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o que os filósofos pensam

sobre as mulheres
Maria Luísa Ribeiro Ferreira

(Org.)

o que os filósofos pensam


sobre as mulheres
© Entre Trópicos Ed. (2021)
© Autores (2021)

Editor Responsável: Kassyus Rodrigues Teófilo


Capa: João F.
Diagramação: João F.
Organização e negociação: GEIMF

O62 O que os filósofos pensam sobre as mulheres / Organização:

Maria Luísa Ribeiro Ferreira – Teresina (PI):

Entre Trópicos Ed., 2021. 287p.

ISBN 9786586982084

1. Mulheres – Filosofia. 2. Papel sexual – Filosofia.


I. Ferreira, Maria Luísa Ribeiro.

CDD 100

CDU 1

www.entretropicos.com.br
@entretropicosed
Teresina - PI - 2021
SUMÁRIO

NOTA 07

PREFÁCIO 09

APRESENTAÇÃO 15

O QUE OS FILÓSOFOS PENSAM SOBRE AS


MULHERES: PLATÃO E ARISTÓTELES 25

DE CULTU FEMINARUM: TERTULIANO E A


RETÓRICA DO CORPO 49

EX HOMINE UNO: UMA LEITURA DA CONDIÇÃO


FEMININA EM AGOSTINHO DE HIPONA 77

A MULHER E O FEMININO NA OBRA DE SANTO


ANSELMO 105

DESCARTES, AS MULHERES E A FILOSOFIA 125

SPINOZA, HOBBES E A CONDIÇÃO FEMININA 147

HUME E A TRIVIAL DIFERENÇA 175


o que os filósofos pensam sobre as mulheres

NOTA À PRESENTE EDIÇÃO

Com o desejo de conhecer mais sobre feminismos,


mulheres filósofas e pensamentos filosóficos que explicassem
a condição feminina de hoje, surgiu o Grupo de Estudo
Mulheres e Filosofia em 2018, a partir da demanda das alunas
do Ensino Médio e do Ensino Superior do Instituto Federal do
Piauí – Campus São João do Piauí. Percebendo que os
conteúdos previstos pelos currículos escolares eram
insuficientes (ou até mesmo omissos) e que a própria
formação acadêmica das docentes não contemplava tais
temas, decidimos colocar em prática um grupo de estudos,
com reuniões semanais para a leitura do livro A
Representação das Mulheres no Discurso dos Filósofos, de
Adília Maia Gaspar. Participaram do grupo, inicialmente,
alunas e alunos dos cursos de Ensino Médio, Licenciatura em
Ciências Biológicas, Bacharelado em Administração, e as
professoras Claudânia Santos (arte), Ângela Silva (português),
Lair Liberato (psicóloga do campus), sob a coordenação da
professora Lenise Almeida (filosofia).
Em 2020, já no contexto pandêmico e sem qualquer
vínculo institucional, o grupo se reinventou através de novas
propostas e horizontes. Atualmente estamos nas redes sociais
com o nome Grupo de Estudo Independente Mulheres e
Filosofia (GEIMF) e temos como principal objetivo articular
uma rede de apoio ao trabalho de professoras e pesquisadoras
da filosofia (graduadas e pós-graduadas) que lecionem no
Ensino Básico público e/ou privado, no Ensino Superior
privado, no Ensino Superior a distância público e/ou privado,
mestrandas, doutorandas e pós-doutorandas, ou
pesquisadoras sem vínculos institucionais. Nosso grupo
pretende acolher todas essas mulheres que têm um interesse
em comum: produzir conhecimento filosófico que contemple
a temática mulheres e filosofia, suas múltiplas abordagens e
possibilidades inter/transdisciplinares. Para isso, estamos
abertas para as diversas propostas de projetos (com ou sem
vínculo institucional) que possam ser desenvolvidos por
membros do grupo. Acreditamos que os diálogos
interdisciplinares são enriquecedores para as discussões
acerca da temática mulheres e filosofia, por isso o grupo
também é aberto à participação de mulheres que tenham
formação em outras áreas do conhecimento.
No que se refere aos projetos desenvolvidos pelo

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

grupo, contamos com um projeto intitulado Jovens filósofas


em diálogo, que tem como intuito incentivar o diálogo entre
pesquisadoras em filosofia, divulgar suas pesquisas e
oportunizar as discussões sobre o nosso contexto atual. Além
da realização desse projeto, dispomos de dois grupos de
leitura: o primeiro coordenado pela professora Lenise
Almeida, no qual procedemos a leitura do livro organizado
por Maria Luísa Ribeiro Ferreira, intitulado O que os filósofos
pensam sobre as mulheres, e o segundo grupo coordenado
pela professora Karla Sousa no qual estamos realizando a
leitura da obra O segundo sexo, Vol. I, de autoria da Simone
de Beauvoir.
Fazem parte do nosso grupo: Dra. Alexandrina Paiva
(IFSP), Esp. Ângela Viana (IFPI), Ma. Aryane Araújo (SEDUC-
PI), Esp. Claudânia Santos (IFPI), Grad. Daniely Honorato
(UFGD), Ma. Esmelinda Fortes (SEMECT/Caxias-MA), Ma.
Halanne Fontenele (IFPI), Dra. Hellen Lopes (IFMA), Ma.
Karla Sousa (UFBA), Esp. Lair Liberato (IFPI), Dra. Laiz Fraga
(UFBA), Ma. Lenise Almeida (SEMECT/Caxias-MA), Ma.
Lorena Moura (Pitágoras ICF), Dra. Nayara Barros (UFSC),
Dra. Priscila Cupello (UFRJ), Ma. Rosangela de Almeida
(SEMEC-SE), Ma. Solange Sobreira (IFPI), Ma. Tainah Gualter
(SEMEC-PI) e Ma. Thaline Fontenele (IFAL).

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

PREFÁCIO

Em janeiro de 2021 o GEIMF deu início ao Grupo de


Leitura O que os filósofos pensam sobre as mulheres. Este
grupo de leitura foi idealizado ainda em 2020, durante o
isolamento social imposto pela pandemia da COVID-19, por
isso, o meio escolhido para as nossas reuniões foi o virtual.
Este formato possibilita, em detrimento do inestimável
“contato humano”, reunir mulheres e professoras de diversos
estados e municípios do extenso território brasileiro,
aproximando inclusive continentes em uma mesma leitura. O
nosso objetivo inicial era compartilhar a leitura de uma
importante obra, publicada originalmente no Brasil no ano de
2010, mas que se encontrava com exemplares esgotados e, por
isso, com difícil acesso ao público em geral. A nossa intuição
original nos dizia que, mesmo que o texto não fosse acessível
a todos, aquele conteúdo deveria ser compartilhado e
debatido de alguma maneira. Após nosso primeiro encontro,
estimuladas pelo interesse dos (as) participantes, fomos
instigadas a buscar uma solução para que o texto pudesse se
tornar acessível ao grupo. Nos contatos que, por mera
formalidade, chamaremos aqui de burocráticos, percebemos a
possibilidade de tornar o texto acessível não apenas aos (às)
participantes do grupo de leitura coordenado por nós, mas ao
público brasileiro no geral. Embora fosse uma ideia ousada e
distante do que alçamos inicialmente, essa possibilidade só foi
cogitada graças ao acolhimento e disponibilidade de todos
que estiveram envolvidos nesse processo. Por isso, nos
dedicaremos agora aos agradecimentos que narram por si o
percurso realizado para que esta reedição se tornasse um
projeto concreto.
Agradecemos ao editor chefe da Editora Unisinos,
Carlos Gianotti, pelo pronto acolhimento e apoio para a
reedição deste livro, concedendo-nos o arquivo diagramado;
à professora organizadora da obra Maria Luísa Ribeiro
Ferreira pela gentileza, disponibilidade e cessão dos direitos
autorais além da concessão da entrevista que atualiza e amplia
esta nova edição; ao curador da presente obra, João Farias, e
aos editores da Editora Entre Trópicos, pela parceria e
generosidade para a concretização deste projeto, reeditando e

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

distribuindo gratuitamente esta obra no formato e-book;


também aos que contribuíram direta ou indiretamente nas
mais diversas formas para esta reedição.
A relevância e a atualidade da obra O que os filósofos
pensam sobre as mulheres precisa ser compreendida a partir
da situação das mulheres nas instituições e espaços públicos
brasileiros, mas principalmente compreendida a partir do
ensino de Filosofia nas universidades e escolas, que ainda é
constituída por uma maioria do corpo docente formado por
homens brancos. Mesmo com um grande aumento das
mulheres nas universidades, a realidade na área de Filosofia é
ainda precária, pois o curso ainda é procurado
predominantemente por pessoas do sexo masculino. As
mulheres somam algo em torno de 36% (trinta e seis por cento)
na graduação dos cursos de Filosofia no Brasil e esse número
diminui na medida em que vai avançando na carreira
acadêmica1. A partir desses dados surgem alguns
questionamentos: Por que a baixa presença de mulheres na
carreira acadêmica de Filosofia? E que consequências essa
falta gera para a nossa formação? Será que a baixa presença de
mulheres na academia, nas pesquisas e oportunidades não
repercutem também no conhecimento e na produção filosófica
feita por mulheres?
Os dados mostram a distorção do lugar da mulher
atuando na área de Filosofia e as consequências dessa

¹ Araújo, Carolina. Quatorze anos de desigualdade: mulheres na carreira


acadêmica de Filosofia no Brasil entre 2004 e 2017. São Paulo: Cadernos de
Filosofia alemã (Crítica e Modernidade), vol.24, n.01, jan-jun 2019. De acordo
com a professora e pesquisadora Carolina Araújo (2019) existe no Brasil uma
desigualdade de gênero nos cursos de filosofia, no qual, as chances de mulheres
chegarem ao topo da carreira acadêmica na área de Filosofia é 2,5 vezes menor
que para os homens. Nessa pesquisa, ela pontua a existência de um déficit de
mulheres no corpo docente das pós-graduações de filosofia no país, comparando
inclusive com o quantitativo de outros cursos. E apresenta: “Nossa população é
de maioria feminina: 51,04% (IBGE, 2010). Dos cidadãos com 25 anos ou mais
com ensino superior completo, 12,5% são mulheres, em contraste com 9,9% de
homens (IBGE, 2012, p. 62). Ademais, as mulheres são maioria dos estudantes do
ensino superior, 57%, e da pós-graduação strictu sensu, 53,46% (idem, p. 97).
Portanto não há no cenário nacional geral justificativa para a baixa presença de
mulheres em carreiras acadêmicas.”(IBGE apud Araújo, 2019, p.30). Com base
nisso, Araújo(2019) defende a hipótese de ser esse um padrão sexista mantido
pela comunidade profissional, alertando inclusive para o agravamento dessa
situação de desfavorecimento de gênero para os próximos 14 anos.

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

desigualdade histórico-social2. Isso demonstra que a mulher


na história da Filosofia ocidental sempre foi delegada a um
espaço no qual ela não podia escolher, apagando seu
protagonismo e sua voz. Podemos perceber isso, por exemplo,
a partir da universalização do conceito homem a todas as
categorias de seres humanos; quando as mulheres não são
inseridas na história da Humanidade como protagonistas,
como mestres, como filósofas; quando sentimos a necessidade
de pensar a mulher como categoria filosófica.
Dessa forma a temática que envolve este livro
organizado pela professora Maria Luiza Ribeiro Ferreira, nos
permite pensar sobre o lugar que foi dado à mulher a partir
da filosofia canônica, reconhecida e estudada nas
universidades, bem como, compreender de que maneira as
opressões e desigualdades foram sendo naturalizadas nas
vozes e pensamentos dos filósofos em diferentes períodos
históricos. E, também, como isso recai sobre nossas próprias
vidas no contexto atual, seja representado pelas baixas
oportunidades de trabalho, seja pelas condições sociais que
nos limitaram a espaços privados e dificultaram o acesso e
permanência a espaços públicos e institucionais.
Além disso, entendemos que como professoras e
pesquisadoras da filosofia, devemos buscar uma formação
contínua que nos prepare para as demandas reais sobre as

2 É importante enfatizar que a condição de gênero se agrava quando pensada em

relação aos marcadores raciais e étnicos. Não há uma informação detalhada


acerca do curso de Filosofia, já que somente em 2015 foi obrigatório a declaração
da raça para o ingresso acadêmico, porém, os últimos estudos do Censo da
Educação Superior (2019) afirmam um grande aumento do ingresso nos últimos
anos da população indígena e negra em instituições públicas e privadas, mas não
de forma equitativa. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
- IPEA(2020), o estudo Ação Afirmativa e População Negra na Educação
Superior: Acesso e Perfil Discente de Tatiana Dias Silva, “a população negra
corresponde a apenas cerca de 32% dos habitantes com nível superior, ao passo
que somente 9,3% dos negros completaram esse nível educacional (versus 22,9%
da população branca, com 25 anos ou mais)”(p.36). Essa equivalência é ainda
menor para a população indígena, mesmo com a expansão das políticas
afirmativas no Brasil nos últimos anos. Por essa razão, reforçamos que o
apagamento no curso de Filosofia vai além das mulheres, omitindo o
protagonismo epistemológico de diferentes vozes e grupos sociais. Cf. em SILVA,
Tatiana Dias. Ação Afirmativa e população negra na educação superior: acesso e
perfil discente. Rio de Janeiro, junho de 2020. In: Texto para discussão / Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada.- Brasília : Rio de Janeiro : Ipea , 1990. Cf.
INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS
ANÍSIO TEIXEIRA. Sinopse Estatística da Educação Superior 2019. Brasília: Inep,
2020. Disponível em: <http://portal.inep.gov.br/basica-censo-escolar-sinopse-
sinopse>. Acesso em: 01/06/2021.

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

mulheres e a filosofia. Nossas formações acadêmicas,


sobretudo nos currículos das graduações, não nos prepararam
para essa demanda e, por isso, atentas ao mundo que nos
rodeia e às suas mudanças, devemos criar oportunidades de
estudos em grupos, eventos, publicações e as mais diversas
formas de produzir/reproduzir esse conhecimento excluído
das grades curriculares em todos os níveis de ensino.
Que as mulheres sempre fizeram filosofia não é uma
novidade. Vale destacar que a história da filosofia ocidental
surgiu com Sócrates e ele teve como professora duas
mulheres: Diotima e Aspásia. Em uma pesquisa mais
aprofundada, poderíamos enumerar diversas filósofas ao
longo da história, mas o que nos inquieta, desde a primeira
formação do grupo, é o fato de a maioria dessas mulheres
terem sido apagadas e silenciadas na história da filosofia
ocidental. É inegável que é uma tarefa árdua e vagarosa
restituir e dar visibilidade a essas vozes das filósofas do
passado, mas isso não quer dizer que devemos nos eximir
dessa tarefa; pelo contrário, precisamos cooperar uma com a
outra em uma escala internacional. Sabemos que é impossível
modificar a invisibilidade que essas mulheres tiveram no seu
tempo. O que está em nosso encargo é fazermos com que
nossa presença não seja ocultada no presente e no futuro, e
lutarmos para que sejamos respeitadas, em qualquer âmbito.
Em consequência disso surgiu a necessidade de nos últimos
anos a mulher pleitear o seu lugar no campo de estudos
filosóficos. Apesar dessa enorme e persistente desigualdade
de gênero na academia, tanto simbólica, quanto material, no
último ano, em meio a uma pandemia ocasionada pelo vírus
Sars-Cov-2, redes e grupos de estudos formados por
pesquisadoras e professoras vindos de diferentes espaços
públicos e institucionais proporcionaram a divulgação de
cursos e trabalhos produzidos por mulheres. O movimento se
fortaleceu no que pode ser considerado uma nova era em
termos de estudo sobre gênero, feminismos e, principalmente,
mulheres à frente da produção de conhecimento filosófico.
Nesse contexto é que o GEIMF tem sido construído,
esperando que nossos trabalhos sejam vistos, lidos e que seus
resultados possam contribuir para modificar a estrutura da
sociedade e, quem sabe, proporcionar a construção de novas
perspectivas pensadas por grupos sociais que foram
delegados a um lugar inferior dentro do pensamento e da
história da Filosofia. Dessa forma, temos a satisfação de

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

contribuir para a reedição, divulgação, leitura e crítica da obra


O que os filósofos pensam sobre as mulheres.

Ângela Viana
Aryane Araújo
Karla Sousa
Laiz Fraga
Lenise Almeida
Thaline Fontenele

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

APRESENTAÇÃO
MARIA LUÍSA RIBEIRO FERREIRA
(Universidade de Lisboa)

Um projeto

Os filósofos e as mulheres é o primeiro de um


conjunto de quatro livros que pretendem debruçar-se
sobre o papel/lugar da mulher na filosofia ocidental.
Trata-se de uma investigação interdisciplinar que
decorreu de 1997 a 2003, no Centro de Filosofia da
Universidade de Lisboa, sob a designação geral de
“Uma filosofia no feminino”. Dela participaram cerca
de vinte e cinco colaboradoras e colaboradores
permanentes que, com alguma regularidade, se
encontraram para partilhar informação, para discutir
(muito) as teses mais ou menos polêmicas que
acaloradamente defendiam, para sobretudo descobrir
algo que no início (sobretudo para os mais céticos)
parecia inexistente e que progressivamente foi
ganhando consistência – a presença das mulheres na
filosofia.
O trabalho foi crescendo, liderado por um
núcleo de base. Assim, o dinamismo do processo foi
assegurado por quatro pesquisadoras: eu própria,
professora na Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa; Fernanda Henriques, da Universidade de
Évora; Maria José Vaz Pinto, da Universidade Nova
de Lisboa; e Maria Antónia Pacheco, ligada ao
GAVE (Gabinete de Avaliação do Ministério da
Educação). A partir desse “núcleo duro”, que
assegurou o andamento da investigação e que
simultaneamente tomou parte ativa nela, reuniu-se
um leque mais amplo de colaboradores, dos quais o
maior número está ligado à filosofia mas que inclui
gente de outras áreas, como a sociologia, a
antropologia, a literatura, a história. O objetivo era
levantar questões, equacionar problemas, cruzar
diferentes perspectivas. A proveniência dos
pesquisadores foi diversa, congregando estudiosos
de várias instituições, motivados pelos mesmos
intuitos: questionar o feminino nas suas diferentes
expressões, numa verdadeira atitude de
interdisciplinaridade, tendo a filosofia como
perspectiva dominante. Os colaboradores do

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

presente volume pertencem à Faculdade de Letras


da Universidade de Lisboa, da qual são professores
e/ou pesquisadores, à Universidade Nova de
Lisboa e à Universidade de Évora. Nos volumes que
se seguem o grupo alargou-se, integrando pessoas
de outras instituições, bem como colaboradores
estrangeiros.
A ideia de trabalhar uma filosofia no feminino
partiu de uma provocação/desafio. Instada a
participar de um ciclo de conferências sobre a filosofia
na rádio, coube-me responder a uma questão
capciosa: por que será que não há mulheres filósofas?
Por que é que as mulheres não fizeram (ou não fazem)
filosofia? Confrontada com esse problema e lançada
num tema que até então não me interessara
particularmente, verifiquei, em primeiro lugar, a
inverdade da pergunta. Trata-se de uma interrogação
cuja falsidade facilmente se demonstra em relação aos
dias de hoje, mas que também pode ser verificada no
tocante a outras épocas. Pela investigação que então
desenvolvi, tomei consciência de que, no que respeita
a essa temática, reinava a maior das ignorâncias e que
urgia tornar conhecidas certas vozes
inexplicavelmente silenciadas. Essa foi uma das
finalidades do projeto. A partir dela desenhou-se uma
proposta de trabalho em várias frentes. Assim, a
investigação processou-se em três linhas, podendo
cada uma delas servir de resposta à questão
formulada inicialmente.
A primeira parte da investigação, tratada no
presente livro, diz respeito ao modo como os
filósofos representaram as mulheres. Uma segunda
frente procurou divulgar textos de filósofas, do
passado e do presente, mostrando que elas
realmente existiram e continuam a existir,
manifestando-se de variadas formas, desde a carta
ao romance, desde o ensaio ao tratado1. É
importante que esses textos venham a público e que
a presença da mulher na filosofia ocidental seja
relevada. A terceira linha investigativa debruça-se
sobre a própria condição feminina, analisando em
termos filosóficos temáticas já clássicas dos estudos
sobre mulheres, como, por exemplo, a relação
sexo/gênero, sexo/natureza, ou mesmo a própria
especificidade de um pensamento feminino: Será
que o fato de ser mulher e de ser filósofa dá um
cunho especial aos textos produzidos? Sendo a
filosofia um exercício intelectual que exige certos
requisitos, aceitaremos nela a determinação do
sexo? Trata-se aqui da vertente mais
interdisciplinar, englobando investigações de

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

caráter histórico, sociológico, literário, legal, etc.2

Um livro

A temática “Os filósofos e as mulheres” surgiu


como ponto de partida. Ao querer justificar a
pergunta acima referida – por que é que as mulheres
não fizeram/não fazem filosofia? –, verificamos que
os próprios filósofos são responsáveis por sua
formulação e que a inverdade nela contida muito se
deve aos “cultores da verdade”. Assim, o presente
estudo pretende explicitar de modo que como alguns
filósofos ocidentais pensaram a mulher, que
conceito tiveram da natureza feminina e até que
ponto esse conceito se integra de maneira
consistente nos sistemas globais que construíram.
Procuramos, nessa tentativa inicial, reorientar para a
temática da mulher investigações já realizadas.
Assim, aos colaboradores do presente volume foi
colocado o desafio de repensarem os “seus” filósofos a
partir de uma chave para eles pouco usual. E as
surpresas foram grandes, pois, apesar de
especialistas, poucos conheciam o que seus autores
tinham escrito sobre a condição feminina. Como um
grupo de amigos que se encontram e partilham
saberes tentamos, sem qualquer pretensão de
exaustividade, recolocar problemas e rever
soluções. Começamos por nos interrogar sobre a
posição de cada um desses pensadores acerca da
mulher. Numa primeira incursão, a resposta era
quase sempre negativa – ou não tinham pensado
nisso, ou o que pensavam era quer secundário, quer
irrelevante, quer banal. Por vezes, as teses que
defendiam sobre a natureza humana e a condição
feminina contradiziam mesmo o sistema global que
tinham edificado. Num segundo momento, a
situação alterou-se. Em primeiro lugar, porque a
omissão ou a negatividade começavam a fazer
sentido; ou seja, verificamos que cabia aos próprios
filósofos a responsabilidade relativa à divulgação de
determinados estereótipos sobre a mulher. Depois,
porque a própria negatividade causava problema:
como aceitar que indivíduos inovadores, ou
defensores dos oprimidos, ou combatentes dos
preconceitos, no que respeita às mulheres fizessem
coro com a época, usassem os mesmos slogans e
partilhassem a mesma ideologia? A questão
orientadora passava agora a ser esta: como explicar
que os filósofos tivessem silenciado a mulher? Como

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

compatibilizar essa omissão com suas outras teses, em


que defendiam a liberdade e os direitos humanos?
Um pequeno livro de Nancy Tuana3 alertou-
nos para o problema da não neutralidade sexual dos
textos filosóficos, quer por parte de quem os escreve,
quer por parte de quem os lê. Para essa professora da
Universidade do Texas, a mulher tem dificuldade de
identificar-se com a maior parte dos textos da
tradição filosófica, na medida em que explícita ou
implicitamente neles aparece excluída. A proposta
de Tuana é a de uma releitura da história da
filosofia a partir da situação da mulher na
economia dos diferentes sistemas. Segundo ela, o
estatuto atribuído à natureza feminina não pode ser
considerado um pormenor irrelevante no
pensamento de um filósofo. Há de se verificar a
consistência interna das várias temáticas abordadas,
verificando até que ponto as diferentes reflexões se
compatibilizam mutuamente. E o problema da
mulher aparece quase sempre como um espinho,
pela reformulação que obriga a fazer no que
respeita à coerência global do pensamento de certos
autores.
Motivada pela perspectiva de Tuana, a
investigação prosseguiu essencialmente em duas
linhas: reconstituir o modo como certos filósofos
pensaram as mulheres e perceber por que o fizeram.
Tratava-se de evitar a fácil acusação de misoginia e de
procurar, seguindo o conceito spinozano do Tratado
Político, ter “cuidado em não ridicularizar as ações
dos homens [nesse caso, o pensamento dos
filósofos], não as lamentar, não as detestar, mas
adquirir delas verdadeiro conhecimento”. (T. P. I, §
4).
Fizeram-se algumas paragens, ao sabor dos
interesses do grupo, bem como das ofertas de
colaboração. A primeira é justamente dedicada a
Platão e Aristóteles. De fato, neles encontramos
muitas das teses que enformam o inconsciente
filosófico da filosofia ocidental no que respeita à
condição feminina. No artigo “O que os filósofos
pensam sobre as mulheres: Platão e Aristóteles”,
Maria José Vaz Pinto analisa o pensamento desses
“pais fundadores”, respondendo ao desafio que é reler
textos clássicos de um modo rigoroso, simultaneamente
atento à fidelidade e à inovação. No dizer da autora, “ler
Platão e Aristóteles à luz de uma compreensão
adequada, ou seja, de uma hermenêutica correta,
significa o que diz Platão em Platão e o que significa o
que diz Aristóteles em Aristóteles”, é um trabalho difícil,
pois se constrói numa convivência com a permanente

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

ameaça de simplificação, de anacronismo ou mesmo de


ridículo. Tomando consciência do constante perigo de
trivialização e deturpação, a autora optou por enfatizar
nesses filósofos o modo como encararam o binômio
igualdade/diferença, integrando-o nas preocupações
relevantes de ambos, obviamente outras. Evitando
questões anacrônicas como, por exemplo, a do
feminismo ou antifeminismo dos filósofos em causa,
procurou antes relevar as contribuições por eles
prestadas à representação da mulher, nomeadamente a
defesa platônica de um estatuto cívico para as guardiãs
da cidade, baseada na igualdade das almas masculina e
feminina, e a relegação das mulheres ao foro do privado,
empreendida pelo estagirita com base no
reconhecimento de diferenças biológicas e psíquicas.
Se a abordagem a esses dois pensadores
gregos se manteve numa prudente neutralidade, a
perspectiva que presidiu aos artigos de Paula Oliveira
e Silva sobre Tertuliano e Agostinho de Hipona é
valorativa, sendo esses autores apreciados em função
da fidelidade (ou infidelidade) que mantêm à
antropologia bíblica que lhes serve de referência. Em
“De Cultu Feminarum: uma versão do feminino pela
retórica do corpo”, analisa-se o escrito de Tertuliano,
profundamente marcado pelo sentido da
proximidade de um final dos tempos. A mulher é
associada ao princípio da materialidade e da sedução,
não sendo reflexo do divino, mas sim espelho do
homem. A imagem do feminino apresenta-se, assim,
deformada, considerando-a Paula O. Silva
incompatível com o esplendor da Criação. Em “Ex
homine uno: uma leitura da condição feminina em
Agostinho de Hipona”, a mesma autora analisa o
comentário histórico literal que faz Agostinho ao
relato bíblico das origens (De Genesis ad Litteram, libri
duodecim). Nele o filósofo estabelece os elementos de
sua metafísica da criação, à luz dos quais concebe a
igual dignidade do ser humano, varão e mulher, ante
um mesmo princípio criador. O domínio do varão
sobre a mulher corresponde a uma degradação da
realidade, não sendo nem fundamental, nem
definitivo, podendo superar-se no tempo pela posse
da sabedoria. Para Agostinho, o acesso à sabedoria
não supõe qualquer discriminação, indicando
mesmo a figura de uma mulher, Mônica, como
paradigma da realização desse ideal.
A Idade Média continua a ser um ponto de
referência em “A mulher e o feminino na obra de Santo
Anselmo”, de Maria Leonor Xavier. Nesse artigo
confrontam-se algumas teses suscetíveis de favorecer
o predomínio masculino com outras que militam a

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

favor de uma paridade entre os sexos. Se a perspectiva


anselmiana de considerar que no pecado original
Adão foi mais culpado – porque mais responsável –
pode ser entendida como uma secundarização da
mulher, a tônica dominante é de franca
complementaridade, equivalendo-se as virtudes
femininas e masculinas, exemplificadas
respectivamente na “pietas” e na “justitia”.
Os três filósofos seiscentistas que este
volume contempla foram por mim trabalhados,
num aproveitamento de investigações já feitas. Em
“Spinoza, Hobbes e a condição feminina”, tento
mostrar como cada um desses pensadores justificou
diferentemente um mesmo posicionamento frente
às mulheres, interditando-lhes a esfera política.
Embora a condição feminina seja um tema de pouco
peso na economia dos sistemas em causa, sua análise
leva a um aprofundamento das temáticas éticas e
políticas, questionando a consistência destas com as
teses restantes. Inseridos num contexto alheio às
questões do feminino, Hobbes e Spinoza tomaram
posições paradigmáticas relativamente a problemas
que mais tarde seriam reperspectivados,
nomeadamente no que concerne à igualdade e à
diferença, à natureza e à cultura, ao público e ao
privado.
Em “Descartes, as mulheres e a filosofia”,
pretendo mostrar a presença das mulheres na obra do
pensador francês. As três figuras femininas que com
ele mantiveram correspondência – Sofia de Hanôver,
Cristina da Suécia e Elisabeth da Boêmia – são
reveladoras não só de um Descartes permeável à
galanteria, mas de alguém que leva a sério uma
maneira feminina de levantar questões. É
particularmente na correspondência com Elisabeth
que se torna patente a presença da mulher na gênese
do pensamento cartesiano. De fato, é devido às
insistências da Eleitora Palatina que o filósofo francês
repensa certos conceitos fundamentais, que burila
algumas teses e que direciona seus interesses para a
relação corpo/alma, diluindodicotomias.
O tema das virtudes femininas é central no
artigo de João Paulo Monteiro “Hume e a trivial
diferença”. Tomando como referência o texto do
filósofo escocês “Sobre a castidade e a modéstia”
(Tratado da Natureza Humana, livro III, ii), João Paulo
Monteiro procede primeiro a um levantamento dos
temas dominantes da moral humana, selecionando
depois os aspectos concernentes à mulher.
Procurando encontrar uma explicação para a
diferença que a sociedade estabelece entre os

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

comportamentos sexuais femininos e masculinos,


Hume não só recusa todo e qualquer princípio
transcendente, como também afasta a possibilidade
de uma natureza humana dual. A castidade e a
modéstia são prezadas nas mulheres e não nos
homens apenas porque respondem às exigências da
vida em sociedade. Desse modo, os privilégios
masculinos da “sociedade de corte” são
desmistificados, explicando-se a sua existência quer
por critérios pragmáticos, quer por convenções
sociais, quer pela simples imaginação.
Em “Kant e o feminismo”, Pedro Alves
interroga Kant não a propósito de uma “representação
kantiana” qualquer do feminino, mas antes a respeito
de um modo kantiano de pensar a questão do
feminino. No desenvolvimento mostra como, na
doutrina kantiana sobre a essência do político, a
questão do feminino pode ser circunscrita e tratada por
referência aos conceitos de liberdade e de dominação.
Por fim, visa a mostrar como, no horizonte kantiano, a
questão do feminino não investe valores
privativamente “femininos”, mas se subsume em
imperativos de humanidade, reivindicáveis por todo o
gênero humano, dentro de um programa de progresso
civilizacional.
Em “Rousseau e a exclusão das mulheres de
uma cidadania plena”, Fernanda Henriques
considera esse filósofo um dos grandes responsáveis
pelas dificuldades sentidas pelas mulheres no que
respeita ao reconhecimento da sua autonomia e
liberdade. As teses rousseaunianas sobre os direitos
do homem e do cidadão são contrastadas com a
secundarização por ele atribuída à mulher,
circunscrevendo-a aos problemas domésticos e
afastando-a definitivamente de uma participação
ativa na cidade. A análise hermenêutica de textos do
Émile nas suas diferentes versões torna patente a
identificação de feminilidade e imprecisão,
aparecendo a análise da personagem Sophie como
negativamente representativa, porque obscura, da
condição feminina. Como diz a autora, é uma
análise que torna patente a “influência direta e
subterrânea que as ideias pedagógicas de Rousseau
sobre as mulheres tiveram na definição do modelo
de educação feminina nos alvores da sociedade
moderna”.
Em “Lévinas e a alteridade no feminino”,
Cristina Beckert reflete sobre os modos lévinasianos
de dizer o feminino, realçando três metáforas

21
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

enfocadas por esse filósofo: a morada, a volúpia e a


maternidade. Sua intenção, ao analisá-las, é
detectar como cada uma articula o mesmo e o outro,
e como sobre elas se aprofunda progressivamente a
identificação entre feminino e alteridade. O artigo
termina confrontando o pensamento do autor com
certas críticas feministas contemporâneas,
concretamente as de Luce lrigaray, Catherine
Chalier e Tina Chanter.
Com “A queda de Adão: o papel da mulher no
'ceticismo ético' de Russell”, Teresa Ximenez pretende
dar a conhecer algumas linhas gerais do pensamento
russelliano sobre a mulher e o seu papel na
comunidade. Esse pensamento brota do interior de
uma ética social inovadoramente proposta para se
contrapor às morais tradicionais, em que instituições
como o casamento foram determinantes na formação
de uma ética sexual que reduziu a mulher a um plano
inferior. O texto evidencia o papel reconhecido por
Russell à mulher e à sua luta pela liberdade na
passagem de uma ética cristã para uma nova ética,
mais livre e audaciosa.
Não é por acaso que o presente volume se
encerra com um artigo sobre Michel Foucault. Como
refere José Arêdes em “Foucault e a questão da
identidade”, a mulher não ocupou grande lugar
nem na vida, nem na obra do filósofo francês.
Contudo, seria grave lacuna ignorá-lo pelo impacto
que o pensamento foucaultiano teve em certos
setores dos movimentos feministas
contemporâneos. No artigo em causa, José A.
propõe-se pensar a questão da identidade à luz das
categorias foucaulteanas da disciplina e da norma,
pedras-de-toque de Vigiar e punir, considerando que
a identidade moderna foi construída no quadro dos
jogos entre sexo, verdade e poder. A
conceitualização de Foucault é aplicada à análise do
texto autobiográfico de um/uma hermafrodita
francesa do séc. XIX, publicado sob o título Adelaide
Herculine Barbin, dite Alexina B. Ao analisar a perspectiva
de Foucault sobre a identidade, J. A. torna patentes
algumas insuficiências dessa perspectiva, propondo-
nos um modelo mais alargado. Está traçado, pois, o
caminho para o questionamento de uma “natureza
feminina”, tema que foi desenvolvido noutros
volumes.
Finda a apresentação desses doze filósofos,
confirma-se algo já mencionado – o critério que presidiu
à escolha dos autores não foi de modo algum o da
exaustividade nem o da sistematicidade, mas sim o do
aproveitamento pragmático. Desejaríamos que as

22
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

(muitas) lacunas funcionassem como estímulo ao


prosseguimento da investigação. A que então
empreendemos só foi possível devido a uma
convergência de esforços: é tributária, em primeiro
lugar, da boa vontade, interesse e empenho de todos os
que nela colaboraram. Deve-se sobretudo às condições
de trabalho proporcionadas pelo Centro de Filosofia da
Universidade de Lisboa e, muito particularmente, ao
prof. Cerqueira Gonçalves, seu diretor, que sempre
reconheceu e estimulou a investigação sobre “uma
filosofia no feminino”. Não obstante ter sido ele o autor
da pergunta deliberadamente provocatória: “Por que é
que não há mulheres filósofas?”

Notas

V. nessa linha de investigação Maria Luísa Ribeiro Ferreira,


Também há mulheres filósofas, Lisboa, Caminho, 2001.
V. os volumes já publicados por Maria Luísa Ribeiro Ferreira,
Pensar no feminino, Lisboa, Colibri, 2002 e As teias que as mulheres
tecem , Lisboa, Colibri, 2003.
Nancy Tuana, Woman and the History of Philosophy , New York,
Paragon House, 1992.

23
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

O QUE OS FILÓSOFOS PENSAM SOBRE AS


MULHERES:
PLATÃO E ARISTÓTELES
MARIA JOSÉ VAZ PINTO
(Universidade Nova de Lisboa)

1.A leitura dos textos antigos à luz das interpelações


feministas contemporâneas

A questão preliminar com que nos deparamos


constitui uma complexa teia de problemas
hermenêuticos. Se é certo que os estudos relativos às
mulheres e à sua condição na sociedade se
desenvolveram com espetacular exuberância a partir
da década de 1970, sem parar de crescer1, a dinâmica
desse interesse mostra-se avassaladora em diversos
planos, arrastando consigo a transmutação dos temas,
dos métodos e das linguagens. Poder-se-ão apontar,
antes de mais nada, o incremento das próprias
pesquisas ditas “feministas”, marcadamente
interdisciplinares, e o manancial de documentação em
que tais investigações se corporizam. Mas o que
sobressai é a interrogação perene - qual a natureza da
mulher e qual a sua função? – e o enquadramento
dessa interrogação numa problemática
contemporânea, a nossa, que de certa forma a
transubstancia.
Assumimos como pressuposto fundamental
na abordagem dessas temáticas uma dupla convicção:
em primeiro lugar, que, numa medida muito
matizada e muito rica, “toda verdade é filha do seu
tempo”2; em segundo lugar, que o desafio que se nos
levanta é um desafio de lucidez e de reexame dos
parâmetros, mais ou menos rígidos, do que se nos
tornou “habitual”3.
Na tarefa que nos propomos, a de reconstituir a
representação das mulheres em Platão e em Aristóteles,
tentar ver claro é um pouco como que “perder o pé”,
sendo-nos exigida uma releitura que envolve
certamente um imperativo de “desconstrução”. Parece-
nos particularmente interessante a referida abordagem
dos textos clássicos, tendo como guião um questionário
específico determinado pelas preocupações atuais.
Julgamos, no entanto, que a interpelação das fontes não

25
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

pode, de forma alguma, ser levada a cabo à margem do


que se nos apresenta como requisito imprescindível: o de
ler Platão e Aristóteles à luz de uma compreensão
adequada, ou seja, do que significa o que diz Platão em
Platão e do que significa o que diz Aristóteles em
Aristóteles.
Obviamente, apelar para uma “hermenêutica
correta”, num caso e noutro, está longe de ser ponto
pacífico. Em todas as eventualidades, impõe-se optar
por uma proposta de leitura e justificá-la. Que Platão e
Aristóteles se possam situar no campo dos “feministas”
ou dos “antifeministas” – para lá de nos suscitar,
porventura, o sorriso pelo anacronismo manifesto dos
epítetos – envolve, concomitantemente, a conveniência
de esclarecer o que se entende por tais designações.
Qual a caracterização operacional dos
conceitos em causa? Como se equacionam os temas
relativos aos interesses feministas no que respeita
aos antigos, nomeadamente a Platãoe a Aristóteles?
Gregory Vlastos, no ensaio intitulado
expressivamente “Was Plato a Feminist?”4, evoca
algumas definições do que se pode entender por
“feminismo”, estabelecidas num domínio muito
genérico e assaz consensual: “a advocacia das
reivindicações e dos direitos das mulheres” (OED, 1895)
e, nos termos da Emenda à Constituição dos EUA., o
princípio segundo o qual “a igualdade dos direitos não
pode ser negada ou reduzida tendo em conta o sexo”5.
Mas, num plano mais estrito, resulta difícil reduzir a
uma bitola comum os diversos “feminismos”, pelo que
se tem de admitir que há maneiras muito distintas de
alinhar no dito “feminismo”. Julie Ward diferencia, nas
colaborações reunidas para a obra antes citada6, duas
orientações principais: os estudos que se caracterizam
pela dimensão descritiva, visando a reconstituir,
mediante o exame rigoroso dos textos primários em seu
próprio contexto, “os argumentos e as passagens
concernentes às mulheres ou ao gênero"7; e os estudos
que manifestam uma dimensão mais avaliativa,
buscando aqueles aspectos das concepções antigas
suscetíveis de encontrar eco nos atuais feministas. Se
na primeira vertente enfocam-se principalmente as
doutrinas que tratam da natureza e das capacidades
das mulheres, na segunda perspectiva relevam-se
tópicos particulares de estreita ligação com as
preocupações feministas de maior impacto em
estudos filosóficos recentes, tais como a relação da
razão com as emoções, aspectos específicos da ética, a
ligação entre o logos e a dinâmica do desejo, etc.8
De certa maneira, o que se pretende sublinhar
é o fato irrecusável de que o empenho na reflexão

26
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

relativa às mulheres se pode concretizar em múltiplas


modalidades. A fim de sistematizar os itens nos quais
os vários modos de ver se congregam, será vantajoso
nos atermos ao esquema proposto por Prudence Allen
que distingue, na especulação dos pensadores mais
antigos, quatro grupos centrais de questões: o estudo
do “masculino” e do “feminino” no contexto da
oposição de contrários; os problemas relativos à
geração e à criação dos filhos; o acesso da mulher ao
saber; o estatuto da mulher no que toca à realização
moral9. Obviamente que essas matérias remetem a
disciplinas diversas, de caráter predominantemente
filosófico ou de cunho mais científico. Enquanto o
concernente à reprodução se insere no domínio das
ciências da natureza, os outros temas são de teor
filosófico: o estatuto dos opostos reporta-se à
metafísica, e a situação da mulher, quanto ao
conhecimento e quanto à virtude, prende-se
respectivamente à epistemologia e à ética10.
Mas as dificuldades não ficam resolvidas com a
eventual ordenação e categorização dos temas. Na
descrição e na avaliação dos traços que se conectam ao
feminino, representado numericamente por “metade do
gênero humano”11, deparamo-nos com obstáculos de
índole diversificada: as fontes, além de escassas, são
esmagadoramente masculinas; os materiais de que
dispomos são elaborados, conservados e triados em
função de um “cânone” construído culturalmente; na
padronização do que se considera plenamente humano,
avulta o modelo de “razão” assente na equiparação entre
humanidade, racionalidade e masculinidade12.
Com efeito, a caracterização da natureza
feminina é feita de acordo com critérios aferidos a
partir de um cânone instituído com base em
elementos biológicos e psicológicos constitutivos e em
traços comportamentais decorrentes de determinados
hábitos e de práticas sociais consolidadas em moldes
diversificados. O que, no entanto, avulta é a
impossibilidade de abrir mão de um ideal de
“humanidade” em que os conceitos antropológicos
fulcrais, nomeadamente os de razão e de justiça,
associam-se intimamente a um modelo masculino13.
Uma constatação desse tipo acarreta repercussões em
cadeia no domínio hermenêutico: o cânone do que se
entende por filosofia, representado por um conjunto
de obras masculinas tidas como “clássicas”, resultaria,
afinal, do que foi designado por “uma história seletiva
da tradição”14. A modificação desse estado de coisas
teria de passar pelo recurso a outras fontes, pela
recuperação de textos alternativos e por um exame
atento e discriminativo “das razões pelas quais tais

27
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

vozes foram silenciadas”15.


Ao recorrermos a uma linguagem desse tipo,
entramos desde logo numa esfera que resultaria
“bárbara” aos pensadores que nos propomos
estudar. Pois quê? A razão enquanto tal caracteriza-
se em termos de “gênero”? Admite-se uma clivagem
essencial entre homem e mulher, suscetível de
dicotomizar sua definição respectiva?
Foi nossa intenção, nessas observações
introdutórias, alertar para a delicadeza da problemática
abordada, sublinhando, por um lado, a exigência de
objetividade que deve ter todo estudo enquanto tal e
reconhecendo, por outro lado, o cunho normativo dos
ideais almejados. Aceitamos, não obstante, o desafio de
rever nossas ideias feitas. Por conseguinte, julgamos
pertinente e decisiva a referida “releitura” de Platão e de
Aristóteles, o que tencionaremos fazer adiante.

2.Pressupostos da leitura de Platão e de Aristóteles:


uma determinada hermenêutica relativamente a Platão e
a Aristóteles

Na sequência do anteriormente dito,


consideramos inadequado levar a cabo a leitura
isolada desse ou daquele texto filosófico, sem ter em
conta o plano global que lhe dá significado.
Assim, Platão e Aristóteles nos são apresentados,
grosso modo, como paladinos de posições paradigmáticas
no que respeita à natureza e ao estatuto das mulheres,
evocando-se determinadas passagens das respectivas
obras, devidamente localizadas e tornadas marcos de
referência para os interessados nesses temas16. Platão
seria um “feminista” avant la lettre ao afirmar, no que
respeita às mulheres, uma identidade de natureza com
os homens e ao reivindicar para as guardiãs igual
participação nas tarefas cívicas, o que impunha e
legitimava a igualdade na educação. Aristóteles
representaria o “antifeminismo”, argumentando, a
partir das diferenças biológicas das mulheres e de sua
contribuição desigual para a geração dos filhos, o
estatuto de inferioridade do gênero feminino, no plano
cognitivo e no plano ético-político. Ele sustentaria ser a
mulher uma versão deficiente de uma certa
humanidade que apenas alcançaria realização plena no
plano do masculino. Assim, Platão e Aristóteles
protagonizam duas metodologias diversas: na
perspectiva do segundo, “as diferenças biológicas são a
causa fundamental das variações nas naturezas e
capacidades das mulheres”17; na perspectiva do

28
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

primeiro, as diferenças corpóreas são menosprezadas,


uma vez que toda a sua doutrina se centra na
relevância da alma18.
Certamente há linhas gerais de
enquadramento que ressaltam desde o início o
conflito entre o modo de ver dos antigos e as nossas
óticas de cidadãs/cidadãos em trânsito para o
terceiro milênio. Constituem como que os
pressupostos da inteligibilidade das próprias
perguntas, condicionantes da possibilidade de
significação destas. O que pretendemos tratar são as
semelhanças e as diferenças entre homem e mulher e
discutir a questão da sua identidade de natureza e
de função. Mas o que nos parece crucial analisar é o
modo como o binômio igualdade/ desigualdade se
põe para Platão e para Aristóteles. Para nós,
herdeiros das conquistas liberais, a negação da
igualdade e das liberdades individuais resulta-nos
atentatória da mais elementar dignidade humana;
na ordem de prioridades e de preocupações dos
pensadores antigos, as questões significativas eram
outras. O que cobrava maior peso seria uma
problemática única, a da essência e do fim do
homem, formulável porventura numa dupla face:
por um lado, a questão da aretê, da excelência
humana, e o que isso implica no plano cognitivo e no
plano ético, no que toca à razão e no que toca à
justiça; por outro lado, a questão da eudaimonia, da
felicidade individual e coletiva, e o que isso implica
no plano da conquista da unidade, na articulação
funcional do uno e do múltiplo. Os problemas
equacionavam-se em termos de oposição, no jogo
sempre presente da dialética de eris e de eros, no
quadro conceitual onipresente da relação entre physis
e nomos.
Propomo-nos fazer a releitura dos textos
feministas/antifeministas de Platão e de Aristóteles,
procurando lê-los com a fidelidade possível e sem
menosprezo dos princípios que assumimos como
garantidores dessa mesma fidelidade. Nosso único
objetivo, tornamos a frisar, é o de restabelecer o
modo como nos legaram uma determinada
representação das mulheres.

