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Anabelli Simões Peichó
Universidade Federal do Paraná, anabelli@ufpr.br
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1. Introdução
Em relatório recente da ONU HABITAT sobre urbanização sustentável, estima-se que a popula-
ção urbana mundial aumente de 56,2% para 60,4% até 2030, embora ainda haja algumas incerte-
zas em relação aos impactos demográficos da pandemia da COVID-19 (ONU HABITAT, 2020).
O relatório indica que a componente chave da nova governança urbana é uma forte governança
metropolitana: “os governos nacionais devem permitir uma governança metropolitana que res-
ponda às realidades das geografias econômicas e sociais, e não apenas às fronteiras jurisdicionais
arbitrárias, assegurando o envolvimento dos governos locais e regionais no processo de reforma”
(ONU HABITAT, 2020, p. 4).
Em âmbito nacional, o planejamento metropolitano entra em discussão a partir da década de 60,
sendo consumado nos anos 1973 e 1974 com a institucionalização das primeiras Regiões Metro-
politanas (RMs). Os resultados práticos consistiram na transferência de recursos da União para as
RMs. Entretanto, houve pouco progresso em relação às suas funções e respectivos deveres, con-
siderando que o planejamento da oferta da maioria dos serviços urbanos ocorre a nível regional,
ultrapassando os limites municipais e suas capacidades de gestão e obtenção de recursos (IPEA,
2013).
Um avanço nesse sentido foi a aprovação do Estatuto da Metrópole pela Lei Federal nº 13.089 de
2015, que define no Art. 6º como princípios básicos de governança interfederativa: “I - prevalên-
cia do interesse comum sobre o local; [...] IV - observância das peculiaridades regionais e locais;
[...]; VII - busca do desenvolvimento sustentável” (BRASIL, 2015). Ainda há expectativas de que
sua implementação tenha maior êxito do que o Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257 de
2001). Apesar do Estatuto da Metrópole não ter sido constituído com o mesmo viés sociopolítico,
ele preenche uma lacuna deixada no Estatuto da Cidade sobre a compreensão metropolitana e
seus reflexos na escala municipal e local (FERNANDES, 2021).
O foco deste trabalho está na leitura metropolitana e seus impactos em menores escalas. Trata-se
de um estudo de caso sobre a região de Curitiba, capital do Paraná, e seu entorno, também deno-
minada Área Conurbada de Curitiba ou, de acordo com a Coordenação da Região Metropolitana
de Curitiba (COMEC), Núcleo Urbano Central (NUC).
O principal método de análise é a Teoria da Sintaxe Espacial (TSE), ou Space Syntax Theory, que
além de ser globalmente reconhecido no campo do planejamento urbano, pode ser replicado para
analisar qualquer outra região, cidade ou localidade. Essa teoria foi desenvolvida em meados dos
anos 1970 por Bill Hillier e seus colaboradores na Universidade de Londres (UCL), com o obje-
tivo de relacionar o aspecto configuracional do espaço com a movimentação de pessoas
(HILLIER; HANSON, 1984). De acordo com Hillier, as atividades humanas são influenciadas
pelos espaços onde elas acontecem e esses espaços não são configurações singulares, mas sim de
redes múltiplas (HILLIER, 1999).
A principal base de entrada de dados da TSE é o sistema viário. O sistema viário é visto como o
sistema de circulação sanguínea de um corpo humano, que permite a locomoção das pessoas de
qualquer ponto de origem para qualquer outro ponto de destino, navegando algumas vezes por
vias arteriais ou ramificações mais estreitas e locais. O fator chave desta pesquisa é a leitura desse
sistema como um todo, em que cada via tem uma importância dentro do sistema e essa importân-
cia não é resultado apenas da sua localização absoluta, mas também da sua localização relativa
em comparação com outras vias.
A representação do sistema viário é feita a partir de linhas axiais e de segmentos que serão deta-
lhados ao longo deste trabalho. Em síntese, os autores que trabalham com a teoria defendem que
o sistema viário prediz a movimentação das pessoas. Eles se baseiam na ideia de que esse deslo-
camento, seja motorizado ou ativo (como caminhada ou ciclismo), resulta em dois processos de
decisão que priorizam trajetórias com (a) menos inflexões e (b) inflexões com menor angulação.
Um dos resultados é o mapeamento em escala de cores, sendo as mais quentes correspondentes
às áreas mais integradas e as mais frias às mais segregadas do sistema. (HILLIER; IIDA, 2005b;
TURNER, 2001, 2007).
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Um dos fenômenos mais importantes analisado pela TSE é a Teoria do Movimento Natural
(TMN). De acordo com Hillier et al. (1993), a configuração do espaço (sistema de linhas) influ-
encia diretamente no movimento de pessoas (suas tomadas de decisões) e na localização de atra-
tores (comércios, serviços, oferta de empregos, equipamentos urbanos). Ainda, esse movimento
de pessoas e a localização dos atratores relacionam-se entre si, mas dificilmente impactam nova-
mente a configuração do sistema (Figura 1) (HILLIER et al., 1993). O conceito da imutabilidade
inicial da configuração é extremamente relevante na TSE, pois determina que a configuração é o
fator menos volátil e mais crucial de ser analisado, ou seja, é o elemento que quando modificado
acarreta o maior impacto no movimento de pessoas e localização dos atratores (HILLIER et al.,
1993).
Figura 1. Esquema ilustrativo da Teoria do Movimento Natural (fonte: autora, 2022. Adaptado
de VAN NES; YAMU, 2021, p. 179).
Tendo em vista o contexto apresentado, a pergunta da pesquisa é “quais contribuições podem ser
trazidas a partir da aplicação da Teoria da Sintaxe Espacial para a compreensão metropolitana no
NUC e seus reflexos em escala municipal e local?”.
O objetivo principal deste trabalho é aplicar o método da TSE no NUC, realizando e interpretando
suas principais análises. Os objetivos específicos consistem em: i) apresentar este método e seus
resultados para tomadores de decisões no NUC; e ii) tornar esta pesquisa em uma referência para
replicação em outros sistemas.
2. Justificativa
O NUC é a região mais populosa do sul do Brasil e se destaca por seus índices econômicos, como
PIB elevado, concentração de serviços e produção industrial. A capital Curitiba é reconhecida por
seu planejamento urbano, iniciado na década de 60, que parte da ideia da articulação entre aden-
samento e transporte público de massa. Esse mesmo sistema de transporte público já foi implan-
tado em outras cidades e é denominado de Bus Rapid Transit (BRT). Em Curitiba, apenas pró-
ximo às Estações Tubo são permitidas as construções de edifícios altos (exceto no bairro Centro).
Essa diretriz, denominada de Setor Estrutural, está presente no zoneamento municipal desde sua
primeira implementação em 1966 pelo Instituto de Planejamento e Pesquisa de Curitiba (IPPUC).
Na Figura 2 é possível visualizar imagens que representam esse conceito de planejamento.
Embora essa narrativa seja intrínseca na história da capital há quase 70 anos, ela pouco dialogou
com seu entorno, já que o sistema BRT nunca se estendeu além dos limites de Curitiba. Ainda,
essa implantação de infraestrutura viária e ocupação restrita elevou o valor da terra no polo, o
que, junto ao modelo de política urbana e ao interesse privado, resultou na intensa extensão da
mancha de ocupação urbana e constituição de uma periferia pobre no entorno de Curitiba nas
últimas décadas (FIRKOWSKI, 2001; LIMA, 2000, 2004; NUNES DA SILVA, 2012) (Figura
3).
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Figura 2. Corte ilustrativo dos setores especiais de adensamento, imagem aérea da Av. Sete de
Setembro no bairro Batel e Estação Tubo Central no bairro Centro de Curitiba (fonte: corte ilus-
trativo, IPPUC, 2022; Imagem aérea: Rubens Almeida, 2021; Estação Tubo: Cesar Brusto-
lin/SMCS, 2017).
Figura 3. Extensão da mancha urbana no entorno de Curitiba – Fazenda Rio Grande, ao sul da
capital (fonte: Google Earth, 2022).
A gestão territorial do NUC é de responsabilidade da Coordenação Metropolitana de Curitiba
(COMEC). O objetivo da atuação dessa instituição é a aplicação de regulações e normas constru-
tivas relativas às fragilidades ambientais naturais do contexto de inserção do NUC, além de ques-
tões de estruturação viária metropolitana. Esses direcionamentos estão expostos no Plano de De-
senvolvimento Integrado (PDI) mais recente (COMEC, 2006). Na Figura 4 é possível observar a
síntese dessas propostas de ordenamento territorial. No mapeamento podem ser localizadas as
áreas definidas como Áreas de Expansão, na parte sul no NUC.
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Figura 5. Núcleo Urbano Central (NUC): Setores Estruturais, mancha de ocupação urbana e fra-
gilidades ambientais (fonte: IPPUC, 2021; IBGE, 2022; DNIT, 2022; COMEC, 2022; Águas Pa-
raná, 2018; PARANACIDADE, 2018, Open Street Maps, 2022. Elaboração: Autora, 2022).
3. Estado da arte
A pesquisa do estado da arte foi realizada através da base de busca Scopus, em setembro de 2022.
O objetivo é compreender as aplicações da TSE no contexto do planejamento urbano, a fim de
auxiliar na interpretação dos resultados. As palavras-chave utilizadas foram “Space Syntax” AND
“urban planning”, considerando o recorte temporal de 2010 a agosto de 2022. O resultado inicial
foi de 112 artigos. Em seguida, foram selecionados os artigos com índice FWCIii acima de um (a
maioria com FCWI acima de 3 e os maiores índices acima de 9), resultando em 47 artigos.
Uma análise foi realizada em relação aos países das universidades afiliadas dos autores dos 47
artigos selecionados (Quadro 1). Os resultados revelam que o método já foi estudado e possui
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trabalhos relevantes em diversas partes do globo. Também se nota que a concentração maior de
estudos é na Ásia, Estados Unidos e Europa. Um fator interessante é que os autores afiliados à
Universidade Central de Londres (UCL), de onde surgiu a TSE, possuem apenas três artigos na
seleção, o que comprova que a TSE é um método universalizado e desprendido do seu ambiente
de origem.
Quadro 1. Países das universidades afiliadas dos autores dos 47 artigos selecionados (fonte: au-
tora, 2022).
Países das universidades afiliadas dos Quantidade de artigos Quantidade de Total de artigos
autores publicados por país países publicados
China 10 1 10
EUA 8 1 8
Suíça 4 1 4
Reino Unido (UCL), Espanha 3 2 6
Singapura, Alemanha, Países baixos, Itá-
lia, Argélia, Austrália, Coréia, Irã, Tai- 2 10 20
wan, Noruega
Suécia, Lituânia, Polônia, Hungria, Eslo-
váquia, Palestina, Israel, Turquia, Egito, 1 11 11
Emirados Árabes, Finlândia
com a área de estudo específica numa escala mais local, exatamente o tema explorado nesse tra-
balho.
5. Métodos e procedimentos
A coleta de dados consistiu na produção do mapa axial do NUC pela equipe de Colaboradores SE
(2008 - 2022)iii e posteriormente seu mapa de segmentos, utilizando principalmente os softwares
livres QGIS e DepthmapX, a partir de mapas cadastrais e imagens aéreas. Os procedimentos rea-
lizados foram baseados no manual de uso elaborado pelo Instituto Space Syntax (AL_SAYED et
al., 2014) e na publicação recente de um livro introdutório da Sintaxe para estudos urbanos (VAN
NES; YAMU, 2021).
As linhas axiais são linhas desenhadas sobre os eixos das vias, de forma que possam ser desenha-
das o mais longa possível, simulando o efeito de visibilidade ao nível de observação das pessoas.
As vias mais retas e com amplitude maior de visão do seu início e fim são mais longas, já as vias
com curvas mais acentuadas resultam em linhas axiais mais curtas. Os cálculos são baseados nas
intersecções dessas linhas, também chamados de conexões ou links. A quantidade de conexões
por si só não configura o espaço como integrado ou segregado, mas sim sua posição no sistema
em relação às demais.
Existem níveis de detalhe no desenho das linhas axiais que variam de acordo com a precisão
desejada na análise do sistema. O nível de detalhe neste estudo foram as faixas de rolamento.
Dessa forma, canteiros, bloqueios de passagem, viadutos, trincheiras e outras intervenções que
resultaram na conectividade (links) ou desconectividade (unlinks) de cada linha axial, foram con-
siderados. Neste estudo também foram consideradas todas as vias de circulação, incluindo as ca-
naletas exclusivas dos ônibus biarticulados e vias exclusivas de pedestres. De acordo com Van
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Nes e Yamu (2021), todas essas vias devem ser tratadas da mesma forma pois são possibilidades
de circulação dentro do sistema, ao contrário por exemplo de uma linha férrea, que não constitui
uma possibilidade, mas sim a única opção de circulação.
Após o preparo da base axial do NUC, o arquivo foi carregado no software DepthmaX que fez a
conversão da base das linhas axiais em segmentos de linhas. Na Figura 6 podem ser observadas
algumas partes desse processo, o desenho das linhas axiais, a pontuação de unlinks, a transforma-
ção do recorte em um mapa de segmentos e a visualização final a partir da medida de Escolha
Global.
Figura 6. A. Linhas axiais sobre imagem aérea; B. Unlinks pontuados devido à existência de uma
trincheira; C. As mesmas linhas axiais transformadas em segmentos; D. Classificação dos seg-
mentos a partir da medida de Escolha Global – Bairro Portão em Curitiba (fonte: colaboradores
SE, 2008-2022; Esri Images, 2022. Elaboração: autora, 2022).
O mapa de segmentos é uma representação quebrada das linhas axiais nas suas intersecções e traz
leituras mais precisas que as axiais. Nos estudos mais contemporâneos e nas versões mais atuais
do software DepthmaX, os cálculos são realizados baseados no princípio da profundidade angular
nas análises de segmentos. Esses cálculos adicionam um peso de acordo com a angulação da
conexão dos segmentos, como pode ser observado na Figura 7 (AL_SAYED et al., 2014).
6. Estudo empírico
6.1 Integração Global
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O primeiro mapa é o de Integração Global (Figura 8), que está representado utilizando a medida
NAIN. Esta análise reforça algumas características já apontadas na descrição inicial do NUC
(Figura 5). A área mais integrada do sistema é na região do Centro de Curitiba e arredores, como
poderia ser previsto. Outra característica é o grau de conurbação mais evidente entre Curitiba e
os municípios situados ao leste: Colombo, Pinhais e São José dos Pinhais.
Figura 8. Integração Global do NUC com medida normalizada NAIN (fonte: IBGE, 2022; DNIT,
2022; COMEC, 2022; Águas Paraná, 2018; Colaboradores SE, 2008-2022. Elaboração: autora,
2022).
Nesse mapeamento fica evidenciado o quanto o município de São José dos Pinhais está mais
integrado no sistema que os demais municípios. Em grande parte, devido à existência de mais
vias dentro dos seus limites, mas também devido ao fato de possuir mais acessos de vias de ligação
com a capital, especificamente viadutos e pontes que se sobrepõe às áreas úmidas entre os dois
municípios e a conexão com o Contorno Leste.
Em contrapartida, os municípios mais segregados se situam na área norte, Rio Branco do Sul e
Itaperuçu. Isso se deve também ao fato da densidade das vias e, tão relevante quanto, ao fator da
topografia da região. As declividades são mais acentuadas na área norte do NUC, em decorrência,
em partes, da localização do Aquífero Subterrânio Karst. A questão da topografia resulta em vias
mais sinuosas e, portanto, mais difíceis de serem visualizadas em seu percurso completo, aumen-
tando os graus de angulação entre as conexões dos segmentos.
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Um contraponto dessa análise é o município de Fazenda Rio Grande que, embora esteja mais
distante metricamente do centro do sistema, se localiza na extensão da Linha Verde, a BR 116,
que atravessa o NUC de norte a sul e traz acessibilidade ao município. A região sul também é
mais plana, possibilitando um sistema viário mais retilíneo e, por consequência, tem compreensão
facilitada pelos usuários.
Outros fatores de impacto relevante no sistema são a localização das áreas Áreas de Preservação
Ambiental (APAs) e Unidades Territoriais de Planejamento (UTPs). O impacto maior pode ser
identificado na região oeste, na divisa de Curitiba com o município de Campo Largo, e as restri-
ções de ocupação estão refletidas na baixa densidade do sistema viário. Na parte leste, o impacto
das APAs e UTPs ocorre mais entre os municípios de Pinhais, Campinha Grande do Sul, Quatro
Barras e Piraquara do que na relação deles com o polo.
6.2 Escolha Global
Na observação dos mapeamentos a seguir, Escolha Global e Integração Local R1600 metros, será
realizada a análise de primeiro plano – ou foreground – e de plano de fundo – ou background. De
acordo com Hillier (2007), todas as cidades apresentam um certo tipo de estrutura básica que
define as vias principais, consideradas como sistema de primeiro plano e outra estrutura formada
por vias mais locais, consideradas como sistema de plano de fundo. Remetendo à analogia já
citada, o primeiro plano seriam as artérias e o plano de fundo as veias.
O mapa de Escolha Global, representado pela medida NACH (Figura 9), revela a estrutura de
primeiro plano. Essa leitura do NUC corrobora em partes com o conceito da roda deformada ou
deformed wheel também apresentado por Hillier (2007). Essa roda consiste na existência de seg-
mentos mais integrados organizados de forma radial (circundando o sistema) e orbital (partindo
do centro em direção às bordas). O conceito da roda deformada funciona independente da cultura
onde o sistema está inserido e é composto pelos segmentos mais longos e com angulações obtusas
(AL_SAYED et al., 2014; HILLIER; IIDA, 2005a; HILLIER, 2007; VAN NES; YAMU, 2021).
Como pode ser observado no mapa, a roda deformada é composta pelos Contornos Norte, Sul e
Leste. Também podem ser identificadas as ligações orbitais, partindo do centro, e um elemento
externo ao conceito: a Linha Verde. Esta não se encaixa nas características da roda deformada,
pois atravessa o sistema e se posiciona tangenciando o sistema. A nomenclatura original da Linha
Verde era BR 476 (norte) e BR 116 (sul), mas tomou características de via urbana ao longo da
extensão da ocupação da mancha urbanizada da capital.
Outra questão importante é a interrupção do Contorno Norte ao chegar em Colombo. Cabe res-
saltar que desde o PDI 2006 estão previstas obras de extensão desse Contorno, o conectando à
BR 476 e à BR 116 (continuação da Linha Verde). Pode-se afirmar que a execução dessas obras
traria um impacto positivo à acessibilidade do sistema. Além disso, é possível verificar que a
extensão do Contorno Leste afastado da área mais conurbada do sistema descaracteriza parcial-
mente sua função de Contorno. A partir da vivência no sistema e observações de campo, é possível
inferir que essa característica do Contorno Leste sobrecarrega a circulação da Linha Verde, que
acaba absorvendo o fluxo intraurbano e de contorno.
Quanto às ligações orbitais, é interessante notar como as mais integradas são as que conectam o
Centro de Curitiba (onde está posicionada a sede municipal) com as outras sedes municipais dos
municípios limítrofes. Exceto a ligação com Araucária, que parte do Contorno Sul e não do Cen-
tro, o que influencia na sua integração.
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Figura 9. Escolha global do NUC (fonte: IBGE, 2022; DNIT, 2022; COMEC, 2022; Águas Pa-
raná, 2018; Colaboradores SE, 2008-2022. Elaboração: autora, 2022).
Figura 10. Integração Local R1600m do NUC (fonte: IBGE, 2022; DNIT, 2022; COMEC, 2022;
Águas Paraná, 2018; Colaboradores SE, 2008-2022. Elaboração: autora, 2022).
Naturalmente, áreas próximas ao centro do sistema tendem a apresentar também uma boa inte-
gração local, como pode ser observado próximo ao centro de Curitiba. Outras centralidades po-
dem ser identificadas próximas às sedes municipais dos outros municípios e em alguns bairros de
Curitiba. Até mesmos os bairros mais afastados do Centro, como Tatuquara e Campo do Santana,
demonstram bons resultados.
Ainda, reafirmando apontamentos anteriores, as centralidades dos municípios adjacentes mais
integrados (Colombo, Pinhais e São José dos Pinhais) são as que apresentam maiores valores de
integração, provavelmente também relacionado com a densidade de vias.
Um aspecto interessante em relação ao município de Colombo, é que ele apresenta sua mancha
de integração distanciada da sede municipal. Isso revela o histórico da ocupação do município,
que se originou ao redor da sede, mas teve uma ocupação mais intensa na área mais conurbada
com Curitiba nas últimas décadas. Por outro lado, a centralidade do município de Campo Largo
se comporta de forma contrária, revelando uma autonomia em relação ao polo. Corroborando com
os conceitos de plano de fundo de Hillier (2007), a análise de plano de fundo contribui de fato
para a compreensão de questões culturais do sistema.
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7. Considerações finais
Os resultados apresentados trazem uma nova perspectiva para compreensão da dinâmica metro-
politana do NUC e seus efeitos na escala local, como levantado na pergunta de pesquisa e no
objetivo principal do trabalho. Quanto aos objetivos específicos, considera-se que há contribui-
ções interessantes para a gestão metropolitana e que as análises podem ser utilizadas para estudar
outros sistemas.
A escolha do método da sintaxe espacial foi essencial para trazer informações mais precisas sobre
questões que já se apresentavam relevantes a partir da vivência no sistema e de observações de
campo. Além disso, a abordagem holística do método, sem considerar as divisas municipais ou
quaisquer outros dados exceto o sistema viário, traz uma visão imparcial para a compreensão dos
resultados.
Para continuidade dos estudos, sugere-se desenvolver mais comparativos com outros dados do
sistema, como por exemplo, aspectos socioeconômicos e de densidade populacional. Além disso,
as referências utilizadas podem ser exploradas para enriquecer as análises e fornecer uma base
teórica para aplicação de simulações no sistema.
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Notas
i
O Coeficiente de Aproveitamento (CA) é um parâmetro construtivo utilizado para designar a quantidade
de metros quadrados permitidos na zona urbana onde está situado o lote. Quando o CA de um lote é de um,
pode ser construído a metragem igual a uma vez o tamanho do lote, quando é de dois, poderá ser construída
a metragem igual a duas vezes o tamanho do lote e assim sucessivamente.
ii O Field-Weighted Citation Impact (FWCI) ou Impacto da Citação Ponderada no Campo é um índice que
avalia o desempenho em citações de um trabalho com base na média do campo de assunto. Sendo um para
o desempenho esperado, acima de um para desempenho acima da média e menos de um para desempenho
abaixo do esperado (SCOPUS, 2022).
iii
Esse processo foi iniciado pelo mapa axial de Curitiba por Jussara Maria Silva (2008), revisado pela
autora na publicação de Pereira e Silva (2014), novamente revisado pela autora nas publicações de Peichó
et al., 2016 e Silva et al., 2016. A ampliação para os municípios do NUC ocorreu com o auxílio de Giovanna
Santi e Gustavo Costa em 2018, utilizando as bases cadastrais das prefeituras. Até esse momento, as ferra-
mentas utilizadas foram o AutoCad e o Depthmap. Em 2022 se iniciou o processo de georreferenciamento
e atualização da base pela autora, com base em imagens aéreas Esri. Além disso, todas as linhas passaram
pela verificação de erros com o plugin Space Syntax Toolkit para QGIS e todos os “unlinks” foram mapea-
dos. Os integrantes da equipe de produção da base axial estão referenciados como Colaboradores SE (2008-
2022). O desenho do mapa axial se limitou às áreas centrais dos municípios do NUC que configuravam
algum grau de conurbação com o polo, estradas e vias rurais que se estendem além da área de interesse não
foram incluídos no sistema analisado.
ST4 - EIXO 2 - ESCALAS E
INTERFACES DA CONFIGURAÇÃO
274
O movimento da desconfiança: mudanças na forma edificada
após intervenções viárias – o caso da Via Mangue, Recife.
Silvio Melo Junior
Universidade Federal do Rio Grando do Norte, silviomeloj@gmail.com
Edja Trigueiro
Universidade Federal do Rio Grando do Norte, edja.trigueiro@gmail.com
Este trabalho busca compreender nexos entre forma construída e indícios de insegurança. Os bairros do
Cabanga e de Boa Viagem, no Recife, são apresentados em alusão às últimas grandes intervenções viárias
em 2016 com foco na Via Mangue. A investigação explora a incidência de transformações em
características do conjunto edilício em áreas que sofreram mudanças mais acentuadas na estrutura
espacial pela inserção da Via Mangue. A configuração do espaço foi comparada aos dados levantados
quanto a dispositivos de segurança acoplados aos edifícios (câmeras, cercas eletrificadas, outros). A
revisão bibliográfica revelou ideias dicotômicas entre permeabilidade e defensibilidade do espaço como
estratégia de promoção de segurança. Os resultados sugerem que as mudanças na estrutura espacial da
cidade coincidem com o recrudescimento no emprego de artifícios de distanciamento entre espaço privado
e público, seja através da própria arquitetura ou elementos acoplados a ela. O mercado imobiliário dá
sinais de que se beneficia do acréscimo em acessibilidade em novos empreendimentos mais fortificados
que os preexistentes. O incremento no potencial de movimento em algumas vias estudadas parece suscitar
uma desconfiança em relação ao espaço público, e, no geral, do afastamento dos princípios recomendados
em parte da literatura revisada como favoráveis à segurança e animação urbanas.
Palavras-chave. Insegurança, Forma, Movimento, Estrutura
1.Introdução
Este artigo investiga a presença de artefatos indicadores de sensação de insegurança,
relacionando-os a mudanças na forma urbana que alteraram a hierarquia de acessibilidade em
porções da malha viária. As áreas estudadas estão distribuídas em trechos dos bairros do Cabanga
e de Boa Viagem, no Recife, Pernambuco.
275
276
Tem-se como premissa que a arquitetura, impregnada de aspectos simbólicos, leva tempo até
revelar mudanças que correspondem a alterações culturais. A paranoia da segurança, do
enclausuramento e do escape à “desordem” do espaço público é cultivada pelo mercado
imobiliário e contribui para a consolidação de uma característica da nossa cultura urbana. Ainda
que estas decisões partam quase sempre do individual, o efeito é coletivo uma vez que hostiliza o
espaço público inibindo o uso da rua como locus do encontro randômico. Encontros promovidos,
dentre outros fatores, pelos padrões de movimento advindos da estrutura espacial da cidade, que
está em constante modificação.
Transformações na forma urbana fazem com que certos espaços da cidade tenham o potencial de
movimento alterado – para mais ou para menos – e esse movimento influenciem na relação formal
do edifício com a rua. Essa consequência recai no uso e na ocupação do solo, consequentemente
na interface entre espaço público e privado, na natureza e na quantidade de artifícios de segurança
agregados à caixa mural do edifício, como cercas eletrificadas, câmeras e grades. O que se
investiga aqui é a resposta arquitetural que os moradores dão às mudanças nos padrões de
movimento nos espaços públicos, destacando-se o que parecem ser indícios de insegurança e
desconfiança. A grande mudança na estrutura espacial avaliada nesta pesquisa é a construção da
Via Mangue, uma via expressa de 4,5km concebida para servir como uma alternativa de conexão
a Boa Viagem iniciando-se no bairro do Cabanga. De acordo com o projeto,
No sentido Centro/Boa Viagem, o corredor terá 4,5km de extensão. Já no sentido
contrário, serão 4,37km. Esta obra engloba ainda a construção de dois elevados por sobre
a Rua Antônio Falcão, em Boa Viagem; de oito pontes [...]; uma alça de ligação [...] uma
passagem semienterrada. [...] Com sua implantação, cria-se um cinturão para proteger o
manguezal do Rio Pina, melhora-se o tráfego nos bairros de Boa Viagem e do Pina [...].
(PREFEITURA DO RECIFE, 2011).
A Via Mangue visou ampliar o sistema viário do bairro de Boa Viagem e do Cabanga desde sua
concepção. Sua inauguração plena em 2016 alterou o perfil de alguns espaços do bairro como
ruas sem-saída que ganharam ligação com a nova Via, entre outras mudanças.
(2012) sobre o bairro de Manaíra, em João Pessoa e o de Greene e Greene (2003) sobre as ruas
de Santiago, Chile.
As diversas investigações abordaram diferentes aspectos da morfologia urbana das cidades que
têm reflexos na sensação de segurança e em características arquiteturais. Grande parte da
literatura tem, ainda, se concentrado na dicotomia entre permeabilidade (engajamento/ confiança)
e defensibilidade do espaço (evitamento/ desconfiança) como estratégia de prevenção ao crime a
partir das ideias de Jacobs (1961) e Newman (1972), que pavimentaram o caminho para
investigações subsequentes. O embate faz lembrar as categorias sociológicas “casa” e “rua” de
DaMatta (2000/1984), sinalizando que aquele que passa como conhecido ou aceitável, seria “da
casa”, em oposição aos desconhecidos, os “da rua”, sinônimo de perigo a evitar.
Hillier (2004), pioneiro na exploração de propriedades sintáticas da acessibilidade e da
visibilidade, chegou à conclusão de que os espaços mais visíveis e integrados – consequentemente
mais movimentados - são mais seguros no contexto de cidades inglesas, achado que requer
experimentação em questões de segurança e criminalidade em estudos mundo afora, sobretudo
considerando-se a importante contribuição de Hillier para este campo de estudo ao reiterar a
importância de se analisar a estrutura espacial e o lugar onde os crimes acontecem.
Ainda não há evidências de que seja possível homogeneizar características espaciais como mais
ou menos seguras quanto ao crime. Aparentemente nas cidades latino-americanas, como o Recife,
João Pessoa e Santiago, o movimento de pessoas não é capaz de arrefecer roubos/furtos,
diferentemente do que dizia Jacobs e Hillier. Parece que se chega a uma situação paradoxal porque
justamente naqueles lugares onde há uma lógica formal que subjaz uma maior variedade de usos,
copresença e, quase sempre, uma interface mais amistosa é onde há, também, mais delitos.
Sabendo-se que alterações na estrutura espacial da cidade levam a mudanças em padrões de
movimento e de quantidade de pessoas utilizando determinados espaços, e que tais fatores atuam
positiva ou negativamente nas ocorrência de ações criminais, acreditamos ser pertinente estar
atento a mudanças na relação entre os edifícios e a rua, e no surgimento de indícios de
(in)segurança, como contribuição à ampliação do conhecimento sobre relações espaço e
sociedade.
Figura 2 - Encontro da Via Mangue com o tecido urbano preexistente (ponto A na Figura 3).
Bairro de Boa Viagem ao fundo e Parque dos Manguezais abaixo (fonte: Portal da Copa/ME,
disponível em <bit.ly/2UZBoLA> Acesso em 12/03/2021).
4. Metodologia
A SE oferece meios para investigar relações entre espaço e sociedade, a partir da ideia fundante
de que os arranjos de cheios e vazios que estruturam os espaços em que vivemos, amoldam
padrões de movimento, encontro e esquivança que expressam e viabilizam a vida social. A
capacidade que tem a configuração espacial de gerar padrões de movimento, independentemente
de outros fatores, foi conceituada como “movimento natural” pelos criadores da metodologia
(HILLIER et al, 1993, p.29) que veem nisso uma precondição material importante para a geração
de relações sociais por criar um campo probabilístico de encontros interpessoais (HILLIER et al,
1989, p.16).
Ao moldar e dar forma ao nosso mundo material, a arquitetura estrutura o sistema de
espaço em que vivemos e nos movemos. Ao fazer isso, tem relação direta – mais do que
meramente simbólica – com a vida social, porque fornece as precondições materiais para
os padrões de movimento, encontro e esquivança que são a realização material – e,
algumas vezes, a geradora – de relações sociais. (HILLIER E HANSON, 1984, p. ix)
Segundo Hillier et al, (1993), os usos do solo são posteriormente alocados na estrutura urbana
para tirar vantagem das oportunidades oferecidas pelos padrões de movimento natural gerado pela
conformação do sistema. Por sistema entende-se a interrelação entre as partes – no caso, as vias
– que formam o todo espacial – no caso, o recorte maior formado pelo Recife e bairros de cidades
vizinhas –, ou o modo como cada via se relaciona espacialmente com todas as demais dentro de
determinado recorte urbano.
Estas relações configuracionais podem ser representadas, quantificadas e analisadas pela SE,
cujas medidas auxiliam na compreensão de efeitos – potenciais e reais – do movimento natural.
Dentre estas, destacam-se, como medidas consagradas para aferir acessibilidade, os valores de
Integração e Escolha.
A distância topológica entre um espaço e todos os outros do sistema é mensurada pela Integração;
portanto, os espaços mais integrados tendem a coincidir com situações de centralidade
relativamente à estrutura espacial da cidade. O conjunto das linhas mais integradas de um sistema
é denominado núcleo integrador, assinalado pela cor vermelha nos mapas sintáticos que são
representados segundo a escala cromática tradicional da SE. Esses espaços são, portanto, mais
fáceis de serem acessados. A medida de Escolha mensura o quanto determinada linha é percorrida
nas rotas mais usadas para se atingir todos os possíveis pares de percurso origem-destino do
sistema. Quanto maior for o valor de Escolha de uma linha (ou segmento de linha), maior será
seu potencial de ser atravessada como caminho mais curto entre outras linhas (ou segmentos de
linha). A medida indica o potencial que as linhas têm de concentrar o movimento de
atravessamento pelo sistema, identificando espaços preferenciais de ligação – as vias arteriais,
por exemplo, da cidade. Seguindo uma tendência que vem se consolidando nas últimas décadas,
pelos resultados mais refinados que apresentam as medidas normalizadas para integração e
escolha (NAIN e NACH, respectivamente), optou-se por utilizá-las aqui. Além de levar em conta
280
.
281
Figura 3 - Esquema gráfico sobre Imagem de satélite do Google Earth. Fonte: Google Earth,
editado pelo autor
282
Figura 4 – (a) Alça viária sobre o Cabanga, 2020. - (c) Alça da Ponte Paulo Guerra que dá acesso a
Via Mangue. (c) Túnel Josué de Castro na saída da Via Mangue. Fonte: Jornal do Commercio (fotos
b e c). As demais são fotos do autor.
Para compreender como essas mudanças nas partes alteraram o todo do sistema foram
comparados 4 mapas de segmento: NAIN e NACH antes com NAIN e NACH depois da via
expressa inserida com as devidas alterações. Estão representados no sistema os principais
municípios da região metropolitana: Recife, Olinda e Jaboatão dos Guararapes.
Comparando Figura 5 e Figura 6 percebe-se que mesmo com a inserção da Via Mangue não houve
deslocamento do núcleo integrador do sistema. A região rotulada como centro (ou cidade) pela
população está próxima mas não coincide com o núcleo integrador, ainda que permaneça
exercendo seu papel enquanto centralidade em termos de concentração de comércios e serviços.
Os bairros do Pina e de Boa Viagem despontam com níveis de integração medianos tanto antes
quanto depois da Via Mangue.
Esperava-se que por se tratar de uma via expressa o mapa de segmentos NACH destacasse a Via
Mangue pelo seu potencial de atravessamento do sistema, o que não aconteceu. Seu potencial é
menor que o de outras vias estruturantes. A coincidência de espaços com alto valor de NAIN e
NACH reforça o núcleo integrador. Tampouco os valores de NACH trazem a Boa Viagem e/ou
ao Pina destaque quanto ao potencial de atravessamento, permanecendo apenas com valores
intermediários (Figura 7 e Figura 8).
Na impossibilidade de perceber diferenças cromáticas que representariam mudanças nos padrões
de movimento do sistema, outro procedimento analítico foi adotado: confeccionar mapas de
segmentos que demonstrariam o percentual de mudanças nos índices sintáticos de NAIN e
NACH. Foram sobrepostos os mapas pré e pós Via Mangue que deram origem a um terceiro, que
chamamos de mapa de alterações sintáticas. Aparecem destacados nestes mapas em vermelho os
espaços que mais ganharam acessibilidade e em azul aqueles que mais perderam (Figura 9 e
Figura 10). No caso do NAIN (Figura 9), a Via Mangue incrementou o potencial de movimento
de dois conjuntos de espaços bem definidos logo no início de sua extensão: em trechos dos bairros
do Cabanga e do Pina. Já quanto ao NACH (Figura 10) um trecho de Boa Viagem destaca-se por
mudanças quanto aos índices sintáticos.
283
O Gráfico 1 mostra que o Cabanga (1) caracterizou-se como a região que reuniu a maior
quantidade de segmentos que aumentaram valores NAIN mas também a que mais diminuíram em
NACH. O Pina (2) destacou-se por reunir 40% dos segmentos que ganharam NACH em seu
território. Já Boa Viagem (3) desponta como a porção do sistema com mais espaços que ganharam
NACH, por volta de 50,6%. É justamente nestas redondezas que a Via Mangue possui mais
capilaridade com o tecido urbano. Em nenhum dos segmentos houve perda nos valores de
integração (NAIN).
[A] [B] [C]
incremento NAIN incremento NACH diminuição NACH
9,40%
16,20%
29,17
% 40%
70,83% 50,60%
26% 57,80%
Cabanga Pina Cabanga Pina Boa Viagem Cabanga Pina Boa Viagem
Gráfico 1 - Percentual de segmentos que sofreram alterações sintáticas em cada trecho. Fonte:
elaborado pelo autor
284
Figura 5 - Mapa de segmentos NAIN global antes da Via Mangue. Fonte: INCITI, Melo-Junior, 2020.
285
Figura 6 - Mapa de segmentos NAIN global depois da Via Mangue. Fonte: INCITI, Melo-Junior,
2020.
286
Figura 7 - Mapa de segmentos NACH global antes da Via Mangue. Fonte: INCITI, Melo-Junior,
2020.
287
Figura 8 - Mapa de segmentos NACH global depois da Via Mangue. Fonte: INCITI, Melo-Junior,
2020.
288
Figura 9 - Mapa de alteração sintática de NAIN global. Fonte: INCITI, Melo-Junior, 2020.
289
Figura 10 - Mapa de alteração sintática de NACH global. Fonte: INCITI, Melo-Junior, 2020.
Adotando a premissa de que configuração do espaço, movimento e atratores estão associados
entre si e também com a sensação de segurança, como a região do Cabanga e de Boa Viagem
responderam morfologicamente a estas mudanças configuracionais trazidas pela Via Mangue?
Para responder a esta pergunta, informações adicionais sobre cada trecho foram inseridas numa
base SIG (Sistema de Informações Georreferenciadas) informações coletadas quanto a variedade
290
As duas áreas de análise foram divididas em 34 perfis, 16 no Cabanga e 18 em Boa Viagem; cada
perfil corresponde a uma rua/ avenida ou a trechos. Essa divisão facilita a leitura uma vez que
certos fenômenos podem acontecer em alguns segmentos de quadra e em outros não.
A Figura 11 e a Figura 12 mostram a divisão das duas áreas de análise em perfis espaciais,
complementadas pelo Quadro 1 com o nome das
vias analisadas.
Figura 12 - Divisão das ruas de Boa Viagem em Perfis Espaciais. Traçado da Via
Mangue em tracejado. Fonte: elaborado pelo autor.
292
Quadro 1 – Descrição das vias analisadas e do perfil espacial correspondente. Elaborado pelo autor.
Número do
Via correspondente
Perfil Espacial
1 Rua Capitão Temudo
3 Rua Bituri
CABANGA
8 R. Pe. Carlos de Barros Barreto
9 R. Iobi
11 R. Jequitibá
12 R. Gutiúba
13 R. Bujari
14 R. Jitó
16 R. Camutanga
18 R. Francisco da Cunha
24 R. Antônio de Sá Leitão
BOA VIAGEM
25 R. Ministro Nelson Hungria (n. 402 – n.26)
28 R. Antônio Falcão
29 R. Maria Carolina
34 R. Mamanguape
293
Tabela 1 - Classificação quanto ao uso e ocupação do solo. Fonte: elaborado pelo autor
USO GERAL USO ESPECÍFICO
Unifamiliar
Multifamiliar
Multifamiliar misto
Hotelaria e Hospedagem
Varejista
COMÉRCIO Atacadista
Alimentação
Técnico / Financeiro
Privado
Saúde
SERVIÇO
Público
Clubes e agremiações
Cinema / Teatro
Educacional
INSTITUCIONAL
Religioso
INDUSTRIAL Indústria
Dentre os métodos apontados pela literatura para aferir o grau de diversidade do uso do solo, o
índice de Simpson (Jost, 2006) foi o escolhido para esta pesquisa. Neste caso o valor varia entre
0 e 1, sendo zero a mais baixa diversidade (quando o espaço contém apenas 1 uso do solo) e 1 a
mais alta (uma grande quantidade de uso do solo proporcionalmente distribuídas entre as várias
categorias).
294
Caracterização da interface
O que se chama de interface aqui é o elemento, construído ou não, que separa espaço público do
domínio privado. O que se está buscando é encontrar vestígios que respondam ou não à “estética
da segurança” apontada por Caldeira (2011), e/ou ainda a fuga da “desordem social” atrelada
aquilo que é público (BAUMAN, 2008).
A interface de cada lote foi georreferenciada e caracterizada de acordo com seus atributos físicos
e o principal critério de balizamento foi a permeabilidade física e visual, variando entre aberta,
transparente, cambiante, parcialmente fechada e fechada.
6. Resultados e discussão
A escolha de subdividir esta análise em perfis espaciais facilitou a identificação de espaços
específicos onde ocorreram mudanças mais significativas. As informações levantadas foram
inseridas numa matriz de dados com os valores correspondentes a cada um dos 34 segmentos.
As variáveis qualitativas, como diversidade de uso do solo e caracterização da interface foram
transformadas em valores numéricos (diversidade: 0 menos diverso, 1 mais diverso; interface: 1
fechada e 5 aberta).
A ideia não é criar um “índice” que reifique o conjunto de características levantadas, mas sim
conseguir enxergar se as transformações nos espaços apontam para mudanças positivas ou
negativas sob o ponto de vista dos indícios de insegurança e como isso se relaciona com a estrutura
espacial. O Quadro 2 apresenta diferença entre as variáveis, mostrando em quais segmentos as
transformações foram mais significativas e se as variações foram positivas ou negativas. Devido
a algumas serem muito pequenas (como a diversidade), algumas séries foram multiplicadas por
um mesmo fator para que pudessem operar numa escala numérica próxima e assim aparecerem
num gráfico de linha comparativo. Como a multiplicação é feita pelo mesmo valor, mantém-se a
proporção e sem comprometer o resultado. O Gráfico 2 e o Gráfico 3 foram gerados a partir dos
dados do Quadro 2 para inferir a influência de cada variável no conjunto avaliado.
Quadro 2 - Diferença entre os valores que indicam a variabilidade das varáveis. Elaborado pelo autor.
CONSTITUIÇÕES
EQUIPAMENTOS
DIVERSIDADE
INTERFACE
DISTÂNCIA
PERFIL
ENTRE
/ LOTE
NACH
QTDE
NAIN
1 0,7347 -0,2300 0,1143 0,0571 0,0077 -1,2917
2 0,2249 0,1000 0,3824 0,0294 0,9405 0,1210
3 0,5554 -0,2100 0,1698 -0,2642 0,0077 -0,0143
4 0 -0,98 0,1071 -0,3214 0,0072 0,0008
5 1,1834 0,3600 -0,0769 -0,0769 0,0073 -0,1266
6 0,4688 -0,26 0,1250 -0,25 0,0087 0,0550
7 0 0 0 1,0000 0,0091 -0,0014
CABANGA
A ideia de animação urbana é favorecida, segundo a literatura, através de interfaces mais abertas
e permeáveis, mais constituições assim como pela maior variedade de usos. O levantamento
mostrou que a diversidade em Boa Viagem é consideravelmente mais alta que no Cabanga, o que
representa uma distribuição mais equilibrada entre os usos do solo. Diversidade esta que,
entretanto, vem caindo – indicado pelos valores negativos do Quadro 2 e Gráfico 3 - conforme
os novos edifícios vêm sendo inaugurados. Os resultados apontam que o Cabanga tem se tornado
mais diverso mas aqui vale fazer uma ponderação. O índice de Simpson representa a distribuição
equilibrada entre uma série de categorias. O índice considera também aqueles nocivos à animação
urbana: vazios, depósitos, imóveis sem uso e estacionamentos. O levantamento mostrou
indicadores de uma evasão habitacional da região em favor destes usos, o que caracteriza esse
aumento de diversidade como um “falso positivo”.
As quadras e lotes consideravelmente menores do Cabanga lhe conferem uma maior possibilidade
de vigilância social ancorado por uma interface mais aberta e/ou transparente e pelo menor
número de constituições por metro. O mesmo pode ser dito quanto a quantidade média de
equipamentos de segurança acoplados a cada caixa mural. Boa Viagem utiliza bem mais desses
recursos que o Cabanga ainda que esse venha recrudescendo especialmente onde os valores de
acessibilidade aumentaram.
O incremento na acessibilidade parece operar como um vetor de desconfiança no Cabanga (ver
Gráfico 2) visto que o aumento no potencial de movimento acompanha o crescimento no uso de
aparatos em maior grau que noutras ruas do bairro (perfis espaciais 2 e 14). A tendência de
recrudescimento dos instrumentos de segurança fica explícita no Gráfico 2 em todo o Cabanga
mas é ainda mais acentuada onde a acessibilidade foi privilegiada. Em Boa Viagem a
acessibilidade parece fazer pouco efeito frente às transformações na interface, alguns perfis se
abriram e outros se fecharam.
299
Cabanga
1,5
0,5
0
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16
-0,5
-1
-1,5
-2
DIVERSIDADE (1 - D) CONSTITUTIVIDADE
QTDE EQUIPAMENTOS / LOTE INTERFACE
DIFERENÇA NAIN DIFERENÇA NACH
Gráfico 2 - Gráfico de linhas que indica a variabilidade entre as variáveis analisadas no Cabanga.
Elaborado pelo autor.
Boa Viagem
0
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18
-1
-2
-3
DIVERSIDADE (1 - D) CONSTITUTIVIDADE
QTDE EQUIPAMENTOS / LOTE INTERFACE
DIFERENÇA NAIN DIFERENÇA NACH
Gráfico 3 - Gráfico de linhas que indica a variabilidade entre as variáveis analisadas em Boa Viagem.
Elaborado pelo autor.
300
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Resumo. O artigo compreende uma análise configuracional diacrônica do sistema urbano Porto
Belo/Itapema (localizado no litoral de Santa Catarina), com o intuito de discutir o processo de expansão
urbana associado aos fenômenos de polinuclearização e turistificação. Quanto aos procedimentos
teóricos, metodológicos e ferramentais, são adotadas estratégias vinculadas à Sintaxe do Espaço (Teoria
da Lógica Social do Espaço). Para tanto, foram elaborados mapas de representação linear do sistema
urbano e discutidas suas características morfológicas ao longo do tempo. Os valores obtidos foram
associados, no cenário contemporâneo, a dados de usos do solo, o que permitiu explorar o processo de
espraiamento e formação de centralidades. Quanto aos valores sintáticos, medidas geométrica, de
centralidade e de legibilidade constituíram as principais meios de discussão, o que elucidou a
categorização dos centros identificados em morfológico, tradicional e subcentros.
Palavras-chave. Centro Morfológico, Centralidades, Urbanização Turística, Configuração Espacial,
Sintaxe do Espaço.
303
304
2
1.Introdução
O artigo consiste em uma análise configuracional diacrônica para compreender o processo de
expansão urbana, associado ao fenômeno de polinuclearização (LEFEBVRE, 1999), em um
assentamento costeiro de relevância turística. Composto pelas cidades de Itapema e Porto Belo
(Santa Catarina), o estudo de caso tem presenciado rápido crescimento demográfico e intensa
turistificação nas últimas décadas (PINHO e REIS, 2010). A ampliação do sistema Itapema-Porto
Belo acentua os conflitos entre interesses imobiliários e preservação ambiental em um frágil
ecossistema (SUGAI, 2002): se por um lado a paisagem é a principal força motriz que fomenta a
ocupação urbana e o desenvolvimento econômico, por outro sofre com os efeitos do turismo
predatório, da especulação imobiliária e do decorrente espraiamento urbano.
As cidades de Porto Belo e Itapema (figura 1) estão 68km ao norte da capital Florianópolis.
Segundo estimativas para 2021, Itapema tem uma população de 69.323 pessoas e Porto Belo de
22.466 habitantes (IBGE, 2021), o que totaliza uma conurbação urbana de 91.789 habitantes. Esta
população aumenta consideravelmente nos períodos de verão. Segundo dados da Agência de
Desenvolvimento do Turismo de Santa Catarina (Santur), Itapema é um dos 5 destinos mais
procurados pelos turistas, recebendo mais de 500 mil visitantes durante a temporada.
Figura 1. Localização dos municípios de Itapema e Porto Belo em Santa Catarina (fonte:
elaborado pelos autores, 2022).
Atualmente, mais de um quarto da população brasileira vive no litoral. A urbanização datada do
período de colonização se desdobrou em inúmeros assentamentos costeiros, favorecendo uma
rede urbana de alta complexidade ao longo de mais de sete mil quilômetros de costa. O
crescimento da produtividade global, o grande volume de trabalho e as facilidades de
deslocamento têm fomentado um significativo desejo de lazer nas sociedades ocidentais,
promovendo a intensificação de atividades de veraneio ao longo século XX (MVRDV, 1998).
Consequentemente, estas atividades têm gerado altos fluxos econômicos e sociais em regiões de
forte apelo paisagístico. O processo de estruturação urbana voltado para atividades
essencialmente de turismo é denominado, por muitos autores, de “urbanização turística”.
A urbanização turística consiste na construção de cidades ou bairros voltados estritamente para o
consumo (MULLINS, 1991). Rubio (1986) assinala que a “lógica de centralidade” recorrente na
cidade convencional se volta em uma crescente valorização da fachada marítima nas cidades
costeiras. A paisagem, portanto, é fator primordial na estruturação das centralidades. Estas, por
sua vez, fundamentam-se em esquemas de implantação de caráter guetual, com dificuldades em
se integrar com os sistemas urbanos preexistentes, seja por questões urbanísticas ou de segregação
social (MVRDV, 1998). Como surgem sob forte influência da paisagem, as centralidades
305
3
turísticas podem ocorrer independentemente das centralidades preexistentes, ainda que os dois
fenômenos eventualmente possam se sobrepor.
Com base nestas premissas, sob uma abordagem morfológica segundo a Teoria da Lógica Social
do Espaço ou Sintaxe do Espaço, pretende-se compreender de que maneira a expansão urbana,
por meio da perspectiva configuracional e estimulada pela turistificação, afetou a dinâmica das
centralidades existentes no assentamento objeto de estudo. Para tanto, são avaliadas as
centralidades em quatro níveis: a) centro ativo urbano/morfológico, b) centro tradicional, c)
subcentros e d) centros especializados. Para a identificação das centralidades, os dados
configuracionais são confrontados com levantamento de uso do solo, tomando por base as
denominadas Áreas de Interesse da plataforma Google Maps (2021), que correspondem às regiões
de maior concentração de lojas, bares, restaurantes, escritórios etc.
Em termos de organização do artigo, o texto está estruturado em 5 seções. A primeira dedica-se
à introdução, enquanto a segunda volta-se para a exposição dos conceitos relativos às
centralidades urbanas. A terceira parte diz respeito à metodologia, o que antecipa o trecho
dedicado aos resultados e à respectiva discussão. Por fim, são apresentadas as principais
conclusões.
2. Centralidades urbanas
Centralidades urbanas são compreendidas enquanto regiões de intensa atividade econômica e
social. A diversidade de usos, infraestrutura, elementos simbólicos e expressão identitária
afirmam seu protagonismo na organização espacial da cidade. Na sociedade pós-industrial,
caracterizada pela acentuada urbanização e pelo espraiamento do tecido urbano especialmente a
partir de meados do século XX, as centralidades se consolidam em diversas porções do território,
sendo recorrente o fenômeno da polinuclearização.
Castells (1983) define centralidade urbana como um conjunto de atividades espacialmente
diversificadas, que se contrapõe à ideia de subúrbio. Trata-se, portanto, de um importante lugar
de troca entre os processos de produção e de consumo, ou seja, entre a atividade econômica e a
organização social urbana.
A complexidade das atividades econômicas e da organização social faz com que centralidades se
manifestem nas mais variadas configurações. Independentemente da forma espacial na qual a
centralidade se apresenta, o centro tradicional se distingue. Enquanto o primeiro tente a se
constituir enquanto primeiras delimitações ou sítio do qual a cidade se originou, as novas
centralidades são conduzidas pelo fator deslocamento (VILLAÇA, 1998). Nesse processo, o
centro tradicional pode perder protagonismo, ao mesmo tempo em que o centro morfológico e os
subcentros ocupam esse papel. O centro morfológico pode ser compreendido, em termos
configuracionais, como o trecho do assentamento mais acessível a partir de todas as partes
integrantes do sistema urbano. Para Villaça (1998), os subcentros se definem como aglomerações
diversificadas e equilibradas de comércio e serviços, em tamanho menor se comparados ao centro
principal, com o qual concorrem em parte sem, entretanto, a ele se igualar.
Em relação ao processo de deslocamento das centralidades, fator inerente ao fenômeno da
polinuclearização, Villaça (1998) argumenta que os detentores do capital tendem a trazer o centro
para perto de si. Para o autor, o centro antigo [ou tradicional] pode se tornar uma centralidade
periférica, na qual comércio e serviços voltados para as camadas de alta renda são substituídos
pelo comércio de caráter mais popular. Logo, o espaço urbano abriga um movimento contraditório
de centralização e descentralização. Descobre-se “o essencial do fenômeno urbano na
centralidade. Mas na centralidade considerada com o movimento dialético ético que a constitui e
a destrói, que a cria ou a estilhaça” (LEFEBVRE, 1999, p. 110).
