FRAGMENTOS BIOGRÁFICOS
A IDADE MéDIA EM TRAjETóRIAS
Tempestiva
Editora Tempestiva, 2020
© Todos os direitos reservados.
Conselho Editorial
ISBN 978-65-992343-0-9
CDU: 929”04/14”(038)
CDD: 920.03
OrganizadOres
Guilherme Queiroz de Souza
Renata Cristina de Sousa Nascimento
DICIONÁRIO:
CEM FRAGMENTOS BIOGRÁFICOS
A IDADE MéDIA EM TRAjETóRIAS
Tempestiva
Goiânia, 2020
vAlDO
Patrícia Antunes Serieiro Silva
Apesar de possuir uma longa presença nas pesquisas sobre o tema, inclu-
sive atualmente, é possível que a dupla apelação Pedro Valdo não seja historica-
mente verdadeira. O prenome Petrus surgiu em fontes mais tardias, no século
XIV. Por outro lado, constata-se uma grande variedade e imprecisão da grafia
do nome Valdo nos documentos latinos: Valdesius, Wandesius, Valdensis, Valdus,
Valdius, Valdes, Valdez, Valdium, Waldo, Valdio, Valde, Valdo.
Como observou Grado Giovanni Merlo, as notícias sobre Valdo não são
raras quando comparadas às de outros indivíduos considerados hereges ou
convertidos à vida evangélica no medievo (MERLO, 2000, p. 28). Para recons-
tituir a história do personagem e dos primeiros anos do valdeísmo, os histo-
riadores se debruçam sobre as seguintes fontes: a profissão de fé atribuída ao
próprio Valdo; o testemunho do clérigo inglês Gautier Map (1135-1210), redigido
por volta de 1181-1183; o comentário de Godofredo de Auxerre (1120-?) em seu
Super Apocalypsim, provavelmente escrito em 1187-1188; a Crônica do Anônimo
de Laon, o Tractatus de diversis materiis predicabilibus do dominicano e inquisidor
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Estevão de Bourbon (1180-1256), composto em meados do século XIII, e, mais
recentemente descoberta, a quarta parte do Liber Visionum et Miraculorum, ela-
borada por volta de 1170.
É preciso considerar igualmente, ao lado desse grupo de textos, as infor-
mações contidas em alguns tratados anti-heréticos a respeito do personagem.
São exemplos disso: o opúsculo atribuído a Ermengardo de Béziers (Contra
haereticos), composto nos primeiros decênios do século XIII; a suma de refuta-
ção das heresias do dominicano Moneta de Cremona (Summa adversus Catharos
et Valdenses), escrita entre 1241 e 1244; a suma contra os hereges, atribuída a frei
Pedro de Verona, de 1235; e o Liber Suprastella de Salvo Burci, de 1235.
Supõe-se que a “conversão” de Valdo tenha ocorrido na década de 70 do
século XII, nos anos de 1170, 1173 ou até mesmo 1176. Nada se sabe sobre a sua
vida antes desse episódio. De acordo com o dominicano Estevão de Bourbon,
Valdo era um rico citadino (civis) de Lyon, que, certa vez, curioso para entender
o que os Evangelhos diziam, combinou com dois padres que os traduzissem
em língua vulgar, assim como outros livros da Bíblia e citações dos Padres da
Igreja. Inspirado pela perfeição evangélica, o laico, em seguida, vendeu todos
os seus bens e deu o seu dinheiro aos pobres. Depois disso, ele começou a pre-
gar nas ruas e sobre os lugares, atraindo homens e mulheres, aos quais incitava
a fazer o mesmo (POUZET, 1936, p. 11).