3.A natureza, o estatuto e a função das mulheres

3.1. Em Platão

29
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

À pergunta que encabeça o estudo antes


referido “Was Plato a Feminist?”19, Vlastos responde,
tendo em conta as devidas reservas quanto ao uso
anacrônico de tal conceito, “sim” e “não”, sustentando
com vigor a coerência filosófica das posições
aparentemente incoerentes de Platão. Importa
distinguir, antes de tudo, o que é dito no plano fáctico
da realidade tal como ela é dada e o que se afirma no
plano ideal de uma polis “construída” em logoi20. Por um
lado, nas suas apreciações das mulheres que integram
a sociedade do seu tempo e que fazem parte do
quotidiano ateniense, Platão não se desvia dos juízos
mais difundidos nessa época: as mulheres são
diferentes dos homens, são inferiores aos homens, e
isso justifica sua situação de subordinação. Essa é
também a crença subjacente ao mito da criação do
homem apresentado no Timeu: primeiramente, foi
criada a raça humana, constituída apenas por seres
masculinos, e os que se comportaram com menor
correção foram submetidos a um segundo
nascimento, sob a forma de seres femininos21. Por
outro lado, na descrição que no livro V da República
faz das guardiãs, com vistas a uma cidade tão justa e
tão feliz quanto possível22, avança com uma proposta
revolucionária: dada a identidade de natureza entre
homens e mulheres no que respeita à alma, defende
que a algumas mulheres, as melhores dentre as
guardiãs, seja dada partilha nas tarefas cívicas, o que
envolve, concomitantemente, o acesso igualitário a
uma educação adequada. Para explicitar o que tem
de inédito e de complexo uma proposta desse
gênero, precisamos deter-nos em alguns aspectos
que se prendem a tal promoção, e esse exame só
adquire nexo tendo presente toda a filosofia de
Platão23.
Admitindo o dualismo de corpo e alma como
constitutivo do indivíduo humano, o que
caracteriza o homem, em si mesmo, é a alma, de
sorte que as diferenças biológicas não alteram a
identidade essencial do masculino e do feminino: o
“eu” autêntico de cada ser humano é a alma, e esta,
sendo espiritual, não tem sexo. Numa primeira
aproximação, a unidade e simplicidade da alma
justificam que o processo de conquista do
conhecimento e da virtude se reconduza a uma
espécie de libertação24 relativamente às influências
negativas que são da ordem do sensível. Numa
segunda aproximação, o caráter tripartido da alma
humana, fixado em paralelismo com a estrutura
ampliada da tripartição das classes sociais da polis,
permite uma melhor compreensão dos mecanismos

30
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

de conflito, sugerindo a organicidade de um todo


regido por uma normatividade hierárquica,
segundo a qual o inferior tem de obedecer ao
superior25.
Quer ao nível da alma, quer ao nível da
estrutura da cidade ideal, o que sobressai é a
manifestação flagrante da desigualdade, é a
experiência das diferenças. E o que pode constituir
matéria problemática é a articulação das
desigualdades com uma certa forma de igualdade, a
compossibilidade das dessemelhanças e a afirmação
da identidade que define o ser humano como tal.
Noutros termos, o que se pretende fazer ver é que a
questão da igualdade/desigualdade não se põe
para Platão nos mesmos moldes que para nós.
Para entender melhor o que está em xeque,
podemos retomar as alegadas incongruências de
Platão. O modo como representa a mulher no livro V
da República não corresponde à caracterização das
mulheres suas contemporâneas feita noutras
passagens da mesma obra26; ademais, o que defende
para as guardiãs está vedado às mulheres-escravas e
às que pertencem à classe produtiva. A desigualdade
impera entre as mulheres, como a desigualdade rege
o que é próprio das diversas componentes da alma
humana e o que é próprio das classes que compõem a
cidade-estado. Cada elemento tem uma função
peculiar, a que corresponde um estatuto também
peculiar. Com efeito, o que se destaca numa das
formulações da justiça é isso mesmo: cada um fazer o
que deve, cada um receber o que lhe pertence27. Torna-
se patente, a partir daí, uma certa categoria de
igualdade que podemos designar isonomia e que é algo
familiar ao povo grego, no percurso conducente à
democracia. Mas a igualdade perante a lei ou a
igualdade assegurada pela lei não anulam outras
desigualdades, julgadas naturais por Platão, por
Aristóteles e por muitos outros sábios ilustres que
compartilhavam seu universo espiritual28. No plano
da physis, existem incontestáveis diferenças. Não
obstante, se se atende ao horizonte de referência de
Platão, o que mais conta não são as desigualdades
físicas, biológicas, pois a physis do anthrôpos em sentido
forte é a psyché que está para além dessas
particularidades: a perfeita realização da identidade
pessoal define-se no domínio da aretê. O que importa
salientar é a disparidade de funções das partes da
alma e das classes da polis e o princípio segundo o qual
cada elemento deve buscar sua virtude específica: as
desigualdades são inerentes à harmonia que comanda
o paradigma da cidade justa e, nessa medida, são

31
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

encaradas como condições necessárias à realização


das metas buscadas. Aí ressalta a vinculação
constitutiva entre a areté dos cidadãos e a estrutura
objetiva da polis, possibilitante de uma vida feliz29.
Tentaremos ver em que termos isso se aplica
ao que Platão nos diz acerca das mulheres, no texto
famoso que nos propomos reler.
Num primeiro momento, e fazendo uso da
metáfora dos cães de guarda, machos ou fêmeas que,
independentemente do sexo, exercem idênticas
funções de vigilância junto ao rebanho, Platão
defende que, na classe dos guardiões, as mulheres
desempenhem de forma igualitária tarefas políticas
de proteção e de chefia e que, com vistas à paridade
nos trabalhos cívicos, sejam sujeitas a uma educação
semelhante30.
Num segundo momento, preconiza-se que
seja abolida a família nuclear tradicional e que, para
incrementar a desejada unidade da classe dos
guardiões, institua-se a comunidade da
propriedade dos bens, bem como a posse comum das
mulheres e das crianças31.
Num terceiro momento, estipula-se, como
condição da viabilidade de concretização desse
projeto, a educação filosófica dos governantes32. Os
que se destinam ao exercício do poder político devem
ser iniciados numa technê muito elaborada, a ciência
política, denominada technê basilikê. Esta supõe o
conhecimento dos fins que se põem na esfera
individual e coletiva, o que na perspectiva de Platão só
se alcança com a aprendizagem da filosofia, com uma
morosa e difícil educação que, para além de um
prolongado currículo de estudos específicos, exige
uma conversão de vida e a reorientação radical do
olhar e do desejo. Importa salientar a premência de
selecionar os melhores, definindo rigorosamente a
clivagem entre os que são chamados a exercer o poder
político e os restantes, pois “a uns compete por
natureza dedicar-se à filosofia e governar a cidade, e
aos outros não cabe tal estudo, mas sim obedecer a
quem governa”33.
Obviamente, a instituição desse programa
mobiliza elementos heterogêneos que só fazem
sentido se apelarmos para o contexto da doutrina de
Platão. No plano do prisma deste estudo – o que
Platão pensou das mulheres –, resulta inequívoco que
ele admite que algumas mulheres, as mais dotadas,
equiparem-se aos homens no acesso ao saber e no
domínio da aretê, desde que lhes seja reconhecida uma
mesma natureza34. Mas uma iniciativa desse tipo não
deixa de suscitar dificuldades se confrontamos as

32
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

afirmações antes evocadas, e as aporias detectadas são


claramente debatidas no diálogo em curso:
“Concordamos que uma natureza distinta carece de
função distinta, e que a da mulher é diferente da do
homem. Porém, agora afirmamos que naturezas
diversas devem executar as mesmas tarefas”35. Como
conciliar as aparentes contradições e superar o
impasse? Impõe-se analisar o que se disse,
“distinguindo os diferentes aspectos” e assim
esclarecer em que sentido os indivíduos de sexo
oposto têm e não têm a mesma natureza36. Ora as
diferenças de fato, se bem que incontestadas, são
minimalizadas em relação a seu alcance efetivo. Tal
como os homens não são afetados na sua essência
específica pela circunstância de serem calvos ou
cabeludos37, também as diferenças físicas associadas
ao sexo não põem em causa a identidade de natureza
da espécie humana. Da unidade de natureza decorre,
pois, a referida equiparação de funções: “Não há, na
administração da cidade, nenhuma ocupação própria
da mulher enquanto mulher nem do homem
enquanto homem”38. O preço a pagar pelas mulheres
guardiãs parece-nos, contudo, bastante elevado: para
além das “reservas” antepostas de que, sendo capazes
de fazer o mesmo que os homens, nunca o farão tão
bem39, o modelo imperante, enquanto unissexo, é
espoliado daquelas características que na sequência
de toda uma tradição eram habitualmente associadas
ao “feminino”40. Além disso, o comunismo
preconizado para salvaguarda da unidade dos
guardiões representa a politização do privado,
tornando-se comum, num certo sentido, o que era
marcado pelo particular: koinon versus idion. Essa
invasão da privacidade pelo impacto do público
tinha, na ótica platônica, importantes razões
filosóficas a seu favor. Mas pode ser objeto, e foi, de
objeções profundas e sérias: significava, numa certa
acepção, a neutralização dos afetos, a aniquilação das
diferenças, a padronização excessiva dos elementos
intervenientes no jogo social41.

3.2. Em Aristóteles

Contrariamente a Platão, Aristóteles parte de


uma concepção do ser humano como unidade
substancial, não considerando a alma em separado do
corpo42, e destaca as diferenças entre homens e
mulheres. “Macho” e “fêmea” surgem como contrários,
na sequência da tradição arcaica que organizava a

33
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

realidade em pares de opostos43: no plano metafísico,


o “masculino” e o “feminino” opõem-se como
contrários dentro de uma mesma espécie, daí
decorrendo que um se constitua como privação do
outro e, nessa ordem de razões, o feminino se
apresente como a privação do masculino44. Uma
descrição desse tipo serve de base à dicotomização dos
sexos – por um lado, radicalizando as dessemelhanças
e, por outro, sublinhando a tônica da inferioridade
associada à noção de “privação”45. Segundo Aristóteles,
o macho e a fêmea diferem em três aspectos biológicos
muito significativos: em primeiro lugar, o princípio
(archê) de um animal determina o respectivo sexo,
pelo que o gênero é determinado antes do
aparecimento das partes sexuais46; em segundo lugar,
a posse de orgãos sexuais masculinos ou femininos
constitui de modo efetivo os dois gêneros47; em
terceiro lugar, o macho e a fêmea distinguem-se nas
suas funções reprodutivas: enquanto o macho procria
noutro, a fêmea gera em si mesma48.
As características atribuídas, no âmbito
metafísico, ao masculino e ao feminino refletiam-se
nos aspectos biológicos, com especial incidência no
modo de explicar a desigual contribuição do macho
e da fêmea na geração49. O papel do primeiro era
determinante na transmissão da forma, sendo o da
segunda confinado à da matéria, conotando-se a forma
com “atividade” e com tudo o que constitui o superior, e
a matéria com “passividade” e com o que representa os
elementos menos elevados50. O masculino aparecia,
assim, ligado à alma, mais precisamente à alma
sensitiva, enquanto o feminino se associava ao corpo e à
alma nutritiva ou vegetativa. É de notar que essa
dimensão corpórea se situava na primordial ligação do
feminino ao elemento “terra”, em oposição ao elemento
“fogo”51. As diferenças estabelecidas nessa ordem
justificavam as subsequentes posições assumidas quanto
ao estatuto das mulheres: Aristóteles atribui-lhes uma
inferioridade que se manifesta na desigualdade das
capacidades cognitivas e no domínio da ação. As
mulheres não ultrapassam o plano das opiniões e
mostram menor aptidão no domínio da sabedoria
prática. Na realidade, embora sejam capazes de
deliberar, não têm autoridade nas decisões que
assumem52, dada a facilidade com que se deixam guiar,
e dominar, pelas emoções e pelos sentimentos. Mas o seu
papel social define contornos positivos noutros campos
– no da vida doméstica, em que se afirmam as suas
qualidades na gestão da economia da casa e no âmbito
privado das relações familiares. Que a mulher deva
obedecer ao homem e não tenha acesso à cidadania

34
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

plena nem à maturidade no plano da moralidade


justificar-se-ia talvez à luz dessas limitações que fazem
dos elementos do sexo feminino formas imperfeitas de
humanidade53.
Mas poder-se-á sustentar que o ideal de
racionalidade que se depreende da leitura de
Aristóteles exclui os elementos afetivos e emocionais?
A unidade que Aristóteles julga necessário introduzir
na vida política trará consigo a anulação das
diferenças a partir da generalização de um padrão
dito masculino? Dada a identidade essencial que
abrange ambos os sexos, para além das referidas
diferenças que os particularizam, importa ver com
maior detalhe a ideia que Aristóteles faz do gênero
humano54 e os traços que lhe são genericamente
imputados, para aí situar sua representação das
mulheres. O homem nos é apresentado como um
animal com um estatuto singular entre os demais: ele
“deseja por natureza saber”55 e, para além da vocação
sapiencial que o define especificamente, é-nos
descrito56, cumulativamente, como animal politikon e
como animal logikon. Assim, o homem é, por
natureza, um animal gregário que só consegue a
almejada autarcia vivendo em comunidade, mais
precisamente integrado na polis57. Por outro lado, a
referida polis é também caracterizada como uma
realidade social que existe por natureza, constituída
por uma pluralidade de elementos que a integram e se
agrupam em diversos estratos. Dessa maneira, a polis
define-se por uma unidade compósita e pela íntima
interdependência do todo e das partes. Mas o homem
é também, no plano mais radical de sua condição, um
animal politikon, o que significa que é dotado de logos,
ou seja, de uma discursividade que se traduz na
linguagem por meio da qual, diferentemente dos
restantes seres vivos, ele se torna capaz de distinguir
“o benéfico e o prejudicial, assim como o justo e o
injusto”58.
Estabelece-se, assim, uma relação muito
próxima entre a definição do homem e a definição
da política, entre a ordem especulativa da razão e a
ordem prudencial da justiça e da vida humana bem
vivida. Com efeito, a política é encarada por
Aristóteles como a ciência das coisas humanas,
como saber prático relativo ao telos, que é o bem do

35
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

homem59, sendo justamente designada como “a


filosofia das coisas humanas”60. No entanto, dada a
forma como Aristóteles se depara com essas
realidades, os matizes de que se revestem os “muitos”
sujeitos humanos que compõem as várias
populações, as variáveis intervenientes nas
diferentes comunidades e a contingência que lhes é
inerente, a política não tem para Aristóteles o
mesmo estatuto que lhe atribui Platão: trata-se de
uma ciência prática, irredutível a procedimentos
discursivos que relevem do dedutivo e do
apodítico61.

4.Balanço sumário das contribuições das reflexões


platônica e aristotélica para os estudos feministas
atuais

Platão e Aristóteles, embora divergindo na


maneira como representam as diferenças entre os
homens e as mulheres, convergem em alguns
princípios básicos que constituem como que o esteio
fundante do universo espiritual helênico.
O ser humano é caracterizado como uma
realidade complexa e dividida, com uma natureza
híbrida, na tensão que o situa entre a terra e o céu,
entre os demais seres vivos mortais e os deuses. Na
bela imagem do Timeu62, “o deus deu a cada um de nós
como presente um gênio divino” que habita a parte
mais elevada de nossa alma, e “podemos afirmar com
verdade que essa alma nos eleva acima da terra,
devido à sua afinidade com o céu, pois somos não
uma planta terrestre, mas sim celestial”. Nessa dupla
condição, a realidade do anthrôpos é constantemente
confrontada com o modelo animal, por um lado, e
com o modelo divino, por outro.
Como foi repetidamente acentuado, o homem
só se pode desenvolver plenamente no seio de uma
comunidade, na inter-relação com os outros homens e
mulheres: a interdependência do indivíduo e da polis
constitui o âmago de toda a reflexão antropológica e
política. Nessa ordem de ideias, o telos ou o fim da polis
é o telos do homem – a felicidade, o viver bem. Mas a
conquista dessas metas tem como condição a
realização de uma determinada forma de unidade que
se configura como o fundamento da aretê, da
excelência suscetível de ser alcançada no plano
individual e no plano coletivo, e que assume o rosto
da justiça. Em outras palavras, o fim almejado na
constituição da cidade ideal será sempre a unidade

36
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

concebida como um modelo harmonioso de


equilíbrio.
Se é certo que a felicidade consiste “no
exercício e no uso perfeito da virtude”63, é corrente
admitir que os homens conseguem ser bons e
dignos graças a três fatores determinantes, “e estes
são a natureza, o hábito e a razão”64. Ora, enquanto os
outros animais vivem guiados pelos impulsos
inscritos na sua índole específica, e alguns também
pelos hábitos, no caso do homem a razão reveste-se
de hipertrofiada importância, e, na dialética do
patrimônio inato e das competências adquiridas, a
educação assume um papel central.
Postas essas premissas de caráter genérico e
assaz consensual, procuraremos salientar algumas
diferenças significativas nas posturas dos dois
grandes pensadores clássicos, com reflexos
importantes no que toca às suas opiniões
respeitantes às mulheres e à temática que nos
interessa.
Para Platão, a admissão da igualdade cívica
das mulheres na classe das guardiãs pretendia
instituir, entre os “melhores”, a disciplina perfeita
suscetível de anular os eventuais obstáculos
derivados das divergências de opiniões e de
sentimentos65. O imperativo da unidade era
encarado como algo de primordial e justifica o
duplo papel da educação e da persuasão na utopia
platônica. Dada a clivagem introduzida entre
governantes e governados, a educação, em seu sentido
pleno, só interessava aos primeiros. A estes cabiam a
inteira adesão ao interesse comum, a correta orientação
do desejo no sentido da justiça; aos outros cumpria
obedecer, e os papéis não eram reversíveis. A unidade
preconizada impunha-se como requisito inadiável, na
medida em que surgia como o fundamento por
excelência da estabilidade da polis. Daí a apologia da
“nobre mentira”, nos vários contextos em que o recurso
a ela se apresentava como vital: em primeiro lugar, no
mito da gênese das diferentes classes sociais, nascidas de
uma mesma Mãe Terra, marcadas desde o nascimento
por uma “mistura” de elementos que determina seu
destino particular e simultaneamente chamadas a
respeitar a fraternidade dos laços que as prendem entre
si e as vinculam a salvaguardar seu estatuto unitário; em
segundo lugar, como instrumento ao dispor dos
governantes, a fim de persuadir os demais no sentido
das opções julgadas convenientes para o bem da
cidade66. Para Aristóteles, as mulheres revelam-se
inferiores em diversos registros, que vão desde o da
ordem física e fisiológica da reprodução ao do exercício

37
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

acabado das funções intelectuais e das ações éticas. A


princípio, ficam relegadas à intimidade da casa, sem
poder de intervenção no governo da cidade, e não se lhes
atribui capacidade para uma educação filosófica
equiparada à dos homens.
Mas se, por um lado, Aristóteles extrai das
múltiplas inferioridades supramencionadas,
justificações de facto relativamente ao estatuto das
mulheres e ao tratamento que lhes é concedido, por
outro lado valoriza positivamente as reconhecidas
diferenças como condições sine qua non da viabilização
da justiça e da genuína comunidade humana.
Acautela, de certa maneira, o que Platão sacrifica no
caso exemplar das mulheres guardiãs promovidas a
filósofas e a hipotéticas governantes. A especificidade
da mulher decorre dos elos que a prendem à oikia, à
esfera do privado. Na dialética de interesses que
comanda o confronto das duas esferas67, o universo da
vida doméstica constitui como que um baluarte do
direito à diferença, da proliferação dos cuidados
norteados por afetos radicados em circunstâncias
muito concretas. Sob o ponto de vista da estrutura
compósita preconizada para a polis, Aristóteles
defende que a estereotipada identidade assente no
desaparecimento das diferenças é algo de destrutivo:
a autêntica comunidade é uma comunidade de
sentimentos e a diversidade, mais do que a semelhança,
dá lugar à pretendida unidade. Numa determinada
perspectiva, a concepção aristotélica salvaguarda o que
Platão aniquila – a possibilidade de uma padronização
do humano que não faça tábua rasa do “feminino” em
função de critérios redutores de sobrevalorização do
“masculino”68.

Resumo

O que os filósofos pensaram das mulheres:


Platão e Aristóteles
Platão e Aristóteles nos são apresentados
como paladinos de posições paradigmáticas no que
respeita à natureza e estatuto das mulheres: Platão
seria um feminista avant la lettre, ao atribuir às
mulheres uma identidade de natureza em relação
aos homens e ao reivindicar para as guardiãs
igualdade de participação nas tarefas cívicas e no
acesso à educação; Aristóteles representaria o
antifeminismo, argumentando, a partir das
diferenças biológicas das mulheres e de sua desigual

38
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

contribuição para a geração dos filhos, seu estatuto


de inferioridade, tanto no plano cognitivo como no
plano ético-político.
Mas se, por um lado, Aristóteles extrai das
inferioridades apontadas justificações para o estatuto
das mulheres e o tratamento que lhes é concedido, por
outro, valoriza as diferenças como condição sine qua
non da genuína comunidade humana. Acautela, de
certa maneira, o que Platão menospreza no caso
exemplar das mulheres guardiãs promovidas a
filósofas e a eventuais governantes. A especificidade
da mulher decorre dos elos que a prendem à oikia e à
esfera do privado. Sob o ponto de vista da estrutura
compósita preconizada para a polis, Aristóteles
defende que a estereotipada identidade assente no
desaparecimento das diferenças é algo destrutivo, pois
a verdadeira comunidade é uma comunidade de
sentimentos e a diversidade é o suporte da pretendida
unidade. Num certo sentido, a concepção aristotélica
salvaguarda o que Platão aniquila: a possibilidade de
uma padronização do humano que não faça tábua rasa
do “feminino” em função de criterios redutores de
sobrevalorização do “masculino”.

Notas

Ver a introdução de Julie K. Ward à colectânea de que é


editora, Feminism and Ancient Philosophy , New York and
London, Routledge, 1996, XIII-XV . Salientando a expansão, no
âmbito acadêmico anglo-americano, dos estudos feministas
no campo da filosofia antiga, refere que, contrariamente ao
que muitas vezes sucedia antes, “uma nova classe de
intérpretes emergiu que inclui mulheres preparadas em
filosofia antiga que são também feministas”; o que se irá
refletir na forma cuidadosa como são analisados os textos
primários, com a preocupação de os explicar “em relação com
o resto da obra pertencente a um pensador ou a uma corrente
filosófica” (ibid ., p. XIV ). É de assinalar que os temas
feministas foram a princípio mais focados em obras literárias
da Grécia Antiga e de Roma do que propriamente em textos
filosóficos.
Como refere Natalie Harris Bluestone, em Women and the
Ideal Society, Plato's Republic and Modern Myths of Gender,
Oxford, Berg, 1987, p. 7. A autora centra sua análise no livro V
da República de Platão e realiza um estudo exaustivo da
recepção relativa às controversas posições platônicas sobre
as mulheres. Os admiradores e os detratores de Platão
fazem reviver os famosos argumentos, digladiando-se
quanto ao seu sentido efetivo, e a “visita guiada” que nos
introduz nos meandros dessa hermenêutica ilustra bem a
contínua releitura das fontes a partir dos condicionalismos
do presente. Depois de um longo capítulo dedicado a “The
Prevalence of Anti-Female Bias in Plato Scholarship”,
assinala “The Resurgence of Interest in Philosopher-
Queens”, para concluir enfatizando a atualidade das
questões postas por Platão.

39
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Paul Ricoeur, numa sugestiva conferência proferida em


Lisboa em 1994 (cf. “La crise de la conscience historique et
l'Europe” in João Lopes Alves ed., fítica e o futuro da
democracia, Lisboa, Colibri, 1998, pp. 29-35), destacava o
importante princípio hermenêutico que nos foi ensinado
pelos historiadores de métier: “é preciso, antes de maisnada,
aceitar a ideia de que é sempre possível contar
diferentemente os mesmos acontecimentos” (ibid., p. 32).
Publicado pela primeira vez em Times Literary Supplement,
nº4, 485, March 17, 1989, pp. 276, 288-89; incluído em Daniel
W. Graham ed., Gregory Vlastos, Vol. III, Socrates, Plato, and
Their Tradition , Princeton/N. Jersey, Princeton Univ. Press,
1995, pp.133-43. Representativo do afinco em rotular Platão
com epítetos de ressonâncias hodiernas, ver Dorothea
Wender, “Plato: Misogynist, Paedophile and Feminist”, in
John Peradotto e J. P. Sullivan eds., Women in the Ancient
World: The Arethusa Papers, Albany, State University of New
York Press, 1984, pp. 213-228.
Referido no mencionado ensaio de G. Vlastos, p. 133: “A
igualdade de direitos prevista por lei não pode ser negada ou
reduzida, pelos EUA ou por qualquer Estado, por motivo de
sexo.”
Cf. Julie K. Ward, Feminism and Ancient Philosophy, op. cit., p.
XIV .
Na literatura feminista a partir de meados da década de
1970, passou a ser uma constante a distinção entre “sexo” e
“gênero”: o primeiro diz respeito a uma entidade biológica
(a do masculino ou do feminino), enquanto o segundo
corresponde a um constructo psico-social (incluindo as
características ditas “femininas” ou “masculinas”). Ver, nesse
sentido, o prefácio de Prudence Allen à 2ª edição de The
Concept of Woman – The Aristotelian Revolution, 750 B.C.-A.D.
1250, Michigan/ Cambridge, William B. Eeerdmans
Publishing Company, 1997 (1ª ed. 1985), p. XX. Cf. Alison M.
Jaggar and Susan R. Bordo eds., Gender/ Body/Knowledge,
Feminist Reconstructions of Being and Knowing , New
Brunswick/New Jersey, Rutgers Univ. Press, 1992.
Cf. Julie Ward, Feminism and Ancient Philosophy, op. cit., pp.
XIV-XV: “Uma seg u nda apro x imaçã o caract eríst ica de
alg u n s escrit o s n est e volume [reporta-se à coletânea de
que é editora], não é apenas descritiva, mas avaliativa.
Esses estudos tentam indicar modos segundo os quais
alguns aspectos das concepções antigas podem ser de
interesse para as feministas contemporâneas: se bem que
comecem com uma análise histórica dos textos
pertencentes a um autor ou a uma escola específicos,
sugerem também modos segundo os quais as concepções
apresentadas são proveitosas para a teorização feminista.
Essa segunda aproximação é especialmente evidente nos
ensaios que se ocupam com assuntos que têm emergido
dos trabalhos feministas anglo-americanos em Ética e
Psicologia Moral, tais como a relação da razão com as
emoções, a origem e natureza do pensamento moral e a
construção do desejo”.
Cf. Prudence Allen, The Concept of Woman. The Aristotelian
Revolution, 750 B.C-A.D. 1250, op. cit., p. 2. A autora elenca
as principais interrogações em torno das quais se centrou o
interesse dos antecessores de Aristóteles no concernente às
mulheres: 1. De que maneira são opostos o homem e a
mulher? 2. Quais as respectivas funções da mãe e do pai na
geração? 3. A mulher e o homem relacionam-se com a
sabedoria da mesma maneira? 4. As mulheres e os homens
têm as mesmas virtudes ou diferentes?”

40
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Ibid ., pp. 75-77.


Cf. Aristóteles, Política ,I 1260 b 16.
Nancy Tuana é uma representante ilustre dessas
preocupações, a que dá voz de forma eloquente e vigorosa em
Woman and the History of Philosophy, New York, Parangon
House, 1992. Ver, de muito especial, a obra de Geneviève
Lloyd, The Man of Reason , Male and Female in Western
Philosophy, London, Routledge, 1993 (1ª ed. 1984). Cf. Natalie
Harris Bluestone, Women and the Ideal Society, Plato's Republic
and Moderns Myths of Gender, op. cit., supra nota 2.
Cf. Nancy Tuana, no prefácio mencionado, op. cit. , p. IX : “Se o
“homem de razão” tem de aprender a controlar ou a
ultrapassar traços identificados como “femininos” – o corpo, as
emoções, as paixões –, então o domínio da racionalidade será
reservado prioritariamente aos homens, com entrada
contrafeita para aquelas poucas mulheres que sejam capazes
de transcender à sua feminilidade”.
Ibid., p. X.
Idem , pp. X-XI: “O processo de transformaçãodo 'cânone'
exigiria a recuperação dos textos 'perdidos' e um exame
cuidadoso das razões pelas quais tais vozes teriam sido
silenciadas. Junto com o processo de redescoberta da
história filosófica feminina, temos também de começar a
analisar o impacto das ideologias relativas ao gênero
sobre o processo de 'canonização'. Importa realçar a
premência de 'uma releitura' que canalize nossa atenção
para os modos como a mulher e o papel do feminino são
'construídos' nos textos de filosofia. Ou seja, se a ideia do
feminino que temos resulta de uma construção filosófica,
chegarmos a uma renovada captação do que é a mulher e
de qual é o seu papel passa por uma necessária
'desconstrução'”.
Nancy Tuana, em Woman and the History of Philosophy , op.
cit., pp. 31-32, indica como principais fontes primárias os
seguintes textos: Platão: República, em especial o livro V,
450-470; Timeu , 41 d-52 e, 69 b70 e, 76 d-e, 90 a-91 d; Leis, VI,
780 d-781 d, 785 b; VII, 805 d-807 c; XII, 944 d-945 b;
Banquete, em especial 201 c-212 c. Aristóteles: Geração dos
animais, 716 a 1-716 b 15, 723 a 20-732 a 10, 736 a 25-739 b 35,
763 b 20-767 a 30; Política, 1252 a 25-1252 b 15, 1253 b 1-25,
1259 a 35-1264 b 25; História dos animais, 608 a 30-608 b 20;
Econômica, 1343 a 15-20; Poética, 1454 a 15-25.
Cf. Nancy Tuana, Woman and the History of Philosophy , op. cit. ,
pp. 13-14. A comparação das concepções de Platão e de
Aristóteles é reveladora de dois procedimentos antagônicos
“para defender a premissa da inferioridade da mulher”, ibid .,
p. 12. Não obstante as divergências patentes, concordam num
princípio fundamental: “o masculino é a forma verdadeira de
humanidade”, ibid ., p. 13.
Ibid ., p.12: de acordo com essa ordem de razões, as
diferenças corpóreas, incluindo o sexo, são irrelevantes
para Platão.
Gregory Vlastos, “Was Plato a Feminist?”, op. cit. , nota 4.
Que se trata de uma cidade ideal, enquanto projeto
edificada em logoi, isso é claramente afirmado em diversas
passagens da República: cf. 369 c, 379 a, 472 c-e, 473 a, 592 a-
b. Sobreleva-se que um tal modelo é construído
poieticamente como um artefato, mediante logoi, vocábulo
polissêmico que nesse contexto se poderá traduzir por
palavras/discursos/argumentos. O objetivo primordial
desse diálogo platônico permanece objeto de controvérsia,
vendo uns nele a apologia de um modelo de paideia e

41
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

salientando outros a indissociável relação entre um


determinado modelo prático ético-político e a
argumentação em prol de uma ideia de filosofia. Ver,
dentre os muitos estudiosos de Platão, Eric Havelock,
Preface to Plato, Cambridge/Massachusetts/London, The
Belknap Press of Harvard Univ. Press, 1983 (1ª ed. 1963) e
Stanley Rosen, The Quarrel Between Philosophy and Poetry , Studies
in Ancient Philosophy, New York/London, Routledge, 1988. E
também Holgen Thesleff. “Plato and In equalit y ” in Iiro
K ajan t o ed., Equality and Inequality of Man in Ancient Thought,
Helsinki, Societas Scientiarum Fennica, 1984, pp.17-29: “É
extremamente importante entender que a teoria de Platão
acerca do homem e da sociedade não pode ser
devidamente captada sem ter em consideração sua
estrutura filosófica genérica. (...) Poder-se-ia defender que
as intenções de Platão quando escrevia a atual versão da
República eram especulativas, e não propriamente
políticas” (ibid., p. 18). Aceitando que o Estado utópico de
Platão seja verdadeiramente “uma construção filosófica” de
índole teorética, delineada com uma certa dose de “espírito
lúdico”, então torna-se mais compreensível “o radicalismo
das soluções preconizadas” (ibid., p. 19).
Cf. Timeu ,41 d-42 d. Não só a mulherteria surgidodepois
do homem, como correspondia a uma forma inferior de
humanidade. Se bem que todos os seres masculinos
tivesssem sido feitos igualmente perfeitos, podiam
escolher seu modo de vida e aqueles que não dominassem
suas paixões e impressões sensíveis seriam condenados a
voltar a nascer sob a condição degenerada do sexo
feminino.
Cf. Holger Thesleff, op. cit. , pp. 17-29, p.18: “Proporia que a
tese do Estado Ideal seja exatamente o que pretende ser: uma
teoria da justiça ideal na sociedade humana, e uma teoria que
surgiu da indignação moral frente a todas as espécies de
egoísmo e de brutalidade, a partir da insatisfação com todas
as espécies de governos existentes e a partir da busca de uma
estrutura filosófica para a autência ética social, isto é, um
máximo de justiça e de felicidade para todos”. Nessa
perspectiva, a utopia em questão implicaria “o equilíbrio
entre desiguais, para a felicidade máxima de todos os
cidadãos” (ibid ., p. 21). Sobre a relação estreita entre “justiça”
e “felicidade”, cf. República, IV 420 c; V 466 a, 472 c-d. Acerca
dessa temática, ver o estudo de G. Vlastos, “Justice and
Happiness in the Republic”, in Platonic Studies (Second Edition),
Princeton Univ. Press, 1981, pp. 111-139.
Cf. G. Vlastos, “Was Plato a feminist?”, op. cit. , p. 136: “O mais
inovador é o seguinte: a rejeição fundamental do velho
dogma, nunca antes questionado em prosa ou em verso, de
que as diferenças de sexo determinam as diferenças na
distribuição do trabalho”. A mesma tônica é acentuada por
Natalie H. Bluestone, op. cit., p. 3: “Considerando que
algumas mulheres possuíam a necessária capacidade para
raciocinar e filosofar, introduziu a proposta surpreendente
de que idênticos cargos de chefia exigiam uma educação
idêntica para os membros mais capazes dos dois sexos”.
Essa “libertação” surge como uma forma de “purificação”,
encaminhando o olhar da alma para a verdadeira realidade
que é a do inteligível: cf. o Fédon , diálogo platônico exemplar
dessa vertente, em especial 64 a-67 d. Na alma tripartida, a
elevação da alma no sentido da perfeição traduz-se na
integração das suas partes na unidade do todo, submetida à
ideia de bem e na prossecução do seu fim genuíno (República,
IV 436 e -444 e; cf., noutro contexto, Fedro, 246 a-b., 252c254 e).

42
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

O interesse prevalecente é sempre o da realização da aretê – da


excelência da alma individual –, tal como, no âmbito da polis,
a consideração da excelência e do bem-estar da totalidade
domina a das classes. Nessa ordem de ideias, “libertação” não
significa qualquer tipo de “emancipação”, na acepção
moderna do termo. Segundo assinala Nancy Tuana (Woman
and the History of Philosophy, op. cit., p. 21), “é importante
reconhecer que, ao longo da República, a preocupação de
Platão não está orientada para os direitos ou necessidades dos
indivíduos, mas visa apenas ao bem do Estado”.
Na tripartição da alma, transparece a associação do
plano afetivo e apetitivo com o feminino e do elemento
racional com o masculino, com o apelo à correta
ordenação que impõe que o inferior seja comandado pelo
superior. Cf., no Timeu , a descrição da criação da alma
mortal e sua localização no corpo humano, recorrendo
à metáfora dos gêneros, masculino e feminino: 69 c-70 a.
Cf. República , IV 431 b-c, 469 d, 563 b, 557 c, 605 d-e. São-lhes
imputados traços e atitudes tidos como “negativos”:
ausência de autodomínio, permeabilidade aos apetites e
emoções, inconstância, sentimentos menos elevados
como a ganância e a covardia, excessos passionais, etc.
Cf. ibid ., IV 433 a-b: “Cada um deve ocupar-sede uma função
na cidade, aquela para a qual sua natureza é a mais adequada.
– Dissemos isso, efetivamente. – Além disso, que executar a
tarefa própria e não se meter na dos outros era justiça”. Pelo
que “esse princípio pode muito bem ser a justiça: o
desempenhar cada um a sua tarefa”. Ver ainda 441 d, 443 b-e.
Cf. Wolfgang Kullmann, “Equality in Aristotle Political
Thought”, in Iiro Kajanto ed., Equality and Inequality of Man in
Ancient Thought, op. cit., p. 32: “Aristóteles não considerava
que todos os indivíduos são iguais por natureza, nem a
maioria dos seus contemporâneos (tais como Platão e
Isócrates)” admitia essa igualdade.
Cf. República V,472 c-d: “Foi para termosum paradigmaque
indagamos o que era a justiça e o que era um homem
perfeitamente justo se existisse e, uma vez que existisse,
qual seria o seu caráter e, inversamente, o que era a injustiça
e o homem absolutamente injusto, a fim de que olhando
para eles se nos tornasse claro que felicidade ou que
infelicidade lhes cabia”.
Cf. República V,451 c457 c.
31 Ibid .,457c471 e.
Ibid ., pp. 472 a e ss., em particular:“Enquantonão forem os
filósofos reis nas cidades, ou os que agora se chamam reis
e soberanos filósofos genuínos e capazes, e se dê esta
coalescência do poder político com a filosofia, (...) não
haverá tréguas dos males (...) para as cidades, nem sequer,
julgo eu, para o gênero humano, nem antes disso será
jamais possível e verá a luz do sol a cidade que há pouco
descrevemos”.
Ib id ., 474 b-c.
Susan B. Levin, “Women's Nature and Role in the Ideal Polis:
Republic V Revisited”, in Julie K. Ward ed., Feminism and Ancient
Philosophy, op. cit., pp. 13-30, interessa-se de modo particular
pelo posicionamento de Platão no que toca à capacidade das
mulheres ascenderem à aprendizagem da filosofia, como
technê que se situa no topo da hierarquia dos saberes. Platão,
ao criticar as mulheres, invoca em justificação dos defeitos
apontados argumentos relativos a “hábitos”, e nunca à
“natureza” própria do gênero feminino, suscetível de inibir a
princípio uma boa conduta. Sobressai, assim, o contraste entre

43
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

as condições vigentes, eventualmente pouco propícias, e o


contexto renovado de uma cidade ideal, a que se reporta a
proposta avançada no livro V da República. Admitindo que no
plano da physis nada obsta à educação das mulheres para a
filosofia, e consequentemente para o acesso ao poder político,
resta a discrepância, nunca negada, que no plano individual
separa os bem dotados dos menos apetrechados. Cf., sobre as
“naturezas filosóficas”, a obra de Monique Dixsaut, Le Naturel
Philosophe, Essai sur les Dialogues de Platon . Paris, Les Belles
Lettres/Vrin, 1985.
Ibid., 453e.
Cf. ibid ., 454 a-b. Por conseguinte, “se se evidenciarque ou
o sexo masculino ou o sexo feminino é superior um ao
outro no exercício de uma arte ou de qualquer outra
ocupação, diremos que se deve confiar essa função a um
deles. Mas se se viu que a diferença consistia apenas no
fato de a mulher dar à luz e o homem procriar (...),
continuaremos a pensar que os nossos guardiões e as
suas mulheres devem desempenhar as mesmas funções”
(ibid ., 454 d-e).
Ib id ., 454 b-d.
Ibid, 455d.
Ibid ., 455 b-456 a. Indicam-se como dotes reveladores dos
“melhores” a facilidade na aprendizagem, a capacidade de
inovar e de aplicar bem o aprendido, submeter “o físico” ao
serviço da inteligência, etc. Ora, “a mulher participa de todas
as atividades, de acordo com a sua natureza, e o homem
também, conquanto em todas elas a mulher seja mais débil do
que o homem” (ibid ., 456 d-e).
Abrangia um leque de conotações positivas diretamente
ligadas ao papel das mulheres na vida doméstica, como sua
intervenção na criação dos filhos e na gestão da economia
familiar, e às suas capacidades na ordem afetiva e nas relações
concretas da vida quotidiana. Sobre essa matéria, ler o ensaio
de Arlene Saxonhouse, “ The Philosopher and the Female in
the Political Thought of Plato”, in Richard Kraut ed. Plato's
Republic, Critical Essays, Lanham/N. York/Oxford, Rowman
& Littlefield Publishers, 1997, pp. 95-113; e também, da mesma
autora, Women in the History of Political Thought – Ancient Greece
to Machiavelli, Westport/ Connecticut/London, Praeger, 1985,
em especial o Cap. 3, “Pla to: Philosophy, Females and
Political Life”, pp. 37-62. O estatuto da mulher, à luz do
confronto do público e do privado, é objeto de amplo estudo
na obra de Judith A. Swanson, The Public and the Private in
Aristotle's Political Philosophy, Ithaca and London, Cornell
Univ. Press, 1992, com particular destaque para o Cap. 1, “The
Household: a Private Source of Public Morality” (pp. 9-30) e
o Cap. 3, “Women, the Public and the Private” (pp. 44-68).
Ver, sobre essa matéria, o pertinentee esclarecedorestudo
de Monique Canto-Sperber, “L'unité de l'état et les
conditions du bonheur public (Platon, République, V;
Aristote, Politique, II)” in Pierre Aubenque dir., Alonso
Tordesillas ed., Aristote politique, fítudes sur la Politique
d'Aristote, Paris, PUF, 1993, pp. 49-71. E também Julia Annas,
An Introduction to Plato's Republic, Oxford, Clarendon Press,
1982, em especial o Cap. 7, “Plato's State”, em que faz uma
pertinente análise do papel atribuído às mulheres-
guardiãs, pp.170-189.
Cf. De anima , II 1 412 a 20. A alma é a forma do corpo e
todos os indivíduos são unidades indecomponíveis,
constituídas por matéria e forma.
Ver a tábua de opostos atribuída aos pitagóricos, DK 58 B 5

44
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

(Aristóteles, Metafísica A 5, 986 a 22). Os opostos agrupam-se


em duas colunas, sendo de notar que o “masculino” se coloca
do lado da “unidade”, do “limite”, do “ímpar”, da “luz”, do
“repouso”, do “bem”, enquanto o “feminino” se posiciona
respectivamente com a “pluralidade”, com o “indeterminado”,
com o “par”, com as “trevas”, com o “movimento” e com o “mal”,
sendo inegável a valorização díspar dos elementos de uma e
da outra.
Cf. Aristóteles, De generationeanimalium (GA) , 766 a 21.
Cf. Aristóteles, Metafísica , I 9 158 a 30. As diferenças de sexo
são materiais, e não essenciais. Sobre essa matéria, ver:
Marguerite Deslauriers, “Sex and Essence in Aristotle's
Metaphysics and Biology”, in Cynthia A. Freeland ed.,
Feminist Interpretations of Aristotle, Pennsylvania, The
Pennsylvania State Univ. Press, 1998, pp.138-167. Segundo a
autora, Aristóteles tinha uma crença argumentada (a reasoned
belief) nas semelhanças entre os sexos no que respeita à
essência, junto com uma cren ça não refletida (unreflective
belief) na deficiência da fêmea em relação ao macho, em vários
aspectos (cf. ibid ., p. 159).
Cf. GA 766 a 31-b4.
Ib id ., 766 b 5-6.
Ibid ., 716 a 14-15. Cf. Judith A. Swanson, The Public and the
Private in Aristotle’s Political Philosophy, op. cit., p.46. Desta
forma, as partes sexuais e as funções reprodutivas seriam
manifestação da masculinidade ou da feminilidade, e não
causa destas.
Prudence Allen ressalta a íntima relação entre a doutrina
metafísica da oposição do “masculino” e do “feminino” e as
teorias relativas às características biológicas e psicológicas de
um e outro sexo: cf. na obra antes citada, The Concept of Woman
– The Aristotelian Revolution, 750 B.C.-A.D. 1250, pp. 83-126. O
papel atribuído ao “quente” e ao “frio” é determinante na
reprodução: “os dois opostos primários do calor e do frio
constituíam as bases metafísicas aplicadas à teoria da geração,
relacionando-se o masculino com o quente e o feminino com
o frio” (cf. GA 765 b 10-18). Desse modo, “a polaridade dos
sexos na teoria da geração de Aristóteles é perfeitamente
consistente com sua teoria da polaridade dos opostos
masculino e feminino, previamente mencionada. A fêmea era
inferior ao macho, como a mãe era inferior ao pai (ibid ., p. 95)”.
A separação das funções dos sexos na geração reflectia o pano
de fundo da hostilidade dos opostos: “Aristóteles descrevia o
procedimento mediante o qual o sexo da criança era
determinado como uma espécie de batalha entre os pais. A
semente masculina tentava dominar a material, que resistia a
esse processo até um certo grau. Se o pai saísse vitorioso, a
criança era um macho semelhante ao pai. O grau de
resistência da mãe reflectia-se no sexo do feto, assim como nas
semelhanças da criança” (ibid .).
“A diferençamais proeminenteentre os aparatos masculinoe
feminino é a de que durante a procriação o macho fornece a
forma, o princípio do movimento, ou a alma, enquanto a
fêmea fornece a matéria, o material, ou o corpo (GA 729 a 10-
12, b 14-21, 735 a 9, 737 a 28-30, 738 b 20-27, 740 b 25, 765 b 9-
15); parece, pois, que o macho providencia o ser do filho,
enquanto a fêmea meramente providencia o alimento para
este”: cf. Judith A. Swanson, op. cit., p. 57.
Ver Lawrence J. Hatab, Myth and Philosophy , A Contest of
Truths, Illinois, Open Court, 1992. No pensamento grego
primitivo, o mundo demarcava-se em dois domínios
divinos: o dos titãs, deuses da terra, ditos deuses ctónicos,

45
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

“inclinados à violência, à brutalidade e à paixão excessiva”;


o dos olímpicos, governados por Zeus, deuses radiosos do
céu, patenteando “beleza, inteligência e moderação”. A essa
divisão corresponde a oposição dos arquétipos do
“masculino” e do “feminino”, em que o primeiro representa
“brilho, inteligência e ordem” e o segundo, “escuridão,
instinto e excesso”, pelo que podemos “chamar os deuses
olímpicos deuses masculinos e os deuses subterrâneos,
deuses femininos” (ibid ., op. cit., p. 56). Sobre a associação entre
o “feminino” e o elemento terra, cf. GA 716 a 9-17.
Cf. Política I, 1260 a 12-14,20-24; 1277 b 20 e ss.
Na eloquente formulação do GA 737 a 27-28, a fêmea é
descrita como “um macho mutilado”, sendo os embriões
femininos formas degeneradas, resultantes de desvios,
carências, incapacidades: cf. ibid , 766 a e ss. Cf. Nancy Tuana,
na obra já citada Woman and the History of Philosophy , o Cap. 2,
intitulado “The Second Sex”, pp. 13-33.
Cf. o ensaio de Wofgang Kullmann, “L'image de l'homme
dans la pensée politique d'Aristote”, in P. Aubenque e A.
Tordesillas eds., Aristote politique, fítudes sur la Politique
d'Aristote, op. cit., pp. 161-184.
Cf. Aristóteles, Metafísica A, 1 980 a 20: “Todos os homens por
natureza desejam saber”.
Cf. Aristóteles, Política I 1 1253 a e ss.
Formada a partir de um conjunto de cidadãos, a unidade
que lhe cabe não é a de uma entidade substantiva: sua
realidade própria reconduz-se à dos indivíduos que a
compõem e que são por natureza animais políticos. Nunca
será excessivo enfatizar esta dimensão segundo a qual o
homem apenas se realiza como tal integrado na polis: só esta
pode alcançar a autarcia que permite o pleno
desenvolvimento das potencialidades dos seus membros.
Cf. W. Kullmann, “L'image de l'homme dans la pensée
politique d'Aristote”, op. cit., pp.160-64.
Cf. Aristóteles, Política , I 2 1253 a: “A palavra é para
manifestar o conveniente e o prejudicial, assim como o
justo e o injusto. E isto é o próprio do homem frente aos
outros animais: possuir apenas ele o sentido do bem e do
mal, do justo e do injusto”.
Cf. Aristóteles, fíticaa Nicómaco ,I 1 1094. 60 Ibid ., X, 10 1181
b 15-16.
Ver o já referido estudo de W. Kullmann, “L'image de
l'homme dans la pensée politique d'Aristote”, in P. Aubenque
ed., Aristote politique, Essais sur la Politique, op. cit., sobretudo
pp.162-164.
Cf. Timeu , 90 a: o referido gênio, como daimôn ou ser
intermediário, assegura a “ponte” entre os dois mundos.
Aristóteles, Política VII, 1332 a 8-12. 64 Ibid ., 1332 a 38-40.
Ver a esse respeito o já citado ensaio de Monique Canto-
Sperber, “L'unité de l'État et les conditions du bonheur
public”, in Pierre Aubenque ed., Aristote Politique, op. cit., pp.
51-71, em especial pp. 61-62: “Os guardiões devem amar o
Estado, mas, uma vez que o homem só ama o seu próprio
interesse, é preciso fazer com que o interesse do Estado
coincida com o do indivíduo”. Por conseguinte, no caso dos
guardiões, a noção que cada um tem do bem público “não é
uma representação individual em relação à qual teria uma
parte de iniciativa. Esse dogma lhe é imposto do exterior, pelos
governantes ou pelos filósofos. A única parte de iniciativa
deixada aos guardiões é passiva – é de serem educados e de
viverem de maneira a que nenhuma representação pessoal,
nenhum laço privado (...), façam obstáculo a essa

46
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

representação do bem público”. Assim, “a unidade maximal


da cidade não é a unidade estabelecida entre todos os seus
componentes, mas a unidade imposta por uma das
classes que se encontra radicalmente unida” (ibid ., p. 61).
Cf. República III 414 d415 b. Para Platão, os deuses não
precisam mentir, mas os homens, imperfeitos e limitados,
não podem prescindir da mentira como instrumento que se
justifica por seu uso, em circunstâncias especiais: cf. ibid.,
II 382 a-e. Assim, como filhos de uma mesma mãe pátria,
importa servir e defender essa totalidade; na desigualdade
constitutiva que tal mito consagra, cabe à classe dos
governantes, selecionada a partir da dos guardiões, o
privilégio do recurso à mentira, a fim de convencer os
demais concidadãos do papel que lhes compete dentro de
uma organização forjada sobre relações de
interdependência e de subordinação do inferior ao
superior. Sobre essa matéria, ver o estudo de Nicole Loraux,
Né de la terre. Mythe et politique à Athènes, Paris, Éd. du Seuil,
1996, e Maria José Vaz Pinto, “Realidade e ficção: alguns
aspectos do elogio platônico da mentira”, Revista da
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, nº 10, Lisboa, Ed.
Colibri, 1997, pp. 341-350.
Cf. Arlene W. Saxonhouse, Women in the History of Political
Thought, op. cit., pp.19-20: o conflito entre a família e a polis é
radicalizado, desde os tempos mais remotos, no contraste
entre os valores da família e os da cidade – encontramos “um
conflito entre as necessidades da família como um mundo
privado de sobrevivência e a polis como um mundo público
de guerra e de morte” (ibid ., p. 20).
Cf. Marcia L. Homiak, “Feminism and Aristotle's Rational
Ideal” in Julie K. Ward, ed., Feminism and Ancient Philosophy, op.
cit., pp. 118-137.

47
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

DE CULTU FEMINARUM:
TERTULIANO E A RETÓRICA DO CORPO
PAULA OLIVEIRA E SILVA
(Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa)

1. A retórica do corpo

Na obra A Filosofia como uma das Belas Artes, D.