O “centro morfológico”, por sua vez, tende a apresentar intensa atividade comercial e de serviços,
coincidindo com o centro ativo urbano. Hillier (1996) relaciona padrões de deslocamento com a
forma do tecido urbano, ou seja, o movimento em uma rede de espaços públicos é determinado
pela sua estrutura configuracional. Logo, padrões de uso do solo como, por exemplo, centros
306
4
comerciais, são influenciados pelo “movimento natural” de pessoas e veículos. Ademais, o centro
morfológico se estrutura, se desloca e se expande com base no padrão de crescimento da mancha
urbana e em função da reorganização dos fluxos potenciais oriundos da relação entre forma e
espaço; esta dinâmica também proporciona o surgimento de subcentros, os quais reproduzem as
atividades antes concentradas unicamente no centro tradicional.
Além desses centros, aquele de natureza “especializada” decorre do movimento econômico, no
qual a especialização de algumas áreas faz com que as atividades se localizem juntas, podendo,
em algumas situações, serem complementares (CORREA, 2004). São classificados de acordo
com sua função predominante: centros de negócios, centros comerciais, centros turísticos, centros
de entretenimento etc.
Holanda (2002) classifica as centralidades com base em seus atributos espaciais e funcionais. Para
o autor, há duas categorias predominantes de centralidades. A primeira delas – o centro funcional
– é definida pela região que concentra a maior parte do comércio e de serviços. Em geral, coincide
com o centro tradicional (o que deu origem à cidade); a segunda categoria – o centro morfológico
– consiste no ponto mais acessível geograficamente de todos os demais pontos do espaço urbano,
quando considerada a estrutura de sua rede urbana.
A partir da literatura citada, depreende-se que as centralidades são classificadas de diversas
maneiras pelos autores que estudam a temática. Com base em levantamento bibliográfico, quatro
denominações julgadas mais adequadas para esta pesquisa são adotadas no ensaio com o intuito
de auxiliar na compreensão e no levantamento das respectivas centralidades urbanas no sistema
investigado: centro tradicional, centro morfológico, subcentros e centros especializados.
elementar para o cálculo de centralidades. Uma vez que a cidade se expande, sua localização não
é estática. Em formas urbanas radiocêntricas, o centro morfológico se funde ao centro principal;
no entanto, em outros padrões de crescimento, o centro morfológico pode se deslocar conforme a
direção predominante do espraiamento da mancha urbana.
Uma vez que a integração global (ou integração normalizada, NAIN, para o mapa de segmentos)
está associada a um nível de acessibilidade por meio do deslocamento por automóvel, o centro
morfológico apresentará poucas condições de transitabilidade caso não possua simultaneamente
uma alta integração local (em raios métricos curtos, para interpretação angular de segmentos).
Esta conjuntura favorecerá a instalação de grandes estabelecimentos em eixos viários, tais como
shoppings centers, atacadistas, lojas de departamento etc., em vez de estabelecimentos de pequeno
porte (mais direcionados ao movimento do pedestre).
2.3. Subcentros
O surgimento de novas centralidades está associado a dois principais fatores: à saturação dos
centros principais e ao espraiamento do tecido urbano. Em relação ao espraiamento, pode suceder
que a cidade, durante seu crescimento, “tenha englobado pequenos centros semi-urbanos ou
antigos subúrbios, que se transformaram em centros secundários” (SANTOS, 1981, p. 182). Nas
palavras de Oliveira Jr. (2008, p. 01), os subcentros:
[...] expressam a saturação dos centros tradicionais para as necessidades impelidas pelas
novas formas contemporâneas de reprodução e acumulação do capital, além da imposição
de (novos) tempos hegemônicos. [...] Dessa forma, depreende-se que as alterações na
dinâmica econômica determinam que a cidade possua novas centralidades porque as
tradicionais não são mais funcionais à reprodução e acumulação do capital, bem como ao
acolhimento de novos capitais que se descentralizam para os espaços que
economicamente apresentam-se como mais propícios e rentáveis.
Sendo assim, os subcentros consistem em réplicas menores do centro principal. Atendem aos
mesmos requisitos de otimização de acesso apresentados para o centro principal, porém cumprem
estes requisitos para uma parte do sistema urbano, enquanto o centro principal cumpre-os para
toda a cidade (VILLAÇA, 2008). É essencial que sejam acessíveis a partir de um raio determinado
ou, em termos sintáticos, apresentem elevada integração local.
3. Metodologia
Em termos teóricos, metodológicos e ferramentais, a pesquisa ampara-se na Teoria da Lógica
Social do Espaço (Sintaxe Espacial) ao assumir a cidade enquanto um sistema de
interdependências, de modo que alterações em partes implicarão alterações no todo. A estratégia
permite a compreensão do processo de expansão urbana com base na avaliação das novas relações
estabelecidas na medida em que o assentamento cresce. Deste modo, a abordagem fornece
308
6
4. Resultados e discussão
4.1. Uma leitura diacrônica
As primeiras ocupações da região onde se localizam os municípios de Porto Belo e Itapema datam
do século XVIII. Pertencente inicialmente à Tijucas (cidade localizada ao sul do assentamento),
Porto Belo se emancipou em 1925, sendo elevada à categoria de vila. Nesse período, Itapema
constituía um distrito da cidade. Foi somente em 1962 que se tornou um município independente.
A figura 2 contém a indicação de que a primeira estrutura de fato urbana data da década de 1930,
iniciando-se em Porto Belo. Antes desse período, o território apresentava feições essencialmente
rurais. Diferente da maioria das cidades brasileiras, nas quais o primeiro núcleo urbano é
consolidado no entorno da igreja matriz, o núcleo fundacional de Porto Belo é constituído de uma
pequena grelha a cerca de 1km da Igreja Bom Jesus dos Aflitos. Infere-se que a primeira estrutura,
denominada inicialmente de Colônia Nova Ericéia, desenvolveu-se distante do templo católico
devido às condições topográficas menos favoráveis. Segundo Kohl (1987), a aldeia de Garoupas,
onde se localizava a matriz, não possuía espaço físico para expansão, permanecendo como um
bairro da nova vila.
Até a década de 1950 a região apresentava baixos índices de crescimento urbano. As atividades
de subsistência relacionadas à pesca eram predominantes ao longo da costa, enquanto mais
adentro, nas planícies, o protagonismo estava na atividade agropecuária. Na década de 1960
surgiram os primeiros loteamentos originados do parcelamento das propriedades rurais, formando
309
7
Figura 2. Núcleo fundacional de Porto Belo em 1938. O ponto amarelo indica a localização da
Igreja Matriz do Bom Jesus dos Aflitos e as linhas em vermelho o primeiro traçado urbano (fonte:
Neves, 2007, p. 32, com adaptações, 2022).
Figura 3. Expansão da mancha urbana de Porto Belo e Itapema entre os períodos de 1940 e 2021
(fonte: elaborado pelos autores, 2022).
Nota-se, a partir de fotografias históricas, que a urbanização do assentamento é regida,
majoritariamente, por uma lógica própria: em um primeiro momento se dá o parcelamento do
solo, posteriormente são erguidas as edificações e, por fim, é realizada a urbanização. Solà-
Morales (1997) define esse tipo de urbanização como “marginal”, pois comumente ocorre fora da
“legalidade”. No entanto, em Itapema e Porto Belo, a atuação de grupos imobiliários respaldados
pelo Estado foi crucial para a ocupação do território.
Se por um lado a mancha urbana se expandiu substancialmente entre as décadas de 1960 a 2000,
por outro lado permaneceu muito semelhante quando observados os mapas de 2004 a 2021 (figura
3). Merece atenção para o fato de que é no início do século XXI que a região vai vivenciar um
processo vertiginoso de crescimento demográfico. De acordo com os dados presentes na tabela 1,
a população do assentamento cresceu 151,12% entre 2000 a 2021, o que representa um dos
maiores índices do Brasil. Segundo o censo do IBGE para 2010, Itapema tornou-se o munícipio
310
8
com a maior taxa de expansão em Santa Catarina, com índices de 5,88% ao ano entre 2000 a
2010.
Uma das características marcantes do rápido crescimento demográfico é a verticalização do
espaço urbano. Somekh (1997) destaca esse fenômeno relacionado ao intensivo aproveitamento
da terra urbana, em que há uma explícita relação entre verticalização e adensamento.
Primeiramente em Itapema e mais recentemente em Porto Belo, esse processo ocorre, segundo
Pinho e Reis (2010), sem obedecer a um plano diretor urbano de ocupação. As ruas e bairros, que
são frutos de loteamentos promovidos para abrigar o novo contingente populacional e,
principalmente, residências de veraneio, surgem de maneira dissociada da criação de
infraestrutura viária, saneamento básico e abastecimento de água. A ininterrupta urbanização
pode ser descrita como uma absoluta hegemonia sobre o entorno natural, debilitando sua própria
fonte de renda: a paisagem.
Tabela 1. Crescimento demográfico de Porto Belo e Itapema (Fonte: censos de 1980, 1991, 2000,
2010 e Estimativa Populacional de 2021 – IBGE).
Habitantes
Ano Porto Belo Itapema Total
1980 8.419 6.585 15.004
1991 11.689 12.176 23.865
2000 10.682 25.869 36.551
2010 16.083 45.797 61.880
2021 22.466 69.323 91.789
Obs. A população de Porto Belo diminui no censo de 2000, pois o distrito de Bombinhas se
emancipou em 1992, tornando-se um novo município.
Para cenário de 2021, o sistema urbano Porto Belo/Itapema (figura 4) apresenta um tecido urbano
contíguo, caracterizado pelo padrão em colcha de retalhos, típica estrutura das cidades brasileiras.
Esse padrão morfológico é composto por grelhas distintas pouco ou sem articulação entre si, que
se tornam um conjunto de partes quase independentes (MEDEIROS, 2013).
A partir dessa estrutura macro, quatro características físico-espaciais se destacam atualmente no
assentamento: a) o núcleo fundacional em grelha, localizado em Porto Belo, na porção leste do
território; b) a ocupação costeira, composta por um tecido urbano irregular, que se desenvolve
principalmente em regiões de topografia acidentada; c) os novos loteamentos urbanos em grelha,
advindos do antigo parcelamento de terras agrícolas (REIS, 2012), que se consolidaram a partir
da turistificação e da especulação imobiliária; e d) os assentamentos de baixa renda distantes da
costa, que também apresentam estrutura irregular, mas que não necessariamente são
condicionados pelo relevo, mas pela informalidade (no que se refere à legislação) do modo que
surgem e se expandem. Usualmente, em assentamentos informais as construções são construídas
primeiro, e as ruas, quadras e blocos surgem ao longo do tempo. Quanto aos seus cruzamentos,
possui equilibradamente interseções em “X” e em “T”, podendo ser classificado como misto, com
padrões irregulares e regulares recorrentes no tecido urbano. De acordo com esta classificação de
Medeiros (2013), enquanto malhas regulares tendem a apresentar conexões em “X”, pois as vias
se cruzam e há uma menor quantidade de eixos por área, nos sistemas com maior irregularidade
predomina a estrutura em “T”.
311
9
No que diz respeito a uma leitura comparada quantitativa, os dados diacrônicos obtidos para a
expansão urbana do sistema investigado constam na tabela 2. Para a verificação do quanto o
desempenho se aproxima ou se afasta das cidades brasileiras (dados fornecidos por Medeiros,
2020), os gráficos expressos na figura 5 auxiliam a análise.
Número de Segmentos
Inteligibilidade
Int. Local (R3)
Conectividade
Sinergia
NACH
NAIN
Ano
1940 28 205,74 59 79,49 2,714 0,748 1,402 61,77% 46,67% 1,110 0,846
1960 233 218,00 518 87,62 1,755 0,665 1,962 53,13% 33,07% 1,216 0,892
2004 1550 257,74 3764 97,95 3,227 0,528 1,694 69,67% 20,81% 0,937 0,919
2021 1834 236,36 4234 95,21 3,112 0,513 1,619 68,98% 21,76% 0,920 0,913
faces dos quarteirões, dialoga com a interpretação anterior: os valores, diacronicamente, foram
sempre semelhantes aos nacionais. Mesmo quando as ruas eram “menores”, os quarteirões já
seguiam o padrão nacional.
Apesar da busca pela regularidade na medida em que o sistema se consolida, a estrutura urbana
de Porto Belo/Itapema mantém trechos de irregularidade ao longo do tempo. O produto é uma
conectividade média inferior aos valores nacionais para todo o período. Aos efeitos do sítio físico,
ao impedirem a estruturação de um mapa em tabuleiro de xadrez perfeito, pode ser atribuído o
desempenho. Paralelamente, e também em razão da menor conectividade, os valores de integração
global também são mais baixos do que as médias nacionais, embora nos dois casos (conectividade
e integração) seja evidente uma aproximação nos últimos recortes temporais. A despeito das
diferenças, o resultado parece dialogar com o entendimento de que, com o tempo, as cidades
brasileiras se aproximam cada vez mais, perdendo as diferenças topológicas (MEDEIROS, 2021).
As leituras associadas à legibilidade, que incluem as medidas de inteligibilidade e de sinergia, ao
mesmo tempo se aproximam e afastam do cenário nacional. Se a linha para inteligibilidade é
muito próxima àquela referente às cidades do país, o contexto de sinergia é inverso: começa
inferior, mas atualmente alcança uma performance superior. Acredita-se que isto tem relação com
a boa sincronia entre as escalas global e local que ocorre no sistema urbano, resultado da maneira
de estruturação do território com duas cidades que, originalmente separadas, agregaram-se em
efetiva conturbação, sendo difícil atualmente distinguir os limites entre ambas.
Os valores oriundos da análise angular de segmentos relativas às variáveis NAIN e NACH
reforçam a aproximação das médias nacionais, inclusive confundindo-se. A despeito dos eixos
motivadores vinculados à turistificação, o sistema investigado cada vez mais semelhante às
cidades nacionais. Ou seja, a independer da paisagem (ou de qualquer outro eixo motivador), a
estrutura das cidades se reproduz nacionalmente numa escala que aproxima sistemas urbanos de
matrizes absolutamente distintas, de assentamentos amazônicos a cidades costeiras no sul do
Brasil.
Figura 6. Mapa axial para a variável integração global do assentamento, à esquerda; e recorte do
centro tradicional para a mesma variável, com destaque para as Áreas de Interesse, à direita (fonte:
elaborado pelos autores, 2022).
Na tentativa de mitigar os impactos da polinuclearização e a consequente “perda de centralidade”,
o poder público tem investido no resgate e preservação do patrimônio material e imaterial do
local, por meio do restauro de edificações históricas ou pela valorização dos elementos da
paisagem. Projetos de qualificação urbana cresceram na última década. No entanto, ainda pouco
refletem uma maior copresença e o surgimento de novas dinâmicas econômicas e sociais.
Para o centro morfológico, os eixos mais integrados (em vermelho) do sistema urbano podem ser
identificadas na figura 7. Alcançam valores de integração global entre 0,740 e 0,802, enquanto as
regiões menos integradas (em azul escuro) atingem os níveis de 0,190 a 0,251. O eixo mais
integrado e de maior conectividade é a Avenida Nereu Ramos (0,802 e 116, respectivamente). O
núcleo integrador, isto é, o centro morfológico do sistema urbano, compreende o trecho que
comporta o cruzamento entre a BR-101 e a Avenida Nereu Ramos (Itapema), na porção central
do tecido urbano e paralelamente à praia mais extensa do território, denominada Meia Praia.
Enquanto as proximidades da orla representam as áreas de maior integração espacial, com uso do
solo diverso, intensa verticalização e terrenos mais valiosos, regiões com o sítio geográfico
acidentado e de menor valor de uso – localizadas nas bordas externas da BR-101 – foram ocupadas
pela população de baixa renda, sendo as atividades comerciais e de serviços pouco presentes. As
áreas costeiras com foco nas atividades da pesca e de subsistência – muito presentes no início da
urbanização – são, hoje em dia, praticamente inexistentes, uma vez que grande parte da orla,
inclusive em regiões de relevo acidentado, é ocupada por edifícios multifamiliares e residências
de alto padrão que se apropriam da paisagem. Em busca da melhor vista e da proximidade de
praias mais reclusas, essas edificações muitas vezes são construídas em Áreas de Proteção
Permanente.
315
13
Figura 7. Mapa axial para a variável integração global, à esquerda, e o respectivo núcleo
integrador, à direita (fonte: elaborado pelos autores, 2022).
Quando levantadas as Áreas de Interesse, ou seja, regiões de intensa atividade comercial e de
serviços, e confrontadas com o mapa de conectividade (figura 8), é possível observar a
proeminência da Avenida Nereu Ramos: é ali onde se concentra a maioria dos estabelecimentos
comerciais do assentamento. Acredita-se que as razões para o desempenho se relacionam à
linearidade do eixo, à proximidade com a praia e por se tratar de uma via estruturante para o
sistema Porto Belo/Itapema. O cenário possivelmente viabilizou a criação de uma vasta rede
comercial ao longo dos seus mais de 6km de comprimento: para referência, o único shopping
center do assentamento (Andorinha Shopping) encontra-se nessa avenida, muito próximo ao
entroncamento com a BR-101.
Figura 8. Mapa axial para a variável conectividade, à esquerda, e centro morfológico e Áreas de
Interesse, à direita (fonte: elaborado pelos autores, 2022).
316
14
Com base no levantamento das Áreas de Interesse, além do centro morfológico e do centro
tradicional, é possível identificar dois subcentros no assentamento. O primeiro deles, identificado
na figura 9 e denominado “Subcentro Itapema”, também se localiza na Avenida Nereu Ramos,
porém na porção norte do tecido urbano. Nessa região, a avenida apresenta índices menores de
integração global se comparados à centralidade morfológica, variando entre 3,114 a 3,185. No
entanto, quando analisados os valores das linhas do entorno, a avenida permanece como o eixo
de maior integração. A conectividade na avenida também é superior às ruas próximas, com valor
de 18.
Figura 9. Mapa axial para a variável integração global do assentamento, à esquerda; e o subcentro
de Itapema para a mesma variável, com destaque para as Áreas de Interesse, à direita (fonte:
elaborado pelos autores, 2022).
Em relação aos usos, é possível observar uma elevada concentração de edifícios institucionais
nessa porção do território, incluindo a Câmara dos Vereadores, a Prefeitura Municipal e a
Secretaria da Saúde de Itapema, de forma similar ao que ocorre no centro tradicional de Porto
Belo. Isso se dá uma vez que essa área compreende a região de urbanização mais antiga do
município, onde a necessidade da criação de instituições públicas ocorreu após a emancipação da
cidade. Em relação ao comércio e aos serviços, diferentemente do centro tradicional de Porto
Belo, os estabelecimentos são de pequeno, médio e grande porte, além de apresentarem
características que atendem tanto a escala local quanto as demandas turísticas. Ocorrem, todavia,
em menor quantidade se comparado ao centro morfológico.
O segundo subcentro, denominado “Subcentro Porto Belo”, está localizado entre o centro
morfológico e o centro tradicional. É estruturado pela mesma avenida do centro tradicional:
Governador Celso Ramos, também principal ligação entre os dois municípios. Trata-se de uma
centralidade ainda em formação. Quando levantados os usos indicados nas Áreas de Interesse
(figura 10), observa-se a existência de estabelecimentos comerciais de grande porte, como lojas
de departamento e mercado atacadista, o que denota uma predominância de atividades
compatíveis com a escala do automóvel.
Em relação às medidas de integração global, o eixo o qual se concentram as atividades comerciais
apresenta valor de 0,697, enquanto a conectividade alcança 28 cruzamentos. Se comparado aos
demais eixos do assentamento, pode-se considerar que esse trecho da Avenida Governador Celso
Ramos possui elevada integração global, compondo o conjunto dos eixos 20% mais integrados
de todo o sistema. No entanto, se comparado aos demais eixos do conjunto, esse trecho da avenida
apresenta baixa conectividade, ainda que seu valor seja superior à conectividade do entorno.
317
15
Figura 10. Mapa axial para a variável integração global do assentamento, à esquerda; e o
subcentro de Porto Belo para a mesma variável, com destaque para a Área de Interesse, à direita
(fonte: elaborado pelos autores, 2022).
A partir das análises do uso do solo, não é possível afirmar que há especialização nas centralidades
urbanas do assentamento. Apesar do centro morfológico ser a centralidade que mais atende as
dinâmicas do turismo, observa-se uma diversidade de estabelecimentos comerciais, como lojas
de departamentos, restaurantes, farmácias etc., o que também é evidente nas demais áreas
investigadas. A falta de setores especializados parece dever-se ao médio porte do assentamento,
uma vez que não apresenta demanda suficiente para usos voltados essencialmente para um tipo
único de atividade.
5. Considerações finais
O presente artigo inicialmente levantou os principais conceitos de centralidade urbana. A
acessibilidade de um determinado lugar associada à diversidade de usos são características
inerentes às centralidades, ainda que em maior ou menor grau. Esta compreensão permite
correlacionar o processo de crescimento da mancha urbana e o fenômeno da polinuclearização.
Em relação ao assentamento de Itapema e Porto Belo, é notório que o surgimento de múltiplas
centralidades ocorre a partir da expansão urbana desenfreada, iniciada com a consolidação da BR-
101, um dos principais eixos viários do país, junto à simultânea turistificação do litoral brasileiro.
A criação de novas reservas de terra a partir da capitalização da paisagem é o principal
instrumento ideológico para o crescimento intensificado no final do século XX, levando a
transformações disruptivas do território. O que antes se caracterizava por uma população local,
tendo a pesca e a agricultura como base de subsistência, hoje se conforma um dos principais
destinos turísticos de Santa Catarina, com a maior taxa de crescimento demográfico do estado. A
despeito disso, o desempenho do sistema é muito similar ao das cidades brasileiras, especialmente
nas últimas décadas, o que fornece um indício de homogeneização dos assentamentos no país.
Os resultados obtidos permitem concluir que enquanto o município de Porto Belo apresenta
crescimento predominantemente ao longo da costa, com pouca relação com a BR-101, em
Itapema esse eixo viário é crucial para a estruturação urbana. A maior facilidade de acesso e um
sítio geográfico menos acidentado, quando comparado a Porto Belo, leva à índices de crescimento
expressivamente superiores assim que a rodovia é inaugurada. Essa interpretação é comprovada
com a construção e análise dos mapas da expansão da mancha urbana, que também permitiram
318
16
identificar uma mudança no protagonismo das duas localidades: Porto Belo foi o principal
município da região até meados do século XX, porém gradualmente perdeu importância, com
Itapema assumindo o protagonismo em aspectos demográficos e econômicos, tão logo a
conurbação urbana aconteceu.
Em relação às centralidades urbanas levantadas, os valores obtidos por meio dos procedimentos
metodológicos da Teoria da Lógica Social do Espaço foram determinantes para a identificação
do centro morfológico e das vias intraurbanas que estruturam o sistema. As avenidas Nereu
Ramos e Governador Celso Ramos são os principais eixos viários, onde se estabelecem múltiplas
atividades comerciais e de serviços. A primeira, via de maior concentração de comércio e
serviços, é também o eixo de maior integração global do sistema.
O centro tradicional de Porto Belo pode ser considerado a centralidade que mais foi afetada com
a expansão urbana em termos de acessibilidade. O crescimento linear associado ao deslocamento
do centro morfológico em direção à Itapema, somado a um relevo acidentado como um dos seus
limitantes, fragmentaram essa estrutura dos demais eixos do tecido urbano, fazendo com que
perdesse importância em termos econômicos. Seu fortalecimento e preservação, contudo, é
essencial para mitigar os impactos da desterritorialização e transformação monocultural,
consequências de um desenvolvimento territorial que prioriza o lucro em detrimento do
planejamento urbano e das políticas públicas de bem-estar social.
6. Referências
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319
17
Abstract. The municipality of Barcarena/PA (Brazil), as well as others in the state, is inserted in a
conflicting context between dynamics dictated by the international capital (mining) and traditional ways
of life, relationships with the natural environment and urban space production. This process manifests
itself spatially in Barcarena in the form of segregated urban centers that constitute centralities with
specific roles (functional, morphological and traditional). Based on the concern about the municipality
structuring process related to socioeconomic factors, and considering Space Syntax theoretical,
methodological and technical strategies, this paper explores a comparative morphological analysis. The
discussion is developed taking into account a set of configurational geometric and topological variables
for each part of the city and the whole system, faced with the average values for Brazilian cities. The
obtained results indicate that the fragmentation and discontinuity of the urban system are balanced by
the regular and compact division of the nuclei and that its nucleated structure tends to remain. The aspect
is strengthened by the consolidation of relatively independent centers such as Vila dos Cabanos which,
in together with the Laranjal/Pioneiro nucleus, acts as a unique centrality, reinforcing the segregation of
Barcarena Sede.
Keywords: Spatial Configuration, Space Syntax, Barcarena-PA, Amazon Region.
320
321
1.Introdução
O artigo explora a configuração espacial do município de Barcarena, situado na região do Baixo
Tocantins, no Pará, caracterizado pela fragmentação em termos de dinâmicas socioespaciais,
podendo-se identificar três tipos de centralidades e dois núcleos que competem entre si.
Considerando os múltiplos polos, espacialmente distantes e estrutrurados segundo lógicas de
ocupação distintas, este trabalho procura discutir o desempenho geométrico e topológico
associado às questões funcionais. Para tanto, são processados e extraídos índices referentes às
propriedades dos arranjos dos núcleos estudados, em uma perspectiva global e local.
O processo de reestruturação socioespacial de Barcarena compõe a ótica pretensamente
desenvolvimentista e de integração nacional da Amazônia, que ganhou força a partir da inserção
dos grandes projetos federais e do capital estrangeiro, da década de 1970 em diante. As ações
alteraram profundamente as dinâmicas socioeconômicas e intensificaram a urbanização da
região. Para o município, as transformações se concretizaram com a chegada do Complexo
Industrial Albrás/Alunorte na década de 1980, com capital do Grupo japonês Mitsui, hoje
explorado pelo Grupo Hydro Alunorte de capital norueguês que, desde então, vem sendo o
principal elemento influenciador das mudanças no espaço urbano e rural do território.
Em termos teóricos, metodológicos e ferramentais, a investigação ampara-se na Teoria da
Lógica Social do Espaço (Sintaxe Espacial), compreendendo a decomposição da rede de espaços
abertos do sistema estudado, por meio de unidades geométricas simples, como linhas
representativas das possibilidades de deslocamento ao longo dos espaços. A partir desta matriz
de linhas, realiza-se o processamento em softwares específicos, a fim de gerar o mapa axial, e,
posteriormente, o mapa de segmentos, que fragmenta os eixos a partir de suas intersecções.
Neste trabalho, o aplicativo utilizado para o processamento dos mapas foi o software QGIS, em
associação ao plugin Space Syntax Tookit e ao software DepthmapX 0.35.
O artigo encontra-se estruturado em duas partes, além da introdução e da conclusão.
Primeiramente, realiza-se uma abordagem sobre o histórico de formação e crescimento do
município e, paralelamente, são apresentados os impactos advindos do processo de urbanização
e industrialização. Na segunda parte, investigam-se os aspectos morfológicos subjacentes ao
processo de estruturação espacial interna e a articulação entre os arranjos urbanos, com base nos
procedimentos sugeridos por Medeiros (2020). A estratégia consiste na interpretação de um
conjunto de variáveis configuracionais geométricas e topológicas que permitem o entendimento
das dinâmicas em cada assentamento integrante da rede urbana local. Além da análise individual
dos núcleos componentes de Barcarena, procede-se um comparativo entre os resultados das
variáveis extraídas da totalidade de seu conjunto, frente às médias destes valores para as cidades
brasileiras, fornecidas por Medeiros (2020).
Sede); e d) o quarto, já na década de 1980, com a instalação dos grandes projetos industriais
(associados à mineração) e a implantação de vilas operárias e alojamentos no atual núcleo
urbano denominado Vila dos Cabanos e no bairro Pioneiro (ESTUMANO et al., 2018).
Atualmente o município é constituído pelos distritos de Barcarena Sede, Murucupi, Vila do
Conde, Região das Estradas (que inclui Vila dos Cabanos, os bairros Laranjal e Pioneiro, entre
outros) e Região das Ilhas (BARCARENA, 2006), e seu território é entrecortado por diversos
cursos d’água, o que reforça a condição de segregação entre os assentamentos. A única ligação
rodoviária entre Barcarena Sede e os demais núcleos se dá pela Rodovia da Integração;
alternativamente, o transporte fluvial oferece linhas regulares entre a sede e a antiga Vila de São
Francisco, havendo ligação a partir desta com os outros núcleos, pela Rodovia PA-481 (Fig.
01). Há três principais núcleos urbanos: a) a atual sede municipal (Barcarena Sede); b) a Vila
dos Cabanos, distante cerca de 10km da Sede; e c) o conjunto formado pelos bairros Laranjal e
Pioneiro, além de outros adjacentes – entre eles a antiga Vila de São Francisco – desenvolvidos
ao longo da PA-481. Os demais núcleos constituintes da cidade, como Vila do Conde (que
abriga o porto destinado ao escoamento da produção), Murucupi, Cafezal e as ilhas, são mais
isolados e possuem menor densidade populacional (GUIMARÃES, 2017) (Figura 1).
As diferenças expressivas entre as dinâmicas urbanas presentes nos núcleos de Barcarena têm
suscitado reflexões acerca dos graus de interação entre os assentamentos, em termos econômicos
e culturais, tanto com a região em que se inserem quanto com o contexto nacional/global. Carmo
e Costa (2016) propõem, por exemplo, que em Barcarena coexistem duas cidades, uma cidade
da floresta (Barcarena Sede) e uma cidade na floresta (Vila dos Cabanos). A ideia remonta à
proposição anterior de Trindade Jr. (2010), inspirada em Santos (1993), com adaptação ao
contexto amazônico: há cidades que, embora inseridas em meio à floresta, estabelecem relações
mais sólidas com as demandas e valores externos (cidade na floresta), em contraposição às
323
cidades efetivamente conectadas com o ambiente natural da região e seus costumes, as quais
eram predominantes na região antes das políticas de integração nacional (cidade da floresta).
Barcarena compõe um conjunto de cidades marcadas pela exploração mineral na Amazônia
como parte da estratégia desenvolvimentista implantada pelo governo federal na região,
especialmente a partir da década de 1970. Em decorrência disso, o município convive com duas
dinâmicas socioeconômicas profundamente distintas, orientadas por paradigmas conflitantes de
produção do espaço urbano: um baseado nas ações seculares de convivência harmoniosa da
população local com o meio, no qual as águas e a floresta desempenham função de circulação,
meio de subsistência e de lazer; e outro oriundo da lógica urbano-industrial inserida na região
com a chegada dos grandes projetos federais no período citado (CARDOSO e LIMA, 2006;
CARDOSO et al., 2017). No caso específico de Barcarena, o capital internacional é aquele
direcionado à mineração, representado pela instalação do Complexo Albrás-Alunorte,
atualmente comandado pela empresa norueguesa Hydro, além da logística portuária a ele
atrelada.
De acordo com Leal et al. (2013) a chegada da atividade mineradora na Amazônia resultou em
efeitos contraditórios, visto que a produção de riquezas em um extremo social passou a estimular
a reprodução da miséria e a degradação ambiental no polo oposto. Leal (1996) argumenta que
os grandes projetos e o capital estrangeiro na Amazônia resultaram de uma combinação de
interesses, dos governos militares, visando à ocupação da região, e da necessidade dos países
centrais de se reerguerem após a crise capitalista da década de 1970. A estratégia adotada para
viabilizar tais objetivos foi a exploração intensiva da força de trabalho e da abundância de
recursos naturais em regiões periféricas e em condição de fronteira econômica, a exemplo da
Amazônia.
É notável, portanto, que a inserção do capital minerador-industrial no município provocou o
acirramento da estratificação social e estimulou a formação de diferentes núcleos urbanos,
associados a atribuições funcionais específicas em uma bem definida estrutura de divisão social
do trabalho. Constituindo um processo de polinucleação, o fenômeno foi observado também em
outras cidades do sudeste e oeste do Pará, sujeitas a dinâmicas econômicas semelhantes
(CARDOSO et al.,2017). O processo pode estabelecer-se no âmbito regional, entre diferentes
cidades, ou ocorrer internamente, como no caso de Barcarena, com a demarcação de papeis
distintos em seus três principais núcleos: sua sede tradicional, o Distrito de Vila dos Cabanos e
o núcleo constituído pelos bairros do Laranjal e do Pioneiro.
No município, o núcleo Barcarena Sede guarda relações mais próximas com o ambiente rural
das ilhas e com o modo de vida das populações tradicionais, enquanto Vila dos Cabanos foi
criada como base de apoio aos funcionários da indústria mineradora. Os bairros Pioneiro e
Laranjal, situados junto à Rodovia PA-481, por sua vez, são formados majoritariamente por
assentamentos sem planejamento oficial, criados tanto por pessoas que buscavam moradia mais
próxima à região com disponibilidade de emprego, especialmente Vila dos Cabanos, quanto por
famílias remanejadas das áreas onde foram implantados o complexo industrial e sua company
town (ROCHA e TRINDADE JR., 2018).
A dicotomia entre as realidades urbanas em Barcarena se reflete igualmente no âmbito
populacional, uma vez que, embora o município atualmente tenha a mineração como base de
sua economia – elevando seu PIB à 7ª posição no estado do Pará – mais de 60% de sua população
permanece sendo rural. O fato, entretanto, merece ressalvas, visto que há divergências entre a
delimitação dos limites urbanos por parte do IBGE, que considera Vila dos Cabanos e o núcleo
Laranjal/Pioneiro como áreas rurais, e da Prefeitura de Barcarena, que os considera como áreas
urbanas, como de fato o são, inegavelmente (CARMO e COSTA, 2016).
No entanto, é importante reforçar que parte significativa da população local permanece vivendo
em áreas rurais e tendo como meio de subsistência atividades como a pesca e o extrativismo de
produtos florestais. Essas atividades subsidiam um modo de vida que foi predominante nas
cidades amazônicas até a década de 1960 (CORRÊA, 1987; TRINDADE JR, 2013), quando,
com a chegada dos grandes projetos federais, insere-se um cenário urbano com novas facetas,
marcado pela percepção da cidade e do ambiente natural como entidades antagônicas, e pelo
324
A grande distância entre Barcarena Sede e os demais núcleos (cerca de 8km em relação a
Laranjal/Pioneiro e de 10km em relação à Vila dos Cabanos, por via rodoviária) provoca um
aumento nos trajetos e deslocamentos médios, evidenciando um espaço urbano fragmentado,
que aparta os diversos segmentos sociais. Para Barros e Medeiros (2014), estruturas urbanas
desta natureza ocasionam ônus elevado aos aglomerados urbanos, tendo em vista provocar
simultaneamente o aumento nos custos econômicos, sociais e ambientais dos transportes
(infraestrutura, manutenção, preços, espraiamento urbano, queima de combustíveis fósseis etc.),
fatores vinculados ao processo de redução na capacidade de deslocamento dos cidadãos.
Na leitura da integração local (Figura 4), extraída do mapa axial, é possível reforçar a presença
dos arranjos de centralidades locais, ou seja, dos espaços acessíveis a partir de um número
limitado de mudanças de direção, sendo calculada usualmente a partir de um raio limitado (r=3)
(HANSON, 1989; HILLIER, 1993; GUIMARÃES, 2013). A fragmentação do espaço de
Barcarena torna-se mais evidente com esta medida: a modelagem aponta para a existência de
três centralidades principais, uma de caráter mais institucional/tradicional (Barcarena Sede,
onde se concentram prédios públicos, como a prefeitura); outra mais funcional, dada sua
328
condição de centro econômico ativo no município (Vila dos Cabanos), e uma terceira, de
natureza destacadamente morfológica (Rodovia PA-481), que atua prioritariamente na
articulação entre as partes da cidade, conforme discutido anteriormente.
Figura 4. Mapa axial para a variável de integração local (R3) em Barcarena-PA (fonte:
elaborado pelos autores).
Número de Segmentos
Compacidade A
Compacidade B
Área (Km2)
Barcarena Total 45,23 1745 275,41 4461 97,48 38,583 10,626
Barcarena Sede 9,99 340 379,67 1096 107,80 34,024 12,918
Vila dos Cabanos 13,59 615 269,94 1577 94,94 45,254 12,216
Laranjal/Pioneiro 11,85 656 247,94 1530 95,79 55,359 13,726
Média Brasil 141,88 5979,69 282,67 15758,38 89,44 47,00 5,47
O número de linhas e o número de segmentos são duas medidas também vinculadas à avaliação
da ordem de grandeza dos assentamentos, indicativas ainda do grau de regularidade da malha
urbana. Os sistemas mais regulares tendem a apresentar menor número de linhas, em função da
capacidade dos eixos de cobrirem vastas áreas, sem a necessidade de mudanças de direção e,
portanto, de criação de novos eixos. O entendimento foi corroborado na análise dos núcleos,
visto que Laranjal/Pioneiro, em padrão de colcha de retalhos, apresentou maior número de
linhas, seguido de Vila dos Cabanos, em torno do qual começam a surgir também espaços de
informalidade e menor regularidade. Para o número de segmentos, observou-se a quase
equiparação de valores entre os núcleos de Vila dos Cabanos e Laranjal/Pioneiro, com ligeira
vantagem ao primeiro. Diante do cenário nacional (cidades, em média, com 5.980 linhas e
15.758 segmentos), observa-se que o estudo de caso é relativamente modesto (1.745 linhas e
4.461 segmentos), e suas frações proporcionais à dimensão do município.
Um indicativo relevante, entretanto, é a relação entre número de segmentos/número de linhas.
Aqui é possível perceber, em média, quantos segmentos surgem a partir de cada linha. Quanto
mais elevado o valor, maior a tendência à regularidade. Quanto mais baixo, maior a tendência à
irregularidade. Para o cenário brasileiro, a relação é de 2,64, o que expressa o caráter de
irregularidade e/ou padrão de colcha de retalhos recorrente nas cidades do país. Para o cenário
do município de Barcarena, o valor de 2,56 demonstra a fragmentação do sistema quando
analisado em sua totalidade, em contraposição à regularidade dos núcleos, em especial
Barcarena Sede (3,22), com padrão rígido em tabuleiro de xadrez. Vila dos Cabanos também
alcança valor expressivo (2,56), contudo há uma queda significativa para Laranjal/Pioneiro
(2,33), produto do traçado mais fragmentado e descontínuo, ainda que também tendente à
regularidade.
330
Os valores de comprimento médio das linhas e comprimento médio dos segmentos são
relevantes para apontar o que seriam, por aproximação, o tamanho da rua e o tamanho da face
do quarteirão, respectivamente. Apesar do surgimento de trechos tendentes à irregularidade,
Barcarena e suas frações são predominantemente regulares: isso justifica o tamanho médio dos
eixos (275,41m) próximo ao valor nacional (282,67m), apesar do desempenho ligeiramente
inferior de Laranjal/Pioneiro. Cenário distinto ocorre quanto ao tamanho dos segmentos, todos
mais altos que a média nacional, de aproximadamente 90m. O resultado é indicativo de um
traçado urbano no município de quadras maiores e maior extensão de ruas sobre o território, o
que pode ser verificado nas medidas de densidade/compacidade.
As duas variáveis seguintes se referem à compacidade do sistema. A primeira, denominada
compacidade A (nº de linhas por km²) consiste na quantidade de eixos disponíveis por unidade
de área. A ocorrência de valor superior no núcleo Laranjal/Pioneiro (55,36) é resultado do
elevado número de linhas do assentamento, relacionado ao seu grau de fragmentação e a maior
complexidade de seu arranjo, sendo possível estender a linha de raciocínio ao caso de Barcarena
Sede (34,02): ao apresentar características inversas, além de uma ocupação mais rígida/regular,
alcança o desempenho mais baixo na variável. Adicionalmente deve-se ponderar que o baixo
valor para o conjunto da cidade (38,58) está relacionado à inclusão do núcleo de Vila do Conde,
que apresenta menor adensamento em função da presença de um vazio urbano decorrente de
instalações industriais vinculadas à mineração, em torno do qual existe um pequeno núcleo
populacional, com poucos eixos viários.
A segunda variável, compacidade B (comprimento de linhas em km por km²), tem relação com
a capilaridade viária do sistema e consiste na relação entre a quantidade linear de vias
disponíveis por unidade de área. O núcleo Laranjal/Pioneiro apresentou valor maior nesta
medida (13,73), em função da grande quantidade de linhas presente em seu traçado mais
complexo. O fato deste núcleo apresentar valor maior está relacionado ao modelo de ocupação,
sobretudo em suas áreas de expansão, onde se formaram ocupações irregulares que tendem a
um uso intensivo da terra. Processo semelhante é verificado na área de expansão ao sul de
Barcarena Sede, que apresentou o segundo maior valor para esta variável (10,63). Cabe observar
ainda que todos os núcleos, assim como o conjunto urbano do município, apresentaram valores
mais de 50% acima da média nacional para a medida, revelando um padrão de ocupação mais
compacto implantado internamente aos núcleos, apesar da dispersão territorial destes quando
considerada a escala municipal.
2). A variável conectividade expressa a quantidade de conexões médias disponíveis por eixo e
um valor elevado traduz uma maior oferta de trajetos, o que afeta questões de movimento
potencial. Para a medida, o município apresentou resultados (3,389) próximos à média nacional
(3,552), apenas ligeiramente inferior, em função da predominância do padrão regular nos
núcleos integrantes: em Barcarena Sede – caracterizado pela forte regularidade – os valores
obtidos (3,976) foram superiores à média nacional. Em contraposição, Laranjal/Pioneiro, que
compreende um traçado menos homogêneo e com trechos mais fragmentados, especialmente
nas áreas que se aproximam das várzeas, atingiu o menor valor entre as partes investigadas
(3,155).
Os valores de integração global e local, cuja análise já foi iniciada na seção 3.1, são reveladores
das propriedades de acessibilidade de cada eixo em relação ao sistema, em diferentes raios de
alcance, conforme os objetivos pretendidos no estudo. Em ambas as variáveis, o município de
Barcarena alcançou valores inferiores à média nacional, o que pode ser explicado pela
descontinuidade global do assentamento, apesar da tendência à regularidade, associada à
elevação dos valores. Cabe reforçar que o núcleo Barcarena Sede apresenta apenas uma conexão
viária com as demais partes do município (Figura 4). Grosso modo, as medidas de acessibilidade
configuracional expressas na integração para o sistema urbano total de Barcarena revelam o
efeito de polarização exercido pelo núcleo Laranjal/Pioneiro (especialmente pela PA-481) e pela
Vila dos Cabanos, em contraposição à segregação espacial de Barcarena Sede.
Quanto à integração local, todos os núcleos apresentaram níveis de desempenho semelhantes,
tanto em sua análise individual, quanto em sua inserção no sistema, sobretudo
Laranjal/Pioneiro, que abriga o núcleo integrador e cujas propriedades globais e locais tendem
a ser muito próximas, gerando representações visuais quase idênticas para as duas variáveis, e
nos cenários individual e em conjunto (Figura 6). No núcleo Barcarena Sede, o eixo mais
integrado tanto em âmbito global quanto local é o correspondente à via de acesso ao núcleo
integrador, junto à Rodovia PA-481.
Inteligibilidade
Int. Local (R3)
Conectividade
Sinergia
NACH
NAIN
Figura 6 – Mapas axiais para as variáveis de integração global e integração local dos núcleos
analisados de Barcarena (fonte: elaborado pelos autores).
4. Considerações Finais
O presente trabalho tomou como objetivo a compreensão da estruturação espacial de Barcarena-
PA, tendo em conta sua divisão em três núcleos principais, nos quais vigoram dinâmicas
333
socioeconômicas distintas. Para tal fim, realizou-se uma análise configuracional do município,
considerando-se duas escalas: dos núcleos individualmente e do conjunto do município, a partir
de procedimento metodológico sugerido por Medeiros (2020), com base nos pressupostos
teórico, metodológicos e ferramentais da Sintaxe Espacial.
Como resultado das análises realizadas, verificou-se que Barcarena Sede enfrenta uma
problemática de obsolescência de seu papel central, refletida na absoluta segregação em que se
encontra quanto à acessibilidade em nível global. A perda de importância do centro tradicional,
portanto, para além dos aspectos morfológico e econômico, carrega uma conotação simbólica,
relacionada às ameaças a um modo tradicional de vida e de ocupação do espaço pela população
local, que nele encontram espaços de manifestação. Este cenário de transição entre os dois
centros se inicia a partir da implantação da company town Vila dos Cabanos, nos anos de 1980.
Enquanto modelo econômico, a Vila dos Cabanos surge como protótipo e paradigma dos
pressupostos segregacionistas, onde a empresa deveria suprir e assegurar a função do habitar
nas vilas operárias, e acima de tudo materializando-se em “forma urbana” (RODRIGUES,
1998). Diante disso, é possível traçar racionalmente a análise de que sua criação promoveu de
maneira ativa a necessidade de deslocamentos estendidos, dispersivos em direção de um novo
centro. E esse deslocamento até ao novo centro, seja em direção ou de retorno dele, compromete
as diversas partes componentes da estruturação de Barcarena, trazendo sérias implicações à
mobilidade urbana. A Vila dos Cabanos surge no contexto amazônico como posto e entreposto
para funcionários do complexo de mineração implantado no município, impactando de maneira
direta o processo de criação de centros e subcentros da região e, de forma ainda mais incisiva, a
centralidade de Barcarena Sede, comprometendo-a.
Em relação à análise das variáveis configuracionais geométricas, constatou-se que, embora
fragmentado e descontínuo, o sistema urbano de Barcarena apresenta núcleos com
parcelamentos predominantemente regulares, o que contribuiu para o alcance de valores
aproximados a estruturas mais contínuas. A ocupação dos núcleos tem se dado de forma mais
intensiva e compacta, conforme atestam seus altos valores de compacidade A e B, que acabam
por compensar os efeitos de descontinuidade global.
Os resultados obtidos permitiram inferir que o padrão morfológico dos núcleos de Vila dos
Cabanos e Laranjal/Pioneiro se assemelham, com a presença de quadras retangulares, maior
número de linhas e de segmentos, os últimos de menor comprimento, o que permite concluir
que os assentamentos do núcleo Laranjal/Pioneiro tomaram como referência o parcelamento de
Vila dos Cabanos, embora, em alguns casos, com menor grão de quadra, dada a necessidade de
uso intensivo do solo, característica dos assentamentos irregulares. Estes traços morfológicos
diferem significativamente do padrão de Barcarena Sede, onde predominam quadras maiores,
arranjo global mais uniforme/homogêneo e com menor quantidade de linhas, sendo estas de
maior comprimento.
Os achados reforçam a ideia de que, em que pese a existência de três núcleos com diferentes
funções na cidade, sob o aspecto configuracional, pode-se dizer que Vila dos Cabanos e
Laranjal/Pioneiro atuam como um único subsistema que exerce sobre o sistema global um efeito
de polarização dos potenciais de acessibilidade, reforçando a condição de segregação de
Barcarena Sede.
Observou-se que, quando analisados visualmente em conjunto com todo o sistema urbano, os
dois núcleos apresentam desempenho semelhante para as escalas global e local, mantendo a
hierarquização entre as linhas e apenas se diferenciando pelo gradiente de cores a elas atribuído
em cada cenário. No caso de Barcarena Sede, entretanto, o desempenho em nível local mostrou-
se muito mais favorável que o global, indicando que o núcleo preserva ainda suas dinâmicas
sociais próprias e sua centralidade, apesar da progressiva perda desta condição em detrimento
de Vila dos Cabanos. O processamento individualizado revelou elevado grau de
correspondência entre as vias mais integradas em relação ao conjunto da cidade, e aquelas mais
integradas no nível interno dos assentamentos. Quanto ao conjunto do município, ambas as
variáveis de integração apresentaram valores abaixo da média nacional, produto da
fragmentação.
334
A posição do núcleo integrador do sistema, composto pela Rodovia PA-481 e vias derivadas,
corrobora o fenômeno da ascendência de Vila dos Cabanos como centro principal do município,
enquanto os eixos componentes da Rodovia da Integração, que dá acesso à Barcarena Sede,
apresentam baixos valores de integração, tanto global, quanto local. A medida de conectividade
para o total do município mostrou-se quase equivalente à média nacional, tendo seu valor
elevado pelas propriedades de Barcarena Sede, que apresenta traçado mais regular, e menor para
Laranjal/Pioneiro que, dentre os três núcleos, é o que apresenta configuração mais complexa
internamente, com a presença de assentamentos informais de traçado mais irregulares.
Os resultados obtidos aparentemente sugerem que o modelo de estruturação do município de
Barcarena, caracterizado pela crescente consolidação de núcleos dispersos no território, com
dinâmicas relativamente autônomas, e com o isolamento do núcleo tradicional, tende a
permanecer neste caminho, salvo em caso de intervenções urbanas que produzam alterações
significativas em sentido contrário. As distinções funcionais entre os núcleos têm levado a seu
reposicionamento na hierarquia local, de modo semelhante ao processo de polinucleação,
identificado por Cardoso et al. (2017), entre cidades inseridas no contexto de grandes projetos
de extração mineral na Região Amazônica.
6. Referências
BARCARENA. Prefeitura Municipal de Barcarena. Plano Diretor de Desenvolvimento
Urbano de Barcarena. Barcarena, 2006.
BARROS, A. P. B. G.; MEDEIROS, V. A. S. de. Centralidade e Sintaxe Espacial: Variáveis
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centralidades e mobilidade urbana. [S. l.]: Universidade Federal de Goiás, 2014, pp. 269-316.
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CARDOSO, A. C. D., LIMA, J. J. F. Tipologias e padrões de ocupação na Amazônia Oriental.
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CARDOSO, A. C. D.; MELO, A. C. de; GOMES, T. do V. O urbano contemporâneo na fronteira
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CARDOSO, A. C. D.; LIMA, J. J. F.; PONTE, J. P. X., VENTURA NETO, R. S., &
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lem.pdf. Acesso em: 05 de agosto de 2022.
335
Resumo. O artigo compreende a análise de nove cidades médias brasileiras por meio da abordagem
morfológica, com o intuito identificar a existência, ou não, de um “tipo” urbano próprio. A amostra é
composta por nove municípios que representam, em certa medida, a diversidade do cenário urbano
nacional: Uberlândia/MG, Londrina/PR, Passo Fundo/RS, Chapecó/SC, Dourados/MS, Marília/SP,
Marabá/PA, Campina Grande/PB e Mossoró/RN. A abordagem teórica, metodológica e técnica baseia-se
em estratégias da Sintaxe Espacial associadas a variáveis não configuracionais, incluindo dados
socioeconômicos de diversas fontes. A base de dados está estruturada em Sistema de Informações
Geográficas e as cidades são exploradas comparativamente, conforme panorama atual e histórico, numa
perspectiva diacrônica: mapas axiais e de segmentos foram desenvolvidos desde a fundação até 2017,
resultando em 58 modelagens. Os achados sugerem que as cidades investigadas são relativamente
homogêneas e apresentam um claro padrão configuracional, baseado na regularidade. O aspecto favorece
a acessibilidade e a legibilidade, em razão de uma maior oferta de rotas e trajetos, além de evidenciar a
hierarquia dos sistemas. Em termos socioeconômicos, entretanto, a riqueza gerada pelo agronegócio e
pelos intensos fluxos de pessoas, bens e capitais não é distribuída com equidade: o distanciamento
acentuado entre os estratos sociais, cria um cenário ambíguo de riqueza e pobreza, representando, em
certa medida, o conflito social brasileiro. Os achados apontam para a existência, senão de um tipo, pelo
menos de um padrão semelhante de estrutura socioeconômica, processo de expansão urbana e
desigualdade socioespacial.
Palavras-chave Cidades Médias Brasileiras, Morfologia Urbana, Sintaxe Espacial, Padrões
Socioespaciais, Análise Diacrônica.
337
338
2
1.Introdução
O artigo dedica-se à investigação de nove cidades médias brasileiras por meio da abordagem
morfológica, segundo a Teoria da Lógica Social do Espaço, com o intuito de analisar a dinâmica
urbana dessas espacialidades para identificar a existência, ou não, de um “tipo” urbano próprio.
Explora-se a relação entre aspectos socioeconômicos e aspectos configuracionais, a partir do
escrutínio de variáveis capazes de expressar características espaciais e qualidade de vida. Para
tanto, utiliza-se banco de dados georreferenciado (em Sistema de Informações Geográficas) com
mapas axiais e de segmentos, desenvolvidos desde a fundação dos núcleos urbanos analisados até
2017, para examinar, comparativamente, cada cidade em seu panorama atual e histórico, em
perspectiva diacrônica.
Santos (1994) afirma que, ao observar o contexto brasileiro, as cidades médias são locais em que
se vive melhor, com mais qualidade de vida, dadas as características de menor extensão do
território e de aglomeração populacional em níveis relativamente equilibrados. Há baixa
complexidade nos fluxos e oferta de bens e capitais, e o comércio e os serviços tendem a se
aglutinar e se aprimorar para acompanhar o ritmo do mundo moderno e globalizado. O autor
afirma que [...] “as cidades intermediárias ou cidades médias são crescentemente locus do trabalho
intelectual e onde se obtêm informações necessárias à atividade econômica” (SANTOS, 1994, p.
123).
O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) classifica as cidades com base no número
de habitantes e considera como de porte médio aquelas com população entre 100 mil e 500 mil
habitantes (Censo 2010). O IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) leva em conta, para
a hierarquização dos municípios nacionais, aspectos como impactos espaciais das transformações
das economias regionais, evolução do perfil da rede urbana, hierarquia do sistema, tipologia de
cidades e caracterização das funções urbanas dos principais centros e aglomerações nos
respectivos subsistemas regionais. Embora ainda não se obtenham com facilidade indicadores
convergentes, que demonstrem dados precisos e específicos sobre a realidade das cidades
intermediárias brasileiras, especialistas apontam a complexidade para defini-las (SANTOS, 1993;
SOUZA, 2003; ARROYO, 2006; SPOSITO, 2006; CORREA, 2007; CASTELO BRANCO,
2007; OLIVEIRA JÚNIOR, 2008). Nas diversas pesquisas para compreender a taxonomia dos
centros urbanos nacionais, verifica-se que a expressão “cidades médias” parece corresponder ao
fenômeno de crescimento demográfico de espacialidades que não se enquadram como pequena
nem grande cidade ou metrópole devido aos impactos socioeconômicos, culturais e
socioespaciais, provocados pelos seus processos de urbanização.