Outra versão mais cheia de detalhes sobre o despertar evangélico de Val-
do é narrada na Crônica do Anônimo de Laon, obra atribuída a um clérigo pre-
monstratense. Nela, o laico de Lyon é apresentado como um usurário, o qual,
impressionado com a vita de santo Aleixo – filho penitente de um rico romano,
que foi viver da pobreza –, buscou imediatamente uma escola de Teologia para
saber qual era a melhor e a mais segura via para a salvação. O mestre do lugar
lhe citou Mateus 19,21, em que Jesus diz: “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo
o que tens...”. A partir de então, Valdo deu uma parte dos seus bens à família e,
outra parte, a mais grossa, distribuiu como esmola aos pobres. A narrativa do
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cronista anônimo contém ainda outras informações sobre a vida do persona-
gem, como o envio de suas duas filhas ao mosteiro de Fontevrault, a distribui-
ção de comida feita aos pobres num período de forte fome na Gália e na Germâ-
nia e a interdição de mendigar alimentos imposta pelo arcebispo Guichardo,
após a queixa da esposa de Valdo (POUZET, 1936, p. 9-10).
Em 1179, Valdo, juntamente com um dos seus seguidores, dirigiu-se ao
III Concílio de Latrão, em Roma, com o objetivo de pedir permissão ao papa
para pregar. Os dois valdenses são descritos por Gautier Map – o qual, naquele
momento, se encontrava no mesmo lugar – como pessoas simples e iletradas.
Na ocasião, eles apresentaram ao papa Alexandre III (1159-1181) um livro escri-
to em francês, contendo o texto e a glosa do Salmo, bem como a maior parte
dos dois testamentos, e pediram, com muita insistência, a autorização para
pregarem, pois criam ser capazes de fazê-lo. O clérigo inglês acrescenta que
os dois laicos disputaram com ele sobre a fé, no entanto ignoravam questões
dogmáticas muito simples, acreditando, por exemplo, que Maria fazia parte da
Trindade (POUZET, 1936, p. 15). Alexandre III aprovou o voto de pobreza volun-
tária de Valdo, mas proibiu a sua pregação e a de seus companheiros, salvo por
autorização prévia do ordinário.
O episódio da ida de Valdo ao III Concílio de Latrão também é menciona-
do por Moneta de Cremona, frade Pregador do convento de Bolonha. De acor-
do com o dominicano, o pontífice autorizou a pregação do laico sob a condição
de que seguisse os ensinamentos dos quatro Doutores: Ambrósio, Agostinho,
Gregório e Jerônimo (MONETAE CREMONENSIS, 1743, p. 402b).
No ano seguinte, conforme registrado por Godofredo de Auxerre, abade
de Hautecombe, Valdo compareceu ao sínodo de Lyon, no qual estavam pre-
sentes Henrique de Marcy, legado papal, Guichardo de Pontigny, arcebispo da
cidade, e o próprio Godofredo. O fundador da seita teria abjurado do erro de
usurpar a pregação dos clérigos. Tal ato, porém, não surtiu efeito. O abade de
Hautecombe acrescenta que os valdenses, mesmo sob condenações, continua-
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ram a pregar, inclusive as mulheres (RUBELLIN, 1998, p. 200).
Após a morte de Guichardo de Pontigny, por volta de 1182-1183, o novo
arcebispo Jean Bellesmains interditou Valdo e seus discípulos de pregarem.
Estes, de acordo com Estevão de Bourbon, opuseram-se ao prelado, citando
Atos 5,29: “É preciso obedecer a Deus antes que aos homens”; e Marcos 16,15:
“Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura” (POUZET, 1936, p.
11). Desde então, Valdo e os seus partidários foram excomungados e expulsos
da cidade. Em 1184, no Concílio de Verona, os valdenses foram declarados he-
reges, ao lado de outras heresias, pelo papa Lúcio III (1181-1185) por meio da
bula Ad abolendam, condenação repetida pelo papa Inocêncio III (1198-1216), no
IV Concílio de Latrão, ocorrido em 1215. A partir daí, os valdenses se dissemi-
naram pelas cidades do sul e do norte da França, pelas regiões de língua alemã
do Rin e pelo norte da Itália, vivendo de forma clandestina. As notícias sobre
Valdo desaparecem após 1205.