Innerarity evidencia como característica fundamental da
ars philosophiae aquilo que se poderia identificar com
uma peculiar forma de sensibilidade: a gentileza, arte de
contornar, de caminhar ou de ir pela vida com rodeios.
Sob essa perspectiva, e recorrendo a uma expressão
idiomática, dir-se-ia que a filosofia é a arte de andar com
contemplações. A atividade filosófica surgiria, nesse
contexto, ao abrigo de uma condição culturalmente
conotada com a feminilidade e, portanto, como encargo
que se deveria confiar, de modo peculiar, ao gênero
feminino. Curiosamente, lê-se nesse breve ensaio: “O
homem é um animal que anda sempre com rodeios
perante a realidade (…). Todo o comportamento
humano é retórico, num mundo que não se lhe impõe
inocentemente”1. Quando seria de esperar que o discurso
sobre a atividade filosófica incidisse sobre essa
característica específica da mulher, é-nos dito que a
condição artificial de todo discurso é inerente à
atividade humana. No dizer desse autor, isso acontece
precisamente porque nenhuma abordagem fenomênica
do universo é inocente, daí afirmar que não se acede à
verdade despindo-a do que quer que seja, mas vestindo-
a adequadamente. A realidade a pensar nos é dada
arroupada e toda linguagem – científica, técnica, artística,
filosófica – surge como forma de revestimento: um
artifício, ou representação simbólica, seja qual for a
forma de mediação pela qual se opte. Se a realidade
é dada na sua mediatez, buscar sua presença
imediata converte-se numa tarefa frustrada a
princípio.
Essas considerações de pórtico,
aparentemente marginais, têm uma dupla
finalidade. Em primeiro lugar, a de manifestar nossa
convicção acerca do caráter contemplativo do
espírito feminino. Se é verdade que as mulheres
costumam andar sempre com rodeios, a peculiar
sensibilidade para o cultivo da forma, inerente a toda

49
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

comunicação e, portanto, também à da sageza,


permite sublinhar o caráter essencialmente
feminino da filosofia, na acepção original do étimo –
amor de dileção pela Sabedoria, traduzido numa
predileção, que leva ao cultivo atento. Em segundo
lugar, elas atingem o cerne da questão que nos
ocupa, mediada a leitura de Tertuliano. Se a
essência da filosofia, enquanto peculiar forma de
amor, está em íntima conexão com o espírito
feminino, tudo o que respeita à mulher interessa à
filosofia. Essa afirmação pode revelar, pelo menos
intuitivamente, de que modo uma obra como De
Cultu Feminarum2 é, pela só enunciação, portadora
de um conteúdo que se configura num horizonte
essencialmente metafísico, transcendendo ao
alcance, meramente cultural ou estético, de uma
descrição sobre a moda feminina cartaginesa,
praticada nos alvores do século III. No caso do autor
que nos propomos abordar no que não pode ser
mais do que um breve comentário, o opúsculo assim
intitulado recolhe um exercício de reflexão dirigido
sobre a veste das mulheres enquanto retórica do
corpo. Muito em particular, ao tratar-se de um
discurso sobre a roupagem feminina, transmite o
que o filósofo cartaginês entende ser a reta forma de
estabelecer a relação entre o corpo da mulher e
aquele conjunto de circunstâncias que a envolvem,
afetando-a de diversos modos. A esse conjunto de
relações podemos chamar mundo, o que permitirá
refletir sobre a construção de uma peculiar
mundividência a partir do modo de estar feminino.
Nos textos de Tertuliano que versam sobre as
vestes da mulher tornam-se patentes os grandes
desafios propostos a todas as gnosiologias, como
referia Innerarity em seu ensaio, extensivos a uma
mundividência em que ser e cogito estão longe de se
identificar. Tal como hoje para Innerarity, outrora, na
peculiar situação histórica e cultural que caracteriza
o dobrar do século II, a reflexão de Tertuliano parte
da profunda convicção de que a relação corpo-
mundo de nenhum modo é dada em estado de
inocência. Assim, a mente interroga-se, de modo
imediato, sobre o lugar do corpo humano
sexualmente diferenciado no horizonte dos seres,
infinitamente diversos e distintos.
Os textos de Tertuliano forçam uma reflexão
valorativa sobre a condição feminina a partir da
corporeidade. Essa dimensão axiológica inerente ao
discurso desse filósofo não poderá, contudo, ser
plenamente esclarecida senão quando se tiver
arraigado no âmago de uma antropologia

50
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

diferencial. De fato, a realidade que se comunica


pela linguagem do corpo é a própria intimidade.
Esta, por sua vez, há de ser entendida não apenas
como reserva da dimensão física do “eu”, mas como a
própria essência do núcleo pessoal. O sentido mais
fundo da intimidade engloba, assim, não só a mera
corporeidade, como também a vida emotiva, afetiva
e amorosa que nela e com ela coabita. Contudo,
nenhuma forma de linguagem traduz essa
dimensão do “eu”, dada a sua condição
absolutamente única e inefável. Uma reflexão sobre a
finalidade das vestes femininas enquanto conjunto
de peças que integram a indumentária das
mulheres encontra-se, portanto, indissociavelmente
unida a uma concepção do feminino enquanto
expressão do ser humano. É a existência de um
núcleo pessoal que legitima um discurso sobre a
indumentária. A tarefa aqui assumida será a de,
pela leitura de De Cultu Feminarum, elucidar o que
entende Tertuliano por esse núcleo pessoal e como
nele se enquadram as notas que caracterizam o
feminino.
Para quem convive de modo habitual com os
escritos filosóficos do paleocristianismo parece
desnecessário justificar a pertinência de uma peculiar
atenção hermenêutica àqueles que mais diretamente
incidem sobre a mulher, independentemente do nível
em que se situe o seu discurso – parenético, ético,
psicológico, antropológico, metafísico, teológico ou
religioso. De fato, o legado histórico destes escritos
constitui, por si mesmo, um apelo à reflexão e dá
conta da eloquência deles a quem se abeirar
impulsionado pela dilectio sapientiae. Contudo, porque
tais textos se encerram habitualmente em círculos
hermenêuticos que padecem de um certo hermetismo
e porque são, hoje, para a grande maioria dos
cidadãos, paradoxalmente, tão ignorados quanto,
pelo seu conteúdo, profundamente ansiados, faz
sentido apontar as razões que movem a elaboração
dessa reflexão e que predeterminam tanto o seu
estilo – a roupagem linguística – como a metodologia
e o intento perseguido. É nosso objetivo tornar
acessível e, tanto quanto possível, inclusivamente
grata a percepção do conteúdo dos textos que ora
nos ocupam. Do mesmo modo, existe a convicção
de que esses textos são portadores de um influxo
que configura em profundidade o pensamento
ocidental. A isso se acresce, ainda, a certeza de que só
a compreensão do passado lança luz sobre o

51
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

presente, permitindo, inclusive, unida à


desmistificação da pretensa originalidade de
algumas posições contemporâneas, a recolha de um
sentimento de solidariedade histórica que dê lugar
a uma reflexão dinâmica, aberta ao acolhimento da
tridimensionalidade do tempo. Por último,
procurar-se-á construir sobre esses textos uma
argumentação um pouco à revelia das convicções
comuns, entendendo por essas últimas tanto o
conjunto de argumentos que poderíamos colher em
qualquer conversa informal quanto dos que, quer
por uma leitura descontextualizada, quer por uma
interpretação fundada nas aparências, quer por
qualquer outra razão menos evidente, construíram
em torno dessas posições intelectuais a convicção de
que a mundividência cristã é portadora de uma visão
negativa ou depreciativa da mulher, alicerçando-se
numa metafísica que confere ao sexo feminino, no
plano pessoal, social ou até histórico, uma função
peculiarmente onerosa. Desse modo, uma vez mais
alargando o âmbito das questões – assumindo, não
sem manifesto orgulho, o critério do rodeio,
previamente enunciado como nota característica do
discurso feminino – antes de tomar contato com
Tertuliano e seus textos, torna-se imprescindível,
para evitar erros de anacronismo, enraizá-los na
cultura de seu tempo. Qualquer leitura dos textos
de autores paleocristãos que procurasse entendê-los
quer como atemporais, quer como absolutamente
subsumidos e determinados por seu
enquadramento histórico padeceria dos dois
excessos que queremos evitar: considerar
irrevogável aquilo que se disse, bloqueando a
condição, essencialmente dinâmica, do ser humano
no tempo e, portanto, de todo o discurso, ponto de
partida da ontologia cristã; ou reduzir a causalidade
da ação humana livre às estruturas socioculturais,
que são indissociáveis dos indivíduos. Assim, para
uma leitura integrada dos escritos de Tertuliano,
importa considerar algumas coordenadas do
mundo antigo que se nos apresentam como
preponderantes numa reta avaliação da contribuição
desse filósofo para aquilo que – cientes do paradoxo –
poderíamos apelidar de antropologia do feminino.
Antes de mais nada, é grato evidenciar que,
como o seu fundador, os primeiros escritores
cristãos nascem e vivem nos limites do Império
Romano. Como Cristo, procedem igualmente, de

52
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

início, do mundo hebreu (tanto da Palestina como


da Diáspora), embora se encontrem, também, desde
o primeiro momento, cristãos vindos da
gentilidade. A esse último grupo pertence o próprio
Tertuliano, bem consciente dessa sua condição,
quando afirma – com a vibração de quem tem
experimentado um processo de conquista e
maturação, em âmbito pessoal e comunitário – que os
cristãos não nascem, mas se fazem. A estes marcara-
os profundamente a herança do helenismo e do
tardo-judaísmo, quer em termos teóricos e
categoriais, quer no referente aos usos e costumes.
O cenário que, na Antiguidade, fora capaz de
traduzir, metaforicamente, a realidade fenomênica e
fisicamente manifesta da diferença sexual recolhera-
se na concepção mitológica de uma grande divindade,
completa na sua essência, congregando em si mesma
os dois sexos3. Com efeito, o relato de um ser
originalmente andrógino surge sob versões
polimorfas e, com o tempo, vem a decompor-se numa
divindade feminina e noutra masculina, intimamente
associadas, interagindo de modo peculiar em âmbito
cosmológico, como justificantes da condição
fenomênica dual em que parece inscrever-se toda a
realidade4. Esse relato – polifacético e amplamente
difundido – do homem originário como ser andrógino
fora disponibilizado por uma das grandes
autoridades da sábia Grécia, quando Platão faz com
que Aristófanes assuma a tese segundo a qual cada
homem constitui apenas a metade de um todo
originário, desejando voltar a unir-se com a outra
metade5. O Fundador da Academia não se propusera,
contudo, mais do que uma compreensão do topos
natural do homem no cosmos, inscrevendo a sua
explicação da dualidade sexual no âmago de uma
compreensão da physis. Hesíodo, por sua vez,
descrevera já a origem da primeira mulher, artefato de
todos os deuses do Olimpo, cuja finalidade é vingar
Zeus pela violação do fogo sagrado, levada a cabo
pelos humanos. A ela se reservam, entre outras, as
seguintes qualidades: feita de terra e de água, detém
a voz e a força de um ser humano, unida à imagem
das deusas imortais. Possui um corpo amável de
virgem: toda a beleza de Afrodite, congregada num
espírito impudico e num coração cheio de artifícios6.
Pandora é o nome daquela que foi trabalho de todos
os Deuses para desgraça de todos os mortais7.
Tanto a versão de Hesíodo como a de Platão,
circunscritas em mundividências de caráter
dualista, são, para uma concepção da condição
feminina, pouco favoráveis. No primeiro caso, a

53
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

humanidade do homem – valha a aparente


redundância - só se realiza se este se apossar dessa
outra parte, sem a qual o gênero humano não está
completo. A diferença é, nesse horizonte cultural,
entendida negativamente, uma vez que o ser humano
é, originariamente, uno, e que da conquista dessa
situação primeva de unidade – entendida como
dissolução e anulação de toda a diferença e, portanto,
também da sexualidade – depende a sua semelhança
com o Bem, paradigma da perfeição, Uno, Perfeito e
Idêntico. Dada a prepotência social e cívica do varão
na Atenas de Platão, uma vez que a outra parte é sua
pertença de iure e ex natura, é fácil deduzir a
instrumentalização da mulher que daí resulta. No
relato de Pandora, mesmo a esperança, símbolo da
maternidade, única realidade que restou na sua caixa,
é entendida como causa do mal e da disseminação do
ser8. Nada mais natural, num universo em que o Uno
e o Bem se identificam, do que conceder à mulher,
enquanto portadora de novos seres e, portanto,
incubadora de toda a multiplicidade, a causalidade do
mal. A maternidade surge, neste contexto, inclusive
com uma conotação negativa, mais ainda quando o
fruto da parturiente, uma vez trazido à luz do dia,
verifica-se ser do sexo feminino9. Curiosamente, lida
de uma perspectiva dialética, essa mesma tradição
pode permitir uma interpretação em que se construa
uma ontologia baseada na dualidade do Princípio. De
fato, assim o hão de entender as múltiplas correntes
gnósticas que, na fusão do neoplatonismo com
mundividências orientais, hão de brotar nos
principais centros de cultura, emergindo onde quer
que se ensaie uma visão global do mundo e do
homem. Peculiarmente relevante se torna, para a
questão que nos ocupa, o confronto entre a tradição
helênica e a tradição rabínica. Em diálogo com o texto
da Antiga Aliança, concretamente no relato das
origens, os mestres ponderam com peculiar
precaução o risco de assimilação de uma ontologia
fundada na dualidade do Princípio – Bem e Mal,
Espírito e Matéria, eternamente subsistentes – capaz
de sustentar uma antropologia igualmente dual, em
que o Masculino e o Feminino se encontram
eternamente em conflito.
Com efeito, no magnífico poema do Princípio,
pode ler-se: “Deus criou o homem à sua imagem; à
imagem de Deus os criou; varão e mulher os criou
“(Gên.,1,27). Desde o momento em que se cruzam na
História o mundo helênico e a tradição judaica, a
argumentação e a fonte de reflexão sobre a condição
feminina passa pela interpretação desse texto

54
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

veterotestamentário, lido na versão dos LXX ou –


quando a dedicação de Jerônimo a disponibiliza, já no
século V – na versão latina da Vulgata. Desde já, o que
podemos reter é o fato de que a especulação sobre a
diferenciação sexual está, desde agora,
inseparavelmente unida à resposta que se dê à
questão da origem e, portanto, à concepção que se
tenha sobre o Princípio e sobre o sentido do Tempo e
da História10.
Momento importante da especulação
judaica sobre a constituição de uma antropologia
diferencial parecem ser os relatos de Fílon de
Alexandria. Com efeito, ele opera uma distinção entre o
ser humano original (não já andrógino mas assexuado,
imagem de Deus) e o primeiro homem e os seus
descendentes11. Essa posição introduz de imediato a
convicção da diferença entre uma situação original – um
tempo primitivo – e uma situação atual – um tempo
submetido à sucessão ternária dos ritmos da história.
Nesse contexto, também a natureza humana é, para o
judeu alexandrino, uma na sua situação primitiva
(indiferenciada sexualmente e, nesse sentido, Una,
próxima e presente ao Deus Uno) e outra após a
introdução da sucessão dos tempos, efeito de uma
queda original: diferenciada, também sexualmente, ela é
impura e incapaz de sustentar a Unidade divina. Assim,
na mente de Fílon, o Uno e o múltiplo surgem em
dissociação, mediada a queda original. Essa leitura do
relato de Gên.,1, 27 é particularmente significativa para
os rumos que hão de determinar o contexto da
concepção de Tertuliano.
De fato, Fílon fundamenta no texto bíblico
uma valoração negativa da diferenciação,
considerada como efeito de uma decisão livre e
alheia ao desígnio divino da criação. A diferença
sexual, bem como as peculiaridades do processo de
geração da vida humana e da relação varão-mulher
são, indiscriminadamente, consequência de uma
ação moralmente defectiva. As categorias de
masculino e feminino e suas características
específicas emergem, assim, num contexto da
natureza mortal do homem, à margem da sua criação
como imago Dei. A diferenciação sexual não cai sob a
direta responsabilidade do ato criador do Princípio
divino. Este teria tido como efeito primordial o

55
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

surgimento perfeito de uma humanidade perfeita,


inquebrantável e imortal. A diferenciação sexual surge
como desejo do homem, mais do que como vontade de
Deus, efeito de uma desobediência à Lei divina, cuja
responsabilidade, numa interpretação simplista e
literal, recai sobre a figura de Eva. Nesse contexto,
também é justo que o castigo recaia, de modo
peculiar, sobre o elemento feminino. A lei humana
mais não deve fazer do que refletir a justa sentença
proferida por Deus cujo juízo punitivo, desde essa
linha hermenêutica, recai particularmente sobre a
mulher12.
A peculiar influência da filosofia platônica
no discurso de Fílon de Alexandria leva-lo-á a
justificar a desvalorização do sexo feminino, ao
identificar o masculino com a dimensão noética da
humanidade genérica e o feminino com sua
dimensão estética13. Tal concepção permitirá ainda
operar uma dissociação, no interior da própria
atividade humana, entre o racional e o sensível,
desvalorizando a percepção estética e, portanto,
também a própria percepção do corpo, pessoal ou
alheio, que se dá sempre como fenômeno visível.
Sendo um fato que essa tradição hermenêutica é
assimilada por Tertuliano, tal aspecto é
peculiarmente importante para compreender o
alcance de um texto como De Cultu Feminarum, ou De
Spectaculis, em que a conotação moral negativa da
percepção sensível é peculiarmente manifesta.
Contudo, é essencialmente nas
interpretações sincréticas próprias da gnose que o
homem originário, concebido como figura
andrógina, assume um papel de peculiar
importância, uma vez que a alienação do masculino
no feminino leva à causa da perda da gnose,
inviabilizando todo o processo de aperfeiçoamento
humano. Na substância eterna não existe nem
masculino, nem feminino. A imagem do homem
novo é a restauração da primeva androginia, isto é, a
recuperação de uma humanidade em que o Todo se
realiza numa perfeita identidade que não comporta
a diferenciação sexual. Nesse contexto, a concepção
da restauração da imagem do ser humano original no
horizonte de uma escatologia passa pela anulação da
corporeidade e, particularmente, da sexualidade.
Desse modo se pode antever como uma leitura

56
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

especificamente cristã do relato da criação e, em


particular, da criação do ser humano, uma leitura que
vá ao encontro do sentir de Deus segundo o qual o
momento supremo da criação é o descanso do olhar
divino naquele grau de ser, homem e mulher, criado à
sua imagem e semelhança, registado no assombro do
hagiógrafo – viditque D eus quod erat valde bonum –, carece de
uma reflexão profunda sobre o sentido da
temporalidade, desvendando progressivamente o
que significa a criação no Princípio, e o sentido da
queda, a reclamar uma restauração do tempo e da
matéria, e esclarecendo o que significa a criação de um
ser no qual, indissociável e harmonicamente, unem-se
o pó da terra e o espírito de vida. Porém, a
complexidade de uma tal reflexão não está, ainda,
disponível a Tertuliano. Sua peculiar situação
histórica e social, marcada por duas grandes
perseguições dos Senhores do Império sobre as
comunidades cristãs, confere-lhe uma extrema
sensibilidade para a percepção de um final dos
tempos, ante a permanente iminência da morte, bem
como uma aguda consciência da cercania de um juízo
de Deus, em boa parte justificada pela dureza dos
tempos e pela crença milenarista, a qual padece de
uma peculiar revivescência, então como hoje, nas
passagens de século14.
Os textos do cartaginês acerca da natureza
da mulher denotam, de fato, uma peculiar
influência do tardo-judaísmo, sobretudo em
algumas interpretações inspiradas nos apócrifos
veterotestamentários15. A mundividência judaica
contida nesses relatos era particularmente rigorosa
na apreciação do feminino. Sendo o sagrado a meta
final da vida do ser humano, dimensão ôntica
absolutamente transcendente, cujo habitáculo
reside numa luz inacessível, afastada de toda a
afecção material, a sexualidade aparta-se e
desintegra-se do fim transcendente. Seu uso é quase
punitivo e seu exercício é necessário apenas na
condição histórica do homem caído, enquanto
único meio de conservação da espécie. Por isso
mesmo, o exercício da sexualidade emerge num
contexto de degradação vital da natureza e, em
particular, da humanidade. Levado a extremo, esse
paradigma pode vir a conceder à diferença sexual o
papel de fonte e origem de toda a impureza. No
plano religioso, seu exercício tornar-se-ia uma via

57
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

próxima e privilegiada para o afastamento ético-


moral de Deus e, em termos escatológicos, a porta
franca para a condenação final. Esse ambiente
intelectual que envolve a diferença sexual num
horizonte de negatividade e que, mais do que trazer
à luz sua magnificência, inspira temor, é o que se
colhe da leitura de alguns textos de Tertuliano, de
modo patente os que datam da sua passagem ao
montanismo16.

2.A mulher, entre anjos e demônios

De Cultu Feminarum é um texto chocante. As


expectativas, criadas pelo título, de aí poder encontrar
um tratado sobre os usos e costumes femininos em
Cartago, no início do século III, se é que chegaram a
brotar na mente, rapidamente se dissipam. Desde o
início, o autor assume uma posição clara e definida
acerca da mulher, da sua origem e da sua condição: “Dás
à luz em dores e angústias, mulher, e serás atraída para
o teu marido e ele do minar -t e -á : e ainda igno ras que
és Ev a?”17 . É e ss a a interpretação que Tertuliano faz de
Gên., 3,6. Por isso, qualquer gesto ou atitude, qualquer
sinal, pessoal ou social, da presença feminina recorda a
condição miserável em que, por sua causa, encontra-se a
humanidade. Por isso se torna inclusive contraditório
que a mulher procure embelezar ou adornar seu corpo.
Em coerência com essa interpretação, o cartaginês
acrescenta: “A sentença de Deus vive sobre este sexo,
neste mundo: é necessário que permaneça o castigo”18.
Porém, se essa crueza atribuída à condição feminina
causa alguma perplexidade, ela se exime, igualmente, de
afirmar que a sedução dos sexos e a submissão da
mulher ao homem sejam parte integrante do feminino.
Trata-se, antes, de duas realidades com as quais é
necessário conviver, mas que derivam de uma
decadência, da desfiguração e corrupção de um projeto
original.
A partir da metodologia que assumimos neste
comentário é possível estabelecer uma trajectória
temática coerente, de acordo com a qual o primeiro livro
de De Cultu Feminarum disponibiliza o fundamento
metafísico de uma antropologia diferencial,
enquanto o segundo propõe uma análise
consequente da função das vestes femininas,
enquadradas num contexto mais genérico do que o
do estrito costume: a virtude da pudicitia, que o autor
considera ser a via de acesso obrigatória para a

58
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

salvação, e cuja abordagem se integra, portanto, no


âmbito de uma escatologia.
Indubitavelmente, Tertuliano deduz a
condição da mulher a partir da sua relação com Deus.
Contudo, trata-se de uma relação metafisicamente
decadente, que necessita da fé para aceder ao mérito, a
fim de viver de modo ajustado à sua atual situação
histórica. A mulher deve assumir a consciência do seu
protagonismo na intromissão do mal no mundo e
vestir-se em conformidade, submergindo sua
indumentária num ambiente de manifesta
humilhação. Só então o exterior corresponderá à sua
condição ontológica19.
Sendo a atual condição feminina reveladora
de uma deficiência ontológica e, portanto,
necessariamente alheia aos planos de um Deus
onipotente e sumamente perfeito, ela manifesta-se
em dois fenômenos universais, consequência do
estado de corrupção da natureza: as dores do parto
e a atração do homem pela mulher. Essa última
justifica o domínio do homem sobre a mulher,
realidade incontornável, cuja causa ultrapassa o
âmbito da vontade individual, atingindo a essência
da natureza humana. A par de sua interpretação de
Gên. 1, 26-27, Tertuliano vai delineando os
fundamentos de uma antropologia diferencial, bem
como os elementos que sustentam sua concepção do
feminino. Desse modo disponibiliza um conjunto de
elementos suficiente para que possamos definir
qual o lugar da mulher na ordem dos seres, bem
como sua função, frente à totalidade da criação. A
agressividade da terminologia que o autor utiliza em
torno da definição do feminino parte, com efeito, da
concepção hierática do relato veterotestamentário
da queda original, sobre o qual constrói uma
exegese muito próxima das leituras tardojudaicas,
embora não dissimule, igualmente, a filiação estoica
e cínica do seu pensamento. Essa genealogia instala
o paradigma mental de Tertuliano no horizonte de
uma ontologia dual, impregnada de um certo
fatalismo histórico. De fato, a condição feminina
está marcada por seu protagonismo na introdução
do mal no mundo e, sobretudo, nas sequelas que tal
intervenção deixou na natureza humana. Sob esse
prisma, Tertuliano confere à mulher um conjunto de
atributos não peculiarmente elogiosos: ela é a porta
do diabo, a primeira a tocar na árvore proibida, a que
persuade o diabo a atingir aquilo que ele não era
capaz de alcançar por si só; a que tão facilmente
expulsou do homem a imagem de Deus20.

59
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Seguindo uma antiga tradição hermenêutica


alheia ao cristianismo, a gênese da humanidade caída
atribui-se ao comércio carnal, ilícito ex natura, entre os
seres angélicos e as filhas dos homens. Assim, o processo
de geração, início da multiplicação dos seres, o
cumprimento do mandato “crescei e multiplicai-vos”
(Gên. 1, 28), está, desde o início, imbuído de
negatividade21.
Se a geração é efeito da degradação dos anjos,
seres dotados de uma missão supraterrena, a
mulher é, de acordo com essa versão, não apenas
causa da queda do homem, mas a causa da perdição
dos próprios anjos, que, atraídos pela beleza
feminina, abandonam a missão essencial junto ao
divino22. O lugar ontológico da mulher padece,
assim, de uma certa indefinição, situando-se, entre
os anjos e o homem, como causa instrumental do
mal. Por outra parte, a maternidade, que é inerente
à sua estrutura biológica e que instauraria sua
diferença específica, emerge, de acordo com a
interpretação de Tertuliano, depois da queda. Ela se
segue, com suas consequências dolorosas, à
corrupção, desfiguração e distorção da imagem de
Deus – isto é, do homem –, de que a mulher é causa,
precisamente pela arte do rodeio, que lhe confere uma
linguagem polimorfa, associada à beleza do corpo,
permitindo-lhe estabelecer diálogo com a serpente,
símbolo do anjo perverso. Desse modo, o selo de
Deus no homem, que parecia inacessível ao
maligno, encontra, na mediação feminina, a
possibilidade de sua corrupção23. Se por um lado é
verdade que o texto não é explícito quanto à
definição do modo de participação da mulher na
imagem de Deus, por outro ele afirma a convicção
de uma modelação inicial do homem à imagem de
Deus, bem como a da existência de uma condição
primeva de pureza e simplicidade originais, na qual
harmonicamente se integraria, em particular, a
beleza feminina, que Tertuliano considera ser um
atributo natural24. Em qualquer caso, o que parece
particularmente relevante para a coerência interna
de DeCultuFeminarum éofatodesepoderafirmaruma
diferença ontológica entre a situação original do ser
humano antes do pecado – o qual, segundo a versão
de Tertuliano, dever-se-ia chamar, mais
propriamente Eva, e não Adão – sua situação depois
da queda. Esse ato livre, contrário ao sentido da lei
divina, inaugura uma nova situação metafísica,
marcada pela dor e pela morte. Esse é, afinal, o
motivo essencial de vergonha para a mulher e uma
das razões pelas quais ela não deve ornamentar,

60
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

evidenciando-o, o seu corpo. Com efeito, para que


haja acordo entre o exterior e o interior, entre as
vestes e sua condição de infelicidade, deve
transparecer, na ornamentação e decoro do seu
corpo, o tom da humilhação e da vergonha25. Nesse
contexto, também o vestuário surge com uma
origem marcadamente negativa, consequência da
obtenção de um saber indevido que permite
desintegrar corpo e espírito. Nessa desarmonia
radicam o desejo de concupiscência e a vaidade, sua
manifestação extrínseca26. O vestuário é, de fato,
frente à atual condição, metafisicamente
indispensável. Contudo, é efeito de um mal menor e
não deve, por isso, despertar o desejo concupiscente,
inerente à mútua atração entre os sexos27.
A morte a que aqui se refere o cartaginês,
consequência da ruptura de uma aliança originária, é,
efetivamente, a morte biológica que confina com o
termo da vida. Mas ela funda-se numa realidade mais
radical, que é a do próprio afastamento de Deus,
inerente à transigência da lei. Para além do efeito
corrosivo manifesto sobre a vida humana dotada de
corporeidade, a morte é, essencialmente, expressão de
que algo interrompeu a essencial harmonia em que
fora criado o ser humano: o desejo de afastamento e a
cisão do primitivo compromisso existencial. Depois
da queda original, esse desejo mortal manifesta-se
fundamentalmente pelo afã de posse. Esse último
concretiza-se na fabricação e no uso de toda espécie de
ornamentos, tendo como finalidade o corpo, objeto de
ambitio. A ilicitude desses atos – a arte de fabricar
ornamentos, a extração do ouro e das pedras
preciosas, a tinturaria, a aplicação de pinturas sobre o
rosto e o cabelo – não deriva da malícia dos próprios
elementos, mas da deturpação do seu sentido original
que decorre quando, livremente, ele é deslocado para
um lugar inferior àquele que, por natureza, ocupa na
ordem dos seres28. Assim, tal como o vestuário é
consequência da queda original, também o
ornamento, derivadamente, vem a sê-lo. Entre esse
saber do bem e do mal, que Eva – e com ela toda mulher –
aprendeu no comércio com os anjos, está o saber
perverso das técnicas e artes de fabricação de todo
ornamento do corpo, tão pernicioso que parece
preparar para a mulher um enxoval de morte29. A
desordem na posse destes bens manifesta-se, na
mulher, em dois níveis: o desejo de posse e o desejo de
ser sujeito passivo de atração. Ambos convergem num
único movimento, contrário à natureza: o desejo de
possuir a atração, aquele que está, afinal, na origem de
todo mal. O alcance metafísico da vida e da morte,

61
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

unido ao conhecimento do desejo de concupiscência –


abandono do amor-dom, essência da criação, pelo
amor-posse, efeito da queda –, torna-se explícito nas
afirmações a propósito da atração da mulher pelos
espelhos, pelo ouro, pelas pedras preciosas e pelos
tecidos finos30. Do mesmo modo, o processo de vida-
morte-revivescência – ritmo trinitário em que se
compõe a vida da humanidade – terá de passar,
essencialmente, por uma reordenação do desejo, no
esforço por recuperar uma harmonia primeva. Nesse
projeto, a um tempo cósmico e histórico, a mulher tem
um papel essencial. Por um lado, ela está dotada ex
natura de uma peculiar capacidade de atração. Só
assim se explica que, mesmo sem nenhum cuidado do
seu corpo e arranjada de modo rude, ela fosse capaz
de afastar os anjos do plano divino, pelo bem natural
da beleza31. No entender de Tertuliano, ela há de
lograr o agrado dos homens sem o esplendor dos
materiais nobres e sem o engenho do decoro.
Inversamente, os anjos – que, curiosamente, surgem
como dotados também de uma dimensão libidinosa
na sua vontade e, portanto, capazes de um desejo
concupiscente32 – exercem uma espécie de vingança
sobre a mulher, por ter sido ela a causa da sua
perdição eterna, impossibilitando-a de recuperar a
original pureza e ofuscando-a no seu bem próprio, de
tal modo que, pela sutil vaidade do corpo, afaste-se de
Deus33. Assim, a vaidade feminina e o cuidado
ornamental do corpo têm a sua última origem na
inveja e vingança dos anjos. O cuidado do corpo, que
produz de si prazer à mulher e que fomenta a atração
do homem, é essencialmente perverso34. Nesse
horizonte de negatividade, contudo, não deixa de
causar alguma perplexidade o fato de Tertuliano
reconhecer que a mulher está chamada a exercer o
mesmo ofício divino que o homem, no final dos
tempos, partilhando um mesmo projeto salvífico. Se
assim não fosse, esse texto exortativo e parenético –
um entre muitos cuja autoria se atribui a Tertuliano –
careceria de sentido. Por isso se dirige a ela em plano
de igualdade, como irmã muito amada, aquela com
quem comunga de um mesmo projeto vital, cujo
sentido em comum se determina. A ambos está
reservada a tarefa de julgar os anjos, mas essa
dignidade superior, fruto de uma conquista (uma vez
que ex natura a natureza angélica é superior à
humana), exige um combate. De fato, às mulheres
como aos homens está prometida uma mesma
substância angélica: a partilha de um mesmo sexo35.
Contudo, essa afirmação não é inócua. Por um lado,
ela revela a convicção da existência de um destino

62
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

supra-histórico, comum a ambos os sexos, que faz


supor a afirmação de uma idêntica natureza. Mas, em
consonância com a convicção inicial segundo a qual a
diferença sexual é efeito da queda e, portanto,
extrínseca à natureza humana genérica, a
concretização desse destino, no qual a perfeição
original é restaurada, há de supor, igualmente, a
anulação da diferença36. A condição de acesso a esse
tribunal em que os anjos, porque degradada a sua
natureza, são réus de um juízo humano é a
antecipação desse juízo no tempo presente37, por uma
prática de vida alheia a toda a vinculação com o
corpo.
Tertuliano fundamenta esses elementos de
sua antropologia diferencial na leitura do Livro de
Enoch. Texto de canonicidade controversa desde os
alvores do cristianismo38, rejeitado por judeus,
como reconhece o cartaginês, pelo seu conteúdo
messiânico, e por cristãos, como facilmente se deduz
de sua leitura, pelo caráter negativo e dual de sua
ontologia, aí encontramos as principais teses
explanadas pelo filósofo em De Cultu Feminarum. O
apócrifo abre com uma visão apocalíptica,
prenunciando um final do mundo pelo terrífico
abalo das forças cósmicas, do qual apenas serão
libertos os justos e eleitos. Inversamente, os que não
souberam sustentar a lei de Deus serão malditos e
castigados com a ira e a rejeição divina. Aí surge
claramente exposto, como complemento do relato
da criação, um conjunto de afirmações cuja
veracidade Tertuliano assume sem discutir: a tese
da fornicação entre os anjos e as filhas dos homens,
que daria origem à procriação40; o segredo da
relação concupiscente entre o homem e a mulher,
revelado pelos anjos caídos, para os quais não mais
haverá paz41; o anúncio de um final dos tempos,
quando reinarão por mil anos a paz e a justiça, uma
vez anulados a violência, o domínio dos anjos maus
e a concupiscência, consequência da sua
prevaricação42; a morte e a dor, consequência da
relação dos anjos com as filhas dos homens43; a
existência de espíritos malvados, filhos da união de
anjos feitos para o céu e decaídos pela união
carnal44. Sendo o Livro de Enoch a fonte mais próxima,
por vezes quase literal, de De Cultu Feminarum I, é
natural que Tertuliano tenha dedicado todo um
capítulo a garantir sua canonicidade45.Como

63
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

prevendo a dificuldade de aceitação de sentenças


sustentadas numa tão frágil autoridade, o filósofo
apresenta outra possibilidade de conceber a origem
das vestes femininas: e se esta não fosse a
prevaricação dos anjos, argumentação de fácil
empatia com a mitologia greco-romana46? Num ensaio
de resposta, o filósofo entrega-se a uma hermenêutica
fundada numa fenomenologia do porte feminino,
direcionada não a uma concepção meta-histórica da
natureza humana, mas prestando atenção às coisas
mesmas: ut consilia quoque concupiscentiae earum
deprehendamus47.

3.O pudor, porta de salvação

O arranjo feminino manifesta-se sob duas


formas: o cultus e o ornatus. O primeiro engloba o uso
dos materiais de que se compõem os adornos. Ao vício
que lhe está subjacente Tertuliano confere o nome de
ambitio, oposto à virtude cristã da humildade. O
segundo reporta-se ao cuidado dos cabelos, da pele e
das partes do corpo que atraem o olhar48. O seu efeito
pernicioso é a prostitutio, claramente adverso à virtude
da castidade, porque a afeta na sua condição de
possibilidade, ou seja, a pudicitia, em torno da qual
Tertuliano constrói as traves mestras de todo o projeto
salvífico, individual e comunitário49.
De acordo com o cartaginês, uma análise do
cultus poderá desvendar o sentido originário dos
elementos nele empregados e permitirá compreender
até que ponto seu uso com vistas ao ornatus é
degradante e contraditório. Por sua vez, a
compreensão do alcance do ornatus esclarece o modo
como a atividade humana pode instrumentalizar o
corpo, utilizando-o de forma contrária à sua
finalidade própria, definida pela natura. Desse modo,
opor-se-ia à castidade, por omissão da pudicitia. Na
análise dos elementos materiais que servem ao cultus
Tertuliano reconduz, habilmente, sua natureza ao
elemento terra, uma vez que dela todos provêm: ouro,
prata, pedras preciosas, ferro ou bronze. O que
dignifica o ouro é o trabalho humano de escravos e
cristãos, condenados à morte nas minas50. Por esse
mesmo fato, seu uso para fins corruptos, entre os
quais se conta o adorno do corpo, é, precisamente,
um abuso sobre o trabalho dos mártires51. Por outra
parte, o ferro e o bronze são materiais essenciais,
tanto na construção de qualquer edificação como na

64
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

própria extração dos materiais preciosos.


Igualmente, deve a mulher optar por eles para
edificar solidamente seu percurso de santidade52.
Apesar da carga negativa que envolve o
discurso do cartaginês, Tertuliano foi sensível a essa
condição perfectível da realidade criada, aberta à
dinâmica que nela possa inscrever qualquer
liberdade. Toda atividade humana, o trabalho como o
adorno, interfere na criação, dignificando-a ou
degradando-a53. Se é verdade que todo esse tipo de
materiais deriva do criador, o mesmo não acontece
com suas possibilidades de uso, que permanecem por
definir. Contudo, o autor não leva ao limite as
consequências dessa tese, nem retira toda a força
argumentativa que ela poderia exercer sobre o sentido
dinâmico do real, eventualmente por se fixar
demasiado na dimensão extrínseca e fenomênica da
criação, na qual parece fixar-se o conceito de natura.
Pelo ato criador, Deus estabeleceu as condições para a
realidade, e aquilo que ele próprio não produziu não
lhe é agradável54. Por isso, toda ação contra a
natureza, se não parte de Deus, parte do seu rival, o
demônio55. Assim, num universo onde os bens estão
dados de modo determinado e fixo, quer em
quantidade, quer em extensão, a atitude humana em
face da constituição do real só pode ser de
submissão56. Com efeito, os bens de cultus estão
distribuídos por Deus segundo um plano prévio, de
modo determinado no espaço e no tempo57. Todo
desejo de alteração desse plano de distribuição inicial
gera o tremendo vício da posse desmesurada58. O
desejo de concupiscência manifesta-se precisamente
no que se refere à posse de bens materiais a fim de
embelezar o corpo e tem um nome próprio: vaidade. A
concupiscência é definida como um desejo in crescendo
que valorizou desmesuradamente um bem,
deslocando-o na ordem do ser59. O apelo ao pudor
surge, então, como condição necessária para erradicar
do mundo essa desordem essencial, inerente ao uso
instrumentalizado que se pode fazer do corpo
feminino. Contudo, o que o cartaginês não nos revela
é o valor que lhe é próprio. Ao centrar-se na
concupiscência como contravalor e na dimensão caída
da humanidade, obscurece o brilho que nela ainda
resta e não nos permite uma visão integrada nem da
matéria, no caso do cultus, nem do corpo feminino, no
caso do ornatus. Obtém-se, assim, uma visão
desfocada, incapaz de perspectivar validamente o
sentido da diferenciação sexual60.
Tertuliano considera também a estreita
vinculação entre a expressão externa do pudor e a

65
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

castidade. Para o exercício dessa última, na qual, em


seu entender, radica a salvação, não bastam as
realidades de domínio interno. Com efeito, o que
viria a distinguir o pudor cristão da mesma
qualidade moral vivida por um pagão seria sua
manifestação por intermédio da indumentária, e
não sua presença como qualidade da alma61. O
pudor deve ser, para Tertuliano, ostensivo – a
mulher cristã deve distinguir-se socialmente pelo
modo como se veste62. Essa atitude parece poder
justificar-se por dois tipos de argumentos. Um, de
caráter cultural, incide sobre o contexto hedonista
da sociedade cartaginesa contemporânea de
Tertuliano63; o outro, de caráter antropológico,
relaciona-se com a dificuldade que o filósofo tem de
integrar a sexualidade quer no horizonte da criação,
quer na experiência da espiritualidade, inerente a
toda prática cristã64. Para o cartaginês, o cuidado do
porte externo deve salvaguardar a qualidade interna
da alma, a tal ponto que temos dificuldade em
aceitar que o interno – o valor da virgindade e a
retidão do desejo – seja superior ou possa valer-se por
si próprio, independentemente da postura externa.
Todo o sentido dessa exortação ao pudor
reside, de fato, na prevenção do desejo libidinoso,
pessoal e alheio. A contribuição positiva do texto de
Tertuliano parece residir no fato de afirmar que o ser
humano, homem e mulher, não está, por natureza,
vocacionado à posse desmedida do outro por meio do
desejo65. Contudo, uma vez mais é por via negativa
que o filósofo exorta à prática da virtude. É o temor
que leva ao estado de alerta, à permanente vigília
sobre a conduta, porque o temor conduz à precaução.
Esta, por sua vez, impele ao rigor na prática da
virtude66. O temor que leva ao pudor há de exercer-se
em benefício próprio, uma vez que o prazer desmedido
do corpo leva ao desejo de possuir, e alheio, uma vez
que a imagem do corpo feminino constitui um perigo
para o outro67. Essa responsabilidade na condenação
do outro é punida como cumplicidade e, portanto,
deve ser temida. Nesse contexto, a referência feita ao
mandatum novum é pouco convincente, já que o autor
a remete para o domínio próprio, reduzindo o amor
de benevolência a uma visão estreita da justiça68.
Nesse sentido, o apelo de Tertuliano ao pudor
feminino parece mais um apelo de misericórdia
sobre a fragilidade masculina no domínio da
percepção e do desejo do que uma exortação
reveladora de um interesse imparcial pelo destino
final das mulheres69.
Tertuliano considera a beleza um privilégio da

66
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

mulher – divinae plasticae accesio70. Contudo, nela reside,


simultaneamente, sua temível arma de fogo. Uma vez
que seu brilho é acidental frente à conquista da
verdadeira vida, onde quer que exista o pudor pode
dispensar-se a beleza, porque esta só diz respeito à
luxúria do corpo71. De fato, a proposta antropológica
de Tertuliano é clara: eritis sicut angeli, em substituição
ao convite da serpente72. Dissociando a beleza corporal
e o pudor, emerge uma imagem desfigurada da
mulher73. Projetando a beleza para um mundo de
seres puramente espirituais, reflexo e ideal de
perfeição humana, rejeita o valor da diferença
sexual74. Confundindo humildade com humilhação,
glória humana com o resplendor da imagem de Deus
no corpo feminino pela obtenção, que se há de refletir
na indumentária, de uma figura harmônica, em que
espírito e corpo confluam na mais feliz consonância,
Tertuliano descreve uma trajetória do pudor pouco
atraente. O resultado final é a emergência de um ideal
da condição feminina que não pode deixar de trazer à
memória figuras do imaginário infantil, tipicamente
conotadas com o infortúnio, de que a famosa Gata
Borralheira é paradigma. O filósofo cartaginês usa um
modelo que lhe é mais próximo – a carne dilacerada
de Cristo padecente –, para mostrar que esse é o
modelo a seguir pelo cristão no trato com o próprio
corpo75. Ainda que o autor – profetizando sobre nosso
imaginário – afirme não pretender, com essa
exortação, que as mulheres andem desalinhadas,
sujas, vestidas de modo grosseiro e selvagem, a
verdade é que dificilmente poderiam fazer outra coisa
as que quisessem assumir as indicações concretas
divulgadas em De Cultu Feminarum76. De fato, está
contido no agrado de Deus todo um conjunto de
proibições: pintar o rosto, os cabelos e os olhos, já que
assim manifestam o desagrado para com os dons do
Artífice divino. De que modo respeitarão a lei divina
se não respeitam os traços divinos na matéria, no rosto
de cada uma?77
Nesse opúsculo há ainda tempo para referir
um conjunto de argumentos que se prende com a
função social da mulher. Com efeito, são as mulheres
pagãs que se dirigem aos lugares públicos. A mulher
cristã deve ponderar muito bem suas saídas78, já que sair
de casa é expor-se ao olhar dos outros. E uma vez que as
saídas devidas são ou por motivos religiosos ou de
caridade, elas não necessitam do luxo; antes exigem a
sobriedade. Mas o argumento que parece justificar e
lançar alguma luz sobre esse rigorismo e extremado

67
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

cuidado pela salvação parece ocultar-se entre as últimas


linhas do texto: é necessário preparar-se para suportar a
severidade e a violência dos acontecimentos,
enfrentando, a cada hora e em cada instante, os sinais
dos tempos e a proximidade da morte79. Importa ter
presente a recomendação do Apóstolo dos gentios: o
tempo está próximo – nos sumus in quos decucurrerunt fines
saeculorum80.
O que causa uma certa perplexidade na leitura
desse opúsculo é o divergente ponto de partida da
argumentação presente no primeiro e no segundo livro
de De Cultu Feminarum. No livro primeiro, a posição de
Tertuliano é claramente negativa e incompatível com
uma metafísica cristã da criação material e, portanto,
da sexualidade. No segundo, o autor afirma a
positividade do pudor como valor que preserva a
excelência da mulher, templo do espírito santo, cujo
ideal de perfeição é a paternidade de um Deus de que
seu corpo é morada81. Se a mulher é, em De cultu
feminarum I, ianua diaboli, já no livro segundo o pudor
surge como o valor – quase material, porque necessita
de uma comprovação factual, fisicamente visível – que
revela a qualidade da alma como habitáculo do
divino. A pudicitia é a qualidade dos corpos que
franqueia o acesso aos valores espirituais. A
intimidade, que Tertuliano reconhece como
característica essencial do núcleo pessoal, direcionada
à posse de bens eternos, depende, se não
exclusivamente, pelo menos de modo taxativo, da
administração dos bens materiais e de seu uso
mesurado sobre o corpo do homem ou da mulher. A
pudicitia, valor que se refere ao resguardo do corpo, é
portal de mediação indispensável à obtenção de uma
qualidade espiritual, própria da vida depois da morte
– a castidade, em que a atração sexual será anulada,
porque a prática do amor anulará a mediação do sexo.
Se a concepção feminina de Tertuliano não é
particularmente atraente, ela manifesta, todavia, a
convicção de que o núcleo pessoal se configura pela
intimidade. Ainda que esse conceito não esteja
claramente balizado pelo autor, ele aporta-nos a
consciência clara da relação entre um processo de
maturação físico e biológico e o desenvolvimento da
percepção da intimidade, capaz de permitir um
acréscimo de intensidade psicológica e afetiva82.
Esta, por sua vez, comporta características
específicas tanto no âmbito das relações
intersubjetivas como no das relações matrimoniais,
dimensões que Tertuliano não logra desenvolver.
A maturidade do amor só pode alcançar-se,

68
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

para o cartaginês, na relação com Deus. Por isso


Tertuliano descreve com traços firmes o ideal de
uma estranha mulher, que diz ser a cristã83. Nesse
processo, todas as mediações devem ser deixadas de
lado, em particular aquelas que se relacionam com a
sexualidade. Contudo, tal dimensão pessoal está
irremediavelmente submersa na região das trevas.
Assim, se por um lado são compreensíveis os fortes
apelos do filósofo de Cartago, reveladores de uma
sensibilidade profunda, de difícil gestão ante a
dimensãofenomênica, extremamente agressiva, das
circunstâncias, por outro não é possível deixar de
verificar que uma proposta de perfeição fundada
num conjunto de negações é avessa à
inteligibilidade do cristianismo. Com efeito, a Nova
Aliança centra-se na perfeita e harmônica
completude entre a figura de Cristo, Homem-Deus,
e a Mulher Vestida de Sol (Apóc.12,1): uma versão
negativa da corporeidade não pode sustentar-se
numa metafísica que defende, contra todas as
gnoses, o resplendor e a positividade da matéria.