O conceito que se assume nesta pesquisa é aquele adotado pela Rede de Pesquisadores em Cidades
Médias (ReCiMe), sediada na Universidade Estadual Paulista (UNESP). A rede agrega
pesquisadores em estudos urbanos de áreas multidisciplinares de diversas instituições
universitárias públicas (estaduais e federais) e privadas, e instituições estrangeiras da Argentina
e do Chile, com elaboração, até 2016, de análise para doze cidades médias, entre elas nove
brasileiras e três estrangeiras. A rede desenvolveu metodologia própria de pesquisa para tais
assentamentos, considerados espaços urbanos em transição. No arcabouço teórico desenvolvido
pela ReCiMe, desde sua inauguração efetiva em 2005, caracterizaram-se como atributos
fundamentais: a) difusão da agricultura científica e do agronegócio; b) desconcentração da
produção industrial; c) difusão do comércio e dos serviços especializados e d) aprofundamento
das desigualdades socioespaciais para a diferenciação de terminologia (cidade de porte médio;
cidade intermediária; cidade média).
Esta última leva em conta a importância sub-regional apresentada por uma dada cidade
intermediária, ipso facto, pelas fortes centralidades que aí se materializam por meio de
fluxos, a ponto de contribuírem significativamente para o ordenamento do espaço
regional em que se inserem. (TRINDADE JÚNIOR, 2011, s/p.)
Frente à dificuldade para se selecionar uma amostra, tanto pela complexidade na sua definição
como pela escassez de estudos consolidados sobre o tema, levou-se em conta para este estudo a
escolha já realizada pela ReCiMe, a resultar nos seguintes municípios investigados: Passo
Fundo/RS, Mossoró/RS, Campina Grande/PB, Londrina/PR, Marília/SP, Uberlândia/MG,
Marabá/PA, Chapecó/SC e Dourados/MS. Distribuído por todo o Brasil, em vários estados, o
grupo abrange as cinco macro-regiões do país – Norte, Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-Oeste –
e, em certa medida, representa a diversidade do cenário urbano nacional (Figura 1).
Figura 1. Mapa do Brasil e indicação das cidades médias integrantes da amostra. (fonte: IBGE,
com adaptações).
A pesquisa, portanto, foca a discussão morfológica dessas cidades. Para as análises, levam-se em
conta as relações socioespaciais associadas ao fluxo de pessoas, bens e capitais nas espacialidades
estudas, enquanto para a representação espacial e interpretação da dinâmica potencial urbana
adotam-se os modelos da Teoria da Sintaxe Espacial (Figura 2). São exploradas as articulações
existentes nos respectivos tecidos urbanos. Subsídios encontrados prestam-se a verificar como
essas interações se reproduzem nos espaços de copresença. Estudos, aprofundamentos e
340
4
aplicações sobre a Teoria da Sintaxe Espacial realizados por Hillier e Hanson (1984), Hillier
(1996), Holanda (2002; 2012; 2013; notas de aula) e por Medeiros (2006; 2013; notas de aula)
subsidiam algumas das premissas para o desenvolvimento da pesquisa.
Em termos de organização do artigo, o texto está estruturado em quatro seções. Após a introdução,
são apresentados os aspectos teóricos, metodológicos e ferramentais. Em sequência, constam os
resultados e a respectiva discussão, o que antecede as conclusões.
2. Aspectos teóricos, metodológicos e ferramentais
Nesta pesquisa entende-se a cidade em sua dimensão sociológica, de modo que os efeitos sociais
da organização espacial em seus arranjos precisam ser melhor explorados, na relação entre espaço
341
5
O grupo socioeconômico foi selecionado para permitir a avaliação de conceitos sociais e dados
específicos, interpretando fenômenos a partir da percepção do grupo pesquisado pela ReCiMe.
Para a discussão e correlação com as variáveis configuracionais, foram adotados dados
quantitativos disponíveis na plataforma IBGE Cidades (de “a” até “d”) e qualitativos oriundos do
levantamento realizado pela ReCiMe sobre cada município (de “e” até “r”):
r) rede ferroviária: refere-se ao transporte de carga por ferrovia; poucas cidades ainda
o possuem, uma vez que a maioria das linhas e estações férreas foram desativadas –
categorias ativa e desativada.
3. Resultados
Os resultados obtidos a partir de três perspectivas – configuracional, configuracional diacrônica
e socioeconômica (Tabelas 1 e 2) – são discutidos nesta seção, conforme estrutura a seguir.
Inteligibilidade
Conectividade
Compacidade
Sinergia
NACH
NAIN
Londrina/PR
1957 - 520,49 109,15 5,000 1,548 2,187 0,392 0,832 1,039 1,534
1970 - 287,70 88,32 3,772 0,868 1,907 0,096 0,405 0,929 1,045
1980 - 297,11 91,61 3,746 0,812 1,900 0,064 0,319 0,899 0,948
1990 - 263,74 85,34 3,637 0,663 1,839 0,049 0,27 0,884 0,889
2017 14,93 242,49 83,64 3,467 0,556 1,737 0,660 0,321 0,872 0,818
Chapecó/SC
1957 - 370,82 118,06 3,459 1,293 1,567 0,489 1,000 0,916 1,335
1965 - 339,02 103,15 3,674 1,135 1,902 0,172 0,597 0,916 1,063
1979 - 324,95 94,68 3,92 0,793 1,848 0,098 0,592 0,939 1,079
1988 - 317,10 93,05 3,924 0,934 1,827 0,124 0,628 1,012 1,190
1996 - 331,89 93,27 4,077 0,937 1,905 0,137 0,614 0,930 1,181
2009 - 311,53 92,48 3,908 0,738 1,878 0,066 0,362 0,912 0,973
2017 28,96 248,81 92,99 3,284 0,582 1,586 0,114 0,539 0,916 1,016
Passo Fundo/RS
1853 - 245,84 100,16 2,000 1,537 1,536 0,966 1,000 0,623 1,269
1888 - 528,15 142,35 3,888 2,074 2,153 0,733 0,973 0,875 1,519
1902 - 490,77 118,91 4,553 1,342 1,858 0,777 0,947 1,000 1,535
1918 - 427,27 108,28 4,133 1,545 1,901 0,634 0,964 0,988 1,619
1953 - 353,31 89,48 4,289 1,304 1,984 0,404 0,741 0,977 1,392
1980 - 338,92 93,02 4,087 0,792 1,884 0,151 0,323 0,908 0,982
2011 - 309,95 91,31 3,888 0,743 1,825 0,132 0,322 0,904 1,026
2017 10,49 298,95 96,15 3,589 0,662 1,698 0,171 0,439 0,910 1,050
Dourados/MS
1934 - 1980,47 298,92 6,250 2,321 2,792 0,438 0,883 1,053 1,722
1949 - 2321,19 202,53 9,959 2,538 3,034 0,661 0,912 1,158 2,253
345
9
1959 - 1465,59 139,60 10,02 2,221 2,801 0,702 0,867 1,133 2,058
1969 - 1299,90 139,09 9,241 2,115 2,720 0,583 0,877 1,116 1,992
1979 - 872,17 128,42 7,107 1,655 2,483 0,329 0,795 1,063 1,732
1989 - 786,03 122,37 6,812 1,630 2,490 0,297 0,766 1,052 1,676
2001 - 693,52 116,50 6,456 1,533 2,454 0,286 0,707 1,041 1,618
2017 29,01 559,31 124,60 5,118 1,144 2,115 0,240 0,678 0,995 1,412
Marília/SP
1927 - 940,38 118,25 7,586 2,186 2,473 0,881 0,946 1,120 1,978
1946 - 759,70 109,05 7,170 1,806 2,542 0,509 0,682 1,092 1,770
1973 - 534,61 96,13 5,839 1,521 2,287 0,300 0,731 1,049 1,532
2017 18,33 349,59 99,04 4,125 0,732 1,916 0,128 0,290 0,904 0,961
Uberlândia/MG
1851 - 543,85 93,24 5,259 2,370 2,422 0,834 0,993 1,034 1,688
1891 - 562,43 102,79 5,160 1,961 2,197 0,685 0,930 1,049 1,722
1940 - 891,51 110,92 7,827 1,830 2,613 0,380 0,841 1,118 1,909
1960 - 645,97 105,40 6,545 1,382 2,553 0,220 0,531 1,051 1,577
1990 - 521,27 106,75 5,478 1,056 2,367 0,140 0,429 0,977 1,329
2017 11,08 484,69 109,03 5,031 1,021 2,248 0,171 0,464 0,960 1,327
Campina Grande/PB
1864 - 107,28 41,55 2,480 0,822 1,193 0,376 0,861 0,766 1,044
1907 - 124,35 48,37 2,647 0,794 1,337 0,369 0,681 0,793 0,814
1918 - 182,17 58,21 3,503 1,049 1,657 0,319 0,866 0,958 1,134
1943 - 199,47 60,12 3,652 1,024 1,767 0,182 0,752 0,936 1,094
1980 - 235,27 67,78 3,959 0,835 1,936 0,097 0,427 0,924 1,043
2017 74,38 221,01 69,83 3,697 0,723 1,830 0,088 0,423 0,899 0,967
Mossoró/RN
1857 - 213,57 56,19 4,127 1,582 1,930 0,687 0,888 1,008 1,322
1926 - 360,11 79,45 5,019 1,637 2,264 0,484 0,774 1,053 1,584
1966 - 316,06 81,24 4,422 1,282 2,113 0,287 0,664 0,981 1,375
1982 - 290,90 83,00 4,050 1,057 2,021 0,151 0,487 0,914 1,165
1994 - 295,60 85,77 4,002 0,984 2,026 0,120 0,407 0,910 1,138
2002 - 296,56 84,59 4,087 1,041 2,052 0,123 0,420 0,919 1,199
2017 7,24 368,46 100,50 4,189 0,984 2,063 0,063 0,291 0,903 1,170
Marabá/PA
1920 - 191,15 73,11 2,609 1,210 1,348 0,733 0,933 0,806 1,068
1947 - 216,91 74,82 3,116 1,380 1,662 0,630 0,915 0,839 1,179
1954 - 248,35 87,35 3,219 0,972 1,652 0,311 0,576 0,838 0,983
1970 - 329,19 118,22 3,269 0,518 1,589 0,148 0,449 0,910 0,754
1981 - 175,41 71,60 3,076 0,717 1,555 0,024 0,109 0,871 0,773
2004 - 245,30 81,55 3,597 0,640 1,703 0,000 0,014 0,886 0,718
2017 15,59 275,27 88,91 3,705 0,599 1,784 0,008 0,056 0,878 0,849
e Eventos
População Ocupada (2015)
IDHM Municipal (2010)
média média forte central iniciante fraca média médio regular 61,80% 6,43 42,70% 0,790 Chapecó
em projeto forte forte central em expansão fraca forte forte irregular 54,10% 9,59 36,20% 0,776 Passo Fundo
forte forte forte central em expansão forte forte forte regular 50,70% 15,86 32,70% 0,747 Dourados
fraca forte fraca central em expansão forte forte forte misto 96,80% 13,74 31,40% 0,798 Marília
Tabela 2. Variáveis socioeconômicas relativas às cidades da amostra.
forte média média central consolidada forte forte forte misto 98,20% 10,03 37,20% 0,789 Uberlândia
média forte fraca central em expansão forte forte forte irregular 84,10% 12,71 27,60% 0,720 Campina Grande
forte média forte central em expansão forte forte médio irregular 64,60% 12,91 25,20% 0,720 Mossoró
em projeto forte média central em expansão média média médio misto 31,80% 11,12 18,60% 0,668 Marabá
10
346
347
11
Presença de Hipermercados e
média
média
média
média
forte
forte
forte
forte
forte
Supermercados
média
forte
forte
forte
forte
forte
forte
forte
forte
nacionais e internacionais na
economia
regular
regular
regular
regular
regular
Rede de Transporte Urbano
boa
boa
boa
boa
desativada
desativada
desativada
desativada
desativada
desativada
ativa
ativa
ativa
Rede Ferroviária
atraindo pessoas para o consumo, para o turismo, para encontros não programados, gerando
vitalidade para a cidade em diversos aspectos. A questão, entretanto, repousa na desigualdade:
apesar do desempenho positivo, cidades mais acessíveis e ricas também são aquelas que
concentram maior desigualdade, o que resulta em segregação socioeconômica dos estratos de
menor poder aquisitivo.
3.1.3 Sinergia
A sinergia compreende o grau de correlação entre as propriedades globais e locais de integração,
o que permite a leitura do rebatimento do desempenho do sistema em suas partes. As cidades
pesquisadas apresentam variações significativas, mas se destaca o fato que cinco delas estão
acima da média brasileira (0,36) (MEDEIROS, 2013): Dourados (0,68), Chapecó (0,54),
Uberlândia (0,46), Passo Fundo (0,44) e Campina Grande (0,42). O desempenho mais crítico está
em Marabá (0,06), cuja sede municipal é tripartite (Marabá Pioneira, Nova Marabá e Cidade
Nova) e multinucleada, resultado da fragmentação acentuada de sua expansão urbana.
O confronto entre as variáveis chama a atenção para o fato de que menor sinergia se vincula a
locais com maior força da circulação de grandes capitais na economia (riqueza) e com forte
presença de condomínios fechados (fragmentação espacial). Depreende-se o efeito dos
condomínios fechados para a fragmentação da leitura da cidade, por um lado, e, por outro, com o
fato de as indústrias e grandes conglomerados de capitais locais, nacionais ou internacionais
preferirem se instalar nas periferias e em partes fragmentadas do assentamento, onde o custo da
terra urbana é baixo e próximo, portanto, de uma mão-de-obra mais barata.
3.1.4 Inteligibilidade
Inteligibilidade é a medida que revela o grau de legibilidade do sistema pela interrelação entre as
medidas de integração e conectividade. Um sistema mais inteligível é aquele em que as vias mais
integradas globalmente são, também, as mais conectadas localmente. Acima da média brasileira
(0,15) (MEDEIROS, 2013), estão Londrina (0,66), Dourados (0,24), Passo Fundo (0,17) e
Uberlândia (0,17). A situação crítica é Marabá, com resultado praticamente nulo (0,01), o que é
decorrência da fragmentação, conforme comentado no item anterior.
A correlação 2 entre as variáveis revela maior inteligibilidade com tendências associadas à a) rede
de transporte urbano regular, b) influência de capitais locais, nacionais e internacionais, c)
vocação econômica para indústria e agronegócio, d) mais consumo e) desenvolvimento
tecnológico, apontando que cidades mais inteligíveis favorecem trocas, fluxos de pessoas, bens e
capitais. No entanto, aquelas com níveis desfavoráveis de inteligibilidade, que também são as
mais ricas, sinalizam segregação e desigualdade socioespacial.
3.1.5 Integração Angular Normalizada (NAIN)
Enquanto todas as medidas anteriores originam-se do mapa axial, NAIN e NACH são produto do
mapa de segmentos. A integração angular normalizada expressa o potencial de acessibilidade
configuracional calculado a partir dos ângulos entre os segmentos. Os resultados obtidos tendem
a ser compreendidos como mais refinados em relação à identificação do potencial de
acessibilidade por trecho das vias (MEDEIROS, 2013). Da amostra, cinco cidades apresentam
níveis de acessibilidade acima de 1,00, duas aproximam-se de 0,90 e outras duas de 0,80. Os
valores indicam, grosso modo, uma favorável tendência à melhor acessibilidade, à boa
orientabilidade e abertura às diversas alternativas de fluxos de crescimento e desenvolvimento
socioeconômico. A resultante de correlação da medida com as demais, portanto, sinaliza que
quanto maior o valor de NAIN, maior a relação do sistema urbano com a vocação industrial, o
agronegócio, o turismo de negócios, o consumo e a livre circulação de bens e capitais. Nessa
situação, o centro antigo mantém sua vitalidade em relação à estrutura e as relações sociais se
intensificam.
3.1.6 Escolha Angular Normalizada (NACH)
Esta medida se relaciona à distribuição da rede de caminhos pelo sistema. Valores mais altos,
quando representados graficamente, possibilitam visualizar as vias com maior potencial de
349
13
para algumas das cidades como Uberlândia, Dourados e Marília, caracterizadas pela forte
regularidade. As médias mais recentes para Dourados (5,12), Uberlândia (5,03), Mossoró (4,19)
e Marília (4,13) são mais elevadas do que a nacional, em 3,90 (Medeiros, 2013), as demais
situando-se em posição inferior. Como é uma tendência geral da amostra a regularidade, este
desempenho parece se relacionar ao impacto das franjas urbanas, usualmente mais fragmentadas
e descontínuas, o que reduz a conectividade média.
3.2.4 Integração (Global/Rn e Local/R3)
A integração, conforme apontado anteriormente, é uma medida de centralidade que permite
identificar as áreas mais fáceis de serem alcançadas a partir a) de todo o sistema (se global) ou b)
de parte dele (se local, até o terceiro nível de conexões). A variável auxilia na identificação de
setores “mais” ou “menos” “centrais”, o que é especialmente útil ao vincular a dados de uso do
solo e atividades (LOUREIRO, 2017; COELHO, 2017).
No que refere a integração global, as medidas obtidas para a amostra indicam que, ao longo do
tempo, há dois nítidos movimentos: declínio e homogeneidade. Se por um lado é evidente a
progressiva redução dos valores para todas as cidades, em maior e menor grau, por outro, é
perceptível o quanto o espectro de valores tende a ser reduzido diacronicamente, de forma que os
polos se aproximam: seria o caminho para a emergência, de fato, de um tipo urbano? A integração
local, por sua vez, repete o desempenho global, entretanto de maneira mais sutil, sem um declínio
tão acentuado, e com uma homogeneização que parece se processar previamente, já com
primeiros passos desde a década de 1950.
3.2.5 Legibilidade (Sinergia e Inteligibilidade)
No que diz respeito às medidas que avaliam aspectos de legibilidade, tanto na associação entre
propriedades globais e locais (sinergia) como diante da expectativa de os eixos mais conectados
(localmente) serem também os mais integrados (globalmente), há um evidente declínio
diacrônico. Entretanto, é possível observar que para as duas medidas há uma estabilização nas
últimas décadas, talvez por já se ter alcançado o menor patamar possível. Por outro lado, para a
sinergia, o declínio acentuado que se verificou entre as décadas de 1980 e 2000 parece indicar
uma inversão da tendência, com valores mais elevados para o último momento de análise (2017).
Acredita-se que o cenário aponta para um progressivo preenchimento do tecido urbano, bem como
uma redução na velocidade de crescimento das cidades da amostra, o que se relaciona às
peculiaridades do crescimento demográfico brasileiro.
3.2.6 Escolha Angular Normalizada (NACH)
Os dados diacrônicos de NACH reforçam os achados anteriores tanto no caminho de haver uma
progressiva homogeneização no desempenho das cidades da amostra, quanto para o indício de
que talvez a medida, em razão do processo de normalização, aproximar excessivamente os
valores, tornando-os pouco relevantes para estudos comparados. A partir do início do século XX,
os valores estão sempre oscilando entre 0,8 e 1,15, com estreitamento para 2017, quando se limita
ao intervalo entre 0,85 e 1,00.
3.3 Perspectiva Socioeconômica
Para a discussão da perspectiva socioeconômica, as quatro variáveis quantitativas do grupo são
analisadas isoladamente em seções distintas, acompanhadas de associação com as demais
medidas investigadas.
3.3.1 Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM)
A amostra apresenta IDHM mais alto que o brasileiro (0,699), com exceção do cenário de Marabá
(0,668). A correlação sinaliza relativa coerência entre os índices de IDHM e desenvolvimento
urbano, de modo que as cidades com os valores mais altos apresentam: transporte urbano
funcionando, dinamismo do centro, copresença, malha se expandindo para novos bairros e
aumento de consumo. O que destoa do conjunto é a influência dos capitais de origem local,
nacional e internacional. A riqueza acumulada pelos fluxos econômicos de bens, produtos e
serviços parece ser gerida apartada da qualidade urbana. O contexto de verticalização centro-
351
15
De acordo com o UNICEF (2006), a queda na mortalidade de crianças no Brasil está vinculada a
uma série de melhorias nas condições de vida e atenção básica à saúde infantil como segurança
alimentar e nutricional, saneamento básico e vacinação. Para a amostra, os dados de mortalidade
são diversos: aproximam-se de 10 a 12 óbitos por mil nascidos vivos para a maioria dos
exemplares investigados. Melhor estatística para Chapecó (6,43) e situação mais crítica em
Dourados (15), superando em óbitos o índice do Brasil, que caiu para 13,82 óbitos por mil nascido
vivos (IBGE, 2015).
O quadro mortalidade infantil acaba se relacionando com o quadro esgotamento sanitário, uma
vez que a ausência de saneamento básico pode gerar fragilidade e doenças às crianças. A
correlação entre variáveis aponta crescente influência negativa de capitais, força do consumo,
mais indústrias e turismo de negócios, crescimento de condomínios fechados, boas relações
sociais e vitalidade do centro. Portanto, é evidente um quadro de contradição.
4. Conclusão
O artigo procurou investigar um grupo de nove cidades médias brasileiras a partir de uma
abordagem morfológica. Para tanto, tendo por base os pressupostos da Teoria da Sintaxe Espacial,
foram analisadas três perspectivas – configuracional, configuracional diacrônica e
socioeconômica – com variáveis confrontadas.
(ferroviário, rodoviário e aeroviário) conectado a outra cidade paranaense (Cambé), cuja recepção
e distribuição de cargas em nível nacional se liga ao Porto Paranaguá.
No que diz respeito às análises desenvolvidas, identificou-se uma relativa homogeneidade da
amostra. São cidades predominantemente com traçados do tipo regular, com ruas entre 240 m e
350 m e tamanho médio da face da quadra ou quarteirão alcançando cerca de 90 m. Apesar disso,
as malhas tendem a se fragmentar quanto mais periféricas em relação aos centros morfológicos.
Esses aspectos, de partida, favorecem a acessibilidade e a legibilidade, em razão de uma maior
oferta de rotas e trajetos, além de evidenciar a hierarquia dos sistemas. Entretanto, a despeito
disso, percebeu-se que a soberania socioeconômica decorrente da riqueza gerada pelo
agronegócio e pelos intensos fluxos de pessoas, bens e capitais não é distribuída com equidade,
não contribuindo para o pleno usufruto da cidade por sua população. Frente à desigualdade de
rendas e à necessidade de morar, circular e trabalhar, ainda que em condições mínimas, das
populações migrantes ou excluídas, o que parece lhes restar na cidade são as frações da malha
urbana descontínuas, fragmentadas, caracterizadas por vazios ou guetos que confinam e
aprofundam a desigualdade socioespacial entre classes.
Grosso modo, em razão das características da malha, os potenciais de integração, conectividade,
sinergia, inteligibilidade, NACH e NAIN expressam, em conjunto, bons níveis de acessibilidade
configuracional. Por outro lado, a fragmentação e a descontinuidade da trama se revelam quando
da leitura particularizada dos assentamentos, produto que é da presença de conjuntos habitacionais
de baixa renda na periferia, e condomínios fechados em áreas nobres, estes tendendo a
comprometer os potenciais de acessibilidade e enfraquecer a vitalidade do centro urbano.
Além disso, a distância entre as diversas camadas sociais neste grupo de cidades – entre riqueza
e pobreza – é responsável pela profunda desigualdade socioespacial que acaba por atingir, de
alguma maneira, todos os cidadãos. Ao fim, o que se conclui, é que existe sim, senão um “tipo”,
pelo menos um perfil característico dessas cidades médias brasileiras, com estreita semelhança
nos padrões de estruturação socioeconômica e nos motivos que levaram à expansão urbana e ao
aprofundamento das desigualdades socioespaciais no Brasil. Citando Sposito (2007), nas cidades
médias, “[...] nota-se a tendência para a fragmentação socioespacial sem ainda se atingir a
tessitura política das relações sociais, como se nota nas metrópoles”. Ainda há tempo para que
uma intervenção qualitativa no planejamento urbano dessas cidades amplie o direito à cidade para
a maioria dos habitantes.
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Rio de Janeiro – RJ. Brasil.
UNICEF, The State of the World's Children 2006 | UNICEF: https://www.unicef.org › reports,
acesso nov 2017.
Notas
1
correlacionar (1899 cf. CF1 supl.)
Verbo
bit. e pron. (prep.: a, com) promover correlação entre (pessoas, coisas, ideias etc.) ‹o Romantismo
sentimental correlaciona o amor à morte› ‹no mundo moderno, teoria e prática não se correlacionam›
Antônimos: descorrelacionar
Fonte: https://houaiss.uol.com.br/
2
correlação (1675 FBFreL 186)
Substantivo feminino
1 correspondência, similitude, analogia entre pessoas, coisas, ideias etc. relacionadas entre si
2 qualidade, atributo do que é correlativo
3 est interdependência de duas ou mais variáveis
4 fon na terminologia do Círculo de Praga, relação que une os pares de fonemas cujos termos se opõem
pela presença ou pela ausência de um mesmo traço fônico; p.ex., as séries dos fonemas oclusivos do
português /p/, /t/, /k/ e /b/, /d/, /g/ opõem-se pelo traço sonoridade, portanto existe uma correlação entre
esses três pares cf. oposição binária
5 geom transformação que associa, no plano, pontos a linhas e linhas a pontos, e, no espaço, associa pontos
a planos e planos a pontos
Antônimos: descorrelação
Fonte: https://houaiss.uol.com.br/
Conversão de terra rural em urbana na Amazônia: uma
análise a partir da configuração das cidades de Parauapebas e
Canaã dos Carajás no Pará
Alberto Patrick Cassiano Lima
PPGAU/UFPA, alberto.lima@itec.ufpa.br
Resumo. Na Amazônia, a velocidade de conversão de terra rural em urbana é digna de atenção por
evidenciar conflitos ambientais e fundiários. O entorno das cidades recebe grande pressão de
empreendimentos imobiliários, sendo o tema da expansão urbana recorrente nas cidades de intensa
exploração mineral. Por meio da sintaxe espacial, o artigo busca relacionar o que foi observado em termos
de modificações na morfologia urbana das sedes municipais de Parauapebas e Canaã dos Carajás no
Pará. O objetivo é explorar interferências da configuração das subdivisões da terra rural e uma análise
comparativa das propriedades geométricas e topológicas de como as duas cidades chegam em 2020. Os
métodos incluem a análise da localização e tamanho das propriedades rurais (conforme o Cadastro
Ambiental Rural), e o processamento de mapas axiais visando comparações entre medidas de integração
obtidas com o mapeamento dos cadastros de logradouros do IBGE de 2010 e 2019. Os resultados
comparativos entre as variáveis geométricas e topológicas sugerem que a agregação de terra rural às
respectivas dinâmicas urbanas por meio de loteamentos e condomínios, mostra situações semelhantes que
usufruem da existência dos centros funcionais antigos, a partir dos quais eixos são prolongados e dão
acesso a "bairros" estabelecidos em antigas fronteiras do solo urbano e rural.
Palavras-chave. rural-urbano, cidades amazônicas, núcleo integrador, Amazônia.
Conversion of rural into urban land in the Amazon region: an analysis based on the
configuration of the cities of Parauapebas and Canaã dos Carajás, in Pará.
Abstract In the Amazon, the speed of conversion from rural to urban land is worthy of attention as it
highlights environmental and land conflicts. The surroundings of cities receive great pressure from real
estate developments, and the theme of urban sprawl is recurrent in cities with intense mineral exploration.
Through spatial syntax, the article seeks to relate what was observed in terms of changes in the urban
morphology of the municipal cities of Parauapebas and Canaã dos Carajás in Pará State, Brazil. The
objective is to explore interferences from the configuration of rural land subdivisions and a comparative
analysis of the geometric and topological properties of how the two cities arrive in 2020. The methods
include the analysis of the location and size of rural properties (according to the Rural Environmental
Registry), and the processing of axial maps aiming at comparisons between measures of integration
obtained with the mapping of 2010 and 2019 IBGE street registers. The comparative results between the
geometric and topological variables suggest that the aggregation of rural land to the respective urban
dynamics through land parcelling and condominiums, shows similar situations that benefit from the
existence of old functional centres, from which axes are extended and give access to "neighbourhoods"
established in old borders of urban and rural land.
Keywords: rural-urban, Amazonian cities, integration core, Amazon.
356
357
2
1.Introdução
A região do Carajás é uma porção do território constituída na fronteira da Amazônia, composta
por 32 municípios localizados na parte sudeste do estado do Pará, configurada a partir da
articulação de uma rede urbana singular, polarizada por Marabá, como capital regional (IBGE,
2017), da difusão de uma economia primária com base na pecuária bovina e na mineração
(MONTEIRO E SILVA, 2021). Possui, portanto, dois eixos de articulação da rede urbana
formada pelas sedes dos municípios (Figura 1), um eixo sobre os municípios que se associam à
exploração da maior província mineral do país - a Serra do Carajás - e outro sobre os municípios
que articulam o segundo maior rebanho bovino nacional.
Percebe-se, empiricamente, que a região passa por um processo de expansão da produção e oferta
de novos lotes urbanos no entorno das manchas urbanas consolidadas, através da incorporação de
extensos projetos de loteamentos por parte de empresas de capital regional e nacional. Isto vem
ocorrendo desde a última década, em uma perspectiva de transformação do solo rural em solo
urbano como processo de ordenamento e expansão da acumulação do capital, (MELO, 2015) em
especial em municípios em que atividades voltadas à pecuária e à mineração são mais
concentradas seja como sede da articulação do processo de produção, seja como estrutura de
moradia para a força de trabalho.
Figura 1. Mapa das sedes municipais da Região de Carajás no Estado do Pará (DNIT, 2022;
IBGE, 2017, elaborado pelos autores)
A oferta de lotes e o consequente crescimento das manchas urbanas nas cidades da região têm
alterado suas configurações a partir da formação de novas centralidades e pela incorporação de
áreas anteriormente de uso rural. A conversão de terra rural em urbana é parte de uma dinâmica
morfológica que se inicia com a incorporação de fazendas nos entornos dos núcleos urbanos,
localizadas ao longo de eixos rodoviários principais e de estradas vicinais secundárias. A malha
rodoviária, apesar de deficiente em termos de infraestruturas de pavimentação e desenho de
engenharia, estrutura os núcleos urbanos, assim como a extensa rede vicinal que interliga as
propriedades rurais, mas que acabam incorporadas às cidades.
358
3
Desta forma, este artigo tem o objetivo de explorar interferências da configuração de subdivisões
da terra rural sobre as respectivas malhas viárias na morfologia das sedes urbanas. Para isso,
lança-se mão de análises sintáticas desenvolvidas para as sedes municipais de Parauapebas e
Canaã dos Carajás, ambas localizadas no sudeste paraense. A seleção das duas cidades justifica-
se pela representatividade das transformações profundas do crescimento de suas manchas entre
2010 e 2020 devido a grande movimentação econômica e de população nas suas periferias.
espaços públicos na realidade rural de Estância Velha. E que ao ser incorporada como área urbana,
leva a estrutura urbana atributos que nasceram quando era área rural.
Em comparação com o estudo acima mencionado, parte-se do SICAR (Sistema Nacional de
Cadastro Ambiental Rural) de propriedades rurais que em função das rodovias e vicinais definem
vetores para a expansão urbana. Se considerarmos o tamanho das propriedades e a malha de
acessos, estaremos diante de um sistema de escala bastante diversa do caso gaúcho. Razão pela
qual busca-se uma relação morfológica mais ligada a aproximação com núcleos morfológicos e a
indicação, ainda preliminar de vetores oriundos da malha de propriedades rurais que se tornam
urbanas. Daí a utilização do núcleo integrador como indicador do que foi denominado de
interferência do rural sobre o urbano.
O exame da teoria sobre a relação rural e urbana na Região Amazônica vem sendo desenvolvida
por diversos autores em função de um debate crítico de inspiração lefebvriana sobre as
transformações de uso do solo e os impactos ambientais. Monte-Mor (1994) propôs a
denominação de urbano extensivo para designar a abrangência da dinâmica contemporânea de
organização social sob a égide do capitalismo industrial. A "zona urbana" de Lefebvre é
representada pela ruptura da cidade enquanto herdeira do sentido de "polis" ou "civitas", tanto no
centro/núcleo urbano como resultante da implosão do locus do poder, como no tecido urbano, em
que a trama de relações socioespaciais se estende à região, caracterizando uma explosão da cidade
preexistente. Tais referências vêm sendo aplicadas para o estudo das áreas metropolitanas,
somente recentemente, o debate foi levado para as cidades médias ou que estivessem ligadas à
ameaça de modificações resultantes da ordem exterior sobre as dinâmicas sociais locais, como é
o caso das cidades na fronteira agromineral da Amazônia Oriental, também referidas por Monte-
Mor e aqui tratadas com a empiria de Canaã dos Carajás e Parauapebas. Silva (2015) articula o
debate sobre urbanização e desenvolvimento na Amazônia por meio de uma interpretação
lefebvriana ao ressaltar a contradição que se estabelece entre o uso de recursos naturais e a
conservação do bioma. A negação da floresta está inserida na "distinção lefebvriana entre o
urbano como virtualidade de emancipação social e o urbano industrial como derivação da
industrialização" (2015, p. 1). Em seu trabalho, Silva propõe ainda que a incorporação de
elementos da biodiversidade à vida econômica, articula a produção econômica e reprodução do
bioma, por meio de sua ligação a elementos da vida urbana (idem).
3. Apontamentos metodológicos
Quanto a compreensão da localização e abrangência de centralidade, bem como das interferências
das modificações de uso do solo rural nos entornos dos perímetros urbanos, são aplicadas as
técnicas de sintaxe espacial para o estudo das transformações configuracionais das sedes dos
municípios de Parauapebas e Canaã dos Carajás confrontados com o mosaico de propriedades
rurais dos seus entornos imediatos.
O quadro abaixo (Quadro 1) mostra as sedes municipais que tiveram maiores alterações conforme
o estudo comparativo da extensão linear das faces de quadra constante nos levantamentos
realizados pelo IBGE nos anos de 2010 e 2020. Ao considerarmos a totalidade da região foi
encontrado um crescimento de 72% da extensão linear das faces de quadra entre os anos de 2010
e 2020, contudo, ao analisarmos o quadro 1 há destaque às sedes dos dois municípios minerários
de Parauapebas e Canaã dos Carajás que cresceram 148% e 250% respectivamente, esta última
subindo de oitava maior cidade da região em 2010 para quarta em 2020, reforçando a identificação
de uma concentração do interesse de ofertar empreendimento e lotes urbanos nos municípios que
integram os grandes projetos de mineração. (Figura 2)
360
5
Quadro 1. Extensão linear das faces de quadra das sedes municipais da Região Carajás 2010 e 2020
(Fonte: IBGE, 2010 e 2020. Elaborado pelos autores)
Sede municipal Face 2010 Posição 2010 Face 2020 Posição 2020 Crescimento R
Parauapebas 867.380,74 2 2.150.075,38 1 1.282.694,64 2,479
Marabá 1.244.289,46 1 2.132.070,85 2 887.781,39 1,713
Redenção 723.421,18 3 942.616,09 3 219.194,92 1,303
Canaã dos Carajás 236.786,68 8 828.827,64 4 592.040,97 3,500
Xinguara 254.427,36 6 445.391,27 5 190.963,91 1,751
Região Carajás 6.412.019,60 - 11.045.158,53 - 4.633.138,93 1,72
Figura 2. Mapa de crescimento urbano a partir da análise da extensão linear das faces de quadra
das sedes municipais da região do Carajás entre 2010 e 2020 (elaborado pelos autores)
Para que fosse possível o estudo da sintaxe espacial visando reconhecer a configuração de núcleos
de integração (integration core), partiu-se de comparações com as medidas de integração obtidas
com o mapeamento dos cadastros de logradouros do IBGE de 2010 e 2019 para a composição dos
mapas axiais das duas sedes municipais georreferenciadas no contexto regional. A Figura 3
mostra tanto as modificações dos logradouros nas sedes de Canaã dos Carajás e Parauapebas
como o mosaico de propriedades rurais do SICAR.
361
6
Figura 3. Mapa dos municípios de Canaã dos Carajás e Parauapebas com a indicação do
crescimento da malha urbana das sedes entre 2010 e 2020 e lotes rurais conforme o SICAR
(Fonte: SICAR, 2022; IBGE, 2010 e 2020, elaborado pelos autores.)
Todavia, a malha fundiária do entorno imediato das áreas urbanizadas pode influenciar na forma
urbana resultante da conversão de terra rural em urbana. O módulo fiscal de Parauapebas e Canaã
dos Carajás equivale a 70 hectares, logo, pode ser considerada uma pequena propriedade um lote
de até 280 hectares. Considerando os conflitos ambientais, fundiários e a fragilidade da gestão
territorial urbana nessa região, ter 280 hectares como pequena propriedade no entorno imediato a
sede urbana pode estimular a especulação imobiliária e, consequentemente, a conversão da terra
rural em urbana, alheia aos interesses coletivos.
Figura 5. Mapa da sede do município de Canaã dos Carajás com a indicação do crescimento da
malha urbana entre 2010 e 2020 (esq.) mosaico de lotes rurais (dir.) (Fonte: IBGE, 2010 e 2020,
elaborado pelos autores.)
seus vizinhos imediatos, sem referência ao sistema como um todo, a integração global, ao
contrário, descreve aspectos globais de todo o sistema e é uma função de uma linha ou espaço em
relação com todos os outros espaços no sistema.
Figura 6. Mapas de integração global (Rn) e integração local (R3) de Parauapebas, 2020. Fonte: processado
pelos autores a partir de IBGE, 2020 e Google Earth.
Figura 7. Mapas de integração global (Rn) e integração local (R3) de Parauapebas, 2020. Fonte: processado
pelos autores a partir de IBGE, 2020 e Google Earth.
367
12
5. Considerações finais
A aplicação de técnicas de sintaxe espacial na análise do que foi denominado, neste trabalho,
como interferências de um padrão de ocupação rural na morfologia de duas cidades na Amazônia,
deu oportunidade para articular a morfologia no debate sobre a realidade urbana da região Carajás
no sudeste do estado do Pará. Em que pese a dificuldade de obter dados compatíveis sobre as
cidades na região, o trabalho lança mão de cartografias existentes, tanto para a produção de mapas
axiais, como busca integrar à análise dados referentes ao padrão de propriedades rurais do SICAR.
Acredita-se que seja um exercício metodológico que liga uma empiria à teoria sobre o urbano na
região.
As análises realizadas demonstram que as configurações atuais das duas cidades são o resultado
de ocupação do solo baseada no acesso rodoviário, bastante comum na região a partir dos anos
1970 quando o padrão de acesso hidroviário foi alterado para supremacia das estradas. A
comparação de variáveis topológicas em certa medida aproxima as duas cidades e sugerem que a
agregação de terra rural às suas dinâmicas por meio de loteamentos e condomínios, a partir de
situações semelhantes usufrui da existência dos centros funcionais antigos, a partir dos quais eixos
são prolongados e dão acesso a "bairros" estabelecidos em antigas fronteiras do solo urbano e
rural.
Apesar do artigo lançar mão do SICAR, ainda há a necessidade de novos estudos para que os
resultados obtidos até aqui possam ser generalizados a ponto de definir que o mosaico de
propriedades rurais mais o sistema de acesso rodoviário entre as propriedades seja forte o
suficiente para definir toda a dinâmica das centralidades e das modificações nas bordas. Porém,
há indicativos que os novos loteamentos urbanos implantados a partir de glebas rurais mantêm,
em alguma medida, a geometria e as conexões com a configuração anterior rural e a configuração
dos núcleos de integração. Para o que competem as decisões para ampliação dos limites das leis
de perímetro urbano, as decisões de melhoria viária, que no caso de ambas as cidades estudadas,
deve-se em grande medida a decisões da empresa Vale SA. na logística de exploração mineral na
região Carajás.
Acredita-se que tanto os conceitos como os métodos propostos para o desenvolvimento do
trabalho possam ser submetidos a revisão e aperfeiçoamento. Por se tratar de uma abordagem
relativamente nova para os estudos das cidades na região, há de se articular tanto a teoria de
produção do espaço quanto ao emprego de outras medidas sintáticas capazes de elucidar em
pormenores as relações entre a apropriação social e econômica e as modificações espaciais tão
presentes no debate ambiental e fundiário travados na Amazônia.
6. Referências
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rural para solo urbano na cidade de Canaã dos Carajás. 124 f. Dissertação (Mestrado em
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jul 2022.
369
14
_______. Lei n. 12.651, de 25 de maio de 2012. Dispõe sobre a proteção da vegetação nativa;
altera as Leis nos 6.938, de 31 de agosto de 1981, 9.393, de 19 de dezembro de 1996, e 11.428,
de 22 de dezembro de 2006; revoga as Leis nos 4.771, de 15 de setembro de 1965, e 7.754, de 14
de abril de 1989, e a Medida Provisória no 2.166-67, de 24 de agosto de 2001; e dá outras
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370
15
Notas
i
De acordo com a Lei Nº 6.746, de 10 de dezembro de 1979 (BRASIL, 1979), os módulos fiscais são
utilizados para definir o que é uma propriedade pequena (1 a 4), média (4 a 15) e grande (+15). O módulo
fiscal é considerado como área mínima necessária para que uma unidade produtiva seja economicamente
viável, sendo definido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), a considerando
quatro fatores descritos na lei supracitada: (1) o tipo de exploração do solo rural predominante no
município; (2) a renda obtida no tipo de exploração predominante; (3) outras explorações existentes no
Município que, embora não predominantes, sejam expressivas em função da renda ou da área utilizada; e
(4) o conceito de propriedade familiar.
371
372
373
2
1. Introdução
Esse estudo de caso parte de um trabalho de conclusão de curso e de um projeto de extensão
universitária em que discutem a espacialidade do conjunto habitacional Paranoá Parque e seus
efeitos na vida pública cotidiana, mas muito além do que o bairro como planejado, observa-se e
mapeia a apropriação das pessoas nos espaços livres, discutindo a presença das dinâmicas sociais
e dos processos de auto-organização observados através das informalidades, em resposta à própria
configuração espacial do bairro.
No presente momento há uma grande quantidade de estudos urbanos acerca da configuração
urbana de Brasília, incluindo estudos da sintaxe espacial que analisam seus efeitos
configuracionais sobre o desempenho em diferentes aspectos da vida urbana. Mas tratando-se do
tema da produção da habitação de interesse social no país ainda há muito a se avançar,
especialmente a respeito dos atuais modelos repetitivos e em larga escala planejados pelo estado.
Sendo assim, o principal objetivo deste trabalho é levantar dados espaciais e análise de múltiplas
variáveis relacionadas à forma, conectados com a análise sintática do espaço, realizados como
uma tentativa de caracterizar esse modo de produção habitacional e seus modos de pós-ocupação.
O Conjunto Habitacional Paranoá Parque foi o primeiro empreendimento proposto pelo programa
“Minha Casa Minha Vida” (PMCMV) no Distrito Federal (Brasil), que consiste no financiamento
da habitação para contemplar famílias divididas em três faixas de renda, tratando-se nesse caso
da menor faixa de renda por onde abarca as classes sociais mais vulneráveis.
Atualmente observa-se um crescente aumento de conjuntos de habitação social sendo
desenvolvidos por todo o DF com características configuracionais similares a este, mas que em
relação a todos os empreendimentos já realizados até o presente momento, o Paranoá Parque
apresenta uma particularidade: foi o único planejado para ser um bairro de fato aberto, embora
suas características configuracionais e de planejamento territorial caminhem de maneira que
incentive o fechamento por parte dos moradores — assim como levanta Lopes (2008), que revela
que esses conjuntos desenvolvem ao longo do tempo padrões socioespaciais que se aproximam
da lógica autodefensiva da configuração de enclave da favela, que determinam um
comportamento de reclusão e com base no medo.
Parte-se da hipótese de que essas várias estruturas urbanas lidam com um modo de vida bastante
comum à de muitos outros casos na contemporaneidade, de extrema formalidade (da vida em
condomínios fechados, das formas urbanas reclusas, fragmentadas, espraiadas e planejados para
serem exclusivamente monofuncionais), fator que inicialmente motivou o desenvolvimento deste
trabalho, e que se espera servir de repertório para novos estudos da forma urbana, podendo não
tratar exclusivamente sobre conjuntos habitacionais, pois o emprego da abordagem dos padrões
socioespaciais permite abranger uma extensa porção do nosso território, principalmente quando
levamos em consideração os achados de Coelho (2017), que aponta essas características de
restrição em mais da metade do tecido urbano do Distrito Federal.
A metodologia de análise é estruturada a partir de dois processos:
1) Revisão bibliográfica: têm-se como principal base os estudos que lidam com o desempenho da
comunitária, sendo principal referência os autores Jacobs (1961), Alexander (1977), Holanda
(2002), Salingaros (2006), Tenório (2012) e Loureiro (2017).
2) Metodologias de análise sociológica: Trata-se do emprego da metodologia de Tenorio (2013)
que realiza levantamento e avaliação dos espaços públicos e da vida pública, com enfoque no
aparato teórico e conceitual na Teoria da Lógica Social do Espaço (HILLIER & HANSON, 1984),
pelo qual porta das ferramentas de análise que permitiram evidenciar a ausência de urbanidade
no Paranoá Parque, e também avaliar como sua pós-ocupação tem sido apropriada e adaptada
pelos residentes após oito anos desde a sua construção.
Com análise das ilhas espaciais, convexidade, constitutividade, axialidade e das propriedades
locais, este trabalho busca associar aspectos sociológicos que ocorrem em resposta a essa
configuração, tais como a informalidade e os modos de apropriação pela comunidade residente.
374
3
A análise revela uma espacialidade de extrema formalidade, que prejudicam as relações sociais
de encontros, permanências e co-presença nos espaços públicos; Foi observado como as pessoas
têm se apropriado dos espaços livres – produzindo modos de co-presença em padrões que se
replicam ao longo de todo o bairro.
É reforçada a hipótese de que essas apropriações socioespaciais pelos residentes ocorram como
uma tentativa de mitigar os efeitos dos espaços públicos de extrema formalidade, na tentativa de
adequar aos seus modos de vida, mas que ocorrem dentro das limitações no contexto em que estão
inseridos. Apesar de ser um bairro planejado para ser aberto, através das tentativas de cercamento
é constatado um comportamento de reclusão e com base no medo que condizem com a
constatação de Lopes (2018), mas que neste caso é reforçado por políticas públicas que
influenciam os moradores a recorrer pelo cercamento em busca de uma paliativa sensação de
segurança.
A partir destes resultados reforça-se a necessidade de estratégias para lidar com esse modo de
produção habitacional que parece ser cada vez mais replicada, buscando evidenciar seus efeitos
sobre a vida urbana para reforçar a ideia de que o estado deve priorizar novas alternativas e modos
de planejamento mais sustentáveis, inclusivos e amigáveis. Espera-se que esses estudos sejam
levados em consideração no desenvolvimento de novas habitações de interesse social, que
contribuam para o desenvolvimento de novas estratégias de intervenção e requalificação urbana
e, como lição deste estudo de caso, que também sejam levados em consideração na elaboração de
diretrizes urbanísticas e políticas públicas locais na busca por reverter os efeitos configuracionais
que são tão prejudiciais para a vida urbana, tais como aqui constatados.
2. Revisão Bibliográfica
2.1 A lógica social do espaço
A Teoria da Lógica Social do Espaço ou também conhecida como sintaxe espacial lida com a
teoria do impacto da configuração espacial sobre a vida social e vice e versa (HILLIER &
HANSON, 1984). Ela nos permite analisar a configuração espacial vinculada à lógica social
inerente, sempre partindo do ponto de vista do espaço como um sistema de relações entre partes.
Tem como inquietação básica a noção de que, apesar de espaço e sociedade serem parte de uma
mesma dinâmica, a sua relação não era entendida de modo que suas leis pudessem ser
interpretadas ou sequer reconhecidas espacialmente (LOUREIRO, 2017).
A teoria da LSE parte do pressuposto que o artefato arquitetônico, formado pela justaposição dos
cheios (barreiras, massas construídas) e vazios (permeabilidades), carrega em si informações e
conteúdos sociais que vão além da ordem visível, estão subjacentes a uma estrutura espacial
montada por uma teia de relações entre os lugares que formam o todo. Não existe atitude inocente
na construção de um lugar, por mais desordenado que seja, ele embute alguma lógica social, é
construído para causar certos tipos de efeito, tem um fim, como frisa Holanda (2013, p.204):
“Busque a lógica social de qualquer configuração – todas as têm”.
Entende-se que a forma do espaço direciona potencialmente escolhas humanas, criando campos
potenciais de possibilidades e restrições para as ações humanas no ambiente físico. Essa co-
presença humana é variável, e acontece a depender das variáveis espaciais envolvidas que
direcionam potencialmente modos de uso e tipos de comunidades que podem se formar em cada
espaço (HILLIER et al., 1987).
Da mesma forma neste trabalho, o olhar sistêmico sobre a complexidade dos espaços é resultante
de uma leitura espacial vinculada às relações que estruturam o espaço e lhe conferem sua dinâmica
socioespacial. Todo o espaço está sujeito a variável do tempo, e por isso está em constante
adaptação, o que nos permite extrair relações de modo a compreender os processos que atuam na
sua formação, e captar suas propriedades características através de uma investigação relacional.
A forma e espaço resulta diretamente no campo de encontros prováveis entre indivíduos, o que
chamamos de comunidade virtual, como definidos por Hillier et al. (1987) e Hillier (1989). A
literatura sintática entende que mesmo espaços com características convidativas a presença de
375
4
pessoas não garante a efetivação de uma comunidade e trocas de experiências reais. “A ação de
interação dos indivíduos no mundo concreto não depende somente da forma do espaço, mas
também da existência de pessoas vivendo nesses lugares e traços culturais próprios de cada
sociedade” (HILLIER, 2007).
A teoria é baseada em uma série de princípios descritos matematicamente, pelo qual fornecem a
possibilidade de gerar gráficos e resultados numéricos, mapeia e analisa a disponibilidade de
espaços lineares (spacesyntax.com, 2014). Em “O espaço de exceção” (2002), Holanda apresenta
de forma didática os níveis analíticos da Sintaxe espacial, pelo qual vamos focar nas seguintes
técnicas de análise, ao qual serão detalhadas na metodologia: (a) Análise de ilhas espaciais, (b)
Análise de Convexidade e Constitutividade e (c) Análise de axialidade.
das áreas com maior potencial de fluxo vinculado aos ângulos de visibilidade. Podemos inferir
com essa análise, as áreas mais movimentadas e os melhores espaços de permanência, em
potencial (Hillier, 2007).
(c) Axialidade: é feito quando desenhamos linhas que perpassam todos os espaços abertos entre
as ilhas espaciais. Feito por auxílio de software, a representação deve ser feita traçando o menor
número de linhas possível, e que elas sejam as mais longas possíveis, até que todas as ilhas
espaciais estejam separadas umas das outras por pelo menos uma linha dessas. A partir disso um
software elaborado com base na Teoria da Sintaxe Espacial processa o cálculo das relações entre
as suas linhas. Holanda (2002) discorre sobre quatro variáveis do mapa axial: Integração,
Economia de malha, inteligibilidade e forma do núcleo integrador.
A medida de integração é crucial para a análise de um dado espaço público no contexto da cidade.
Os lugares mais integrados de uma cidade tendem também a ser os que são mais facilmente
acessíveis de todos os seus pontos. Locais mais acessíveis costumam serem destinos ou trajetos
comuns a muitas pessoas. Destinos ou trajetos comuns a muitas pessoas viabilizam transporte de
massa. Espaços públicos em locais integrados têm, assim, grande potencial para atrair e reter vida
pública. Já espaços públicos em locais segregados, por outro lado, têm menos chance de funcionar
(TENORIO, 2012, p. 172).
(d) Gráficos de Análise Visual (VGA): neste gráfico, basicamente as cores mais quentes,
tendendo ao vermelho, indicam as localizações com maior visibilidade, enquanto que as cores
mais frias, tendendo ao azul escuro, indicam aquelas com menor visibilidade. Em espaços urbanos
abertos, sob o ponto de vista arquitetônico, localizações com maior visibilidade tendem a denotar
maior hierarquia, destaque, importância, etc. É o caso, por exemplo, de monumentos situados nas
porções centrais de praças e parques. É o caso também de situações em que eixos visuais são
utilizados para valorizar uma edificação considerada importante, como uma Igreja.
Para essa análise, das várias variáveis possíveis, a mais interessante para esse caso é a Integração
Visual, que traz uma leitura das áreas com maior potencial de fluxo vinculado a ângulos de
visibilidade. Podemos inferir com essa análise, as áreas mais movimentadas e os melhores espaços
de permanência, em potencial (HILLIER, 2007). Por outro lado, áreas com baixa visibilidade
tendem a ser menos importantes dentro do conjunto, ou ainda a serem percebidas como áreas com
maior privacidade, destinadas a atividades de interação de pequenos grupos. Além disso, um
aspecto importante a ser considerado a respeito de áreas com baixa visibilidade é a possibilidade
de criação de áreas com baixa segurança, pela maior dificuldade de vigilância por parte dos
demais usuários do espaço (JACOBS, 2000 [1961]; NEWMAN, 1996).
contexto a ser explorado neste trabalho, optou-se pelas seguintes técnicas de levantamento:
mapeamento comportamental, mapas de co-presença, diários e caminhadas pelos espaços
públicos.
Considerando o momento de pandemia e ainda regime de lockdown em que esse trabalho foi
realizado, essas técnicas foram realizadas sem quebra dos protocolos de saúde. Os resultados são
listados em tabelas que sistematizam os elementos de configuração dos principais atributos
globais e locais do método de Tenorio, (2012, p. 181 a 198), representadas com gradação em
cores que representam cinco níveis que vão do vermelho (indesejáveis/inaceitáveis) ao verde
(desejáveis/ideais).