No decorrer dos séculos, diversas leituras foram construídas a respeito
de Valdo. Ele foi visto como um dos precursores do protestantismo, ao lado
de outros grupos heréticos medievais; como representante das tensões sociais
que solapavam as cidades no fim do século XII; como reformador evangélico,
inspirado ou não nos movimentos dissidentes antecessores – petrobrussianos
ou henricianos; e, além disso, como fundador de uma fraternidade religiosa
no estilo da que viria a ser estabelecida por são Francisco de Assis, anos mais
tarde.
Nas últimas décadas, estudos provenientes de uma nova abordagem so-
bre as heresias medievais reexaminaram a história de Valdo, atentando-se para
as suas imbricações com o contexto local. É o caso, por exemplo, das pesquisas
de Michel Rubellin, que, ao se concentrarem na conjuntura política de Lyon, en-
dossam a possibilidade de Valdo ter sido um ministerial da Igreja da cidade, um
“auxiliar laico”, em vez de um rico comerciante, como se vê em muitos trabalhos
(RUBELLIN, 1998, p. 205-206; 216). Nessa perspectiva, o fundador dos valdenses
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teria sido um simples laico, que, aspirando a uma renovação espiritual profun-
da, colaborou com as propostas reformistas do arcebispo Guichardo, frente
ao conservadorismo da maior parte do clero urbano lionense. Os trabalhos de
Rubellin apontam, do mesmo modo, para a ausência de unanimidade entre
os eclesiásticos acerca da pregação laica e para a plasticidade que permeia o
conceito de heresia na Idade Média, visto que Valdo e os seus discípulos só se
tornaram hereges após a morte do arcebispo Guichardo e com a eleição de Jean
Bellesmains, em seguida.
A pregação e a pobreza ocuparam um espaço significativo na experiência
religiosa de Valdo e de seus primeiros discípulos, a ponto de os historiadores
debaterem qual delas teria prevalecido no impulso de “conversão” do laico de
Lyon. Para K. V. Selge, a base do movimento valdense foi a pregação, enquanto,
para grande parte dos historiadores, a pobreza (PACAUT, 1969, p. 64). A ques-
tão ainda está longe de ser resolvida.
Depois do exílio de Lyon e da condenação de 1184, ocorreram divisões
no grupo. Os valdenses lombardos e, posteriormente, os germânicos susten-
taram posições mais radicais, contrariando alguns preceitos do fundador do
movimento. Eles se separaram dos “Pobres de Lyon” por volta de 1205, ao ele-
gerem certo João de Ronco como preboste, o que ia de encontro ao princípio de
que somente Cristo era a autoridade da fraternidade. Além disso, os Pobres da
Lombardia defendiam posicionamentos diferentes dos primitivos valdenses
no que diz respeito, por exemplo, ao trabalho. Os pobres lombardos queriam
trabalhar para viver, ao passo que os primeiros valdenses rejeitavam todo o
trabalho, buscando a mendicidade.
Os polemistas católicos, geralmente, atribuíram as opiniões dos valden-
ses de seu tempo aos primeiros discípulos de Valdo, não reconhecendo a evo-
lução entre as proposições do valdeísmo primitivo e do valdeísmo posterior
(GONNET, 1976, p. 333). O anticlericalismo exacerbado, a rejeição dos sufrágios
pelos mortos e da doutrina da penitência, a condenação do juramento e da jus-
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tiça secular, a convicção de que a Igreja romana não é a Igreja de Deus e a con-
cepção de que um simples laico pode consagrar o corpo do Senhor estão entre
as opiniões valdenses comumente compartilhadas na polêmica anti-herética
(GONNET, 1976, p. 333-334).
Referências
PACAUT, Marcel. Pauvreté, vie évangélique et prédication chez les vaudois. Re-
vue Historique. CCXLI, 1969, p. 57-68.
POUZET, Philippe. Les origines lyonnaises de la secte des Vaudois. Revue d’his-
toire de l’Église de France. Tome 22, n° 94, 1936, p. 5-37.
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