Notas

D. INNERARITY , A Filosofia como uma das Belas Artes, Teorema,


Lisboa, 1995, p. 87.
TERTULIANO , De Cultu Feminarum [DCF]. Seguimos a edição do
corpus Agobardinum , reproduzida em Sources Chrétiennes, 173.
Texto, trad. Comentário de Marie TURCAU . Cerf, Paris, 1971,
pp. 42-171. Na Introdução pode-se ler o estado da discussão
sobre a composição do texto crítico. Turcau opta por
considerá-lo um único tratado, dividido em dois livros (I De
Habitu muliebri; II De Cultu Feminarum ), e atribui a composição
da obra ao período da evolução de Tertuliano antes de sua
passagem ao montanismo [Existe uma tradução portuguesa:
Tertuliano, A moda feminina, trad. Fernando Melro e João
Maia, ed. Verbo, Lisboa, 1974. Inclui também a tradução de De
Sptactaculis].
O enquadramento histórico desta questão – o
fundamento antropológico da pudicitia, integrado numa
hermenêuticadadiferenciaçãosexual – obriga ao confronto
com as diferentes versões do problema, culturalmente
disponíveis a Tertuliano, nos alvores do século III. Nessa
abordagem, assistiremos ao diálogo intelectual do cartaginês,
na esteira dos primeiros que procuraram inteligibilidade
para as teses inerentes à nova religio, inseparável de uma
reflexão sobre o Livro do Geneses. Como critério de destrinça
sobre a autoridade dos mitos, é útil recordar a dimensão
funda dessa noção, tal como no-la propõe, no seu contexto
próprio, Ricoeur: “Le mythe est autre chose qu’une explication du
monde, de l’histoire et de la destinée; il exprime, en terme de monde, voire
d’outre monde ou le second monde, la compréhension que l’homme prend de
lui-même par rapport au fondament et à la limite de son existence (…). Il
exprime, dans un langage objectif le sens que l’homme prend de sa
dépendance à l’égard de cela qui se tient à la limite et à l’origine de son

69
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

monde” (P. RICOEUR, Le Conflit des Interprétations, Paris, Seuil,


1969, p. 383).
Cf. “Hermaphroditus”. Danamberg-Saglio, Dictionnaire
des antiquités grecques et romaines [DAGR], III-1, pp.
135-139 [http://dagr. univ-
tlse2.fr/sdx/dagr/index.xsp: acessado em
24/03/2009].
Cf. PLATÃO, Banquete, 186c-193d.
HESÍODO , Les Travaux et les Jours, trad. P. Mazon, Paris,Belles-
Lettres,19862, v. 60 e ss.
Ibid., vv. 80-82.
8 Ibid., vv. 90-100.
Referindo-se à peculiar situação da mulher, sobretudo
em Atenas, P. A. GRAMAGLIA escreve: “Già alla nascita le
bambine ritenute di troppo non erano riconosciute dal padre e venienano
esposte molto più facilmente che non imaschi; chi le raccoglieva, le allevava
in genere come etere e come cortigiane”, Tertulliano. De Virginibus
Velandis. La condizione femminile nelle prime comunità cristiane. Borla,
Roma, 1984, p. 8, n. 3.
O estudo de G. DELLING disponibiliza um conjunto de
dados, completo e fundamentado, sobre a origem da
diferenciação sexual segundo a mitologia pagã, a tradição
judaica e o cristianismo (cf. Geschlechter, Reallexikhon für
Antike und Christentum , 10 [1978], pp. 780-786).
Cf. FÍLON DE ALEXANDRIA , De Opificio Mundi , §134; §153
(Introd., trad. e notas R. ARNALDEZ, Paris, Cerf, 1961).
Cf. P. GAMAGLIA , op. cit. , pp. 28-29, n. 13, onde, por
comparação com o direito romano, já de si bastante
desfavorável para a condição feminina, mesmo na época
imperial, relata a especial dureza da lei judaica nas penas
impostas às mulheres e nas formas de execução.
Cf. FÍLON DE ALEXANDRIA , Legum Allegoriae , II, 34-38
(Introd., trad. e notas MONDÉSERT, Paris, Cerf, 1962).
Comentando o texto de Gên .
2.22, Fílon afirma que o nome exato e conveniente para a
sensibilidade é “mulher”, uma vez que ela foi feita do sono
de Adão, isto é, de uma outra dimensão alheia, extrínseca e
diversa à da racionalidade, cujo uso, enquanto dormia,
naturalmente suspendera.
O édito de Sétimo Severo que, no ano 202, proíbe a
conversão ao cristianismo e ao judaísmo e a violenta
perseguição de Caracala no ano 212 (Nouvelle Histoire de
l’fíglise, I [dir. R. AUBERT], Paris, Seuil, 1963, pp. 174-176).
Um estudo detalhadoda concepçãojudaica do feminino e de
sua peculiar influência em Tertuliano pode-se ler em P.
GRAMAGLIA , Tertuliano. De Virginibus Velandis. La condizione
femminile nelle prime comunità cristiane. Borla, Roma, 1984.
Cf. NouvelleHistoire... ,pp.184-190.
17 Cf. DCF, I,1,10.
DCF , I, 1, 2: “Vivit sententia Dei super sexum istum in hoc saeculo: vivat et
reatus necesse est.”
É uma constante desse pensador a preponderânciado
exterior sobre o interior, de tal modo que não pode haver
retidão de alma sem que, quase com razão de
anterioridade, ela se manifeste no corpo (cf. DCF, II, 9, 8;
II, 12, 3; II, 13, 2).
20 Cf. DCF, I, 1, 2.

70
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

A tese será objeto de atenção particular em Ad Uxorem , I. A


instituição do matrimônio, sem dúvida de origem divina,
é indispensável à ordem da criação (cf. Gên . 1, 28 e 2, 24).
Mas se trata da opção por um mal menor, de uma
concessão, necessária mas deplorável, aos mais vis
instintos do homem, de acordo com a leitura
descontextualizada que Tertuliano faz de 1 Cor. 7. O
matrimônio não é um bem em sentido pleno, uma vez
que é apenas permitido por Deus e não obrigatório.
Nesse caso, trata-se de um bem de mediação, claramente
instrumental, e, no entender do autor, de um bem
estabelecido por referência a uma falha ou queda (cf. Ad
Uxorem , I, 3-4). Como faz notar P. GRAMAGLIA, a ideia de
uma incompatibilidade entre a santidade e o exercício da
sexualidade tem sua matriz cultural num conjunto de
elementos inerentes às mundividências estoica e hebraica
(cf. Tertuliano..., pp. 105-107, n. 18-20).
22 Cf. DCF, I, 2, 1.
Esse texto torna imediatamente presente à memória o
conteúdo de De Opificio Mundi, § 156, em que Fílon afirma
que a mulher do primeiro homem, sem reflexão e com
base num juízo instável e superficial, consentiu em comer
do fruto da árvore proibida. Como a união sexual entre o
macho e a fêmea se deu depois desse ato, ela tem
necessariamente como guia o prazer: por ele se realizam a
fecundação e a procriação, razão pela qual o prazer é a
primeira afinidade entre os seres gerados (cf. De Opif.,
§161).
O texto padece de uma certa ambiguidadequanto ao sentido
– gênero ou dif eren ça esp ecíf ica? – do t erm o “h o m inis”.
Co n t u do, uma inferência possível é a que afirmaria que
apenas o homem-varão teria sido criado à imagem de Deus.
A ser assim, a mulher teria sido criada à imagem do varão,
interpretação que permite um universo de sentidos
polimorfo, quase caleidoscópico. Nesse caso, sua dependência
em relação ao homem seria natural, mas Tertuliano não nos
autoriza semelhante dedução, uma vez que afirma que tal
situação é decorrente da queda e, portanto, de um vício da
natureza (cf. DCF, II, 8,1). Nessa medida, a pudicitia é uma
qualidade que se exige a ambos. Em DCF, II, 8, 2, o autor tece
algumas críticas à falta de gravidade que revela o homem
quando cuida excessivamente o próprio corpo: “barbam
acrius caedere, intervellere, circumradere, capillum disponere etiam
colorare, canitiem primam quamquam subduceretotius corporis lanuginem
pigmento quoque muliebri distringuere… ”. Para um apuramento
crítico do vocabulário de Tertuliano, ver R. BRAUM , Deus
Christianorum. Recherches sur le vocabulaire doctrinal de Tertullien,
Paris, 1962.
Cf. DCF , I, 1: A mulher sensata deve cobrir a sua vergonha,
chorar a sua condição e redimir-se de ter sido a causa da
perdição do gênero humano de modo particular procurando
que a sua atitude externa seja reveladora dessa condição
infeliz. E acrescenta o autor: “Propter tuum meritum, id est morte,
etiam filius Deimorihabuit:et adornari tibimentem est super pelliceas tuas
tunicas?”
De acordo com o relato bíblico,o conhecimentodo bem e
do mal, inerente à desobediência original, leva Adão e Eva
a tomar consciência da nudez, recorrendo aos elementos
imediatos que a natureza lhes proporcionava para se
cobrirem. Deus, misericordiosamente, tece para eles
túnicas de pele (cf. Gên , 3, 21). Que sentido faria, escreve
Tertuliano, enriquecer e valorizar as vestes femininas,
que são, afinal, a manifestação de tão misérrima condição

71
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

(cf. DCF, I, 2)?


O cuidado das vestes com o fim de evidenciara beleza é
entendido em si mesmo como prostituição e lenocínio (cf.
DCF, II, 9,4).
Cf. DCF II, 10, 5: Odiscernimento do programadivino para
o uso conveniente e justo das realidades criadas é a pedra
de toque da sabedoria. Contudo, Tertuliano não confere
nesses textos outro critério para além do dado fenomênico
do cuidado das vestes – que, encobrindo a verdade da
miséria com a aparência da beleza, atrai o homem como
ímã irresitível do desejo concupiscente – e da certeza da
proximidade de um final dos tempos.
DCF , I, 1, 3. Cf. I, 2, 1; II, 10, 1-2: Os anjos revelaram saberes
ocultos, como são o da extração dos minérios e,
concretamente, do ouro, o conhecimento das propriedades
das plantas, a força dos encantamentos e a interpretação
dos astros. Tertuliano estabelece uma especial relação entre
as forças do mal e estes níveis de realidade: o trabalho das
minas, a exploração dos recursos das plantas e a astrologia.
No primeiro caso, a condenação de morte de escravos e,
posteriormente, de cristãos, mediante a realização desse
tipo de trabalhos, tornava-os especialmente indignos (DCF,
I, 5, 1-2); no segundo, Tertuliano aduz um argumento que,
sendo dificilmente conciliável com uma metafísica da
criação, não deixa de ser curioso: o trabalho artificial de
tinturaria – tanto no caso dos tecidos como no dos próprios
cabelos – contraria a intenção natural do Criador. Supõe,
portanto, uma rejeição da natureza e do plano de Deus que,
se quisesse obter tecidos de lã policromada, teria
diversificado a cor dos elementos originários (assim,
poderia ter criado ovelhas de várias cores, mas não o fez).
Do mesmo modo, tarefas como a pintura dos cabelos,
tendo em vista uma certa metamorfose do corpo, só podem
ter origem no Princípio do Mal, fonte de toda a
metamorfose do espírito (DCF, II, 5, 3-4: “Quod nascitur opus Dei
est. Ergo quod infingtur diaboli negotium est”). Curiosa é a crítica
do autor ao costume de pintar o cabelo, que interpreta como
uma revolta feminina sobre o desígnio divino em relação à
nação de origem. Tais atos seriam conotados com um desejo
de deserção da pátria e da religião (cf. DCF, II, 6,1). Por
último, a magia e a astrologia, ciências ensinadas pelos
anjos perversos (DCF, I, 2,2), eram artes especialmente
conotadas com as forças do mal e, portanto,punidas por lei
(cf. GRAMAGLLIA, Tertuliano..., sobre a gravidade das
penas para as mulheres surpreendidas em delito de
magia, p.49).
Cf. DCF, I, 3.
31 Cf. DCF, I, 3-4.
Cf. DCF,I,4.
DCF , I, 4: “Certi erant omnem et gloriam et ambitionem et affectionem per
carnem placendi Deo displicere”.
Tertuliano define a beleza do corpo como atributo
natural da mulher, mas não explicita em que consiste essa
pulcritude. Assim, cabe a possibilidade de que o autor
identifique a beleza com essa capacidade de atrair o
homem pelo corpo que, mais do que uma condição
natural da mulher, é uma característica própria do
modelo masculino de percepção.
DCF , I, 2, 5: “Nam et vobis eadem tunc substantia angelica repromissa,
idem sexus qui et viris, eadem iudicandi dignitatem pollicetur”.
Essa afirmação de Tertuliano, uma vez mais, tem suporte
escriturístico. Em causa está a interpretação de Mc.12, 25,

72
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

em que se afirma, interpretando o caso da sucessiva morte


dos maridos, uma vida ulterior na qual “sereis todos
semelhantes aos anjos”.
37. Cf. DC F , I , 2 , 5 : “N isi e rgo hic ia m pra e dica ve rimus res eo rum
praedam nandum quas in illis tunc damnaturi sumus, illi potius nos
iudicabunt atque damnabunt”. O combate é pelos anjos,
prevaricando, ou contra eles, praticando a lei divina.
Tertuliano não consegue encontrar formas de mediação,
concretamente explorando o modelo de relação entre Deus
e o homem, instaurado desde a criação.
38. Cf. Libro di Enoch (P. SACCHI, Apocrifi dell’Antico Testamento,
trad. L. Fusella, Torino, 1981). Sobre o Livro de Enoch na
tradição cristã, v. pp. 429-430.
39 Cf. Enoch, I, 1, pp. 468-470.
40 Enoch, I, 2, 6.
41 Cf. Enoch, 19, 1-2.
42 Cf. Enoch, 10, 16-17.
43 Cf. Enoch, 12, 4.
44 Cf. Enoch, 15, 3, 9-10.
Cf. DCF I, 4; II, 10, 4. Para além desse apócrifo,
encontramos referências sobretudo a passagens
veterotestamentárias (Isaías; Thamar, no livro II ), a
algumas passagens evangélicas (p. ex., Mt, 15, 5, em DCF,
II, 13, 2) e a alguns textos paulinos referentes à escatologia
ou à condição feminina, numa hermenêutica que não
permite uma compreensão harmônica do corpus paulino.
Com efeito, em Cartago,a concepçãode uma divindade
andrógena se tinha enraizado entre os cultos pagãos (cf.
DAGR, pp. 136-137).
Cf. DCF I, 4, 1-2. Para Tertuliano, o que permanece
incontestável é a impossibilidade de um olhar inocente,
à margem da concupiscência, assumindo a condição
desordenada da percepção como parte da dimensão
fenomênica do real.
C f . D C F I, 4 , 2 .
Cf. DCF II, 1, 1. A salvação é indissociável,para os homens
como para as mulheres, da exibição do pudor, expressão que
por ser contraditória é, de si mesma, sobejamente
eloquente. Tertuliano considera a castidade guardiã da
santidade que reside na morada interior do cristão. O
pudor é a porta da salvação, tal como a mulher é a porta
do diabo. Assim, a santidade depende em boa parte do
pudor. O que parece estar na origem dessa tese é uma
incapacidade de entender a integração do corpo e do
espírito, em perfeita harmonia na dinâmica da natureza
humana, um e outro a necessitar de uma permanente
integração no percurso de santificação (cf. DCF, II, 1,1).
Dessa perspectiva, Tertuliano entra em dissonância com
a dimensão mais profunda de toda a metafísica cristã,
para a qual o discurso de Paulo é clarividente: a santidade
identifica-se pela caridade (cf. 1 Cor 13,1-7). De algum
modo, Tertuliano se contradiz, pois também ele sabe que
assim é. Se a salvação dependesse do pudor, o martírio
das virgens defloradas ou desnudadas, como era costume
entre os romanos, seria, em termos escatológicos, o mais
absoluto fracasso.
C f . D C F I, 5, 1.
51 Cf. DCF I, 5, 1-2.
DCF I, 6, 1-2. A superioridadedos materiais preciosos vem
a ser justificada, em I, 7, 1, de raritate et peregrinate, por serem

73
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

raros e exóticos. Mas Tertuliano contorna o argumento,


mostrando a relatividade do critério: onde não sejam raros
nem exóticos, seu valor depende, uma vez mais, do uso que
deles se faça.
C f . D C F I, 5 , 2 .
DCF I, 8, 12: “Non placet Deus quod non ipse producit; nisi si non potuit
purpureas et aerinas oves nasci iubere. Si potuit ergo iam noluit; quod Deus
noluit utique non licet fingi”.
Cf. DCF I, 8, 1-3. Essa concepção dualista da realidade é
incompossível com uma metafísica cristã, cuja
especificidade é o fato de se compor em compasso ternário,
partindo do princípio de que toda realidade criada, à
margem da qual nada é, é boa, mesmo excelente. De fato,
assim foi contemplada por seu Autor desde o Princípio e,
se assim não fosse, seria efeito de um Deus deficiente.
Cf. I, 9, 1. Esse é o sabor de um texto como De Patientia .
Igualmente, em De fuga in Persecutiones, a tese central é a da
sua ilicitude. Por último, a polêmica em torno do casamento
em segundas núpicas, presente em textos como De
Exhortationem ou Ad Uxorem , identifica este entre os
argumentos contra a sua moralidade.
É difícil dissociar essa tese determinista das influências
estoicas e cínicas que terá sofrido o pensamento de
Tertuliano. Igualmente, é difícil dissociar esses escritos
do cartaginês da situação histórica real das primitivas
comunidades cristãs, contemporâneas do autor,
permanentemente ameaçadas de perseguição e de
morte.
Cf. DCFI, 3.
DCF I, 9, 3: “Nam tanto maior fit consupiscentia quanto magno fecit
quod concupiscit”.
Inversamente, uma metafísica positiva da criação, para
além do olhar contemplativo de um Deus que se recreia
no final do labor criativo (Gên . 1, 31), considera, ainda, o
resplendor da matéria redimida e destinada a edificar, no
tempo, a Jerusalém celeste.
DCF II, 1, 3. Tertuliano não esclarece as propriedades do
corpo e da alma na constituição da pessoa humana. Tal
indefinição é responsável por uma certa equivocidade,
inerente à sua proposta antropológica. Assim, em De Carne
Christi afirma-se que todo o existente é corpo (corpus sui
generis). Se Deus existe, então é corpo, etsi spiritus est (Adversus
Praxeas, 7), ainda que corpus possa significar, aqui, substantia.
Por outra parte, atribui à alma, substância espiritual,
propriedades corpóreas (cf. De Anima, 7-9). Essa
diversidade de sentidos, eventualmente espelho da
multiplicidade indiferenciada de autoridades em que o
autor se sustenta, reflete-se diretamente sobre a concepção
de pudicitia.
Cf. DCF , II, 1, 2; II, 13, 1. A castidade perfeita não exige
apenas que se queira não ser desejada, mas inclui o desejo
de ser desprezada.
O próprio autor refere, em tom de certa
condescendência, as dificuldades que a conversão ao
cristianismo poderia supor na mudança de costumes
por parte das mulheres. Cf. DCF II,9, 4, em que refere,
sobretudo, o caso de posição social anterior à conversão
exigir uma administração prudente desses conselhos. De
algum modo, fica-nos a convicção de que, na mente do
autor, a conversão exigiria uma mudança de estado. Esta
dever-se-ia evidenciar pela extrema austeridade no uso
das vestes e adornos, inclusive como caminho de

74
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

purificação do abuso anteriormente praticado (cf. DCF II,


9, 7).
DCF II, 2, 2: “Debemus quidem ita sancte et tota fidei substantia incedere
ut confisae et securae simus de conscientia nostra optantes perserverare id in
nobis, non tamen praesumentes”.
DCF II, 2, 1: “Perfectae autem id est christianae pudicitiae appetitionem
sui non tantum non appetendam sed etiam exsecrandam vobis sciat”.
Cf. DCF II, 2, 2, em que se afirma que o temor é o
fundamento da salvação.
Cf. DCF II, 2, 4. Nesse caso, o outro é o homem e, mais
concretamente, Tertuliano, o homem que escreve. Uma análise
metalinguística desse texto permite antever o inquieto autor
que, tendo construído um universo onde a matéria e a
percepção sensível têm uma conotação demasiado
negativa, vê-se a braços com a dificuldade de alcançar a
paz eterna, num mundo onde a imodéstia e a impudicitia (a
idolatria da imagem e do espetáculo) emergem por toda
parte. Se acrescentarmos a esse conjunto de dificuldades
uma certa superstição de origem milenarista, teremos uma
noção mais completa da angústia de Tertuliano (cf. DCF II,
9, 8).
DCF II, 2, 4: “Perit enim ille simul ut formam concupierit et admisit iam
in animo quod concupiit (…)”.
DCF II, 2, 4 . Tertulianoconfirma, assim, uma das teses da
psicologia contemporânea: a percepção masculina detém-
se, de imediato (in appetendo: DCF II, 2, 1), na imagem
corpórea, na dimensão externa do que capta, enquanto a
feminina fixa-se peculiarmente na percepção imediata da
pessoa como totalidade, conjunto corpo-espírito. Na
verdade, interroga-se o autor, em que concorre o adorno
dos cabelos para a salvação? “Não podeis deixar em paz os
vossos cabelos que ora vemos atados, ora soltos, ora
levantados, ora caindo?” (Cf. DCF, II, 7, 1). Por outra parte,
revela-nos, também, a convicção de que, no relacionamen-
to social mais elementar, está implicada a percepção da
diferença sexual e, portanto, a mútua atracção
concupiscente (cf. DCF II, 8, 1-2).
Cf. D C F II, 2, 6.
Cf. DCF II, 3, 1.72 Cf. Gen . 1, 5.
DCF II, 3, 1: “Sufficit quod angelis Dei non est necessaria”. Tertuliano
projeta uma visão etérea da mulher, de modo a coincidir, no
tempo, com a concepção que tem da ressurreição final: uma
visão espiritualizada, em que as qualidades morais vêm a
transformar-se numa proposta mística. No plano religioso, de
acordo com essa proposta, a sexualidade surge desvinculada
da natureza humana.
Cf. D C F II, 3, 2.
Uma vez mais é necessáriocontextualizare ter em conta
que a realidade dos homicídios coletivos sobre os cristãos
é vivida por Tertuliano de modo muito próximo.
Contudo, nesse texto o autor assume a realidade cristã
pela via negativa, fixando-se na condição sofrida da
redenção mais do que nos elementos disponíveis para
uma reinterpretação da realidade circundante.
DC F II, 5, 1: “N on supergrediendum ultra quam quod simplices et
ssufficientes munditiae concupiscunt, ultra quam Deo placere”. A
recomendação reduz-se à expressão mais simples: mais do
que ao marido, importa agradar a Deus, puro espírito.
DCF II,5,5.
DCF II, 11, 1: “Propter istos enim conventus proferuntur aut ut luxuria
negotietur aut gloria insolescat. Vobis, autem nulla procedendi causa non

75
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

tetrica”.
Cf. DCF II, 13, 5.
DCF II, 9, 8. Tertulianoidentificaoseu tempo com o Final
da História. 81 Cf. DCF II, 1, 1; 1, 4.
Cf. De Virginibus Velandi 11, 1-4. Tertuliano refere que a
mulher há de praticar o dever de se cobrir, não só nas
cerimônias religiosas, mas de modo habitual, uma vez
que esse costume não releva do domínio religioso mas da
condição humana degradada. Contudo, há de velar seu
rosto apenas a partir do momento em que começa a
sentir-se mulher, o que significa uma percepção clara de
sua sexualidade feminina. Saindo do estado de jovem, a
virgem dever suportar o novo fenômeno fisiológico que
indica a passagem para uma novidade da vida.
Tertuliano tem clara convicção de que o crescimento
biofísico do homem e da mulher é acompanhado por
uma progressiva tomada de consciência da intimidade e,
portanto, exige um diferente modo de relacionamento
entre ambos os sexos, que considera dever manifestar-se
externamente, pela cobertura do rosto (v. também DCF
II, 9, 1-4).
DCF II, 13, 7: “(…) Curvai submissas a cabeça diante dos
vossos maridos e estareis suficientemente embelezadas;
ocupai as mãos em fiar e havereis de agradar mais do que o
ouro. Vesti-vos com a seda da honestidade, com o linho da
santidade, com a púrpura da castidade. Desse modo
ataviadas, tereis Deus por amante”.

76
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

EX HOMINE UNO:
UMA LEITURA DA CONDIÇÃO
FEMININA
EM AGOSTINHO DE HIPONA
PAULA OLIVEIRA E SILVA
(Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa)

A posição de Sto. Agostinho sobre a condição


feminina encontra-sedesenvolvida essencialmente nos
Comentários literais ao Livro do Gênese1, redigidos entre
os anos 388 e 415 com o objetivo primeiro de desmontar
as teses maniqueístas sobre a natureza do Princípio.
Contudo, as intuições fundamentais neles explanadas
encontram-se já delineadas nos Livros X a XIII das
Confissões2. Nessa obra, o filósofo disponibiliza as
coordenadas essenciais da sua concepção do tempo e
da memória, as quais lhe permitirão defender a
condição histórica da razão humana, nomeadamente
enquanto produtora de discurso e capaz de
interpretação. Ao mesmo tempo, expõe uma sinopse
das interrogações e respostas que interpelam
qualquer leitor do relato bíblico das origens. Com
efeito, nas Confissões, a versão agostiniana sobre a
natureza da mulher parece afirmar-se taxativamente
no sentido de uma descarada misoginia. No Livro XIII,
lê-se: “Assim como na alma há uma parte que impera
pela reflexão e outra que se submete para obedecer,
assim também a mulher foi criada, quanto ao corpo,
para o homem. Ela, possuindo uma alma de igual
natureza e de igual inteligência, está, quanto ao sexo,
dependente do sexo masculino (…). Essas são as coisas
que contemplamos e que, tomadas de per si, são belas.
No seu conjunto são ainda mais belas”3. Uma versão
simplista e descontextualizada desta e de outras
passagens similares, existentes no conjunto da obra
de Agostinho, obrigar-nos-iam a comprovar nele mais
um testemunho da negatividade que a tradição
ocidental parece atribuir à concepção patrística do
feminino, bem como a ajuizar da suscetibilidade de
uma concepção de divindade que, na sua onipotência
– fazedora dos seres e legisladora universal –,
discrimina ab ovo a natureza humana pelo sexo. Porém,
uma leitura mais diligente e apurada das razões de

77
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Agostinho permite alargar esse horizonte


hermenêutico e obter, para tais afirmações, a
plenitude de sentido em que se inscrevem.

1.A condição feminina no Princípio

Uma análise da condição feminina baseada


na interpretação agostiniana do Livro do Gênese
obriga, antes de mais nada, a uma reflexão de caráter
metodológico, a fim de verificar qual a viabilidade
de uma proposta de análise literal do relato
genesíaco. A tradição alexandrina propusera uma
leitura alegórica que parecia adequar-se
magnificamente ao caráter místico-poético desse
texto. Agostinho tentou-a, mas comprovou que a
metáfora não fixa a interpretação, envolvendo-a em
obscuridade. No esforço por tornar clara a
amplitude de sentido contida numa metafísica da
criação, Agostinho ensaia um comentário histórico-
literal4. Contudo, deixa constância do exercício de
liberdade em que consiste toda interpretação, ao
escrever que não faz apanágio da sua própria, ela
mesma polimorfa5. De fato, várias hermenêuticas
são compossíveis, ainda que Agostinho esteja
convicto do caráter abrangente de sua
interpretação6.
A proposta de um comentário literal da
versão veterotestamentária do mito das origens parte
da convicção da historicidade do próprio texto.
Contudo, essa não é, para Agostinho, uma
característica peculiar do discurso bíblico, mas uma
condição de toda palavra, seja qual for sua forma de
transmissão. Por isso dificilmente se poderá entender
o sentido da exposição agostiniana sobre o Gênese
prescindindo de sua reflexão sobre a categoria
metafísica do tempo enquanto afecção de todas as
formas de existência. Uma hermenêutica que se exerça
sobre expressões como “In principio fecit Deus caelum et terram
“ ou “ non est bonum esse hominem solum: faciamus ei adiutorium
secundum ipsum“ supõe a possibilidade de percepcionar o
tempo da narrativa.
Este, como o da própria história, está
cadenciado por três advérbios de tempo: tunc, nunc,
usque ad7. Por isso, todo texto que se reporte à
consideração do Princípio assume a historicidade
da própria atividade reflexiva como condição de
possibilidade do discurso.

78
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

De fato, para Agostinho a razão é aquela


faculdade que opera a distinção entre o ser humano e
os quadrúpedes, sendo a atividade da mente aquela
pela qual lhes é superior na hierarquia dos seres.
Contudo, para o filósofo a dimensão mais funda da
razão coincide com a percepção da condição temporal
dela. Por isso, na psicologia agostiniana, a memória
assume características peculiares entre as funções da
mente. Com efeito, ela pode recordar muitas coisas, e
sua atividade admite diversos graus de interiorização,
mas seu domínio mais penetrante transcende à
apreensão da realidade sensível, registrada pela
fantasia, supera o terreno psicológico do
autoconhecimento e da apreensão da totalidade da
existência como conjunto de experiências realizadas
no decurso do tempo e ascende à possibilidade de
captar o próprio modo de existência como a de um ser
que, na fugacidade do múltiplo, não pode negar a
percepção da constância do uno8. Essa percepção da
persistência do ser que dá consistência à própria forma
de um ente – no caso do ser humano, a de um ser que
é, vive e pensa – denota, para Agostinho, a marca do
Princípio no íntimo da mente humana e presencia-se
na memória. Nas Confissões, ao analisar a misteriosa
natureza do tempo, escreve: “Os tempos não são
futuros nem passados, e só impropriamente se usa a
expressão:‘os tempos são três, passado, presente e
futuro’; seria talvez mais correto dizer: ‘os tempos são
três: presente do passado, presente do presente,
presente do futuro”9.
É ao recôndito da alma que o autor entrega a
percepção da continuidade da existência como
suporte de toda a experiência humana, sempre
temporalmente determinada. Essa continuidade
identifica-se com a captação do presente, pela
constância da existência inerente à experiência do
tempo, medida do movimento. Procurando superar
essa concepção, herdada da cultura antiga, o filósofo
de Hipona interroga-se sobre a medida do próprio
tempo. Ao remetê-la à eternidade, define-o como
uma certa distensão. Esta, a partir da percepção de uma
existência sempre presente e permanente, permite
narrar o passado e programar/profetizar o futuro10.
A memória, enquanto função unificadora da
tridimensionalidade do tempo, capta a própria
consistência ontológica do ser humano, adquirindo,
para Agostinho, um alcance metafísico mais do que
estritamente gnosiológico. A recordação de si como
subsistência ou permanência no tempo converge para a

79
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

percepção de Deus, cujo atributo é, por excelência, a


eternidade11. A partir dessa dimensão profunda da
memória torna-se então possível compreender a
realidade a partir do próprio Princípio de totalidade,
cuja característica é a eterna presença e subsistência. Essa
perspectiva de totalidade, caso se consiga transmitir por
palavras, seja qual for o tema sobre o qual verse, confere
ao discurso características de universalidade. Se a
realidade em causa é, agora, o texto que narra a origem
do universo, o exercício da dimensão mais funda da
memória torna-se não apenas necessário, como
potenciador do sentido da interpretação. Assim, o
comentário sobre o mito bíblico das origens levado a
cabo por Agostinho não se centra na peculiar situação
existencial do filósofo, nem se circunscreve aos
condicionamentos históricos que a envolvem, para
obter, por dedução, um sistema capaz de explicar a
facticidade do mundo. No entender de Agostinho, a
percepção da existência de “coisas que vêm a ser mas antes
não eram” mostra clamorosamente que o mundo não se
autofundamenta. Sua condição de factum impele a
mente a inquirir acerca do modo de fabricação12.
Contudo, para o filósofo, o mundo não é apenas um
artefato, caso em que, pela observação dos produtos
fabricados, revelar-se-ia a essência do Princípio
operativo. Para o hiponense, a atividade criadora é
essencialmente Verbo e por isso, na compreensão do
universo, o recurso ao dito é indispensável. A criação do
mundo segue o modelo do discurso, e sua essência
manifesta-se preferentemente pelos signos verbais,
tornando imperativo o recurso ao texto. Por isso, o
trabalho exegético é, para o filósofo, o que constitui mais
solidamente qualquer mundividência.

2 . Varão e mulher In Principio


De modo condensado mas elucidativo,
Agostinho há muito deixara claro que todo existente
depende de um princípio cuja natureza é Ser por
essência13. Criação é, no âmbito da metafísica
agostiniana, o termo específico empregado para
identificar uma peculiar atividade que consiste em
dar forma à indigência ontológica dos seres. Esta
verifica-se no fato de todos eles serem perfectíveis.
Todo ser mutável é também necessariamente
formável,escreverano Diálogo sobre o livre arbítrio.Como

80
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

nada se pode formar a si mesmo, porque nada pode


ser causa daquilo que não possui por essência,
Agostinho concluíra que toda forma de existência
contingente depende de uma Forma cuja
característica é a imutabilidade14. Essa Suprema
Existência, caracterizada por seu completo
antagonismo frente a todos os seres, recolhe-se num
termo único: eternidade. fí e permanece estável no seu
movimento15.
Agostinho foi sensível à dificuldade de
compor um texto como o Gênese, bem como à causa
das angústias de todo ensaio de interpretação. Com
efeito, trata-se do relato de uma ação
necessariamente intemporal sobre uma realidade
que, seja qual for a sua natureza e o modo como se
venha a organizar, dá-se no tempo. O projeto da
Criação é, do ponto de vista do Criador, uma
realidade plena e eterna que, de algum modo e para
além da aparente contradição, está acabada no
Princípio16. Este, entende-o Agostinho, nos Comentários
literais ao Livro Gênese, como Palavra concriadora que
ressoa eternamente em ordem à feitura da obra, sem
que isso suponha qualquer relação com a sucessão
das sílabas longas e breves, isto é, com a presença dos
seres no tempo. Essa palavra originária tem uma
natureza dinâmica, cuja mais fiel reprodução no
tempo será, porventura, a forma imperativa do
verbo latino facere: fiat17. Ela vibra numa dimensão
ontológica diferente da que corresponde à sua
pronunciação temporal, precisamente porque o
conteúdo do seu enunciado não depende de uma
necessidade divina, mas é tão-somente efeito de
uma expansão gratuita da liberalidade do
Princípio18. Nesse sentido, como o filósofo não cessa
de repetir, a criação é simultânea: no querer
operativo do Princípio tudo está, desde sempre, dito
efeito.Porém,seconsiderarmoso início do tempo,é-nos
dito que no agir primordial, quando todas as coisas
foram feitas simultaneamente, o Criador imprime
nos seres, ao criá-los, nullo intervalo, uma ordem de
conexão causal, íntima e anterior a todo movimento
que necessite de tempo para sua medição.
O tempo é, dessa perspectiva, efeito da criação
e assinala a diferença ontológica. Por outra parte, no
que se refere a seu curso, o tempo respeita a ordem da
conexão causal. Uma vez introduzida essa distinção
entre a ação simultânea da vontade criadora e a
sucessão causal da realização das criaturas no tempo,
Agostinho considera possuir a chave para a
compreensão da estranheza do hagiógrafo, quando se

81
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

trata de interpretar a passagem de Gên.1, 26, que relata


a criação do ser humano: Faciamus hominem ad imaginem
et similitudinem nostram. Aí, depoisde expor o reino sobre
o qual o homem havia de dominar (no qual não se
inclui a mulher), a narrativa enuncia o mandato da
multiplicação da espécie19. Articulando essa
passagem da narração com a tese anteriormente
exposta sobre a eternidade do Princípio e a
temporalidade do factum, Agostinho toma posição:
“Potencial e causalmente o homem foi feito então [tunc]
na obra que pertence à criação simultânea de todas as
coisas(…).Mas agora [nunc] visivelmente, nas obras que
pertencem ao curso dos tempos do mesmo modo como
[Deus] continua agora a agir”20.
A esse primeiro relato da criação do ser
humano o filósofo faz corresponder a condição
principial daquele na potência operativa do ato
criador. Assim se compreende que o autor do relato
proto-histórico sentisse necessidade de recapitular,
em Gên., 2, 8, a criação específica do ser humano,
visivelmente e no tempo. Anteriormente,
perspectivando desde o Princípio, apenas indicara o
gênero humano, evidenciando que nele se contém a
diferença entre o masculino e o feminino: só desse
modo se assemelha ao Princípio. Com efeito, o
propósito de interpretação literal obrigara o filósofo
a integrar, como característica da imagem de Deus
refletida no gênero humano, a diferenciação sexual.
Enquanto imago Dei, a Humanidade tem de integrar
a própria diferença corpórea, tal como a divindade,
absolutamente imaterial e incorpórea, reúne, na
diferença das pessoas, a unidade da substância21. O
resultado dessa interpretação é a concepção do
gênero humano não já como um universal amorfo,
mas como uma realidade dotada de uma dinâmica
intrínseca à própria diferença que nela converge e
que, na substância humana, manifesta-se, também,
corporalmente. Pertencendo à potência causal da
criação, essa dinâmica é inerente ao mandato inicial
do Princípio e há de manifestar-se igualmente na
conexão causal em ordem ao curso dos tempos.
Situado no Princípio, Verbo Eterno, o texto de Gên.1,
26 referir-se-ia, no entender de Agostinho, ao que é
perene na fundação do género humano, permitindo
concluir que, para o hiponense, a imagem e
semelhança do Princípio sempre estará recolhida na
masculinidade e feminilidade da diferença corpórea:
sem ela, o reflexo de Deus não estaria presente na
humanidade22. No que se refere ao curso dos tempos, isto

82
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

é, quanto à situação intra-histórica da humanidade e


ao mandato divino “crescei e multiplicai-vos”, inerente
à criação sucessiva, Agostinho entende que, na ordem
das causas, visivelmente, no tempo, primeiro foi feito
o ser humano–varão23. Fiel ao seu propósito de busca
do sentido histórico-literal, confrontado com a
iteração da narrativa em Gên. 2, 5-25, o filósofo
considera que aí se pretende explicar mais
diligentemente o modo como se adequa o processo da
criação causal à realidade visível. Obteríamos, assim,
dois níveis de atuação no processo da criação que
afectariam diferentemente a criação visível do ser
humano, varão e mulher. Um primeiro, potencial
causal, em que se recolhe a razão de ser (o projeto) da
própria obra. Nesse nível, eterno, a finalidade da
doação de ser ao gênero humano seria a de, para além
da infinita diferença que separa o tempo da
eternidade, revelar, de um modo simultaneamente
fiel e acessível, a própria essência do Criador como
unidade na diferença. Com essa finalidade criou um só
gênero humano, integrando nele uma diferença real:
masculino e feminino24. Num segundo nível,
retrospectivamente, frente ao passar do tempo e já
totalmente mergulhado nele, o ser humano, dotado de
razão, poderia compreender a ordem da sucessão
causal. Agostinho distingue, portanto, por referência
à dinâmica do tempo, duas dimensões do ato criador,
identificando-as pelo uso dos advérbios de tempo:
tunc, de modo invisível, causal, potencial, como se
fazem os futuros não feitos; nunc, visivelmente, como
a constituição da espécie humana é conhecida25.
Na passagem da dimensão eterna da
narrativa, recolhida na obra dos seis dias, para a
gesta histórica (a passagem da razão de criar para o
fato da criação), Agostinho encontra a característica
específica da relação do ser humano com o mundo:
ela é histórica, dá-se no curso dos tempos. Contudo,
porque as realidades criadas não contêm em si uma
razão necessária, a razão do seu sentido e do seu ser
antecede à sua presença no tempo. E porque sua
causa eficiente decorre de uma vontade eterna, a
ação de criar persiste no tempo e prossegue para além
da sucessão temporal26.
Para o filósofo de Hipona, a causa final da
criação revela-se na expressão de um mandato que
engloba o ritmo ternário do tempo, sobrepondo-se,
simultaneamente, a essa tridimensionalidade, que
só o ser humano pode apreender27. Na ordem do
discurso filosófico, essa parece ser uma justificação

83
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

capaz de fundamentar a dimensão escatológica do


universo. Com efeito, o universo contém em si esse
germe de eternidade, e se está, aqui e agora,
disponível à nossa apreciação, é porque se constitui
como realidade intermédia entre uma causa
eficiente e uma finalidade que, pelas suas
características próprias, dele se diferenciam
essencialmente. Uma vez que contém, em cada
expressão de ser, toda a virtualidade da criação
causal, ela mesma impulsiona cada um e o Todo para
a máxima expressão das suas possibilidades, seja
qual for a etapa da história em que o possamos
considerar. Dessa perspectiva, a atividade dos seres
no tempo é, afinal, a recondução de toda a
causalidade do universo a um único Princípio, Alfa
e Ômega, para o qual convergem toda a expressão de
existência e a essencial bondade de tudo o que é.
Contudo, o Princípio não coincide com o Fim,
porque a este se acresce toda a densidade ontológica
adquirida no tempo28. Assim, a multiplicidade e a
diversidade dos seres não se explicam em função de
uma causa material, mas pelo fato de nelas estar
impressa a intencionalidade de uma vontade
criadora, sendo esta essencialmente difusora de
bondade, porque quer pôr a serviço de uma
comunidade de seres sua própria felicidade, de si
mesma incompreensível e oniabarcante29. O filósofo
de Hipona estabelece nesses pressupostos a
possibilidade de uma leitura capaz de conferir mais
sentido ao próprio universo e à situação do homem
na História. Definindo como causa eficiente do
projeto criativo a iniciativa de uma vontade
expansiva de ser e inteiramente livre na sua
atividade, compreende-se como dela resulta uma
realidade essencialmente dinâmica, incoativa30, não
porque lhe falte algo, caso em que teríamos de
duvidar da consistência ontológica do Princípio,
mas porque ela tende essencialmente a um
exponencial mais denso dos modos de existência e
porque essa potência causal, condensada na creatio
simultanea, só pode realizar-se, por definição, na
própria sucessão das causas. Esta, ao instaurar a
diferença ontológica entre o Princípio e as
multíplices realidades criadas, estabelece como
afecção indissociável dessas últimas a relação entre
a eternidade, que as faz ser, e o tempo, que
caracteriza sua forma própria de existência.
Para além da autoridade do Livro Sagrado, o
ser humano também reconhece, pela autoridade da
razão, o caráter dinâmico da existência, mediante
análise do juízo teleológico. Este apresenta-se à

84
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

atividade reflexiva no enunciado do desejo universal


de felicidade: “todos os homens querem ser felizes”31. Por
sua vez, reconduzido à sua expressão mais simples,
este identifica-se com a própria intencionalidade da
vontade: querer-ser32. Na tranquilidade de Cassicíaco,
desde o início de sua reflexão filosófica, Agostinho
interrogara-se sobre a essência do ser humano e, em
diálogo com a pequena comunidade de familiares e
amigos, ou no recôndito da alma, encontra como sua
condição última e residual esse infinito e
incomensurável desejo de plenitude. Curiosamente, é
uma mulher, Mônica, quem, no Diálogo sobre a
felicidade, melhor consegue exprimir essa intuição33.
Anos mais tarde, no comentário literal ao relato proto-
histórico, seu filho, refletindo sobre a aparente
circularidade da narração, exprime a convicção de que
o conteúdo intencional do juízo teleológico, para os
primeiros homens como para seus descendentes, está
intimamente vinculado ao mandato: “crescei e
multiplicai-vos”. Na criação potencial (Gên.,1, 26), esse
mandato sucede a fundação da imagem e semelhança
divina no ser humano, varão e mulher. Por sua vez, na
narrativa da sucessão das causas (Gên.,2, 5), ele só vem
a cumprir-se depois da introdução da desordem
original34. Por isso, conclui Agostinho, o mandato da
procriação, intrinsecamente unido ao desejo de
beatitude, refere-se claramente ao curso dos tempos,
isto é, à situação intra-histórica da espécie, e não à
realização essencial da forma do ser humano, varão e
mulher. Esta, que inclui o corpo humano diferenciado
sexualmente, dá-se na relação pessoal com o
Princípio, razão eficiente e final do próprio gênero.
Respeitando seu propósito de interpretação literal, o
autor assume e reitera a criação primitiva de Adão,
que identifica com a expressão do gênero humano
dotado de mente intelectual35. Todavia, Adão é, para
Agostinho, nome de ambos, cuja missão é tornar
presente no cosmos um modo de ser inteiramente
novo e diferente frente aos outros seres que o
povoam36.
3.Um auxílio oportuno

De acordo com a interpretação agostiniana da


criação potencial, o gênero humano engloba, por
essência, a diferença real manifesta visivelmente no
corpo sexuado, e só a ela corresponde, como causa final
intra-histórica, o cumprimento da ordem ou mandato:
“crescei e multiplicai-vos”. Ao analisar o relato de Gên.,
2, 5, Agostinho centra-se na interpretação do mandato
para esclarecer, à luz da causa final, a criação da

85
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

expressão feminina do gênero. Considerada a solidão de


Adão, Agostinho empenha-se no esclarecimento da
expressão “auxilium oportunum secundum ipsum”, insistindo
até à exaustão na razão final da criação do sexo
feminino: auxiliar o ser humano na realização do fim
primordial e próprio da missão histórica do gênero. À
pergunta – “por que razão teria Deus criado, in tempore
suo, o sexo feminino?” – Agostinho reitera, por exclusão
de partes, a resposta: a geração, a fim da prole. Por um lado,
sendo a criação efeito de uma vontade livre, e não de
uma carência ontológica do Princípio, o sentido da
criação da mulher na sucessão dos tempos não pode
derivar de uma necessidade divina de
autoconhecimento. O Criador não padece de nenhuma
crise de identidade, não necessita de suas obras para se
autorrevelar, uma vez que se conhece a si mesmo na
plenitude de atividade do seu Verbo, eterno e
consubstancial. A criação do ser humano feminino não
se justifica, também, pela necessidade de o indivíduo
Adão se conhecer a si próprio: bastar-lhe-ia a visão de si
na Presença Eterna do Princípio. Mesmo considerando
sua situação histórica, vocacionada ao diálogo, a
presença de outro ser humano masculino seria,
seguramente, um auxílio oportuno. Considerando o
mandato do domínio sobre a natureza física, quer pela
razão, quer pela força de trabalho, não se vê, também, a
razão necessária da criação de um ser humano
sexualmente diferenciado. Adão pode, por si próprio,
levar a cabo a finalidade extrínseca da sua existência no
confronto com o mundo – dominar a terra. Contudo,
nenhum ser do universo criado o pode auxiliar na
realização da ordem: “crescei e multiplicai-vos”.
Dentre os que viu e nomeou, nenhum pode completar
sua indigência metafísica, a fim de justificar sua
presença no mundo e na história. A finalidade histórica
da espécie humana, impressa na totalidade do ser de
Adão, não pode cumprir-se37. Assim, ele mesmo se
encontra numa absoluta carência ontológica,
despojado de sentido. Identificando o universo, torna-
se incapaz de reconhecer o modo de relação com o
mundo que lhe permite colaborar intrinsecamente na
expansão da superabundância de ser que o rodeia.
Interpretando o relato de Gên. 2, 5, Agostinho apenas
encontra razões de conveniência para o fato de o
criador ter feito desfilar cada uma das suas obras ante
Adão, permitindo-lhe identificar cada ser pela
atribuição do nome38. Não encontra, também,
justificação racional para uma interpretação literal do
sopor do primeiro homem39. Mas para a criação da
mulher encontra uma razão necessária, que obriga o
hagiógrafo a recomeçar a narrativa: com efeito, sem a

86
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

existência do ser humano feminino, a criação estaria


incompleta e a história dos homens careceria de
sentido. A solidão de Adão, contendo a
impossibilidade radical de cumprir o fim próprio do
gênero, revelaria a irrazoabilidade da causa final,
fazendo duvidar da excelência do Princípio criador.
Sob essa luz é possível compreender o alcance
ontológico da miséria adâmica, quando verifica que
nada faz sentido sem um auxílio oportuno. Na ausência
desse último recolhe-se à mais plena indigência
metafísica, que não se refere àquele homem concreto,
mas a todo o gênero humano e, portanto, à dinâmica
da criação. A consequência de uma tal incompletude
seria a impossibilidade de acrescentar ser ao mundo
pela adesão voluntária à ordem do universo. Pela
primeira vez na poiética da criação surge a
exclamação “non est bonus”, proferida pelo próprio
fazedor e dirigida à solidão de Adão. Essa ausência de
bondade não se refere ao indivíduo nem à sua
presença no mundo, mas se esclarece plenamente,
uma vez mais, por referência à intencionalidade do
universo, em cuja hierarquia o ser humano se situa
como ponto culminante, já que só ele pode dotar de
sentido o próprio real. A exclamação “non est bonus”
segue-se à verificação de que da incompletude do
gênero, manifesta na ausência da diferença, emerge
um entrave à expansão de ser e, portanto, à essência
do ato criador. Porque para Agostinho o ser é
portador e potenciador do bem, essa solidão ante o
mundo, tornando o ser humano incapaz de
comunicar seu próprio modo de existência,
inviabiliza visceralmente todo o projeto criador.
Quando compõe esse seu comentário ao
Gênese, Agostinho tem plenamente assumida a
argumentação exposta noutros textos nos quais
igualmente confronta a concepção maniqueísta do
mundo e do homem. O pecado, afirmara o filósofo, é
uma diminuição da ordem. Integrando-se nela, ele é
precisamente um certo entrave a essa intencionalidade da
criação que tende à máxima expressão de ser.
Verdadeiramente, só a radical impossibilidade de ser,
o nada, poder-se-ia identificar com o mal, e é nesse
contexto que o filósofo interpreta o sentido da
exclamação: “non est bonus”40. A sua contrária, no interior
do relato genesíaco, é a afirmação da bondade
intrínseca do ser humano feminino. De fato, só depois
da criação da mulher – cujo ser, tal como o do homem,
depende diretamente do Princípio – estaria
potenciada a realização da ordem inicialmente
proferida, em que se expressa a finalidade do ser
humano. A incapacidade metafísica de Adão, sem

87
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

auxílio para cumprir o mandato cujo fim potenciaria


o acréscimo de ser na história, seria, com efeito, algo
intrinsecamente perverso. Tal indigência tornaria
contraditória a ordem do ser e não poderia, portanto,
ser efeito de um Princípio excelente.