Figura 1. Uso do solo de acordo com o pojeto da construtora (fonte: SISDUC e SEDUH com adaptação
do autor).
O projeto original, diferentemente do que foi entregue à população, previa a construção de vários
equipamentos: de educação (centro de Ensino Infantil, Centro de Ensino Fundamental, Centro
Educacional, Centro de Ensino Médio, Escola Parque e UnB), um complexo de saúde (clínica da
Família, academia da saúde, centro de especialidades e centro de atenção psicossocial),
Equipamento de cultura como centro de artes e esportes e centro cultural, equipamentos de
assistência social (cras/cose) Equipamento de segurança. O uso comercial foi destinado aos lotes
adjacentes às vias principais. Não foi apresentado uso misto.
Nenhum comércio e nenhum desses equipamentos foram entregues à população, sendo
executados apenas um comércio, três anos depois, uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e uma
unidade de Pronto Atendimento (UPA) sete anos depois.
Paula Anderson (2021) em sua dissertação de mestrado ao qual utiliza o Paranoá Parque como
estudo de caso faz uma avaliação da vida pública sob a mesma metodologia de Tenório (2012)
379
8
também utilizada neste trabalho. Seu trabalho evidencia o contraste em relação à distribuição do
uso do solo, em que temos uma soma de 69,49% de áreas públicas, sistema de circulação e bolsões
de estacionamento. A habitação, ao qual o programa MCMV se propõe a resolver, destina apenas
uma área de 11,85%. O Memorial Descritivo e o estudo preliminar não mencionam ou esclarecem
o motivo da destinação de um percentual tão alto de áreas públicas.
Deve-se ponderar que a análise de Anderson (2021) faz uma análise do projeto, diferentemente
desse caso ao qual também considera a realidade como construída, ocupada e apropriada até o
presente momento.
Apesar das calçadas serem bem dimensionadas e não haver obstáculos, no entanto, a ausência de
sombreamento em percursos muito extensos e sem vitalidade torna a caminhada desinteressante
e muito cansativa. É um cenário monótono, há muito pouco para se observar e quase nada para
interagir.
Mobiliários simples como bancos e lixeiras só estão presentes nas praças, que por sua vez são
dificilmente ocupadas. É difícil se localizar, tanto para quem é morador, quanto para quem é de
fora. É um lugar para chegar e querer ir embora rápido. Se nas vias principais já há tamanha
redução do campo de encontros, no interior das quadras (que configuram uma baixa hierarquia),
esse aspecto tende a piorar (vide mapa comportamental do interior de um dos lotes).
380
9
Figura 5. Presença de quiosques e trailers nos pátios, interior aos lotes (fonte: autor).
Em alguns pontos como entre caminhos pelas praças e próximo aos pontos de ônibus são
utilizados para usos informais e, em certos trechos, moradores realizam tratamento paisagístico
para tornar os espaços residuais mais atrativos.
4.6 Barreiras
Nenhuma quadra foi completamente fechada, devido aos altos custos de execução e manutenção.
A Quadra 1 é a mais próxima de um cercamento completo, faltando apenas a construção da
portaria.
É interessante observar que existe um padrão na constituição das barreiras físicas construídas
informalmente pelos moradores — sempre delimitam o perímetro do edifício, ou partes dele, e
uma grande maioria é feita por pequenas cercas de arame/madeira com presença de pequenos
jardins. Esse cercamento informal é uma tentativa de aumentar a sensação de segurança, dado a
baixa proximidade entre as janelas do térreo e as calçadas.
Observa-se que foram fechados quase todos os recuos da fachada posterior e, com exceção de um
lote, todos os demais colocaram portões com grade.
384
13
Figura 10. Mapa figura-fundo com análise da proporção de cheios e vazios (fonte: autor).
4.8 Convexidade:
Seus espaços convexos são amplos, e o tamanho médio dos espaços convexos é de 301,07 m². Os
edifícios residenciais dispersos em amplas ilhas espaciais dificultam a apreensão dos seus espaços
convexos. Falta fechamento e continuidade para a definição dos lugares. Os grandes espaços
abertos se configuram mais como obstáculos do que como lugares propícios aos encontros. Os
vários bolsões de estacionamentos existentes no interior das quadras residenciais também
contribuem para ampliar a área de seus espaços convexos.
4.9 Axialidade:
Figura 19. Integração Local DF e recorte (fonte: TENORIO, 2015 com adaptação do autor).
Na montagem do mapa axial foi tomado com referência o desenho de Brasília elaborado por
Coelho (2017), mas também se elaborou um desenho axial próprio, com recorte da região de
estudo e atualizado. Mas deve-se levar em consideração que as cores tomam como referência o
desenho em relação ao sistema e que isso não é um indicativo de haver realmente uma integração
desejada, vide os valores médios de integração em 0,62 que revelam uma baixa distribuição dos
eixos mais integrados ao longo do sistema.
Em comparação com mapa axial de integração local de Tenorio (2012), antes da implantação do
bairro, observa-se que, embora haja uma alta hierarquia externa (de algumas vias bem integradas
que percorrem o bairro), esse potencial de integração não é aproveitado na forma como foi
construído: as ligações público-privada são frequentemente interrompidas, há baixa costura com
o tecido urbano dos bairros adjacentes, quadras e espaços livres são superdimensionados, e os
prédios isolados com grandes fachadas cegas sem alinhamentos e baixa constitutividade não
contribuem para a definição dos espaços públicos.
Ao mesmo tempo, a baixa hierarquia interna restringe potenciais encontros entre residentes. Ou
seja: a axialidade do Paranoá Parque e o modo como foi construído traz efeitos que são
prejudiciais à vida pública cotidiana.
5. Resultados:
As tabelas a seguir foram adaptadas e sistematizam os elementos de configuração dos principais
atributos globais e locais do método de Tenorio (2012), tendo como base tudo o que já foi
levantado anteriormente.
11 tipologias edilícias
12.1 espaços cegos
12.2 número de portas
12
2. portas e janelas 12.3 relações pub. /priv.
12.4 fronteiras suaves
12.5 janelas
13 acessibilidade do nível térreo
14.1 transporte público
14 acesso e circulação 14.2 pedestres e ciclistas
14.3 conexões
14.4 circulação
15.1 variedade
A análise da vida pública indica um baixo desempenho, tanto no interior das quadras quanto nas
praças locais há baixa variedade de pessoas, com predominância de grupos e baixa distribuição
das pessoas no tempo. A diversidade e distribuição de atividades não são adequadas, e também
não foi observada uma interação profunda dos usuários com esses lugares.
Nas praças, quando ocupadas, as pessoas permanecem por pouco tempo. Não há vigilância natural
e há pouca diversidade de atividades. Já no interior das quadras, há pouca gente se encontrando,
e quando ocorre são encontros programados por grupos específicos de moradores.
A análise da vida pública indica um baixo desempenho, tanto no interior das quadras quanto nas
praças locais há baixa variedade de pessoas, com predominância de grupos e baixa distribuição
das pessoas no tempo. A diversidade e distribuição de atividades não são adequadas, e também
não foi observada uma interação profunda dos usuários com esses lugares.
395
24
Nas praças, quando ocupadas, as pessoas permanecem por pouco tempo. Não há vigilância natural
e há pouca diversidade de atividades. Já no interior das quadras, há pouca gente se encontrando,
e quando ocorre são encontros programados por grupos específicos de moradores.
Quanto aos espaços públicos, os elementos de configuração também revelam um baixo
desempenho, sendo que a configuração fragmentada, espraiada e planejada para ser
exclusivamente monofuncional são os principais responsáveis por influenciar em todas as
categorias de análise.
a) Atributos globais: é observado que as áreas são muito espraiadas, tem uma baixa concentração
de atividades, baixa variedade de espaços públicos, são monofuncionais e não oferecem diferentes
tipos de habitação. Segundo a literatura, a ocorrência de vias bem integradas permite a ocorrência
de diversidade de atividades, o que não foi observado nesse caso. Mas os pequenos quiosques e
trailers posicionados informalmente ao longo dela demonstram uma tentativa de isso acontecer.
As áreas não estimulam a mobilidade do pedestre, e embora haja ciclofaixas ao longo do bairro,
a grande dimensão das ruas configura barreiras para o pedestre, há trechos sem continuidade e
outros sem a sinalização adequada. E até mesmo para um planejamento que prioriza o transporte
privado, seu sistema viário é superdimensionado, com uma caixa de 34 metros de largura com 4
faixas de rolamento, em um desenho que não aproveita as conexões que poderiam ocorrer na
malha urbana, em costura com o entorno.
b) Atributos locais: observando os interstícios no interior das quadras, a apropriação local com
cercamento e construção de barreiras físicas ao longo do sistema de espaços livres só contribuem
para uma piora da hierarquia interna — o que é muito prejudicial para a vida pública, não apenas
restringindo os de fora, mas também prejudicando as conexões com o sistema de espaços livres
para os moradores.
As residências, praças e avenidas não têm limites claros, pois os edifícios localizados no entorno
do espaço público não apresentam proximidade e contiguidade. O pouco comércio que existe dá
“costas” para o interior das quadras. Os edifícios modulares são muito repetitivos, sem variedade
e sem diversidade de usos.
As praças, apesar do potencial de abrigar diversas atividades, não são bem acessíveis para os
moradores e são isoladas do uso residencial. Os quiosques presentes nas praças são isolados em
grandes espaços sem constitutividade, havendo pouca interação pelos moradores. A falta de
sombreamento reforça o cenário inóspito e impede por completo qualquer permanência nos
espaços públicos.
As Avenidas contemplam circulação de amplas dimensões, mas ainda há pouca densidade
construtiva e densidade habitacional para a ocorrência de atividades diversas. Mesmo com o
surgimento de comércios informais, continua subutilizada, com espaços muito amplos que são
contrastantes ao comparar com as calçadas estreitas de outros lugares, como dos bairros Paranoá
e Itapoã, localizados ao lado, mas que abrigam uma intensidade e diversidade de atividades
exemplares para este caso.
Ao associar com os gráficos da sintaxe espacial, pode-se inferir que as apropriações individuais
passam a resultar em outros efeitos de maneira sistêmica no bairro como um todo. Observa-se
que as hortas comunitárias são sempre feitas onde há espaços cegos, o que significa a substituição
de um espaço cego para um espaço ocupado e cuidado pelos moradores. Por outro lado, a tentativa
de privatização dada como cercamento, jardins e barreiras físicas no perímetro dos edifícios
trazem espaços segregados e mais profundos que prejudicam a vigilância natural no sistema de
espaços livres que estão adjacentes a essas pequenas barreiras. Isso fica claro quando observamos
as manchas azuis nos gráficos de controle, conectividade, integração local e no gráfico de
integração visual. Além disso, a plantação de jardins por iniciativas individuais dos moradores,
sem um estudo e planejamento prévio por um profissional técnico resulta em um cenário em que
frequentemente há ocorrência de problemas com manutenção local.
396
25
É recorrente notícias sobre invasão de privacidade no pavimento térreo. Por esse motivo, na
tentativa de se proteger, são feitas barreiras que criam pequenos espaços segregados. Como
constatado por Lopes (2018), é comum que esses conjuntos habitacionais desenvolvem ao longo
do tempo padrões socioespaciais que se aproximam da lógica autodefensiva da configuração de
enclave da favela, que determinam um comportamento de reclusão e com base no medo.
Lopes também observa que a população persistia em estar nos espaços abertos, apesar da forma
geometricamente planejada não contribuir para isso. No entanto, no caso do Paranoá Parque isso
não foi observado. Nesse caso, a forma é demasiadamente espraiada, que como observado no
mapa axial, associado com a baixa acessibilidade das vias internas restringe bastante os campos
de encontro entre os moradores.
Figura 21. Síntese com alguns dos padrões levantados e mapeados (fonte: autor).
Organizado a partir de todo o estudo da configuração e modos de uso levantados anteriormente,
foram identificados padrões e práticas de construção do espaço coletivo que são facilmente
encontrados em outras estruturas urbanas e que seguem espacialidades similares à do Paranoá
Parque.
No contexto do MCMV, a tese de Lopes (2018) traz uma importante contribuição ao analisar
através de uma ótica morfológica o caso de reassentamento de uma população da favela do
Maurim para um conjunto habitacional planejado pelo estado, e demonstra que, não limitando
apenas a espacialidade, mas os modos de ocupação também apresentam características
semelhantes a vários conjuntos de habitação já realizados pelos empreendimentos habitacionais
no DF.
Seu trabalho evidencia a natureza oposta em relação à vida urbana gerada em estruturas urbanas
completamente autoconstruída em comparação a espacialidade imposta dos conjuntos
habitacionais, sendo constatado que:
(a) Ao mudar para o conjunto, passa modificar os padrões de copresença, de uso do lugar e de
interação entre os diferentes indivíduos no espaço;
397
26
6. Conclusão
A partir dos resultados obtidos nessas análises revela-se a importância de se considerar em novos
empreendimentos um olhar voltado a incorporar as dinâmicas sociais provenientes da
complexidade organizada, que assim como o Paranoá Parque, muitos outros conjuntos da
contemporaneidade tanto necessitam — com referência ao entendimento de Loureiro (2017), os
processos de auto-organização que observamos através das informalidades em resposta à própria
configuração espacial do bairro são potenciais geradores de qualidade e diversidade espacial e de
atividades, e reforçam um caráter identitário que não podem ser simplesmente ignorados em
novas intervenções. Os achados revelam:
b) Foi observado como as pessoas têm se apropriado dos espaços livres – produzindo modos de
co-presença (interações) em padrões que se replicam ao longo de todo o bairro.
c) Apesar de ser um bairro planejado para ser aberto, é constatado um comportamento de reclusão
e com base no medo que ocorrem como resposta de uma espacialidade de extrema formalidade,
e que também é afetada por decisões legais de planejamento top-down que influenciam os
moradores a recorrer pelo cercamento em busca de uma paliativa sensação de segurança.
Dessa maneira, essa análise sociológica visa contribuir com o mapeamento dos padrões
socioespaciais existentes no Paranoá Parque, mas que se estima também encontrá-los em outras
em outras estruturas urbanas. Deve-se levar em consideração que este estudo tem uma limitação
inerente por explorar um único caso empírico que, apesar do Paranoá Parque ser um grande
conjunto, alguns dos resultados podem ter uso descritivo e explicativo que é exclusivo deste caso.
Mesmo assim, este trabalho caracteriza um esforço inicial que abre espaço para novas pesquisas
em um cenário comparativo maior, a fim de tornar os achados mais úteis quanto a potenciais
expansões teóricas e robustez empírica.
7. Referências
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Architecture and the Built Environment, KTH Royal Institute of Technology, 2013.
399
28
Resumo. O presente trabalho propõe um estudo de conjuntos residenciais horizontais na cidade de Viçosa,
Minas Gerais, buscando a verificação de como e quanto a configuração espacial influencia e atua nas
estruturas sociais dos usuários e da comunidade intramuros e extramuros. O trabalho considera aportes
teóricos da Sintaxe Espacial, como a teoria da lógica social do espaço, que imprime valores sociais às
estruturas espaciais e valores espaciais às estruturas sociais. Além de estudar também a Sintaxe Espacial
como ferramenta de análise, a partir de análises convexas e axiais e de medidas como integração e
profundidade. Identificando pontos de análise importantes no entendimento espacial dos conjuntos
residenciais horizontais; e através da análise de exemplares viçosenses de conjuntos horizontais fechados,
busca-se avançar nas investigações sobre essas estruturas espaciais.
Palavras-chave. Condomínios Horizontais Fechados, Sintaxe Espacial, Dinâmicas Sociais, Morfologia.
400
401
2
1.Introdução
A reflexão sobre a habitação contemporânea urbana brasileira pressupõe a análise de uma de suas
mais controvertidas modalidades habitacionais: os condomínios horizontais fechados, que, nas
últimas décadas estão cada vez mais presentes em metrópoles e grandes cidades, assim como em
cidades médias e pequenas. O contexto sobre o qual deve ser entendido e lido o fenômeno dos
condomínios horizontais fechados e seus congêneres, os condomínios verticais fechados e
loteamentos fechados, é complexo, e requer abordagem multidisciplinar. Aqui, de antemão, cabe
apenas sublinhar a importância de um amplo universo teórico que busca entender um processo
que, descrito por Caldeira (2000), caracteriza um novo padrão de segregação espacial e
desigualdade social na cidade. Este novo modelo de segregação substitui, aos poucos, o padrão
dicotômico “centro-rico” – “periferia-pobre” e dá lugar a outros tipos de espaços segregados,
fragmentados e heterogêneos, derivados, entre outros fatores, das recentes dinâmicas econômicas
e suas distribuições de atividades e do aumento do crime violento e do medo, que faz com que
pessoas de classes distintas busquem moradias mais seguras (CALDEIRA, 2000). É senso comum
transformar o crescente desejo por segurança como única justificativa para a implantação desses
enclaves fortificados, mas há uma série de outros aspectos, mais complexos, a serem
considerados, como as estratégias de marketing do mercado imobiliário que exploram em
primeiro plano o discurso da segurança em contraposição à de um espaço público urbano violento
e caótico, mas também invoca o poder de sedução da exclusividade, da privacidade e da
sociabilidade entre pares. Da implantação dessas novas formas espaciais na cidade deriva um
padrão de assentamento urbano, de certa forma destinado a alguns privilegiados, que acentua
disparidades sociais, ressalta um processo de negação da esfera pública, e sua diversidade. A
própria dimensão do universo das porções urbanas segregadas e fortificadas só pode ser delineada
de forma precisa a partir de dados que envolvam tanto condomínios horizontais fechados, como
loteamentos fechados, além dos condomínios verticais fechados, mas também àqueles de outras
bolhas protegidas - o shopping center, o clube, a escola particular, o centro empresarial, entre
outros.
É necessário diferenciar condomínios horizontais fechados de loteamentos fechados, ainda que,
no âmbito dos conflitos entre as esferas de vida privadas e públicas, as diferenças entre eles não
sejam tão significativas: ambos são conjuntos murados de casas unifamiliares, cujo acesso é
controlado por dispositivos como guaritas e outros aparatos de vigilância. As diferenças que
envolvem esses dois tipos de conjunto se explicitam nos aspectos legais e na produção das
unidades habitacionais. Nos condomínios horizontais fechados, regulamentos por leis de âmbito
municipais, todas as áreas são construídas pelo empreendedor, tanto as comuns como as privadas,
assim como toda a infraestrutura; os proprietários não compram só suas casas prontas, mas sim a
fração ideal do conjunto, isto é, eles são donos, em partes ou cotas, de tudo que possa compor a
área comum do condomínio, são coproprietários e responsáveis pela manutenção, por exemplo,
do sistema viário, dos equipamentos de lazer, das áreas comuns. Nos loteamentos fechados, que
não estão ainda claramente regulamentados por lei federal, ou melhor, encontram-se em uma
situação legalmente controvertida, as moradias são de responsabilidade dos próprios moradores e
as áreas comuns são de propriedade da prefeitura. Grosso modo, nos loteamentos fechados, não
há área em copropriedade, o que gera arbitrariedades sobre a quem recaem os encargos e as
manutenções dos espaços comuns, e, principalmente, como se resolve a questão de se limitar o
acesso a uma área de propriedade pública. É comum que se tratem esses loteamentos como
condomínios, e vice-versa. Ainda que algumas considerações espaciais possam ser generalizadas
tanto para condomínios horizontais fechados como para loteamentos fechados, neste trabalho,
esta diferenciação é importante. Busca-se aqui examinar possíveis relações entre os arranjos
espaciais da casa produzida intramuros e seu conjunto, o que só é viável em condomínios
horizontais fechados, ou em conjuntos em que existe a criação concomitante e indissociável dos
projetos de habitação e conjunto. Nesses condomínios, a interação entre habitação, conjunto e
cidade, ou ainda, uma gradação espacial entre privado e público, se faz presente, e de certa
maneira, define seu próprio caráter.
402
3
Este trabalho é parte de uma pesquisa mais ampla que busca examinar aspectos espaciais que se
estabelecem a partir da tríade casa-conjunto-cidade, e das porosidades e estanqueidades de suas
fronteiras. Nesse sentido, adota como suporte a abordagem configuracional, ou seja, as estratégias
de representação e análise do espaço da Teoria da Lógica Social do Espaço, a Sintaxe Espacial.
Busca analisar padrões espaciais de três exemplares de condomínios horizontais fechados na
cidade de Viçosa, Minas Gerais, Brasil. Por meio da interpretação das variáveis de profundidade
e integração pretende entender como se dá as configurações espaciais nos contextos da habitação,
do conjunto e da cidade, e que possíveis relações existem entre esses espaços e suas dinâmicas.
Assim, é importante destacar que este trabalho também busca explorar o potencial de aplicação
do ferramental teórico-metodológico da Sintaxe Espacial ao associar as escalas residenciais às
urbanas a partir as métricas de integração. As análises da Sintaxe Espacial são apropriadas para
discorrer sobre a dimensão particular de uma configuração espacial enquanto um complexo de
conexões, permeabilidades e barreiras, justamente a dimensão sobre a qual é entendido e lido o
fenômeno da implantação dos condomínios horizontais fechados.
Figura 2. Condomínio Parque do Ipê (fonte: elaborada pelos autores, a partir de imagens do
Google Maps).
Figura 4. Planta baixa da casa tipo do Parque do Ipê (fonte: elaborada pelos autores)
Em 1983 foi concluído outro conjunto residencial horizontal em Viçosa chamado Bosque do
Acamari (Figura 5 e 6). O conjunto, que conta com 135 unidades habitacionais, de tipologia única
(Figura 7) localiza-se em área contígua à universidade. A iniciativa de professores e servidores
técnico-administrativos da universidade foi motivada, assim como no Parque do Ipê, pela
dificuldade em encontrar moradias na cidade com uma qualidade razoável e como alternativa aos
altos preços dos lotes nos bairros de segmentos sociais médios e altos da cidade (RIBEIRO
FILHO, 1997, p. 164).
De acordo com Grifitth e Silva (1985), a concepção do projeto, foi determinada pela ideia de um
“agrupamento habitacional conservacionista”. Essa denominação deriva do caráter de respeito às
condições naturais com o que foi planejada a implantação das residências, também baseado no
conceito de cluster housing. Ainda sob a lógica conservacionista pode-se pontuar a preocupação
com o saneamento básico do conjunto, que já foi executado de maneira a facilitar seu acoplamento
à rede que poderia vir a existir na cidade de Viçosa, e ainda o fato dos condôminos terem adquirido
uma área de mata nativa limítrofe ao conjunto em que se encontra a cabeceira da bacia de captação
de água potável de Viçosa, receosos de que essa área pudesse, futuramente, ser ocupada de forma
predatória (GRIFITTH; SILVA, 1985).
Atualmente é possível notar que a maioria das habitações do condomínio sofreram alguma
intervenção. Algumas habitações foram demolidas para darem lugar a outras que se distinguem
406
7
totalmente das originais. Ainda assim, é possível encontrar alguns exemplares preservados da
habitação original.
A implementação do condomínio Bosque do Acamari imprimiu uma valorização das suas áreas
circundantes, e mais que isso, acabou ditando, posteriormente um modelo de ocupação dessas
áreas com empreendimentos tipo condomínios horizontais fechados, dando origem à uma área de
concentração desse modelo de morar na cidade de Viçosa.
Figura 5. Condomínio Bosque do Acamari (fonte: elaborada pelos autores, a partir de imagens
do Google Maps).
407
8
Figura 7. Planta baixa da casa tipo do Bosque do Acamari (fonte: elaborada pelos autores).
Na década de 1990 tem-se o primeiro condomínio horizontal fechado implementado como
empreendimento imobiliário em Viçosa. A construção do Condomínio Recanto da Serra (Figura
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Figura 8. Condomínio Recanto da Serra (fonte: elaborada pelos autores, a partir de imagens do
Google Maps).
409
10
Figura 10. Planta baixa da casa tipo do Recanto da Serra (fonte: elaborada pelos autores).
Tem-se então como estudos de caso, três condomínios fechados, já consolidados, que apresentam
características distintas. Na Figura 11, apresenta-se um quadro síntese da caracterização desses
conjuntos:
410
11
Figura 11. Quadro síntese dos três condomínios horizontais fechados estudados (fonte: elaborada
pelos autores).
maneira, a teoria busca interpretar o espaço por meio das possibilidades de deslocamento que ele
oferece. De acordo com Medeiros (2006, p.116), “uma vez que as relações sociais acontecem no
espaço, esse espaço responde ou afeta essas relações”.
Segundo Viana e Carvalho (2016) a abordagem sintática possibilita entender alguns artifícios
projetuais, bem como possibilita simular o desempenho de determinada configuração a partir da
utilização de algumas estratégias analíticas. Certas atividades, por exemplo, exigem espaços que
possibilitem maior campo de interações sociais.
Segundo Hillier, se nós colocarmos um objeto aqui ou ali dentro de um sistema espacial
então certas consequências previsíveis afetarão a configuração espacial do ambiente.
Esses efeitos são bastante independentes dos desejos ou da intenção humana, mas podem
ser utilizados pelos seres humanos para alcançarem efeitos espaciais e mesmo sociais
(MEDEIROS; HOLANDA, 2008, p.5).
Assim sendo, a Sintaxe Espacial propõe como modo de investigação do objeto arquitetônico ou
do recorte urbano a análise da estrutura de barreiras e permeabilidades que estabelece, as conexões
entre os espaços. Nesse sentido, a teoria privilegia compreender as relações entre estruturas
formais e comportamentos sociais, nas escalas urbana e edilícia, a partir dos modos de uso,
movimentos e interações estabelecidos em um sistema entendido sob a perspectiva de sua
composição de permeabilidades e barreiras.
As técnicas da teoria operam a partir de três unidades espaciais principais que se aplicam a objetos
espacialmente distintos, a partir de identificação e quantificação de atributos físicos, e de
decomposição analítica. Essas unidades espaciais são os polígonos convexos, as linhas axiais e as
isovistas. Tais unidades têm como objetivo revelar as propriedades espaciais intrínsecas do
sistema de barreiras e permeabilidades que configura o espaço. Cada unidade é aplicada de acordo
com o modo como as experiências humanas se desenvolvem no espaço: assim, os mapas, ou
diagramas, de linhas axiais buscam representar movimentos lineares, e àqueles dos polígonos
convexos representam espaços destinados ao agrupamento e permanência de pessoas, geralmente
relacionados ao desenvolvimento de atividades funcionais. As isovitas são representadas a partir
de polígonos convexos.
Para este trabalho, serão abordadas as unidades espaciais axiais e convexas. As análises axiais
serão aplicadas na escala do conjunto e na escalada cidade. Já as análises convexas serão aplicadas
na escala das habitações, uma vez que as mesmas se apresentam mais adequadas para esta escala
de análise.
As análises de grafos justificados, que também são utilizadas neste trabalho, são procedimentos
que permitem análises comparativas diretas entre os arranjos espaciais dos objetos e suas relações
internas. Para facilitar a “leitura” e, principalmente, para tornar algumas propriedades sintáticas
facilmente perceptíveis, é possível alinhar (justificar) um grafo a partir de um nó, chamado de nó
raiz. Assim, os grafos justificados representam os acessos com base em um determinado espaço
tomado como referência, e capturam as propriedades topológicas da configuração espacial,
definindo “um modo de análise que combina o deciframento visual de padrões com
procedimentos de quantificação” (HILLIER; HANSON, 1984, p.149).
Quanto às medidas sintáticas empregadas neste estudo tem-se:
Integração (Integration): é a medida mais importante para uma análise sintática. Quantifica a
acessibilidade topológica de cada espaço em relação a todos os demais que configuram o sistema
espacial que o contém; expressa matematicamente a distância sintática de um espaço para todos
os demais espaços do sistema (HILLIER; HANSON, 1984, p.114-115). Mede até que ponto, em
cada linha do mapa está presente nos percursos mais simples, um menor número de mudanças de
direção de e para todas as outras linhas. A medida de Integração mede o quão “profunda”, ou
distante, uma linha axial está de todas as outras linhas do mapa. O conceito de profundo leva em
consideração a distância topológica, e não a distância métrica. O cálculo do valor de Integração
resulta em um atributo numérico para cada espaço ou cada linha.
412
13
4.1.Escala da habitação
De acordo com Dovey (1999), a casa é uma das primeiras e principais experimentações espaciais
de uma pessoa e tem um papel central na reprodução da vida social. Segundo este autor, a casa,
como base espacial, constrói e reflete a identidade social de uma pessoa em uma comunidade. As
análises das habitações-tipo dos três condomínios realizadas a partir das ferramentas da Sintaxe
Espacial foram baseadas no genótipo de usos descrito por Dovey (1999), que pode ser explicado
como um conjunto de relações em cinco grupos de espaços:
● Área social formal (formal living zone): sala de estar, sala de jantar, hall de entrada, áreas
de circulação, escritório, lavabos;
● Área social informal (informal living zone): cozinha, copa, terraço, quintal, áreas ao ar
livre, garagem;
● Suíte master (master suite): quarto principal, e seus respectivos banheiros, closets,
varandas e/ou decks, quando houver;
● Quartos menores (minor bedroom zone): demais quartos e banheiros.
● Áreas de serviço
A partir desta análise, objetiva-se evidenciar os aspectos inerentes à estrutura espacial das
residências, partindo da planta baixa das casas-tipo e seus espaços constituídos como um sistema
de cômodos, e de suas inter-relações. Portanto, a fim de caracterizar e comparar as configurações
das casas-tipo dos condomínios estudados, são apresentadas primeiro as análises dos grafos
justificados, acompanhadas das medidas de profundidade (Figuras 12, 13 e 14) e posteriormente
as análises dos mapas convexos de integração (Figuras 15, 16 e 17). A leitura do mapa de
integração se dá a partir de uma escala de cores, do vermelho para o azul, onde as cores quentes
representam maiores valores de Integração e as cores frias representam menores valores de
Integração.
413
14
Figura 12. (a) Planta baixa da casa tipo do condomínio Parque do Ipê; (b) Grafo justificado da
habitação com escala dos graus de profundidade; (c) Grafo justificado considerando o genótipo
de usos (fonte: Autores).
Figura 13. (a) Planta baixa da casa tipo do condomínio Bosque do Acamari; (b) Grafo justificado
da habitação com escala dos graus de profundidade; (c) Grafo justificado considerando o genótipo
de usos (fonte: Autores).
Figura 14. (a) Planta baixa da casa tipo do condomínio Recanto da Serra; (b) Grafo justificado
da habitação com escala dos graus de profundidade; (c) Grafo justificado considerando o genótipo
de usos (fonte: Autores).
A partir dos grafos das habitações-tipo, que apresentam cada um dos sistemas-casa compostos a
partir de estrutura tipicamente em “árvore”, é possível notar que os acessos principais das casas
se conectam diretamente às varandas e garagens, cozinhas e áreas de serviço (áreas sociais
informais) mas também se conectam às salas de estar (áreas sociais formais), o que indica que
414
15
essas casas assumem configurações espaciais que seguem padrões correntes, que segregam e
hierarquizam seus acessos segundo grupos de usuários. Para as visitas formais e moradores, os
acessos diretos às áreas formais, faces mais públicas e representativas das moradias; para os
empregados, moradores no seu dia-adia e visitas mais íntimas, acessos diretos levam às áreas de
serviços e cozinhas.
As análises indicam que todas as habitações-tipo apresentam cinco graus de profundidade, o
número de cômodos das habitações e o número de pavimentos não têm ligação direta com a
determinação do grau de profundidade de um sistema, ou seja, sistemas mais rasos (menos
profundos) não necessariamente teriam menor número de cômodos e vice-versa.
No caso destas casas modelos, os grafos apresentam anéis na base, apenas interligando as áreas
sociais formais com as áreas sociais informais. Observa-se que a suíte master e os quartos menores
se situam nos níveis mais profundos nas três casas (níveis 4 e 5), com acesso controlado a partir
de um espaço de circulação, o que mostra configurações espaciais que admitem a setorização
determinada das áreas mais privativas, os quartos. As zonas das suítes principais se apresentam
nos níveis mais profundos em todas as habitações, indicando ser os ambientes mais isolados, ou
preservados, em relação aos acessos. Indica que a privacidade do casal, ou dos principais
moradores, estão garantidas, seguindo a lógica de comportamentos e costumes sociais que ditam
que nesses ambientes se desenrolam as relações de intimidades. Na casa do conjunto Recanto da
Serra o banheiro ligado à dependência de empregados também se encontra nesse nível,
reafirmando também que o cumprimento das necessidades fisiológicas e de higiene corporal dos
empregados deve estar circunscrita a ambientes os mais segregados possíveis, não só daqueles
usados pelos demais moradores, mas da casa como um todo.
Os grupos de espaços sociais das três casas situam-se nos níveis rasos e médios (1 a 3) dos grafos,
mostrando que, além de espaços de permanência, cômodos desses setores exercem função de
espaços de transição, mediando acessos. Apresentam forte conexão com o exterior, uma vez que
apresentam ligações diretas com as vias de acesso. Na residência do Parque do Ipê é possível
identificar uma situação que não é observada nas outras residências: o banheiro/lavabo atende ao
mesmo tempo os setores dos quartos e os setores sociais nessa habitação.
O grupo de espaços de serviços é acessado, nas três habitações-tipo, pelas áreas sociais informais,
se situando nos níveis médios de profundidade (2 a 4), segundo os grafos. Na casa do condomínio
Bosque do Acamari esse setor se encontra distribuído nos níveis 2 e 3 do sistema, uma vez que é
acessado não só pela área interna da casa, mas também pela área externa, através da garagem e
corredores laterais, o que também acontece na casa do conjunto Recanto da Serra, cujo setor se
situa nos níveis 2, 3 e 4. No caso da habitação-tipo do conjunto Parque do Ipê, o serviço tem
acesso direto também através da zona social formal, a partir do mesmo espaço de circulação que
liga as áreas de quartos. É possível perceber o controle do acesso à esses setores.
Figura 18 - Mapa axial de integração global RN do condomínio Parque do Ipê (fonte: Autores).
Já no mapa axial de integração RN do condomínio Bosque do Acamari (Figura 19), que segue um
traçado mais orgânico, pode-se perceber que, diferente do condomínio analisado anteriormente,
apresenta um núcleo integrador (representado pelo conjunto de linhas em cores mais quentes)
mais definido, na área central. Além de apres
entar uma maior hierarquização nos valores de Integração ao longo das linhas que representam as
vias do conjunto.
Um fato que vale destacar é que apesar da Sintaxe Espacial não levar em conta a topografia, as
áreas que apresentam as linhas com menores valores de integração (cores mais frias), ou seja, que
estão mais segregadas neste sistema, coincidem com as áreas de topografia mais acentuada.
Quanto ao condomínio Recanto da Serra (Figura 20) pode-se perceber uma variação ainda menos
evidente nos valores de Integração Global. As linhas que apresentam maiores valores da medida
representam as duas vias principais de acesso ao conjunto e que distribuem seu fluxo para um
eixo em aclive e outro em declive. As demais vias se apresentam com os mesmo valores de
Integração, valores mínimos. Dentre os três modelos analisados o Recanto da Serra apresenta os
dados mais díspares, não apresentando medidas intermediárias de Integração, apresentando
apenas os maiores e menores valores da medida.
417
18
Para análise desta escala, foi construído o mapa axial da habitação tipo de cada condomínio, que
em seguida foi inserido em cada lote do condomínio e ligado ao mapa axial do conjunto. Foram
processados somente mapas axiais de integração de raio global. A ligação entre os mapas axiais
foi feita a partir de uma linha que simboliza os acessos principais às residências. As análises nesta
escala são tratadas como possibilidades metodológicas, uma vez que se distanciam da realidade;
as habitações tipo original nestes condomínios já sofreram alterações ou não existem mais. Com
esta escala de análise possibilita-se a percepção das relações entre conjunto-casa.
Para o Parque do Ipê (Figura 21), os resultados observados foram: maiores valores de integração
(cores mais quentes) nas linhas que simbolizam as vias internas do condomínio, fato que pôde ser
observado em todas as linhas do sistema. Isto, quando comparado ao mapa de Integração do
conjunto sem as residências. A relação das casas não varia perceptivelmente. Todas as casas
aparecem com valores de Integração muito próximos, independente do valor de Integração da via
a qual a casa esteja ligada, o que pode levar à suposição de que o desenho modernista do conjunto,
a partir da lógica de repetição, cria tecidos urbanos bastante homogêneos.
5.Considerações Finais
Percebe-se, a partir deste estudo, o cenário ímpar de Viçosa no que diz respeito à presença de
conjuntos tipo condomínios horizontais fechados já no início dos anos 1970, o que só ocorreu, na
mesma época, em capitais e grandes centros urbanos. No cenário atual, entretanto, Viçosa segue
a tendência de cidades do mesmo porte, onde são cada vez mais crescentes empreendimentos
como os loteamentos e condomínios horizontais fechados. Ao analisar o histórico de
implementação dos condomínios horizontais fechados na cidade é possível constatar que os três
exemplares estudados foram catalizadores do surgimento de conjuntos de mesma natureza em
seus respectivos entornos a partir dos anos 2000. No caso do Bosque do Acamari, tal fato é
bastante evidente, uma vez que a sua implantação imprimiu uma valorização das suas áreas
circundantes, e mais que isso, acabou ditando um modelo de morar, e de ocupação dessas áreas,
dando origem à uma concentração de empreendimentos tipo condomínios horizontais e
loteamentos fechados na cidade. Modelo este que se expande, atualmente, de forma bastante
similar, para outra área de expansão urbana de Viçosa também contígua à UFV, conhecida como
Nova P. H. Rolfs.
Na escala da cidade, os mapas axiais de Integração RN, nos revela que os condomínios analisados
estão em áreas mais periféricas, com menores valores de Integração, caso comparados com o
núcleo integrador da cidade. Porém ao se processar o mapa axial de Integração R3, supondo que
estes empreendimentos estivessem incorporados à malha urbana, sem barreiras de acesso,
podemos observar que o condomínio Bosque do Acamari reforça a lógica de uma possível
centralidade local. Os condomínios encontram-se limitados em seus acessos e conexões,
precarizando a integração e a acessibilidade aos principais comércios e serviços. São como ilhas
que não refletem nem irradiam um possível desenvolvimento nos arredores.
Já na escala do conjunto, observa-se que os conjuntos analisados com traçados mais retilíneos e
regulares, o Parque do Ipê e o Recanto do Serra, mostram uma homogeneidade nos valores
configuracionais de Integração. Por sua vez, no Bosque do Acamari, que apresenta um traçado
mais irregular, orgânico, há uma diferenciação nos valores configuracionais de Integração,
424
25
revelando um núcleo integrador definido. Essa lógica se expande para a escala de análise
habitação-conjunto, podendo levar à suposição de que o padrão do desenho de vias tem um papel
fundamental quanto ao potencial de acessibilidade.
A Sintaxe Espacial se mostrou como uma metodologia de análise que permitiu explorar a
configuração espacial dessa modalidade, relevando as particularidades do desenho da casa e do
condomínio; se se diferenciam ou não da casa de lote convencional na cidade aberta, entendendo
como como o aspecto configuracional destes conjuntos influencia na criação de espaços mais ou
menos convidativos à convivência. Entende-se que muitas respostas relativas ao aspecto
configuracional destes conjuntos foram obtidas. Porém, seria relevante o avanço do presente
trabalho e para um entendimento mais amplo destes conjuntos e sua correlações nas escalas aqui
abordadas, somar a estas análises variáveis por exemplo, socioeconômicas e de infraestrutura na
tentativa de responder a questões como por exemplo quais motivações levam a escolha desta
modalidade habitacional, onde os moradores abrem mão da comodidade da proximidade de
serviços e comércio em favor do status, homogeneidade social, exclusividade.
5.Referências
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Editora 34, 2000.
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Journal of Space Syntax, v. 1, n. 2, p. 355, 2010.
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residencial Recanto da Serra em Viçosa-MG. (Mestrado em Economia Doméstica) - Viçosa:
Universidade Federal de Viçosa. 2009
RIBEIRO FILHO, G. B. . A formação do espaço construído: cidade e legislação urbanística
em Viçosa, MG. (Mestrado em Urbanismo). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de
Janeiro. 1997
VIANA, David; CARVALHO, Isabel Cristina. O estudo da forma-dinâmica urbana através do
mapping de dinâmicas sociais e da apropriação espacial. Revista de morfologia urbana, v. 4, n.
1, p. 29-42, 2016.
Nem só em Superquadras viverás no Plano Piloto: análise
configuracional dos projetos originais das quadras 700 sul
Resumo. O objetivo desse artigo é discutir a morfologia da escala residencial unifamiliar nas quadras 700
sul do Plano Piloto de Brasília, tomando como aparato teórico metodológico a Sintaxe Espacial. Foram
analisados os projetos originais, tanto na escala edilícia quanto na urbana, a partir de pesquisa nas fontes
primárias disponíveis no Arquivo Público do Distrito Federal. A tipologia habitacional geminada popular,
embora não estivesse presente no projeto original de Lucio Costa, logo foi inserida à época da construção
à oeste da via W3 sul, com vistas a solucionar a demanda por habitação para servidores antes mesmo da
inauguração da capital. As VGA’s dos projetos originais demonstram que critérios de proteção à
intimidade e separação entre patrões e empregados são replicados. A inserção desse modo de morar
tradicional cria uma dicotomia com o modelo originalmente poprosto das Superquardas, especialmente no
que tange à preservação patrimonial, visto que a legislação pouco fez para evitar ou fiscalizar as mudanças
das casas geminadas.
Palavras-chave. Habitação popular, Plano Piloto, morfologia, patrimônio.
Not only in Superquardras will you live in the Plano Piloto: configurational analysis
of the original designs of the blocks 700 south
Abstract. This article discusses the morphology of the single-family residential scale located in the Plano
Piloto of Brasilia, taking space syntax as a theoretical and methodological apparatus. The original projects
were analyzed both at the building and urban scale, based on the primary sources researched at the Public
Archive of the Federal District. The popular typology of terraced houses, although not present in Lucio
Costa’s original project, was soon inserted into the plan during construction to solve the staff’s housing
demand even before the inauguration of the capital. The VGA's of the original projects demonstrate that
the criteria for privacy and social separation between employers and employees are replicated. The
insertion of this traditional way of living creates a dichotomy with the model originally proposed for the
Superquardas, especially regarding heritage preservation, since the legislation did little to prevent or
supervise changes to the terraced houses.
Keywords: Popular housing, Plano piloto, morphology, heritage.
425
426
2
1.Introdução
O objetivo desse artigo é discutir a morfologia da escala residencial unifamiliar nas quadras 700
Sul do Plano Piloto de Brasília, tomando como aparato teórico metodológico a Sintaxe Espacial.
Foram analisados os projetos originais, tanto na escala edilícia quanto na urbana, a partir de
pesquisa nas fontes primarias disponíveis no Arquivo Público do Distrito Federal - ArPDF. Esse
artigo faz parte de uma pesquisa mais ampla intitulada “Habitação unifamiliar no Plano Piloto:
estudo diacrônico das quadras 700 Sul de Brasília” desenvolvida em nível de Iniciação Científica
na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília entre 2021-22.
Como é bem sabido, a crise habitacional tornou-se um marco no início do século XX levando
diversos teóricos e arquitetos a discutir e propor sobre o tema. No Brasil, a habitação social torna-
se pauta do governo Vargas (BONDUKI, 2004). Em 1933 surgem iniciativas públicas promovidas
por instituições autônomas, tal como os Institutos de Aposentadorias e Pensões - IAP’s
favorecendo os segmentos inseridos no mercado formal mais organizados. Entretanto, em 1946,
é criado o primeiro órgão federal brasileiro na área da moradia, com finalidade de centralizar e
estender a política habitacional, a Fundação da Casa Popular - FCP. A habitação social era
produzida complementarmente pela iniciativa privada, visto que a produção estatal não era
suficiente para suprir a demanda. Programas arquitetônicos como vilas operárias e casas
econômicas serão tema recorrente dos arquitetos modernistas, como exemplo preambular a Vila
Operária da Gamboa no Rio de Janeiro de 1932 de autoria de Gregori Warchavchik e Lucio Costa
(LIRA, 2011).
Já ao início da implantação do projeto em 1957, uma série de alterações foram feitasi. Dentre elas,
a faixa proposta para “floricultura, horta e pomar” (item 16 do relatório do Plano Piloto - COSTA,
1956, p. 36), a oeste da “via de serviço”, transformou-se em casas unifamiliares geminadas para
atendimento de urgência as famílias transferidas para Brasília, dando origem às quadras 700
(COSTA, LIMA, 1985). Esse conjunto de casas geminadas já aparece numa planta de 1957,
denominada de “Plano Definitivo” (BRUAND, 2001 – Figura 1). Nesse mesmo ano são iniciadas
as obras das primeiras quadras residenciais sob responsabilidade de alguns IAP´s e da Fundação
da Casa Própria - FUNCAP, dentre as quais alguns conjuntos de casas unifamiliares ao longo da
Via W3 Sul, cujas primeiras 500 unidades seriam entregues já em 1958, sendo, portanto, “as
primeiras habitações definitivas de alvenaria da nova capital, possuindo cada uma 3 quartos, sala,
cozinha e demais instalações, além de um pequeno quintal“ (NOVACAP, 1957a, p.17). O uso de
método construtivo tradicional - facilmente dominado pelos operários em oposição às estruturas
de aço e concreto armado - garantiu a rápida execução do projeto (Figura 2).
427
3
A tipologia habitacional remete claramente a desenhos urbanos mais tradicionais, como as casas
coloniais brasileiras (HOLANDA, 2010) ou aos bairros operários ingleses (MEIRA, 2013). Por
mais contraditório que pareça, a faixa de residências geminadas teve sua implantação iniciada
antes mesmo das superquadras, que foram projetadas e detalhadas cuidadosamente. A falta de
reconhecimento da tipologia unifamiliar das 700 como um "morar brasiliense" (MEIRA, 2014,
p.12), muito provavelmente devido ao fato de ser uma tipologia comum e tradicional (em
oposição ao novo conceito de morar proposto pelas Superquadras), acabou deixando a faixa
residencial à margem de preocupações patrimoniais e legislativas específicas, embora
arquitetonicamente o projeto original das casas vincule-se também ao modernismo da Escola
carioca (FICHER et al, 2010).
A inserção desse modo de morar criou uma dicotomia com o modelo originalmente proposto
baseado na “Unité d'Habitation” idealizada por Le Corbusier (FRAMPTON, 1997). As
superquadras e as unidades de vizinhança propostas por Costa agregam às unidades habitacionais
espaços coletivos como área verde, equipamentos públicos e comércios criando uma relação
morfológica entre espaços públicos e privados diferentes do modo de habitação tradicional
calcado no sistema lote individual. Mesmo quando Lucio Costa rediscute a cidade nos anos 1980,
as unidades geminadas são desconsideradas escala residencial, focando-se apenas nas Unidades
de Vizinhança (COSTA, 1987).
428
4
Figura 2. Processo construtivo tradicional – p.ex. tijolo cerâmico de 8 furos com estrutura
autoportante – aplicado nas casas geminadas da Asa Sul. (fonte: montagem elaborada pelas
autoras, 2022, com base em fotos do ArPDF).
Ante o exposto, essa pesquisa indaga de que modo essa dualidade moderna versus tradicional foi
implantada em termos urbanísticos e arquitetônicos, considerando-se que as casas das quadras
700 Sul são parte indissociável da escala residencial da cidade desde seu início. Meira (2013, p.
145) afirma que em conjunto com a superquadra esse “[...] modus vivendi tradicional, a casa
unifamiliar, [...] viria a transformar as relações entre as escalas e o próprio equilíbrio funcional
que sustentaria o sistema superquadra/comércio local/vias de serviço”. Vale destacar também que
o modelo de casa unifamiliar isolada em lotes será amplamente aplicado na construção das
“cidades satélites”, o que sugere que a escolha desse modelo tenha ligação com a renda dos seus
ocupantes, sendo o modelo mais aplicado à habitação popular em todo o país (BONDUKI, 2004).
Figura 3. Asa Sul à época da construção, vendo-se em primeiro plano as habitações geminadas
(quadras 706 e 707), em amarelo destacada a via W3 e ao fundo as superquadras (fonte: montagem
elaborada pelas autoras, 2022, com base em foto do ArPDF).
O que se pretende com esse posicionamento teórico é libertar o entendimento da arquitetura tão
somente a partir da leitura de rótulos que dependem de grupos e da sociedade como um todo e
que podem mudar com o tempo. Ou seja, são significados sobrepostos a arquitetura, uma
semântica, mas não são os elementos essenciais da arquitetura. De modo geral, “[...] as teorias
[em arquitetura] têm sido extremamente normativas, mas fracamente analíticas. Elas orientaram
o design, mas contribuíram relativamente pouco para a compreensão dos fenômenos
arquitetônicos. ” (HILLIER; HANSON, 1997, p. 01.3 - tradução nossaii) e percebe-se que muito
da produção atual em teoria e história da arquitetura replica este tipo de análise. Propõe-se que no
lugar de postular uma fórmula e tentar a qualquer custo encaixá-la em edifícios e cidades, se
estude o fenômeno em si para descobrir as suas relações intrínsecas. Em outras palavras, o que se
busca é a sintaxe, ou seja, aquilo que está contido na própria configuração da arquitetura, que se
mantém independente de tempo, lugar, sujeitos etc.
A relação abstrata entre o espaço e a vida social é representada e quantificada pela SE, por meio
da análise do encontrar, do ver e do mover-se, ou seja, como um espaço pode favorecer ou não
estas ações. A partir de parâmetros técnicos específicos, examina-se os graus de permeabilidade
do espaço e a sua transparência e opacidade, para assim verificar as consequências sociais de
determinada configuração.
Essa pesquisa aprofunda-se na escala dos edifícios, utilizando o método da Análise Gráfica Visual
(usamos a sigla em inglês VGA - Visual Graphic Analysis), a qual está relacionada a capacidade
de alcance visual, a partir da premissa de que o ser humano vê campos visuais diferentes à medida
que se movimenta no espaço. Proposta por Turner et al (2001), a VGA é uma adaptação da técnica
da isovista - num polígono definido por tudo que pode ser visualizado a partir de um determinado
ponto no espaço, em caráter local - que relaciona não apenas um ponto, mas todos os pontos
contidos no sistema. As modelagens quantificam globalmente as questões de visibilidade e
permitem observar a relação entre o comportamento humano e a configuração do espaço, pois,
“características qualitativas básicas do espaço como amplitude, permeabilidade, complexidade,
ordem e fechamento estão correlacionadas a atributos quantitativos simples de isovistas e grafos
de visibilidade” (BECK, 2011, p. 21).
430
6
As plantas das casas foram redesenhadas por meio de ferramentas computacionais de Desenho
Assistido por Computador – DAC (ou no mais usual, do inglês Computer Aided Design – CAD)
representando barreiras e permeabilidades visuais internas, como numa visão ao nível dos olhos,
com os seguintes critérios: portas e janelas limítrofes ao exterior foram desenhadas fechadas
(como se as cortinas estivessem cerradas p.ex.); portas internas mantêm-se todas abertas; meias-
paredes, diferentes níveis e escadas são tidos como barreiras; mobiliários fixos (como balcões de
cozinha e guarda-roupas) foram mantidos como barreiras e peças sanitárias foram
desconsideradas. Os pavimentos foram avaliados separadamente, entendendo-se que a mudança
da cota altimétrica é um elemento per si de segregação visual. É importante frisar que essa etapa
de análise e redesenho das plantas é de extrema importância, pois ela influencia diretamente nos
resultados. Os parâmetros escolhidos e a manipulação das informações definem que tipo de
relação com o espaço está sendo analisado e, portanto, permitem diversas modelagens.
Os desenhos em seguida foram levados ao software Depthmap que calcula os parâmetros grafo-
numéricos, entre eles a medida que foi aqui utilizada: integração visual, definida como o potencial
de um ponto ser visto ou percorrido, traduzindo-a em um sistema de cores. Cores mais quentes
representam ambientes que possuem maior visibilidade, estes sendo interpretados também como
ambientes que possuem maior hierarquia, destaque, importância etc. Cores frias, por sua vez,
representam ambientes dos quais pouco se vê ou se é visto, que tendem a ser menos importantes
no conjunto, ou ainda, ambientes de maior privacidade.
Podemos dividir a análise do nosso recorte geográfico nas seguintes escalas subsequentes:
primeiro temos a unidade habitacional que possui originalmente seis tipos de plantas; em segundo
nível temos os “blocos”, conjuntos de 6, 8, 10 ou 12 unidades geminadas (ou seja, sem recuos
laterais entre si); por fim, esses renques juntamente com os espaços livres e de circulação formam
as “quadras”. Anteriormente definiam-se 50 quadras com cerca de 90 metros de largura cada, mas
elas foram aglutinadas e atualmente são ao todo 13 quadras residenciais, da 703 a 715iii, que
correspodem ao tamanho médio e numeração das superquardas (ver figuras 4 e 5).
Figura 4. Desenho original datado de junho de 1960 com o projeto de locação das atuais quadras
715 (à direita) até a 708 (à esquerda), anteriormente numeradas de 50 a 19 (fonte: ArPDF).
Figura 5. Planta geral das quadras 700. Nota-se a diferença de implantação das quadras 707 a
703, projetadas posteriormente (fonte: elaborada pelas autoras com base nos dados da
georreferenciados da Codeplan).
3. Agenciamento urbano
Como dito, a demanda urgente por habitações levou à adição das quadras de habitações geminadas
unifamiliares a oeste da via W3 sul. A avenida, antes pensada como borda do tecido urbano,
serviria como uma grande via de serviços, sua margem mais próxima às superquadras seria
431
7
ocupada com garagens, oficinas, depósitos e comércios e a outra margem daria acesso a uma zona
de floriculturas, hortas e pomares (COSTA, 1956). Sem reconfigurar a característica de via de
serviços, projeta-se a adição das quadras residenciais. A via W3 é, então, a interface que agencia
a adição imprevista das quadras 700 ao Plano Piloto “original”.