4.Ex homine uno: a construção da comunidade humana

Pretendendo respeitar o sentido literal do texto,


a resposta à pergunta – Ad quem rem? Ad quod adiutorium? –
é, da parte de Agostinho, taxativa. Regredindo na
sucessão das causas, o sexo feminino, enquanto auxilium
secundum ipsum, foi feito para o gênero humano, que
inclui, desde o Princípio, a diferença sexual. Por isso o
mandato “crescei e multiplicai-vos” dirige-se a ambos
mas, na ordem cronológica das causas, o ser humano
varão surgiu primeiro.
Assim, na natureza da mulher, se atendermos
ao sexo, Agostinho responde: “foi feita, portanto, a
fêmea para o varão, a partir do varão, nesse sexo e
nessa forma e distinção dos membros, que são
evidentes nas fêmeas”41. O filósofo reconhece
abertamente a excelência do sexo feminino em ordem
à procriação, isto é, à execução da finalidade histórica
da criação. Sendo essa a atividade que dá sentido não
já ao indivíduo-varão, mas à espécie humana e à
totalidade do universo criado, torna-se evidente que
a finalidade da condição sexuada de ambos se orienta
ao bem comum, em cuja posse reside a felicidade. O
sexo feminino, no corpo animal com que, tal como o
sexo masculino, foi criado, é, de algum modo, o
centro da história42. Só a partir da multiplicação de
seres livres o indivíduo singular pode dar
cumprimento à finalidade da sua existência: agir, em
ordem ao bem comum. De igual modo, o filósofo
identifica o conteúdo intencional do bem comum, de
que a procriação é fim, com o estabelecimento de
vínculos de unidade, cadeias de relações humanas
através dos tempos, pela difusão dos graus de
parentesco43. O primeiro elo causal dessa imensa
sucessão é precisamente a relação dos primeiros homens
na caro una. Dessa união, de que resulta a completude
do gênero44, viria a proceder a imensa diversidade de
relações entre seres humanos de todas as raças, tribos,
línguas e nações45. Os vínculos de união entre as

88
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

vontades, efeito da difusão do gênero em ordem à


paz e unidade no relacionamento histórico, são
inalienáveis do ser humano e só poderiam ser levadas
a cabo pela geração, sendo essa a causa final da
criação do ser humano feminino46. Recorrendo ao
princípio da excelência da causa sobre o efeito para
interpretar o dificultoso passo – “quod mulier viri de latere
facta est” –, Agostinho afirma que a mulher é, quanto ao
sexo, infirmior. Assim é porque ela precede o homem,
na sucessão causal, do mesmo modo que, no seio da
Trindade, o Pai precede ao Filho, em razão da
especificidade da relação; assim é porque na ordem
cronológica, in tempore suo, o homem precede ao
surgimento da mulher. Contudo, Agostinho não faz
incidir em nenhuma dessas razões o sentido pleno da
criação. O ser humano feminino comporta em si e
desvela um especial modo de presença do criador – a
ação divina usque nunc, inerente à conservação da
espécie humana47. Mas a causa eficiente da criação é a
plenitude do amor, que Agostinho define
essencialmente como força unitiva, efeito da
convergência das vontades. E porque a essência
divina consiste nesse vínculo que une os diferentes e
faz deles um só, de igual modo apenas pela união
de diferentes a imagem divina se torna presente no
mundo. A densidade ontológica potenciada pelos
primeiros humanos e projetada in crescendo reside,
portanto, não no uso da sexualidade, mas sim na
fruição do bem que resulta da união. Só esse bem,
efeito de uma comunhão de vontades, é comum,
porque se dirige à comunicabilidade do gênero. A
razão necessária da criação do ser humano feminino é
o cumprimento da ordem segundo a qual, pela união
da vontade de ambos, é possível um acréscimo de ser
no mundo. Só assim se tornará visível, de modo
peculiar, a característica do ato criador: expandir ser,
pela unidade na diferença48.
Se é verdade que, na ordem da sucessão das
causas, o autor confirma certa inferioridade do
feminino em relação ao masculino, tal inferioridade
diz respeito apenas à conexão cronológica das causas.
Porém, não é nesse nível que o autor identifica a
especificidade do ser humano e, portanto, não é nesse
patamar de compreensão que virá a entender a

89
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

condição feminina. Por outra parte, na medida em que


o uso da sexualidade a fim da procriação está
circunscrito e condicionado pela duração temporal do
universo, e o ser humano, na sua masculinidade e
feminilidade, realiza-se, como toda a criação, numa
dimensão trans-histórica do tempo, uma
mundividência que procure compreender a essência
do ser humano por referência ao sexo redundará
sempre, na ótica de Agostinho, numa expressão de
insciência, por seu caráter parcial e desgarrador49. A
conexão causal do feminino e do masculino refere-se
a uma finalidade concreta no curso dos tempos. Por
isso, não se inscreve na intencionalidade do próprio
ato criador – ser mais –, senão quando considerada a
ordem intra-histórica das causas. Uma e outra se
reportam, como à sua essência, no caso dos seres
dotados de liberdade, ao exercício da vontade50.
Quando Agostinho referencia a existência da mulher
à possibilidade de uma criação continuada, bem como
o caráter sucedâneo da criação dela em relação ao ser
humano varão, pretende sublinhar a necessidade da
união com vistas à subsistência do gênero no que ele
tem de essencial: a proliferação dos vínculos de
parentesco entre os homens, no tempo. É por meio da
difusão da família humana que se inscreve
progressivamente na história o Uno transcendental,
imutável e comum, revelador da natureza do
Princípio. Com essa proposta sobre a condição
feminina, o filósofo evidencia a insuficiência
ontológica de qualquer âmbito de realidade que não
possa comunicar seu modo específico de ser51. Dela
depende a multiplicação dos vínculos de unidade
entre as vontades humanas, isto é, a construção
progressiva, em todo domínio de atividade, da paz de
todas as coisas que, como plenitude da ordem, é
essência da Cidade Celeste. Esse é, afinal, o sentido
originário da diferenciação sexual e da procriação.
O resultado do comentário agostiniano ao
relato bíblico das origens coloca ante o leitor uma
interpretação do mundo e do homem intimamente
unida à cadência estabelecida entre a ação, seja qual
for sua forma de expressão, e o tempo. Se Agostinho
suspendesse nesse ponto o seu comentário, teríamos
um mundo onde Deus-Trindade se manifesta na
história pela perfeita harmonia na qual se edifica a
atividade do ser humano, varão e mulher. Esta,
fundada na união com vistas à expansão do gênero,
exprime-se numa ordem cuja intencionalidade é
proporcional à diversidade e abundância das formas
de vinculação que se venham a estabelecer entre os
homens. O relato do Gênese sobre a condição originária

90
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

dos primeiros humanos, tendo sido escrito, como refere


Agostinho, para os descendentes, condensa, sob a
forma de um pequeno texto, o sentido da dimensão
de toda ação inteligente sobre o mundo, isto é, de toda
obra de cultura. Os comentários de Agostinho ao
Gênese, extensos e esforçados, pretendem evidenciar
esse mesmo fato – o ser humano, na sua
masculinidade e feminilidade, se se diferencia do
mundo, também a ele está intrinsecamente unido,
como aquele que é capaz de o transformar e de, pela
transmissão da potência unitiva contida no gênero e
indissociável da geração, intensificar as expressões de
sentido. Contudo, se a mulher, enquanto auxílio
oportuno e princípio potenciador de toda a
concriação, foi feita “nonnisi causa prolis, ut per eorum stirpem
terra impleretur“, tal relação dar-se-ia “tunc non eo modo quo
nunc” – então não como agora52. Por isso, a exegese
agostiniana obriga a refletir sobre uma outra
dimensão do tempo, cuja origem não é o próprio
criador, reinterpretando, sob essa luz, o sentido do
relato.

5.Não como agora

Um dos objetos da reflexão agostiniana mais


intensa é a procura da inteligibilidade para o fato de
essa versão equilibrada e harmônica do ser humano
não ser coincidente com a experiência comum. De
fato, por toda parte, na relação entre os sexos como
em qualquer expressão de atividade humana
experiencia-se a vontade de domínio. Integrando
nesse contexto aquilo que a consciência cultural no
Ocidente identificou com a ideia de “pecado
original”, poder-se-ia dizer que uma tal ação consistiu,
frente à atividade do Princípio, contratempo. Desse
modo, não a afetou no que ela tem de próprio, a
eternidade, mas apenas na sua dinâmica temporal.
Definindo a razão essencial desse movimento
defectivo como uma atividade livre, mas de
intencionalidade contrária à direção impressa pelo ato
criador, Agostinho centra-se na análise do ato
humano ocorrido na vontade dos primeiros homens
para aí investigar a causa desse entorpecimento do
ser. Sua possibilidade reside na incidência da vontade
sobre os bens criados, atividade que é absolutamente
inalienável da ordem e que Agostinho identifica com
o amor53. Para que o agir humano reitere a essência do
ato criativo, colaborando na ordem da criação, ele
deve realizar, no âmago da vontade própria, a

91
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

dimensão do bem comum. Assim, esse último tornar-


se-á público e estará, portanto, à disposição de todos
na comunidade dos humanos. Como o agir humano é
essencialmente histórico, o germe que inverta essa
ordem derramar-se-á no tempo, contrariando o seu
sentido. Essa análise do ato humano, que fora já objeto
da particular atenção do filósofo no Diálogo sobre o livre
arbítrio, pode agora lançar luz sobre a condição
feminina, de modo a situá-la corretamente no
confronto com a ordem da procriação. A desordem
intrínseca gerada no interior da mente do ser humano,
varão e mulher, consistiu em querer possuir como
algo próprio o princípio comum do qual emana toda a
Sabedoria. A vontade de ambos pretendeu apropriar-
se não apenas da contemplação-fruição dos bens, mas
da própria causa eficiente da diferença ontológica, a
fim de se apossar da essência do ato criador e de se
tornar Princípio de Criação. A perversão originária da
atividade humana viria, assim, a consistir no desejo de
cada um criar seu próprio mundo, demitindo-se de
colaborar na expansão de um mundo já constituído,
cujo princípio é alheio e cuja finalidade, como projeto
em construção, está imersa num horizonte de
indeterminação. O efeito imediato dessa pretensão a
separar-se do princípio de causalidade eficiente –
querendo cada um ser causa de si mesmo – é a
incompreensão da ordem exposta no universo. O
filósofo identifica essa perda da visão de conjunto ou
do sentido do universal com a ignorância, cuja
primeira manifestação é a incapacidade de
percepcionar a ordem dos bens de modo integrado e
com completude. Da mesma forma, a recuperação da
ordem inicial terá de passar necessariamente pela
adesão à Sabedoria, sendo esta definida por
Agostinho como a posse do bem comum ou, numa
outra versão, como a posse da vida eterna em paz54.
Se existe uma especificidade do feminino, para
o filósofo esta não passa pela fixação na dimensão
sexuada, mas pelo modo de conceber essa realidade
corpórea no confronto com a totalidade dos bens. A
reta compreensão do feminino vincula-se, assim, ao
exercício da sabedoria, o qual, por definição,
ultrapassa a casuística, inserindo-se num horizonte de
universalidade. Como a finalidade da criação está de
modo particular confiada ao ser humano, a
continuidade da ação divina no tempo surge
intrinsecamente unida, in esse et in fieri, à procriação. A
inversão de valores verificada no começo da história,
ao radicar no íntimo da atividade humana, afeta todas
as suas concreções, vindo a manifestar-se de um modo

92
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

peculiar na dimensão sexuada do ser humano e


também no uso do próprio corpo, uma vez que ele se
insere no cosmos.
Perdida a perspectiva de conjunto que
integra a diferença sexual na harmonia do curso dos
tempos e da intencionalidade da criação, rejeitada a
ordem instaurada pela Sabedoria, esquecida a
relação ao Princípio vital de existência, surge
apenas à mente a ordem da sucessão causal. A
visão do mundo e do humano descontextualiza-se
quando se perde a referência ao Princípio
ordenador. O efeito dessa visão restrita é a fixação
de ambos no domínio corpóreo e desintegrado da
diferença55. Sobrepondo a ordem de conexão causal
física à metafísica, emerge o império matérico do
varão, cronologicamente criado antes da mulher56.
Esse predomínio físico, inerente ao tempo, reflete-
se quer no agir de ambos em ordem à procriação,
quer no seu efeito imediato, a fundação da
comunidade dos humanos nos vínculos de
parentesco. Assim, se nos Comentários literais ao Livro do
Gênese todo o esforço de Agostinho se orienta na
compreensão do que era no Princípio, nas Confissões
ele quis deixar patente a situação atual do ser
humano ante si mesmo, tornando possível uma
leitura contextualizada das afirmações
agostinianas que, numa primeira apreciação,
parecem dirigir-se no sentido de uma proclamação
da inferioridade do sexo feminino. Mas o que não
ocorre a Agostinho é identificar o ser humano nem
com a dimensão sexual inscrita na sua
corporeidade, nem com o estado de degradação que
afetou toda a realidade como efeito da culpa
original. Do mesmo modo, não dissocia o uso da
corporeidade humana e da atividade inteligente,
expressa na harmonia das faculdades mentais que
especificam o ser humano. Definindo a substância
humana pela íntima unidade corpo-alma, a
restauração da harmonia na relação entre o varão e
a mulher passa por uma assunção da corporeidade
no contexto da própria identidade. Esta só se revela
a cada um pelo exercício da Sabedoria a fim de
recuperar a memória de si, em que reside o
chamamento inicial à existência, contido na criação
potencial causal. Partindo do indiscutível estado de

93
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

disformidade da natureza animal, na qual se


integra a corporeidade do ser humano, resta apelar
à restauração da ordem viabilizada por aquelas
faculdades pelas quais o ser humano se sobrepõem
aos animais. Se o princípio da desordem residiu
num ato de ignorância, sua recuperação deve seguir
o caminho inverso. Este, depositado na uis
memoriae, igualmente acessível a homens e
mulheres, permitirá à razão redescobrir a sua força
original, uma vez que a posse da Sabedoria é recurso
necessário para a redescoberta, no tempo, de uma
versão contextualizada do ser humano no mundo.
Só de uma perspectiva de sapiência se pode
recuperar a fruição dos bens na liberdade original,
utilizando-os em conformidade com a ordem
instaurada no Princípio.
Se a ação defectiva dos primeiros homens
afetou degradativamente a harmonia do universo e,
no caso peculiar da condição feminina, daí resultou,
respeitando a ordem cronológica das causas, uma
certa submissão dela ao masculino, de igual modo
pela aquisição de uma perspectiva de conjunto pode
o ser feminino – como qualquer ser humano –
reconquistar a harmonia primordial a que aspira e
que é parte integrante do desejo universal de
felicidade. Para recuperar essa perspectiva o filósofo
exige, antes de mais nada, o restabelecimento da
ordem do amor no interior da vontade humana.
Sendo a Sabedoria o melhor dos bens, a ordem exige
que a ela se dirija o esforço essencial da vontade. Só
nela e a partir dela é possível reintegrar o uso da
corporeidade na dinâmica da união sexual com
vistas à prole - recuperando a condição originária
desse ato humano, integrando-o na comum união
das vontades que permite restaurar a transparência
do agir e do olhar, correspondente à situação da
nudez original57. Seja qual for o nível em que se
inscreva, a atividade humana só se realizará
harmonicamente pelo acordo das vontades. Esse
horizonte da ação é igualmente aplicável à
procriação e só a partir dele é possível reorientar essa
última atividade na direção do bem comum,
contrariando, assim, a dimensão reativa e
dominadora em que, segundo Agostinho, ela agora
se encontra58. Só numa perspectiva de

94
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

universalidade se pode restabelecer a ordem inicial


em que a identidade da comum situação de seres
diferenciados se manifesta ante a radicalidade do
mesmo Princípio. Por isso, a reta compreensão da
condição feminina, como de toda a realidade,
reside, para Agostinho, na posse da Sabedoria. Esta,
identificada nos primeiros diálogos, por influência
estoica, com a capacidade de resistir às provações e
com o desprendimento do mundo até o
enfrentamento destemido da própria morte, é
atribuída, por excelência, aMônica.
De fato, entre os convivas de Cassicíaco, a mãe
de Agostinho é tomada como paradigma da
plenitude de realização da mulher mediante o amor
à sabedoria. No Diálogo sobre a Ordem, Agostinho tece-
lhe um amplo encômio59. O percurso existencial de
Mônica torna acessível a revelação da imagem
feminina do divino, como providência e como
expressão da ordem do amor. Nas páginas que
dedica à biografia da mãe, Agostinho dá conta de
sua vida exemplar antes de conhecer Patrício, sem se
eximir de nela incluir as limitações próprias de toda
realidade perfectível, descrevendo uma trajetória
de acréscimo de qualidades vinculada ao
desenvolvimento da mente de Mônica,
reconhecendo-a particularmente vocacionada para
a filosofia60.
Pelos diálogos de Cassicíaco, sabemos que
Mônica era assídua na leitura e meditação do texto
bíblico e que conhecia, igualmente, os escritos dos
filósofos, tendo desenvolvido as propriedades da
sabedoria até à posse da beatitude. A visão de Deus,
fim último de cada ser humano e termo convergente
da Cidade e Celeste, é, para Agostinho, consequência
natural da posse da sabedoria, e Mônica dá provas
de a possuir junto ao porto de Óstia61. Anos mais
tarde, escrevendo a Paulina, Agostinho reafirma que
não se pode ver Deus e permanecer sobre o corpo
corrupto62. De fato, a morte de Mônica ocorre nove
dias após a experiência de Óstia. Como prova da
posse plena da Sabedoria, correspondente à firme
convicção da ressurreição dos corpos in saecula futura,
Mônica despreocupa-se quanto ao lugar material da
deposição dos seus restos mortais. Ao passar os
últimos anos de sua vida na Península Itálica, era seu
desejo ter sepultura junto de Patrício, em Tagaste63.

95
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Contudo, pouco tempo antes de morrer, desprende-


se desse modo ainda restrito deentender sua própria
humanidade, definindo-a pela união a uma função
histórica64. Tal compreensão do sentido da
sexualidade não significa, porém, para o filósofo de
Hipona, que sobre ela se projete qualquer sombra de
negatividade. Agostinho opõe-se claramente aos que
inscrevem a dependência ontológica dos sexos no
horizonte da física e afirmam que a ressurreição das
mulheres se dará em corpo masculino, por
projectarem neste último o princípio da
feminilidade65. O argumento do filho de Mônica para
a ressurreição dos corpos como para a afirmação
taxativa de que as mulheres hão de ressuscitar no seu
corpo feminino é a fidelidade do Princípio à ordem
inicial da criação. A bondade dos seres expressa-se no
seu modo específico configurado na criação
potencial, e nenhuma força pode alterar essa
vontade eterna. A vontade de domínio a que se segue
a escravidão, bem como a corrupção do corpo, são
expressões deficitárias de ser, circunscritas ao curso
dos tempos. Contudo, a dinâmica do ser realizar-se-
á sempre para melhor, porque esse é o sentido do
tempo histórico. Nada pode alterar a forma de cada
ser, da qual a diferença sexual é parte integrante. Mais
do que considerar a especificidade da condição
feminina, para Agostinho é a humanidade que nela
se evidencia, como sede de uma vontade livre. É a
própria humanidade que, exprimindo um Princípio
universal pela diferença corporalmente visível, não se
compadece com qualquer forma de discriminação. A
paz de todas as coisas, a tranquilidade na ordem,
edifica-se progressivamente no ajuste das realidades
iguais e desiguais, quando cada uma ocupa o seu
lugar66. O discernimento do lugar de cada um
corresponde à arte de viver e coincide com a própria
definição de virtude, que é identificada pelo filósofo
de Hipona com a ordem do amor e que está
disponível a todos os seres humanos sem distinção67.

Notas

De Genesi ad litteram imperfectus liber [Corpus Scriptorum


Ecclesiaticorum Latinorum (CSEL) 28/1 (J. Zycha, 1894)], pp.

96
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

459-503; De Genesi contra Manicheos PL 34, 173-220; De Genesi


ad litteram libri duodecim [CSEL 28/1 (J. Zycha, 1894), pp. 3-
435].
Confessionum libri tredecim [Corpus Christianorum Series
Latina (CCL) 27, L. Verheijen, 1981]. As citações em
português seguem o texto da versão portuguesa: Sto.
Agostinho, Confissões, trad. e notas de Arnaldo ESPIRITO
SANTO, J. BEATO, M. C. CASTRO PIMENTEL, INCM, Lisboa,
2001].
Conf. XIII, 32, 47 (CCL 27, p. 270).
Cf. Gen ad Litt., 1, 19, 38; 5, 8, 23 (CSEL 28-1, pp. 28-29;
152). Quando a tentação de interpretar o texto em
sentido figurado emerge com mais violência, o autor
resiste-lhe, reiterando seu propósito inicial de encontrar
o sentido da letra, partindo da inconcussa certeza de que
a letra tem sentido.
Cf. Conf. XII, 24, 33 (CCL 27, 233-234); Gen ad Litt., 1, 20,
40; 9, 1, 1; 12, 1, 1 (CSEL 28-1, 30; 268-269; 379-380). Nos
trechos bíblicos em que o filósofo verifica que várias
interpretações são compossíveis afirma explicitamente
que se há de remeter a sua ao âmbito das “sentenças
prováveis”. Abrindo-se a um infindo universo de
leituras, desafia o exercício da liberdade, de modo a que
cada leitor decida o que pode entender ou construa uma
melhor explicação.
Cf. Conf. XII,17-18; XII, 23, 32; XIII, 24 (CCL 27, 228-229;
233; 263-264). Depois de esclarecer quais são as
interpretações impossíveis (as que afirmam a identidade
entre a substância divina e a natureza criada), o filósofo
afirma que pretende desvendar o sentido último do
discurso bíblico. Sendo este distinto da intenção do
hagiógrafo, permite separar a verdade sobre a criação,
capaz de ser desmitificada por qualquer leitor, do
propósito do redator, que residirá para sempre no seu
íntimo sem que daí advenha grande prejuízo para a
humanidade.
7 Cf. Gen ad Litt., VI, 4, 6 (CSEL 28-1, 176-178).
8 Cf. Conf. X, 16, 25 (CCL, 27, 167-168).
9 Cf. Conf. IX, 20, 26 (CCL 27, 207).
10 Cf. Conf. XI, 17, 22; 19, 25 (CCL 27, 205-206). Só desse modo
essas dimensões, de si “inexistentes”, adquirem uma certa
consistência.
11 Cf. Conf. X, 17, 26-18, 27 (CCL 27, 168-169).
12 Cf. Conf. XI, 4, 6 (CCL 27, 197).
De Libero Arbitrio (LA) II, 16, 42: “Repara no céu, na terra, no
mar, em tudo o que brilha lá no alto, ou rasteja no solo,
no que voa nos ares ou nada nas águas. Tudo tem
formas porque tem números. Retira-lhas e nada serão.
De onde retiram, portanto, a existência, a não ser
Daquele aquemdevemonúmero?”(Sto.Agostinho, Diálogo
sobre o livre arbítrio [DLA], Introd., trad. e notas de Paula
OLIVEIRA E SILVA, INCM, Lisboa, 2001, p. 223).
LA , II , 17, 45: “toda a realidade mutável é também
necessariamente formável. (...) Mas nenhuma realidade se
pode formar a si própria, porque não pode dar a si própria

97
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

o que não tem” (ibid., p. 227).


Cf. Gen ad Litt. , IV , 12, 22; VI , 8, 13 (CSEL 28-1, 108; 180).
Agostinho adota uma peculiar concepção de Ser que lhe
permitirá identificar o máximo grau de ação com a
perene quietude. Nesse passo refere-se à relação
permanente dos seres ao Ser, que identifica com o caráter
providente do Princípio.
Cf. Gen ad Litt. ,6, 11, 18 ( CSEL 28-1, 183-185):as criaturas
estão, por uma parte, terminadas e, por outra, incoadas.
Cf. Gen ad Litt. , 1, 4, 9 ( CSEL 28-1, pp. 11-13). O Verbo
pelo qual Deus eternamente diz todas as coisas está
sempre imutavelmente unido ao Princípio, não pelo
som da voz nem pelo transcurso do pensamento no
tempo, mas pela Sabedoria gerada eternamente por
aquele.
18 Cf. Conf., XIII, 4, 5 (CCL 27, 244); Gen ad Litt., IV,16, 27 (CSEL
28-1, pp. 112-113).
19 Cf. Gen ad Litt., III, 19, 29 (CSEL 28-1, 85-86).
20 Cf. Gen ad Litt., VI, 4, 5; IX, 16, 29 (CSEL 28-1, pp. 174-176;
289-290). Tradução nossa.
21 Cf. Gen ad Litt., II, 6, 10-7, 15 (CSEL 28-1, pp. 39-42).
22 Cf. Gen. ad Litt., VI, 8, 13 (CSEL 28-1, pp. 179-189).
23 Cf. Gen ad Litt., VI, 4, 6 (CSEL 28-1, 173-174).
24 Cf. Gen ad Litt., VI, 7, 12; XI, 11, 19 (CSEL 28-1, 178; 343-
344). Na criação simultânea contém-se a diferenciação
sexual corpórea do ser humano. Se assim não fosse, a
narrativa estaria incompleta e, com ela, a própria
atividade do Princípio. Na ordem sucessiva das causas,
o ser humano varão e mulher foi criado in tempore suo:
visivelmente no corpo, invisivelmente na alma,
constando de alma e corpo.
25 Gen. ad Litt., VI, 5, 8: “(...) nunc, autem secundum operationem
praebendam temporibus, qua usque nunc operatur, et oportebat iam
tempore suo fieri Adam de limo terrae, eiusque mulierem ex viri latere”.
(CSEL 28-1,p.176).Oautor passa a explicar esse passo obscuro
ao longo dos dois capítulos seguintes do texto. O mesmo
homem, masculum et femina, foi feito tunc et nunc, mas não do
mesmo modo, o que permite distinguir claramente duas
dimensões do ato criador.
26 Cf. Gen ad Litt., IV, 16, 27; VI, 9, 16; VI, 16, 27 (CSEL 28-1, pp.
113; 180-181; 190-191). A ratio creandi é distinta do ato de
criação. Como a criação nada acrescenta à plena beatitude
do criador, não há nenhum motivo fora da pura
gratuidade que justifique a passagem da ratio creandi à
ação de criar. Assim, Deus não cria porque pode, o que
justificaria apenas a sublimidade da sua potência. Fá-lo
porque quer, o que manifesta a potência da sua vontade, e
não por nenhum outro fim senão o de tornar outros
participantes da sua própria beatitude, o que revela a
intensidade da sua benevolência.
Cf. Conf. , XI , cc. 20-23 ( CCL 27, 207-209).
Gen ad Litt. , IV , 18, 31: “Perfecta quippe creatura habet quoddam
initium suae conversionis ad quietem Creatoris sui, sed illa non habet
finem quasi terminum perfectionis suae, sicut ea quae dacta sunt. Ad per
hoc requies Dei non ipsi Deo, sed rerum ab eo conditarum perfectioni
inchoatur, ut in illo incipiat requiescere quod ab illo perficitur (…)”
(CSEL 28-1, p. 115).

98
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Gen ad Litt , IV , 17, 29: “Sicut ipse non ideo beatus est, quia haec fecit;
sed quia etiam factis non egens, in se potius quam in ipsi requievit (…);
quia non haec faciendo, sed eis quae fecit non egendo, se beatum intimavit”
(CSEL 28-1, p. 114).
Cf. Gen ad Litt , VI , 11, 18-19; 12, 20 (CSEL 28-1, pp. 183-
187).
LA II , 9, 26: “Portanto,como é certo que todos queremos
ser felizes, também é certo que queremos ser sábios, pois
ninguém é feliz sem a sabedoria” (DLA, p. 193).
LA III , 7, 20: “Considera, então, quanto possas, o imenso
bem que é o próprio ser, que é o que querem tanto os que
são felizes, como os que são infelizes” (DLA, pp. 283-284).
Cf. De Beata Vita 2, 10-11; 3, 19; 3, 21; 4, 27 (CCL 29 [ed.
W. M. Green, 1970], pp. 70-71; 76-77; p. 80).
Agostinho indaga o motivo pelo qual o primeiro par
original só se uniu depois do pecado original, deixando
patente que desse fato não se pode concluir a intrínseca
desordem da união conjugal. No âmbito da sentença
provável, justifica-o em função da presciência divina
sobre a vontade do ser humano primordial, no qual
engloba sempre varão e mulher. A condição ontológica
dos primeiros seria a transmitida geneticamente a todos.
Se ela viria a ser de desordem na natureza, então essa
mesma deveria ser transmitida a todos. Como a
transmissão da natureza é inerente à união dos sexos,
esta só haveria de ocorrer depois do pecado (cf. Gen. ad
Litt., IX, 4, 6-7, CSEL 28-1, pp. 272-273). O que resplandece
de modo coerente ao longo da obra agostiniana é a
bondade essencial quer da diferença sexual, quer da
união conjugal.
Gen. ad Litt , VI , 12, 22: “Sed hoc excellit in homine, quia Deus ad
imaginem suam hominem fecit, propter hoc quod ei dedit mentem
intelectualem, qua praestet pecoribus”. (CSEL 28-1, p. 186).
Civ. Dei, 15, 17: “Unde non ambigitur sic appellatam fuisse Evam
proprio nomine, ut tamen Adam quod interpretatur homo, nome esset
amborum”. (CCL 47, 479).
Essa totalidadesignifica,quantoà criaçãocausal,o gênero
humano e, quanto à criação temporal, a substância
individual em que se unem um corpo e uma alma. Embora
Agostinho não tenha esclarecidas para si próprio a origem
e a natureza das almas, tem claramente definido que, sem
a união da alma e do corpo numa substância una, não há
ser humano (De Trinitate, XV, 7, 11: “Homo est substantia
rationalis constans ex anima et corpore” [CCL 50A, p. 474]). Esse
modo de subsistir é específico da natureza humana,
comum ao gênero e, portanto, igualmente presente em
ambos os sexos. Daí que a interpretação alegórica que
pretende elucidar a origem da diferenciação sexual com
base na diferença entre a dimensão superior e inferior da
razão não seja do agrado de Agostinho. Conhecendo a
interpretação neoplatônica de tradição judaica e tendo
feito uso dela tanto em Conf. como em Gen. cont. Manich.,
o filósofo acaba por reconhecer-lhe as limitações.
Cf. Gen. ad Litt. , IX , 12, 20 (CSEL 28-1, pp. 281-283).
Cf. Gen ad Litt. , IX ,15, 26 (CSEL 28-1, pp. 286-288).
LA II , 20, 54: “Esse movimentonão derivará,portanto,de
Deus. Qual será então a sua origem? (…) De fato, não se
pode saber aquilo que nada é. (…) na medida em que é
um movimento de defecção e que toda decadência vem
do nada, repara bem naquilo a que ele se refere, e não
duvides que não pertence a Deus” (DLA, p. 243).

99
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Agostinho é insistente neste aspecto: a primeira finalidade


da criação da mulher como completude para o homem é
“propter filios procreandos/ generandi causa” (cf. IX, 2, 4; 5, 9; 7,12;
9,15: CSEL 28-1, pp. 271; 273; 275; 280-281; 272).
Cf. Gen. ad Litt. VI , 25, 36 – VI , 26, 37 (CSEL 28-1, pp. 197-198);
De Civ. Dei. 19, 17 (CCL 48, 684-685). A questão da criação
do corpo humano animal ou espiritual prende-se à
dimensão escatológica do mundo e à introdução da morte
na história. Essa última é contra-natura, uma vez que o
Criador fez o mundo para um acréscimo de ser e a morte
evidencia a degradação do ser humano, refletida também
na corrupção do seu corpo. A morte foi introduzida porque
era uma possibilidade do ser e, por isso, deduz-se que o
corpo humano dos primeiros homens era animal, mas
com a possibilidade de melhorar o seu modo de ser,
espiritualizando-se pela repetição de atos livres. Com a
queda original, tudo piorou: o corpo, em vez de se
espiritualizar, corrompe-se.
Cf. Gen. ad Litt. , IX , 11, 14 (CSEL 28-1, pp. 280-281).
Cf. Civ. Dei , XII , 22 (CCL 48, 380). Ex homine uno é a expressão
aí utilizada para referir a união da primeira parelha
humana. Tendo mostrado que, só a partir da criação da
mulher é possível a transmissão do gênero humano,
Agostinho refere-se sempre a essa primitiva união como à
união “dos primeiros homens”. Evita o emprego dos
termos que se referem à diferença porque, suposta esta,
quer sublinhar a sua finalidade unitiva. No esforço de
manter o propósito de interpretação literal do texto, o
filósofo quer sublinhar a unidade de natureza que garante
a igual dignidade do ser humano, para além da
diferenciação sexual. Agostinho pretende garantir,
simultaneamente, a humanidade de todos os seres
descendentes dos primeiros homens e a transmissão da
qualidade moral dos primeiros a toda a geração. Essa
questão, que o filósofo une à da natureza e origem das
almas, não deixa de permanecer para ele próprio envolta
em mistério.
Cf. Gen. ad Litt. , IX , 9, 14 ( CSEL 28-1, 276-278).
Gen. ad Litt . IX , 9, 14: “ut autem per duos homines terra impleretur,
quomodo ipsi, nisi gignendo, officium societatis implerent?” (CSEL 28-1,
277); Gen. ad Litt, IX, 7, 12: “Non itaque video ad quod aliud
adiutorium mulier facta est viro, si generandi causa subtrahitur: quae
nihilominus quare subtrahatur ignoro”. (CSEL 28-1, 275).
Imediatamente depois de afirmar que a mulher e o homem
são obra direta de Deus sem mediação de nenhuma criatura,
o que lhes confere idêntica situação metafísica, Agostinho
acrescenta: “Non operatus est et dimisit, sed ita continuantur operatur,
ut nec ullarum aliarum rerum nec ipsorum angelorum natura subsistat
si non operetur”. (Gen. ad Litt., IX , 15, 28. CSEL 28-1, p. 288). Nessa
medida, a mulher seria, enquanto imagem e semelhança de
Deus, a expressão da providência que, tal como a sabedoria
divina, abrange a existência do ser humano a fine usque in
finem fortiter et disponit omnia suaviter.
Cf. Gen. ad Litt. , IX , 10, 18 ( CSEL 28-1, pp. 278-280).
Agostinho não exclui a possibilidade da união corporal
antes da queda, nem a identifica com a essência do
pecado, considerando essa hipótese absurda. Tal
relação, a exercer-se antes do pecado original, teria
como princípio operativo não a atração pela diferença
corporal, mas o império da vontade. Sobre a

100
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

possibilidade de, no Paraíso, haver procriação sem


morte, explica como o corpo tenderia a um estado de
melhoramento, diferente do que terá no final do mundo,
mas melhor do que o que teria tido à nascença e do que
atualmente possui.
Cf. Civ. Dei , XV , 17; XV , 21 (CCL 48, 479-480; 486-487).
Agostinho exprime claramente que a procriação,
entendida como fim em si mesma, é fundamento da
cidade terrena. Nessa medida, faz sentido identificar
genealogias, porque o seu efeito termina no tempo. Mas
os que concebem visando ao bem comum, imprimindo
na sua vontade uma direção terminada e,
simultaneamente, como a criação, incoada, esses não
encontram sua plena identidade no decurso do tempo,
mas na paz que se busca pela união. Suposta uma
regeneração do próprio tempo e do homem,
permanecem a diferença sexual e a força unitiva do amor,
mas a finalidade da geração corporal é abolida.
Cf. Gen. ad Litt. , I , 5, 10 ( CSEL 28-1, pp. 8-9). Agostinho
explicita que a forma dos seres espirituais em que inclui a
natureza humana só se obtém pela livre conversão da
vontade própria na direção do Ser de que dependem.
Cf. Gen. ad Litt. , XI , 37, 50 ( CSEL 28-1, p. 372): os cônjuges
devem servir um ao outro por caridade. Agostinho
reitera que S. Paulo não admite que a mulher domine o
homem. Esse domínio do homem sobre a mulher não
deriva da natureza, mas da culpa. Porém, acrescenta
Agostinho, se não for preservado, mais se deprava a
natureza e se aumenta a culpa.
Cf. Gen. ad Litt. , IX , 11, 19 ( CSEL 28-1, 280-281).
Cf. Gen. ad Litt. , XI, 30, 39 (CSEL 28-1, pp. 262-264); Civ. Dei ,
XV, 22: “Ita se habet omnis creatura. Cum enim bona sit, et bene amari
potest et male: bene scilicet ordine custodito, male ordine perturbato”.
(CCL 48, 488). Aoaprofundar a noção de ordo, Agostinho defende
que a raiz da expressão da ordem no tempo é a qualidade da
vontade.
Cf. LA II , 14, 37 ( DLA , p. 215); Civ. Dei , XIX , 11 (CCL 48,
674-675).
“Viram que estavam nus”: Nesse limite original da visão
corporal que confina com a origem do pudor, emerge a
imposição do impulso animal sobre o racional, origem da
concupiscência. Essa conversão do universal ao particular é
a causa de toda ignorância. Sendo a vontade o princípio
desse movimento, o seu efeito chama-se malícia. Nesse
sentido, observa Ferrisi: “L’affermarsi del male à allora un vero e
proprio processo di depotenziamento ontologico che ha la sua prima
tappa nella ‘caduta’ delo spirito dall’universale alparticolare e che vede il
suo esito ultimo nella dissipazione e dispersione dell’unità”. “Male,
misticismo e sessualità” in Il misterio del male e la libertà possibilie,
SEA 48 (1995), p. 176.
A situação descrita em Gen. ad Litt. , XI , 39, 42 é efeito da
desordem do amor e por isso não se refere à identidade do
ser humano varão e mulher: “Hoc enim viro potius Dei sententia
detulit, et maritum habere dominum meruit mulieris non natura, sed
culpa: quod tamen, nisi servetur, depravavit amplius natura, et
augebitur culpa”. (CSEL 28-1, p. 372).
Cf. Gen. ad Litt. , X , 31, 40; XI , 34, 46 (CSEL 28-1, 364-365;

101
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

368369). O autor discute se antes da introdução da


desordem não viam sua condição sexuada e toma
posição. A visão do corpo integrava-se então numa
compreensão de si próprios e do mundo na qual a visão
do corpo sexualmente diferenciado se integrava na
harmonia da identidade ante o Princípio. Esta, por sua
vez, irradiava luz sobre a finalidade do próprio corpo e
do mundo na ordem universal. A queda original, ao
radicar na dimensão desiderativa da vontade, teria
implicado uma redução da intencionalidade do ato livre,
conduzindo à fixação do olhar naquilo que
imediatamente se percebe pelo órgão da visão,
desintegrando-o de uma perspectiva de globalidade. A
concupiscência, porque assenta na alma, une-se
estreitamente à ignorância e tem como efeito essa
restrição intencional do ato livre, manifesta também na
percepção sensível (cf. Gen. ad Litt., X, 12, 20: CSEL 28-
1309-311).
Em causaestáa espinhosaquestão acercadatransmissão
de uma natureza enfermiça a todo o gênero humano.
Para a compreender, Agostinho procurará
salvaguardar, por uma parte, contra todas as expressões
de maniqueísmo, a bondade do criador, manifesta na
criação de um ser cuja natureza inclui a possibilidade de
uma liberdade defectível; por outra, contra os
pelagianos, a necessidade de um auxílio saneante,
proporcional à culpa original, que permita a
recuperação da primitiva liberdade.
De Ordine I , 11, 31-32: “Nem faltará, acreditaem mim, um
tal gênero de homens a quem este mesmo fato – que tu
tenhas filosofado comigo – agrade mais do que se
encontrasse aqui algo de prazenteiro ou sério. Na
verdade, também para os antigos as mulheres fizeram
filosofia e a tua filosofia agrada-me muitíssimo. (...)
Portanto, menosprezar-te-ia nestes meus escritos se não
amasses a sabedoria; ora, não te havia de menosprezar se
a amasses mediocremente e muito menos se a amasses
tanto como eu. Mas agora, na verdade, como tu a amas
muito mais do que a mim próprio – e como eu conheço
quanto me amas; e uma vez que progrediste tanto nela
que já nem te atemorizas por receio dos infortúnios do
acaso nem da própria morte, coisa muito difícil mesmo
para os homens mais doutos e que todos confessam ser o
vértice supremo da filosofia –, não me hei de eu confiar a
ti, de bom grado, também como discípulo?” (Sto.
Agostinho, Diálogo sobre a Ordem , Introd., trad. e notas de
Paula OLIVEIRA E SILVA, INCM, Lisboa, 2000, p. 137). A
propósito das virtudes de Mônica e do seu talento para a
Sabedoria, v. t. Paula OLIVEIRA E SILVA , “Sobre a virilidade:
Cícero e Mónica”, in Luísa RIBEIRO FERREIRA (org.), Pensar
no feminino, Colibri, Lisboa, 2001, pp. 175-189.
Apesar de educadana temperançapor uma velha escrava,
quando jovem “insinuou-se-lhe pouco a pouco o gosto
pelo vinho”. Advertida pela escrava, “reprovou-o e
corrigiu-o” (Conf., IX, 8, 18). (CCL 27, 144).
Conf. IX , 10, 24: “Ali, a vida é a própria sabedoria (…).
Enquanto assim falávamos, anelantes pela sabedoria,
atingimo-la momentaneamente num ímpeto completo do
nosso coração”. (CCL 27, 147).

102
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Cf. Ep. 147, 8, 20; 9, 22 ( CSEL 44, 293-297).


Cf. Conf. IX , 11, 27 ( CCL 27, p. 149).
Conf. IX , 11, 28: “Admirados [os amigos de Agostinho]
com aquele valor de uma mulher, perguntaram-lhe se
não temia deixar o corpo tão longe da cidade.
Respondeu: “Para Deus não é longe, nem devo temer que
no fim dos séculos não saiba onde me há de ressuscitar”
(CCL 27, 149).
Cf. Civ. Dei , XXII , 17 ( CCL 48, 835-836).
Cf. Civ. Dei , XIX , 13 ( CCL 48, 678-680).
Civ. Dei, XV , 22: “Definitio brevis et vera virtutis ordo est amoris ” (CCL
48, 488).

103
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

A MULHER E O FEMININO
NA OBRA DE SANTO ANSELMO
MARIA LEONOR L. O. XAVIER
(Universidade de Lisboa)

Não é decerto uma novidade do final do séc.


XX que haja mulheres interessadas no saber, mas há
um fato novo, que é o acesso de mulheres, em
porcentagens equiparáveis às dos homens, a
instituições de ensino superior e de investigação
científica. Esse fenômeno não pode deixar de trazer
consequências, que já se vislumbram, quais sejam,
o significativo aumento de bibliografia produzida
por mulheres e a afirmação de uma literatura
feminista em múltiplas áreas, entre as quais se
incluem a filosofia e a teologia.
Considerando essas duas áreas de tradição
milenar, cabe notar que as mulheres que fazem hoje
sua formação intelectual em filosofia ou em teologia
instruem-se num legado escrito quase
exclusivamente produzido por homens. Ora,
suspeitando de que a diferença de gênero
(masculino e feminino) não seja irrelevante para a
produção literária nessas áreas, como encaramos
nós, mulheres, uma formação intelectual em
saberes de tradição marcadamente masculina? Não
será essa formação inelutavelmente configurante da
nossa maneira de pensar? A que distância nos
colocamos dela? Poderemos criar alguma distância
crítica? Não ficará inevitavelmente comprometida
por essa formação a possibilidade de afirmação de
virtualidades do feminino no desenvolvimento
destas áreas? Tais perguntas, que põem em questão
as referências masculinas de nossa formação
intelectual, são aquelas que estão na origem do
presente estudo.
Dessas referências masculinas, escolhemos o
caso de Santo Anselmo, pela influência que sua obra
exerceu em nossa formação. O processo de
questionamento da obra anselmiana, neste estudo,
divide-se em dois momentos principais, ou dois
níveis distintos de análise: o primeiro questiona
diretamente o valor da mulher no pensamento de
Santo Anselmo; o segundo examina mais
profundamente o modo como a

105
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

complementaridade dos princípios masculino e


feminino afeta o pensamento filosófico-teológico do
autor medieval.
O primeiro nível de análise é óbvio e
incontornável. Nele, pergunta-se qual a posição de
Anselmo, filósofo e teólogo, sobre as mulheres.
Correndo o risco de algum simplismo na formulação,
trata-se de apurar o maior ou menor grau de
machismo, ou de feminismo, que se reflete na obra
teológico-filosófica de Santo Anselmo. O que é que ele
pensava acerca da diferença e da relação entre homem
e mulher? Pensava acriticamente o que sua formação
cultural lhe transmitia, ou assumiu alguma posição
refletida sobre o assunto?
A posição anselmiana não sobressaiu ao
longo das primeiras abordagens que fizemos de sua
obra: por um lado, não começamos a lê-la com o
propósito de apurar essa posição; por outro, a
própria sobriedade da obra a esse respeito não nos
chamou desde logo a atenção para tal recanto da
mundividência anselmiana. De fato, só muito
pontualmente e na medida do necessário é que
Anselmo se ocupa do tema da mulher em sua obra.
Como interpretar esse fato? Anselmo não herdou
categorias que lhe permitissem valorizar a diferença
da mulher, embora alguns motivos de sua reflexão
teológica o tenham conduzido a integrá-la de certa
maneira. Veremos como isso se deu procurando
discernir a resposta anselmiana à seguinte pergunta:
paridade ou hierarquia entre homem e mulher?
O segundo nível de análise é menos óbvio e,
inevitavelmente, mais conjectural, pelo que não
deixa também de constituir, para nós, um desafio
filosófico mais interessante. Trata-se do desafio de
identificar, para além da face masculina, a face
feminina da filosofia moral e da teologia filosófica de
Santo Anselmo.
Assume-se a esse nível que a distinção entre
masculino e feminino não confina com a diferença
entre homem e mulher, sendo aquela distinção mais
primitiva e abrangente do que esta. Por essa razão,
referimo-nos, acima, ao masculino e ao feminino
como “princípios”. Na verdade, é hoje plausível
admitir que o masculino e o feminino são princípios
complementarmente constitutivos tanto do homem
como da mulher. Homem e mulher são lugares de
experiência da complementaridade dos dois
princípios, cabendo ao homem desenvolver
privilegiadamente as potencialidades do masculino e

106
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

à mulher, as do feminino.
Importa, entretanto, salientar que o
masculino e o feminino, embora determinem ampla
e multimodamente a vida da natureza, não são
princípios estritamente naturais e muito menos
imutáveis. Na vida humana, os dois princípios não
são mais naturalmente determinantes do que
culturalmente configurados. Ambos nos
determinam desde a origem, não só no concernente
à natureza, como também à cultura, pela maneira
como esta os representa. Aliás, não poderemos
tentar alguma caracterização ou definição desses
princípios senão por representações quer
simbólicas, quer conceitualmente elaboradas, mas
sempre culturalmente constituídas.
Ora, o propósito do presente estudo, no
segundo momento de análise, é detectar, na própria
linguagem anselmiana, sinais de associação, mais ou
menos mediata, de temas da filosofia moral e da
teologia filosófica quais sejam, a perseverança, a
piedade e a justiça – com aspectos e figuras do
masculino e do feminino. Desse modo,
compreenderemos como é que Anselmo acusa e
representa a complementaridade desses dois
princípios na sua obra.
Assim, julgamos poder compreender
também por que razão o machismo mais ou menos
declarado de muitos filósofos e teólogos não é um
obstáculo decisivo à influência de suas respectivas
obras na formação intelectual das mulheres que
acreditam no valor de sua contribuição própria em
áreas de tradição preponderantemente masculina.

1. Homem e mulher: paridade ou hierarquia?

Comecemos pelo tema da mulher em Santo


Anselmo. O tratado que mais explicitamente aborda
esse tema intitula-se De conceptu virginali et originali
peccato.
A questão de fundo que dá lugar a esse
tratado é cristológica e concerne à imunidade de
Jesus Cristo ao pecado original: como é que a
assunção da natureza humana não afeta Deus feito
homem com a marca do pecado original?1 Jesus só
poderia receber essa marca de Maria, por
intermédio de quem Ele assume a natureza humana.
A questão desloca-se então do foro da cristologia
para o da teologia mariana: por que razão Maria não

107
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

transmite a Jesus a marca do pecado original? Porque


essa marca transmite-se por via da natureza e Maria
não concebe Jesus de forma natural, donde sua
concepção não é afetada pela ordem da propagação
natural2. Essa é, em breves palavras, a resposta de
Anselmo, a qual exige naturalmente uma reflexão
sobre a índole do pecado original – pecado original
que é realmente o tema forte e central do tratado
anselmiano.
É também a propósito do pecado original e do
par que o protagoniza na narrativa bíblica, Adão e
Eva, que ressaltam algumas considerações, e
omissões, sobre o tema da mulher.
É claro que a narrativa do Gênese sobre Adão
e Eva era tomada pelos teólogos medievais como
uma narrativa histórica, embora esta suportasse
outros níveis de interpretação. Por tal razão, a
transgressão de Adão e Eva é, segundo Anselmo,
um pecado pessoal cometido nos primeiros tempos
da história humana. Esse primeiro pecado pessoal
causara na natureza do par originário uma carência
de justiça, que se propagou aos descendentes de
Adão como uma herança natural, a que a teologia
chamou “pecado original”3.
É hoje plausível interpretar as narrativas
sobre as origens da humanidade não já em termos
de história, mas de mito, o que não nega o teor nem o
valor de tais narrativas; antes as torna mais
significativas acerca do presente das civilizações do
que acerca de uma origem histórica da humanidade.
Nessa medida, a consideração da narrativa sobre
Adão e Eva como mito não invalida tudo o que a
teologia disse sobre esse par mítico ao tomá-lo
como um par histórico, apenas que a própria
teologia requer ser reinterpretada como proposta
de compreensão da mundividência do mito. Assim
entendemos a teologia anselmiana do pecado
original, construída na linha da forte tradição
agostiniana nessa matéria.
É nosso intuito destacar agora as alusões ao
tema da mulher, no âmbito da teologia do pecado
original, em Santo Anselmo. Antes, porém, ressalta
uma omissão: a ausência de categorias positivas para
tratar a diferença de ser mulher.
Anselmo debate-se de fato com essa
dificuldade, que se faz sentir como uma omissão
entre as distinções iniciais do tratado sobre o pecado
original. Nesse tratado, distingue-se desde logo e
claramente entre ser humano, ser pessoal e ser
adâmico: ser humano (homo) é ter uma natureza
especificamente determinada e divinamente

108
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

instituída por criação; ser pessoal (persona) é ser um


indivíduo, por meio de propriedades distintivas
relativamente aos demais indivíduos; ser adâmico
(filius Adae) é pertencer ao tronco humano dos
descendentes de Adão, por propagação ou geração
natural4, o que supõe a possibilidade de criação
divina de outros troncos humanos além do adâmico.
Os três nomes latinos homo, persona e filius Adae
significam, pois, três diferenças em cada um de nós:
homo significa a diferença específica da natureza;
persona significa a diferença própria do indivíduo; e
filius Adae significa a diferença de estirpe, ou a
diferença relativa à origem comum de um tronco
humano. E, quanto aos nomes próprios Adam e Eva,
ou aos nomes comuns masculus e femina: que
diferenças significam eles? É notório que Anselmo
não ignore que esses nomes significam diferenças,
mas ele não as valoriza nem as tematiza enquanto
tais.
Por um lado, Anselmo distingue
perfeitamente entre as noções associadas a homo e a
masculus, pois homo significa a natureza comum a
homens e mulheres, pelo que Adão e Eva podem ser
chamados conjuntamente homines5, enquanto
masculus não se aplica a ambos. Os nomes masculus e
femina significam diferenças inerentes à natureza
humana, que os nomes Adam e Eva conotam, mas que
não mereceram de Anselmo uma tematização
positiva análoga à das diferenças acima
discriminadas.
Por outro lado, Anselmo empenha-se muito
mais em salientar o que há de comum entre Adão e
Eva do que aquilo que os distingue. O que poderá
significar esse empenho, ou essa tendência? Reduzir
a diferença de Eva a uma redundância ou equipará-
la à dignidade de Adão? Encontramos alguma
ambiguidade nas respostas dadas pelo tratado
anselmiano, sobretudo acerca da responsabilidade
dos dois membros do par originário na origem do
pecado humano.
É certo que as palavras de Anselmo são claras
quanto à imputação da responsabilidade do
primeiro pecado pessoal da humanidade: Adão e
Eva são ambos pessoalmente imputáveis6. Há, pois,
uma corresponsabilidade pessoal na quebra
humana da ordem divina, pelo que o primeiro
pecado humano é, desde logo, um pecado coletivo.
Mas a que se deve a responsabilidade em ambos,
Adão e Eva, pelo pecado? Àquilo que é comum a
ambos, não àquilo que os distingue quer como
pessoas, quer como varão e mulher. Ora, aquilo que

109
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

é comum a ambos é a natureza humana, em especial


a vontade natural ou originalmente dotada de
justiça e, portanto, inteiramente soberana na decisão
quer de guardá-la, quer de rejeitá-la. A rejeição da
justiça original da vontade, ou seja, o pecado pessoal
de Adão e Eva, é, assim, imputável à natureza, que é
comum a ambos. Segundo a natureza, Adão e Eva
são iguais e igualmente responsáveis pelo primeiro
pecado humano. A noção anselmiana de natureza
na constituição do ser humano não dá razão para
negar uma relação paritária entre os dois membros
do par arquetípico do Gênese.
Todavia, no Capítulo IX de De conceptu virginali
et originali peccato, Anselmo questiona o hábito
doutrinal, com fundamento bíblico, de atribuir uma
desigual responsabilidade a Adão e Eva pelo
primeiro pecado. Por que razão, pergunta o teólogo,
o pecado original é mais habitual e especialmente
imputado a Adão do que a Eva, não obstante ter esta
pecado antes daquele, em conformidade com a
narrativa do Gênese?7
À primeira vista, esse costume de
responsabilizar mais Adão do que Eva pelo pecado
original pode parecer uma suavização do papel de
Eva na origem do mal; portanto, um favorecimento
desta e, com isso, da diferença de ser mulher. Sem
prejuízo dessa diferença, tal costume não é
sancionado pela teologia anselmiana do pecado
original, como acabamos de ver. No entanto, esse
costume não é inexplicável, e Anselmo admite três
razões para sustentá-lo, todas, curiosamente, em
desfavor ou em desprimor da diferença de ser
mulher em Eva.
Em primeiro lugar, Adão é mais imputável
do que Eva porque o nome de “Adão” pode ser
atribuído ao próprio par originário, na sua
totalidade, de acordo com o processo, comum na
linguagem natural, de nomear o todo pelo nome da
parte principal8. À luz dessa explicação, relativa à
ordem da linguagem, Eva não é realmente menos
imputável do que Adão, mas ambos são igualmente
imputáveis sob o nome da parte principal, que é
Adão. Essa primeira explicação não colide
obviamente com a teologia anselmiana do pecado
original, mas obriga a supor uma relação hierárquica
entre Adão e Eva e, desde logo, entre homem e
mulher, na qual a primazia pertence àquele. Desse
modo, Anselmo supõe que a distinção entre homem
e mulher dá naturalmente origem a uma relação
hierárquica entre ambos. Mas até que ponto ele

110
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

adere a essa suposição? Por um lado, Anselmo não a


comenta criticamente; por outro, sua teologia não
obriga a admiti-la.
A segunda explicação da maior
imputabilidade de Adão não consiste, na realidade,
senão em fundar a suposta relação hierárquica entre
homem e mulher na letra da própria narrativa
bíblica sobre Adão e Eva, segundo a qual Eva foi
formada a partir do lado de Adão. Nessa medida,
Eva é originariamente uma parte de Adão, pelo que
pode receber o nome do todo a que pertence9. Adão
é mais do que a parte principal, dado que é o todo de
que Eva procede. A hierarquia acentua-se. Embora a
igual dependência de Adão e Eva relativamente ao
Criador milite sempre a favor da paridade dos dois
membros do casal originário, a formação de Eva a
partir de Adão não deixa de favorecer a hierarquia
entre ambos e, nesta, a posição subordinada de
Eva10. Anselmo, que tomava o par mítico por um
par histórico, não questionava aquilo que a história
das origens supostamente estabelecera de forma
irreversível, a saber: a condição menor de Eva na
relação com Adão.
Prova disso é a terceira explicação da maior
imputabilidade de Adão. Aí, Anselmo elabora uma
razão consequente da própria condição menor de
Eva na relação com Adão. Admitindo, por hipótese,
que só Eva pecasse, seu pecado pessoal seria quase
irrelevante; só afetaria a ela e não se transformaria
num pecado original para o resto da humanidade –
Deus poderia até formar outra mulher a partir do
mesmo Adão, para substituir Eva e desempenhar
melhor o seu papel. Que papel? Não o papel
substancial de Adão, como semente da
humanidade, mas um papel instrumental no
desenvolvimento da humanidade adâmica,
segundo o propósito do Criador11.
Por essa razão, isto é, pela condição
instrumental de Eva, o pecado pessoal de Adão é
muito mais grave para o destino da humanidade do
que o de Eva. Adão e Eva podem ser igualmente
responsáveis pelo primeiro pecado humano, como
Anselmo preconiza claramente, mas podem não
ser igualmente responsáveis pela repercussão do
primeiro pecado no destino da humanidade. Essa
desigualdade não colide, de fato, com as teses
expressas da teologia anselmiana do pecado
original, embora esta não obrigue a afirmar tal
desigualdade.
De qualquer modo, a terceira explicação,
para o hábito de atribuir o pecado original menos a

111
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Eva do que a Adão, encerra a página mais machista


que encontramos no conjunto da obra de Santo
Anselmo.
Há, no entanto, ainda em De conceptu virginali et
originali peccato, uma interessante e apreciável
sugestão de paridade entre homem e mulher. Essa
sugestão emerge não já da teologia do pecado original,
mas da analogia entre Criação e Encarnação.
A analogia entre o Antigo e o Novo
Testamento, proporcionando uma leitura não literal
do primeiro à luz do segundo, era um procedimento
recorrente na tradição medieval da exegese bíblica.
Santo Anselmo aplica e desenvolve esse
procedimento no próprio tratamento teológico de
temas fundamentais do Antigo e do Novo
Testamento, quais sejam, respectivamente, a Criação
e a Encarnação. Da analogia anselmiana entre esses
dois temas no tratado em foco ressaltam duas
prioridades dominantes: por um lado, acentuar a
transcendência da ação divina tanto na Criação
como na Encarnação; por outro, equiparar os papéis
do homem e da mulher na causalidade dos dois
processos ad extra da ação divina12.
Antes de mais nada, Anselmo acentua a
transcendência da ação divina nos dois processos,
reservando para Deus exclusivamente o papel de
causa eficiente tanto na Criação primordial do
homem e da mulher quanto na manifestação
sobrenatural de Deus na história humana por meio
da Encarnação. Que papel desempenham, então, os
outros elementos que integram os dois processos?
Que papel cabe ao limo da terra na criação do
primeiro homem e a este na criação da primeira
mulher? Analogamente, que papel cabe à natureza
e à vontade do homem na iniciativa divina da
Encarnação e a Maria na origem de Jesus? São as
respostas a tais perguntas que acusam uma singular
defesa de paridade entre homem e mulher, segundo
Santo Anselmo. A analogia anselmiana estabelece
uma semelhança entre o limo da terra, Adão e Maria:
os três desempenham a função de causa material
nos processos em que respectivamente intervêm.
Na Criação, tal como o limo da terra é a matéria de
que é feito o primeiro homem, assim também este é a
matéria de que é feita a primeira mulher. Tal como
o limo da terra e o primeiro homem são causas
materiais no processo da Criação primordial, assim

112
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

também uma mulher é causa material no processo


da Encarnação, ou seja, Maria é a matéria de que
Jesus Cristo é feito. Esta interpretação do papel de
Maria na Encarnação pode ser criticada como
teologicamente pobre. Note-se, porém, que a
redução de Adão e de Maria a causas materiais,
segundo a teologia de Santo Anselmo, é
perfeitamente solidária com a tese fundamental da
eficiência exclusiva de Deus, tanto na Criação como
na Encarnação. Tal redução não é, ademais,
filosoficamente irrelevante acerca da condição de
ser mulher.
Mais habitual do que aproximar Maria e
Adão é contrapor Maria a Eva: enquanto por Eva
veio a perdição aomundo, por Maria veio a salvação.
Nessa contraposição, Eva e Maria são causas
instrumentais de efeitos contrários, em
conformidade com os quais, respectivamente, Eva é
depreciada e Maria, exaltada. Mas Maria é uma
mulher escolhida para desempenhar uma missãona
história da salvação, pelo que a exaltação de sua
pessoa, em nome de sua missão única e decisiva, não
concerne propriamente à condição comum de ser
mulher e não permite valorizar essa condição senão
acidental ou indiretamente. Em contrapartida, Eva
é a mãe de todas as mulheres, ou o símbolo
arquetípico da condição comum de ser mulher, pelo
que a negatividade de seu papel na história mítica
das origens não pode deixar de afetar essa condição.
A associação, por contraposição, entre Eva e Maria
não favorece, pois, a diferença comum de ser
mulher.
Tal associação também não aparece
sublinhada na obra de Santo Anselmo, o que é
compreensível à luz da teologia anselmiana do
pecado original, no âmbito da qual Eva não pode
ser entendida como meio da perdição do mundo:
por um lado, porque Eva e Adão são igualmente
corresponsáveis pelo primeiro pecado pessoal da
humanidade; por outro, porque, a admitir
desigualdade, é quanto à responsabilidade pela
herança do pecado original, no que Eva pode ser
considerada menos responsável do que Adão.
Como vimos acima, esta menor responsabilização
de Eva também não beneficia a condição comum
que ela representa.

113
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Entretanto, a analogia anselmiana entre os


papéis de Adão e de Maria como causas materiais,
respectivamente, na Criação e na Encarnação provê
à equiparação da mulher ao homem na causalidade
integrante da ação divina. Tal como de um homem,
Adão, Deus fez, por Criação, uma mulher, Eva,
assim também de uma mulher, Maria, Deus fez, por
Encarnação, um homem, Jesus. De acordo com essa
analogia, tanto um homem pode ser a matéria de
que é feita uma mulher quanto uma mulher pode
ser a matéria de que é feito um homem. Assim
sendo, o homem não é o todo de que a mulher é
apenas uma parte, nem o homem é a parte principal
de um todo de que a mulher é a parte menor, mas
homem e mulher são duas totalidades equiparáveis
entre si, que podem desempenhar a mesma função
na origem um do outro, qual seja, a função de causa
material.
Nessa semelhança entre Adão e Maria,
encontramos, sem dúvida, um forte indício da
teologia anselmiana a favor da paridade entre
homem e mulher. Um forte indício, não por ser
insistentemente explícito, mas por ser sutilmente
elaborado e integrado, como uma ideia
naturalmente decorrente dessa teologia. Como tal,
a semelhança entre Adão e Maria produz o
equilíbrio, que, segundo Santo Anselmo, o Novo
Testamento permite aduzir ao Antigo, na relação
entre as diferenças de ser homem e de ser mulher. O
cristianismo constitui, pois, na teologia anselmiana,
um passo decisivo na promoção da condição
feminina.

2.Masculino e feminino: a complementaridade

Embora as diferenças de ser homem e de ser


mulher sejam determinadas, respectivamente, pelos
princípios do masculino e do feminino, esses
princípios não confinam com aquelas diferenças,
pois que os princípios são mais primitivos do que as
diferenças por eles constituídas e são
complementares entre si na constituição de cada
uma delas. Entretanto, como cada um de nós não
pode abstrair da diferença constituída de ser
homem, ou da diferença de ser mulher, investida
em determinada circunstância cultural, nenhum de
nós pode apurar os princípios constitutivos dessas
diferenças, o masculino e o feminino, senão pela
maneira como nossa cultura coletiva e individual os

114
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

configura e representa, mais ou menos


refletidamente. Santo Anselmo também não pode
escapar a essa regra. Julgamos, aliás, não ser de
forma irrefletida que tais princípios repercutem na
sua obra. Enfocando essa repercussão, destaquemos
as figuras e as ideias que representam o masculino e
o feminino na obra anselmiana.
Para esse efeito, algumas sutis variações e
preferências terminológicas podem revelar-se
prestimosos sinais condutores. Em particular,
Anselmo dispunha de dois pares de termos para
significar as diferenças de ser homem e de ser mulher:
masculus e femina; vir e mulier. Ambos os pares são usados
em De conceptu virginali et originali peccato. Todavia, o
autor prefere as combinações de vir e femina, ou de vir e
mulier, a respeito da semelhança entre Adão e Maria,
isto é, no âmbito da analogia que promove e equipara
o papel do feminino humano ao do masculino
humano em ações sobrenaturais de Deus13. O uso dos
termos femina e mulier aparece, assim, associado a uma
afirmação de valor da diferença que ambos os termos
significam. Algo similar acontece, especialmente, com
o termo vir: por um lado, vir é o termo que Anselmo
prefere empregar para significar a diferença comum
de gênero que se estende à natureza humana de Jesus;
por outro, o uso do advérbio derivado viriliter
respeita, na linguagem anselmiana, a uma qualidade
moral da maior relevância filosófica e teológica, a
perseverança.
A virilidade moral, interior e espiritual, é a
perseverança. A estreita associação entre as ideias de
virilidade e de perseverança nos foi sugerida pelo
epistolário anselmiano. Neste, destacamos quatro
cartas de fases diferentes da vida de Anselmo, as
quais mantêm, como uma constante, o uso do
advérbio viriliter associado à significação de
qualidades da vida espiritual que integram ou
supõem a perseverança.
Na carta de Anselmo prior do mosteiro de Bec,
a dois monges de Cluny, Odo e Lanzo, aliam-se
contiguamente, no progresso da vida espiritual, as
ideias de mais forte insistência (fortior instando), de mais
alegre perseverança (laetius perseverando) e de viril
fortalecimento (viriliter confortatus)14. Não se trata de
três ideias aleatoriamente reunidas, mas de um
crescendo de estados, desde a esforçada insistência até
a consolidada fortaleza, que integram o exercício
espiritual da perseverança, não obstante Anselmo
utilize o verbo perseverare para significar um estado
intermédio, tomando o todo pela parte.

115
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Na carta de Anselmo abade do mosteiro de


Bec, a Ermengarda, essa destinatária, nobre e casada,
que renunciara à vida conjugal de comum acordo com
o marido, é referida como alguém a quem foi dado
sofrer tão virilmente tantas tribulações por guardar
castidade (tot tribulationes pro tuenda castitate tam viriliter
sufferre)15, isto é, como alguém a quem foi dado
perseverar na castidade.
Na carta de Anselmo já arcebispo de Cantuária
a Guilherme, monge de Chester, todos – leigos,
clérigos e monges – são incentivados, cada qual no seu
estado, a progredir virilmente e sempre (viriliter semper
proficere)16, isto é, perseverantemente, no caminho da
perfeição.
Noutra carta de Anselmo como arcebispo de
Cantuária, ele dirige-se ao destinatário, Rainaldo,
exaltando suas fundamentais escolhas, como a de
superar virilmente a pobreza (viriliter paupertatem
superanti)17. Não se trata certamente de ultrapassar a
pobreza com a riqueza, mas de perseverar no voto de
pobreza.
De acordo com esses testemunhos do
epistolário anselmiano, todas as expressões de
virilidade espiritual são permutáveis com o exercício
da perseverança.
Entretanto, a perseverança é um tema central
da filosofia moral de Santo Anselmo: por quê? Por
causa do descentramento do tema da liberdade na
questão da origem do pecado e do aprofundamento
dessa questão a respeito da queda dos anjos. Para
Anselmo, o pecado não é uma escolha livre, mas
uma traição ao próprio exercício da liberdade, que
é a preservação da retidão da vontade. Essa traição
é um abandono sem constrangimento do dom
original de retidão da vontade, segundo De libertate
arbitrii 18. Tal é o pecado pessoal dos humanos. Ora, o
abandono da retidão da vontade não é senão uma
falta de perseverança nessa mesma retidão. A falta de
perseverança é, por sua vez, o abandono sem
constrangimento do dom de perseverança na
retidão da vontade, segundo De casu diaboli 19. Tal é o
pecado dos anjos caídos.
Assim como o abandono da perseverança é o
pecado dos anjos caídos, a perseverança é o dom
tornado inseparável dos anjos confirmados. Como a
perseverança vem por vezes conotada com uma
ideia do masculino, a virilidade, cabe dizer que ela é
um dom masculino de Deus aos anjos. A
perseverança é a virilidade dos anjos. Estes são
confirmados pela inerência de um dom que é uma
qualidade representativa do princípio masculino.

116
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Atendendo à relevância moral dessa qualidade,


visto que a questão do bem ou do mal se traduz, em
Santo Anselmo, pela questão de perseverar ou de
não perseverar na retidão da vontade, a
perseverança é uma qualidade superiormente
representativa do masculino.
Da masculinidade da perseverança não
decorre, porém, que esta seja uma qualidade
negada às mulheres. A virilidade dos anjos não é
uma qualidade física, mas espiritual, pelo que
constitui também um valor para a diferença de ser
mulher. Em conformidade com o próprio
testemunho de Anselmo nas cartas a Ermengarda e a
Guilherme, todos – homens e mulheres, leigos,
clérigos e monges – são chamados à virilidade
espiritual, que é a perseverança. O valor comum da
perseverança acusa, portanto, a
complementaridade do masculino na afirmação da
diferença de ser mulher: uma mulher perseverante
é melhor do que uma mulher não perseverante.
Resta saber se Anselmo considera algum
outro valor comum que acuse a complementaridade
do feminino na afirmação da diferença de ser
homem. Julgamos que sim. De fato, há outro valor
comum, que Anselmo assume em estreita união com
uma figura do feminino. O valor comum é, de novo,
uma qualidade moral: a piedade (pietas). A figura do
feminino associada é a de mãe. A associação entre
piedade e maternidade, em Santo Anselmo, inspira-
se expressamente no célebre episódio ilustrativo da
sabedoria de Salomão, narrado em 1 Rs 3, 16-28:
entre as duas mulheres que reclamavam a mesma
criança, aquela que provou ser mãe foi aquela que
manifestou piedade, renunciando à posse da criança
mas salvando-lhe a vida. Da interpretação
anselmiana dessa piedade materna resulta, a nosso
ver, a noção de uma qualidade superiormente
representativa do princípio feminino.
Em que consiste, então, a piedade para
Anselmo? A piedade consiste numa renúncia: a
renúncia à vontade própria pelo bem de outrem.
Desse modo, Anselmo converte em definição geral
da piedade a atitude paradigmática da mulher que
prova ser mãe pela capacidade de tal renúncia. Na
medida em que essa renúncia é sinal inequívoco de
maternidade, a piedade por ela definida não pode
deixar de afirmar-se como qualidade
essencialmente materna; logo, como qualidade
representativa de uma figura crucial do feminino.
Da configuração maternal da piedade não se
segue, porém, que esta seja uma qualidade exclusiva

117
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

das mães biológicas. Pode haver mães biológicas


desprovidas de tal piedade, assim como pode haver
homens literalmente viris, mas desprovidos
daquela virilidade espiritual conotável com a
perseverança. A piedade materna é, tal como a viril
perseverança, uma qualidade espiritual que
constitui um valor comum para ambas as diferenças,
a de ser mulher e a de ser homem. A piedade
materna denuncia, em particular, a
complementaridade do feminino na afirmação da
diferença de ser homem: um homem piedoso é
melhor do que um homem sem piedade.
Disso mesmo nos dá testemunho, uma vez
mais, o epistolário anselmiano. Na carta de
Anselmo arcebispo deCantuária ao abade Geronto,
aquele apela à piedade maternal deste para resolver
o problema delicado de certo monge, feito clérigo e
feito monge, respectivamente, em mosteiros
distintos, que se via impedido por esse fato de firmar
sua pertença a um dos dois mosteiros, a menos que
fosse libertado dos votos feitos no outro.
Parafraseando 1 Rs 3, 26-27, Anselmo exorta
Geronto a ser genuinamente mãe, para renunciar à
jurisdição sobre esse monge, por ele feito clérigo, em
favor da plena assunção de sua vida monástica
noutro mosteiro20.
Com esse apelo à maternidade de um abade,
Anselmo manifesta não ter uma visão redutora do
feminino, reconhecendo em aspectos ou figuras do
feminino não dimensões menores do humano, mas
fatores de humanidade.
Em suma, é possível admitir que, na filosofia
anselmiana da moralidade, a renúncia (piedade) é
feminina, porquanto é uma representação ideal ou
superior do feminino, bem como a perseverança é
masculina, porquanto é uma representação ideal ou
superior do masculino. Feminino e masculino são,
como Anselmo supunha de fato, dois princípios
complementares do ser humano, mulher ou varão,
no tocante a seu melhor desempenho.
Todavia, nem a piedade, nem mesmo a
perseverança têm um relevo comparável àquele que
obtém a justiça na filosofia e na teologia de Santo
Anselmo. Na filosofia de De veritate, a justiça
identifica-se com a retidão da vontade e constitui a
principal especificação da noção de verdade. Na
teologia de Cur deus homo, a justiça é o atributo divino
determinante da necessidade da Encarnação para a
salvação da humanidade adâmica.
A tensão entre justiça e misericórdia é, aliás,

118
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

significativa a esse propósito. A hipótese do primado


da misericórdia relativamente à justiça, na ordem
dos atributos divinos, permite conceber a salvação
sem redenção; logo, sem a necessidade da
Encarnação para realizar essa redenção. Mas a
possibilidade de relevar um pecado não remido é,
em si mesma, uma injustiça. Deus não pode, então,
ser tão misericordioso a ponto de lesar sua própria
justiça. Donde a necessidade de redenção para a
salvação e, com ela, a necessidade da Encarnação. A
justiça condiciona, pois, a misericórdia divina21.
Essa afirmação do primado da justiça
relativamente à misericórdia, na teologia de Cur deus
homo, significa, sem dúvida, um imperativo de
ordem: em primeiro lugar, aquela que determina a
inconveniência do perdão sem a remissão da falta;
em última análise, aquela que determina a
conveniência de completar, ou de conduzir à
perfeição, a Cidade Celeste, expressão última da
Criação22. Essa conveniência é, na verdade, a razão
mais fundamental pela qual Deus não pode deixar
de se empenhar na regeneração de sua obra. É
discutível que seja ainda por imperativo da justiça
que Deus queira completar a obra da Criação, ou
realizar a perfeição da Cidade Celeste. De qualquer
modo, a exigência de tal completude ou perfeição é
ainda um imperativo de ordem: a ordem dos fins
últimos. Ora, não encontramos, na teologia filosófica
de Anselmo, atributo que exprima melhor do que a
justiça algum imperativo de ordem na vontade e na
ação de Deus.
Admitindo que a justiça represente, em
qualquer caso, um imperativo de ordem, como
interpretar o relevo da justiça na teologia
anselmiana? Por um lado, é claro para nós que a
dominância do tema da justiça em Santo Anselmo
assinala uma concepção de Deus contida nos
limites, isto é, subordinada às condições de uma
ordem racional. Por outro lado, nos é menos claro,
mas questionável, que a justiça represente uma
ideia do masculino, o domínio da ordem, na
teologia filosófica. Nesse caso, a justiça
representaria uma feição masculina de Deus, que
revelaria, então, ser predominante na teologia
filosófica de Anselmo.
Não nos parece, contudo, que a noção
anselmiana de justiça seja exclusivamente
masculina. Considerando a justiça definida em De
veritate, não é difícil articulá-la com as noções já

119
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

analisadas de perseverança e de piedade, para


encontrar nela a complementaridade de duas ideias
representativas, respectivamente, do masculino e
do feminino.
Ora, segundo De veritate, a justiça é a retidão da
vontade guardada (servata) por si mesma, isto é,
observada e conservada por causa, unicamente, de
si mesma23. A justiça é a retidão da vontade, e a
perseverança é a guarda indefectível da retidão da
vontade. A afinidade é óbvia: a perseverança
participa da definição da justiça como condição de
seu cumprimento e manutenção. Sem perseverança,
a justiça perderia sua relação essencial com a
vontade. Não há justiça sem perseverança. O
abandono da perseverança é, concomitantemente, o
abandono dajustiça. Dado que a perseverança é viril,
nos termos da filosofia moral de Anselmo, a justiça
comporta, em sua definição, uma ideia
representativa do masculino.
A aplicação teológica da noção de justiça como
atributo divino não põe em causa esse estreito
vínculo entre justiça e perseverança. Como a justiça é
inseparável da vontade divina, Deus não pode ser
senão perseverante. Por isso mesmo não há
necessidade de destacar a perseverança como um
atributo divino distinto da justiça.
Resta, por fim, ponderar se a noção de justiça
comporta igualmente, na sua definição, uma ideia
representativa do feminino. Segundo a definição
anselmiana de justiça, esta é a retidão guardada por
causa de si mesma (propter se), isto é,
incondicionalmente. A justiça é, portanto, a retidão
incondicional da vontade. A justiça é incondicional
porquanto não é condicionada por algum outro
motivo da vontade, qual seja, algum interesse
egoísta do sujeito de vontade. Em Santo Anselmo,
qualquer interesse desse gênero cai no âmbito da
noção pejorativa de vontade própria. A justiça não
será incondicional, pois, sem a renúncia à vontade
própria, que abrange qualquer interesse egoísta.
Como a justiça é, por definição, incondicional,
ninguém pode ser justo sem renunciar a essa
vontade, ou a esse gênero de interesse. A renúncia à
vontade própria é a eliminação de uma condição
obstante à justiça. Desse modo, a renúncia à vontade
própria participa da negação de todas as condições,
o que define a diferença da justiça como retidão
incondicional. Mas a renúncia à vontade própria é,
como vimos, aquilo que Anselmo entende por
piedade, e esta é feminina, na medida em que é

120
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

especialmente representativa da figura materna. A


noção anselmiana de justiça, na medida em que
supõe a piedade, não deixa, afinal, de incluir, na sua
constituição, um elemento representativo do
feminino.
A aplicação teológica da noção de justiça
também não põe em causa esse estreito vínculo entre
justiça e piedade. A justiça divina é naturalmente
não condicionada pela vontade própria, pois em
Deus não há vontade própria conflitante com a
vontade justa. Por isso mesmo não há também
necessidade de discernir a piedade da justiça no
domínio dos atributos divinos.
Em virtude da acuidade da reflexão
filosófico-teológica de Santo Anselmo, sua obra não
podia deixar de sugerir, no âmbito de seus temas
dominantes, a complementaridade dos dois
princípios estruturantes do real, o feminino e o
masculino, mesmo que estes não se encontrem nela
tematizados.

Notas

Cf. De conceptu virginali et originali peccato (DCV), c.1, in : F. S.


Schmitt (ed.), S. Anselmi Cantuariensis Archiepiscopi Opera
Omnia, II, StuttgartBad Cannstatt, 1968, p. 140.
Cf. DCV, c.11, in Schmitt, II, pp. 153-154.
Cf. DCV, cc.1-2, in Schmitt, II, pp. 140-142.
“Licet enim in unoquoque homine simul sint et natura qua est homo, sicut
sunt omnes alii, et persona qua discernitur ab aliis, ut cum dicitur iste vel
ille, sive proprio nomine, ut Adam aut Abel (…)”, DCV, c.1, in Schmitt,
II, p. 140; “Est quidem unusquisque filius Adae et homo per creationem, et
Adam per propagationem, et persona per individuitatem, qua discernitur
ab aliis”, DCV, c.10, in Schmitt, II, p. 151.
“Siquidem Adam et Eva originaliter, hoc est in ipso sui initio mox ut
homines extiterunt, sine intervallo simul iusti fuerunt”, DCV , c.1, in
Schmitt, II, p. 141.
“Ergo Adam et Eva si iustitiam servassent originalem: qui de illis
nascerentur, originaliter sicut illi iusti essent. Quoniam autem personaliter
peccaverunt, cum originaliter fortes et incorrupti haberent potestatem
semper servandi sine difficultate iustitiam: totum quod erant infirmatum
et corruptum est”, DCV, c. II,
in Schmitt, II, p. 141.
“Ad quod videtur mihi quaerendum in primis, cur saepius et specialius
peccatum quo damnatum est humanum genus, [magis] imputetur Adae
quam Evae, cum illa prior peccaverit et Adam post et per illam. Dicit enim
apostolus: 'Sed regnavit mors ab Adam usque ad Moysen, etiam in eos qui
non peccaverunt in similitudinem praevaricationis Adae' (Rom. 5, 14).
Multa quoque alia leguntur quae magis Adam quam Evam criminari
videntur”, DCV, c. 9, in Schmitt, II, p. 150.
“Quod ideo fieri existimo, quia illa duorum copula tota intelligitur in
nomine principalis partis, sicut saepe per partem totum solet significari”,
ibid.
“(…); aut quoniam Adam cum costa sua quamvis aedificata in mulierem
dici poterat Adam, sicut legitur quia deus 'masculum et feminam fecit eos et

121
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

benedixit illis, et vocavit nomen eorum Adam in die quo creati sunt' (Gen. 5,
2)”, ibid.
O que não elimina a possibilidadede leituras favoráveis a
Eva e à condição da mulher, como a que segue: “De facto,
[Deus] criou o homem neste mundo vil, e da lama, e a
mulher num segundo tempo, no paraíso e da nobre matéria
humana. E não a formou dos pés ou das entranhas do corpo
de Adão, mas da costela”. U. Eco, O nome da rosa (1980), trad.
M. C. Pinto, Lisboa, Difel, p. 248.
“(…); aut idcirco,quia si non Adam sed sola Eva peccasset,non necesseerat
totum genus hominum perire, sed solam Evam. Poterat namque deus de
Adam, in quo semen omnium hominum creaverat, aliam facere mulierem,
per quam de Adam propositum dei perficeretur”, DCV, c. 9, in Schmitt,
II, pp. 150-151.
“Sicut namque limus terrae non acceperat naturam aut voluntatem, qua
operante vir primus de illo fieret, quamvis esset de quo a deo fieri posset: sic
non est facta mulier de costa viri aut vir de sola muliere operante natura aut
voluntate hominis, sed deus propria potestate et voluntate fecit virum
unum de limo et alterum de sola femina, et feminam de solo viro”, DCV ,
c. 11, in Schmitt, II, p.153; “Pariter tamen verus est homo et Adam de
non-homine, et Iesus de sola muliere, et Eva de solo viro, sicut est verus homo
quilibet vir aut mulier de viro et muliere”. Ibid ., p. 154.
V er nota12.
“Esto itaque, amice mi, sollicitus, ut spatium vitae quod tibi restat – quai
nescis quam breve est – sic expendas, ut de die in diem sanctum mentis
propositum ad meliora extendas. Quatenus si quid te gravat bene vivere,
quanto magis laborem tuum ad finem festinare et te ad requiem et coronam
appropinquare consideras, tanto fortius instando et laetius perseverando
viriliter confortatus proficias”, Epistola ad Odonem et Lanzonem , in
Schmitt, III, Ep. 2, pp. 100-101.
“Audivi, carissima domina, qualiter sit inter virum vestrum et vos,
quoniam nobilitas vestra non hoc patitur occultari, sed longe lateque facit
publicari. In qua re primum gratias ago deo, a quo est omne bonum, qui
eidem viro vestro dedit tanta constantia temporalem gloriam pro aeterna
contemnere, et vobis concessit tot tribulationes pro tuenda castitate tam
viriliter sufferre; ita tamen ut ille in ipso mundi contemptu non plus
diligat se ipsum quam vos, nec vobis aliquid in hoc mundo sit carius illo”,
Epistola ad Ermengardam , in Schmitt, III, Ep. 134, pp. 276-277.
“Nam etsi omnes ad perfectionis summam pariter pervenire non possimus,
non tamen erimus extra numerum bonorum, sicut scriptum est:
'imperfectum meum viderunt oculi tui, et in libro tuo omnes scribentur', si
ad eandem perfectionem incessanter et fortiter conari velimus. Conentur
igitur laici in suo ordine, clerici in suo, monachi in suo viriliter semper
proficere, ut illi qui superioris propositi sunt, eos qui inferioris sunt,
humilitate – in qua quantum homo magis proficit, tanto magis sublimatur
– et aliis virtutibus excellere”, Epistola ad Willelmum monachum
Cestrensem, in Schmitt, IV , Ep. 189, p. 75.
“Anselmus, archiepiscopus Cantuariae: Rainalmo, sapienter veritatem
vanitati praeponenti, fortiter gloriam transitoriam pro honestate
contemnenti, viriliter paupertatem superanti, salute et gratia dei semper
protegi et confortari”, Epistola ad Raimalmum episcopum Herefordensem
resignatum, in Schmitt, V, Ep. 343, p. 280.
Cf. De libertate arbitrii ,c. 3, in Schmitt, I , p. 212.
Cf. De casu diaboli , cc.1-4, in Schmitt, I , pp. 233-242.
“Quidam monachus, sicut ab illo didici, alligatus ecclesiae vestrae per
quandam professionem, quam in habitu clericali vobis fecit, et similiter
monasterio Sancti Petri, quod Carnoti situm est, ubi habitum monachi
assumpsit per aliam professionem: dicit se nullatenus posse habere
solutionem a vobis neque ab abbate Carnotensi, ut vel in Carnotensi
monasterio vel in vestro animam suam salvet; quod facere nequit, nisi aut
a vobis aut ab abbate Carnotensi absolutus fuerit. Consideret igitur
prudentia vestra quia non expedit nec decet vos abbates, ut animam eius

122
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

quisque sibi trahendo scindatis, sed in vobis esse maternam pietatem et plus
vos diligere animam proximi quam propriam voluntatem ostendatis. Ille
enim se magis ostendet esse matrem, qui dicet alteri: habeto tu solus
infantem vivum, ne ambo eum occidamus; ut cum venerit verus Salomon,
dicat: 'date huic infantem vivum', 'haec est enim mater eius' (1 Reg. 3, 27).
Nam vera mater mavult filium suum in alieno sinu vivere, quam in suo
mortuum fovere. Notum autem sit sanctitati vestrae quia, sicut cognoscere
potui, magis expedit propter plures causas eum Carnoti remanere quam ad
vos remeare. Unde si auderem, religioni vestrae consulendo suggerem,
quatenus vos non falsam, sed veram matrem esse probaretis”, Epistola ad
Gerontem abbatem, in Schmitt, IV , Ep. 302, pp. 223-224.
Cf. Cur deus homo (CDH ), I , c. 12, in Schmitt, II , pp. 69-70.
Cf. CDH , II , cc. 4-5, in Schmitt, II , pp. 99-100.
“Iustitia igitur est rectitudo voluntatispropter se servata”,
De veritate, c. 12, in Schmitt, I, p. 194.

123
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

DESCARTES,
AS MULHERES E A FILOSOFIA
MARIA LUISA RIBEIRO FERREIRA
(Universidade de Lisboa)

1.As mulheres e a filosofia

A relação de Descartes com as mulheres


interessou a alguns filósofos do começo do século XX.
Foucher de Careil, Charles Adam e Ernst Cassirer,
entre outros, investigaram o impacto do
cartesianismo nas mulheres do seu tempo,
centrando-se exatamente nos mesmos casos que irão
ser considerados1. Contudo, a perspectiva que
seguiremos difere da dos autores referidos,
podendo-se mesmo dizer que é contrária à que
defendem. Assim, não é nosso objetivo mostrar que
Descartes influenciou o pensamento feminino da
época, mas sim considerar no filósofo as marcas
deixadas por certas mulheres. Pretendemos
também provar que a relação do filósofo francês com
as intelectuais de seu tempo é significativa da
presença feminina na tradição filosófica ocidental,
bem como do modo próprio como as mulheres
praticavam/praticam filosofia. Embora se citem três
figuras, a tônica é colocada naquela que tem maior
relevância filosófica, ou seja, a princesa Elisabeth da
Boêmia.
Para uma melhor compreensão do universo
significativo em que nos colocamos, afloraremos,
com a devida brevidade, dois pontos: em primeiro
lugar, a presença da mulher no pensamento
moderno; em seguida a misoginia dos filósofos da
modernidade.

A presença da mulher no pensamento moderno

É habitual dizer que não houve mulheres


filósofas e que só agora, no século XX, começamos a ver
despontar uma produção filosófica feminina com
alguma continuidade. Dado que a filosofia se tem
empenhado na luta contra os preconceitos, é justo que se
derrube esse falso lugar-comum – o que imediatamente

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

acontece se atentamos aos fatos. Na verdade, há muitos


textos filosóficos seiscentistas escritos por mulheres.
Limitamo-nos a referir alguns/algumas sobre os/as
quais nos temos debruçado: Margareth Cavendish,
duquesa de Newcastle e suas Philosophical Letters; Anne
Conway e The Principles of the Most Ancient and Modern
Philosophy; Catherine Cockburn e A Defense of Mr.Locke's
Essay of Human Understanding; a princesa Elisabeth da
Boêmia e a correspondência que manteve com Descartes;
Lady Masham e as cartas que escreveu a Leibniz; Mary
Astell e A Serious Proposal to the Ladies; etc.
A primeira questão que logo surge prende-
se àsrazões que levaram à pouca ou nula divulgação
de tais textos. Em alguns casos, como o de Catherine
Cokburn e o de Elisabeth da Boêmia, foram as
próprias autoras que expressamente negaram sua
publicação. Em outros, como o de Margareth
Cavendish, a obra foi apenas editada no século XIX.
Também Anne Conway, que escreveu na mesma
época, só em 1982 foi redescoberta e reeditada. E Lady
Masham, que publicou anonimamente alguns
livros, viu-os ser atribuídos a Locke.
As histórias da filosofia são feitas por
homens. O mundo da filosofia é um mundo de
filósofos. Se nos lembrarmos de que os pensadores
da modernidade encaravam as capacidades
intelectuais das mulheres com arrogância ou, na
melhor das hipóteses, com condescendência, não
espanta que o preconceito que pretendemos
derrubar tenha feito carreira com a cumplicidade ou
mesmo com a ajuda dos filósofos. O que nos leva ao
segundo ponto:

A misoginia dos filósofos da modernidade


Os filósofos modernos têm em pouca conta as
mulheres, podendo-se mesmo qualificá-los de
misóginos. E isso tanto no plano prático quanto no
teórico. Se atendermos a uma lista dos maiores, na
qual incluímos Descartes, Pascal, Malebranche,
Hobbes, Spinoza, Leibniz, Locke, Hume e Kant,
verificamos, em primeiro lugar, que todos são
solteiros. Depois, vemos que de nenhum deles
conhecemos uma relação amorosa estável.
Finalmente, constatamos que o modo como se
referem às mulheres é depreciativo. O que nos leva
a falar de sua misoginia teórica. E isso acontece
mesmo com aqueles que mais se empenharam na
defesa dos direitos civis e políticos. Assim é que
Spinoza, ao analisar a democracia no capítulo final

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

do Tratado Político, exclui as mulheres de uma


possível participação ativa nesse regime, tal como
exclui os servos, as crianças, os pupilos, os
criminosos e todos aqueles que sejam portadores de
desonra. A perplexidade que tal posição nos levanta
num filósofo que declara guerra a todos os “praejudicia”
é reforçada quando vemos o modo como justifica tal
rejeição, pois, para ele, não é pelo costume (“ex instituto”)
que se nega tal direito, mas sim “ex natura”2. Os
homens não apreciam as mulheres pela inteligência
ou pela virtude, mas pela beleza. Tirante as ilações
éticas e políticas dessa tese, somos obrigados a
concluir com o filósofo que, na medida em que
desencadeiam paixões, as mulheres são
desestabilizadoras, justificando-se, desse modo, sua
supressão enquanto membros ativos num processo
democrático.
Aparentemente contrária é a posição de
Hobbes. Este sustenta, no Cap. XX do Leviathan, que
a menoridade das mulheres é algo de
convencionado; portanto, de artificial. Elas estão
submetidas aos maridos porque as leis são feitas
por homens, nada havendo na natureza destas que
determine tal situação. Assim, advoga que no
estado de natureza, no qual não há leis
matrimoniais, o direito de domínio dos filhos
pertence à mãe3. No entanto, há inúmeras passagens
em que o filósofo inglês demonstra sua displicência
para com o sexo fraco, comparando as mulheres às
crianças, pela propensão que têm para o choro,
criticando-as pelas histórias absurdas que contam
aos filhos quando lhes explicam o seu nascimento e
recomendando que não deverão falar nas
assembleias religiosas4.
Lembremos também que, na Resposta à pergunta:
que é o Iluminismo?, Kant convida seus
contemporâneos a abandonar a menoridade
intelectual a que uma posição de preguiça e
comodismo os tinha relegado. Mas enquanto
admite que haja alguns homens que pensem por si
mesmos, afirma que todas as mulheres são
intelectualmente menores, aceitando de bom grado
a orientação alheia:
É porque a imensa maioria dos homens (inclusive
todo o belo sexo) considera a passagem à
maioridade difícil e também muito perigosa que
os tutores de boa vontade tomaram a seu cargo a
superintendência deles5.
Poder-se-á justificar essa passagem como um

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

desabafo, uma cedência à linguagem da época, pouco


reveladora do modo profundo de pensar do filósofo
prussiano. No entanto, se considerarmos outros textos
em que o autor analisa a diferença caracterial entre os
sexos, verificamos que neles reitera a mesma opinião.
Veja-se o seguinte extrato das Observações sobre o
sentimento do Belo e do Sublime:

A meditação profunda e a contemplação


prolongada são nobres, mas são difíceis e não
convêm a uma pessoa de quem os estímulos
espontâneos não devem mostrar outra coisa que
não uma bela natureza. O estudo laborioso ou a
especulação penosa, mesmo que uma mulher
neles se destaque, sufocam os traços que são
próprios do seu sexo; e, não obstante dela façam,
pela sua singularidade, objeto de uma fria
admiração, ao mesmo tempo enfraquecem os
estímulos por meio dos quais exerce seu grande
poder sobre o outro sexo. A uma mulher que tenha
a cabeça entulhada de grego, como a senhora
Dacier, ou que trave disputas profundas sobre
mecânica, como a marquesa de Châtelet, só pode
mesmo faltar uma barba, pois com esta talvez
consiga exprimir melhor o ar de profundidade a
que aspira6.

2.Descartes e as mulheres

Um título desses poderia pressupor


considerações sobre as referências feitas pelo filósofo
a algumas figuras femininas com as quais lidou de
perto, referências essas relatadas pelo seu biógrafo
Baillet. É o caso da jovenzinha estrábica que amou em
criança e que lhe determinou para o resto da vida uma
atração inexplicável por mulheres vesgas7; ou da filha
Francine, cuja morte prematura o mergulhou num
estado depressivo; ou da criada com quem viveu
poucos anos e de quem se separou sem escrúpulos
nem mágoa, embora ela fosse mãe de sua filha. É
verdade que a interferência dessas experiências
emotivas no sistema cartesiano está ainda por ser
estudada, mas deixemos para outros a exploração
de tais tópicos.
Uma outra possível linha investigativa seria
aprofundar o impacto da filosofia cartesiana no
conceito de razão que a modernidade difundiu,
analisando até que ponto uma filosofia no feminino foi
por ela beneficiada ou prejudicada. Trata-se de uma
tarefa interessante, que tem sido desenvolvida dentro

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

dos designados “Women Studies” e da qual resultam


alguns trabalhos originais sobre o pensamento do
filósofo. Relevamos particularmente o livro de
Geneviève Lloyd, The Man of Reason, bem como os
artigos que essa filósofa tem publicado sobre
Descartes. As teses defendidas por Lloyd sustentando
que Descartes é responsável por um estreitamento do
conceito de razão, circunscrevendo-a a uma faculdade
abstrativa e espartilhando-a num método, levam-na a
acusar o filósofo de ter construído uma razão
predominantemente masculina, intolerante perante
outras instâncias que não ela própria, secundarizando
o corpo, a imaginação, a paixão e a sensibilidade8.
Embora a polêmica suscitada por Lloyd constitua um
marco incontornável para uma investigação sobre
Descartes, ela interessa sobretudo a quem se dedique
ao estudo das implicações da filosofia cartesiana nos
estereótipos conceituais sobre a mulher moderna. Por
ora não é esse o tema de que nos propomos tratar.
Também seria possível desenvolver dentro
desse título o impacto provocado pelo pensamento
cartesiano nas mulheres cultas de seu tempo. Na
verdade, a maioria das intelectuais suas coevas
elegeu o filósofo como ponto de referência. Quer o
critiquem, como Anne Conway e Margareth
Cavendish9, quer o apreciem, como Elisabeth da
Boêmia e Cristina da Suécia, Descartes é a pedra de
toque das reflexões que empreendem, podendo ser
considerado o grande impulsionador da
participação feminina nas lides filosóficas.
Qualquer das três linhas de investigação
mencionadas é pertinente. Avançaremos, no
entanto, com uma perspectiva com a qual, como
referimos no início, pretendemos mostrar que
devemos a certas mulheres uma melhor
compreensão do pensamento cartesiano. Justifica-se
então que num primeiro momento tenhamos presente
o modo como o filósofo encara a condição feminina –
o que faremos recorrendo ao material que sob esse
aspecto nos parece mais significativo: as cartas.
A análise da correspondência de Descartes nos
mostra que, relativamente às mulheres, a posição do
filósofo está longe de ser clara. É verdade que ele as
considera menos preconceituosas do que os homens10.
Contudo, essa tese convive com outras atitudes que
vão da galanteria ao paternalismo, da adulação à
condescendência. Assim, é uma superioridade
benevolente que leva o filósofo a justificar o uso do
francês em certos textos. O Discurso do Método,
destacado por sua facilidade, é apresentado como “um

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

livro em que quis que até as mulheres pudessem


perceber alguma coisa”11. Há quem veja nesse trecho
uma manifestação de abertura ou mesmo uma
intenção de acessibilidade filosófica. Contudo, para
validarmos uma interpretação que encare tal extrato
como um indício de democraticidade, teríamos de
ignorar expressões tais como “les femmes mêmes” e “entendre
quelque chose”. A mesma demarcação sexista é
corroborada numa carta a Chanut, na qual Descartes
sugere à rainha Cristina a leitura prioritária dos
Principia, em detrimento das Meditações. Estas,
decididamente, não seriam um livro para mulheres12.