Os renques de casas se organizam defronte à uma faixa de área verde non aedificandi que varia
entre 28 a 38 metros de largura (entre as fachadas dos edifícios), definida posteriormente como
“faixa de recreio” (COSTA, 2018, p.341). Representando uma inversão na lógica tradicional, o
acesso às áreas sociais se dá por esses jardins coletivos cujo ingresso é somente aos pedestres
enquanto, na extremidade oposta dos lotes, encontra-se a rua para veículos e as garagens
(definidas apenas nos desenhos partir de 1960). Meira (2013, p.146) considera que tal organização
transformou o “[...] jardim na ‘frente 'das casas a função de quintal” enquanto “os jardins públicos
à frente dos renques de casas são subutilizados”
O tecido urbano das 700 conforma uma mescla da morfologia urbana tradicional com traços dos
ideais do urbanismo moderno. A tipologia unifamiliar geminada enfileira-se de forma a configurar
432
8
as ruas locais como “ruas corredores” mas é conciliada a faixas non aedificandi, vastas áreas
verdes livres e as laterais das casas são posicionadas de modo a formar empenas cegas que faceiam
a avenida principal. Por vezes, como no caso da quadra 714 sul, as residências se entrosam com
pequenos blocos sobre pilotis. Esse agenciamento entre os ideais modernos vigentes e as
demandas imediatas por habitação durante o grande canteiro de obras forma, nas quadras 700, um
outro modo de habitar o Plano Piloto.
4. As unidades habitacionais
As casas das 700 se dividem em seis modelos distintos, com um ou dois pavimentos, denominados
Habitação Popular - HP (numerados de HP1 a HP6), agrupados em conjuntos, com “[...] grande
coerência de linguagem, reproduzindo – em maior ou menor escala – soluções características da
arquitetura modernista carioca” (FICHER et al, 2010, p.166). Oscar Niemeyer projetou 500
unidades residenciais nas quadras sul 707, 708, 711 e 712 para a Fundação da Casa Popular
(FICHER et al, 2010). A Quadra 713 é um projeto de João Filgueira Lima de 1961. Os desenhos
originais das casas foram localizadas no ArPDF.
A menor tipologia é a HP2, uma casa térrea com dois quartos com 7,9m de largura de lote. A HP1
é uma casa térrea com três quartos com 8,6m de testada. Com planta muito semelhante ao anterior,
o modelo HP4 difere-se por possuir 10m de frente. A casa tipo HP6 possui 3 quartos, banheiro,
sala estar e jantar, cozinha, quarto e banheiro de empregada em lote de 10m de testada. HP3 e
HP5 são casas de dois pavimentos que se diferem pelo tamanho dos lotes: 6,65m de frente na HP3
e 8m na HP5. Esta última possui também uma dependência de empregadas separada do corpo
principal da casa por uma área de serviço (ver Tabela 1).
Tabela 1. Descrição das tipologias habitacionais (fonte: elaborado pelas autoras, 2022).
Características
Tipos Testada Pavimentos Quartos DCE Área construída Data do desenho (ArPDF)
HP 01 8,6m Térrea 3 não 71,2m² Jul/1957
HP 02 7,9m Térrea 2 não 72,3m² Jul/1957
HP 03 6,65m 2 pav. 3 não 182,5m² Jul/1962
HP 04 10m Térrea 3 não 100m² Out/1957
HP 05 8m 2 pav. 3 sim 230,5m² Jul/1962
HP 06 10m Térrea 3 sim 140m² Nov/1957
Obs. Área construída calculada a partir de todo o perímetro da edificação, incluindo varandas e áreas de
serviço descobertas.
A partir dos resultados calculados pelo Depthmap pode-se interpretar algumas informações
referentes às casas HPs, as relações que seus espaços possuem entre si, bem como investigar os
efeitos das relações socioculturais sobre suas estruturas espaciais e vice-versa. Por mais que a
linguagem formal das habitações geminadas das quadras 700’s reproduza soluções modernistas,
como a eliminação de ornamentos historicizantes e a racionalização dos traços, assim como sua
própria produção, por materializar uma “busca pela racionalização e industrialização do sistema
de produção das moradias, de modo a reduzir seu custo” (BONDUKI, 2004, p.154), as plantas
dessas residências ainda apresentam uma rígida separação funcional que se articula ao “paradigma
dos setores” (AMORIM, 2008). É possível perceber isso em suas plantas baixas e de modo mais
claro nos mapas de visibilidade (Figuras 7, 89, 10, 11 e 12).
433
9
Figura 7. Planta baixa HP1 e respectivo mapa VGA (fonte: elaborado pelas autoras com base no
original disponível na ArPDF).
Figura 8. Planta baixa HP2 e respectivo mapa VGA (fonte: elaborado pelas autoras com base no
original disponível na ArPDF).
Figura 9. Planta baixa HP3 e respectivo mapa VGA (fonte: elaborado pelas autoras com base no
original disponível na ArPDF).
434
10
Figura 10. Planta baixa HP4 e respectivo mapa VGA (fonte: elaborado pelas autoras com base
no original disponível na ArPDF).
Figura 11. Planta baixa HP5 e respectivo mapa VGA (fonte: elaborado pelas autoras com base
no original disponível na ArPDF).
Figura 12. Planta baixa HP6 e respectivo mapa VGA (fonte: elaborado pelas autoras com base
no original disponível na ArPDF).
435
11
Pode-se notar a rígida separação entre o setor íntimo, o setor de serviços e o setor social, este
último, com exceção da planta HP5 (Figura 11), apresentando-se como área de grande integração
visual (variando de tons de vermelho a amarelo), indicando sua importância dentro do conjunto.
Nas casas HP1 e HP4 esses espaços serão os de maior integração visual da casa, enquanto nas
outras casas, HP2, HP3, HP5 e HP6, serão as zonas de transição os ambientes de maior controle.
Em todas as plantas os ambientes que apresentam tons mais frios no mapa VGA, ou seja, de onde
menos se pode ver os demais cômodos, são os quartos, banheiros e varandas. Em relação aos dois
primeiros, pode-se pensar no preceito da intimidade desses ambientes. No entanto, no que diz
respeito às cores azuis nas varandas, pode-se pensar que sua integração visual acontece
principalmente com o exterior da casa, permitindo, por meio de sua localização segregada da
maior parte da casa, a privacidade da família ao observador externo.
Na planta do térreo da tipologia HP5 outra área que chama atenção por seus tons frios, são o
quarto e banheiro de serviços, sendo estes os ambientes com a menor integração de toda a casa,
contrastando com as mesmas áreas na tipologia HP6, única outra que também possui
dependências de serviço. Enquanto na HP5 esses dois ambientes encontram-se totalmente
segregados do resto da cada, separados por uma área de serviço aberta, na HP6 essas áreas não só
espacialmente estão mais integradas à casa, mas se encontram mais visualmente integradas a ela
também, formando uma faixa de integração que parte da cozinha e alcança até o quarto de
serviços. A separação entre patrões e empregados, típica das casas coloniais e ecléticas brasileiras
(TRIGUEIRO; MARQUES, 2015) é, portanto, repetida ainda na dita “modernidade”.
Ademais, ainda nos projetos das plantas HP5 e HP6, é possível observar a cozinha ganhando mais
destaque e visibilidade dentro do espaço da casa, representada no mapa de VGA em tons de
amarelo e verde. Sugere-se, portanto, uma intenção - ainda que tímida - que surgia de integrar
mais esse espaço aos demais ambientes da casa, uma vez que a intimidade é garantida pela cota
altimétrica dos quartos. Podemos supor que essa solução antecipa, de certo modo, o fenômeno da
“socialização” dos espaços de cozinhar que ganhou cada vez mais força com o passar dos anos,
uma vez que nessas casas com uma reforma simples salas e cozinhas podem ser integradas
espacial e visualmenteiv.
5. “Minha casa, minhas regras”: sobre a (não)regulação urbanística das 700 sul
Como visto anteriormente, a habitação geminada das quadras 700 aparece no contexto do Plano
Piloto como um contraste, tanto em relação a sua morfologia e tipologias arquitetônicas quanto
em relação a sua forma de ocupação, muito mais próximas de um modo tradicional brasileiro de
habitar. Mesmo assim, inicialmente havia algo em comum entre os diferentes tipos de morar do
Plano Piloto: o parcelamento em conjuntos, semelhantes às projeções das superquadras,
garantiriam idênticos afastamentos, taxas de ocupação e gabarito para os renques de casas
geminadas do setor formando um volume visualmente singular e em fita disposto entre áreas
verdes públicas. A uniformidade e padronização eram defendidas por Lucio Costa, como percebe-
se no excerto a seguir:
Importa assinalar que, tal como nos prédios de apartamentos, as unidades
componentes de cada conjunto não poderão ser “individualizadas” (aspas do
autor) nem quanto às suas frontarias nem quanto aos muros ou gradis
separatórios das calçadas. Os ingleses nas cidades, inclusive aristocratas, moram
em renques de casas geminadas iguais (COSTA, 2018, p.341).
As residências, mesmo que previstas para contarem com uma uniformidade de leitura em suas
fachadas, com o tempo se diferenciaram entre si, muitas vezes em busca de identidade ou maior
segurança os moradores foram retirando ou substituindo partes da arquitetura original dos
edifícios. Destarte, elementos da arquitetura moderna presentes nas casas como cobogós e brises
solei (Figura 13) foram dando lugar a grades e toldos, os revestimentos passaram a ser escolhidos
de acordo com o gosto pessoal, às frentes das casas que davam para a área verde pública foram
436
12
se tornando entradas de serviço, algumas casas com acesso direto a W3 passaram a assumir usos
de serviço ou comércio como salões de beleza e pensões e em outras quadras até mesmo áreas
verdes lindeiras foram apropriadas como estacionamentos privativos.
Figura 13. Habitações geminadas HP1 recém-construídas na hoje denominada quadra 708
(Fonte: ArPDF)
Esse cenário deve-se ao fato de que o morar das SHIGS não é o mesmo das superquadras e,
portanto, não é visto como o morar moderno que se esperava da cidade planejada, mas sim um
morar mais próximo das habitações tradicionais. Assim, a área foi ofuscada e esquecida até
mesmo nas regulamentações de proteção patrimonial, sendo apenas recomendado a manutenção
dos parâmetros urbanísticos já existentes nos documentos de proteção do Conjunto Urbanístico
de Brasília como o Decreto nº10.829/87 (GDF, 1987) e a Portaria nº 314/92 (IPHAN, 1992),
relegando assim o controle do uso e ocupação do solo ao governo local. As principais normas e
legislações urbanísticas que afetaram a área das 700 foram os Códigos de Edificação de 1960,
1967, 1989 e o Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília - PPCUB, proposta de
2014 e ainda em desenvolvimento.
O Código de Edificação de 1960, primeiro da cidade, embora posterior ao início da ocupação das
casas do setor (de 1958), já trazia em si uma contradição. Apesar das primeiras casas construídas
serem térreas, o código de obras regulou-se pelas casas tipo HP3 e HP5 que possuíam 2
pavimentos. Desse modo, a reforma para adição de segundo pavimento nas residências existentes
foi permitida, o que afetou diretamente a pretensão de uniformidade das fachadas.
Em 1967, o novo Código de Edificações definiu pela primeira vez um zoneamento para os setores,
sendo o Setor de Habitações Individuais Geminadas Sul - SHIGS (sigla até hoje utilizada)
estabelecido como parte da zona residencial. Ou seja, o uso da terra foi considerado como
exclusivamente residencial, de tipo edilício de residências geminadas com até 2 pavimentos e
altura máxima de 7,00m, a taxa de ocupação permitida era de 100% do lote e era exigido que a
casa tivesse acesso tanto pelas áreas verdes quanto pela via de serviço. Nesse documento ainda
havia a preocupação que casas dispostas juntas deviam ser consideradas partes de um mesmo
conjunto no que tange a estética de suas fachadas.
O Código de Obras de 1989 (NGB 40/87, 1987) manteve o uso exclusivo da área como residencial
e o gabarito máximo de 2 pavimentos, acrescido de um subsolo optativo e que não é considerado
no cálculo de coeficiente de aproveitamento que foi definido com máximo de C.A= 1,8. Todos
os pavimentos, inclusive o subsolo, poderiam ter taxa de ocupação de 100%, desde que houvesse
área de no mínimo 1,5m de largura garantindo a ventilação e a iluminação natural. Ainda era
exigido a manutenção da geminação mesmo em reformas de adição do segundo pavimento, porém
nesse documento já não aparece mais a preocupação de manutenção da estética conjunta das
fachadas.
A proposta de minuta do PPCUB (2017) definiu o SHIGS como parte do Território de Proteção
oito - TP8 que trata da preservação da W3 Sul e Norte e áreas lindeiras. As quadras 700 sul
compõe a Unidades de Preservação - UP2. As recomendações para a área são a manutenção dos
parâmetros urbanísticos já existentes (taxa de ocupação completa, gabarito de 2 pavimentos,
437
13
coeficiente de aproveitamento de 1,8), porém admitiu-se aumento de 1,5m na altura máxima que
passou a ser de 8,50m.
Em prol de legalizar diversas situações já corriqueiras, principalmente por falta ou problemas de
acesso de automóveis às residências, já que algumas não apresentavam garagem em suas plantas
construtivas, foi-se utilizado o instrumento da outorga onerosa do direito de construir para
permitir aos moradores o cercamento de até 5m de área verde pública. As regras atuais da outorga
onerosa que permitem o avanço sobre área pública estão exemplificadas na Figura 14 que
representa um conjunto hipotético de casas:
Figura 14. Esquema mostrando as regras para os avanços permitidos (fonte: Elaboração própria)
O PPCUB também não faz nenhuma menção à necessidade de tratar as fachadas de um mesmo
renque de casas como uma unidade, tratando a diversificação das fachadas como dado
consolidado o que evidencia o argumento de Brandão (2013) de que a proteção e normatização
referente a área não devem buscar a manutenção de uma estética modernista por meio de fachadas
e elementos, que a muito já foram descaracterizados pelos moradores. A ideia é que se preservem
aspectos morfológicos que evidenciam a adoção de princípios da arquitetura modernista de
produção em série como nas casas geminadas alemãs, as Siedlungs, como p.ex.: os espaços livres
entre os conjuntos residenciais; o uso predominantemente residencial; a disposição em fita das
casas geminadas unifamiliares com 2 acessos e o gabarito máximo de 2 pavimentos. (BRANDÃO,
2013, p.316)
Pode-se perceber, portanto, que a legislação pouco fez para evitar ou fiscalizar as mudanças das
casas geminadas da 700 sul, principalmente no que tange a substituição dos revestimentos e a
descaracterização por meio da retirada e substituição de elementos da arquitetura modernista
(Figuras 15, 16, 17 e 18), não penalizando ou fiscalizando a área e até mesmo liberando certos
lotes para assumirem usos diferentes do original. A legislação, porém, garantiu que fossem
mantidas algumas características morfológicas indispensáveis, como os afastamentos e a taxa de
ocupação, além do gabarito que desde o primeiro código é de no máximo 2 pavimentos.
438
14
Figura 15. Vista da quadra 704 a partir da W3 (fonte: Google street view, jan. 2019)
Figura 16. Cercamento de área verde pública 711sul (fonte: Google street view, jan. 2019)
Figura 17. Edificação com 3 pavimentos e uso modificado (fonte: Google street view, jan. 2019)
439
15
Figura 18. Cercamento e edificação em área verde pública da 712 sul (fonte: Google street view,
jan. 2019)
Figura 19. Fechamento de passagem de pedestres para uso como garagem na 708 sul (fonte:
Google street view, jan. 2019)
Figura 20. Anúncio de casa a venda na 703 sul no qual fica explícito o desrespeito ao coeficiente
de aproveitamento dos lotes e ao Gabarito de 2 pavimentos (fonte: disponível em:
440
16
<https://www.dfimoveis.com.br/imovel/casa-4-quartos-venda-asa-sul-brasilia-df-shigs-703-
bloco-m-452739 >, grifo das autoras)
8. Considerações finais
Diversos autores sugerem que alterações feitas no projeto inicial da civitas não alteraram a
essência urbanística e simbólica de Brasília, mas alteraram a condição urbana, o assentamento no
território, a infraestrutura e a disposição funcional ao longo dos eixos viários estruturadores
(FRANCISCONI, 2011). Nesse sentido, a tipologia edilícia das habitações geminadas dispostas
em um sistema viário de desenho majoritariamente em cul-de-sac (ruas sem saída) representa um
contraste com a modulação residencial vertical Plano Piloto, que deixa livre os térreos com os
pilotis e com generosas áreas verdes. Esse espaço urbano distinto possibilitou experiências
urbanas diferentes daquelas vivenciadas nas Superquadras. O desenho mais tradicional em lotes
unifamiliares, mesmo que inicialmente definindo blocos uniformes, situado na franja de um tecido
moderno, inaugurou uma complexidade socioespacial imprevista pelo plano original.
O “habitar” é um fenômeno complexo ao trazer consigo uma riqueza de elementos sociais e
simbólicos. Entretanto, essas informações geralmente passam despercebidas pelos ocupantes (e
mesmo nas pesquisas arquitetônicas) pela sua trivialidade cotidiana, mas cujo estudo pode revelar
padrões espaciais que são “[...] regidos por convenções complexas sobre quais espaços existem,
como estão conectados juntos e sequenciados, quais atividades acontecem juntas e quais são
separadas”. (HANSON, 1998, p.2.)v No caso em análise, apesar da linguagem da caixa mural
remeter claramente às experiências modernistas da Escola carioca, o espaço doméstico ainda é
marcado pelos valores tradicionais da família patriarcal de ranço colonial, reproduzindo “antigos
modos de interface entre as comunidades de usuários domésticos (patrões, visitantes e
empregados) [...] e padrões sociais de controle e supervisão familiar” (ALDRIGUE, 2012, p. 61).
Ou seja, mesmo que mudanças plásticas, técnicas e espaciais sejam nítidas nas residências
algumas características são tão fortemente arraigadas à herança doméstica brasileira que
permaneceram quase inalteradas (AMORIM, 2008).
Essa dualidade entre tradição e modernidade é reforçada pelo “paradigma dos setores”
(AMORIM, 2001), premissa projetual que visa estabelecer a melhor articulação espacial dos
setores (social, serviço e íntimo) bem como a sua separação determina os modos de interação e
co-presença entre os grupos de indivíduos (moradores, visitantes e empregados), revelando uma
tendência à delimitação de cada grupo em uma zona definida pela setorização. Os projetos
reforçam a separação funcional, mas especialmente nas tipologias HP5 e HP6 já se percebe uma
maior articulação entre os espaços sociais e a cozinha. Esse achado corrobora com estudos
precedentes (ALDRIGUE, 2012; GRIZ, 2012; TRIGUEIRO; MARQUES, 2015; GURGEL,
2018) nos quais torna-se evidente que os paradigmas modernistas internacionais são apenas
parcialmente aplicados no Brasil, especialmente pensando que:
Apesar da crescente demanda por privacidade, o setor social expandiu-se em
área construída, porcentagem de espaço investido relativamente aos demais
cômodos, e número de espaços componentes – terraços, varandas, pérgolas,
bares e cozinhas ditas “americanas”. Na hipótese de não ter ocorrido um
enriquecimento em modos de convívio entre moradores e visitantes é de se supor
que essa expansão conote manifestação de status que parece ter atingido um
clímax (e ponto de inflexão) na virada das décadas de 1980 e 1990
(TRIGUEIRO; MARQUES, 2015, p.115)
Esse trabalho abre, portanto, um conjunto de desdobramentos. Em termos das edificações, seria
interessante avaliar as reformas para observar como as plantas originais favorecem ou não a
expansão do setor social comentado acima. Em termos de organização social, sugere-se avaliar a
distribuição de renda na área ao longo dos anos. Isso é particularmente relevante, porque falamos
aqui de tipologias habitacionais que parcamente (r)existem. Os modos de morar alteraram-se
consideravelmente nesses 60 anos de existência da capital brasileira. Essas casas, antes destinadas
às camadas mais pobres, hoje são comercializadas por altos valores de metro quadrado dada a sua
privilegiada localização e passam por acelerado e irreversível processo de descaracterização
441
17
(Figura 20). A maioria das casas das 700sul foi reformada, atualizadas interna e externamente. As
fachadas são particularmente chocantes em termos da preservação patrimonial. Pouco ou nada se
compreende os reques de casas como conjuntos unificados, embora alguns poucos exemplares
mantenham suas características originais. Parece-nos muito claro que a tipologia foi renegadavi –
por seus traços corriqueiros e “tradicionais” ou talvez por sua destinação como habitação popular
– frente aos edifícios de apartamentos das superquadras e seu desenho urbano avant-garde.
9. Referências
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espacial de residências unifamiliares dos anos 1970 em João Pessoa PB. 262 f. Dissertação
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Martins Fontes, 2009. (Coleção Mundo da Arte).
NOTAS
i
Após revisões no projeto vencedor do concurso, foi determinada uma sequência de alterações ao desenho
da proposta. Todo o Plano Piloto é deslocado na direção leste para se aproximar do lago e amplia-se o
centro urbano, para dar espaço aos equipamentos alocados nos setores centrais (GOVERNO..., 1985).
Também são inseridas quatro novas faixas de ocupação, paralelas ao eixo leste-oeste, que alargam o Plano
Piloto na sua extensão norte-sul. São elas: as quadras 700, destinadas a residências unifamiliares geminadas,
na borda oeste; e, foi criada mais uma sequência de superquadras do lado leste, as quadras 400, compostas
por edifícios multifamiliares econômicos de apenas três andares (originalmente, essa porção acomodaria as
Embaixadas e não tinha destinação de uso residencial). Em complementação, à leste; e face às 400 e às 700,
em ambos limites leste e oeste, são adicionadas as faixas das quadras 600 e 900, destinadas a grandes lotes
institucionais (MEIRA, 2013).
ii
No original: “We might say that theories have been strongly normative but weakly analytic. They have
guided design but contributed relatively little to general understanding of architectural phenomena.”
iii
As quadras de final 01 (p.ex. 701 ou superquadra 301) não existem pois foram destinadas ao alargamento
do centro comercial da cidade. A 702 é destinada a equipamentos como escolas e igrejas e a 716 é o setor
hospitalar sul.
iv
Em uma possível contuidade dessa pesquisa, sugere-se investigar como e porque os moradores
modificaram esses projetos originais por meio de reformas.
v
No original: “[...] governed by intricate conventions about what spaces there are, how they are connected
together and sequenced, which activities go together and which are separated out [...]”.
vi
O mesmo parece se repetir em outros enclaves urbanos no Plano Piloto: a Vila Telebrasília e a Vila
Planalto, antigos acampamentos das obras que passam nos últimos anos por processos de gentrificação
(PACHECO, 2015).
Entrelinhas: análise da expansão urbana de Moreno/PE
através da Sintaxe Espacial
Rafaella dos Santos Cavalcanti
PPG-FAU/UnB, sc.rafaella@gmail.com
Resumo. O presente trabalho analisa diacronicamente a forma de expansão urbana de Moreno/ PE, entre
1844 a 2020, com o intuito de contribuir com o processo historiográfico e de planejamento urbano da
cidade. Tem como base teórico metodológica a Sintaxe Espacial, mais especificamente a análise topológica
com as medidas de integração local (R3), global (RN), conectividade, sinergia e inteligibilidade, bem como
a análise angular com as variáveis NAIN e NACH. Dentre os principais resultados obtidos constata-se
que: a construção da Estrada de ferro (1885), e principalmente a introdução do Cotonifício (1907), foram
fatores impulsionadores para a consolidação da cidade de Moreno; a “Estrada Real”(1844), por onde
hoje passa a Avenida Cleto Campelo, ao longo da história fortaleceu seu papel enquanto lugar mais
dinâmico e acessível de Moreno, concentrando as principais atividades de serviços e comércios; o
surgimento de novas centralidades a partir da década de 50; e a formação de caminhos hierárquicos
distribuídos por toda a cidade como resultado da expansão urbana. Por fim, como observado em outros
estudos, verifica-se que através da sintaxe espacial é possível contribuir com novas formas de leituras
sobre a história da cidade, além de gerar informações estratégicas que auxiliem o processo de
planejamento urbano.
Palavras-chave. história da cidade, sintaxe espacial, acessibilidade, cidade média, centralidades.
Between the lines: analysis of the urban expansion of Moreno/PE through Space Syntax
Abstract. The present article shows a diachronic analysis of the urban expansion of Moreno/PE, between
1844 and 2020, in order to contribute to the historiographical and urban planning process of the city. It
uses Space Syntax as its theoretical and methodological basis, more specifically the topological analysis
with measures of local integration (R3) and global integration (RN), connectivity, synergy and
intelligibility, as well as the angular analysis with variables NAIN and NACH. As the main results, the study
verified that: the construction of the Railroad (1885), and especially the introduction of Cotton Wool (1907),
were important factors for the consolidation of Moreno; the “Royal Road” (1844), currently known as
Cleto Campelo Avenue, has been the most dynamic and accessible place in the city of Moreno throughout
its history, concentrating the main activities in services and trade; the emergence of new centralities from
the 1950s; and the formation of hierarchical paths distributed throughout the city as a result of the urban
sprawl. As observed in other research studies, the use of Space Syntax allows for the elaboration of new
perspectives about the history of the city and provides strategic information that may be useful in supporting
future urban planning initiatives in the city.
Keywords: city history, space syntax, accessibility, medium city, centralities.
444
445
2
1.Introdução
Apesar da existência de importantes trabalhos que contemplam a história do município de
Moreno/ PE, desenvolvidos tanto por instituições públicas (ex.: IBGE e trabalhos acadêmicos) e
privadas (são comuns a existência de sites não oficiais que narram a história da cidade), observa-
se a falta de uma leitura mais aprofundada sobre a expansão urbana da cidade capaz de identificar
o desempenho da sua estrutura urbana e assim contribuir com o seu planejamento.
Mas como aferir esse desempenho da estrutura urbana? Como medir o impacto da rede de
caminhos de uma cidade na vida das pessoas ao longo da sua história de forma a contribuir com
seu processo de planejamento urbano? Com base nestes questionamentos, o presente trabalho tem
como objetivo analisar a expansão urbana da cidade de Moreno/ PE, entre 1844 a 2020, através
da sintaxe espacial a fim de contribuir com o processo de historiografia e planejamento urbano da
cidade.
Para isto, este estudo tem como foco de abordagem os conceitos teóricos e os instrumentos
metodológicos da Sintaxe Espacial, a qual permite explorar de diversas maneiras como a forma
urbana pode afetar a vida das pessoas; e é amparado por dados históricos sobre a cidade, desde
sua formação até os dias atuais, e que foram fundamentais para a realização da análise de expansão
urbana. Os conceitos de centralidade e cidade média são complementares e perpassam tanto as
abordagens da sintaxe espacial como fazem parte do processo histórico em curso das cidades do
Nordeste do Brasil.
O conceito de centralidade, porém, pode ser alargado para além das questões demográficas e
econômicas, quando é possível analisá-lo no decorrer do processo histórico de transformação do
espaço urbano. Esse processo que é sócio-espacial pode ser espontâneo ou resultado de um
planejamento estratégico do conjunto de agentes (públicos ou privados) estruturadores do espaço
urbano, onde alguns centros urbanos formam caminhos centrais e com algum grau de hierarquia.
Nesse contexto espacial de centralização, toda estrutura do sistema urbano brasileiro é
configurada, definindo a importância de cada centro na hierarquia das cidades. As cidades médias
exercem a função de centro urbano, atuando como base para as atividades econômicas juntamente
com o conjunto de cidades do núcleo de sua rede urbana. Essas cidades também construíram
relações com as demais redes urbanas regionais, nacionais e internacionais. No Nordeste do
Brasil, atualmente, as cidades médias mantém relações com o mundo globalizado, construindo
com este “uma nova rede geográfica superposta” (PONTES, 2012, p.27) que é compartilhada com
suas esferas de influência (localidades rurais, cidades próximas ou afastadas, aonde uma cidade
média chega por alastrar sua influência).
As cidades médias podem ser referenciadas, segundo o geógrafo Janio Santos (2012, p.132), como
“cidades ou centros regionais e cidades intermediárias”, destacando também seus tipos – a) lugar
central; b) centro de drenagem e consumo da renda fundiária; c) centro de atividades
especializadas. O primeiro tipo corresponde a uma região afastada de áreas urbanas ou centros
metropolitanos ou culturais mais importantes, concentrando ofertas de bens e serviços (comércio
varejista e serviços diversificados) para uma capital regional dotada de grande influência espacial.
O segundo tipo representa localidades de caráter pastoril e agrária, marcadas pela presença da
grande propriedade rural e pelas áreas implantadas pelo complexo agroindustrial. O terceiro tipo
concentra setores que geram relações espaciais hierárquicas e superpostas entre cidades em rede
nacional e internacional respectivamente. Contudo, os parâmetros e critérios para definir uma
cidade média, não são únicos e não se tem um consenso conceitual sobre essa categoria, mas:
É justamente a função que elas exercem em relação às demais, o que faz com que sejam
classificadas como médias ou intermediárias, quase sempre com base em determinado
contexto. Noutras palavras, simplificadamente, o que lhes dá identidade é o fato de se
constituírem em nós da rede urbana, atuando como pontos de prestação de serviços à sua
área de influência e possibilitando, assim, a articulação entre centros urbanos maiores e
menores (Branco, 2007; Corrêa, 2007). Conforme Sposito (2007), a compreensão das
cidades médias enquanto um fenômeno requer a reflexão sobre dinâmicas e processos nos
446
3
quais se encontram envolvidas, o que remete à sua própria condição relativa, por vezes
transitória. (DIAS; VIDAL, 2012, p.157)
Na pluralidade dessas definições, destaca-se a importância do contexto em que cada cidade média
foi se desenvolvendo, além da reflexão sobre as dinâmicas e os processos inseridos em seu espaço
ao longo do tempo. O espaço urbano do Nordeste, principalmente, o das cidades médias foram
sofrendo transformações ao longo da história. Muitas dessas cidades nordestinas exerceram desde
cedo uma posição de “polo regional” (PONTES, 2012, p.28) através das atividades do comércio
de além-mar, principalmente, a produção açucareira e os caminhos de conexão que foram travados
na região em seu entorno. O fim do século XVI marcou o período do começo e da ampliação da
participação holandesa no transporte do açúcar do Nordeste do Brasil para o Norte da Europa. As
refinarias de açúcar surgiram em número considerável nos Países Baixos, ampliando a
participação do açúcar brasileiro na economia holandesa direta ou indiretamente via Portugal
entre os anos de 1609-1621, com o protagonismo da Companhia das Índias Ocidentais.
O historiador José Antônio Gonsalves de Mello, em sua obra “Fontes para a História do Brasil
Holandês” (1981) mostra a produção açucareira do Nordeste (Pernambuco, Itamaracá e Paraíba)
que por volta de 1623, havia 137 engenhos, produzindo 700.000 arrobas. A produção do açúcar
permitiu a formação das “áreas açucareiras", como destaca o mesmo historiador ao mostrar a
importância do ponto de vista da localização geográfica desses pontos (MELLO, 1981, p. 11).
Pontos ou “áreas açucareiras” que atraíram desde cedo uma rede globalizada de interesses
comerciais com sede em cidades holandesas, principalmente, na cidade de Amsterdam. Um
documento holandês citado pelo referido historiador sobre a “Exposição relativa ao início e
progressos da navegação e comércio do Brasil”, com papéis que datam do ano de 1622 revelam
a rede de conexões que existia entre as “áreas açucareiras” do nordeste brasileiro e as refinarias
de açúcar das cidades holandesas:
(...) o mais notável proveito que este país retirou desse comércio, foi a refinação do açúcar,
que de 3 ou 4 que existiam há 25 anos são agora 25 refinarias somente na Cidade de
Amsterdam, uma em Delft, duas em Middelburg e uma no interior, na aldeia de Wormer,
as quais refinam muitas mil caixas de açúcar, sendo 1.500 caixas apenas em uma delas.
(MELLO, 1981, p. 09)
Os principais engenhos das margens do rio Jaboatão, na época dos holandeses, estavam
localizados na jurisdição de Olinda que era dividida em 8 freguesias: mais ao Sul, a do Ipojuca,
seguindo-se ao de Santo Antônio do Cabo, a da Muribeca, a de Santo Amaro do Jaboatão, no vale
do rio Jaboatão (região da formação da cidade de Moreno), a de São Lourenço, a da Várzea, a de
447
4
estação da Ilha, embora o frete daquela estação seja um pouco mais elevado que o das
barcaças. (MILET, 1989, p. 58)
Figura 1. Linha férrea do Nordeste: Estação Moreno. Figura 2. Regionalização: Rio Grande do
Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas (fonte: vico.brazilia.jor.br/mapas.ferroviarios/)
O referido engenheiro, porém, revela a importância do transporte ferroviário que promoveu o
aparecimento de novos engenhos e o aumento da produção dos velhos, além do crescimento de
cidades situadas a algumas dezenas de quilômetros da costa. A área açucareira próxima ao rio
Jaboatão, na região da formação do município de Moreno, conviveu com a implantação de novos
equipamentos nessa época, como a usina. O uso tardio da malha ferroviária também foi dividida
com a antiga utilização das estradas de terra e das vias fluviais-marítimas, revelando a produção
de várias centralidades e acessibilidades na referida região.
A virada para o século XX foi marcada pela formação do núcleo fabril em muitas localidades de
Pernambuco, inclusive em Moreno. A formação do núcleo fabril de Moreno, somada com a
emancipação da região, desprendida do município de Jaboatão, veio finalmente pontuar o
significado de sua história espacial definida por centralidades. Estas (centralidades) apoiadas por
suas vias de acessibilidade orientaram sua forma urbana, até chegar a sua constituição
contemporânea como cidade média e núcleo da rede Recife. Questões que serão desdobradas a
seguir.
Nesse sentido, o artigo está estruturado em cinco partes. A primeira parte traz uma rápida narrativa
sobre a história de Moreno durante os séculos XVII ao XXI. A segunda se dedica a uma breve
discussão a respeito da Sintaxe Espacial com teoria e ferramenta metodológica. A terceira contém
a descrição dos procedimentos metodológicos para a realização desta pesquisa. A quarta apresenta
os resultados e discussões obtidos com este estudo. E por fim, a quinta e última parte, contempla
as devidas considerações finais.
De acordo com Medeiros (2018), a vinda dos irmãos Moreno ocorreu no início do século XVII,
mais precisamente no ano de 1601, quando os mesmo adquiriram as terras do Engenho Nossa
Senhora da Apresentação, na margem esquerda do Rio Jaboatão, a oeste da Freguesia de Santo
Amaro do Jaboatão, e que depois passou a ser chamado de Engenho Morenos. Na época dos
holandeses, “é engenho d'água" (MELLO, 1981, p. 146) e ainda pertencia a Baltasar Gonçalves
Moreno. Com a morte de Baltasar Moreno, a propriedade foi vendida pelos herdeiros ao brasileiro
Antônio de Souza Leão (IBGE, 1958). Porém, segundo Medeiros (2018), o engenho passou por
vários proprietários, até que, em 1850, foi adquirido pela família Souza Leão, a qual mantém a
propriedade entre seus herdeiros até os dias de hoje.
450
7
Outro fato importante relacionado com a história da cidade de Moreno foi a visita do Imperador
Dom Pedro II aos Engenhos São Sebastião e Morenos, em meados do século XIX, mais
precisamente em 1859 (LIMA, 2011). Como resultado da visita, o Imperador concedeu o título
de Barão de Moreno a Antônio de Souza Leão, bem como o de Baronesa a sua esposa, Dona
Maria Amélia de Souza Leão (IBGE, 1958).
Enfatizar-se que naquele tempo a então sede do município era o Engenho São Sebastião,
igualmente conhecido como Engenho Catende (MEDEIROS, 2018) e que era de propriedade dos
Souza Leão. Além disso, pelo Engenho passava a Estrada Real [segundo Lima (2011), foi
atribuído o nome Estrada Real devido ao seu sistema de construção importado da Europa, sendo
uma das três primeiras estradas construídas no Brasil no processo de macadame], que era a
principal via de conexão com outros municípios na época, e que serviu de passagem para o
Imperador quando ele visitou a região.
No final do século XIX, em 1885, chega às terras do Engenho São Sebastião a Estrada de Ferro,
que contribuiu para fortalecer a fixação de pessoas na localidade. Segundo com Lima (2011) o
projeto original determinava que haveria uma estação no Engenho Morenos e outra no Engenho
Tapera, no intuito de impulsionar o transporte da produção de açúcar de todas as propriedades da
região. No entanto, o barão Antônio de Souza Leão não permitiu que construíssem a estação
ferroviária na propriedade, colocando outros de seus engenhos à disposição, sendo então
escolhido o Engenho São Sebastião.
Pode-se dizer que a chegada da linha férrea favoreceu um maior fluxo de pessoas naquele lugar,
visto que possibilitou a comercialização de mercadorias com outras localidades. Do mesmo modo,
a sua implantação foi um fator impulsionador para a instalação de um importante núcleo fabril
nas proximidades, que mudaria por completo a história de Moreno.
Em linhas gerais, o período fabril poder ser compreendido em três fases (LIMA, 2011): 1) a fase
de implantação do núcleo fabril que correspondeu ao Período Belga (1907 - 1917) núcleo este
que corresponde à a cidade de Moreno (distrito sede do município); 2) fase de expansão do “Lugar
Belga” referente ao período Belgo-Britânico (1917-1948), momento em que foi acrescida à
tessitura do núcleo fabril uma quantidade significativa de intervenções urbanísticas; 3) Fase de
Transição do núcleo fabril que correspondeu ao período Belgo-Holandês (1948 - 1966), momento
em que se desaceleram as obras de intervenção urbanística no núcleo fabril.
Medeiros (2018) reforça que entre 1920 e 1933 foi o período de expansão do projeto da cidade
industrial, para atender à demanda crescente por operários,
Foram construídas 36 novas vilas operárias, que triplicaram a oferta de moradia na cidade,
além do Mercado Central (1922), Praça das Bandeiras (1923), Igreja Matriz de Nossa
Senhora da Conceição (1930) e obras de infraestrutura como calçamento de ruas, rede
elétrica e esgotamento sanitário(...). Até o fim da década de 1940 ainda houve o acréscimo
de algumas vilas operárias e equipamentos pela SCBB, que expandiu a ocupação urbana
para a margem direita do Rio Jaboatão. (MEDEIROS, 2018. p. 49)
Atualmente, conforme relatado por Medeiros (2018), Moreno pode ser entendida como uma
cidade dormitório. A efervescência econômica que a cidade viveu do início até a metade do século
XX foi de suma importância para o seu desenvolvimento enquanto cidade, e que pode ser
compreendido como um período áureo da sua história.
452
9
De modo geral assume-se, num primeiro momento, que muitos dos deslocamentos realizados
pelas pessoas dependem menos da distância física e mais de como elas decodificam o espaço.
Esta visão, advinda da sintaxe, parte da lógica topológica, visto que é considerado a maneira como
estão conectados os elementos que formam uma rede de caminhos, e não a distância física entre
eles, e através dessas conexões o que torna alguns espaços mais acessíveis do que outros.
No entanto, com o tempo, a Sintaxe Espacial foi sendo aprimorada e as distâncias métricas foram
incorporadas às análises, como pode ser observado na análise angular de segmentos. Isso permitiu
ampliar as possibilidades de investigação, além de proporcionar o estabelecimento de diferentes
raios métricos de alcance de acordo com as questões de pesquisas levantadas e obter uma análise
de acessibilidade mais detalhada. Segundo Medeiros (2006), tal incorporação possibilitaria uma
integração mais consistente entre as características topológicas e geométricas nas pesquisas
configuracionais.
Para elaboração da análise topológica na Sintaxe, são desenhadas linhas retas longas possíveis de
representar a expansão máxima de um ponto no espaço, e que são denominadas de linhas axiais.
Essas linhas compõem a rede de caminhos de um determinado lugar e esses caminhos podem ser,
por exemplo, os percursos realizados pelos pedestres e veículos, resultando no mapa de eixos
axiais.
Já a análise angular de segmento, pode derivar do mapa de eixos axiais, ou das roads centre lines,
mas com um “rompimento das linhas” nos pontos em que elas se cruzam (na interseção dos eixos)
para se transformarem em segmentos. Na sequência, pode-se aferir medidas de acessibilidade
espacial baseando-se no ângulo formado entre dois ou mais segmentos juntamente com a
indicação do raio métrico de interesse do estudo (por exemplo, com a delimitação de uma área de
investigação considerando um raio de 400 m caminhável).
Como exemplo de variáveis topológicas e angulares, que por sua vez estão sendo adotadas neste
estudo e são definidas por Medeiros (2020), têm-se:
453
10
É importante ressaltar que há outros métodos de análise espacial que integram a Sintaxe Espacial,
como por exemplo a análise do gráfico de visibilidade -VGA proposto por Turner et al (2001).
Entretanto, para a realização deste trabalho de análise da expansão urbana da cidade de Moreno,
adotou-se como ferramenta de investigação as análises topológicas e angulares visto o problema
de pesquisa em questão.
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11
4. Procedimentos Metodológicos
Para atender ao objetivo proposto, a pesquisa foi dividida em três etapas:
Já a partir dos anos cinquenta houve uma desaceleração das obras de intervenção urbanística no
núcleo fabril (LIMA, 2011). No entanto, de acordo com os mapas históricos analisados, foi a
partir dessa época que se iniciou um processo acelerado de expansão urbana, conforme pode ser
visualizado no gráfico 1 e na figura 4.
Destaca-se também que o número de linhas axiais e de segmentos crescem na mesma proporção
que das manchas urbanas, porém com um crescimentos mais acentuado a partir de 1984 (ver
gráfico 2), o que está relacionado com o aumento do número de caminhos. O mesmo não ocorre
com o comprimento médio das linhas e dos segmentos, pois o que se observa é uma diminuição
gradativa ao longo dos anos, podendo estar atrelado a forma mais orgânica que o tecido urbano
vai assumindo, e a quantidade novos cruzamentos que são gerados, que podem interferir no
tamanho dos segmentos (ver gráfico 3 e figura 5).
O número e o comprimento de linhas por km² varia em todo o período analisado (ver gráficos 4
e 5). Contudo, entre 1950 a 1984, há uma queda nos valores o que pode estar relacionado a
presença de vazios urbanos. Entretanto, a partir dos anos 80 verifica-se um novo crescimento e
que muito provavelmente está relacionado ao estabelecimento de novas vilas operárias (1980 -
1990), loteamentos formais (década de 80) e construção de vilas populares (2000-2010) conforme
citado por Medeiros (2018).
Gráfico 4. Número de linhas/eixos por Km² (fonte: elaborada pelos autores). Gráfico 5.
Comprimento de linhas/eixos (em Km) por Km² (fonte: elaborada pelos autores).
457
14
Gráfico 6. Valores de Int. Global (Rn) e Int. Local (R3) de Moreno/ PE por períodos históricos
(fonte: elaborada pelos autores). Gráfico 7. Valores de conectividade por períodos históricos
(fonte: elaborada pelos autores).
De acordo com o gráfico 8, verifica-se que o maior grau de legibilidade do sistema ocorreu em
1917, existindo depois uma queda abrupta nos valores, ou seja, observa-se que as linhas mais
conectadas são do mesmo modo as mais integradas na esfera global. No entanto, o mesmo
resultado não é possível ser verificado depois 1917, pois o que se observa é uma correlação cada
vez mais fraca entre essas duas várias.
Gráfico 8. Valores de inteligibilidade por períodos históricos (fonte: elaborada pelos autores).
Gráfico 9. Valores de sinergia por períodos históricos (fonte: elaborada pelos autores).
Por fim, através do resultado de análise de sinergia (ver gráfico 9), percebe-se uma sincronicidade
entre os valores de integração local e global até 1948, ou seja, uma correlação entre essas
variáveis. Porém, essa correlação vai se enfraquecendo à medida que a cidade vai se expandindo,
o que pode ser observado através das figuras 6 e 7. Neste caso, num primeiro momento as linhas
mais acessíveis (vermelhas) tanto global quanto local são praticamente as mesmas até 1948,
havendo uma significativa modificação logo depois, com o aparecimento de novas centralidades
e o enfraquecimento daquelas mais acessíveis, como o eixo principal de integração que ficava
próxima a Estação do Trem e ao Cotonifício (ver figura 7).
459
16
Figura 6. Mapa axial de integração global de Moreno/ PE por períodos históricos - Quanto mais
próxima da cor vermelha, as linhas são mais acessíveis em relação a toda rede de caminho, ou
seja, elas têm o potencial de gerar um maior movimento natural. E, quanto mais próximas da cor
azul, mais segregados são os espaços e de difícil acesso, de forma que para chegar neles é preciso
percorrer um longo trajeto (fonte: elaborada pelos autores).
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17
Figura 7. Mapa axial de integração local de Moreno/ PE por períodos históricos - Quanto mais
próxima da cor vermelha, as linhas são mais acessíveis em relação a toda rede de caminho, ou
seja, elas têm o potencial de gerar um maior movimento natural. E, quanto mais próximas da cor
azul, mais segregados são os espaços e de difícil acesso, de forma que para chegar neles é preciso
percorrer um longo trajeto (fonte: elaborada pelos autores).
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18
Gráfico 10. Valores de NAIN e NACH por períodos históricos (fonte: elaborada pelos autores).
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19
Figura 8. Mapa de integração normalizada -NAIN- Moreno/ PE por períodos históricos - Quanto
mais próxima da cor vermelha, as linhas são mais integradas em relação a toda rede de caminho.
E, quanto mais próximas da cor azul, mais segregados são os espaços e de difícil acesso (fonte:
elaborada pelos autores).
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Figura 9. Mapa de escolha angular normalizada -NACH- Moreno/ PE por períodos históricos -
Quanto mais próxima da cor vermelha, há maior probabilidade dos caminhos serem mais
utilizados em relação a toda rede de caminho (fonte: elaborada pelos autores).
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21
6. Considerações Finais
Analisar a expansão urbana da cidade Moreno/ PE através da Sintaxe Espacial possibilitou
compreender este fenômeno para além das formas tradicionais de análise, ou seja, aquelas que
tem como foco dos dados históricos e suas demarcações no espaço, mas sem nenhuma análise
mais aprofundada sobre o impacto dessa rede de caminhos no cotidiano das pessoas ao longo do
tempo. Assim, por meio deste estudo pode-se verificar de forma quantitativa e qualitativa, o papel
dessa rede, como ela se configurou e como tem contribuído para a acessibilidade, o movimento
natural, das pessoas dentro do seu núcleo urbano de Moreno. Por essa razão, a leitura da sintaxe
da forma urbana tem relação com as práticas sociais que conformam a cidade, permitindo a
compreensão lógica dos arranjos morfológicos e configurações espaciais ao longo do tempo.
Como principais resultados obtidos, destaca-se o importante papel durante toda a história da
antiga “Estrada Real”, hoje conhecida como Avenida Cleto Campelo, como uma grande
centralidade urbana, que contempla desde sua origem uma grande diversidade de usos
fundamentais para a história e vida de Moreno/PE. Portanto, ela (Estrada) representa o
“movimento natural” das pessoas, marcado desde a origem, pelos engenhos d`água da região e
usinas, até o desenvolvimento da fábrica de tecidos. Esse momento que figura a passagem do
engenho à fábrica constitui a formação do núcleo de Moreno, permitindo a identificação da
tendência à concentração de certas atividades principais da cultura regional. Há também uma
lógica invariável que conecta a configuração espacial com a geração do referido “movimento
natural”, compondo o núcleo central irradiador de caminhos possíveis para expansão. Ao longo
dos séculos analisados, a antiga Estrada Real continua como o maior eixo integrador da cidade, o
que potencializa o “movimento natural”. Essa conclusão corrobora com a teoria da lógica social
do espaço, reafirmando que as vias com maior potencial de movimento natural, tende a atrair
comércio e serviços para essas localidades.
A expansão urbana da cidade de Moreno foi marcada por retrações e expansões que redesenharam
seu núcleo fabril e proximidades, assumindo mais tarde manchas urbanas e linhas axiais e de
segmentos que, ao longo do tempo se desarticularam. A predominâcia da forma orgânica - que
vai se fixando com a quantidade de novos cruzamentos - interferiu no tamanho das linhas e suas
conectividades e correlações com a integração/ acessibilidade local e global do tecido urbano.
Esse processo histórico de mudança do desenho urbano da cidade inicia-se na primeira década do
século XX, prosseguindo até os anos de 1950, quando acontece uma expansão urbana retraída e
restrita ao núcleo fabril. Nos anos de 1950 - 1980, há um processo acelerado de expansão das
linhas axiais e de segmentos com a mesma proporção das manchas urbanas, mas com a
diminuição do comprimento desses traçados. Observa-se ainda que o processo de expansão, que
se intensifica a partir da segunda metade do século XX, levou ao surgimento de novas
centralidades em diferentes partes da cidade. Estas, aparentemente, parecem ser pouco exploradas
pelo Município, e tem um grande potencial para implantação de novos negócios locais na cidade,
sejam eles de serviço, comércio e lazer, além de fortalecer o deslocamento a pé nessas áreas e
proporcionar diversos outros benefícios como, por exemplo, a saúde e bem estar das pessoas, ao
meio ambiente e a economia local. Apesar de algum crescimento relativo do tecido urbano através
de novos loteamentos formais, construções de vilas operárias e populares (1990 - 2010), a
presença de vazios humanos contribuiu para o crescimento orgânico da forma urbana.
A identificação da formação de novas centralidades, contudo, revela também a potencialidade de
articulação entre as linhas do desenho urbano atual que é formado por um sistema hierárquico de
vias. Esse sistema é capaz de ligar todo o território de forma a aprimorar a ocorrência do
“movimento natural”, possibilitando a conexão com o núcleo urbano. Também é preciso destacar
que a forma resultante da ampliação da rede de caminhos da Cidade ao longo dos três séculos
apresenta (através dos resultados obtidos com a variável de escolha normalizada) uma forte
hierarquia de vias bem definidas, que se distribuem capilarmente e equitativamente por todo o
território. Além disso, a identificação desses caminhos hierárquicos pode servir como base para
tomadas de decisões estratégicas de intervenção urbana que visem o melhoramento de trajetos,
465
22
uma vez que demonstra uma forte correspondência entre o potencial da configuração urbana e o
movimento natural em toda a rede de caminhos de Moreno.
Por se tratar de uma cidade com relevo irregular, com a presença de morros em várias localidades,
pontua-se a necessidade de desenvolvimento de novos trabalhos para uma melhor compreensão
da rede de caminhos existentes. Assim novos estudos que considerem essas variações de relevo
serão essenciais para que exista uma simulação cada vez mais aproximada da realidade local. Para
mais, ressalta-se a necessidade de estudos exploratórios que utilizem diferentes raios angulares
para melhor compreender o potencial das centralidades existentes.
Por fim, através da utilização da ferramenta da sintaxe espacial, verifica-se que é possível
contribuir com o processo de historiografia e planejamento urbano das cidades brasileiras,
conforme já demonstrado em outros trabalhos. Para as cidades de pequeno e médio porte tal
importância é compreendida tanto pelo fortalecimento e pela preservação das suas histórias,
quanto em termos de suporte técnico para os planejadores urbanos locais, visto a escassez de
recursos, equipes reduzidas de trabalho e, assim, a necessidade ações cada vez mais precisas e
cirúrgicas neste territórios.
7. Referências
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MILET, Henrique Augusto. A lavoura da Cana de Açúcar. Recife: FUNDAJ, minC, série
república, vol. 5, 1989.
Imagens e vídeo
Resumo. O artigo investiga a expansão urbana de Ipatinga-MG a partir da Teoria da Sintaxe Espacial,
considerando cinco momentos distintos. Parte do traçado original da cidade no período da construção da
Usiminas e de sua Vila Operária em 1958, passando pelos anos de 1980, 2004, 2020, e considerando um
cenário futuro proposto no Plano de Mobilidade da cidade. A metodologia considerou os aspectos teóricos,
metodológicos e ferramentais da Teoria da Sintaxe Espacial, com uso do DepthmapX®, integrado ao
Qgis®, a partir levantamento documental nos arquivos da Prefeitura Municipal de Ipatinga. Assim, análise
do crescimento diacrônico da cidade é examinada a partir dos contributos analíticos advindos da Teoria
da Sintaxe Espacial principalmente sob a ótica da mobilidade urbana e fornece aportes para examinar seu
o planejamento futuro. Os resultados obtidos apontam que a segregação socioespacial na cidade está
diretamente ligada a segregação configuracional, tendo em vista uma dualidade em seu processo de
expansão caracterizado por umo planejamento urbano inicial e uma ocupação espontânea posterior.
Spatial configuration and urban expansion of Ipatinga-MG from the Space Syntax
Theory
Abstract. The article investigates the urban expansion of Ipatinga-MG from the Space Syntax Theory,
considering five different moments. Part of the original layout of the city in the period of construction of
Usiminas and the Vila Operária in 1958, through the years 1980, 2004, 2020, and considering a future
scenario proposed in the city's Mobility Plan. The methodology considered the theoretical, methodological
and tooling aspects of the Space Syntax Theory, using DepthmapX®, integrated with Qgis®, based on a
documentary survey in the archives of the City Hall of Ipatinga. Then, analysis of the diachronic growth of
the city is examined from the analytical contributions coming from the Space Syntax Theory, mainly from
the perspective of urban mobility and provides contributions to examine its future planning. The results
obtained indicate that socio-spatial segregation in the city is directly linked to configurational segregation,
in view of a duality in its expansion process characterized by an initial urban planning and a later
spontaneous occupation.
Keywords: Space Syntax, urban configuration, Analysis, urban planning.
467
468
2
1.Introdução
Este artigo investiga o processo de transformação diacrônica da cidade de Ipatinga-MG levando
em consideração a sua configuração urbana e alguns marcos legais de políticas de zoneamento e
de uso e ocupação do solo. Amparada pelos pressupostos teóricos, metodológicos e ferramentais
da Teoria da Sintaxe Espacial, Space Syntax Theory, em inglês, examina-se Ipatinga, localizada
na região do Vale do Rio Doce, em cinco momentos específicos de sua expansão urbana, em
intervalos de, aproximadamente, vinte anos entre eles, considernando também um cenário futuro.