Descartes, Sofia e Cristina


Consideremos, em primeiro lugar, as cartas à
princesa Sofia. Destituídas de interesse filosófico, elas
importam por revelar como um filósofo
habitualmente comedido pactua com os mais
exagerados galanteadores do seu tempo. Assim,
escreve Descartes a Sofia, em dezembro de 1646: “Os
Anjos não deixariam mais admiração e respeito no
espírito daqueles a quem se dignam aparecer do que
deixou no meu [espírito] a vossa carta...”. A metáfora
angélica prossegue quando o filósofo exalta a beleza
física da princesa, comparando seu rosto ao dos anjos
e exortando os pintores a que nele se inspirem. Só que,
para além dessas graças físicas, Descartes elogia “as
graças do espírito” da princesa, delas dizendo que “são
tais que os filósofos têm por obrigação admirá-las [ont
sujet de les admirer] e considerá-las semelhantes a esses
gênios divinos que apenas são levados a fazer o bem
e que não desdenham obsequiar os que lhes são
devotos”13.
As outras duas cartas que conhecemos a essa
princesa (datadas de setembro de 1646 e
outubro/novembro do mesmo ano) confirmam a
vertente encomiástica, retomando-se na última a
comparação de Sofia aos anjos e de Elisabeth à
soberana divindade14.
Mais relevante em matéria de conteúdo é a
correspondência mantida com Cristina da Suécia.
Descartes refere-se à soberana em termos elogiosos, dela
dizendo a Brasset que “tem mais saber, mais inteligência
e mais razão do que todos os doutos dos claustros e dos
colégios”15. Mas não se pense que a devoção à rainha é
cega e isenta de críticas. Os interesses de Cristina são
eminentemente práticos. Preocupam-na problemas de
cunho religioso e moral. A forte antipatia que sente

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

pelos calvinistas é um dos motivos que a aproxima de


Descartes, pois lhe agrada sumamente a autonomia da
razão proposta pelo filósofo francês. Os intelectuais de
sua corte parecem-lhe pouco arrojados, pouco
profundos. Ora, é precisamente depois de ouvir
Freinsheim dissertar sobre o supremo bem, e sentindo-
se descontente com a ligeireza de sua abordagem, que
ela manifesta o desejo de convencer o filósofo francês a
vir pessoalmente à Suécia, para a instruir e aconselhar.
Mas Cristina está dividida entre as obrigações políticas,
os interesses filológicos e o combate ao calvinismo. A
relação entre os dois é por vezes conflituosa. A rainha
nem sempre se subordina aos conselhos do filósofo,
debruçando-se sobre o estudo das línguas antigas, por
este consideradas absolutamente inúteis. Descartes, que
debalde tenta orientá-la, desespera-se com a volatilidade
com que depara. Daí uma certa decepção que demonstra
nas suas últimas cartas. A Elisabeth queixa-se do
entusiasmo excessivo da rainha pelo estudo do grego e
do ardor com que ela coleciona livros antigos16. A Bréguy
reitera tais queixas, admitindo que a pouca atividade
filosófica em sua estada em Estocolmo se deve ao clima
nórdico, “em que os pensamentos dos homens gelam, tal
como as águas”17.
Na verdade, o encontro de Descartes e
Cristina ficou aquém das expectativas de ambos.
Contudo, mais do que acentuar incompatibilidades,
interessa-nos salientar as implicações filosóficas
dessa relação. O que é visível na troca epistolar que a
preparou – inúmeras cartas a Chanut e duas missivas
diretamente endereçadas à rainha: a 20 de
novembro de 1647 e a 26 de fevereiro de 1649.
Vejamos a primeira. Nela Descartes propõe-se falar
do soberano bem. Situando-se num registro laico,
especificamente humano, o filósofo constrói sua tese
de uma “beata vita”, centrada num bem suscetível de ser
adquirido por todos os homens, ou melhor, por cada
homem. A realização total é identificada com “uma
vontade firme de bem fazer e no contentamento que
ela produz”18. À primeira vista, parece tratar-se de
uma tese pacífica. Contudo, se nos lembrarmos do
pendor fortemente racionalista do cartesianismo,
vemos que há nela algo de insólito. De fato,
contrariamente ao que é mais comum no filósofo,
não se trata de destacar a dimensão intelectual, mas
sim a vertente ativa e intervencionista, bem como a
afetividade que dela decorre. A vontade livre é

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

enaltecida como um bem maior, decisivo para a total


realização do homem. É uma tese argumentada com
as seguintes razões: os bens do corpo e da fortuna
escapam-nos e não podemos controlá-los. Também
o conhecimento as mais das vezes ultrapassa nossas
forças, colocando-se como uma exigência excessiva
para a maioria dos homens. Dentre os bens da alma,
só podemos responder absolutamente pela nossa
vontade. O que leva à seguinte conclusão: é a
vontade que comanda a atividade intelectual. E é
também ela que determina a virtude e que
estabelece o mérito e o louvor. A tese que
ironicamente Descartes defendera no Cap. I do
Discurso do Método, a de uma razão acessível a todos e
realmente partilhada por todos, visto ninguém se
queixar de sua falta, pode ser agora transferida com
seriedade para a maioria dos homens. O soberano
bem é algo que todos, sem exceção, podem alcançar,
pois está diretamente subordinado a uma vontade
firme. A virtude define-se como “a resolução e o
vigor com que nos propomos fazer as coisas que
acreditamos serem boas”19. Um bem avalia-se pelo
modo como se relaciona conosco, e não em si
mesmo. Porque não nos é dito que as coisas são boas,
mas que, por acreditarmos que o são, devemos agir
de acordo com nossas crenças. E é essa coerência
entre a crença e a ação dela decorrente que permite
valorizar positivamente uma conduta. É o livre-
arbítrio que confere a tonalidade moral aos nossos
atos. E assim a vontade firme impõe-se como
princípio moral, igualando-se ao “cogito” como
critério de humanidade. É verdade que o homem se
define como ser pensante. Mas é uma modalidade
desse pensamento, a vontade, que abre a todos a
possibilidade de ser felizes.
Num pensamento em que a razão
recorrentemente desempenha um papel
privilegiado, seria lógico que a investigação
intelectual se apresentasse como o supremo bem. A
carta a Cristina, ao valorizar a vontade, dá à moral
um lugar determinante no sistema20. À rainha
Cristina interessou sobremaneira a vertente ética de
um filósofo que ela encara eminentemente como um
“sage”. Interpelado de um modo frontal sobre
temáticas éticas que gostaria de manter ocultas21, o
filósofo é obrigado a comprometer-se, a revelar-se,

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

a tomar partido.
Sintomaticamente, foram duas mulheres que
o levaram a explicar-se num domínio em que,
segundo as próprias palavras do filósofo, era
habitualmente reservado. De fato, as solicitações de
Cristina (tal como as de Elisabeth) levam o filósofo a
pronunciar-se sobre pontos que talvez não tivesse
desenvolvido, caso não tivesse sido instado. Pontos
mais obscuros, ou mais controversos, ou mais
problemáticos. Pontos que nem sempre se encaixam
pacificamente em suas teses mais divulgadas, mas
que constituem acréscimos determinantes para a
construção de seu pensamento. Daí dizermos que a
provocação feminina foi essencial para o
completamento do sistema cartesiano. Sem ela,
ficaríamos circunscritos a um Descartes
espartilhado em ideias claras e distintas. Com ela
verificamos que o filósofo questiona suas próprias
teses e que, também para ele, elas são por vezes
problemáticas. E isso é por demais visível na
relação epistolar com Elisabeth, da qual
enfocaremos alguns pontos.

3.Descartes, as mulheres e a filosofia

A relação privilegiada com a princesa Elisabeth da Boêmia


As vinte e seis cartas que Elisabeth escreve a
Descartes englobam temas tão díspares quanto a
geometria, a metafísica, a medicina, a física, a
psicologia, etc. Atravessa-as, no entanto, uma
temática recorrente: a preocupação manifestada
pela princesa sobre suas doenças e seu estado de
saúde. O que talvez tenha começado como uma
mera troca de queixas e conselhos transforma-se
num verdadeiro tratado de psicossomática que, em
última instância, leva o filósofo a repensar o dualismo
estrito que professara. Elisabeth recusa-se a seguir as
prescrições de seu médico antes de o filósofo se
pronunciar. Admite que o espírito tem parte ativa nas
desordens corporais e recorre a seus estados de alma
para justificar certos padecimentos: “Sabei que tenho
o corpo imbuído de grande parte das fraquezas do
meu sexo, que se ressente muito facilmente das
afecções da alma e não tem força para se recompor
com elas”22. Descartes corrobora essas teses,
empenhando-se em estabelecer relações entre os
pensamentos, o caráter e a saúde. Apela para os
pensamentos positivos e aconselha-a a cultivar a

133
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

felicidade, o riso e as imaginações agradáveis, que


constituirão verdadeira cura para os males do corpo.
A saúde e a alegria são para ele dois bens essenciais, e
compraz-se com Elisabeth quando ela os detém.
Apresenta uma terapia inovadora, que trata o corpo a
partir de exercícios da mente. Cito, a título de
exemplo, a carta de 18 de maio 1645. Nela o filósofo
explica a febre pelas muitas vicissitudes
desagradáveis que sua correspondente tem
suportado. E desenvolve uma hipótese segundo a qual
“a causa mais comum da febre lenta é a tristeza”23,
exortando Elisabeth a cultivar pensamentos positivos.
Na carta de outubro/novembro de 1646, o
filósofo chega a ponto de dizer que há uma espécie de
força secreta na alegria interior que atrai os
acontecimentos fastos. Admite que não pode partilhar
essa tese com a generalidade das pessoas, sob pena de
ser acusado de superstição. Mas, observando que sua
interlocutora é uma pessoa culta, permite-se
exemplificar tal crença recorrendo a experiências
pessoais e à autoridade de Sócrates. Assim, refere as
vezes em que ganhou ao jogo quando estava numa
disposição feliz. E explica o “daimon” socrático
identificando-o com um secreto sentimento de alegria
que levava o filósofo grego a optar por determinadas
atitudes24.
Para Descartes, a demarcação entre as mentes
fortes e as vulgares25 está na capacidade que as
primeiras têm de dominar as paixões – portanto, o
corpo –, de modo a não se deixarem afetar por elas (por
ele). Aceitando a dificuldade dessa prática, o filósofo
desenvolve uma teoria curiosa, na qual defende as
propriedades terapêuticas do psicodrama. As almas
fortes poderão ultrapassar as vicissitudes da fortuna a
que são sujeitas, considerando-as como se estivessem
a atuar num teatro. Os fatos desagradáveis serão
vividos como se fossem ficções. Devemos ter perante
eles o distanciamento de quem representa num palco.
E de tal modo essa encenação resulta que a própria
dor que suportamos pode ser agradável, tornando-
se ocasião de mostrar nossa capacidade de a
suportarmos26.
Embora reconheça que as missivas de
Descartes são sempre um antídoto para sua
melancolia, Elisabeth não se mostra muito convencida
com tais conselhos. Na carta de 22 de junho de 1645,
confessa ser-lhe difícil separar
sensação/imaginação/representação. À sugestão de

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Descartes de se despojar das paixões, de modo a poder


ter uma perspectiva correta dos acontecimentos,
responde que tal prática lhe é impossível. Acusa o
corpo de se ressentir com tudo o que de desagradável
lhe acontece, ficando doente como reação às
contrariedades. Admite mesmo que sua condição
feminina a impede de experimentar certos aspectos
positivos, atraindo-a para a melancolia: “A maldição
de meu sexo impede-me o contentamento que me
provocaria uma viagem a Egmond”27. E exorta o
filósofo a aprofundar com mais seriedade as relações
corpo/mente.

“Une personne stupide comme moi”

Se os males de Elisabeth são dissecados ao


longo da correspondência, paralelamente a essa
análise terapêutica surgem questões de outra ordem,
sobretudo no que respeita à metafísica, à antropologia
e à moral cartesianas. Assim, no tocante a Deus, as
dúvidas que a princesa formula demarcam-na da
clássica perspectiva dos teólogos de seu tempo,
tornando-a mais próxima de nossas próprias
interrogações28. Ciente do caráter arrojado de tais
dúvidas, recomenda a Descartes que seja discreto e
não tome por heresia aquilo que apenas pretende ser
uma busca de esclarecimento. A princesa admite ser
culpa sua – “une personne stupide comme moy”29 – o fato de não
ter percebido as provas da existência de Deus
apresentadas por Descartes. Também pergunta ao
filósofo que razões justificariam a encarnação num
determinado planeta, quando há uma infinidade de
outros em que ela seria possível. Por fim, põe em
causa a conciliação da onipotência e bondade divinas
com a liberdade humana.
É em especial sobre esse último ponto que nos
interessa a resposta de Descartes. Instado a
pronunciar-se sobre o tema, ele opta por uma
posição dúplice. Na carta de 3 de novembro de 1645,
sustenta que para resolver a dificuldade há de
recorrer a duas perspectivas: uma vivencial, pela
qual detectamos que somos livres; outra intelectual,
dizendo-se nesse registro que Deus, devido à sua
onipotência, tem de ser responsável pelas ações
humanas. A solução está em reconhecer a
dualidade de planos e distingui-los com clareza.
Estamos lidando com problemas diferentes,
relativos respectivamente ao homem e a Deus. Há
de se considerá-los em separado, respeitando como

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

diferentes as perspectivas em que se colocam30.


Obviamente, essa explicação não contenta a
princesa, que retoma suas dúvidas, forçando o
filósofo a explicar-se. Na carta de janeiro de 1646, o
problema do livre-arbítrio é revisitado nas suas
duas modalidades aparentemente incompatíveis de
liberdade do homem e de sua dependência frente a
Deus. Tentando responder-lhes, Descartes reitera a
dupla solução anteriormente proposta. Atribui a
Deus dois tipos de vontade: uma absoluta e outra
relativa31. Pela vontade absoluta, Deus determina o
curso dos acontecimentos; pela vontade relativa,
deixa aos homens a capacidade de decisão quanto a
seus atos. Tal como um rei que proibiu os duelos
pode proporcionar ocasião para que seus súditos se
envolvam em situações deste tipo, mas que de modo
algum interfere diretamente nas opções de cada
um, também Deus dispõe os acontecimentos de
modo a provocar as reações humanas. E é em face
desse cruzamento de ocorrências predeterminadas
que os homens são levados a escolher, escolha essa
previamente conhecida por Deus, devido à sua
multisciência, mas na qual não interfere
diretamente.
Essas e outras dúvidas do mesmo teor
levantadas por Elisabeth levaram a um alargamento
no conceito de Deus cartesiano. A princípio
entendido com um estatuto epistemológico, o
conceito de Deus vai progressivamente ganhando
características que o tornam mais pessoal, mais
próximo do homem e mais preocupado com seus
atos.
Também no tocante à antropologia,
nomeadamente às relações alma/corpo, as missivas
trocadas entre maio e julho de 1643 são esclarecedoras.
A 6 de maio Elisabeth equaciona os dados do
problema: “como é que a alma do homem (sendo
apenas uma substância pensante) pode determinar os
espíritos do corpo a realizar ações voluntárias?”32.
Dado que o movimento se explica por causas e que a
ação causal exige contato e extensão, a princesa pede
ao filósofo uma definição de alma compatível com
essas exigências. Só assim seria possível à alma mover
o corpo.
O pedido de Elisabeth tem como resposta a
carta de 21 de maio de 1643, na qual se explicam
alguns tópicos. Em primeiro lugar, o filósofo
considera como pertencendo à natureza da alma
não só o pensamento, mas também o fato de ela estar
unida ao corpo, podendo agir e padecer com ele.
Admite, no entanto, que sua filosofia tem-se

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

debruçado mais sobre o primeiro ponto,


esquecendo o último. Em segundo lugar, considera
que as poucas noções primitivas que possuímos se
reduzem essencialmente aos conceitos de extensão,
pensamento e união da alma e do corpo. A extensão
nos permite pensar os corpos. O pensamento nos
orienta para tudo o que concerne às almas, e a união
diz respeito às relações entre corpo e alma, na qual se
inscrevem os atos voluntários. Cada uma dessas
noções circunscreve um território dentro do qual
atua sem problemas. Cada uma tem, portanto, seus
próprios limites, não devendo ultrapassá-los, sob
pena de engano. Assim, a extensão não se aplica ao
pensamento, nem a mente sozinha resolve o
problema da união, nem da noção de uma alma
unida ao corpo podemos fazer ilações para o que é
do exclusivo domínio do corpo. É abusivo, pois,
pretender explicar a ação da mente sobre o corpo
como se se tratasse da força de um corpo qualquer
sobre outro. Igualmente incorreto é projetarmos
para os corpos o esquema que rege as mentes,
pressupondo que os corpos tendem para o centro da
terra, ou que são atraídos para um determinado
fim, ou quaisquer outras explicações do mesmo teor.
O objetivo de Descartes é criticar a causalidade
aristotélica, bem como sua teoria dos lugares
naturais, enveredando pela valorização da causa
eficiente que seu mecanicismo irá relevar. Só que
Elisabeth não fica convencida e retoma as dúvidas.
Na carta de 10 de junho, admitindo que é por
estupidez (é exatamente esse termo que a princesa
utiliza) que não percebeu a explicação33, Elisabeth
confessa que lhe é mais fácil aceitar uma alma
material e extensa do que perceber como é que um ser
imaterial consegue mover um corpo. A firmeza de
Elisabeth e sua honestidade intelectual levaram à
resposta decisiva do filósofo, emitida a 28 de junho
do mesmo ano. E digo decisiva porque ela surge
como complemento da temática desenvolvida na VI
Meditação, ao mesmo tempo em que antecipa teses
que mais tarde defenderá nas Paixões da alma.
Vejamos um pouco mais detalhadamente as
razões do filósofo. Na sequência da clarificação que
empreendera na carta anterior, Descartes retoma as
três noções básicas que referira – alma, extensão e
união de ambas –, determinando agora a faculdade
que melhor convém a cada uma delas. A alma e tudo
o que lhe diz respeito alcança-se pelo entendimento.
Pelo recurso ao entendimento e à imaginação,

137
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

estudamos o corpo e os corpos. A união da alma e


do corpo é do domínio dos sentidos. Assim, a
metafísica deverá ser cultivada com o recurso
exclusivo ao entendimento puro, cabendo nela o
estudo da alma. As matemáticas resolvem-se com a
ajuda da imaginação, pois é simultaneamente
imaginando e inteligindo que podemos adquirir um
conhecimento válido sobre figuras, movimentos e
corpos. Mas, se queremos perceber a união da alma
e do corpo, temos de nos abstrair de todo o elemento
intelectual. Este nos faz ver a distinção e não a união.
A união vive-se. Daí concluir Descartes que é pela
v i d a e p e l a s c o n v e r s a s c o m u n s ( “l a v i e & l e s
conversations ordinaires”) que algumas vezes podemos
alcançar a união. Concluindo com esta tese
extraordinária: “temos de nos abster de meditar e de
estudar (...) para aprendermos a conceber a união
da alma e do corpo”34.
É natural que a princesa tenha ficado
surpreendida. O próprio Descartes reconhece a
estranheza de suas asserções, dizendo: “T enho
quase medo de que V. Alteza pense que não estou
falando a sério”35. Mas a carta prossegue nessa
linha, aconselhando Elisabeth a estudar menos e a
viver mais. Como interpretar esse conselho
insólito?
Uma primeira solução seria admitir que
Descartes considerava a princesa incapaz de
trabalhar com profundidade temáticas metafísicas,
sugerindo-lhe delicadamente que se dedicasse a
entretenimentos mais próprios do seu sexo e da sua
condição. É uma solução que contraria toda a
atuação do filósofo que sempre elogiara as
capacidades de Elisabeth, nunca se furtando a
explicar-lhe os meandros mais complexos de sua
filosofia. Uma segunda hipótese seria que, com essa
resposta, Descartes estaria corroborando a
inevitabilidade de uma antropologia dualista,
mostrando que, ao colocarmos a tônica na união da
alma e do corpo, estamos sujeitos a consequências
absurdas. O interacionismo seria algo de
inconsistente e com peso mínimo dentro do
cartesianismo. Trata-se de uma hipótese absurda,
pois não tem sentido que o próprio filósofo levante
problemas aos quais não consegue responder. A
interpretação mais consistente será pensar que com
essa carta Descartes pretende valorizar a
sensibilidade, depurando-a e dando-lhe finalmente
espaço dentro de sua filosofia. Na verdade, trata-se
de uma recuperação da sensibilidade enquanto

138
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

faculdade cognitiva. A sensibilidade nos permite


apreender claramente situações que oentendimento
é incapaz de alcançar. As vivências nos conduzem a
uma realidade a que nunca a metafísica nem a
matemática permitiriam aceder. Assim, instado
pelas dúvidas da princesa, Descartes se vê obrigado
a reconhecer explicitamente as insuficiências de sua
metafisica e de um pensamento puramente
racional. De igual modo, reconhece a necessidade de
recorrermos ao senso comum para recuperarmos
nosso corpo, concluindo que o pensamento
filosófico, quando excessivamente cultivado, pode
constituir obstáculo ao conhecimento de certas
zonas do real. Foi Elisabeth que nos permitiu uma
visão mais nuanceada do dualismo cartesiano,
levando-nos a concluir que é possível defendê-lo se
nos colocarmos num plano metafísico, a que
chegamos pela razão e que, como tal, devemos
assumir como verdade. Contudo, se nos ativermos à
experiência quotidiana que nos permite uma
adaptação eficaz à realidade em que nos situamos,
torna-se inevitável uma perspectiva de união e
interação. O monismo antropológico, embora não
ultrapasse o estatuto da crença, é algo que
constatamos, que vivemos, e cuja
indispensabilidade se manifesta se, como é
desejável, pretendemos estabelecer relações com o
mundo. A insistência da princesa em perceber o
mecanismo da vontade nos faz compreender
melhor a diferença da posição cartesiana
relativamente a outras posições coevas,
nomeadamente ao papel do “conatus” defendido por
Hobbes e Spinoza. Ora, para Descartes os
comportamentos voluntários não podem explicar-
se mecanicamente. Há neles uma especificidade que
implica a participação simultânea da mente e do
corpo.

A causadora das paixões


Também no que respeita à moral, a
correspondência com Elisabeth obriga Descartes a
aprofundar e enriquecer seu pensamento, levando-
o a abordar temáticas que sucessivamente adiara por
sua extrema dificuldade. Na carta de 3 de novembro
de 1645, promete dedicar-se de modo mais
sistemático ao estudo das paixões. Na de maio de
1646, já depois de ter apresentado à princesa um
esboço de As Paixões da Alma, admite que nunca tinha
estudado anteriormente tal tema. Na verdade, os

139
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

pontos essenciais da ética cartesiana abordados no


tratado são ensaiados nas cartas. Além de alguns
aspectos já por nós referidos, como é o caso do
distanciamento crítico dos eventos ou da
necessidade de cultivar sentimentos positivos,
realçamos três constantes que se destacam na moral
cartesiana e que se desenham ao longo das cartas.
Uma de caráter biológico, que coloca a saúde como
um bem maior e procura agir de acordo com o bem-
estar do corpo. Outra, de base hedonista, pela qual a
felicidade, ou melhor, a beatitude, coincide com o
supremo bem. E finalmente, uma tônica
voluntarista que releva a vontade, considerando-a a
faculdade moral por excelência e atribuindo-lhe a
responsabilidade maior na gestão das paixões.
Na impossibilidade de considerarmos toda a
correspondência em que a temática moral é
trabalhada, selecionamos quatro cartas – emitidas de
agosto a outubro de 1645 –, por nos parecer que nelas
se encontram os instrumentos conceituais
determinantes da moral cartesiana, ou seja, a paixão,
a vontade, o entendimento e o modo como tais
elementos se conjugam de modo a alcançar a
beatitude.
Instado pela princesa a revelar seu
pensamento próprio, o filósofo abandona a
perspectiva estoica em que se escudara36. De fato,
Descartes sugerira a Elisabeth a leitura de Sêneca,
mas a princesa desinteressa-se dos textos antigos e
quer saber o que Descartes realmente pensa. O que
ele faz sem rodeios na carta de 15 de setembro de
164537. Nela procede a um inventário dos conceitos
que permitem ao homem fortificar o entendimento
e agir corretamente. E os conceitos que releva são os
mesmos que colocara como base de sua metafísica.
Deus, alma e mundo são assim revisitados e
recuperados para o plano ético, revestindo-se de um
dinamismo que os leva a concretizar-se em atos. Da
perfeição divina é extraída uma consequência
prática: tudo o que nos acontece decorre dos
desígnios de Deus e tem por objetivo louvá-lo.
Como tal, o próprio sofrimento pode ser
gratificante. No que respeita à alma, verificamos que,
por ser ela “muito mais nobre que o corpo”, não se
realiza totalmente nesta vida. O que nos leva a viver
de um modo distanciado as vicissitudes do
quotidiano e a concluir que não devemos temer a
morte. Do mundo devemos saber que é vasto e bom
e que dele somos parte. É essa consciência que nos
obriga a salvaguardar o interesse geral sobre o

140
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

particular. É na relação com o mundo e com os


outros que as paixões se manifestam.
As paixões constituem a chave da moral
cartesiana, na medida em que a ação moral passa
pelo controle e transformação da paixão38. É o
estudo das paixões que leva à substituição de um
ponto de vista descritivo, psicológico, por uma
perspectiva normativa, moral.
A virtualidade moral da paixão é pressentida
por Elisabeth. Ela intui que as paixões “não são meras
perturbações da alma”. Compreende que possuem uma
força que pode ser canalizada para a obtenção de uma
ação racional e livre39. É por isso que a princesa interroga
Descartes sobre a força passional, sobre sua utilidade e
sobre sua possível aliança com a razão. Interrogações
que levam Descartes a definir-se na carta de 6 de
outubro, avançando nela com as traves mestras que lhe
permitirão construir uma teoria ética.
A carta aborda uma variedade de temas,
respondendo às dúvidas anteriormente levantadas.
Interessa-nos sobretudo o modo como apresenta a
paixão, na medida em que o que aqui se sustenta
antecipa as teses ulteriormente desenvolvidas. Diz-
nos Descartes que a paixão pode ser considerada
quer num sentido lato, quer num sentido estrito. No
primeiro caso, inclui todos os pensamentos
excitados na alma sem o concurso da vontade40.
Assim, tudo o que se passa em mim e do qual a
minha vontade não é responsável pode ser
considerado paixão. Estão, nesse caso, as percepções
provocadas pelos objetos exteriores, ou pelas
disposições internas do nosso corpo, ou pelas
marcas/imagens gravadas no cérebro que atuam
quando sonhamos e divagamos. No sentido estrito,
a paixão reveste-se de um tônus emotivo,
identificando-se com o que habitualmente
designamos por sentimento, emoção ou afeto. Em
ambos os casos, a paixão é um processo que ocorre
na alma, em função de uma ação do corpo. Interessa
também relevar que, em qualquer dos sentidos, a
paixão é desprovida de negatividade. As paixões
não são boas nem más; ocorrem inevitavelmente
numa alma que habita um corpo. Há que delas tirar
todo o proveito possível. A carta aponta para o
cultivo das paixões alegres, dado que a alegria,
quando devidamente esclarecida, beneficia o corpo.
Reconhece-se, portanto, explicitamente, o caráter
catártico de certas paixões. Donde a necessidade de
conhecermos seu mecanismo para as controlarmos
e delas tirarmos dividendos. Está traçado o
caminho para uma verdadeira pedagogia das

141
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

paixões, que se concretizará posteriormente no


tratado. Assim, o trajeto moral que se iniciara no
Cap. III do Discurso do Método é reorientado e
concretizado devido às perguntas da princesa,
podendo-se atribuir à sua insistência o ter
transformado algo que se definia pela
provisoriedade e que dizia respeito a um eu
puramente intelectual numa conquista progressiva
de autonomia, empreendida por um sujeito que se
define simultaneamente como mente e como corpo.
#

Para além das vertentes terapêutica,


antropológica e moral, a correspondência com
Elisabeth nos interessa genericamente, na medida
em que Descartes se vê obrigado a explicar-se, a
justificar-se, a ampliar suas teses e muitas vezes
mesmo a retificá-las. A princesa da Boêmia toca nos
pontos essenciais do cartesianismo e o abala nos
seus fundamentos, pois não se contenta com o que o
filósofo considera já demonstrado. Podemos dizer
que ela provoca no filósofo uma atitude zetética, de
perturbação constante e de permanente revisão de
posicionamentos. Nas trinta e duas cartas que
obteve como resposta, verificamos que o
pensamento cartesiano perde alguma rigidez,
tornando-se mais matizado, menos dogmático. Ora,
como em cada carta se combate uma tese (ou pelo
menos se levantam objeções), o que no texto do
filósofo se afigurava adquirido, transforma-se em
algo de questionável e de aberto. Desse modo,
podemos afirmar que Elisabeth transforma os
problemas em questões. É ela que leva o filósofo a
confessar as insuficiências de seu sistema e as
limitações de sua metafísica. É ela que determina o
que é compreensível, o que deverá ser ulteriormente
desenvolvido e, mesmo, o que deverá ser
abandonado. É a ela que Descartes confidencia algo
que nos deixa atônitos: que passeia muito, que
reserva algumas horas por dia à matemática e
apenas algumas por ano à filosofia41.
Esse diálogo epistolar que se processou ao
longo de anos mostra-nos como a contribuição de
Elisabeth pesou no pensamento de Descartes. No
dizer do filósofo, as observações da princesa são
engenhosas, judiciosas e sólidas42, nelas encontrando
estímulos para repensar certas teses e aprofundar
certos problemas. Para nós, essa relação é sintomática
da presença feminina na filosofia da modernidade e

142
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

do modo peculiar como ela se afirma, numa troca de


ideias veiculada pelo diálogo. Este processa-se num
registro intimista, envolvido em problemas banais do
quotidiano mas nunca se reduzindo a eles. São as
vivências comuns de uma mulher que servem de
pedra de toque a um pensamento já elaborado e
maduro como é o de Descartes. E, curiosamente, são
os problemas ligados ao seu corpo que ocupam um
lugar central, pois é a partir deles que se analisam
certos estados de alma. É ela que restitui ao homem
cartesiano sua dimensão natural. Foram suas objeções
e dúvidas que nos permitiram compreender e
reavaliar uma das teses fundamentais do filósofo, a
qual, de certo modo, constitui um dos pontos
convergentes do percurso das Meditações: o
reconhecimento de que “não estou apenas alojado em
meu corpo como o marinheiro no navio, mas muito
estreitamente ligado a ele e tão misturado que
componho com ele como que uma unidade”43. Com os
pedidos de esclarecimento de Elisabeth, o
cartesianismo reconquista o corpo, estabelecendo-se
definitivamente uma ponte entre o homem que pensa,
o homem que padece e o homem que age.

Notas

Fo u ch er de C areil, D escartes et la P rincesse P alatine, ou de


l'influence du cartésianisme sur les femmes au XVII siècle, Paris,
Auguste Durand, 1862; Charles Adam, Descartes. Ses Amitiés
Féminines, Paris, Boivin & Cie, 1937; Ernst Cassirer, Descartes,
Corneille, Christine de Suède, trad. Madeleine Francès e Paul
Screcker, Paris, Vrin, 1942.
Spinoza, Tractatus Politicus, Cap. 11, § 4 in Spinoza Opera,
ed. Carl Gebhardt, (G) Heidelberg, 1972, vol. III, pp. 359.
Examinaremos o posicionamento de Spinoza no capítulo
seguinte, “Spinoza, Hobbes e a condição feminina”.
Leviathan , Cap. XX in The English Works of Thomas Hobbes of
Malmsbury, collected by William Molesworth, London, John
Bohn, 1839-45, rep. Aalen, 1962 (EW), III, 1, p. 187.
Elements of Law , Cap. 9, §14, EW IV , p. 47; Leviathan V , EW III, 1,
p. 36; Leviathan XXXVI, E.W. III, 1, p. 413.
“Das der bei weitem groesste Teil der Menschen (darunter das ganze
schoene Geschlecht) den Schritt zur Muendigkeit, ausser dem dass er
beschwerlich ist, auch fuer sehr gefaehrlich halte: dafuer sorgen schon jene
Vormuender, die die Oberaufsicht ueber sie guetigst auf sich genommen
haben.” Kant, “Beantwortung der Frage: Was ist Aufklaerung?”
in Immanuel Kant. Werke in zehn Baenden , hersg. von Wilhelm
Weischedel, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft,
1981, B 9, p. 53. (sublinhados nossos).
“Tiefes Nachsinenn und eine lange fortgesetzte Betrachtung sind edel aber
schwer, und schicken sich nicht wohl fuer eine Person, bei der die
ungezwungene Reize nichts anders als eine schoene Natur zeigen sollen.
Muehsames Lernen oder peinliches Gruebeln, wenn es gleich ein

143
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Frauenzimmer darin hoch bringen sollte, vertilgen die Vorzuege, die ihrem
Geschlechte eigentuemlich sind, und koennen dieselbe wohl um der
Seltenheit willen zum Gegenstande einer kalten Bewunderung machen,
aber sie werden zugleich die Reize schwaechen, wodurch sie ihre grosse
Gewalt ueber das andere Geschlecht ausueben. Ein Frauenzimmer, das
den Kopf voll Griechisch hat, wie die Frau Dacier, oder ueber die Mechanik
gruendliche Streitigkeiten fuehrt, wie die Marquisin von Chastelet, mag
nur immerhin noch einen Bart dazu haben; denn dieser wuerde vielleicht
die Miene des Tiefsinns noch kenntlicher ausdruecken , um welchen sie sich
bewerben.” Kant, “Beobachtungen ueber das Gefuehl des
Schoenen und Erhabenen” in Immanuel Kant. Werke in zehn
Baenden , B 2, p. 852.
A. Baillet. La Vie de Monsieur Des-Cartes, Paris, 1691,
informação corroborada em textos do próprio Descartes
(vide Carta a Chanut, 6 de junho de 1647, A. T. V, p. 57).
Geneviève Lloyd, The Man of Reason. Male & Female in Western
Philosophy, London, Routledge, 1984, bem como “Maleness,
Metaphor and the 'Crisis' of Reason” in A Mind of One’s Own.
Feminist Essays on Reason and Objectivity, ed. de Louise M.
Anthony e Charlotte Witt, Boulder, Westview Press, 1993.
Também nessa linha de “masculinização” da razão a partir de
Descartes, citamos o artigo de Susan Bordo “The cartesian
masculinization of thought” in Sex and Scientific Inquiry , ed. de
Sandra Harding e Jean F. O’ Barr, Chicago, University of
Chicago Press, 1987. De interesse sobre a mesma temática,
com uma visão fortemente crítica quanto a uma razão
“sexuada”, ver Margaret Atherten “Cartesian Reason and
Gendered Reason” in A Mind of One’s Own..., pp. 19-34.
Anne Conway, The Principles of the Most Ancient and Modern
Philosophy, London, 1692, reedição Peter Lopston, The
Hague, Martinus Nijhoff, 1982; Margareth Cavendish,
Philosophical Letters, London, 1664.
A. Baillet op. cit. , parte II , 1. VIII , Cap. VI , p. 500.
“un livre où i’ay voulu que les femmes mesmes puissent entendre quelque
chose.” Carta a Vatier, 22 de fevereiro de 1638, A. T. I, p. 560.
Carta a Chanut, a 26 de fevereirode 1649 , A. T. V, p. 291.
Carta à princesa Sofia, dezembro de 1646 , A. T., IV, p.
592.
Carta à princesaSofia, outubro/novembrode 1646 , A. T.
IV, p. 533.
“(…)elle a plus de savoir, plus d’intelligenceet plus de raison
que tous les doctes des cloîtres et des collèges.” Carta a
Brasset de 23 de Abril 1649.
Carta a Elisabethde 9 de Outubro de 1649 , A. T. V, p. 430.
Carta a Bréguy, 15 de Janeiro de 1650 , A.T. V, A. T. V, p.
467.
“(...) une ferme volonté de bien faire & au contentement qu’elle produit.”
Carta à rainha Cristina, 20 de novembro de 1647, A. T. V, p.
82.
I b id e m , p. 83.
As teses morais que apenas afloram nessa carta são
aprofundadas na correspondência paralela com Chanut,
bem como nas cartas a Elisabeth. Descartes propõe-se
enviá-las à rainha da Suécia, como complemento deste
estudo.
Descartes considera a moral um tema perigoso (carta a
Chanut, 20 de novembro 1647) e confessa que é
habitualmente reservado quando se trata de escrever sobre
esse tema : “i’étois fort retenu à écrire de telles matires” (a Elisabeth,

144
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

20 de novembro de 1647, A. T. V, p. 89).


“Sachez donc que i’ay le corps imbu d’une grande partie des foiblesses de
mon sexe, q’uil se ressent tres facilement des afflictions de l’ame et n’a point
la force de se remettre auec elle...” Carta de Elisabeth a Descartes,
24 de maio de 1645, A. T. IV, p. 208.
“La cause la plus ordinairede la fiévre lente est la tristesse.”
Carta a Elisabeth, 18 de maio de 1645, A. T. IV, p. 201.
Carta a Elisabeth,novembro de 1646 , A. T. IV, pp. 528-533.
“les plus grandes ames & celles qui sont basses & vulgaires...” Carta a
Elisabeth, 18 de maio de 1645, A. T. IV, p. 202.
Carta a Elisabeth,maio/junhode 1645 , A. T. IV, p. 218 e
ss.
“Avec cela la malediction de mon sexe m’empesche le contentement que me
donneroit un voyage vers Egmond...” Carta de Elisabeth a
Descartes, 22 de ju nho de 1645, A. T. IV, p. 234.
Ver por exemplo,a carta de Elisabetha Descartesde 28 de
outubro de 1645, A. T. IV, p. 322 e ss.
29 Ibid . p. 322.
Carta a Elisabeth,3 de novembrode 1645 , A. T. IV, p. 330
e ss.
Carta a Elisabeth,janeirode 1646 , A. T. IV, p. 353 e ss.
“... comment l’ame de l’homme peut determiner les esprits du corps, pour
faire les actions volontaires (n’estant q’une substance pensante).” Carta
de Elisabeth a Descartes de 6-16 de maio de 1643, A. T. III,
p. 661.
“... qui seruira comme i’espere, d’excuse a ma stupidité, de ne pouuoir
comprendre l’idée par laquelle nous deuons iuger comment l’ame (non
estendue et immaterielle) pe ut m o uuo ir le co rps...” C ar t a de
E l isab et h a D escart es, 10 de junho de 1643, A. T. III, p. 684.
“... c’est (...) en s’abstenant de mediter & d’etudier aux choses qui exercent
l’imagination, qu’on apprend à conceuoir l’union de l’ame & du corps.”
Carta a Elisabeth, 28 de junho de 1643, A. T. III, p. 692.
“I ’ay quasi peur que vostre Altesse ne pense que ie ne parle pas icy
serieusement”, ibid.
Vide cartas a Elisabeth de 21 de julho e de 4 e 18 de
agosto de 1645.
Carta a Elisabeth 15 de setembro de 1645 , A. T. IV, pp.
290-296.
Vide, As paixões da alma I, nomeadamente os artigos 79 a
83.
Carta de 3-13 de setembro de 1645 , A. T. IV, pp. 288-290.
“En suyte de quoy, on peut generalementnommer passions toutes les pensées
qui sont ainsy excitées en l’ame sans le concours de sa volonté...” Carta
a Elisabeth, 6 de outubro de 1645, A. T. IV, p. 310.
Carta a Elisabeth,28 de junho de 1643 , A. T. III, pp. 692-
693.
Carta de 21 de maio de 1643 , A. T. III, p. 664.
“(...) me non tantùm adesse meo corpori ut nauta adest navigio, sed illi
arctissime esse conjuntum & quasi permixtum, adeo ut unum quid cum
illo componam.” Descartes, Meditação VI, A. T. VII, p. 81.

145
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

SPINOZA, HOBBES
E A CONDIÇÃO FEMININA
MARIA LUÍSA RIBEIRO FERRERA
(Universidade de Lisboa)

Quanto à política, a diferença entre mim e Hobbes


acerca da qual me interrogas consiste nisto: é que
dou larga cobertura ao direito natural e considero
que, em qualquer cidade, não cabe ao Supremo
Magistrado mais direito sobre os súditos do que a
justa medida do poder, pela qual supera os
súditos; o que tem sempre lugar no estado de
natureza1.
A afinidade entre Spinoza e Hobbes no que
respeita à política tem dado azo a inúmeros
comentários. Instado por Jarig Jelles a demarcar-se
do filósofo inglês, Spinoza reage aproximando-se
dele explicitamente e parecendo mesmo subestimar
as diferenças ao supervalorizar as semelhanças.
Num outro artigo, tentei demonstrar que a sintonia
é mais aparente do que real2. Não há dúvida de que
o autor da fítica admirou Hobbes pela ousadia de
suas propostas, tendo usado o aparato conceitual do
filósofo inglês e trabalhado a partir de seus conceitos
básicos. No entanto, há divergências profundas que
não se podem ignorar3. Com o presente texto,
pretendo dar realce a uma dessas diferenças, a saber:
o modo específico como cada um dos filósofos
encarou a natureza feminina. Não obstante tratar-se
de um tópico menor na economia dos seus sistemas,
é um tópico que os questiona, que põe em causa sua
consistência interna e que, como tal, desestabiliza
algumas certezas que um estudioso da filosofia
moderna poderia considerar adquiridas.
Depois de uma breve apresentação do que
entendo por uma filosofia no feminino, começarei
trabalhando as representações spinoziana e
hobbesiana da mulher. Levantarei, para cada
filósofo, alguns problemas quanto à
compatibilidade entre as concepções que defendem
sobre a natureza feminina e outras temáticas por eles
abordadas e, entre as quais eventualmente pareça
haver colisão. Resolvidas (?) as aparentes

147
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

inconsistências e solucionadas algumas


dificuldades de percurso, a conclusão evidenciará
que, embora a condição das mulheres não tenha
sido expressamente tematizada na modernidade,
muitas foram as contribuições para seu ulterior
aprofundamento, contribuições que podemos
buscar em filósofos que pouco escreveram sobre o
assunto, que talvez não se interessassem por ele, mas
cujas abordagens, mesmo que fugazes, deverão ser
tomadas em consideração. Quem pretenda ter uma
visão global do pensamento de Hobbes e Spinoza, ou
quem se interesse pela gênese de conceitos
essenciais de uma filosofia no feminino, como, por
exemplo, as noções de igualdade e diferença,
público e privado, sexo e gênero, não poderá
ignorar o que esses filósofos explícita ou
implicitamente pensaram sobre a mulher.

1.A legitimidade de uma leitura feminina dos


filósofos

O interesse por uma filosofia no feminino tem


sido crescente. Iniciando-se com o desenvolvimento
dos “Gender Studies” nos anos 1960 e 1970, ela foi muitas
vezes identificada com uma filosofia feminista, com a
qual inegavelmente partilha alguns pontos. Contudo,
para evitar ulteriores confusões, parece-me útil proceder
a um esclarecimento prévio do modo como entendo
ambos os conceitos. Assim, considero filosofia
feminista aquela que se debruça essencialmente sobre a
temática dos direitos da mulher, tendo como fim último
denunciar abusos, identificar preconceitos e anular
injustiças. Trata-se de uma designação abrangente, pois
inclui uma multiplicidade de perspectivas diferentes. Na
esteira de Janet Radcliffe Richards4, de las realço duas
vertentes: o feminismo igualitário e o radical. O primeiro
inclui teses que se organizam em torno dos direitos das
mulheres, sustentando que deverão ser iguais aos dos
homens. Seu objetivo é detectar situações em que a
mulher é injustiçada ou menosprezada e procurar
corrigi-las. O segundo defende uma alteração do
status quo, propondo uma maneira especificamente
feminina de perspectivar os problemas e de resolvê-
los. Muitos dos valores, conceitos e critérios
dominantes da cultura ocidental são postos em
causa devido a seu pendor masculinizante. Há de se
empreender uma profunda mutação na ciência, na
moral, na estética e noutros domínios filosóficos
tradicionalmente construídos por filósofos e em

148
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

função de seus interesses próprios.


Sendo objetivo imediato da filosofia
feminista uma intervenção social reivindicativa e
por vezes mesmo agressiva, perguntar-se-á se é
legítimo entendê-la como uma disciplina filosófica.
Minha resposta a tal interrogação é afirmativa, pois
a base que sustenta as teorias feministas é crítica,
argumentativa e racionalmente fundamentada. As
pretensões defendidas assentam-se (ou deveriam
assentar-se) numa reflexão sobre problemas
inequivocamente filosóficos, poderíamos mesmo
dizer problemas clássicos da tradição ocidental,
como, por exemplo, a questão antropológica do que
é um ser humano, ou as temáticas metafísicas da
essência ou natureza, ou da igualdade e da
diferença.
Uma filosofia no feminino, cruzando-se
muitas vezes com uma filosofia feminista, não tem o
caráter aguerrido desta, não se afirma como
movimento, não visa imediatamente a uma
alteração do status quo. É certo que o trabalho que
desenvolve é o material consistente que as
feministas utilizam para dar força a seus
argumentos e para racionalizar suas pretensões.
Contudo, os problemas a que remete e a
metodologia que utiliza são pautados pelo ritmo da
biblioteca, e não da “ágora”, as águas em que se move
privilegiam o ensaio em detrimento da notícia
jornalística. Sendo seu objetivo dar visibilidade às
mulheres num domínio em que aparentemente
tiveram um estatuto de sombras, a sua tarefa é
eminentemente reconstrutiva, quer desvelando a
presença oculta (porque indireta) da mulher na
história da filosofia, quer destacando no território
filosófico coordenadas femininas que dele
estiveram afastadas, quer mostrando a produção
filosófica das mulheres pela divulgação de textos
que por várias razões se mantiveram
desconhecidos. Numa palavra: uma filosofia no
feminino inclui todas as linhas que permitam
relevar a presença da mulher na filosofia.
É minha intenção destacar neste artigo uma
dessas linhas, ou seja, a maneira como alguns
filósofos pensaram as mulheres, o que sobre elas
escreveram e a possibilidade de interpretar esses
textos de modo a que eventualmente tragam uma
nova luz para o pensamento de seus autores. Passada
a fase de misoginia, no âmbito da qual se têm feito
alguns estudos interessantes5, ingressa-se atualmente
na fase da redescoberta, da reescrita da história da

149
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

filosofia perspectivada em função de uma ótica bem


determinada – a do papel das mulheres6. Papel que se
manifesta numa dupla hermenêutica, pois não só
interessa perspectivar o tema do ponto de vista do
autor dos textos, mas também interpretá-lo a partir de
seu leitor, sobretudo quando este é uma leitora. O
problema é não só perceber o que os filósofos
pensaram das mulheres e porque o fizeram, mas
também qual o eco previsível dessas concepções em
leitoras femininas. Trata-se de uma temática para a
qual fui alertada por Nancy Tuana, em sua obra
Woman and the History of Philosophy7. Tuana questiona a
neutralidade sexual dos textos filosóficos, quer por
parte de quem os produz, quer por parte de quem os
recebe. Para esta filósofa a mulher tem dificuldade em
identificar-se com a maioria dos textos da filosofia
ocidental, na medida em que neles aparece excluída,
quando não inferiorizada. A proposta de Tuana é de
uma releitura da história da filosofia a partir do lugar
da mulher no interior dos diferentes sistemas.
Segundo ela, o estatuto atribuído à natureza feminina
não pode ser considerado um pormenor irrelevante
no pensamento de um filósofo. Há de se verificar a
consistência interna das várias temáticas abordadas,
constatando até que ponto as diferentes reflexões se
compatibilizam mutuamente. E o problema da
mulher aparece quase sempre como um espinho, pela
reformulação que obriga a fazer no que concerne à
coerência global do pensamento de certos autores.
Independentemente das conclusões
alcançadas por Tuana sobre seis filósofos,
interessou-me o método proposto. Sempre defendi
uma apropriação pessoal dos pensadores de outras
épocas, considerando que só uma leitura viva de
suas obras lhes será fiel e lhes prestará a
homenagem devida. Respeitando-se embora o
contexto, há de se ler um filósofo passado a partir do
presente que é o nosso, das inquietações que nos
movem, dos pressupostos que nos en(de)formam,
da situação concreta que vivemos. Ora, a situação
concreta de uma leitora de filosofia não se identifica
com a de um leitor, o impacto que certos textos
filosóficos têm numa mulher é inevitavelmente
diferente daquele que têm num homem. Perante o
mito platônico das almas caídas ou o conceito
aristotélico da fêmea como um macho imperfeito8,
é habitual que um homem reaja brandamente,
justificando essas teses como fruto da
mundividência em que surgiram, desculpando-as

150
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

mesmo pelo pouco peso que tiveram no


pensamento do filósofo em causa. Não creio que
alguma mulher as possa ler sem se sentir
perturbada. Tal fato em nada diminui o apreço pelos
referidos filósofos, mas não é fácil nem pacífico
conjugar a consideração, o respeito e o amor que
nos habituamos a ter por eles com o modo como
encararam as mulheres. À busca das razões que
levaram alguns pensadores a escrever dessa ou
daquela maneira sobre a condição feminina junta-
se agora outro problema: a recepção desses textos
por parte de um público não masculino, problema
que muito concretamente formulo na seguinte
interrogação: como ler certos textos de filosofia do
ponto de vista de uma mulher?

2.Spinoza e a desigualdade natural das mulheres

No contexto da modernidade, Spinoza impõe-


se como homem universal, defensor acérrimo da
liberdade de expressão e das instituições
democráticas. Como acontece com a maior parte dos
filósofos seus coevos, o tema da mulher não é nele
relevante, manifestando-se em vagas referências,
todas elas pouco lisongeiras. Assim, na fítica explica a
paixão da inveja pela associação da mulher amada
aos “pudenda” e “excrementa” de outros homens (fít. IIII,
prop. XXXV, schol.); fala com condescendência da
piedade feminina (“mulieribi misericordia”), à qual remete
determinadas superstições (fít. IV, prop. XXXVII);
refere como dado frequente a inconstância das damas,
característica relevada pelos apaixonados quando mal
recebidos e logo esquecida no caso de reconciliação
(fít. V, prop. X, schol.). O Tratado teológico político mantém
o mesmo olhar condescendente, assinalando a
propensão feminina para o choro – “lachrimis mulieribus”
(TTP, Pref.) – bem como o falso dom da profecia que
algumas dizem possuir (TTP, II). O tom pejorativo é
uma constante, concretizando-se no diminuitivo, por
vezes usado, de “mulherzinhas” (“mulierculae”)9.
Oparágrafofinaldo Tratado político,aopropor-
se analisar a eventual participação da mulher num
governo democrático, detém-se mais nesse tema. As
considerações que o autor nele tece sobre a mulher
são esclarecedoras, revelando a existência de uma
reflexão sobre o assunto e impedindo que
atribuamos as expressões acima referidas à
mentalidade seiscentista ou mesmo que as

151
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

entendamos como uma leviandade sem grandes


consequências. E isso porque, ao analisar o regime
democrático,o filósofo defende peremptoriamente a
exclusão da mulher de qualquer cargo governativo,
sustentando que sua ação é causadora de paixões e,
como tal, disruptiva. Veremos na seção 3 que,
embora não mencione Hobbes, é a posição do filósofo
inglês que está em causa. Limitamo-nos por ora a
analisar o texto spinoziano, seguindo-o a par e
passo. E o que nos diz ele? Em primeiro lugar,
constatamos que Spinoza inicia o parágrafo com um
problema ainda hoje recorrente nos estudos sobre as
mulheres – o da igualdade e da diferença:
Mas talvez alguns perguntem se as mulheres estão
por natureza, ou por instituição, sob a autoridade
dos homens. Se é por instituição, nenhuma razão
nos obriga a excluir as mulheres do governo. Se,
contudo, apelamos para a experiência, veremos
que isso provém de sua fraqueza (...)10.
A resposta do filósofo é inequivocamente
partidária da diferença, e para dar força à sua tese ele a
fundamenta na natureza(“ex natura”).Nãoéporconvenção
(“ex instituto”), portanto, que as coisas se passam desse
modo; não se trata de um acordo provisório nem de um
costume ou de uma moda passageira. O pendor
nominalista de Spinoza, que desconfia de Platão e
Aristóteles11, não o impede de nesse ponto aderir a uma
perspectiva essencialista: é a essência feminina que
determina as mulheres a colocar-se “sob a autoridade
dos homens”. A razão que mantém esse estado de coisas
parece ser uma razão forte, natural. Daí sua
inalterabilidade.
Ao reforçar experiencialmente a tese da
submissão, o filósofo recorre à “fraqueza”. O termo
utilizado é “imbecillitas”. Pus de lado a tradução literal,
escolhendo entre as traduções possíveis a que me
pareceu mais consonante com o sentido do texto, ou
seja, “fraqueza”, não especificando se ela se refere à
mente ou ao corpo12. Se entendemos que se trata de
fraqueza física, estamos perante uma mera questão
de fato, algo que se constata e que não podemos
deixar de aceitar – é verdade que a mulher, de um
modo geral, tem menos força que o homem. Se
traduzirmos o termo por fraqueza psíquica,
aceitamos o sentido literal de imbecilidade e temos
de admitir uma incontestável má vontade do
filósofo para com as mulheres. Essa, porém, é uma
tese que se afigura incompatível com a defesa da
dignidade individual, recorrente em toda a obra do
filósofo. Como tal, deixamo-la cair.