Apresenta-se a análise dos mapas de integração e escolha operados a partir da utilização dos
softwares DepthmapX® e Qgis®.
O primeiro momento compreende o traçado original da cidade no período da construção da Usina
Siderúrgica de Minas Gerais (Usiminas) e de sua Vila Operária, em 1958, passando pela sua
configuração nos anos 1980, 2004, o atual (2020) e, por fim, considera-se um cenário futuro com
base no Plano de Mobilidade da cidade, que foi analisado sob a perspectiva de planejamento
futuro. As análises são realizadas a partir de variáveis previamente definidas no item 3 e estudadas
de acordo com os diferentes períodos de expansão urbana já mencionados anteriormente. Para
todos os períodos foram consideradas as duas medidas de Sintaxe Espacial: integração e escolha.
Utiliza-se como estratégia de representação os mapas de segmentos, que são obtidos traçando-se
o menor número das mais longas linhas passíveis de circulação na cidade (linhas axiais),
disponíveis a partir de uma base cartográfica. Utiliza-se também a Análise Angular de Segmentos,
correlacionando medidas sintáticas para se chegar a resultados em relação à integração da cidade
nos cinco diferentes momentos de expansão urbana da cidade. Dessa maneira, intercala-se a
análise qualitativa/visual dos mapas de segmentos com as análises quantitativas.
A questão principal que norteia este estudo é: como a análise do crescimento diacrônico da cidade
de Ipatinga, a partir dos contributos analíticos advindos da teoria da Sintaxe Espacial, pode tanto
colaborar para o exame do contexto atual de mobilidade urbana na cidade, como fornecer aportes
para o planejamento futuro? Os resultados obtidos, que apontam uma relação direta entre
segregação socioespacial e segregação configuracional, confirmam a relevância da contribuição
dessa abordagem metodológia para a compreensão dos fenômenos espaciais. Em um processo de
expansão que alinha, em diferentes momentos, planejamento urbano e ocupação espontânea, o
potencial analítico e preditivo da Sintaxe Espacial parece ainda mais relevante. Deve-se destacar,
que o estudo aqui apresentado se derivou de uma pesquisa mais abrangente que abordou duas
metodologias, sendo uma caráter histórico-geográfica e outra centrada na Teoria da Sintaxe
Espacial, que resultou numa dissertação de mestrado, cujo título é “Expansão urbana em Ipatinga
- MG: estudo a partir da abordagem histórico-geográfica e da Teoria da Sintaxe Espacial”.
“Vale do Aço”, não favoreciam a formação de núcleos urbanos de expressão, mas apenas alguns
pequenos povoados. A partir da construção da EFVM é que se deu, de fato, o início do processo
de alteração da configuração espacial e da ocupação da área (SAMPAIO, 2008).
Em 1922 foi inaugurada a estação ferroviária de Ipatinga (Estação Pedra Mole). Foi a partir da
construção desta estação que se iniciou o povoamento do atual bairro Centro de Ipatinga. Este
pequeno povoado continha cerca de 60 casas e 300 habitantes e era chamado de Horto de Nossa
Senhora (HARDY FILHO, 1970 apud MENDONÇA, 2006). A Estação Pedra Mole funcionou
por alguns anos, até que, em 1930, a EFVM ganhou um novo trajeto em Ipatinga. Seus trilhos,
que se localizavam às margens do Rio Piracicaba, passaram a cortar o pequeno povoado e foi
construída a “Estação Ipatinga”, também no atual bairro Centro da cidade. A mesma permaneceu
ativa até 1951, quando a estrada de ferro mudou novamente seu trajeto (EU AMO IPATINGA,
2012) (Figura 1).
Figura 1. Foto que mostra a vista parcial do povoado de Ipatinga, hoje o atual bairro Centro, em
1930 (fonte: ACECIVA, 2011).
A industrialização crescente no Brasil nas décadas de 1950 e 1960 tornaram as cidades um lugar
de atração para as pessoas da zona rural que buscavam melhores condições de vida e empregos
(OLIVEIRA; BELTRAME, 2005). Em paralelo, destaca-se que o crescimento populacional
acentuava também o processo de urbanização. Foi nesse período que em várias regiões do Brasil
vilas operárias foram construídas, e núcleos urbanos foram implantados, ambos ligados
diretamente às grandes companhias e empresas nacionais, como as siderúrgicas e as
hidroelétricas. A Vila Operária de Ipatinga, que deu origem à cidade nos seus moldes atuais,
esteve atrelada à política desenvolvimentista do governo do presidente Juscelino Kubitschek
(MENDONÇA, 2006) e especificamente à criação da Usiminas. A Vila Operária foi construída
para tornar-se uma cidade industrial e, dessa forma, além da própria usina, abrigar os operários
que seriam os novos moradores da cidade.
A Vila Operária de Ipatinga, projetada pelos arquitetos mineiros Raphael Hardy Filho e Marcelo
Bhering, é baseada em alguns princípios da corrente modernista que influenciava fortemente a
arquitetura e o urbanismo brasileiros naquele período. A Usiminas começa a construção da Vila
em 1958, em paralelo à construção da própria usina, como forma de incentivar que seus
470
4
empregados se mantivessem próximos ao local de trabalho juntamente com suas famílias. Assim,
se estrutura os primeiros bairros da cidade.
O forte componente formal geometrizante e o zoneamento monofuncional, elementos que
compõem paradigmas projetuais modernistas, estavam presentes nas configurações espaciais dos
novos bairros criados no entorno da usina, nos quais foram propostos diferentes conjuntos
habitacionais. Tais bairros concentravam, além das moradias, equipamentos públicos para atender
zonas específicas. Os conjuntos habitacionais tinham o objetivo de suprir grande soma de novos
moradores na localidade, prezando mais pela quantidade e funcionalidade e, em certa medida,
desconsiderando características, necessidades, e perfis específicos dos futuros moradores. O
espaço urbano de Ipatinga foi criado em meio a uma concepção de cidade monoindustrial, ou seja,
a sua urbanização se deu em função da Usiminas como forma de apoio à produção industrial
(SAMPAIO, 2008).
É sabido que o espaço urbano de caráter modernista estabelecia um modelo que demarcava a
separação clara de vias para veículos e pedestres, e a segmentação espacial estanque por funções.
A cidade era entendida a partir de uma predeterminação racional de fluxos e, em certa medida, de
comportamentos e usos idealmente previstos. Ipatinga desenvolveu-se a partir da Vila Operária
projetada e construída segundo esses pressupostos. Os conjuntos de moradias com unidades
autônomas, providos de setores com equipamentos de educação e saúde, esportes e lazer, e área
comercial, estavam envoltos a um contexto particular de restrições específicas de topografia e
hidrografia, e também restrições de ordem econômicas, além de estratégicas de interesses ligadas
à empresa (Figura 2). Conforme Usiminas (1958 apud MENDONÇA, 2006):
Os primeiros conjuntos de moradias que compõe a Vila Operária deram origem aos bairros ao sul
do polo industrial, denominados Castelo, Cariru e Bom Retiro. Tais bairros foram destinados,
respectivamente, aos funcionários com cargos de chefia e engenheiros, aos técnicos, e aos
operários especializados. Posteriormente, foram construídos outros bairros, tais como Vila
Ipanema, Imbaúbas, Bela Vista, Bairro das Águas. Já os bairros Novo Cruzeiro, Ideal e Horto
foram desenvolvidos em uma região que ultrapassava os limites daquela localizada entre a área
da usina e o Rio Piracicaba, ao norte do eixo rodoferroviário (Figura 3). De acordo com Costa
(1995, apud SAMPAIO, 2008) a proposta de Hardy Filho e Bhering não condisse com amplitude
do empreendimento Usiminas, pois considerou que o crescimento da cidade continuaria contido
aos limites do Pré-Plano de Urbanização de 1958 e que a adoção de distintas tipologias
habitacionais seria suficiente para comportar a heterogeneidade de perfis de moradores. A
configuração físicoespacial atual de Ipatinga deriva de sua origem como Vila Operária, como se
verá, sendo que o posterior e intenso processo de expansão urbana manteve, de certa forma, a
antiga Vila apenas como uma de suas bordas que não pôde ser estendida.
472
6
Figura 3. Mapa atual de Ipatinga, mostrando em verde escuro a Vila Operária originária e os
bairros/conjuntos habitacionais criados pela Usiminas, em verde claro a “cidade espontânea” e
em vermelho o eixo rodoferroviário no entorno da Usiminas (fonte: Departamento de
Planejamento Urbano - DEPLUR da Prefeitura Municipal de Ipatinga, adaptado pelas autoras,
2017)
Passados os anos iniciais de implantação e operação, já nos primeiros anos da década de 1970,
com aumento da produção da Usiminas e a criação da Usiminas Mecânica (Usimec), inicia-se um
processo de desenvolvimento acelerado do setor terciário na cidade (comércio e serviços) e,
também, um forte estímulo à migração para Ipatinga. A cidade cresce além do núcleo original,
para além da BR-381 e da EFVM, que passam a dividir a cidade em dois lados: o da Vila Operária
desenvolvida pela Usiminas e o lado não planejado pela siderúrgica, que, por sua vez, possui
características morfológicas muito diferentes em relação aos bairros que compõem a Vila
(Figuras 4 e 5). Na década de 1980 também foram desenvolvidos outros bairros pela Usiminas,
como o Bela Vista e o Ideal. Tais bairros foram construídos devido ao aumento da demanda por
habitações destinadas aos trabalhadores da siderúrgica (DIAS, 2011) (Figura 6). No período entre
1980 e 1990, houve uma desaceleração no crescimento urbano de Ipatinga, havendo a expansão
de bairros já existentes, como, por exemplo, dos bairros Castelo, Vila Ipanema, Bom Retiro,
Imbaúbas, Veneza, Caravelas, Bom Jardim, Limoeiro, Bethânia. É imporante observar, na Figura
7, indicada pela mancha vermelha, a ocupação já consolidada do bairro Ideal até o ano de 1985.
Já no do início dos anos 2000 houve um intenso adensamento de áreas já existentes, demonstrando
crescimento territorial urbano intensivo. Até o presente momento não foram criados novos bairros
em Ipatinga, nem pela Usiminas, nem por loteadores particulares (Figura 8).
473
7
Figura 4. Mapa mostrando em cores a expansão urbana de Ipatinga em 1953, em rosa o povoado
inicial (atual bairro Centro) e os futuros bairros de Ipatinga com seus respectivos nomes (fonte:
Departamento de Planejamento Urbano - DEPLUR da Prefeitura Municipal de Ipatinga).
Figura 5. Mapas mostrando em cores a expansão urbana de Ipatinga de 1953 até 1967, com
destaque à area em laranja que corresponde à Usiminas e, ao sul, os bairros da Vila Operária.
(fonte: Departamento de Planejamento Urbano - DEPLUR da Prefeitura Municipal de Ipatinga).
474
8
Figura 6. Mapas mostrando em cores a expansão urbana de Ipatinga de 1975 até 1980, com
destaque à area em roxo que corresponde, em sua maior parte, aos bairros que surgiram além da
Vila Operária planejada ao sul da Usiminas (fonte: Departamento de Planejamento Urbano -
DEPLUR da Prefeitura Municipal de Ipatinga).
Figura 7. Mapas mostrando em cores a expansão urbana de Ipatinga de 1985 até 1990, com
destaque à área em vermelho acima da Usiminas, que correponde ao bairro Ideal, planejado pela
usina fora dos limites da Vila Operária originária (fonte: Departamento de Planejamento Urbano
- DEPLUR da Prefeitura Municipal de Ipatinga).
475
9
Figura 8. Mapa mostrando em cores a expansão urbana de Ipatinga até 2004, com destaque para
a ocupação intensa do bairro Barra Alegre e intensificação da ocupação do bairro Bom Jardim
(fonte: Departamento de Planejamento Urbano - DEPLUR da Prefeitura Municipal de Ipatinga).
O bairro Jardim Panorama, por exemplo, em 2020, possui suas principais vias com um alto valor
de integração, enquanto no “cenário futuro”suas vias passariam a apresentar valores menores de
integração. Pode-se notar que as novas vias propostas no Plano de Mobilidade, derivariam porções
dentro da cidade menos integradas, prejudicando bairros que outrora eram bastante integrados. É
importante ressaltar que na porção do bairro Jardim Panorama, por exemplo, em que se encontram
as vias mais integradas, há uma malha urbana mais regular. Já em sua porção que apresenta uma
malha urbana com um desenho irregular com poucos acessos para a Av. Juscelino Kubitscheck,
uma via larga caracterizada por possuir uma grande quantidade de comércios, residências e uma
ciclovia central; esses valores de integração apresentam uma queda significativa (Figuras 9 a 14).
477
11
Bairro Castelo
Bairro Cariru
Atual BR -458
Figura 9. Mapa de segmento de integração R(n) de Ipatinga em 1958 (fonte: elaborado pelas
autoras a partir da planta de Zoneamento/ pré-plano de Urbanização da vila operária da Usiminas)
Rua Quartzo
Figura 10. Mapa de segmento de integração R(n) de Ipatinga em 1980 (fonte: elaborado pelas
autoras a partir da planta U-474, contendo a divisão de bairros)
478
12
Figura 11. Mapa de segmento de integração R(n) de Ipatinga em 2004 (fonte: elaborado pelas
autoras a partir da planta da cidade, contendo a base viária, disponibilizada pelo Departamento de
Planejamento Urbano - DEPLUR).
Pode-se observar que as vias mais integradas R(n) em 1980, a Rua Quartzo no bairro Iguaçu, Av.
Selim José de Sales no bairro Canãa, além das Av. Minas Gerais, Av. Juscelino Kubitscheck e
Rua Serra do Mar pertencentes ao bairro Jardim Panorama; mais as Av. Getúlio Vargas no bairro
Caravelas e Av. Macapá no bairro Veneza conferem com as vias mais integradas em 2020
(Figuras 10 e 12).
Já os bairros os bairros Cariru, Castelo, Bela Vista, Bom retiro, pertencentes a Vila Operária, são
os que apresentam os menores valores de integração, sendo o Bom Retiro devido também às
quadras “cul-de-sac”. É importante ressaltar que ao longo dos anos não houve alterações
significativas nos valores de integração nos bairros da Vila Operária.
Além disso, o bairro Ideal, ocupado após 1980, apesar de ter sido planejado pela Usiminas e estar
fora dos limites da Vila Operária originária, apresenta-se como um “cluster”, possuindo baixos
valores de integração R(n), tanto nos anos 2004, 2020 e cenário futuro. Essa baixa integração
deve-se a uma malha urbana fragmentada com poucos acessos aos bairros do entorno, além dos
cruzamentos predominantemente em formato “T”, que limitam as possibilidades de
deslocamentos. Deve-se destacar, que neste bairro grande parte das quadras são orgânicas e
compridas, com ruas tortuosas que acompanham a sua topografia acentuada (Figuras 10, 11 e 12).
Em contrapartida, os bairros não planejados pela Usiminas, como, exemplo, Cidade Nobre,
Canãa, Jardim Panorama, Iguaçu, que possuem uma grande movimentação de pessoas e veículos,
são também os mais integrados, tanto em 2020, quanto no cenário futuro (Figuras 12 e 14).
No bairro Cidade Nobre, por exemplo, as vias com os maiores valores de integração como a Av.
Simon Bolívar, a Av. Carlos Chagas, a Av. Monteiro Lobato se caracterizam pelo uso
predominantemente comercial, já que nelas se encontram uma extensa variedade de
estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços. De fato, são avenidas largas com grande
movimentação de pessoas e veículos e passeios largos (Figura 12).
479
13
Figura 12. Mapa de segmento de integração R(n) de Ipatinga em 2020 (fonte: elaborado pelas
autoras a partir da planta da cidade, contendo a base viária, disponibilizada pelo Departamento de
Planejamento Urbano - DEPLUR).
Figura 13. Mapa de integração R(n), segundo valores médios por bairro em 2020 (fonte:
elaborado pelas autoras a partir dos shapes dos bairros disponibilizados pelo Departamento de
Geoprocessamento - DEGEO)
480
14
Figura 14. Mapa de segmento de integração R(n) de Ipatinga no cenário futuro (fonte: elaborado
pelas autoras a partir da planta da cidade, contendo a base viária, disponibilizada pelo
Departamento de Planejamento Urbano - DEPLUR).
Ao analisar os mapas de integração R(n), pode-se perceber que o interior do bairro Cidade Nobre,
ao contrário dos bairros construídos pela Usiminas, é cortado por vias que distribuem o tráfego
de veículos para várias regiões da cidade. É um bairro bastante integrado, que compõe o núcleo
integrador, que apresenta uma malha predominantemente regular com conexões em formato “X”
(Figura 12).
Assim, como a Av. Carlos Chagas, a Av. Selim José de Sales no Canãa e a Av. Macapá, no bairro
Veneza, são vias com altos valores de integração, que apresentam uma das mais importantes áreas
comerciais da cidade, com grande movimentação de pessoas e veículos.
Tabela 1. Valores de NAIN de Ipatinga ao longo dos anos (fonte: elaborado pelas autoras).
Cenário
Medida Sintática Normalizada 1958 1980 2004 2020
Futuro
NAIN 0.862 0.621 0.594 0.563 0.618
481
15
Como pode-se observar no Gráfico 1, os valores de NAIN vão diminuindo ao longo dos anos.
Nos anos de 1980 e 2004 há uma quase estabilização desses valores. Entretanto, com a
implantação de algumas vias propostas para o Plano de Mobilidade, esse valor tem uma pequena
melhora em relação ao cenário atual, de 0,563 para 0,618; quase se igualando ao valor referente
ao ano de 1980 (0,621). Esse comportamento aponta que com o passar dos anos a cidade foi
apresentando espaços cada vez mais segregados e pouco acessíveis. Características essas que
revelam a presença de um traçado viário labiríntico em Ipatinga. Isso devido à ocupação
espontânea, sem planejamento urbano, em algumas regiões, que influenciou diretamente na
configuração espacial de muitos bairros, especialmente nos de loteamentos independentes da
Usiminas. O que deu à cidade a característica de labirinto com espaços pouco integrados.
1
0,9
0,8
0,7
0,6
0,5
0,4
0,3
0,2
0,1
0
1958 1980 2004 2020 Futuro (Plano
de Mobilidade)
Ipatinga/MG
Gráfico 1. NAIN em Ipatinga ao longo dos anos (1958, 1980, 2004, 2020 e cenário futuro) (fonte:
elaborado pelas autoras)
Quadro 2. Mapas de segmento de escolha R(n) de Ipatinga e medida de escolha média gerada
para cada bairro nos anos de 1958, 1980, 2004 e cenário futuro (fonte: elaborado pelas autoras a
partir da base viária da cidade fornecida pelo Departamento de Planejamento Urbano - DEPLUR).
Figura 15. Mapa de segmento de escolha R(n) de Ipatinga em 1980 (fonte: elaborado pelas
autoras a partir da planta U-474, contendo a divisão de bairros).
483
17
Figura 16. Mapa de segmento de escolha R(n) de Ipatinga em 2004 (fonte: elaborado pelas
autoras a partir da planta da cidade, contendo a base viária, disponibilizada pelo Departamento de
Planejamento Urbano - DEPLUR).
Figura 17. Mapa de segmento de escolha R(n) de Ipatinga em 2020 (fonte: elaborado pelas
autoras a partir da base viária da cidade em DWG fornecida pelo Departamento de Planejamento
Urbano - DEPLUR).
484
18
O mapa de escolha pode ser comparado diretamente com as vias de comércio e o mapa de
hierarquia viária , tópico que será discutido mais à frente neste artigo. Dessa maneira, ao realizar
uma análise visual do mapa de escolha de 2020, pode-se perceber que as vias de comércio já
consolidadas na cidade coincidem com as vias de maior valor de escolha.
Portanto, ao longo dos anos pode-se perceber que, de maneira geral, não há uma mudança
significativa das vias que apresentam os maiores valores de escolha. Além disso, os bairros que
possuem o maior valor dessa medida sintática, Jardim Panorama e Ferroviários, permanecem os
mesmos de 1980 a 2020 e o padrão de cores, no geral, permanece quase o mesmo. No cenário
futuro, com as vias propostas pelo Plano de Mobilidade não há uma melhora significativa do
“quadro” existente na cidade, mas há uma queda significativa dos valores de escolha do bairro
Jardim Panorama, possivelmente pelo fato da ligação viária proposta que interliga a Av. Selim
José de Sales à BR-381 ter concentrado um maior potencial de fluxo (Figuras 15 a 19).
Pode-se notar que as vias com maiores valores de escolha pertencem, em sua maior parte, aos
bairros dos loteamentos independentes da Usiminas, enquanto os bairros da Vila Operária
localizados ao sul do eixo rodoferroviário continuam com o mesmo comportamento ao longo dos
anos, possuindo valores muito baixos desta medida, devido principalmente à descontinuidade da
malha causada pela própria localização Usiminas, que atua como uma barreira.
Conforme aponta Dias (2014), a variável escolha expõe aspectos da hierarquia viária, tornando-
se válida para identificar eixos potenciais de transporte coletivo urbano. Os eixos com maior valor
de “escolha” são os que representam o menor trajeto topológico entre quaisquer pontos na malha
urbana. Assim, essas vias possibilitam um melhor escoamento do fluxo em relação ao sistema
urbano como um todo.
Portanto, as vias com significativos valores de escolha, tais como a Av. Selim José de Sales, as
Av. Minas Gerais, Av. Serra do Mar e Av. Juscelino Kubitscheck; as Av. Simon Bolívar, Av.
Monteiro Lobato e Av. Miguel Ângelo no bairro Cidade Nobre; Av. Brasil no bairro Iguaçu e
Rua Begônia no bairro Esperança; se utilizadas de forma eficiente para a rede de transporte
público, permitem um melhor desempenho do sistema. Uma importante questão a se levar em
conta para a elaboração do Plano de Mobilidade urbana da cidade de Ipatinga.
Jardim
Panorama
Ferroviários
Figura 18. Mapa de escolha R(n), segundo valores médios por bairro em 2020 (fonte: elaborado
pelas autoras a partir dos shapes dos bairros disponibilizados pelo Departamento de
Geoprocessamento - DEGEO).
485
19
Figura 19. Mapa de segmento de escolha R(n) de Ipatinga no cenário futuro (fonte: elaborado
pelas autoras a partir do mapa da cidade, contendo novas vias propostas fornecida pelo
Departamento de Planejamento Urbano - DEPLUR).
Tabela 2. Valores de NACH de Ipatinga ao longo dos anos (fonte: elaborado pelas autoras).
Cenário
Medida Sintática Normalizada 1958 1980 2004 2020
Futuro
NACH 0.911 0.855 0.850 0.847 0.860
486
20
0,92
0,9
0,88
0,86
0,84
0,82
0,8
1958 1980 2004 2020 Futuro (Plano
de Mobilidade)
Ipatinga/MG
Gráfico 2. NACH em Ipatinga ao longo dos anos (1958, 1980, 2004, 2020, cenário futuro (fonte:
elaborado pelas autoras)
Gráfico 3. NAIN x NACH em Ipatinga ao longo dos anos (1958, 1980, 2004, 2020, cenário
futuro) (fonte: elaborado pelas autoras)
6. Vias com os maiores valores de integração R(n) e escolha R(n) e a sua relação com a malha
viária
O Plano Diretor de Ipatinga (Lei nº 3.350/2014) classifica a malha viária da cidade em: Arteriais
Metropolitanas, Arteriais Municipais, Coletoras, de Acesso ou Locais conforme:
exemplo; VIAS COLETORAS – São vias destinadas a coletar e distribuir o trânsito que
tenha necessidade de entrar ou sair das vias de trânsito rápido ou arteriais, possibilitando
o trânsito dentro das regiões da cidade, sendo caracterizadas por facilitar movimentação
de uma região a outra, por estarem ligadas as vias arteriais e de trânsito rápido; VIAS DE
ACESSO OU LOCAIS – Vias de importância secundária internas aos loteamentos
(IPATINGA, 2014).
Hillier et al. (1993, p.30) apontam que “as malhas viárias são quase que invariavelmente
conceituadas como algum tipo de hierarquia espacial, na qual diferentes tipos de propriedades
configuracionais são vistas como associadas a diferentes graus de importância funcional”. Dessa
maneira, ao se observar as variáveis de hierarquia viária definidas pelo Plano Diretor, observou-
se que a classificação viária no sistema urbano da cidade coincide com o resultado das análises
das variáveis configuracionais (medidas sintáticas). Portanto, eixos e áreas mais integrados e com
os maiores potenciais de escolha coincidem com as vias mais estruturantes do sistema, as Arteriais
Metropolitanas e Arteriais Municipais (BR-381 e BR-458). Essas são as mais bem alimentadas
pelo transporte coletivo urbano (corredores de ônibus), além de possuírem polos de atração de
viagem, tais como a própria Usiminas, o Estádio do Ipatingão, o Shopping Vale do Aço. Por outro
lado, nota-se que à medida que as vias apresentam um baixo valor tanto de Integração R(n) e
Escolha R(n), passam a se comportar como vias coletoras, de acesso ou locais.
[...] ao se nominar cidades de porte médio trabalha-se com o patamar populacional para
reconhecer tão simplesmente o tamanho das cidades; para cidades intermediárias, a
definição se dá levando em conta sua posição relativa e intermediária (entre as pequenas
cidades e as metrópoles regionais), independentemente de sua expressividade político-
econômico no contexto hierárquico de uma rede urbana. A condição de cidade média, por
sua vez, considera a importância sub-regional apresentada por uma dada cidade
intermediária, ipso facto, as fortes centralidades que aí se materializam por meio de
fluxos, a ponto de contribuírem significativamente para o ordenamento do espaço
regional em que se inserem, JÚNIOR (et al., 2016, p.34) apud BOGNIOTII (2018).
488
22
Figura 19. Valores de NAIN e NACH de cidades médias brasileiras em 2017 (fonte: Bogniotii,
2018, adaptado pelas autoras)
Assim, ao se comparar os valores das medidas sintáticas de algumas cidades brasileiras, como
NAIN e NACH, pode-se notar que Ipatinga possui valores bem abaixo em relação a elas. O
Gráfico 4 apresenta o comparativo do valor de escolha normalizada (NACH) de 10 cidades
médias brasileiras, das quais o valor mínimo apresentado foi de Ipatinga (0,847) e o máximo de
Dourados (0,994). Vale lembrar que a medida NACH refere-se à continuidade do sistema em
relação à rede hierárquica de caminhos. Altos valores de NACH, quando representados
graficamente, permitem a visualização das vias com maior potencial de “movimento através”, ou
seja, os fluxos através da cidade (COELHO, 2017).
1,05
0,95
0,9
0,85
0,8
0,75
Gráfico 4. Comparativo entre cidades médias brasileiras em 2017 e Ipatinga em 2020 – NACH
(fonte: elaborado pelas autoras a partir dos dados de Bogniotii, 2018)
do espaço urbano ocasionada pela ausência de vias globais. Dessa maneira, pode-se observar que
Ipatinga possui uma frágil articulação geral do sistema viário, principalmente devido a
inexistência de vias globais que atravessam toda a cidade. Além disso, o valor de NAIN de
Ipatinga abaixo dos valores da amostra das cidades, aponta para um sistema com uma grande
descontinuidade da malha urbana devido à rápida expansão não planejada, além da presença de
vazios urbanos, provocados não somente pela topografia acentuada em algumas áreas, mas pela
própria localização da Usiminas.
1,6
1,4
1,2
1
0,8
0,6
0,4
0,2
0
Gráfico 5. Comparativo entre cidades médias brasileiras em 2017 e Ipatinga em 2020 – NAIN
(fonte: elaborado pelas autoras a partir dos dados de Bogniotii, 2018)
8. Considerações finais
Os resultados do estudo sobre a forma urbana em Ipatinga indicaram uma estrutura integradora
frágil que, entretanto, ajuda a explicar a localização das classes de alta e baixa renda, bem como
padrões de densidade populacional. Vale destacar, que o tempo não extinguiu a concentração das
classes sociais mais abastadas como previa a hierarquização imposta pela Usiminas,
permanecendo no entorno da indústria. Portanto, pode-se notar que esses bairros não se
expandiram de forma significativa ao longo dos anos, não havendo alteração nos limites dos
bairros correspondentes à antiga vila operária de 1958, dado sua localização demarcada
propositalmente entre duas barreiras, de um lado a siderúrgica e do outro, o rio, além da presença
dos eixos rodoviários (BR-381 e BR-458) e ferroviário, constituindo elementos bloqueadores da
intercomunicação entre bairros e regiões da cidade.
É importante ressaltar que não existem eixos articuladores globais, aqueles que ligam áreas mais
segregadas às mais integradas e atravessam toda a cidade, na malha viária de Ipatinga. A ausência
dessas vias estruturantes enfraquece a articulação entre os bairros e reforça as características da
malha em “colcha de retalhos”. Dessa maneira, na cidade há deficiências nas esferas globais
devido à ausência de vias globais no sistema urbano como um todo. Pode-se dizer também que o
sistema viário de Ipatinga limita as possibilidades de fluxos e movimentos, tendo em vista que o
seu núcleo integrador não possui vias que irradiam para todas as direções do sistema urbano.
Apesar do planejamento inicial nos moldes do urbanismo modernista, a cidade possui um sistema
urbano fragmentado e, mesmo quando os vazios são preenchidos à medida que a cidade se
expande, não há melhora nas relações entre as partes.
Além disso, é importante destacar que, em Ipatinga, as edificações mais altas tendem a aparecer
em vias com maiores valores de escolha, como por exemplo, a Av. Monteiro Lobato e a Av. Selim
490
24
9. Referências
BOGNIOTTI, G. M. C. Cidades médias brasileiras: que perfil é esse? 2018. 239 f., il. Dissertação
(Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Universidade de Brasília, Brasília, 2018.
491
25
HILLIER, B.; HANSON, J. The social logic of space. Cambridge: University Press, 1984.
HILLIER, Bill; PENN, Alan; HANSON, Julienne; GRAJEWSKI, T.; XU, J. Natural movement:
or, configuration and attraction in urban pedestrian movement. Environment and Planning B:
Planning and Design, v. 20, n. 1, p. 29 -66, 1993.
IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e estatística. Cidades e Estados, 2018. Disponível em:
https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/mg/ipatinga.html?. Acesso em: 20 jul. 2019.
492
493
Resumo. As comunidades quilombolas surgiram como parte das lutas contra o regime escravagista. Essas
comunidades têm sido lugares de liberdade e organização social. Mais que uma referência do passado são
espaços de preservação da cultura, resistência e lutas negras na contemporaneidade. Este trabalho propõe
uma reflexão sobre como a configuração espacial pode expressar liberdade, uma conquista da comunidade
Quilombo Mesquita, localizada em Goiás cerca de 50 km do Plano Piloto de Brasília. O processo de
projeto utilizou a sintaxe espacial com objetivo de criar um espaço que represente a antítese da opressão,
se contrapondo a lugares de forte controle social, hierarquia e segregação. O artigo mostra o percurso
para alcançar o arranjo espacial que responde a este objetivo. O resultado é a proposta da Casa
Comunitária Ilé Wá, um lugar multiagregador para abrigar atividades culturais, sociais e políticas do
Quilombo Mesquita. Para o estudo da localização do terreno e da configuração dos espaços da edificação
foram utilizadas as medidas de profundidade, conectividade, integração e isovistas, geradas nos softwares
JASS e DephtmapX 0.8.0,. que propiciaram a análise comparativa dos diferentes arranjos configuracionais
ao longo do processo.
Palavras-chave. processo de projeto, quilombo Mesquita, casa comunitária, sintaxe espacial,
configuração.
Design and Configuration: the search for a spatial arrangement that expresses freedom
Abstract. The Quilombola communities emerged as part of the struggle against the slave regime. These
communities have been places of freedom and social organization. More than a reference to the past, they
are spaces for the preservation of black culture, resistance and struggles in contemporary times. This paper
reflects on how the spatial configuration can express freedom, an achievement of the Quilombo Mesquita
community, located in Goiás about 50 km from the Pilot Plan of Brasília. The designing process has used
the space syntax’s tools aiming to create a space that represents the antithesis of oppression, opposing
places of strong social control, hierarchy, and segregation. The article shows the designing path to achieve
the spatial configuration that responds to this objective. The result is the Ilé Wá Community House, a multi-
aggregator place to house cultural, social, and political activities of Quilombo Mesquita. For the study of
the location and the terrain, and of the configuration of the building’ rooms/spaces, measures of depth,
connectivity, integration, and isovists were used, generated by the JASS and DephtmapX 0.8.0 software,
allowing comparative analysis of different configurational arrangements throughout the process.
Keywords: design process, quilombo Mesquita, community house, space syntax, configuration
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495
2
1. Introdução
A sintaxe espacial oferece um campo de possibilidades para leitura de configurações espaciais e
da relação entre estas e os modos de apropriação social do espaço. Neste trabalho, a sintaxe
espacial foi utilizada como ferramenta do processo de projeto arquitetônico, cuja diretriz principal
foi criar um espaço que representa a antítese da opressão: um espaço de liberdade. O projeto é o
estudo para uma casa comunitária no Quilombo Mesquita. Neste artigo, no entanto, será
apresentado apenas o processo de definição da configuração espacial.
As comunidades quilombolas surgem como oposição ao regime escravagista, representando
lugares de liberdade, resistência cultural e organização social. Mais que uma referência do
passado, elas representam e preservam a cultura negra na contemporaneidade. São mais de três
mil comunidades quilombolas reconhecidas no Brasil, podendo chegar a seis mil (PRÓ-ÍNDIO,
2017). O Quilombo Mesquita é uma dessas comunidades, constituído a partir de três escravas
libertas, ainda no século XVIII, está localizado no Estado de Goiás, cerca de 50 km do Plano
Piloto de Brasília.
Mas, se o quilombo representa a antítese do cativeiro (NASCIMENTO, 1985; SANTOS, 2015) e
a conquista da terra é também liberdade (AGUIAR, 2015), como isto pode ser refletido na
configuração de um espaço comunitário no Mesquita? Este trabalho parte da premissa que no
Quilombo Mesquita as atividades coletivas e a liberdade se relacionam com maior integração e
permeabilidade dos espaços. Portanto, o processo de projeto levou em consideração as seguintes
diretrizes configuracionais: i) sistemas mais integrados, para criar espaços pouco hierarquizados
e que evitem segregações e forte controle espacial, características de lugares comunitários e livres
como os quilombos; ii) maior visibilidade e permeabilidade e suas relações com padrões de
movimento, para criar espaços mais intensamente utilizados e que propiciem encontros e trocas,
em referência à liberdade tão almejada pelo povo negro; iii) pouca profundidade em relação ao
exterior, relação direta do edifício coma comunidade.
O objetivo foi criar um espaço que abriga diferentes atividades, como espaços de formação e
encontros multigeracionais, buscando contribuir para reflexão sobre o espaço como meio para
fortalecer a identidade etnocultural desta comunidade quilombola. A sintaxe espacial foi aplicada
no estudo do terreno e da configuração da casa comunitária. Medidas sintáticas como
profundidade, conectividade, integração e isovistas permitiram analisar comparativamente
diferentes arranjos ao longo do processo projetual.
O trabalho está estruturado em três partes além da Introdução e da Conclusão. Na primeira parte
são apresentadas as bases teórico-históricas sobre os quilombos, em especial o Quilombo
Mesquita, e as características que vinculam esses espaços ao sentido de liberdade (item 2). A
segunda parte apresenta a metodologia de análise aplicada (item 3). A última parte contém a
análise e os resultados das propostas preliminares e do projeto final (item 4).
Figura 1. Tráfico negreiro – 1502-1866. (Fonte: FGV, 2016, https://atlas.fgv.br) <acesso: 28/02/2021>
Entretanto, de acordo com Beatriz Nascimento 2, é preciso inverter a análise histórica e sociológica
quanto ao estudo da questão negra no Brasil, tirando a centralidade na escravidão e substituindo
pela história do quilombo. Portanto, o foco deve ser menos na ação realizada pelo colonizador
europeu e mais na reação do povo negro escravizado. Este olhar é fundamental para entender a
história dos negros a partir das suas construções sociais, políticas, ambientais, territoriais e
econômicas (CONAQ; TERRA, 2018).
Importa mostrar que a resistência negra inicia no momento da captura até os dias atuais, prova
disso é a constituição de quilombos. Os primeiros registros de grupos quilombolas são
encontrados em documento português ainda em 1559 (PALMARES, 2000). O quilombo dos
Palmares, surgido em 1630, é considerado a maior manifestação de resistência contra o
escravismo na América Latina3 (PALMARES, 2000, p.10). Em 1740, o Conselho Ultramarino,
órgão da coroa portuguesa responsável pelo controle central patrimonial, já definia quilombo
como “toda a habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte desprovida, ainda que
não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles” (AGUIAR, 2015, p.23).
O significado de Quilombo é bem mais abrangente. De acordo com Tavares (2005), o quilombo
representou uma alternativa concreta à sociedade escravista, tanto no modo de vida, como na
produção e na organização social. Do ponto de vista da economia, essas comunidades eram
autônomas, produziam alimentos e comercializavam com cidades próximas (AGUIAR, 2015).
Ou, de acordo com Nascimento,
Quilombo passou a ser sinônimo de povo negro, sinônimo de comportamento do negro e
esperança de uma sociedade melhor. Passou a ser sede interior e exterior de todas as
formas de resistência cultural. Tudo, de atitude à associação, seria quilombo
(NASCIMENTO, 1985, p.47)
Para Nascimento, o quilombo é um processo contínuo cultural, social, econômico e político que
não desapareceu com a abolição formal e inconclusa da escravidão, em 1888. Por isso, mais
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4
O Quilombo Mesquita é habitado por cerca de 800 famílias e tem uma história de quase trezentos
anos. No século XVIII, a busca por metais preciosos pelos bandeirantes chegou à capitania de
Goiás e foi o principal motivo para o uso da mão-de-obra escrava (SILVA, 2017). Em 1746, o
bandeirante Antônio Bueno de Azevedo chegou ao interior de Goiás, na vila de Santa Luzia, hoje
Luziânia, em busca de ouro. Com a comitiva do bandeirante estava José Corrêa de Mesquita
(NERES, 2015; AGUIAR, 2015).
A exploração do ouro prosperou até 1775, mas, com o declínio da mineração grande parte da
população branca se desfez ou abandonou suas propriedades, o que provocou a desvalorização
das terras (NERES, 2015; AGUIAR, 2015). Isso favoreceu a permanência dos negros nas áreas
remanescentes da exploração de minérios. Portanto, se para os brancos a terra não tinha mais
valor, para os negros "a terra, propriamente dita, associava-se com a liberdade" (AGUIAR, 2015,
p.31)
Com o fim do ciclo do ouro e a proclamação da Lei Áurea, em 1888, os negros libertos passaram
a viver na Fazenda Mesquita. Neste período, José Corrêa de Mesquita dispôs de terras da sua
propriedade para três escravas libertas (NERES, 2015; INCRA, 2011). As três famílias originárias
do Quilombo (Pereira Braga, Lisboa da Costa e Teixeira Magalhães) descendem dessas matriarcas
fundadoras da comunidade (OLIVEIRA, 2012).
Da busca por ouro no Centro-Oeste à construção de Brasília, os quilombolas do Mesquita estavam
presentes. Para a construção de Brasília foi cedida parte de seu território (ANJOS, 2006); eles
receberam os primeiros trabalhadores; ajudaram a construir as cantinas, hospedagens e refeitórios;
forneciam frutas, verduras, carnes e doces feitos na comunidade (FELLET, 2018; NERES, 2018).
Registros mostram a participação da Comunidade Mesquita já em 1956, quando alguns
quilombolas ajudaram a construir a primeira residência presidencial no Distrito Federal, o
Catetinho, de Oscar Niemeyer. Além disso, as mulheres da comunidade trabalharam na residência
como cozinheiras, como a quilombola Onélia Pereira Braga (FELLET, 2018).
A transferência da capital fortaleceu o comércio de alimentos produzidos na comunidade, gerando
emprego e renda. Mas, o território enfrenta ameaças constante com a especulação imobiliária e
perda das terras, uma vez que a titulação ainda não foi efetivada (FELLET, 2018; NERES, 2015).
Portanto, a história do Quilombo Mesquita não ficou no passado, mas faz parte da história de
Brasília, do presente e futuro da região centro-oeste.
Para Anjos (2006, p.106), a formação do quilombo Mesquita tem “a imagem das três mulheres
negras fundadoras da comunidade” que preservaram as tradições culturais de matriz africana. A
identidade Quilombola Mesquita é muito rica, formada por diferentes grupos com “ancestralidade
comum, estrutura de organização política própria, sistema de produção particular e a
compartilham elementos linguísticos e religiosos” (ANJOS, 2006, p. 108).
Ainda de acordo com Anjos (2006), o cotidiano é como “guardião das tradições”. Como
guardiões, os mesquitenses zelam por várias referências culturais do centro-oeste (festas, folias,
danças e cultivos alimentares). Essas práticas do lugar, para usar Certeau (2000, 2002), revelam
a riqueza da relação desta comunidade com o território e com a terra. Fazem parte das tradições
do Mesquita a Festa do N'golo (bebida à base de Hibiscus sabdariffa) de origem Angolana, o
cultivo de plantas medicinais, além da produção de alimentos orgânicos e do doce de marmelo,
considerado a marca do Quilombo.
A demanda por espaço é real e fundamental para que essas práticas se realizem. Entre as demandas
destaca-se: lugar para o projeto “Som de Quilombo”; a biblioteca Arca das Letras; espaços para
eventos, reuniões, confraternizações; e de venda dos produtos do quilombo. O Som de Quilombo
é um projeto cultural que trabalha não só a música, mas a ancestralidade africana. O projeto Arca
das Letras tem como objetivo montar uma biblioteca com livros sobre a África, o Brasil e a
diáspora africana. Figura 3 mostra um pouco da comunidade.
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6
3. Metodologia
O aparato metodológico da Sintaxe Espacial foi utilizado em um estudo empírico de processo de
projeto para uma Casa Comunitária, tanto na escolha do terreno como no estudo da configuração
espacial, com foco nas relações básicas entre visibilidade e permeabilidade entre os espaços. As
relações de permeabilidade representam a possibilidade de um usuário se deslocar de uma unidade
espacial para outra, e as relações de visibilidade representam a possibilidade de um espaço ou
parte de um espaço ser visto a partir de outro (HILLER; HANSON, 1984; HANSON, 1998).
O processo de projeto foi desenvolvido nas seguintes etapas: i) Pesquisa teórico-histórica sobre
os quilombos ii) Levantamento de informações histórico-culturais sobre o Quilombo Mesquita;
iii) Interação com a comunidade para definição do programa arquitetônico, por meio de reuniões
periódicas com a líder quilombola Sandra Pereira Braga, além de conversas com historiador e
pesquisador Manoel Barbosa Neres, ambos moradores do Quilombo Mesquita4; iv) Definição das
diretrizes projetuais; v) Escolha do terreno; vi) Desenvolvimento do anteprojeto arquitetônico.
Para este artigo, a ênfase está nos itens ‘v’ e ‘vi’, nos quais a sintaxe espacial é utilizada como
ferramenta do processo de projetação, com ênfase no arranjo espacial.
Para determinação do sítio foi gerado o mapa axial do Quilombo Mesquita. De acordo com a
Sintaxe Espacial, os eixos “mais integrados são aqueles mais permeáveis e acessíveis no espaço
urbano, de onde mais facilmente se alcançam os demais” (MEDEIROS, 2012). Para gerar os
mapas-base para as análises sintáticas foi necessário definir o que seria considerado barreira ou
não, para a visibilidade somente as paredes foram consideradas barreiras. Para a permeabilidade,
entretanto, foram consideradas barreiras as paredes e bruscas mudanças de nível, como o espaço
central rebaixado no projeto final.
Para a análise de permeabilidade, os sistemas foram decompostos em espaços convexos e
definidas as seguintes categorias de espaços além das circulações e jardins: a) espaço de encontro,
que é o principal espaço da Casa Comunitária, uma vez que se destina a atividades de grande
significância coletiva; b) espaços usuais, que são o programa propriamente dito e tem como
objetivo suprir demandas de projetos e atividades do quilombo; c) espaços de apoio, que são os
banheiros e os demais espaços de suporte a outras funções. Para a análise da profundidade dos
500
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Figura 4. a) Mapa Axial – Integração Global. DepthmapX 0.8.0. (Fonte: elaborado pelos autores).
O mapa axial mostra que o terreno está localizado em um dos eixos mais integrados desta parte
do território Mesquita. O estudo do sítio e o levantamento histórico foram fundamentais para
identificar a pertinência do terreno no contexto da comunidade (MARHFUZ, 2004). Ao mesmo
tempo inserido no contexto simbólico do território e de fácil acesso, conforme o mapa axial, o
que é importante para um espaço comunitário e de identificação cultural.
Os estudos a seguir mostram o caminho percorrido para chegar à proposta final. A Figura 05
apresenta as plantas baixas das propostas já decompostas em espaços convexos e uma breve
descrição de cada. No Estudo 01, a morfologia do terreno foi definidora de um partido linear. Os
blocos correspondem aos setores, conforme definido no programa de necessidades. O grande
salão, na cor marsala, seria como a sala de estar de uma casa e, juntos com os demais volumes,
formariam um pátio interno. O espaço CENTRAL como referência principal e lugar dos
encontros.
No Estudo 02, o espaço central continua como referência, a diferença é o grande salão de
encontros como espaço central, priorizando espaços multifuncionais. Outro aspecto é a
aproximação do edifício com a rua, uma estratégia para criar sistemas rasos ou pouco profundos
em relação ao espaço público.
O Estudo 03, de inspiração centróide, tem como características: i) o espaço CENTRAL como
referência ao tacho de cobre (usado para fazer o doce do marmelo), por meio de uma cúpula
convexa; ii) aproximação do edifício com a rua e a permeabilidade ao espaço central. Mas, os
setores ainda não estavam em contato com o elemento central, permanecendo a hierarquia de um
setor sobre o outro.
Os Estudos 01, 02 e 03 foram importantes para identificar que ainda faltava considerar elementos
da história e da tradição da comunidade Mesquita, ou seja, a pertinência arquitetônica
(MARHFUZ, 2004). Por isso, foram retomados outros elementos, tendo o TERRITÓRIO como
ponto de partida, elemento que representa a liberdade e a relação com a terra, lugar de vida e
sustento destas comunidades. A diagonal que marca a composição nos estudos 03 e projeto final
tem inspiração na topografia do terreno.
502
9
Figura 5. Plantas Baixas: a) Estudo 01, (b) Estudo 02; ( c) Estudo 03 e (d) Proposta Final. (Fonte:
elaborado pelos autores).
O Projeto Final é resultado dos estudos anteriores e pode ser descrito como a busca por um espaço
com centralidade simbólica, configuracionalmente raso, permeável e integrado. O espaço central
é marcado pela abertura circular (referência ao tacho de cobre), criando uma relação direta com
o céu, a chuva e a terra. Sob a projeção do rasgo da cobertura, o espaço de reunião é rebaixado,
como poderá ser visto adiante. Na entrada, o Jardim dos Marmelos representa as três escravas
libertas que deram origem ao Quilombo Mesquita.
Grafos de Permeabilidade
A relação com o exterior é um dos objetivos do projeto, a proximidade com a rua estabelece a
relação tão desejada com o entorno, uma das características da casa comunitária. Neste sentido,
os grafos de permeabilidade (Figura 6) mostram que os estudos 01 e 03 não atingiram este
objetivo, pois são os sistemas mais profundos da amostra, com 6 e 7 níveis de profundidade, em
relação ao exterior.
503
10
A proposta 01 apresenta evidente hierarquização na relação com a rua. Embora apresente anéis,
este é um sistema profundo, onde todos os espaços usuais estão a pelo menos cinco passos
topológicos em relação ao acesso principal. A loja, por exemplo, está no nível 5 de profundidade,
dada a sua função a loja deve ser um espaço raso em relação ao exterior e a configuração não
deveria dificultar o acesso a ela.
Embora a proposta 02, com 5 níveis de profundidade, seja um sistema mais raso que a proposta
01, nas duas é possível perceber uma estrutura mais hierarquizada, não condizente com o objetivo
do projeto. O espaço central na proposta 02 (nó 9) apresenta grande força na organização espacial
e está posicionado a três passos topológicos de todos os espaços do conjunto. Contudo, a pouca
permeabilidade foi ponto negativo da proposta. A segregação dos espaços usuais como o Projeto
Som de Quilombo e à cozinha (nós 22, 27 e 17) que estão no último nível é exemplo disso. Estes
espaços ficaram mais segregados que os demais e os espaços de apoio, como o depósito (nó 14)
ficou mais raso. A segregação da cozinha (nó 17) não era um dos objetivos a serem alcançadas e
espaços do setor cultural (nó 22 e 27) deveriam ser mais acessíveis ao público.
O Estudo 03 é o mais profundo e apresenta espaços usuais em diferentes níveis, criando uma
hierarquia entre eles: i) o espaço de encontros é o mais raso em relação ao exterior (nível 3); ii)
seguidos pela sala de leitura, administração e loja no nível 4 (nós 11,27 e 9); iii) o som de
quilombo no nível 5 (nós 20 e 19); iv) e o mais profundo é a cozinha no nível 6 (nó 23). Nesta
proposta, é acentuada a segregação com o espaço usual da sala multiuso claramente deslocado
das áreas de maior utilização. Essa proposta também apresentou a maior profundidade observada
com relação à rua, com a despensa a sete passos topológicos da rua.
O projeto final, por outro lado, apresentou o sistema mais raso em relação ao exterior, com apenas
4 níveis. Os principais espaços de atividade (sala de leitura, loja, administração e salas multiuso)
ficaram no nível 2 (nós 20, 12, 14 e 15). Enquanto a cozinha e os espaços do som de quilombo
ficaram no nível 03 (nós 24, 18 e 31). Portanto, o acesso a estes espaços do cotidiano se mostrou
mais direto, a partir do exterior, condizente com as diretrizes. Em relação à rua, a configuração
dos espaços internos do projeto final mostrou-se mais raso do conjunto analisado, todos os
espaços acessíveis com, no máximo, quatro passos topológicos. O espaço de encontro também é
mais raso, distante somente dois passos topológicos da rua (nó 8).
Em relação ao espaço de encontros, os grafos de permeabilidade (Figura 06) mostram que os
sistemas 01 e 03 continuam sendo os mais profundos, ambos com 4 níveis, enquanto os estudos
504
11
02 é mais raso (com 3 níveis), e o projeto final permanece com 4 níveis, mantendo os principais
espaços de atividades no nível 2 e 3, os mais rasos da amostra.
Em relação à integração, vale destacar que o exterior é o espaço mais integrado da amostra na
proposta final, com 1,644, enquanto os sistemas mais profundos (Estudo 01 e 03) apresentam
integração de 0,701 e 0,704, respectivamente, e o Estudo 02 com 0,831. Em relação à média de
integração dos sistemas, os estudos 01 e 03 são os sistemas menos integrados da amostra, com
1,140 e 1,080. O estudo 02 apresenta integração de 1,220, e o projeto final é o mais integrado
com 1,225 de média de integração dos sistemas, possuindo o maior número de espaços convexos,
são 31 espaços convexos, 4 a mais que o estudo 02.
Com relação à integração visual [HH], a proposta 03 apresenta o pior resultado de integração
global no conjunto analisado. Apesar de apresentar uma distribuição mais equilibrada de
integrações intermediárias, é o único que não apresenta espaços significativamente integrados,
enquanto as propostas 01 e 02 apresentam um eixo longitudinal mais definido, que contribui para
uma maior integração, coincidente com as áreas de maior conectividade. Em ambas propostas, os
espaços de encontro são pouco integrados, se comparados a espaço externo como o viveiro. Na
proposta 01 chama atenção o fato de a cozinha ser o espaço usual mais segregado dentre os
sistemas (Figura 08).
Figura 8. Integração Visual [HH]. DepthmapX 0.8.0. (Fonte: elaborado pelos autores).
Diferente dos demais sistemas, a proposta final apresenta áreas mais integradas, inclusive o
espaço de encontro com a maior integração no sistema e dentre os sistemas. Ou seja, a maior
integração visual passa a ser no interior do edifício e não no exterior como nas propostas 01 e 02.
Enquanto os espaços mais frios da proposta final são os espaços de apoio e não os espaços usuais.
Inclusive a cozinha é a mais integrada dentre os sistemas.
A análise de Isovistas utilizou dois pontos em todas as propostas, a entrada e o espaço de encontro.
Os campos visuais produzidos a partir do ponto 01 (entrada) mostram que os Estudos 01 e 02
possuem os maiores campos visuais, com área acima de 250 m 2, enquanto os sistemas 03 e 04 são
os menores, em torno de 170 m2. Entretanto, na leitura a partir do acesso principal observa-se que
as propostas 01 e 02 embora tenham as maiores áreas de isovistas, a visibilidade é essencialmente
o eixo de circulação central, pouco dos espaços usuais é realmente visto a partir da rua. O Estudo
03, o menor campo visual a partir deste ponto, apresenta o mesmo comportamento dos sistemas
anteriores, mas é penetrável visualmente de forma modesta no espaço de uso cotidiano (Loja).
506
13
Figura 10. Isovistas 02. DepthmapX 0.8.0. (Fonte: elaborado pelos autores).
Os campos visuais a partir do espaço de encontro revelam outro aspecto importante dos sistemas
analisados. Comparativamente há uma inversão nos tamanhos dos campos visuais a partir deste
ponto, os sistemas 01, 02, 03 apresentam campos visuais muito menores se comparados à proposta
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14
final com quase o dobro de área do Estudo 01 e significativamente maior que os Estudos 02 e 03
(Figura 10). Embora, os campos visuais dos Estudos 01, 02 e 03 abrangem espaços como a loja e
a sala de leitura, eles não abrangem espaços importantes do cotidiano, como a cozinha. Nestes
sistemas, a cozinha é praticamente invisível a partir do espaço de encontro, apenas na proposta
final a cozinha é vista a partir deste ponto.
A cozinha é uma das chaves para entender as relações sociais no espaço doméstico no Brasil, em
função de seu passado escravagista. Ela sempre foi separada da estrutura doméstica por questões
sociais (LEMOS, 1972). Isso é evidenciado por Trigueiro (1994, 2012) em sua análise dos
sobrados coloniais. Trigueiro demonstrou que a cozinha, junto com os espaços dos serviçais,
sempre foram os mais segregados na estrutura doméstica. Mesmo chegando à conclusão de que
as estruturas espaciais dos sobrados coloniais “não são uma coisa só” (TRIGUEIRO, 1994, 2012),
confrontando afirmações encontradas na literatura (VAUTHIER, 1981), o estudo é fundamental
para a compreensão do papel social deste espaço (Figura 11). Segundo ela, “[...] a cozinha,
entretanto, é consideravelmente segregada assim como todos os espaços que teriam sido ocupados
por escravos ou empregados. [...] A cozinha e a despensa são as últimas células a se atingir”
(TRIGUEIRO, 2012:206).
Figura 11. Sobrados Coloniais e Proposta Final. (Fonte: TRIGUEIRO, 2012; FRANÇA; SOUSA, 2022).
Em pesquisa recente, Trigueiro et al (2022) defendem que estudar os aspectos projetuais relativos
à forma como as cozinhas se relacionam com o conjunto doméstico são importantes, pois, embora
mudem ao longo do tempo, ainda se mantém segregada. Para Trigueiro et al,
“as mudanças sociais que, a partir do final do século XIX, alteraram os níveis de
acessibilidade e a importância de alguns cômodos, pouco contribuíram para reverter o
papel espacial das cozinhas como limiares entre o conjunto da casa e os aposentos de
serviço, entre o que era para ser visto e o que não era [...] elas continuaram sendo a rota
obrigatória para acomodações de empregados, lavanderias, coleta de lixo ou o que
pudesse ser considerado desagradável aos olhos ” (Trigueiro et al, 2022, p.02)6.
Por isso, a cozinha não está relegada a este papel secundário na estrutura da casa comunitária, ao
torná-la visível, integrada e em relação de permeabilidade com o principal espaço social do
edifício, é uma das maneiras de romper com arranjos espaciais que representam historicamente
espaços de opressão e não de liberdade.
A Tabela 1 mostra a síntese das principais medidas sintáticas utilizadas na análise. Estas medidas
explicitam o caminho percorrido na busca pela melhor configuração, em respostas às diretrizes
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projetuais. A Proposta Final findou por ser uma das mais rasas, tanto a partir do exterior quanto
a partir do espaço central, mesmo tendo o maior número de espaços convexos. É o sistema mais
integrado da amostra confirmado pelas medidas de Integração (1/RRA e HH) e possui o maior
campo de Isovista a partir do espaço de encontros.
Tabela 1. Medidas Sintáticas (Fonte: elaborado pelos autores).
Propostas
Espaços Convexos 26 26 28 31
Profundidade (exterior) 6 5 7 4
Portanto, as medidas sintáticas mostram que a proposta final é a que melhor atende aos objetivos
do projeto, ao propor um espaço integrado, raso, permeável, com alto nível de conectividade e
integração visual, ao mesmo tempo que resguarda o espaço central (Isovista 01). É dentre as
propostas a que mais se aproxima de um espaço cuja segregação e hierarquização espacial é
atenuada pela configuração.
5. Conclusão
O processo de projeto amparado pelo instrumental teórico e metodológico da Sintaxe Espacial
permitiu maior pertinência na definição do sítio e revelou as potencialidades e fragilidades de
cada proposta ao longo do desenvolvimento. Os resultados apresentados explicitaram o caminho
percorrido até chegar a uma configuração rasa, permeável e com alta conectividade e integração.
Portanto, a proposta final responde aos objetivos do trabalho ao se contrapor, morfologicamente,
a lugares de forte controle social, hierarquia e segregação.
As medidas de conectividade e integração visual, mostram que ao longo do processo houve um
deslocamento das áreas mais conectadas e integradas do viveiro (no exterior oposto à rua) para o
espaço de encontro, no centro do projeto. A centralidade passa pelo espaço de encontro, para onde
todos os demais espaços se abrem, e é reforçada com o círculo, uma referência ao tacho de cobre,
atividade econômica que sustenta a comunidade Mesquita ao longo de séculos. Este é o elemento
sob o qual a comunidade se reúne e é o espaço mais integrado do sistema.
Espaços do cotidiano (sala de leitura, loja, sala de reunião e música) são mais integrados, sendo
os espaços de apoio (depósitos e banheiros) menos integrados. A cozinha tem papel de destaque,
está a poucos passos sintáticos do exterior, é um dos espaços mais integrados e em relação de
permeabilidade com o principal espaço social do edifício, em franca relação com o espaço de
encontros. Portanto, a configuração espacial, ao colocar a cozinha como espaço integrado e pouco
profundo no sistema, rompe com a lógica de segregação historicamente encontrada na moradia
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16
brasileira (Trigueiro, 1994; 2012; 2022), denotando a valorização desse espaço na dinâmica da
casa coletiva.
A aproximação do edifício com a rua foi alcançada com um diálogo direto, reforçando a
permeabilidade a este espaço comunitário. O espaço de encontro é o mais raso em relação à rua,
mas é também, somente no projeto final, invisível a partir desse ponto. A Isovista a partir da
entrada funciona como um convite para que a comunidade adentre se sinta em casa. O gesto de
não entregar diretamente o espaço de encontro é sobretudo um ato de respeito, pela trajetória de
luta e autogestão da comunidade quilombola.
O muro de gabião semicircular foi o recurso usado e tem dupla função: criar um fundo para os
três pés de marmelos que homenageiam as fundadoras do quilombo e proporcionar a mediação
do tempo necessário para que o espaço de encontro seja finalmente descortinado. Os marmelos
como as guardiãs, que convidam para entrada pela porta sempre aberta e protegem visualmente o
espaço da plenária. A Figura 12 mostra o layout e o corte com o espaço central rebaixado.
Espera-se com este trabalho contribuir para o campo dos estudos morfológicos não só como
aplicação da ferramenta, mas como os conceitos da sintaxe espacial podem ajudar na concepção
de lugares, na reflexão para futuros projetos. Os estudos até chegar à configuração final revelam
como a sintaxe pode auxiliar na definição do melhor arranjo espacial, a partir das diretrizes de
projeto, que, no caso do Quilombo Mesquita, tiveram na história e nas práticas cotidianas a
origem.
6. Referências
AGUIAR, Vinícius Gomes de. Conflito Territorial e Ambiental no Quilombo Mesquita, Cidade
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NOTAS NOTAS
1
Esse artigo tem como base textos anteriormente apresentados no 13th Space Syntax Symposium
(FRANÇA; SOUSA, 2022) e no XIII Encontro Estadual de História ANPUH GO (FRANÇA; SOUSA;
NAVARRO, 2022), fruto de TFG em Arquitetura e Urbanismo defendido no Uniceplac por Franciney
França, orientado pelo prof. Me. Octávio dos Santos Sousa.
2
Beatriz Nascimento (1942-1995) foi historiadora, professora, roteirista, poeta e ativista pelos direitos
humanos de negros e mulheres, é considerada uma das mais importantes pesquisadoras e teóricas da história
negra no Brasil. Foi uma das primeiras historiadoras a questionar a abordagem acadêmica de temas
relacionados ao negro na sociedade brasileira
3
Desde 1549, quando chegaram os primeiros africanos até abolição da escravatura no Brasil, em 1888,
várias foram as lutas e resistência do povo negro. Um século, de 1888 a 1988, para terem na Constituição
Federal o direito à titulação de seus territórios. O Artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias (ADCT), estabelece a obrigatoriedade de o Estado Brasileiro emitir os títulos das terras por
elas tradicionalmente ocupadas e a salvaguarda legal das manifestações culturais das comunidades
quilombolas. Da conquista na Constituição até sua implementação, os quilombolas continuam resistindo e
lutando por seus direitos. A quantidade de territórios reconhecidos e titularizados é aquém da realidade dos
quilombos no Brasil, são estimados mais de 6 mil comunidades quando menos de um terço são titularizados
(Comissão PróÍndio, 2017; IBGE, 2021).
4
Durante do ano de 2021 foram realizadas reuniões periódicas com a líder quilombola Sandra Pereira Braga
e entrevista com o pesquisador Manoel Barbosa Neres, um dos maiores estudiosos sobre o Quilombo
Mesquita. Essas reuniões foram fundamentais para entender as demandas e anseios por espaços para os
projetos culturais da comunidade. A proposta surge como estudo a ser apresentado posteriormente para
toda comunidade.
5
MULTIAGREGADOR foi um termo cunhado por Sandra Pereira Braga, líder quilombola, durante
conversa em março de 2021.
6
Tradução dos autores, no original: “since the social changes that, from the late 19th century on, altered
the levels of accessibility and the importance of some rooms, did little to revert the spatial role of kitchens
as thresholds between the whole of the house and the service quarters, between what was to be seen and
what was not. [...] Although that change tended to pull kitchens into a less secluded position within the
domestic layout, they carried on being the obligatory route to servants’ accommodation, laundry facilities,
rubbish disposal or whatever might be deemed distasteful to the eye” (Trigueiro et al 2022, p.02).
Nada será como antes, mas tudo é o mesmo: duas residências
pós-modernistas brasileiras sob o olhar da sintaxe espacial
Resumo. O presente artigo tem o objetivo de analisar, por meio do instrumental teórico-metodológico da
Sintaxe Espacial, a configuração dos espaços domésticos de duas residências unifamiliares pós-
modernistas brasileiras: a Casa Bola (1979) de Eduardo Longo e a residência Hélio e Joana (1982) dos
arquitetos Sylvio Emrich de Podestá e Éolo Maia. Em análise comparada, foram realizados estudos
correlacionais dos perfis sintáticos das duas edificações a partir de modelos de visibilidade e grafos de
fluxo. Por meio da investigação, foi possível correlacionar as modelagens obtidas com a bibliografia
revisada, delineando as propriedades sintáticas das edificações e avaliando seus padrões. Por fim, após
investigação, este estudo revela a permanência das relações socioespaciais tradicionais e do paradigma
dos setores funcionais herdados da arquitetura modernista brasileira e anteriores a ela.
Palavras-chave. Sintaxe Espacial, pós-modernismo, arquitetura residencial, Eduardo Longo, Sylvio de
Podestá.
Nothing will be like before, but everything is the same: two Brazilian postmodernist
residences under the gaze of spatial syntax
Abstract. This article aims to analyze, through the theoretical-methodological tools of Space Syntax, the
configuration of the domestic spaces of two Brazilian postmodernist single-family homes: Casa Bola (1979)
by Eduardo Longo and the Hélio and Joana’s house (1982) by the architects Sylvio Emrich de Podestá and
Éolo Maia. In a comparative analysis, correlational studies of the syntactic profiles of the two buildings
were carried out from visibility models and flow graphs. Through the investigation, it was possible to
correlate the models obtained with the revised bibliography, outlining the syntactic properties of the
buildings and evaluating their patterns. Finally, after investigation, this study reveals the permanence of
traditional socio-spatial relationships and the paradigm of functional sectors inherited from and prior to
Brazilian modernist architecture.
Keywords: Spatial Syntax, postmodernism, residential architecture, Eduardo Longo, Sylvio de Podestá.
513
514
2
1.Introdução
A arquitetura pós-moderna surge como termo genericamente utilizado para se referir aos novos
projetos arquitetônicos que surgiram partir dos anos 1960 e que se manifestavam divergentes à
arquitetura modernista. O que fosse produzido passaria a ser pensado como objeto híbrido,
complexo, ambíguo e contraditório. Como estilo abrangente, estava longe de ser unificado
(COLIN, 2005). No Brasil, a inserção dos preceitos pós-modernistas ocorreu de forma bastante
lenta e dispersa. A imperante tradição modernista dificultou exposições de debates e críticas
significativas sobre sua produção arquitetônica (MARQUES, 2008). Porém, nos finais da década
de 1970, os discursos modernos começaram a ser confrontados (BASTOS; ZEIN, 2010). O que
se produziria a partir dali seriam objetos híbridos que refletiriam a ebulição cultural e as incertezas
da época. O pós-modernismo brasileiro não seria marcado pela dissolução do modernismo e
transformação radical em um novo movimento, mas sim de apreensão de novas propostas e da
pluralidade crítica.
Tantos nos estudos sobre a produção pós-modernista quanto nos demais momentos, “[...] as
teorias [em arquitetura] têm sido extremamente normativas e pouco relacionais” (HILLIER;
HANSON, 1997, p. 1-3 - tradução nossa) definindo “estilos” como regras de composição plástica
das caixas murais dos edifícios. Percebe-se que muito da produção atual em teoria e história da
arquitetura replica este tipo de análise. Assim como as explorações arquitetônicas pós-
modernistas, é visto que as investigações se debruçam mais sobre os aspectos plásticos, estéticos
e escultóricos dos edifícios. Diante disso, propõe-se aqui um estudo sobre o espaço. Como
dialogado por Zevi (2009, p.28):
[...] o fato de o espaço, o vazio, ser o protagonista da arquitetura é, no fundo, natural,
porque a arquitetura não é apenas arte nem só imagem da vida histórica ou da vida vivida
por nós e pelos outros; é também, e sobretudo, o ambiente, a cena onde vivemos a nossa
vida.
Deste modo, pretende-se expandir o debate sobre a arquitetura pós-modernista inserindo um plano
de análise que implica na configuração dos espaços sob seu caráter relacional intrínseco,
independentemente do tempo, lugar e sujeitos envolvidos. Em outras palavras, uma análise a
partir da sintaxe e não apenas da semântica (HOLANDA, 2013, p. 162). Logo, encontrou-se na
Teoria da Lógica Social do Espaço desenvolvida por Bill Hillier e Julienne Hanson (1984) como
opção de instrumento teórico-metodológico para a realização deste trabalho. Nesta perspectiva,
os espaços na arquitetura surgem como dimensões sociais que incorporam os limites e as
possibilidades contidas na cultura em sua configuração.
O espaço doméstico foi escolhido como objeto de pesquisa pois traz consigo um conjunto de
fenômenos complexos carregados de elementos sociais e simbólicos (HANSON, 1998). A
proposta aqui é investigar a configuração espacial doméstica de duas residências unifamiliares
pós-modernistas brasileiras: a Casa Bola (1979) de Eduardo Longo e a residência Hélio e Joana
(1982) dos arquitetos Sylvio Emrich de Podestá e Éolo Maia. Elas foram selecionadas por
representarem - em sua estrutura estética, plástica e formal - o discurso de uma época e serem
produtos de autores que se destacaram nacionalmente neste período. Este artigo faz parte de uma
pesquisa maior em andamento que visa analisar os padrões espaciais da arquitetura residencial do
século XX no Brasil em busca de um novo olhar para a Teoria e História da Arquitetura brasileira.
A experiência do habitar pós-modernista é discutida por pesquisas cujo foco está geralmente na
identificação dos edifícios e de seus autores, no entendimento do contexto e na análise formal em
seus termos estéticos e funcionais. Em contrapartida, este artigo dá ênfase na investigação das
semelhanças e diferenças dos padrões socioespaciais da amostra, verificando se tais padrões são
condizentes com a proposta pós-modernista de seus autores ou se repetem os padrões tradicionais
brasileiros. É importante entender as estratégias espaciais que qualificam a relação entre os
residentes, visitantes e empregados (FRANÇA, 2008). Como afirma Holanda (2007, p.125): “[...]
a arquitetura cria, sim, um campo de possibilidades e de restrições, possibilidades que podem (ou
não) ser exploradas, restrições que podem (ou não) ser superadas”. Isto posto, busca-se observar
515
3
como as relações sociais – ver e ser visto, encontros e esquivanças e os arranjos dos corpos no
espaço e tempo – correlacionam-se com aspectos geométricos e topológicos das residências.
A Sintaxe Espacial toma como base os princípios quantificáveis e topológicos. Tanto os espaços
quanto às práticas socioculturais intrínsecas a eles são avaliados de acordo com os critérios de
permeabilidades e barreiras (aspecto de acessibilidade ao movimento) e de opacidades e
transparências (aspecto de acessibilidade visual). Enquanto método, a Sintaxe Espacial possui
estratégias de representação do espaço e seus padrões sociais, além da geração de dados
qualificáveis. Para esta investigação, foram realizadas análises a partir de poligonais convexas e
campos visuais. Portanto, as técnicas de análise aplicadas neste estudo serão: a dos gráficos
justificados gerados pelo software JASS e a dos mapas de visibilidade (VGA – Visibility Graph
Analysis) gerados pelo software Depthmap.
A análise convexa é gerada a partir de grafos justificados que surgem da apropriação por Hillier
e Hanson (1984) da Teoria dos Grafos. O método aplicado na análise espacial auxilia na descrição
das propriedades morfológicas da forma arquitetônica e urbana através de sua representação como
um agrupamento de elementos quantificáveis (OLIVEIRA et al, 2015). Nela, os círculos ou nós
(node) equivalem aos espaços e as linhas ou vértices (edge) às passagens, cruzamentos e conexões
entre ambientes (HANSON, 1998, p.7). Os grafos são organizados de maneira justificada,
partindo de um nó de referência (raiz), que neste caso, corresponde ao acesso externo às casas.
Isto posto, as conexões dentro do sistema serão avaliadas a partir das seguintes propriedades:
Integração (Real Relative Asymmetry): é a medida que quantifica a acessibilidade
topológica de cada espaço em relação aos outros dentro sistema (HILLIER; HANSON,
1984, p.114-115). Ou seja, quanto mais acessível é o espaço, considerando todo sistema
espacial, mais integrado ele é.
Profundidade (Depth): é a distância medida entre um espaço e a raiz. Quanto mais
distante, topologicamente, mais profundo é o espaço.
Controle (Control): valor de controle de um ambiente, determinado como ponto de
passagem para outros espaços. O tipo de formato do grafo (Figura 01) determinará se um
espaço é de menor controle, (grafo anelar) ou de maior controle (grafo tipo árvore).
O grafo anelar é caracterizado por sua qualidade de possui rotas alternativas de conexões entre os
espaços (anéis). De modo geral, as plantas de aspecto anelar facilitam encontros ou esquivanças
entre aos atores ao definir rotas mais convenientes. Em contrapartida, o grafo tipo árvore não dá
alternativa a rotas diferentes, manifestando maior de controle espacial e moderando o acesso para
um ou mais espaços. Usualmente, essas configurações espaciais influenciam bastante sobre a
interface social e de movimento no sistema (ALDRIGUE, 2012).
516
4
(a) (b)
Figura 1. (a) Grafo anelar e (b) Grafo tipo árvore (fonte: adaptado de HILLIER, 1996, p. 249).
Os mapas (ou grafos) de visibilidades (ou mapas VGA) representam graficamente as mudanças
dos campos de visão do usuário conforme o seu movimento nos ambientes construídos. Guiando-
se pelo conceito de isovistas adaptado por Turner (et al., 2001) buscou-se gerar uma descrição do
espaço a partir do ponto de vista do indivíduo. As isovistas correspondem à representação de um
polígono visível que a partir de um ponto determinado define o nível de visibilidade de um espaço
com base nesta referência. Dentro de uma ótica global, método desenvolvido por Turner (et al.,
2001), considerou-se, na análise, todos os pontos dentro do polígono (calculados através de uma
malha gerada pelo software Depthmap). Neste estudo utilizou-se a variável de integração visual
que é representada em um sistema de cores, no qual as mais quentes representam os locais de
onde se tem maior integração e as mais frias indicam os locais mais segregados (Figura 2). Deste
modo, foi possível analisar a influência da configuração no comportamento humano e na
experiência do espaço.
Figura 4. Casa Bola: setorização funcional. (fonte: elaborada pelos autores, 2022).
518
6
Figura 5. Casa Bola: planta de análise e grafo justificado a partir da raiz de acesso (fonte:
elaborada pelos autores, 2022).
Tabela 1. Casa Bola: dados quantificáveis das propriedades sintáticas (fonte: elaborado pelos
autores).
Propriedades sintáticas
Espaços Profundidade Controle Integração
Acesso 0 0,25 1,83
Hall de entrada 1 3,25 1,44
Corredor nível 0 2 2,25 1,14
Cozinha 2 0,25 1,83
Sala de jantar 2 0,25 1,83
Escada 1 3 0,58 1,41
Escada 4 3 0,50 1,05
Lavabo 3 0,25 1,53
Corredor nível -1 4 2,50 0,98
Sala de estar 1 4 1,50 1,71
Lavanderia 5 0,25 1,38
Escada 2 5 0,83 2,08
Escada 3 5 0,83 2,08
Escada 5 5 0,50 1,05
Suíte do casal 5 1,25 1,35
Banheiro da suíte do casal 6 0,50 1,74
Corredor nível -2 6 2,00 1,14
Sala de estar 2 6 1,00 2,44
Escada 6 7 0,45 1,38
Suíte 1 7 1,25 1,50
Suíte 2 7 1,25 1,50
519
7
Ao observar o grafo justificado (Figura 5), fica explícito a profundidade das dependências da
empregada e as áreas de serviço da residência. Seguindo uma configuração residencial mais
conservadora, vê-se a partir dessa representação, o indício do continuísmo das relações mais
segregadas da casa brasileira quanto aos ambientes de serviço, e principalmente em relação as
atividades da doméstica (TRIGUEIRO; MARQUES, 2015). Seus valores de integração
(conforme Tabela 1) corroboram com essa perspectiva, sendo os ambientes menos integrados da
residência. Em contrapartida, a intimidade dos residentes se avizinha a essas dependências. As
suítes dos filhos e do casal também se afastam do acesso exterior. Acompanhado aos dormitórios,
os banheiros íntimos se aprofundam na ordenação dos espaços domésticos. Em seguida, as
funções mais sociais se aproximam a raiz de acesso facilitando ao alcance exterior. Os ambientes
direcionados a essas atividades se implantam nos níveis mais elevados da residência.
O arquiteto setoriza a esfera em duas. A metade inferior confere as atividades privativas e íntimas
dos moradores conferindo mais limites. A metade superior acomoda as atividades mais públicas
e sociais com espaços mais amplos. Neste projeto, observa-se a ênfase dada aos ambientes de
refeição. Logo junto ao hall de entrada, Eduardo Longo locou a cozinha e a sala de jantar,
ambientes de socialização da família e visitantes. Aos níveis mais superiores (nível +1 e + 2) são
atribuídos cômodos de estar mais intimistas que se encontram em uma profundidade intermediária
no grafo justificado. Seu valor de integração (2,44) é o maior valor encontrado no sistema,
indicando-o como espaço topologicamente mais segregado.
O que mais se destacou na representação foram os pontos de circulação da casa. Como espaços
de mediação e distribuição, também são os maiores responsáveis pelo aprofundamento dos
ambientes mais íntimos. Conforme os valores obtidos através dos cálculos, o cômodo mais
integrado do sistema é o corredor de circulação do nível -1 atingindo o marco de 0,98. Ele é
responsável por dar continuidade aos movimentos de circulação, dando acesso às escadas tanto
para o nível 0 quando para o nível -2. Ademais, modera o fluxo para a suíte do casal.
Ademais as questões de integração, observamos (conforme Tabela 1) que a circulação aparece
novamente como elemento essencial ao sistema, conferindo ao corredor no nível -3 o maior valor
de controle (4,50). Ele é responsável pela transição entre escada para o nível -2, as dependências
da empregada e as áreas de serviço. O formato do grafo tende ao tipo árvore demonstrando
restrições a rotas diferentes, o que evidencia o controle espacial maior na moderação de acesso.
520
8
Figura 6. Casa Bola: mapas de visibilidade - VGA (fonte: elaborada pelos autores, 2022).
Para esta residência, foram gerados seis mapas de visibilidade (Figura 6) correspondentes a cada
meio nível da residência. Devido ao seu mobiliário fixo, a área de análise foi reduzida. Analisando
o nível mais superior (nível 2), observa-se uma gradação de cores do campo visual no ponto de
vista global do espaço. As fronteiras marcadas pelo limite do piso impedem a permeabilidade
continua sobre toda a área. Os pontos mais quentes da representação se localizam justamente
sobre a área de estar, mais especificamente, sobre o sofá (ver figura 7). Como local de maior
permanência, o mapa de integração indica seu potencial de socialização e importância dentro do
conjunto. Sua influência diminui no decorrer do nível até as áreas de acesso pelas escadas. Já no
nível 1, o espaço possui uma maior compacidade. Em termos topológicos e geométricos, a
compacidade pode ser entendida como propriedade de espaços compactos, fechados e limitados
que criam convergências e concentrações em pontos que tendem a ser mais densos e integrados
em relação ao todo. Ou seja, o ponto central deste ambiente acaba se transformando em um ponto
focal onde o usuário tem um campo visual mais aumentado e integrado em comparação aos outros
pontos do sistema.
No nível 0 (acesso), a zona de maior integração está relacionada ao movimento e acessibilidade
aos cômodos. Ela se implanta sobre as áreas de transição entre a cozinha, sala de jantar e hall de
entrada. Como espaço de encontro, possui potencial de recepção a visitas. Muito devido a
concavidade dos mobiliários fixos da cozinha e lavabo, a integração visual tendeu a reduzir. As
cores frias indicam o caráter mais privativo e intimo desses locais, o que faria sentido,
principalmente em relação ao lavabo. Poderíamos considerar aqui o preparo do alimento atrás da
bancada uma atividade mais familiar e intimista.
Partindo para os ambientes inferiores e mais íntimos do sistema, o nível -1 englobou a pequena
área da suíte do casal (figura 7) e lavanderia. Tal como no nível 0, a zona de maior visibilidade
está na transição entre o dormitório (mais privado) e o corredor de mediação (menos privado).
Adentrando ao ambiente de repouso, as manchas mais quentes localizam-se na frente do banheiro
conferindo ao seu usuário maior acesso. Em contrapartida, as zonas posteriores a cama, banheiro
e lavanderia são representados sob cores frios as quais também indicam segregação. No nível -2,
a circulação recebe destaque por sua acessibilidade, transitoriedade e movimento entre os
cômodos. No nível -3, o ponto de maior integração visual ficou centralizado e focado na faixa de
521
9
Figura 7. Vistas internas da Casa Bola. Acima os ambientes sociais e abaixo os quartos. (fonte:
imagens retiradas de <https://followthecolours.com.br/follow-decora/casa-bola-em-sao-paulo/>,
acesso em 18 jul.2022).
3.2 Residência Hélio e Joana (1983), Sylvio Emrich de Podestá em parceira com Éolo Maia
pavimento, em torno de um grande eixo de circulação central que se inicia na entrada e se alonga
até o setor íntimo da edificação. O espaço externo é dividido em duas áreas: uma área de lazer,
com piscina e churrasqueira e outra com pomar e jardim (PRADO; TAGLIARI, 2019). Além do
acesso principal, a residência possui outros três acessos que seriam: um pela garagem, um pelo
escritório e um pela área de serviço.
Figura 9. Residência Hélio e Joana: setorização funcional, planta de análise e : grafo justificado
a partir da raiz de acesso (fonte: elaborada pelos autores, 2022).
Tabela 2. Residência Hélio e Joana: dados quantificáveis das propriedades sintáticas (fonte:
elaborado pelos autores).
Propriedades sintáticas
Espaços Profundidade Controle Integração
Acesso 0 1,37 0,83
Escritório 1 1,08 0,99
Garagem 1 0,78 0,93
Hall de entrada 1 1,62 0,59
Serviço 1 1 0,45 1,05
Corredor 1 2 1,73 0,48
Cozinha 2 0,73 0,82
Lavabo 2 0,40 0,82
Sala de estar 2 0,53 0,82
Serviço 2 2 3,17 0,82
Banheiro de serviço 3 0,20 1,30
Corredor 2 3 3,70 0,68
Quarto de empregada 3 0,20 1,30
Sala de Jantar 3 0,73 0,68
Banheiro 4 0,20 1,16
Dormitório 1 4 0,20 1,16
523
11
Conforme o grafo justificado (Figura 9), fica clara a setorização funcional altamente definida.
Primeiramente vemos que a casa possui 5 níveis de profundidade, o que a faz o exemplar
analisado menos profundo que o anterior. Uma circulação direta que transpassa todos os cômodos
até chegar ao setor íntimo, diminui a dificuldade de acesso externo aos ambientes mais afastados
da entrada. Como eixo principal da residência composta por hall de entrada, corredor social e
corredor íntimo, ela tem o papel essencial na distribuição, conexão e movimento dentro do sistema
espacial. Sobre isso, o arquiteto explica-se: “A razão de uma circulação tão extensa dizia respeito
a uma contrapartida do discurso modernista, da época do projeto, quando existia um esforço
enorme em eliminar ou reduzir ao máximo o corredor dos quartos” (PODESTÁ, 2000, p. 60).
Como indício de todas essas características, a circulação central possui os maiores valores de
integração dentro do sistema (conforme – Tabela 2). O corredor 2, circulação de distribuição para
as salas de estar e jantar da residência, detém o valor de integração de 0,48, conferindo ao setor
social maior acessibilidade topológica.
Por outro lado, o eixo central não se apresenta como único acesso externo a residência. Como
citado anteriormente, a entrada pode ser feita através da garagem, área de serviço ou escritório. O
ingresso pela área de serviço pode ser inferido como acesso dos empregados. Sua área é bem
definida. De suas dependências (banheiro e dormitório), o empregado dirige-se a área de serviço,
cozinha e posteriormente sala de jantar, um movimento típico para as atividades domésticas.
Diante disto, vemos uma forte ligação com a tradição de reclusão das atividades de serviço no
morar brasileiro em relação ao núcleo social e íntimo familiar da casa. Este seria um aspecto
social hierarquizante do espaço
O ingresso externo pela garagem e escritório dão acesso direto a circulação central e setor social,
respectivamente. Os dormitórios e banheiros são os mais segregados no sistema. Dentre os valores
obtidos (conforme Tabela 2), o banheiro da suíte apresenta o menor valor de integração.
Acompanhado a ele, as dependências de empregada, dormitórios e banheiro seguem como os
espaços menos integrados no sistema. Em relação ao valor de controle, os últimos citados
compreendem o grupo de espaços de menor medida (todos, 0,20, conforme Tabela 2). Eles
configuram pontos de menor movimento, deste modo, coerente ao caráter de repouso e reclusão
desses espaços. Mesmo com alta setorização e controle, a residência Hélio e Joana detém
conexões diferenciadas e rotas alternativas de acesso entre ambientes. O grafo justificado
apresenta uma forma anelar o que indica a facilidade de encontros e esquivanças entre os atores
de acordo com sua conveniência. Em relação a isto, Holanda (2007, p.124 – grifos nossos) dispõe:
Para a disciplina arquitetura sociológica, a realidade empírica expectativas sociais diz
respeito a um sistema de encontros e esquivanças, de concentração e dispersão de
pessoas. Cada sistema social implica uma peculiar maneira de organizar grupos de
pessoas no espaço e no tempo, maneira que estabelece quem está próximo ou distante de
quem, fazendo o quê, onde e quando.
O nível único do projeto da residência Hélio e Joana foi analisado segundo o mapa de visibilidade
(Figura 10). Partimos aqui sob um olhar mais específico sobre cada setor funcional. Começando
sobre o setor mais à frente da residência, os ambientes de serviços apresentam um menor nível de
integração visual. Relacionada a atividades mais menosprezadas, sua permeabilidade visual é
menos demandada se comparada aos ambientes sociais. As áreas íntimas de serviço, referentes as
dependências da empregada são visualmente mais segregadas se comparada ao todo sistema
espacial.
524
12
Figura 10. Residência Hélio e Joana: mapas de visibilidade - VGA (fonte: elaborada pelos
autores, 2022).
O setor íntimo, devido a convexidade de seus espaços internos, possui um campo visual uniforme.
O banheiro da suíte apresenta uma menor acessibilidade visual em relação ao todo. Devido a força
visual do corredor, a permeabilidade do dormitório se torna maior. No mapa de visibilidade, o
destaque fica com o eixo de circulação. Ele possui os maiores índices de permeabilidade visual,
com ênfase maior na área de transição entre os ambientes sociais (estar e jantar). É razoável
considerar esta característica devido o potencial de relação entre os atores no ambiente e seu
movimento. Além disso, esta zona de circulação não possui barreiras que impeçam o campo
visual.
visitantes e empregados. O setor social é o mais raso em comparação aos demais, sendo entrada
principal dos habitantes e de recepção de visitantes. Neste sentido, afirma-se como o espaço
gerador de movimento no sistema, integrando globalmente toda a casa.
Já as circulações detiveram, em termos numérico e gráficos, a maior relevância. São responsáveis
por garantir a conectividade no sistema, além de funcionar como mediador maximizando sua
profundidade. Seus espaços serviram como pontos principais de acesso a outros ambientes
conectando todo o sistema de três setores. Seu papel mediador induz o aumento do sigilo
necessário para as unidades privadas operando sobre o acesso aos territórios exclusivos aos
habitantes e visitantes (AMORIM, 1997). No projeto de Podestá e Maia, a forte presença da
circulação representaria um esforço contrário ao modernismo e a sua tentativa de eliminar ou
reduzir ao máximo o corredor dos quartos (PODESTÁ, 2008).
Vê-se na organização da amostra o indício da segregação dos ambientes de serviço, e -
principalmente - em relação as atividades da empregada doméstica. Ainda, se vê a persistência de
um acesso exclusivo aos que trabalham nas casas pela área de serviço. A estrutura espacial é
articulada de modo a definir bem o movimento independente da funcionária determinando
racionalmente seus níveis de acesso. Deste modo, é visto o forte vínculo com a tradição de
reclusão das atividades de serviço no morar brasileiro, isolando-as, sob áreas menos valorizadas,
do núcleo social e intimo familiar. Como reflexo dessa tradição, também associada às antigas
senzalas (MARQUES, 2008), a cozinha e área de serviço nos projetos brasileiros, são escondidas
e particularizadas. O próprio arquiteto Podestá, falando sobre a arquitetura residencial parece
admitir essa continuidade:
A senzala diminuiu, transformando-se em DCE; os banhos, ofertados como símbolos de
status, aumentaram quantitativamente e se particularizaram; a cozinha nem sempre é mais
o coração da casa, mas está ali junto à senzala; o quintal, antes produtivo, virou jardim
contemplativo; a sala de visitas só conseguiu sobreviver como sala de TV. (PODESTÁ,
2000, p. 11).
O estabelecimento de uma diferenciação fundamental entre servidores e habitantes, está
vigorosamente enraizada na estrutura social do morar brasileiro. Seria um modo de
estabelecimento de status social e diferenciação de classes. Os resultados mostram indícios da
manutenção desses padrões socioespaciais vinculada a estratificação de classes da sociedade
brasileira herdada deste o período colonial, determinando quem são os dominantes e quem são os
dominados. A arquitetura Moderna pouco quebrou esses padrões (ALDRIGRE, 2012;
TRIGUEIRO & MARQUES, 2015; GURGEL, 2018) e a arquitetura pós-moderna também não o
fez. Sob a configuração espacial burguesa, os setores de serviços demarcam os limites máximos
de acesso dos criados.
Na amostra, o setor íntimo é o mais profundo e segregado. Este aspecto se justificaria para as duas
residências devido a necessidade de privilegiar nos ambientes a ocupação e não o movimento.
Neste caso, o intuito era proporcionar o resguardo e a privacidade da família. Acompanhado aos
dormitórios, os banheiros privativos são os mais afastados dentro da estrutura espacial doméstica.
Como observado no estudo de sua casa, Eduardo Longo primaria em seus projetos pela
valorização da privacidade, o que pode ser observado nos espaços íntimos e de repouso
(CARRANZA, 2004).
Após todas essas conclusões, seria possível observar que mesmo que as caixas murais (invólucro
do edifício) fossem distintas, as configurações espaciais podem ser semelhantes. Isto se dá devido
à continua reprodução, por esta amostra, das tradições brasileiras sobre o espaço conferindo uma
espécie de genótipo do morar brasileiro. Este gene é repassado de geração em geração, conferindo
pequenas mutações, mas detendo ainda as mesmas estruturas. Através deste estudo foi possível
encontrar nas duas residências um conjunto de características intrínsecas à configuração espacial,
constatando a existência de parentescos, heranças ou afinidades na organização com as produções
antepassadas.
Contudo, uma questão ainda permanece: A manutenção desses preceitos se daria porque os
arquitetos preservam-se nas heranças de um estilo ou porque a família brasileira não se
526
14
modificou? Nosso estudo não teve acesso a realidade das famílias, o que nos ajudaria a responder
com mais clareza essa questão. Ademais, a partir da leitura sintática da amostra ainda não é
possível definir de forma determinante, o perfil do morar pós-modernista brasileiro. Contudo,
enxerga-se, mesmo ainda neste panorama limitado, a manutenção desse conservadorismo. Ou
seja, as “cascas” se atualizaram, mas as variáveis espaciais continuaram se mantendo.
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Cozinhas contemporâneas brasileiras: uma “viúva grávida”?
528
529
2
coletados a partir de anúncios comerciais publicados no jornal Correio da Paraíba, que circulou
até 2020, em João Pessoa/PB (Figura 1). Dois dos autores deste artigo projetaram algumas das
casas em condomínios fechados, cujas plantas foram aqui analisadas, tendo sido as demais
gentilmente cedidas por colegas arquitetos 6.
Figura 1: Os estados do Rio Grande do Norte e da Paraíba no Brasil (fonte: PARAÍBA, 2022;
RIO GRANDE DO NORTE, 2002, editado pelos autores).
Em cada tipo edilício foram observados aspectos geométricos e topológicos com foco nas
cozinhas, mas levando em conta outros rótulos, alusivos às funções-chave dos espaços
domésticos. Propriedades geométricas (área e posição em relação ao edifício) e de configuração
(conectividade e acessibilidade dos espaços-chave em relação a todos os outros) foram
comparadas individualmente, em cada tipo de moradia, e entre os três tipos analisados.
Enquanto propriedades geométricas informam sobre características tradicionalmente associadas
à importância funcional e status social (ou seja, tamanho e localização – frente, fundos, centro,
lado), os padrões topológicos indicam relações espaciais enraizadas na configuração, como um
“meio pelo qual a arquitetura pode carregar cultura”, conforme Hanson (1998, pp. 31-33)7, para
quem
Relações espaciais existem onde há qualquer tipo de ligação entre dois espaços. A
configuração existe quando a relação entre esses dois espaços é alterada pela inserção de
um terceiro, ou mais espaços. As configurações espaciais, portanto, tratam mais do modo
como um sistema de espaços está relacionado para formar um padrão, do que de
propriedades individuais de qualquer espaço (HANSON, 1998, pp. 22-23)8.
Para verificar como os espaços se relacionam e formam padrões e, mais especificamente, como
as cozinhas se relacionam com o sistema configuracional, foi feita a representação de cada planta
em grafos de acesso justificados que permitem calcular a Integração/Assimetria Relativa Real 9
(RRA), ou seja, a hierarquia de acessibilidade de cada espaço em relação a todos os outros (Figura
2).
A integração surgiu nos estudos empíricos como um dos meios fundamentais pelos quais
as casas transmitem cultura mediante suas configurações. […], começamos a descobrir
que nos casos em que pudemos trabalhar com uma amostra estatisticamente confiável de
casas existentes, tradicionais e vernaculares, diferentes funções ou atividades eram
sistematicamente atribuídas a espaços que se integravam às moradias em diferentes graus.
A função adquiriu assim uma expressão espacial, à qual também se pode atribuir um valor
numérico. Onde essas diferenças numéricas apareciam em uma ordem constante em uma
amostra de plantas de uma região, sociedade ou grupo étnico, podíamos dizer que existia
um padrão cultural que poderia ser detectado na própria configuração e não na maneira
como ela era interpretada. Chamamos esse tipo particular de constância numérica na
padronização espacial de 'genótipo' da habitação. […] Se as casas apresentam
regularidades configuracionais, então os edifícios nos falam diretamente de práticas
domésticas culturalmente significativas que se cristalizaram na habitação na forma de um
genótipo de desigualdade de integração (HANSON, 1998, pp. 31-38)9.
O modo como as cozinhas se relacionam com outros ambientes foi observado e classificado em
‘tipos de espaços’, conforme façam parte de uma rota circular (anel), linear (passagem) ou se
posicionem como o espaço final de uma sequência. Hanson considera as variáveis
configuracionais ‘anel’ – parte de uma rota com pelo menos dois acessos alternativos – e
‘profundidade’ – a posição de um espaço em uma sequência linear a partir de outro, geralmente
o exterior – como propriedades fundamentais da configuração do espaço arquitetônico
(HANSON, 1998, pp. 25-27). Espaços terminais são denominados, no jargão da sintaxe do
espaço, como ‘tipo a’. Espaços com, pelo menos, duas conexões em uma sequência linear são
chamados de ‘tipo b’. Aqueles que fazem parte de um anel ou uma rota com direções alternativas
de acesso são do ‘tipo c’ e os que fazem parte de mais de um anel são designados como ‘tipo d’.
Figura 3: Condomínio fechado - a cozinha na cor amarela (fonte: elaborada pelos autores).
534
7
As casas estudadas variam de 180,29m² a 451,57m² (292,88m² em média), e têm de três a cinco
quartos, sendo todas, à exceção de uma unidade, edifícios de dois andares. As cozinhas estão
invariavelmente localizadas no térreo, majoritariamente na parte lateral ou posterior do edifício,
sendo dimensionadas de 9,78m² a 22,20m² (14,95m² em média), tendendo a aumentar de tamanho
na medida em que a área do edifício aumenta, especialmente no que diz respeito às dimensões do
setor social.
Em um terço das casas, as cozinhas se conectam diretamente à sala de jantar e em 100% à área
de serviço. Mais de 56,25% delas fazem parte de um anel (pelo exterior), e outros 43,75% estão
em dois anéis. Com relação aos layouts, 37,50% são em ‘U’ e apresentam uma “ilha” e/ou uma
‘península’; 12,50% são lineares e 50,00% em ‘L’. Em termos topológicos, as cozinhas
relacionam-se mais com os espaços sociais que tendem a ocupar posição hierárquica superior em
acessibilidade, de modo que a expressão de desigualdade em acessibilidade topológica
predominante foi: Jantar > Estar > Cozinha > Exterior > Varanda > Quarto (master). No entanto,
as cozinhas aparecem em quase todas as posições na hierarquia dos valores de integração,
enquanto que a variação relativa a outros rótulos é menos intensa (Figura 3).
Figura 4: Caso em conjunto habitacional - a cozinha em amarelo (fonte: elaborada pelos autores).
Em 78% dos casos, as cozinhas fazem parte de um anel (espaços do ‘tipo c’) e em 20%, de dois
ou mais anéis (‘tipo d’), principalmente passando pelo exterior, situação que ecoa padrões
tradicionais de configuração doméstica brasileira, sinalizando a importância do exterior como
espaço integrador que dá acesso às diversas categorias de usuários da casa – moradores servidos
e servidores, visitantes – cada qual com sua própria porta de entrada (TRIGUEIRO, 2015).
3.3 Apartamentos
Esse conjunto de dados compreende 16 plantas de apartamentos anunciados para venda na seção
de imóveis das edições de domingo do jornal Correio da Paraíba publicadas entre 2006 e 2015
em João Pessoa. Os apartamentos estudados variam de 34,66m² à 125,70m² (76,09m² em média),
e as plantas selecionadas representam os tipos de arranjos de espaços mais oferecidos no mercado
imobiliário: unidades com dois ou três quartos (um vinculado a uma suíte), mais um banheiro
separado, além de sala de estar com área de jantar adjacente, cozinha, área de serviço, e, às vezes,
varanda e dependências de empregados (na modalidade suíte ou quarto e banheiro separados). As
cozinhas situam-se em oposição à varanda da fachada frontal, sendo dimensionadas de 3,31m² a
12,54m², valor que representa 5,10% a 12,01% da área total dos apartamentos.
A função designada para cada sala foi identificada visualmente nas 16 plantas examinadas,
mesmo naquelas onde não havia rotulagem, devido ao mobiliário apresentado nos layouts. A
tríade “pia-fogão-geladeira” esteve presente em todas as amostras, 31,25% apresentando também
um freezer10 e 6,25% uma pia dupla. Mais de 90% das cozinhas eram organizadas em layout
linear, 50% com armários alinhados ao longo da mesma parede e 43,75% ao longo de duas
paredes, uma de frente para a outra; 6,25% dos casos, os maiores, são em forma de ‘L’. A presença
de uma mesa no layout da cozinha foi identificada em 43,75% e em 25% esse espaço foi rotulado
como copa. Em 68,75% das cozinhas, a luz e o ar entram por uma abertura – janela ou varanda –
na área de serviço, geralmente adjacente à cozinha por uma parede baixa e estreita (Figura 5). Em
virtude do clima – e do sol forte o ano todo –, isso não prejudica seriamente a iluminação da
cozinha, mas reduz o conforto térmico em um espaço que costuma ser particularmente
superaquecido. Em 25% das cozinhas uma janela abre para o exterior e para a área de serviço em
6,25% dos casos.
Como de costume, todas as cozinhas se conectam à área de serviço e 68,75% ligam-se à sala de
jantar; 31,25% dos casos comunica-se a um espaço mediador e 25% a uma circulação semiprivada
formando assim um anel exterior. Este anel indica a presença de distintos acessos destinados a
específicos usuários, relacionados às esferas sociais e de serviço da vida doméstica, esquema que
aparece perpetuado no tempo. Alguns historiadores consideram tais separadores de circulação
uma materialização arquitetônica das relações entre senhores e escravizados das épocas colonial
e imperial brasileira (LEMOS, 1996, p. 79). Em nossa não tão longa história da habitação
multifamiliar (os primeiros blocos de apartamentos surgiram no Rio de Janeiro, por volta da
década de 1930) os acessos separados eram comuns, mesmo em apartamentos tão pequenos que
as portas de serviço e de entrada social quase se tocavam (TRIGUEIRO; CUNHA, 2015;
MORAIS, 2017), como ilustra, neste estudo, a planta da figura 10 I. Em 43,75% dos apartamentos
estudados há um quarto de empregada, além de banheiro, mas 12,5% dessas plantas são
planejadas de forma que as paredes possam ser derrubadas para "reverter" o quarto de empregada
em um escritório, um closet, outro quarto ou qualquer célula anexa ao setor íntimo e não mais
acessível exclusivamente pela cozinha. Apenas os apartamentos de três ou quatro quartos dispõem
de quarto de empregada e apenas os apartamentos com quarto de empregada têm porta de entrada
de serviço. Em apartamentos menores, as cozinhas tendem a ser visualmente integradas ao setor
social.
Em 18,75% dos casos a expressão da desigualdade de valores de integração mostra a esfera social
habitual como mais acessíveis enquanto as varandas e o exterior ocupam a metade segregada da
expressão – Estar > Jantar > Quarto (master) > Varanda > Cozinha > Exterior. Em 12,5% as
cozinhas (seguidas do exterior) sobem para a segunda posição no ranking – Jantar > Cozinha >
Exterior > Estar > Quarto (master) > Varanda –, e em outros 12,5% as suítes ficam na metade
mais acessível da escala – Jantar > Sala > Quarto (master) > Cozinha > Exterior > Varanda. Isso
foi uma surpresa, considerando que, a partir dos anos 1980 os quartos principais tendem a se
tornar tão segregados quanto os quartos dos empregados.
198,49
180,2
200
125,7
150
92,31
76,09
100
34,66
50
0
MIN MÉD MAX
0,00
2 QT 3 QT 4 QT 5 QT 6 QT
Figura 6: Áreas construídas; área média da cozinha em relação às áreas construídas; e número
de quartos nos três tipos edilícios (fonte: elaborada pelos autores).
CONEXÕES
100
90 100,0
80
70
60 68,8
50 59,2
40 56,3
37,5 50,0
30
36,7 36,7 30,6 31,3
20 32,7 14,3
10 6,3 10,2 6,3 6,3 25,0 6,3 2,0 12,5
0
Figura 7: Espaços ligados às cozinhas de acordo com o tipo de edifício (fonte: elaborada pelos
autores).
Expressões de desigualdade de valores de integração foram realizadas para os três tipos edilícios
levando em consideração os seis espaços considerados mais essenciais no complexo doméstico,
por representarem e viabilizarem a interação potencial dos habitantes entre si e entre estes e
visitantes. As cozinhas figuram como locus de interação familiar e de família e empregados; as
salas de estar e de jantar são cenários de potencial interação entre moradores e visitantes, assim
como, no caso das residências brasileiras, varandas/terraços/alpendres; os quartos (neste estudo o
quarto principal/master) figuram como locus de privacidade dos habitantes; o exterior também
precisa ser levado em conta, dada sua importância como integrador na arquitetura doméstica
brasileira e, de fato, sua relevância em todos os estudos de sintaxe do espaço que tratam de
interfaces entre espaços fechados e abertos. Exteriores são aqui considerados como o espaço
aberto dentro dos lotes privados nos casos de conjuntos habitacionais e unidades de condomínio
fechado, e como a circulação no lado de fora dos apartamentos, ligando os espaços privados às
áreas comuns (halls, lobbies, corredores).
A ordem de integração dos principais espaços domésticos é mais homogênea nos apartamentos,
o que não surpreende, pois são produtos imobiliários padrão, oferecidos no mercado com
possibilidade de customização pelo proprietário. Mesmo assim, há uma oscilação na integração
da cozinha, o que reforça a ideia de mudança de modos de vida contemporâneos.
As cozinhas foram encontradas no lado mais acessível da escala de valores de integração em 62%
dos apartamentos, 47% dos conjuntos habitacionais e 31% dos condomínios. Estão na faixa mais
segregada da escala em 25% dos apartamentos e em 18% dos conjuntos habitacionais e dos
condomínios. Nos demais casos (50% dos condomínios, 35% dos conjuntos habitacionais e 12%
dos apartamentos), cozinhas não são particularmente integradas e nem segregadas (Tabela 1), mas
medianamente posicionadas na hierarquia de acessibilidade.
5. Olhares através de uma imagem ainda não clara: uma nova ordem?
Outros estudos sobre a natureza e o papel das cozinhas nos lares brasileiros atuais apontaram
resultados semelhantes. Vespúcio (2017, p. 123) defende que embora as funções da cozinha
permaneçam as mesmas, elas se afastam do setor de serviço para exercer influência sobre a esfera
social. A integração cozinha-sala-varanda está fortemente relacionada às alterações morfológicas
e sintáticas encontradas. A disposição da cozinha nas casas dos condomínios fechados, pensada
para incluir novos arranjos espaciais do tipo “ilha” ou “península”, enfatiza o fogão, sob a forma
do chamado cooktop. Em geral, as cozinhas dessas casas aparecem mais relacionadas aos espaços
sociais. Sua expressão atual mais eloquente nos lares brasileiros é o “espaço gourmet”, dentro ou
ao lado de varandas ou outras áreas de lazer. Assim, a ação de cozinhar – e suas inesgotáveis
tarefas de limpeza – passa a ser meio de lazer, deixando de ser uma atividade de bastidores, não
raramente escondida em “cozinhas auxiliares”, distantes do olhar dos visitantes. Tal arranjo,
541
14
muito usado nas casas de classe média das décadas de 1970 e 1980, ainda permanece em casas
reformadas nos conjuntos habitacionais.
A valorização social das cozinhas exige a inclusão de um cenário permanente de beleza,
organização e modernidade a ser exposto em condomínios fechados, onde a abertura e a
transparência compensam – ou se finge compensar – os altos muros opacos que cercam o
complexo. A transparência, generosamente adotada em condomínios fechados, expõe um
convívio social entre iguais, reforçado pelo espírito de segurança prometido aos seus moradores,
transparências e convivências não mais restritas aos espaços de estar e jantar, mas, muitas vezes,
estendidas à cozinha e, em especial, a um “terraço gourmet”, que pode estar ligado à cozinha, ou
distante dela, em exposição ao exterior.
A “gourmetização” da vida social nas moradias contemporâneas que inspirou o surgimento de
“varandas gourmet” nas últimas décadas, é frequentemente mencionada em estudos que abordam
as mudanças recentes no design do espaço doméstico brasileiro (AMORIM; LOUREIRO, 2005;
VALÉRY, 2011; GRIZ, 2012; BRANDÃO; MANHAS, 2015; MACEDO, 2018). De acordo com
Anitelli
[…] a varanda também pode conter o mesmo mobiliário das salas de estar e de jantar,
simulando uma ambiência normalmente existente na zona social do apartamento: poltrona
e sofá, ao lado da mesa de refeições. Em outros casos, além dos ambientes de estar e
jantar, a varanda também contém equipamentos típicos da cozinha, como bancadas para
preparo de alimentos e pia, além de churrasqueira (ANITELLI, 2015, p. 431).
Seria a nova ordem o fim dos quartos de empregada, dos quartos “reversíveis” e das portas de
entrada de serviços? Ou o legado sombrio de invisibilidade da dependência de empregada,
historicamente equiparada às sinistras senzalas, permanecerá para sempre mediada pela cozinha
e escamoteada por quartos reversíveis com acesso ao setor de serviço? ?
Nossos achados indicam que dois cenários coexistentes predominam atualmente nas moradias
brasileiras: um que pode ser considerado como um cenário sociocultural semelhante ao dos lares
europeus, e outro que não deve ser visto integralmente, por permanecer , talvez, associado a
habitantes de segunda ordem: mulheres e empregados.
A figura 10 sintetiza a variedade em tamanho, forma e posição relativa das cozinhas dentro do
complexo doméstico, ajudando a ilustrar algumas das questões levantadas nesta breve análise da
cozinha como locus das relações socioculturais entre categorias de membros da família –
empregadores e empregados, residentes e visitantes (especialmente no que se pode ver a partir da
área social).
543
16
A B C
D E F
544
17
G H I
SERVIÇO
Apesar dessa variedade, parece haver uma tendência crescente de esconder menos a cozinha. A
chamada cozinha aberta, ou “cozinha americana”, antes comumente restrita a casas de veraneio,
está cada vez mais sendo adotada em residências principais, de modo que o mercado responde
com a possibilidade de os clientes decidirem se a cozinha deve ser total ou parcialmente associada
ao setor social. Expectativas e incertezas que cercam a situação da viúva grávida, parecem,
portanto, apontar para um leque de possibilidades quanto aos modos como as cozinhas podem se
relacionar com o todo doméstico. Esperancemos que essas possibilidades evoluam, de fato, e a
viúva grávida dê à luz um ethos doméstico menos marcado por nossa multi-secular desigualdade
socio-racial, essa "longa noite de desolação", e sim por outra qualidade igualmente herdada, mas
inteiramente diversa – a de agregação, a de juntar moradores e visitantes, mas, também,
moradores e moradores, em ocasiões de "alegrar o espírito” (HERZEN apud AMIS, 2011).
6. Agradecimentos
Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e ao
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por bolsas que
apoiaram as pesquisas mencionadas neste artigo; agradecemos a Mariana Gurgel Guerra, por
referências bibliográficas.
7. Referências
AMIS, M. A viúva grávida: uma história dos bastidores. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
AMORIM, L.M.E. The sectors’ paradigm: Understanding modern functionalism and its effects
in configuring domestic space. Proceedings of 1st International Space Syntax Symposium.
Volume II: Domestic space. Londres, 1997, pp. 18.1-18.14.
AMORIM, L.M.E.; LOUREIRO, C. Dize-me teu nome, tua altura e onde moras e te direi quem
és: estratégias de marketing e a criação da casa ideal 2’. Arquitextos, São Paulo, ano 05, n.
058.06, Vitruvius, mar., 2005. Disponível em:
https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/05.058/490. Acesso em: 30 jun. 2022.
ANITELLI, F. [Re]produção?: repercussões de características do desenho do edifício de
apartamentos paulistano em projetos empreendidos no Brasil. 2015. Tese (Doutorado em Teoria
e História da Arquitetura e do Urbanismo) - Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade
de São Paulo, São Carlos, 2015.
545
18
VALÉRY, F.D. Da casa de família ao espaço gourmet: reflexões sobre as transformações dos
modos de morar em Natal-RN. Cadernos CERU, 22(1), 2011, pp. 147-174.
VERÍSSIMO, F.S.; BITTAR, W.S.M. 500 anos da casa no Brasil: As transformações da
arquitetura e da utilização do espaço de moradia. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.
VESPUCCI, G.M. Do quarto de empregada à varanda gourmet: uma análise comparativa das
plantas de apartamento em Florianópolis entre 1954 e 2008. 2017. Dissertação (Mestrado em
Arquitetura e Urbanismo) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2017.
NOTAS
1
[…] from mid-nineteenth century to the inter-war years the British home developed from less to
more integrated complexes and from a spatial system centred around the family/visitors sphere,
focused on the circuit of reception rooms, to one centred in the inhabitants domain of rooms used
for eating and cooking meals (TRIGUEIRO, 1997, p. 19.13).
2
Sobre os critérios de classificação adotados por Trigueiro, ver: Trigueiro (1997) e Hanson
(1998).
3
“[…] scenery that was already being put into place for the development of the modern, nuclear
family during the Victorian period” (HANSON, 1998, p. 296).
4
“[…] the analysis of domestic space configuration provides the link between the design of
dwellings and their social consequences” (HANSON, 1998, p. 1).
5
Houses are not just assemblages of individual rooms but intricate patterns of organised space,
governed by rules and conventions about the size and configuration of rooms, which domestic
activities go together, how the interior should be decorated and furnished and what kinds of
household object are appropriate in each setting, how family members relate to one another in
different spaces, and how and where guests should be received and entertained in the home
(HANSON, 1998, p. I).
6
Gostaríamos de agradecer a Kleyne Rondelly e Matheus Duarte pela gentileza de compartilhar
seus projetos para o desenvolvimento do presente estudo.
7
“means by which architecture can carry culture” (HANSON, 1998, pp. 31-33).
8
Configuration exists when the relations which exist between two spaces are changed according
to how we relate each to a third, or indeed to any number of spaces. Configurational descriptions
therefore deal with the way in which a system of spaces is related together to form a pattern,
rather than with the more localised properties of any particular space (HANSON, 1998, pp. 22-
23).
9
Integration has emerged in empirical studies as one of the fundamental ways in which houses
convey culture through their configurations. […], we began to find that in cases where we were
able to work with a statistically reliable sample of real houses from the traditional and vernacular
record, different functions or activities were systematically assigned to spaces which integrated
the dwellings to differing degrees. Function thus acquired a spatial expression which could also
be assigned a numerical value. Where these numerical differences were in a consistent order
across a sample of plans from a region, society or ethnic grouping, then we could say that a
cultural pattern existed, one which could be detected in the configuration itself rather than in the
way in which it was interpreted by minds. We called this particular type of numerical consistency
in spatial patterning a housing 'genotype'. […] If houses display configurational regularities then
the buildings speak directly to us of culturally significant household practices which have been
crystallised in the dwelling in the form of an integration inequality genotype (HANSON, 1998,
pp. 31-38).
10
A presença de freezers nas cozinhas brasileiras remonta à década de 1970 como o auge das
inovações “à imitação do american way of life”, segundo Veríssimo e Bittar (1999, p. 114).
Estudos têm apontado a redução de freezers nas representações de layout dos anúncios de novos
apartamentos (VESPUCCI, 2017, p. 75), o que é atribuído a diversos fatores como: redução de
547
20
Resumo. Dois apartamentos paulistanos são analisados, um do século XX e outro do século XXI, com o
objetivo de identificar mudanças socioespaciais nas unidades habitacionais e suas relações com
transformações já identificadas nos trabalhos de Villa (2020 – São Paulo), França (2008 – Brasília), Griz
(2012 – Recife) e Carolino (2018, João Pessoa). A sintaxe espacial é usada como metodologia analítica, a
partir do estudo da permeabilidade física e visual, e são realizadas também ponderações sobre aspectos
funcionais e dimensionais. Os resultados encontrados demonstram que as alterações dos apartamentos de
três quartos, com 125m2 de área construída, são tímidas e que mudanças mais radicais podem ser
observadas em apartamentos com programa de necessidades menos tradicionais. O cenário de
permanências e adequações é um achado desse estudo que dialoga com os resultados de outras pesquisas.
Palavras-chave. Sintaxe Espacial, Apartamentos, Modificações Espaciais
548
549
2
1.Introdução
O início do século XXI marca uma série de mudanças culturais, sociais, econômicas, políticas e
tecnológicas que influenciam e conformam novos modos de viver no Brasil (VILLA, 2020). O
contexto da pandemia do Coronavírus - COVID-19 marca rupturas de maneira abrupta e, talvez,
passageiras, mas transformações sociais já vinham sendo desenhadas.
Os censos populacionais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE registram
declínios do número de famílias nucleares (casal heterossexual com filhos) desde 1991; aumento
do número de outras configurações (casal sem filhos, relações homoafetivas, mãe ou pai solteiro,
pessoas morando só etc.); crescimento de pessoas trabalhando no domicílio de residência, a partir
de 2015; e um menor crescimento do número de trabalhadores domésticos, comparando-se o
intervalo de 1992 a 1999 com 1999 a 2019. (ver Tabela 01)
Anos
Configuração Familiar 1981 (%) 1991 (%) 2000 (%) 2010 (%)
Casa com filhos 61,2 58,3 56,4 49,4
Outros 38,8 41,7 43,6 50,6
Anos
Trabalho 2013 (%) 2015 (%) 2017 (%) 2019 (%)
No domicílio de residência 3,5 3,7 4,3 6,0
Em estabelecimento do próprio empreendimento 63,0 63,9 63,1 58,4
Intervalos
Crescimento de 1999 em Crescimento de 2019 em
Empregado Doméstico relação à 1992 (%) relação à 1999 (%)
População Ocupada 9,88 32,77
Trabalhadores Domésticos 22,88 19,97
Tabela 1. Dados do IBGE. (fonte: IBGE, editada pelas autoras).
Essas transformações refletem anseios sociais, como também, mudanças legislativas. Em 1988
foi implementada uma nova Constituição Federal que, entre outras garantias, reconhece a união
estável entre homens e mulheres, amplia a definição de família e possibilita a dissolução do
matrimônio civil por meio do divórcio (BRASIL, 1988). Em 2011, o Supremo Tribunal de Justiça
- STF passa a incluir as relações homoafetivas dentro dos parâmetros da união estável e, em 2013,
o Conselho Nacional de Justiça passa a garantir a realização do casamento homoafetivo, proibindo
que juiz de paz ou tabelião se recuse a registrar o casamento. O reconhecimento do trabalho
remoto, ou seja, aquele realizado fora do estabelecimento da empresa e que utiliza meios
eletrônicos para sua execução, é uma garantia da Lei 12.551 de 2011 e Lei 13.467 de 2017. A
regulamentação do trabalho doméstico é uma conquista da Emenda Constitucional nº 72 de 2013.
Centrando-se nessas relações familiares e trabalhistas e excluindo-se os impactos da
popularização da internet, smartphones e redes sociais e da COVID-19 devido à recenticidade
dos fatos, questiona-se sobre as influências desse cenário nos modos de vida e nas configurações
das habitações no Brasil. Sabe-se que responder a essa inquietação dentro do contexto brasileiro
é um desafio com reconhecidas limitações, devido às dimensões continentais e a presença de
culturas e costumes antagônicos, no entanto, pequenas aproximações, dentro de recortes
geográficos específicos, conseguem ir desenhando a realidade.
Entre os tipos habitacionais observa-se que a torre de apartamentos ganhou espaço nos grandes
centros urbanos brasileiros e se tornou alvo de uma intensa especulação imobiliária. Produto
pensado e imposto pelo mercado, geralmente busca uma produção padronizada e em série, com
poucas opções de adaptações. Por sua vez, a residência unifamiliar continua sendo o tipo
predominante, ao mesmo tempo que é mais flexível e de fácil personalização pelo usuário. Entre
a rigidez presente na habitação vertical e a flexibilidade da habitação unifamiliar, define-se a torre
habitacional como objeto de estudo, pois uma habitação feita para o habitante e não pelo habitante
550
3
pode retratar com mais evidência como as ofertas do mercado imobiliário conseguem se adaptar
ao novo contexto.
No ambiente paulistano, Tramontano (1998) já fazia reflexões sobre a relação entre os modos de
vida e espaços de morar ao observar o contexto habitacional, de fins do século XX, das cidades
de São Paulo, Paris e Tokyo. O autor identifica a necessidade de uma reestruturação a partir de
uma visão pluridisciplinar, afirmando que o “redesenho dos espaços de morar parece estar sempre
fadado a acompanhar, com atraso – dado o óbvio caráter predominantemente estático do espaço
físico do habitat – as mudanças da sociedade e dos modos de vida, cuja essência é eminentemente
dinâmica. ” (TRAMONTANO, 1998, p. 369).
Ainda nesse contexto, Villa (2020) investigou a relação analisando a produção de torres
habitacionais do século XX e início do século XXI observando questões vinculadas à
sobreposição do uso, maneiras de acesso e circulação, presença de eixos hidráulicos e de
estocagem, programa de necessidades, organização de setores e áreas, tanto do apartamento como
das áreas comuns. De modo geral, a autora identificou que a estrutura com tripartição oitocentista
foi mantida e que, ao longo dos anos, houve uma redução das áreas privativas e uma
supervalorização dos espaços coletivos. Algumas exceções também foram percebidas nas opções
para classes com alto poder aquisitivo, onde há uma maior especialização dos espaços, áreas
maiores, diversidade de configurações, áreas comuns menores e incrementação dos espaços
privativos – suíte, closet, varanda com churrasqueira etc.
Os resultados encontrados por Tramontano (1998) e Villa (2020) demonstram que há a
necessidade de uma revisão e que houve algum tipo de modificação nos apartamentos, no entanto,
as pesquisas não se aprofundam tanto em questões relativas ao espaço que é o elemento essencial
da arquitetura (ZEVI, 1996 e COUTINHO, 2010). O modo como se dá o controle de acesso entre
visitantes, moradores e empregados e a integração física e visual entre os usuários é condição
essencial para o desencadear de relações sociais (HILLIER; HANSON, 1984), por isso, dentro
do estudo sobre mudanças da sociedade e da habitação, esse olhar é um passo fundamental. Ante
o exposto o objetivo desse trabalho é explorar questões configuracionais de duas torres
habitacionais, uma do século XX e outra do século XXI, e entender se os cenários descritos têm
equivalências com as mudanças socioespaciais.
Diversos estudos têm abordado o tema em diferentes contextos: Brasília (FRANÇA, 2008),
Recife (GRIZ, 2012), João Pessoa (CAROLINO, 2018) e trazemos aqui uma complementação à
discussão com o caso de São Paulo. Além da Sintaxe Espacial - SE, são considerados questões
sobre a funcionalidade e o dimensionamento para desenvolver este artigo, que é fruto dos estudos
iniciais de uma tese de doutoramento, a qual investiga as repercussões das transformações sociais
nas habitações.
2. Apartamentos paulistanos
O morar em apartamentos no Brasil não era uma realidade no início do século XX, mas “a década
de 1930 e 1940 assistiria à multiplicação de uma grande inovação no setor residencial: os prédios
de apartamentos.” (REIS FILHO, 1995, p. 79). Na cidade de São Paulo a torre residencial já
despontava na paisagem antes mesmo desse período. O icônico Edifício Martinelli, inaugurado
em 1929, possuía inicialmente 12 antares de apartamentos e tinha a intenção de superar a altura
do Edifício Joseph Gire (A Noite - Rio de Janeiro). Rasgando a paisagem horizontal da capital
paulistana, o Martinelli continuou em crescimento após a sua inauguração, atingindo os 30
andares (105 metros de altura) no ano de 1934.
Maior cidade do Brasil, com estimativa de 12.396.372 habitantes (IBGE, 2021), São Paulo é hoje
uma das urbes mais importantes e de grande referência para o restante do país. De acordo com
Anitelli (2015), que investigou em sua tese o poder de influência do mercado imobiliário
paulistano em outros centros urbanos do país - Recife (PE), Porto Alegre (RS), Goiânia (GO),
Belo Horizonte (MG) e Belém (PA) - há certos padrões e reproduções de soluções entre os
apartamentos das seis cidades em questão. Assim, por ser a principal metrópole brasileira, ter
verticalizado suas habitações nas primeiras fases desse processo no país e pelo seu poder de
551
4
influência optou-se por desenvolver a análise de dois exemplares de torres habitacionais da cidade
de São Paulo.
Somekh (1992) divide o processo de verticalização de São Paulo em cinco fases (1920 a 1979) e
Gagliotti (2012), orientado por Somekh, complementa essa classificação até o ano de 2011,
incluindo mais duas fases:
1920 a 1940: a primeira fase se caracteriza por edifícios altos de padrão europeu;
1940 a 1957: ascendência das edificações com a implantação do elevador até a primeira
lei de regulamentação do coeficiente de aproveitamento;
1957 a 1967: crescimento moderado das edificações verticais;
1967 a 1972: dentro do contexto do milagre econômico brasileiro (1968 a 1971), a quarta
fase corresponde ao intervalo onde houve a intervenção estatal na construção
habitacional, o crescimento acentuado da verticalização e a possibilidade de construção
com índice de aproveitamento de 6 vezes;
1972 a 1979: período em que a legislação do zoneamento passou a controlar e regular o
adensamento e o fim do BNH, o que ocasionou uma desaceleração das construções;
1979 a 2004: aumente dos coeficientes de aproveitamento e uma maior intensificação da
verticalização;
2004 a 2011: maior espraiamento da cidade, devido aos benefícios de preços e
coeficientes das as cidades vizinhas e pertencentes a Região Metropolitana de São Paulo.
Entre as sete fases de verticalização, a quarta e a sétima parecem ser dois períodos interessantes
para o estudo em questão. Os anos de 1967 e 1972 registram considerável crescimento das torres
de apartamentos, devido aos incentivos governamentais da época, além de ser um período em que
morar em apartamentos já não era repulsivo pelas classes mais favorecidas. O sétimo intervalo
representaria a fase de produção do século XXI, o que permite a comparação entre intervalos de
tempo com certas distâncias e cenários econômicos, políticos e sociais distintos. Ao pesquisar
sobre a produção imobiliária desses dois momentos, bem como trabalhos que abordaram esse
contexto, observa-se a discussão acadêmica de Imbronito (2003), Lima (2013), Soares (2017),
Lorente (2017), Mendes (2018) a cerca da produção de duas empresas, a construtora Formaespaço
e a incorporadora Idea!Zarvos.
A construtora, teve uma atuação no mercado paulistano entre as décadas de 1960 e 1970, a partir
de 1968 conseguiu se dedicar à habitação privada. Por meio de parcerias com arquitetos e da
valorização do projeto arquitetônico e da forma do fazer a edificação, a Formaespaço se destacou
no mercado por buscar a racionalidade dos seus projetos a partir do pensamento e pesquisa de
arquitetos de referência, o que resultou em projetos com “clareza em seus aspectos construtivos,
com volumetrias simplificadas, modulação estrutural, materiais aparentes e componentes
padronizados” (LIMA, 2013, p. 25).
A Idea!Zarvos é uma incorporadora que atua no mercado paulistano desde 2005, tem como
filosofia a ideia de construir edifícios de boa estética, que proporcionem uma melhor qualidade
de vida para os seus usuários e que impactam de forma positiva na cidade. A singularidade dos
projetos, a associação com arquitetos aclamados, a preocupação com a cidade e as reflexões sobre
os consumidores, como forma de pensar a edificação, fazem com que o resultado da empresa seja
diferente do contexto atual, garantindo a conquistas de prêmios.
O respeito pelo conhecimento e pela visão do arquiteto, bem como a busca por produzir edifícios
de maior qualidade, criam um diálogo entre a Formaespaço e a Idea!Zarvos, ao mesmo tempo que
é possível identificar mudanças de atuação, já que a primeira foca na produção em série e a
segunda na individualidade dos projetos. Por esses motivos, opta-se pela análise de duas torres
habitacionais, um de cada empresa, para a realização do estudo experimental aqui proposto.
Coletando informações sobre as edificações multifamiliares das empresas, em sites e trabalhos
acadêmicos, foram listados 29 empreendimentos da Idea!Zarvos, até o ano de 2020, e 25
empreendimentos da Formaespaço (ver Tabela 2), o que já permite a observação de certas
diferenças entres os edifícios.
552
5
FORMAESPAÇO
Edifício Arquiteto Bairro Fase Área (m2) Quarto
Granja Julieta Abrahão Sanovicz Granja Juliana Entregue 82 02
Modular Alfa Abrahão Sanovicz Moema Entregue 125 03
Modular Beta Abrahão Sanovicz Moema Entregue 125 03
Modular Gama Abrahão Sanovicz Moema Entregue 125 03
Modular Delta I Abrahão Sanovicz Moema Entregue 125 03
Modular Delta II Abrahão Sanovicz Moema Entregue 125 03
Modular Epsilon Abrahão Sanovicz Moema Entregue 125 03
Modular Dzeta Abrahão Sanovicz Moema Entregue 125 03
Modular Lambada I Abrahão Sanovicz Paraíso Entregue 125 03
Modular Lambada II Abrahão Sanovicz Paraíso Entregue 125 03
Modular Omicron Abrahão Sanovicz Itaim Bibi Entregue 125 03
Modular Eta Abrahão Sanovicz Vila Madalena Entregue 125 03
Modular Ômega I Abrahão Sanovicz Campo Belo Entregue 125 03
Modular Ômega II Abrahão Sanovicz Campo Belo Entregue 125 03
Modular Ômega III Abrahão Sanovicz Campo Belo Entregue 125 03
Modular Ômega IV Abrahão Sanovicz Campo Belo Entregue 125 03
Modular Sigma I Abrahão Sanovicz Perdizes Entregue 125 03
Modular Sigma II Abrahão Sanovicz Perdizes Entregue 125 03
Modular Veja Abrahão Sanovicz Perdizes Entregue 125 03
Modulinho Abrahão Sanovicz Campo Belo Entregue - 02
Gemini Eduardo de Moema Entregue - 02
Almeida
Coronet Eduardo de Santo Amaro Entregue - 02
Almeida
Lark Eduardo de Perdizes Entregue - 02
Almeida
Clermont Paulo M. da Rocha Moema Entregue - 04
Protótipo Paulo M. da Rocha Não foi executado - 80 02
IDEA!ZARVOS
Edifício Arquiteto Bairro Fase Área (m2) Quarto
Pop Grafite Triptyque Vila Madalena Lançamento 27 a 36 01
Harmonia 1040 Carvalho Araújo Vila Madalena Construção 333 e 668 02 a 05
Onze 22 Triptyque Vila Madalena Construção 21 a 179 01 a 03
Pascoal Vita Bernardes Arq. Alto de Pinheiros Construção 319 a 664 03 a 04
NIDO Brasil Arq. Vila Ipojuca Construção 92 a 284 02 e 03
ARUÁ FGMF Perdizes Entregue 136 a 227 02 e 03
Ourânia231 Marcio Kogan Alto de Pinheiros Construção - -
AUTEM Andrade Morettin Jardins Construção 89 a 202 02 a 03
NUBE Jacobsen Itaim Construção Até 205 02 a 03
SPOT 393 AMZ Arq. Vila Madalena Entregue 21 a 152 01 a 03
Lacerda Isay Weinfeld Vila Madalena Entregue 58 a 107 01
Alba Gui Mattos Vila Madalena Construção 170 a 219 03 a 04
Joaquim499 Andrade Morettin Pinheiros Construção Até 265 02 a 03
Itacolomi 445 Grupo SP Higienópolis Entregue 374 a 605 03 a 04
Árbol Carvalho Araújo Vila Ipojuca Entregue 160 a 234 02 a 04
POP Madalena Andrade Morettin Vila Madalena Entregue 54 a 253 01 a 02
POP XYZ Triptyque Vila Madalena Entregue 54 a 109 01 a 02
Mirá Isay Weinfeld Alto de Pinheiros Entregue 210 a 309 02 a 03
Oito Rodrigo Oliveira Vila Madalena Entregue 430 03 a 04
Azul Isay Weinfeld Vila Madalena Entregue 158 a 262 02 a 03
Oka Isay Weinfeld Vila Madalena Entregue 310 a 509 03 a 05
Aimberê 1749 Andrade Morettin Perdizes Entregue 95 a 215 01 e 02
Fidalga André Paolliello Vila Madalena Entregue 79 a 281 01 e 02
360º Isay Weinfeld Alto de Pinheiros Entregue 158 a 262 01 a 03
553
6
a. b.
Figura 1: Espaço distribuído e simétrico e não distribuído e assimétrico (fonte: HILLIER e HANSON,
1994, p. 148)
De acordo com Beck (2011), a partir da visualização do grafo justificado e sua profundidade, ou
seja, da sua forma em árvore (mais profundo) ou em rede/anel (menos profundo) e do valor de
sua profundidade, é possível identificar certas tendências do sistema, quanto à simetria, e
distributividade. O valor da profundidade é dado pelo número total de espaços topológicos,
considerando o nó raiz com valor igual a zero (ver Figura 2).
Figura 2: O grafo justificado A eé mais profundo que o grafo justificado B. Valor da profundidade de A é
6 e de B é 2. (fonte: elaborada pelas autoras)
Apesar de ser possível sugerir que uma grafo em árvore e profundo seja assimétrico e não
distributivo, e um grafo em anel e raso seja simétrico e distributivo, existem indicadores que
quantificam essas relações a partir de valores de natureza topológica e não métrica. De acordo
com França, a integração é a “medida de acessibilidade interespaços, considerada a principal
medida da Sintaxe Espacial.” (2008, p.278). Seus valores podem ser dados pela Real Relative
Asymmetry – RRA, de modo que os espaços segregados possuem valores de RRA maiores, e os
555
8
espaços integrados possuem os menores valores de RRA. Assim, a permeabilidade física será
avaliada nesse artigo por meio do valor de RRA e da forma do grafo, o qual será desenhado com
o auxílio do programa JASS.
A visibilidade está relacionada à mudança no campo de visão das pessoas à medida que elas se
movem no espaço. Esse estudo pode ser desenvolvido a partir de três ferramentas: Isovista, Step
Depth e VGA. As isovistas são definidas por Benedikt como “o conjunto de todos os pontos
visíveis de um determinado ponto de vista no espaço com relação a um ambiente.” (1979, p. 47 –
tradução nossa). A partir de um ponto do sistema, da sua forma geométrica e do raio de
abrangência do campo visual é possível compreender as relações da visibilidade. Essa análise é
geométrica e considera a relação de um ponto do sistema. O Step Deth também considera um
ponto do sistema, porém é uma medida topológica da quantidade de passos - visuais, métricos e
angulares – de um ponto do sistema até todos os outros. Já a VGA é uma medida topológica,
métrica e angular de todos os pontos para todos os pontos. A partir da VGA é possível obter as
relações da integração visual do sistema, medida global que permite a comparação entre vários
arranjos espaciais, sendo esta última a utilizada neste artigo para a avaliação da integração visual,
por meio da representação das barreiras opacas ao nível dos olhos no software Depthmap.
4. Análises
A proposta aqui trabalhada para a análise dos arranjos espaciais é a observação dos aspectos da
permeabilidade e da visibilidade. Assim, para entender as relações do move-se, foi gerado o mapa
convexo e grafo justificado da acessibilidade física, utilizando o software JASS, considerando a
circulação externa de acesso como nó raiz, e usando a medida de integração (real relative
asymmetry - RRA) e a forma do grafo como indicadores. As relações do ver-se foram avaliadas a
partir do mapa de barreiras visuais ao nível dos olhos, do uso da ferramenta VGA, que foi
processada com o auxílio dos programas AutoCAD e Depthmap, e da medida de integração visual
global (HH) para correlacionar os aspectos visuais dos espaços.
Além da análise sintática do espaço, julga-se ser importante descrever aspectos básicos do
empreendimento, assim como características funcionais - programa de necessidades e setores – e
dimensionais (GRIZ, 2012), para que seja possível compreender melhor a proposta e otimizar o
olhar sobre a análise da relação: espaço e sociedade.
associam com a tripartição setorial, ao passo que a área social aglutina a maior parte dos tons
quentes, a íntima os tons intermediários e a de serviços os frios, porém, alguns desvios presentes
na cozinha, circulação íntima e suíte revelam uma tentativa de ruptura. (ver Figura 5)
Figura 5. Dados dos do edifício Modular Alfa – 1970. (fonte: Elaborada pelas autoras cm base
em LIMA, 2013).
empreendimento destaca o foco na família nuclear nos seus panfletos de divulgação “Um prédio
pensado para quem tem filhos” e “Família precisa de espaço”. (fonte: IDEA!ZARVOS, s/d)
A planta analisada foi a variação com 03 quartos e 125m 2 de área construída. A unidade
habitacional possui grafo em forma de árvore; nenhum grupo de espaços organizado em anel;
valor médio de integração física considerado segregado (RRA 1,3729); 05 níveis topológicos de
profundidade; o espaço convexo mais integrado é o composto pelas salas de estar e jantar e
varanda; e espaço mais segregado é o banheiro de serviços - nessa célula não existe quarto de
empregado. Essas características da permeabilidade física configuram um espaço dual onde os
setores íntimos e de serviços são segregados, controlados e resguardados, já o setor social,
aglutinado em um só espaço convexo, é permeável, integrado e não controlado.
Figura 7. Imagens internas do Edifício Flora - 2017. (Disponível em: < https://www.vivareal.
com.br/ imovel/apartamento-3-quartos-alto-da-lapa-zona-oeste-sao-paulo-com-garagem-126m2-
venda-RS2100000-id-2578616335/>. Acesso em: 11 out. 22).
Curiosamente, o resultado da análise da permeabilidade visual, a partir do mapa de VGA, revela
a predominância de cores mais esverdeadas e consideráveis manchas em tons quentes, já as cores
frias estão pontualmente localizadas na DCE e lavabo (ver Figura 8). A suíte tem uma
representação que chama a atenção, pois ao mesmo tempo que o tom de azul predomina, algumas
faixas esverdeadas se fazem presentes. Duas nítidas linhas com níveis maiores de integração se
formam. A região mais integrada refere-se ao eixo horizontal de circulação que conecta exterior,
salas e quartos, chegando até a adentra um dos quartos. A segunda está disposta no sentido
559
12
vertical, passando pelos dois banheiros e circulação que dá acesso a todos os quartos. A
construção da VGA resulta em um espaço um pouco diferente da integração física, o setor social
permanece com seu caráter integrado, porém, o setor íntimo adquire uma acessibilidade visual
menos rígida, já os serviços são marcados por tons frios, com a cozinha tentando romper esse
padrão, algo já indicado nos estudos de Tramontano (1998).
Figura 8. Dados dos do edifício Flora – 2017. (fonte: Elaborada pelas autoras cm base em LIMA,
2013)
5. Considerações Finais
560
13
O morar vertical do início do século XX, no Brasil, é marcado por soluções que “resolviam-se,
dentro do possível, como as residências da época e não como um problema novo. Internamente,
procurava-se, por todos os meios, repetir as soluções de plantas isoladas (...) de modo a oferecer
aos habitantes uma reprodução dos seus ambientes de origem” (REIS FILHO, 1995, p. 79), o tipo
apartamento não era bem aceito, por isso o mercado buscava essas réplicas.
A torre habitacional ainda não é a principal opção da moradia brasileira, mas é uma escolha que
ganha cada vez mais espaço nos centros urbanos. De acordo com Marques e Minarelli (2021),
São Paulo atingiu, em 2020, um maior número de apartamentos (1,38 milhão) do que casas (1,37
milhão). Essa representatividade chama a atenção e reforça a curiosidade sobre as transformações
sofridas por esse tipo e os motivos dessa mudança.
A breve descrição dos empreendimentos da Formaespaço e Idea!Zarvos demonstram duas
realidades distintas. Para o recorte observado, pontua-se que, na década de 1960 e 1970, as torres
podem ser caracterizadas pela padronização, com apartamentos de 2 ou 3 quartos, áreas
construídas de 80 a 125m2 e o desejo de replicar unidades habitacionais. Já no contexto do século
XXI, uma só incorporadora fornece ao mercado um vasto leque de opções, tanto dentro de um
mesmo empreendimento, como também em distintos. Unidades do tipo studio podem predominar
na edificação – POP Grafite, ou ter edifícios que contam com 01 a 03 quartos e 65m2 a 552m2 –
edifício 4x4, e 02 a 05 quartos e 333m2 e 668m2 – edifício Harmonia1040.
Essa realidade dialoga bem com as mudanças na configuração familiar brasileira, onde, apesar do
tipo nuclear ainda prevalecer, o número de distintas configurações vem crescendo desde 1981.
No Censo de 2010, as diferentes configurações juntas já representavam uma percentagem maior
que a típica composição casal com filhos.
No entanto, o olhar sobre dois exemplares, que tem como foco a família nuclear, não revela
grandes mudanças. Entre dois empreendimentos com a mesma área construída e número de
quartos e suítes, o programa de necessidades sofre uma pequena mudança, o quarto de empregada
sai e entra o lavabo e a cozinha tenta se encaixar como espaço social, no edifício Flora. A mudança
entra em concordância com a redução do número de empregadas domésticas (fixas) e o
crescimento da função de diarista (temporárias) e atuação do morador nas atividades domésticas,
principalmente entre as faixas de renda médias e média alta, ao mesmo tempo sugere que a ação
de receber parece ter ganhado força, solicitando a inclusão do lavabo e a ideia de uma cozinha
integrada e não segregada.
Os resultados da análise configuracional não divergem muito. O sistema espacial do Modular
Alfa se revela ligeiramente mais integrado e raso do que o do Flora, RRA de 1,3317 e 1,3729 e
profundidade 4 e 5, respectivamente. Em ambos as salas são os ambientes mais integrados e a
DCE ou o banheiro de serviços são os mais segregados. A presença de dois acessos – social e
serviço - no Modular Alfa é o responsável pela existência de um anel, por trazer o grafo para um
nível de profundidade a menos e por ter uma média global menor, o que torna a configuração
mais integrada. Porém, a existência dessa divisão revela o caráter segregacionista típico das
habitações desse período, ao passo que essa divisão não existe no exemplar mais recente. De um
modo geral, os dois sistemas revelam ainda segregações e a necessidade de privacidade e controle
própria das habitações das famílias nucleares.
Maior contraposição espacial é revelada na análise da VGA. O Modular Alfa possui uma
integração visual bastante alinhada com a tripartição setorial, com áreas íntimas e de serviços
resguardadas dos olhos dos usuários, enquanto os espaços sociais permitem uma maior
integração. As possibilidades do ver-se no Flora são mais amplas e a associação entre VGA e
setores também está presente. O domínio da integração na região social e a maior segregação nos
serviços se faz presente, no entanto, os quartos adquirem um tom intermediário mais quente,
revelando certo desprendimento da necessidade de fechamento e isolamento visual nesse setor.
Se a análise da integração física revela uma certa equivalência, a acessibilidade visual do espaço
marca uma busca – ainda que tímida – por romper certos padrões e costumes tradicionais. Talvez,
num complemento desse estudo em que fossem avaliadas também as reformas (CAMARGO;
GURGEL, 2018), provavalmente as cozinhas deixam de ser ambientes de serviço (pouco
561
14
integrados) e passam a ser também espaços sociais Num reflexo da ausência "empregada
doméstica" como uma figura permanente e da "explosão gastronômica" que inseriu os espaços
gourmet nos empreendimentos mais recentes.
O breve olhar lançado sobre os dois universos identifica pontuais alterações nos apartamentos.
De modo geral, a redução de área privada, mencionada por Villa (2020), é um aspecto notório na
comparação dos produtos de ambas empresas, a presença de opções para uma ou duas pessoas já
demonstra uma tentativa de adaptação do mercado às novas configurações familiares. A
integração visual, do Flora, pode ser traduzida como uma busca de ruptura, que ainda não foi
alcançada. Porém, a permeabilidade física ainda não demonstra ter grandes alterações, pois a
privacidade e o controle de acesso parecem ainda ser algo necessário para a sociedade.
Esse cenário de persistência e pequenas adaptações nos exemplares atuais também é encontrado
em outros trabalhos. Griz (2012) identifica em algumas unidades recifenses a manutenção do
privilégio das áreas sociais e o destaque do quarto principal, ao mesmo tempo em que pontua a
presença de adequações aos modos de vida atual associadas há questões de valores da sociedade
de consumo; em Brasília, França (2008) percebe, no seu recorte estudado, que há uma alteração
da estrutura espacial, mas que há a permanência de certas condições, como o isolamento e a
privacidade dos quartos; e em João Pessoa, nas proximidades do eixo da avenida Epitácio Pessoa,
Carolino, Cunha e Griz (2020) identificam a continuidade de uma distribuição funcional ao
mesmo tempo que se perde a separação dos acessos e a hierarquia espacial doméstica.
A análise e comparação de apenas dois exemplares não têm a capacidade de generalizar os
resultados encontrados, porém consegue dar mais um passo na contribuição e construção de
estudos sobre as transformações dos apartamentos. Mesmo que de forma pontual e tímida, pode-
se dizer que mudanças espaciais estão acontecendo. A identificação de ofertas mais diversificadas
aponta para uma adaptação do mercado e, dentro de realidades menos tradicionais é possível que
o espaço consiga maiores rompimentos, já o contexto de apartamentos tradicionais, onde impera
as regras do jogo da família nuclear, é possível que a articulação espacial seja mais acanhada,
reforçando a ideia de que antes de uma mudança espacial, é necessária uma mudança de
mentalidade.
6. Referências
AMORIM, Luiz. The sectors paradigm: a study go the spatial and functional nature of
modernist housing in northeast Brazil. 1999. 438 f. Tese (Doutorado) - Curso de Arquitetura,
University College London, Londres, 1999.
ANITELLI, Felipe. Reprodução? Repercussões de características do desenho do edifício de
apartamentos paulistanos em projetos empreendidos no brasil. 20125. 520 f. Tese (Doutorado) -
Curso de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. Disponível em:
<https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/102/102132/tde-31072015-090600/publico/TESEF
ELIPEANITELLIFINAL.pdf>Acesso em: 16 jun. 2020.
ÁVILA, Débora Saldanha de; CANEZ, Anna Paula. Habitações coletivas verticais de Paulo
Mendes da Rocha (1962 a 2004). Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 194.05, Vitruvius, jul. 2016.
Disponível em: https://www.vitruvius. com.br/ revistas/ read/ arquitextos/17.194/6127. Acesso
em: 07 out. 2020.
BECK, Mateus Paulo. Arquitetura, visão e movimento: o discurso de Paulo Mendes da Rocha
na Pinacoteca do Estado de São Paulo. 2012. 116f. Dissertação (Mestrado) – Curso de
Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. Disponível em: <
https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/33455/000787522.pdf?sequence=1>. Acesso
em: 08 ago. 2020.
BENEDIKT, M. L. To take hold of space: isovists and isovist fields. Environment And Planning
B: Planning and Design, [S.L.], v. 6, n. 1, p. 47-65, 1979.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Brasília, DF: Presidência da República, 1988.
562
15
Notas
i
Abrahão Velvu Sanovicz (1933-1999) nascido em Santos/SP, foi um arquiteto formado em 1958 na FAU
USP onde também lecionou entre 1962-1999. Sua produção aproxima-se das ideias da “Escola Paulista”
(SILVA, 2017).
ST7 - EIXO 3 - HISTORIOGRAFIA E
USOS
565
Espaço e tradição da arquitetura neocolonial no Brasil: duas
residências e sua Sintaxe Espacial
Resumo. O presente trabalho tem como objetivo estudar a arquitetura residencial Neocolonial sob a ótica
da sintaxe espacial. Na historiografia, o estilo possui um rico aparato bibliográfico que avalia suas obras
considerando sobretudo a arquitetura como envoltória. Propõe-se a apresentá-la sob uma nova
perspectiva, pouco difundida nos estudos de História da arquitetura: a Teoria da Lógica Social do Espaço,
por meio da qual relaciona-se os aparatos físicos, sociais e espaciais da arquitetura, quesitos
indissociáveis e essenciais para seu amplo entendimento. Para tal, foram analisadas duas residências: a
casa Numa de Oliveira de Ricardo Severo e a casa da Baronesa de Arary de Victor Dubugras, ambas
construídas no mesmo ano, 1916, e na Avenida Paulista. Considerando-se o contexto histórico em que se
inserem, a organização social da época e sua configuração espacial, constatou-se que, quando se discute
a arquitetura, o estilo que determina a “casca” não é suficiente para classificá-la. Analisando o espaço
criado e as relações sociais que ele cativa, entende-se que se trata de um conceito muito mais amplo e,
para alterá-lo, são necessárias mudanças históricas e sociais significativas que transformem o estilo de
vida de uma sociedade e consequentemente o espaço interno projetado.
Palavras-chave. Neocolonial, sintaxe espacial, Ricardo Severo, Victor Dubugras, São Paulo.
Space and tradition of neocolonial architecture in Brazil: two residences and their
Space Syntax
Abstract. The present work aims to study Neocolonial residential architecture from the perspective of
spatial syntax. In historiography, the style has a rich bibliographic apparatus that evaluates its works
considering above all architecture as an envelope. It is proposed to present it under a new perspective,
little known in the studies of the History of Architecture: the Theory of Social Logic of Space, through which
the physical, social and spatial apparatuses of architecture are related, inseparable and essential questions.
for your broad understanding. To this end, two residences were analyzed: the house Numa de Oliveira by
Ricardo Severo and the house of Baroness de Arary by Victor Dubugras, both built in the same year, 1916,
and on Avenida Paulista. Considering the historical context in which they are inserted, the social
organization of the time and their spatial configuration, it was found that, when architecture is discussed,
the style that determines the “shell” is not enough to classify it. Analyzing the created space and the social
relations that it captivates, it is understood that it is a much broader concept and, in order to change it,
significant historical and social changes are necessary that transform the lifestyle of a society and,
consequently, the designed internal space.
Keywords: Neocolonial, space syntax, Ricardo Severo, Victor Dubugras, São Paulo.
566
567
1.Introdução
“Tradicionalismo”, “Colonialismo” ou “Arquitetura Brasileira” - que a posteriori se unificaram
sob a denominação de Arquitetura Neocolonial brasileira (FICHER, 2012) - surgiu com a
responsabilidade de apresentar-se como a arquitetura genuína do país. A intenção era contrapor o
estilo em voga: o Ecletismo; e disputar com outro que também nascia: o Modernismo. Seus
idealizadores e críticos mal julgavam o academicismo imposto pela Escola Nacional de Belas
Artes - ENBA, cujo viés era predominantemente francês. Por esse motivo, Kessel (1999, p.67)
classifica o Neocolonial como “uma das facetas do processo de descolamento da cultura brasileira
da matriz intelectual europeia [sic]”. O tradicionalismo conservador era visto como o melhor
modo de se alcançar essa primazia da cultura nacional, que desenvolveu-se e aclimatou-se às
especificidades locais, e como uma reafirmação de identidade e “à formação de uma consciência
nacional e latino americana” (GUTIERREZ, 1989, p.34), em detrimento ao ecletismo, friamente
importado sem cunho regionalista ou nacionalista.
Sob esses preceitos, São Paulo apresentou-se como propícia ao desenvolvimento desse estilo.
Antes, pouco desenvolvida economicamente no sistema colonial (ABREU, 1998), apresentava
uma arquitetura majoritariamente vernacular, devido ao isolamento físico da cidade. Porém, a
partir de finais do século XIX no momento em que as riquezas oriundas do café alteraram o
cenário urbano, levando à ela desenvolvimento industrial e econômico, São Paulo apresentava
cerca de 70% de seus habitantes de origem estrangeira (AMERICANO, 2004). Durante e após a
Primeira Guerra, com os marcos temporais específicos em 1914 (conferência “A Arte Tradicional
no Brasil”i) e 1922 (comemoração do Centenário da Independência), esse excesso de
estrangeirismo foi fortemente criticado e deu lugar ao que se tornaria o estilo oficial do país: o
Neocolonial (CONDURU, 2009).
Dois arquitetos atuantes em São Paulo podem ser enumerados como destaques no estilo e,
paradoxalmente ao ideário nacionalista, ambos eram estrangeiros: o português Ricardo Severo da
Fonseca e Costa (1869 - 1940) e o francês Victor Dubugras (1868 - 1933). O primeiro,
considerado precursor do estilo, foi crítico ferrenho do ecletismo paulistano. Em contrapartida,
Dubugras, talvez por não possuir uma formação acadêmica, como afirma Ficher (2012), projetou
obras nos três estilos em voga durante sua atuação profissional: ecléticas, neocoloniais e
modernistas.
Sob esse histórico e considerando a relevância e as diferenças entre os dois arquitetos, propõe-se
analisar espacialmente a arquitetura residencial produzida por esses ícones do movimento. Situá-
los é de suma importância considerando que os espaços criados são herança de vivências,
formação profissional e ideários que carregavam. Ademais, a avaliação do espaço ajuda a
compreender principalmente os padrões sociais do período. Resta saber, e se propõe nesse
trabalho, como era a dinâmica das casas produzidas nesse estilo e se o fato de seus dois principais
arquitetos possuírem origens diferentes afetou de modo significativo a composição espacial
produzida.
Há um vasto campo bibliográfico que permite uma classificação precisa do Neocolonial do ponto
de vista da envoltória dos edifícios, ou seja, suas características volumétricas, gramáticas formo-
estéticas e materialidades aplicadas (BRUAND, 2008; REIS FILHO, 2005; LEMOS, 1994;
CARVALHO, 2002; dentre outros). Mas, e quanto ao espaço formado? Quais as características
da espacialidade desse estilo arquitetônico? Como essas respostas se relacionam com a
organização social da época? Nem todas as respostas serão possíveis com o recorte de análises do
presente trabalho, mas partindo destes questionamentos, pretende-se aprofundar os
conhecimentos a respeito da produção Neocolonial usando como parâmetro a análise da Sintaxe
Espacial - SE.
Em geral, predominam nas publicações de arquitetura de abordagem generalista descrições
estilísticas que privilegiam os elementos compositivos em si. Quando se avalia a planta das obras,
no entanto, muito se vê a respeito da organização do espaço em termos funcionais. Estudos
568
Entretanto, São Paulo como cenário precursor do estilo é o segundo paradoxo que permeia o
estudo do Neocolonial: uma cidade focada no presente e no futuro que desprezava e destruía sem
qualquer saudosismo as marcas do passado colonial, não tão marcante devido ao isolamento físico
da cidade à época (BRUAND, 2008). A capital paulista era pobre e não conheceu o esplendor do
estilo Colonial alcançado no Nordeste, Minas Gerais ou Rio de Janeiro (SEGAWA, 2000, p.54),
fato que coloca em cheque o título da cidade como epígona do movimento no país.
Um terceiro paradoxo reforça a argumentação dos autores que desqualificam-o como estilo
arquitetônico: os dois principais ícones do movimento nacionalista eram de origem e formação
estrangeira (BRUAND, 2008). De fato, o Neocolonial tenta combater um passado com outro mais
remoto, mas essa é uma prática comum nas vertentes da arte e seus modismos, o que não
desqualifica seus movimentos (KESSEL, 1999). Partindo-se do pressuposto que este foi mais um
estilo elitista, em uma cidade onde o Colonial não era valorizado e cujos maiores representantes
desse patriotismo foram dois estrangeiros, a conclusão de que o Neocolonial apenas compõe o
balaio eclético é válida (LEMOS, 1994), mas aqueles que defendem sua emancipação como estilo
também os possuem, uma vez que havia ali um desejo de mudança e uma novidade: a valorização
e busca pelo nacional (FABRIS, 1987; BRUAND, 2008; FICHER, 2012). E ambos têm lá sua
razão: as duas teorias, embora pareçam antagônicas, podem ser vistas como verdadeiras.
Essa divergência é galgada em análises plástico-estéticas que rotulam a arquitetura. Apesar disso,
não é um movimento valorado tanto na historiografia (embora nos últimos anos um conjunto de
teses e dissertações tenham sido defendidas) - não há um consenso quanto o seu status de estilo –
quanto no patrimônio – visto que grande parte de suas principais obras não existem mais. Nas
colagens a seguir, apresentam-se imagens representativas do que compõe o rol de estilemas que
caracterizam o Colonial, figura 4, e o Neocolonial, figura 5. A recuperação dos elementos
arquitetônicos coloniais é, portanto, seletiva, glorificando a cultura produzida pela aristocracia
rural como expressão máxima da nacionalidade.
571
Figura 4. Elementos formais da arquitetura colonial brasileira: Telha de faiança (Fonte: <www.
artelivrosevelharias.blogspot. com.br/2011/02/ telhas-pintadas-em-beirais-de-coimbra.>),
Muxarabis (Fonte: <www.marcospiffer.com.br/?p=1799>.), Telha canal (Fonte:
<www.descubraminas. com.br/ Cultura/ Pagina.aspx?cod_pgi=1332>), Beiral (Fonte:
<www.descubraminas.com.br/ Cultura/ Pagina.aspx?cod_pgi=1332>), Azulejos (Fonte:
<www.marcospiffer.com.br/?p=3961>)
Os dois arquitetos aqui estudados transitam pela gramática formal neocolonial. Ricardo Severo,
nasceu em Lisboa em 1869 e formou-se engenheiro civil e de minas na Academia Politécnica do
Porto. Veio para o Brasil em 1891 ou 92 (MASCARO et al., 2011) exilado por questões políticas.
Em 1908, radica-se definitivamente no Brasil, onde associou-se ao escritório Ramos de Azevedo,
o maior da cidade na época. Não há objeções na literatura a respeito da importância desse arquiteto
no cenário que protagonizou o movimento neocolonial, tanto que é impossível estudar o tema sem
mencioná-lo. Carregava em si todo o aparato teórico condizente com o contexto físico, social e
histórico propício a propagação da personalidade luso brasileira de forma erudita. Manteve em
sua atuação o culto ao lusitano, exaltando a raiz cultural e étnica portuguesa, que se transformou,
em sua teoria, no fundamento da arte brasileira (SEGAWA, 1999, p.35). Em 1914, ministrou a
conferência “A Arte Tradicional no Brasil” na Sociedade de Cultura Artística e em 1917 palestrou
na Escola Politécnica de São Paulo, consideradas as primeiras tentativas de sistematização da
arquitetura tradicional do país (SEGAWA, 1999, p.35).
Victor Dubugras era francês, nascido em 1868 em Sarthe, mas cresceu em Buenos Aires, onde se
profissionalizou arquiteto, e veio para o Brasil – especificamente, São Paulo – em 1891, onde
primeiramente foi colaborador de Ramos de Azevedo (1851-1928). Por algum tempo trabalhou
no Departamento de Obras de São Paulo e a partir de 1894, foi docente na Escola Politécnica com
o título de “professor de aula” (REIS FILHO, 2005). Sua atuação profissional ocorreu no período
de 1890 até 1930, com um vasto repertório que conta com exemplares dos variados estilos que
vigoraram no cenário nacional durante esse intervalo. Se comparado a Severo, constata-se que,
naturalmente, devido ao seu histórico de formação profissional, Dubugras não teve a mesma
sensibilidade, ou erudição, em relação à arquitetura lusa. Entretanto, o arquiteto não se limitou a
fazer cópias, mas projetava com certa semelhança formal, permitido por seu caráter eclético e ao
mesmo tempo inovador (SEGAWA, 2000, p. 53). Fez-se, assim, um neocolonial próprio, peculiar
e coeso que influenciou e se propagou em meio aos arquitetos da época.
3. O espaço e a sua análise
O espaço oriundo do fazer arquitetônico requer uma leitura própria. Afinal, o objetivo deste é ser
tanto o progenitor quanto o palco ideal das interações sociais que nele ocorrem. Isto é, do mesmo
modo que padrões pertencentes a uma determinada sociedade influenciam na criação dos
ambientes, esses interferem nesses padrões reciprocamente. Uma teoria que busca compreender
objetivamente como funciona a dinâmica espaço versus relações interpessoais, é análise sintática
do espaço (ou somente SE), aparato teórico-metodológico que faz conexão entre o aspecto social
e o físico da arquitetura. Esta análise emergiu do livro The Social Logic of Space (HILLIER;
HANSON, 1984) sistematizado a partir de diversas pesquisas conduzidas na University College
of London desde meados de 1970.
Nesse entendimento, cada espaço e suas práticas socioculturais intrínsecas são avaliados segundo
quesitos de permeabilidades e barreiras (AUTOR, 2018). Na escala da edificação, é vista como
uma rede de paredes e portas que funcionam como delimitadores dos diferentes vazios onde as
pessoas interagem e executam suas atividades. É importante frisar que, uma mesma envoltória
que apresenta internamente espaços cujas disposições dos cômodos são iguais, porém as conexões
entre eles diferentes, podem produzir relações interpessoais e ambientais completamente diversas
(figura 6):
573
Figura 6. (a) plantas (b) mapas de acesso (Fonte HANSON, 1998, p.25 e 26, modificado pelos
autores)
As casas brasileiras, segundo Holanda (2013), possuem cinco possíveis relações: relação entre os
próprios moradores, entre moradores de diferentes idades, moradores versus hóspedes, moradores
versus visitantes e moradores versus empregados, com níveis hierárquicos entre elas que
determinam o modo que os ambientes são dispostos, de acordo com o grau de socialização ou
privacidade esperados. Assim, a maneira como as pessoas se movimentam dentro dos espaços,
interagem e notam alterações em seus campos de visão enquanto se deslocam são os quesitos
avaliados pela sintaxe para discorrer acerca das relações que aquele ambiente propicia. A partir
dessa leitura, é possível observar padrões de comportamento que podem ser específicos de
determinada população, época ou estilo. A SE possui diversas técnicas que geram dados
qualificáveis de um espaço cujas relações são topológicas, isto é, avalia as propriedades não
dimensionais, não métricas, como conexões, posições e relações de vizinhança. Dentre essas,
neste estudo serão usados os grafos justificados e os mapas de visibilidade (Visibility Graph
Analysis - VGA).
A primeira deriva-se da Teoria dos Grafos que estuda objetos combinatórios - os grafos - que são
um bom modelo para muitos problemas em vários ramos da matemática e em outras áreas. Hillier
e Hanson (1984) os inserem na descrição de propriedades morfológicas arquitetônicas e urbanas.
Os edifícios são “lidos” por meio das relações de acesso entre os espaços das divisões internas,
gerando um gráfico de permeabilidade, ou seja, por onde um usuário pode locomover-se através
de portas, passagens e outras conexões entre os ambientes. Graficamente, os círculos ou nós
(node) representam os espaços e, as linhas ou vértices (edge) são a abstração das conexões,
passagens, vãos, cruzamentos, ou seja, as permeabilidades (HANSON, 1998, p.7).
Essa análise é realizada por meio do software JASS, capaz de calcular dados sobre profundidade,
integração e controle entre os ambientes. Para a elaboração deste, primeiramente, carrega-se no
programa a planta baixa, sobre os cômodos são dispostos os nós e entre eles, quando há conexão,
as linhas. Cada um desses nós recebe uma cor de acordo com os setores do qual fazem parte:
social, íntimo, serviço, espaço de transição e área externa. Essa definição é importante para se
compreender de que modo essas funções se comunicam e como é a dinâmica entre elas. Estudo
que foi teorizado por Amorim (1999), sob a denominação “paradigma dos setores”, que constatou
que a setorização é uma prática comum na produção da arquitetura residencial brasileira devendo
ser, inclusive, sistematizada como uma estratégia de projeto.
No grafo, a integração é mensurada por um valor matemático que “quantifica a acessibilidade
topológica de cada espaço em relação a todos os demais que configuram o sistema que o contém”
(ALDRIGUE, 2012, p.88), segundo Hillier e Hanson (1984, p.114-115) representa a distância