152
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

A experiência, seja ela vaga ou “ex auditu”, leva o


filósofo a concluir que a coabitação governamental
entre homens e mulheres nunca existiu. E mesmo se
atendemos ao caso das amazonas, a que Hobbes
parece ter dado credibilidade, verificamos que não
há qualquer parceria, pois, ao matarem os machos,
sempre governaram sozinhas, nunca partilhando o
poder:
Com efeito, em nenhuma parte da terra homens e
mulheres reinaram conjuntamente, mas em toda
parte onde se encontram homens e mulheres
vemos que os homens reinam e que as mulheres
são governadas, e que, dessa maneira, os dois
sexos vivem em boa harmonia; pelo contrário, as
amazonas, que, segundo uma tradição, outrora
reinaram, não admitiam que os homens
permanecessem em seu território, não
alimentavam senão os indivíduos do sexo
feminino e matavam os machos que tinham
gerado (...)13.
A prática política exige determinadas
características próprias da virilidade, ligadas à força,
à afirmação de si ou mesmo à astúcia ou ao engenho.
A natureza das mulheres não é propícia ao exercício
de tais funções, essa natureza pela qual se
distinguem dos homens e que as leva certamente a
outras ocupações que não as da governação:
Se as mulheres fossem por natureza iguais aos
homens, se tivessem no mesmo grau a força de
alma e o engenho em que consiste maximamente
a potência humana, e, consequentemente, o
direito, com certeza, entre tantas nações
diferentes, não poderia deixar de se encontrar
umas em que ambos os sexos reinassem
igualmente e outras em que os homens fossem
governados pelas mulheres e recebessem uma
educação própria para diminuir seu engenho.
Mas, como isso nunca se viu
em parte alguma, pode-se afirmar, em termos
gerais, que as mulheres, por natureza, não têm o
mesmo direito que os homens, mas que deverão
necessariamente ceder aos homens, e também que
é impossível que ambos os sexos reinem
igualmente e, muito menos, que os homens sejam
regidos pelas mulheres (...)14.
O texto fala da natureza feminina, mas nada
nos diz sobre ela, apenas a contrapondo às
características masculinas. Quanto a estas o filósofo
é mais explícito, pois refere a sensualidade e o modo

153
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

como o desejo interfere numa apreciação objetiva;


levado pela paixão, o homem não é sensível ao
engenho da mulher amada nem à sua sapiência,
apenas sendo afetado por sua aparência exterior,
por sua beleza. A consequência desse
relacionamento de superfície é o envolvimento
passional em certos afetos perturbadores, como a
inveja ou o ciúme. Daí a impossibilidade de se
considerar válida a hipótese de uma paridade
governativa entre mulheres e homens:
Se, além disso, considerarmos os afetos humanos,
se reconhecermos que quase sempre o amor dos
homens pelas mulheres não tem outra origem
senão o afeto libidinoso, de tal modo que não
estimam nelas o engenho e a prudência, mas as
qualidades de beleza que têm, que não admitem
que as mulheres amadas tenham preferência por
outros que não eles, veremos sem esforço que não
se poderia instituir o reinado igual dos homens e
das mulheres sem grande detrimento para a paz.
Mas basta sobre esse assunto.15.
Um texto desses não oferece dúvidas. Sua
escrita não é (não foi) sexualmente neutra. A leitura
também não o poderá ser. Com ele verificamos que
o filósofo tem ideias seguras sobre sexo e sobre
gênero, considerando o primeiro determinante do
segundo. Para Spinoza, não é por instituição
(convenção) que o estatuto da mulher se define, mas
sim por natureza. Um autor que pensávamos
conhecer, que profundamente admirávamos por
seu empenhamento na luta contra o obscurantismo,
que nos habituáramos a considerar um iconoclasta
dos “praejudicia”, pois esse autor, afinal, no que respeita
à condição feminina, aparece como veiculador dos
mais primários preconceitos. Como integrar essa
posição num sistema que sempre foi caracterizado
por seus aspectos inovadores, nomeadamente no
que concerne ao respeito pelas liberdades
individuais? Como ler esse excerto (e com ele a
filosofia de Spinoza) na perspectiva de uma mulher?

3.Hobbes e a desigualdade convencional das mulheres

Também Hobbes comunga da atmosfera


masculinizante própria da modernidade. Assim, é
natural que, quase inconscientemente, veicule certos
estereótipos. É curiosa a semelhança entre os casos
citados por Spinoza e aqueles que o filósofo inglês
refere: Em A Natureza Humana, as mulheres são

154
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

comparadas às crianças, pois, como estas são


propensas ao choro (A Natureza Humana, Cap. IX, §
14);o Capítulo V do Leviatã fala das histórias absurdas
que as mulheres contam para explicar o nascimento;
o Cap. XXI da mesma obra considera próprio da
feminilidade a pouca coragem demonstrada na
guerra, etc. Contudo, o texto mais significativo está
longe de reforçar os preconceitos machistas. Refiro-
me à tese hobbesiana sobre a regulação do poder
paternal, apresentada no Cap. XX do Leviatã e
reforçada nos Caps. IX do De Cive e IV do De Corpore
Politico.
Tomemos como ponto de referência o texto
do Leviatã. Ao falar do modo como os pais adquirem
domínio sobre sua descendência – o domínio por
geração –, Hobbes surpreende-nos com a seguinte
tese: os pais não têm direito sobre os filhos pelo fato
de os terem procriado, mas sim porque entre eles,
explícita ou implicitamente, estabeleceu-se um
contrato:
Esse direito não deriva da geração, como se o pai
tivesse direito sobre seu filho pelo fato de o ter
procriado, mas sim do consentimento do filho,
quer expressamente, quer por outros
argumentos suficientemente explícitos16.
O vínculo de domínio que se institui entre
pais e filhos não é dado, mas construído. Sua
consolidação passa pelo consentimento, seja ele
tácito ou expresso, dos subordinados. Estes têm um
papel a desempenhar nas relações de poder. Não é
a natureza, portanto, que leva à supremacia do
homem no que se refere ao poder paternal. Se
recorrêssemos a esse critério, teríamos fazer jus ao
outro elemento responsável pela procriação, ou seja,
à mulher, que o filósofo denomina de colaboradora
ou ajudante:
No que respeita à geração, quis Deus que o
homem tivesse uma colaboradora e há sempre
dois que são igualmente pais17.
O texto do De Cive referente ao poder paternal
utiliza os mesmos argumentos, dando-se nele
particular destaque à posição da mãe e concedendo-
se a esta uma primazia exclusiva no poder que
exerce sobre a criança:
Pelo direito de natureza, o domínio sobre uma
criança pertence àquele que primeiro sobre ela
exerce poder. Ora, é manifesto que o recém-nascido,
antes de qualquer outro poder, está sob o da mãe,

155
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

de modo que esta, por direito e por sua livre


vontade, pode educá-lo ou abandoná-lo18.
“Partus ventrem sequitur” aparece como a norma
reguladora que se impõe tanto aos animais como aos
homens (ibidem, § 3).
O De Corpore Politico traz mais um acréscimo à
tese da supremacia materna: “A habilitação ao
domínio sobre um filho não procede da geração do
filho, mas da sua preservação”19.
Aqui, antecipando a valorização de uma ética de
cuidado (“ethics of care”, como dizem os filósofos
contemporâneos de língua inglesa), reconhece-se que a
mãe, tendo capacidade de assegurar a manutenção dos
filhos, é a pessoa que mais poder tem sobre eles. Assim,
no estado de natureza, não há dúvida de que o poder
“paternal” pertence à mãe. No estado civil, há de se
decidir quem exerce tal poder com maior eficácia. Ora,
as mais das vezes, tal decisão recai sobre o homem.
Como explicar essa defesa da supremacia paterna? A
justificação hobbesiana nunca recorre a propensões
especiais masculinas para o mando ou para a
autoridade. O filósofo desmistifica expressamente
qualquer defesa da superioridade masculina. Sustenta
no Leviatã que: “Aqueles que atribuem o domínio apenas
ao homem pelo fato de ser do sexo mais excelente estão
totalmente enganados”20. Apressa-se mesmo a falar de
mulheres dotadas de força e prudência necessárias para
lhes granjear autoridade suficiente sobre os filhos:
“Porque nem sempre se verifica essa diferença de força
e de prudência entre o homem e a mulher de maneira a
que o direito posssa ser determinado sem luta”21.
O De Cive refere estados europeus onde as
mulheres exercem com êxito o direito de soberania
(§ III). É verdade que Hobbes prefere a sucessão por
via masculina, mas as duas razões que aduz no § XVI
são deliberadamente fracas. A primeira é que “os
homens são quase sempre (mas nem sempre) mais
aptos aos grandes empreendimentos, sobretudo à
guerra”22.
A segunda baseia-se no costume,
apresentado como fator de estabilidade que, como
tal, não interessa contrariar. É a lei, criada pelos
homens no interior de um Estado, que favorece o
estatuto masculino; é ela que determina a entrega
de poderes ao pai, tendo o filósofo o cuidado de
esclarecer que tal decisão não é universal. Sem
Estado, ou seja, antes da existência de pactos ou de
convenções, nada indica quem terá supremacia. Por
isso, no estado de natureza reina uma igualdade de
direitos entre homens e mulheres em todos os

156
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

domínios. Resumindo: no que respeita à tese da


supremacia masculina, verificamos que Hobbes
contraria a ideologia coeva. Enquanto seus
contemporâneos se escudam em razões religiosas
para secundarizar a condição feminina23, ele avança
com um modelo explicativo, com uma hipótese
forjada – o estado de natureza. E no estado de
natureza as mães têm um papel privilegiado na
organização familiar. Só a mulher tem a certeza de
que os filhos são realmente seus; só ela está segura
de quem é o pai de sua prole. Daí a conclusão de que,
naturalmente, é a mãe que tem poder sobre os filhos.
A sociedade seiscentista está longe do estado
de natureza. Nela a mulher está submetida ao
marido e, consequentemente, a mãe surge como
mediadora entre os filhos e o pai. Mas, nos casos em
que o marido se submete à mulher, a obediência
deve-se a esta, e não ao pai. O Leviatã defende que:
Se a mãe estiver submetida ao pai, o filho está em
poder do pai, e, se o pai estiver submetido à mãe,
o que acontece quando uma rainha soberana casa
com um dos seus súditos, o filho fica submetido à
mãe, visto que o pai também a ela está
submetido24.
Trata-se de uma verdadeira desmistificação do
poder paternal, justificado pelo recurso a um objetivo
pragmático: a construção de uma sociedade
harmoniosa e pacífica. O sacrifício imposto às
mulheres, privando-as de certos direitos, é o preço
para que as instituições funcionem e para que o
Estado se constitua. Se aos homens é pedido que
abdiquem de seu direito natural em nome de uma
ulterior realização, tendo em vista a felicidade, às
mulheres é exigido um despojamento suplementar.
Mas ambos os sexos renunciam a algo, em função
de valores mais altos.

4.Estará vedado às mulheres o “amor Dei


intellectualis”? O âmbito da “imbecillitas” feminina em
Spinoza

Nas posições que consideramos, tanto Spinoza


como Hobbes abordam a condição feminina da
perspectiva da diferença. Daí homens e mulheres
desempenharem papéis específicos na Civitas. Vimos
que as justificações apresentadas por cada um remetem
a universos conceituais muito próprios: o filósofo inglês
aceita a desigualdade, mas denuncia seu caráter
convencional; o autor da fítica alega que a diferença

157
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

sexual marca os indivíduos e que estes são, por


natureza, sujeitos a percursos diferentes. Analisemos
então as consequências que decorrem desses modos de
encarar a condição feminina. Consideremos em primeiro
lugar o texto spinoziano do Tratado Político. Poderemos
a partir dele concluir que, para o filósofo judeu, a mulher
é um ser inferior, sendo-lhe vedada uma realização
plena? Em caso afirmativo, como compatibilizar essa
tese com a defesa por ele empreendida das liberdades
individuais? E, em caso negativo, qual o âmbito da
“imbecillitas” feminina?
Um possível modo de resolver tal questão
seria realçar o inacabamento do Tratado Político.
Estamos perante uma obra inconclusa, que termina
precisamente com uma passagem infeliz sobre as
mulheres. Por que não admitir que, com algum
tempo de maturação, esse excerto seria corrigido,
refeito ou pelo menos justificado? Na verdade, a
referência às mulheres surge de forma abrupta e não
é minimamente desenvolvida nem fundamentada.
Num filósofo tão cuidadoso quanto Spinoza, seria
de esperar que uma tese desse teor merecesse ulterior
desenvolvimento, podendo-se deduzir que só uma
morte prematura o impediu de prosseguir com tal
tarefa. Num artigo intitulado “Femmes et serviteurs
dans la démocracie spinoziste”, Alexandre
Matheron, eminente comentador de Spinoza,
sugere ironicamente que a morte do filósofo teria
surgido como castigo pela falta cometida25.
Uma segunda hipótese seria considerar que,
tratando-se de uma problemática de pouco peso na
globalidade de seu sistema, o filósofo não se
interessou em aprofundá-la, não tendo qualquer
pejo em repetir lugares-comuns. Spinoza colocar-se-
ia como mais um dos pensadores que perfilharam
sem grandes preocupações a visão negativa da
mulher institucionalizada por Platão e Aristóteles e
exaustivamente reiterada.
Nenhuma das interpretações permite
integrar congruentemente as considerações tecidas
sobre a natureza feminina na totalidade do sistema
spinozano. Há de se procurar uma linha de leitura que
leve à integração dessa passagem no pensamento do
filósofo, surgindo este como um todo consistente, sem
falhas nem exceções. Que a democracia
convictamente defendida por Spinoza deixe de lado
um setor importante da humanidade levanta graves
problemas à sua proposta de realização individual.
Será vedado à mulher o desafio, colocado a todo ser
dotado de razão, de “fruir eternamente de uma

158
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

suprema e contínua alegria” (Tratado da Reforma do


Entendimento, § 1)? Estarão as mulheres excluídas da
salvação? Ou haverá no pensamento do filósofo uma
possibilidade de ultrapassar esse escolho e de
encontrar uma solução final em que a mulher não saia
diminuída?
Seguindo o conselho de António Sérgio, para
quem “se achar uma ideia no texto de um Mestre que
lhe pareça de fácil refutação – conclua que ele próprio
[o leitor] é que a não percebe, e que o pensar do autor
deverá ser mais fino, mais meandroso, mais facetado,
mais verrumante, do que ao primeiro relance se lhe
afigurou”26, procurei ultrapassar a primeira
impressão provocada, tentando desdramatizar a
leitura do fragmento. E, na verdade, se atendermos
exclusivamente ao que nele se refere, o que de
imediato se interpreta negativamente para a mulher
revela-se, a uma observação mais atenta, uma
desmesura, uma “hybris”, um poder – o poder de
provocar paixões. Diz-nos Spinoza que os homens
não são sensíveis às qualidades intelectuais e morais
das mulheres (ao “engenho” e “à prudência”), mas que
são perturbados por seus dotes físicos. Reforça o
sentimento masculino de posse, constatando que os
homens exigem exclusivismo amoroso por parte das
mulheres amadas. Se há alguém inferior, esse alguém
é o homem, que não consegue fugir às solicitações
passionais que o universo feminino lhe provoca.
Diríamos que, para o filósofo, o afastamento das
mulheres da governação deve-se a algo que elas
possuem e que os homens não têm. Não se trata,
pois, de uma falha, mas, pelo contrário, de um
excesso.
Continuando a seguir a norma sergiana,
procurei penetrar agora no pensamento “mais
meandroso, mais facetado” do filósofo, para
investigar se nele a mulher é segregada. Sendo a
liberdade o valor que Spinoza mais preza, há de se
verificar se o filósofo menciona quaisquer
impedimentos que se levantem às mulheres
relativamente ao acesso a esse estádio. Ora, nas
poucas passagens em que o filósofo se debruça sobre
a condição feminina, nada nos diz de uma hipotética
exclusão; pelo contrário, há na fítica uma referência à
liberdade que manifestamente inclui homens e
mulheres – o Cap. XX do Apêndice do livro IV. Nesse
ponto, ao referir-se ao verdadeiro amor conjugal,

159
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Spinoza nos diz que ele não visa apenas à beleza física,
mas sobretudo à liberdade da alma. E esta é algo que
tanto o homem como a mulher podem alcançar27.
Ficamos com a certeza de que a mulher – tal como o
homem – pode ser livre. Mas se nos levanta agora o
problema quanto ao sentido da “imbecillitas”
mencionada no Tratado Político.
Para situarmos o fragmento em causa num
contexto mais vasto, temos de considerar a proposta
ética e gnosiológica que Spinoza inicia no Tratado da
Reforma do Entendimento e que concretiza na fítica. O
que nos leva a atender às várias etapas do itinerário
salvífico spinoziano, na vertente gnosiológica e ética
que o constituem. O texto do TP nos diz que a mulher
não é por natureza compatível com o exercício da
governação. Impõe-se perceber qual o lugar que a
política desempenha em Spinoza. Ora, quando fala de
política, o filósofo distingue várias acepções28. Temos,
por um lado, a prática política, que parte da
experiência e que recusa modelos prévios. Mas temos
também a ciência política, que joga com as paixões,
orientando-as em função da utilidade. Finalmente, há
a filosofia política, ou seja, um pensar reflexivo sobre
a própria política, traçando a gênese e explicando os
fundamentos do Estado, pois este é o território
privilegiado no qual os indivíduos tomam consciência
de sua natureza racional29. Tentando ordenar essa
polissemia, podemos dizer que o conceito spinoziano
de política acolhe três sentidos: a política que se vive,
a política que se exerce e a política que se pensa.
Para ilustrar a primeira acepção, teríamos o
homem comum, a “multitudo”, que obedece aos
decretos do Estado e que neles encontra a possibilidade
de se realizar. Para tal não lhe é exigido o conhecimento
dos mecanismos sociais; basta-lhe um saber “ex auditu”
dos fatos, quando muito uma “experientia vaga” destes.
O político representa a concretização de uma
prática que se exerce e que se vai desenrolando num
quotidiano. Seu objetivo é a utilidade. O político sabe
que os governos são desigualmente eficazes. Como tal,
faz tudo para que vinguem formas governativas que
assegurem aos cidadãos uma vida estável. Consegue-o
pelo conhecimento dos fatos e pelo confronto dos
eventos a que sua ação se circunscreve. Um tal
conhecimento basta-lhe para “evitar a maldade
humana”30. A política que se vive, tal como a que se
exerce, situa-se no registro da paixão e da imaginação,
naquilo que o filósofo designa por conhecimento do
primeiro gênero – um conhecimento frágil, “ex auditu” e
“ab experientia vaga”. Ora, é precisamente no âmbito da

160
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

paixão que a mulher é um objeto, algo que se possui e


frente ao qual se desencadeiam os mais diversos
sentimentos. Tal como de todas as coisas que amamos,
há maneiras de fugir de seu domínio. É no registro da
paixão que as mulheres são maltratadas. Nele é
peremptoriamente afirmado que a vivência política não
convém à mulher, pois a fraqueza que lhe é inerente a
impede de partici par do governo. Contudo, tal fato não
implica que lhe estejam vedadas outras formas de
realização.
Para o sábio, o registro da paixão no qual se
situa a política tem regras que importa conhecer. É a
abordagem filosófica que permite a superação do
arbitrário e do efêmero. Por ela alcançamos as leis
que regem os fatos (pelo conhecimento de razão) e
percebemos o papel insubstituível de cada
indivíduo no todo (pela ciência intuitiva). Só o
filósofo radica a política na metafísica,
estabelecendo pontes entre os poderes humanos
(“potestates”) eapotência (“potentia”) aquetodosecadaum
deles se filia. Spinoza privilegia a razão e a intuição. E
esses domínios abrem-se a todos, homens e
mulheres. Se há discriminação sexual no que
respeita ao primeiro gênero de conhecimento, em
que imperam a experiência vivida e a paixão, ela não
se faz sentir no conhecimento de segundo gênero, em
que a dedução prevalece. Da mesma forma, não há
exclusão no grau da ciência intuitiva,
correspondente à etapa suprema, ao conhecimento
do terceiro gênero.
É verdade que o problema de uma libertação
sexuada é omisso em Spinoza. Mas isso não quer
dizer que não se façam ilações a partir do que
explicitamente refere. O filósofo nos fala de uma
reforma do entendimento, de uma “emendatio”
individual, personalizada. No itinerário salvífico
que propõe, atende ao corpo particular, aos poderes
que este detém e ao modo de os incrementar31.
Diferindo os corpos da mulher e do homem,
certamente que terão percursos salvíficos próprios.
Sabemos pela negativa que nenhum deles passa pela
honra, pela glória ou pela luxúria. Pela positiva
podemos postular, como consequência lógica do
sistema spinoziano, que esse percurso, levando cada
um ao seu melhor, atenderá às diferenças
individuais, entre as quais se encontra o sexo. Cada
homem e cada mulher poderão chegar ao “Amor Dei
intellectualis”, a meta suprema, a partir de um caminho
de aprofundamento do seu ser.
Spinoza não exclui as mulheres da sociedade
dos sábios; exclui-as, sim, da sociedade dos

161
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

políticos, entendidos como os que se regem pela


experiência. A política não constitui uma meta
última: é um meio, e não um fim. A mulher é
explicitamente afastada dos meios. Mas nada é dito
dos fins.

5.A desmitificação hobbesiana do poder paterno


– a mulher como cidadã

Tal como Spinoza, Hobbes critica uma visão


hierarquizada da realidade. No estado de natureza
que no Leviatã apresenta como modelo
interpretativo, todos são iguais:
A natureza fez os homens tão iguais, quanto às
faculdades do corpo e do espírito, que, embora por
vezes se encontre um homem manifestamente
mais forte de corpo ou de espírito mais vivo do
que outro, mesmo assim, quando se considera
tudo isso em conjunto, a diferença entre um e
outro homem não é suficientemente considerável
para que qualquer um possa com base nela
reclamar qualquer benefício a que outro não
possa igualmente aspirar32.
Embora não refira explicitamente as mulheres, é
óbvio que o termo “homem” as inclui. Homens e
mulheres irmanam-se numa mesma pertença à natureza
humana. Esta define-se quer pelo desejo (de viver), quer
pelo medo (de morrer). Para uns e para outras, a pior
sorte será a de morrer às mãos de alguém, uma ameaça
que urge anular a todo custo. Não há fortes nem fracos;
todos possuem como virtualidade a capacidade de
matar, todos são potenciais assassino(a)s: “No que
respeita à força do corpo, o mais fraco tem força
suficiente para matar o mais forte...”33.
À semelhança de Spinoza, também Hobbes é
explicitamente antiaristotélico, embora continue a
mover-se num universo conceitual herdado da
escolástica e utilize os termos filosóficos tradicionais.
Sem dúvida que a divergência maior se coloca
relativamente à tese aristotélica do homem como
“Zoon politikon”. Mas, para além dessa grande ruptura,
determinante para o rumo que o filósofo inglês imprime
às suas teorias sobre o Estado e sobre o poder, há outros
pontos em que contraria o filósofo grego. Um deles é a
concepção da natureza feminina. Para o estagirita, a
fraqueza feminina é biologicamente determinada. Em
Da geração dos animais, ele realça o caráter óbvio das
deficiências corpóreas da mulher34. Dessa inferioridade
física deriva, como consequência, uma menoridade

162
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

psicológica que afasta definitivamente o mundo


feminino da atividade nobre da política.
Hobbes não partilha a tese aristotélica da
mulher como “homem mutilado”35. Para o autor do
Leviatã, ela é tão forte quanto o homem, ou melhor,
tão frágil como ele. Possuindo todos as mesmas
possibilidades de matar e morrer, todos são fracos e
todos são igualmente perigosos. Assim, há de se
encontrar para cada um as estratégias que levem
quer à superação de sua fraqueza, quer ao
apagamento definitivo de sua periculosidade. As
capacidades físicas tornam-se irrelevantes, pois o
que conta é a astúcia, a força psíquica que leva os
indivíduos a se servirem de ardis para dominar
outrem ou para se defender de ataques. É a força
psíquica, pois, que devemos temer. Os textos
alusivos à regulação do poder paterno podem ser
compreendidos como concretização dessas
estratégias no que diz respeito à situação da mulher.
Os textos do Leviatã, do De Corpore Politico e do
De Cive referidos na seção 3 são desmitificadores sob
vários aspectos. Como vimos, a primeira e mais
óbvia desmistificação diz respeito à hipotética
superioridade natural do homem. De fato,
contrariamente a Spinoza, para quem é sob o
domínio das paixões que as mulheres são
inferiorizadas, o filósofo inglês considera que,
numa sociedade totalmente regida pela paixão, não
haveria diferenças. Aliás, se lermos os textos
atentamente, verificamos que apontam mesmo para
uma superioridade feminina, detectada em duas
esferas: biológica e social. A superioridade biológica
verifica-se no fato de ser a mulher quem assegura
a sobrevivência da prole. Há um potencial poder
feminino no domínio da continuidade da espécie:
numa sociedade de carências (e podíamos estender
essas carências à época de Hobbes, em que a
sobrevivência das crianças nos primeiros tempos de
vida era assegurada pelo aleitamento), a vida
humana está nas mãos das mulheres. Hobbes o diz
explicitamente quando afirma que a humanidade
pereceria se as mães recusassem amamentar os
filhos. Tal superioridade social manifesta-se na
própria organização da sociedade, pois as mulheres
têm a última palavra na determinação das linhagens
e no estabelecimento das relações de parentesco. A
força das mulheres reside no poder determinante
que detêm na atribuição de paternidade.
Verificamos assim que, se o verdadeiro
perigo consiste na força psíquica, na astúcia, no

163
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

modo ardiloso como é possível engendrar a morte


ou aniquilação de um inimigo, as mulheres são tão
temíveis quanto os homens – e, pelas razões
imediatamente aduzidas, são ainda mais do que
eles. É natural que o poder das mulheres suscite
reações de medo e de defesa por parte dos homens.
É precisamente a fortaleza das mulheres que leva os
homens a procurar meios que as consigam
subjugar. A subordinação das mulheres ao domínio
dos maridos não encontra outra justificação que não
seja uma medida de precaução masculina quanto a
uma superioridade feminina, superioridade essa
que, embora não seja explicitamente defendida, é
implicitamente postulada.
Os textos hobbesianos são reveladores quer
no que respeita à desigualdade, quer no que
concerne a uma pseudofundamentação ética da
moral ou da organização social e política. Com eles
verificamos que se anulam muitos dos preconceitos
dominantes na época. Não só o texto bíblico é
ignorado, mostrando que o status quo nada deve a
justificações religiosas, como também se anulam
todas as interpretações moralizantes que fazem do
homem um altruísta defensor dos mais fracos. O
que rege a vida política são valores utilitários, e não
propriamente morais. Os valores são instituídos por
contrato, são posteriores ao contrato e, como tal, não
o podem determinar.
Se confrontamos a posição hobbesiana com
a de outros filósofos seus contemporâneos, vemos
que ela é bem mais favorável à mulher. É o caso de
Robert Filmer, que, baseado na moral cristã e nos
textos sagrados, sustenta que a esposa deve
obediência ao marido. A posição de Sir Robert é
contestada por Locke, que lhe critica a exclusiva
subordinação aos preceitos bíblicos. No entanto, as
teses defendidas pelo liberal autor dos Tratados do
Governo ficam muito aquém, relativamente às
mulheres, das sustentadas pelo dogmático teórico
do poder absoluto. Enquanto este contesta
quaisquer razões que proclamem a superioridade
masculina, Locke continua a defender a natural
inferioridade da mulher, advogando a força moral
do marido e sua maior sensatez. Assim, posto que
reconheça uma igualdade de direitos a homens e
mulheres no domínio público, para ele, na esfera do
privado, a mulher é nitidamente inferior:
Mas o Marido e a Mulher, embora tenham uma
única preocupação, tendo, no entanto, diferentes
perspectivas, sem dúvida que terão algumas vezes

164
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

vontades diferentes; se, portanto, for necessário


colocar algures a última Determinação, isto é, a
Regra, naturalmente que ela caberá ao homem, já
que ele é o mais apto e o mais forte36.
Se atendermos às justificações apresentadas,
é óbvio o contraste com Hobbes. É verdade que este
também nos diz ser mais forte a posição do marido.
Contudo, não tenta justificar essa situação,
limitando-se a constatá-la.
Na relação homem/mulher, o filósofo
verifica que a sociedade em que vive é regida por
homens, mas que nem sempre o foi. O fato de
Hobbes aceitar pacificamente esse estado de coisas
poderia, num primeiro momento, levar-nos a acusá-
lo de misoginia. Contudo, integrada no pensamento
geral do filósofo, a injustiça dessa situação dilui-se.
O contraste entre a secundarização política das
mulheres e seu potencial poder evidencia uma falha,
um hiato, algo que não é explicado e que se nos afigura
incompreensível: como se passou de um regime
matriarcal para uma sociedade em que o homem
domina? Hobbes é omisso quanto à gênese de um
processo que levou metade da humanidade a ficar
privada dos seus direitos. De uma hipótese – o
predomínio das mulheres no estado de natureza –
passa a um fato - sua subordinação ao poder
masculino –, sem se preocupar com o que ocorreu
entrementes.
Colocados perante essa incongruência,
poderíamos concluir com Susan Okin que se trata
de uma incoerência radical na teoria hobbesiana37,
uma inconsequência de seu pensamento. Também é
possível ler tal omissão como significativa de uma
denúncia; ou seja, com ela Hobbes pretenderia
mostrar a deficiente fundamentação de uma
sociedade patriarcal. A interpretação que se me
afigura mais correta é, tal como foi anunciada na
seção 1, a que possibilita integrar o tema específico
da mulher na totalidade do pensamento
hobbesiano, de modo a que haja sintonia entre o
particular e o geral. Assim, a obediência que Hobbes
constata na relação da mulher com seu cônjuge
apenas seria uma modalidade ou concretização da
obediência imprescindível a todo súdito para a
aquisição da cidadania. Numa sociedade de direito
ninguém é livre, pois cada um transferiu para
outrem o poder que inicialmente detinha. Dado que
todos os cidadãos devem obediência aos
governantes, não faz sentido falar da inferioridade
da mulher nem de sua fraqueza. No âmbito da

165
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

filosofia hobbesiana, ela não é mais fraca do que os


demais indivíduos. Apenas na obediência que lhe é
exigida há mediações que a desviam de uma
subordinação direta a um soberano ou a uma
assembleia. É isso que leva certas filósofas
contemporâneas a relevar a contribuição do filósofo
inglês no que se refere à condição feminina38. A
subordinação da mulher ao marido defendida por
Hobbes é por elas entendida como uma conquista de
cidadania. É verdade que o estatuto de cidadã
implica um determinado preço, mas também é certo
que, diferentemente do que acontece noutros
pensadores coevos, o direito de cidadania a
ninguém é negado39. E, desse modo, a posição
hobbesiana acaba por beneficiar mais a causa das
mulheres do que a posição de Locke, que lhes dá
direitos públicos mas que, no foro privado, lhos
retira.
Para Hobbes, há um nivelamento dos sexos
no fato de todos serem súditos e na consequente
obediência que a todos é exigida. O filósofo não se
preocupa abertamente com a cidadania feminina,
mas as teorias que desenvolve sobre a transferência
de poderes, o direito de representação e a soberania
acabam por fazer delas cidadãs de pleno direito.
Também as mulheres abdicam dos seus direitos,
também delegam aquilo que lhes é mais precioso
para que, mediante essa cedência, construa-se uma
sociedade estável. É verdade que não transferem
seus poderes diretamente para os governantes, e sim
para os maridos, mas haverá grande diferença
relativamente ao que se passa com os outros
súditos? Pede-se aos homens e às mulheres que
renunciem à igualdade que beneficiavam no estado
de natureza, em prol da segurança que só
encontrarão num Estado organizado. Não é lícito
falar da injustiça de uma situação que se revela eficaz
para manter a tranquilidade social. O melhor modo
que as mulheres encontraram para assegurar sua
sobrevivência foi submeterem-se aos maridos.
Trata-se de estratégia, e não de ética. Se refletimos
sobre o modo como Hobbes entende a liberdade,
verificamos que a mulher, tal como os demais
cidadãos, não é livre. Para que todos gozem de uma
sociedade livre, cada um terá de renunciar à sua
liberdade individual. O acesso à cidadania implica
uma transferência de poderes. O sexo determina o
interlocutor a quem se delega o poder. Mas, exceto
o governante, não há ninguém que não se subordine
a outrem por laços de obediência. A condição da

166
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

mulher é a de todos os cidadãos da Commonwealth.

Conclusão: A (involuntária) contribuição de Spinoza e


Hobbes para uma filosofia no feminino

Nem Spinosa, nem Hobbes se preocuparam


com a condição feminina. Aparentemente, as teses
que defenderam não ultrapassam os preconceitos
de sua época, contribuindo mesmo para seu reforço.
Deles não se pode dizer que tenham valorizado a
mulher. Contudo, as poucas passagens que lhe
dedicam chamam a atenção para problemas que
hoje nenhum estudioso desses temas ignora. Um
deles é o da igualdade e da diferença, relativamente
ao qual as posições de ambos são, como vimos,
quase opostas. Quanto à natureza humana, Spinoza
é partidário da diferença. Para ele, a desigualdade
biológica entre os sexos traz como consequência
modos diferenciados de ser e de estar, quer nos
planos psíquico e comportamental, quer nos planos
social e político, que deverão organizar-se em função
dessas diferenças.
Hobbes destaca a igualdade. Sem dúvida que
se apercebe da especificidade sexual, mas a considera
irrelevante frente ao instinto comum de conservação
e de defesa. Homens e mulheres prezam acima de
tudo a manutenção de uma vida que, tanto quanto
possível, desejariam pacífica. É em função desse
desiderato que se lhe exigem renúncias. Contudo, o
importante não é o aspecto pontualmente sexualizado
das cedências, mas seu objetivo comum.
Também no que respeita às relações entre
sexo e gênero, o posicionamento dos filósofos é
paradigmático. Spinoza, que, como vimos na Carta
a Jelles, defende a continuidade entre estado de
natureza e sociedade civil, mantém-se continuista
nas relações entre biológico e cultural. O sexo tem
implicações diretas na construção social do gênero.
O tratamento diferenciado que a sociedade atribui a
homens e mulheres justifica-se em função de uma
natureza específica, biologicamente determinada. O
afastamento da mulher de cargos políticos tem uma
explicação sexual – a fraqueza feminina. Fraqueza
essa que, pelas reações que provoca nos homens,
revela-se perigosa. Ignorar tal fato levaria às
maiores perturbações.
A posição hobbesiana evidencia o caráter
construído do gênero e a convencionalidade de
certos comportamentos sociais relativamente às

167
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

mulheres. Tal como na passagem do estado de


natureza para o estado civil é evidente a ruptura,
também no que se refere ao sexo e ao gênero há um
corte. A representação social da mulher não se
justifica por uma diferença qualquer, mas por
critérios utilitários. É importante que numa
sociedade livre todos tenham um lugar bem
definido. Cabe à mulher renunciar a certos papéis,
pois, desse modo, contribui para a felicidade e
estabilidade de todos. Mas, como não há outras
razões para justificar tal renúncia, torna-se por
demais evidente o caráter não só injusto como
absurdo desta. Abre-se, desse modo, um campo de
investigação e de reivindicação insuspeito a Hobbes,
mas que outros filósofos e filósofas posteriormente
desenvolveram.
Quanto à temática hoje tão discutida da
distinção entre público e privado, Spinoza e Hobbes
deram sua contribuição própria. O primeiro distingue
uma realização em duas esferas – política e individual.
O Estado oferece a todos a possibilidade de uma vida
racional, convidando à integração numa sociedade
organizada e tornando democraticamente acessível
um modus vivendi que, fora do Estado, só alguns, os
mais fortes, conseguiriam alcançar. A cada um,
contudo, é proposto um caminho individual de
libertação. O estatuto da mulher é diferente conforme
se coloca no domínio público ou no privado. No
primeiro caso, são-lhe vedados certos cargos pela
periculosidade que representariam para a
manutenção da paz. No segundo, abrem-selhe todas
as portas, nada obstando a que, com o esforço que é
exigido a todo ser humano, alcance a beatitude.
Hobbes anula a distinção entre público e
privado. Para ele, homens e mulheres realizam-se
publicamente como cidadãos. Cada um tem seu
caminho próprio, ou seja, a obediência, que em
última instância devem aos governantes, tem
mediadores diferentes conforme o sexo. Mas, para
além da cidadania, nenhum valor mais alto se ergue.
Ao foro privado é dado o estatuto de opinião, e seu
papel é minimizado na obtenção da felicidade
pessoal. É na “Commonwealth” que a salvação
individual se processa.
#

Perspectivadas a partir de uma mente


feminina, as teses de Spinoza e de Hobbes levantam
novos problemas, exigem um novo olhar, colocam

168
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

questões que uma leitura sexualmente neutra


deixaria passar em branco. E esse exercício de
redescoberta de dois filósofos que pensávamos
conhecer bem permitiu-nos concluir que vale a pena
testar a coerência interna de um sistema. Mesmo
que o questionamento deste se perspective a partir
de um problema nele aparentemente tão irrelevante
como é o conceito de natureza feminina.

Spinoza

Mas talvez alguns perguntem se as mulheres estão


por natureza, ou por instituição, sob a autoridade
dos homens. Se é por instituição, nenhuma razão
nos obriga a excluir as mulheres do governo. Se,
contudo, apelamos para a experiência, veremos
que isso provém de sua fraqueza.
Com efeito, em nenhuma parte da terra homens e
mulheres reinaram conjuntamente, mas em toda
parte em que se encontram homens e mulheres
vemos que os homens reinam e que as mulheres
são governadas, e que, dessa maneira, os dois
sexos vivem em boa harmonia; pelo contrário, as
Amazonas, que, segundo uma tradição, outrora
reinaram, não admitiam que os homens
permanecessem em seu território, não
alimentavam senão os indivíduos do sexo
feminino e matando os machos que tinham
gerado.
Se as mulheres fossem por natureza iguais aos
homens, se tivessem no mesmo grau a força de
alma e o engenho em que consiste maximamente
a potência humana, e, consequentemente, o
direito, com certeza, entre tantas nações
diferentes, não poderia deixar de se encontrar
umas em que ambos os sexos reinassem
igualmente e outras em que os homens fossem
governados pelas mulheres e recebessem uma
educação própria para diminuir seu engenho.
Mas, como isso nunca se viu em parte alguma,
pode-se afirmar, em termos gerais, que as
mulheres, por natureza, não têm o mesmo direito
que os homens, mas que deverão necessariamente
ceder aos homens, e também que é impossível que
ambos os sexos reinem igualmente e, muito
menos, que os homens sejam regidos pelas
mulheres. Se, além disso, considerarmos os afetos
humanos, se reconhecermos que quase sempre o
amor dos homens pelas mulheres não tem outra
origem senão o afeto libidinoso, de tal modo que
não estimam nelas o engenho e a prudência, mas as

169
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

qualidade de beleza que têm, que não admitem


que as mulheres amadas tenham preferência por
outros que não eles, veremos sem esforço que não
se poderia instituir o reinado igual dos homens e
das mulheres sem grande detrimento para a paz.
Mas basta sobre esse assunto.
Spinoza, Tratado Político, XI, § 4
Sed forsan rogabit aliquis, num foeminae ex naturâ, an ex
instituto sub potestate virorum sint. Nam, si ex solo instituto id
factum est,
nulla ergo ratio nos coegit foeminas a regimine secludere.
Sed si ipsam experientiam consulamus, id ex earum imbecillitate
oriri videbimus.
Nam nullibi factum est, ut viri, & foeminae simul regnarent, sed
ubicunque terrarum viri, & foeminae reperiuntur, ibi viros
regnare, & foeminas regi videmus, & hâc ratione utrumque sexum
concorditer vivere. Sed contrà Amazonas quas olim regnasse famâ
proditum est, viros in patrio solo mora non patiebantur, sed
foeminas tantummodò alebant, mares autem, quos pepererant,
necabant.Quòd si ex naturâ feminae viris aequales essent, &
animi fortitudine & ingenio in quo maximè humana potentia, &
consequenter jus consistit, aequè pollerent, sanè inter tot, tamque
diversas nationes quaedam reperirentur ubi uterque sexus pariter
regeret, & aliae ubi a foeminis viri regerentur, atque ità
educarentur, ut ingenio minùs possent: quo cum nullibi factum
sit, afirmare omninò licet, foeminas ex naturâ non aequale cum
viris habere jus, sed eas viris necessariò cedere, atque adeò fieri
non posse, ut uterque sexus pariter regat, multò minus, ut viri a
foeminis regantur. Quòd si praeterea humanos affectûs
consideremus, quòd seilicet viri plerumque ex solo libidinis affectu
foeminas ament, & earum ingenium & sapientiam tanti aestiment,
quantùm ipsae pulchritudine pollent, & praeterea quòd viri
aegerrimè ferant, ut foeminae, quas amant, alio aliquo modo
faveant, & id genus alia, levi negotio videbimus non posse absque
magno pacis detrimento fieri, ut viri, & foeminae pariter regant.
Sed de his satis.
Tractatus Politicus, XI, § 4, G III, p. 359.

Notas

“Quantum ad Politicam spectat, discrimen inter me, et Hobbesium, de quo


interrogas, in hoc consistit, quod ego naturale Jus semper fartum tectum
conservo, quodque Supremo Magistratui in qualibet Urbe non plus in
subditos juris, quam juxta mensuram potestatis, qua subditum superat,
competere statuo, quod in statu Naturali semper locum habet.” Ep. L a
Jarig Jelles, Spinoza, in Spinoza Opera, ed. Carl Gebhardt,
(G) Heidelberg, 1972, G. IV, pp. 238-9.
“Espinosa e Hobbes: implicações de uma divergência”,
comunicação feita no Encontro Hispano-Português de Filosofia.
Espinosa: fítica e Política, Universidade de Santiago de
Compostela, 5 a 7 de março de 1997.

170
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Para o tratamento desse tema, lembramos o interesse de


Spinoza and Hobbes in Studia Spinozana, 3, Alling, Walther
und Walther Verlag, 1987.
Dentre a literatura que se debruça sobre esse tema, destaca
a obra de Janet Radcliffe Richards, The Sceptical Feminist. A
Philosophical Enquiry, London, Routledge and Kegan Paul,
1980, reeditada em 1994 (Penguin Books) com um prefácio
esclarecedor e dois apêndices sobre a diversidade e
incompatibilidade dos feminismos. Ver especialmente o
Appendix 2, “The Great Gulf of Feminism”, pp. 384 e ss.
Tal como aconteceu no âmbito da história das mulheres,
também no campo filosófico tem havido estudos que
relevaram o menosprezo dos filósofos pelo sexo feminino,
atribuindo-lhes uma grande responsabilidade pelo
afastamento das mulheres da filosofia. Ver, entre outras,
Tuana, Nancy, Woman and the History of Philosophy, New
York, Paragon, 1992; Lloyd, Geneviève, The Man of Reason. Male
and Female in Western Philosophy, London, Routledge, 1993;
Green, Karen, The Woman of Reason. Feminism, Humanism and
Political Thought, Cambridge, Polity Press, 1995.
É o caso de Waithe, Mary Ellen (ed.), A History of Women
Philosophers, Dordrecht, Kluwer Academic Publishers, 1991 (4
vols).
Nancy Tuana, op. cit., pp. XIII-XV e 113-121.
São esses os exemplos referidos por Nancy Tuana para
mostrar como o filão platônio-aristotélico tem sido
dominante no modo como os filósofos perspectivaram a
mulher.
“(...) imo mulierculae etiam, ut Hagar ancilla Abrahami, dono Prophetico
fuerunt praeditae.” Tractatus Theologico Politicus (TTP), II, G III, p. 29.
“Sed forsan rogabit aliquis, num foeminae ex naturâ, an ex instituto sub
potestate virorum sint. Nam, si ex solo instituto id factum est, nulla ergo
ratio nos coegit foeminas a regimine secludere. Sed si ipsam experientiam
consulamus, id ex earum imbecillitate oriri videbimus.” Tractatus Politicus,
XI, § 4, G III, pp. 359.
Ep. LVI a Hugo Boxel,G IV , p. 261.
O termo “imbecillitas”pode ser traduzidode várias maneiras.
Escolhi a que me parece mais adequada – a fraqueza. Aliás,
cotejando as várias traduções, verifica-se que há uma quase
unanimidade na escolha desse termo.
“Nam nullibi factum est, ut viri, & foeminae simul regnarent, sed
ubicunque terrarum viri, & foeminae reperiuntur, ibi viros regnare, &
foeminas regi videmus, & hâc ratione utrumque sexum concorditer vivere.
Sed contrà Amazonas quas olim regnasse famâ proditum est, viros in
patrio solo mora non patiebantur, sed foeminas tantummodò alebant,
mares autem, quos pepererant, necabant(...)”. Spinoza, TTP, p. 360.
“Quòd si ex naturâ feminae viris aequales essent, & animi fortitudine &
ingenio in quo maximè humana potentia, & consequenter jus consistit,
aequè pollerent, sanè inter tot, tamque diversas nationes quaedam
reperirentur ubi uterque sexus pariter regeret, & aliae ubi a foeminis viri
regerentur, atque ità educarentur, ut ingenio minùs possent: quo cum
nullibi factum sit, afirmare omninò licet, foeminas ex naturâ non aequale
cum viris habere jus, sed eas viris necessariò cedere, atque adeò fieri non
posse, ut uterque sexus pariter regat, multò minus, ut viri a foeminis
regantur (...).” Ibidem.
“Quòd si praeterea humanos affectûs consideremus, quòd seilicet viri
plerumque ex solo libidinis affectu foeminas ament, & earum ingenium &
sapientiam tanti aestiment, quantùm ipsae pulchritudine pollent, &
praeterea quòd viri aegerrimè ferant, ut foeminae, quas amant, alio aliquo
modo faveant, & id genus alia, levi negotio videbimus non posse absque
magno pacis detrimento fieri, ut viri, & foeminae pariter regant. Sed de
his satis.” Ibidem.

171
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

“(...) And is not so derived from the generation,as if thereforethe parent


hath dominion over his child because he begat him; but from the child’s
consent, either express, or by other sufficient arguments declared.” Hobbes,
Leviathan in The Collected Works of Thomas Hobbes (CWTH ), ed.
William Molesworth, reprt. Aalen, Scientia, 1971, vol. III, 1, p.
186.
“For as to the generation God hath ordained to man a helper; and there be
always two that are equally parents”, ibidem.
“By the right therefore of nature, the dominion over the infant first belongs
to him who first hath him in his power. But it is manifest that he who is
newly born, is in the mother’s power before any others; insomuch as she
may rightly, and at her own will, either breed him up or adventure him to
fortune.” De Cive, IX, § 2, in CWTH , vol. II, pp. 115-6.
“The title to dominion over a child, proceedth not from the generation but
from the preservation of it.” De Corpore Politico, IV, § 3, CWTH, vol. IV,
p. 155.
“And whereas some have attributed the dominion to the man only, as being
of the more excellent sex; they misreckon it.” Leviathan, pp. 186-7.
“For there is not always that difference of strength, or prudence between the
man and the woman, as that the right can be determined without war”.
Ibidem , p. 187.
“(...) for the most part although not always, they [males] are fitter for the
administration of greater matters, but specially of wars”. De Cive, IX , §
16, in CWTH , vol. II, p. 124.
É o caso de Robert Filmer, que recorre ao Antigo
Testamento para defender uma sociedade patriarcal. V.
Patriarcha and Other Political Writings of Sir Robert Filmer, ed.
Peter Laslett, Oxford, Basil Blackwell, 1949.
“If the mother be the father’s subject, the child is in the father’s power; and if
the father be the mother’s subject, as when a sovereign queen marrieth one
of her subjects, the child is subject to the mother; because the father also is
her subject.” Leviathan , pp. 188.
Matheron, Alexandre “Femmes et serviteurs dans la
démocracie spinoziste”, Revue Philosophique II, Avril/Juin
(1977), pp. 181-200.
Sérgio, António, Prefácio a Problemas da Filosofia , de Bertrand
Russell, Coimbra, Arménio Amado, 1974.
“(...) et praeterea si utriusque,viri scilicet et foeminae, Amor non solam
formam, sed animi praecipue libertatem pro causa habeat.” Ethica, IV,
Appendix, Cap. XX , G II, p. 272.
Para as diferentes acepções do conceito spinoziano de
política, ver Maria Luísa Ribeiro Ferreira, A dinâmica da razão
na filosofia de Espinosa, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 1997, pp. 489 e ss.
Lucien Mugnier-Pollet,“Nature et Société selon Spinoza”,
Revue de Synthèse, Paris, 99 (1978), pp. 56-66.
“... donec Homines Humanam igitur malitiam praevenire...” TTP , I , § 2,
G III, p. 268.
Ethica , V , prop. XXXIX , dem. e schol, G II , p. 305.
“Nature hath made man so equal, in the faculties of the body, and mind;
as that though there be found one man sometimes manifestly stronger in
body or of quicker mind than another; yet when all is reckoned together, the
difference between man and man, is not so considerable, as that one man can
thereupon claim to himself any benefit, to which another may not pretend as
well as he.” Leviathan , Cap. XIII, p. 110.
“For as to the setrength of body, the weakest has strength enough to kill the
strongest...”, ibidem . A mesma tese é defendida em De Corpore
Politico I, 2 e De Cive, I, 3.
“A palidez e a ausência de vasos sanguíneos salientes é
sempre muito visível e é óbvio o deficiente
desenvolvimento do seu corpo comparado com o do
homem.” Aristóteles, Da Geração dos Animais, I, 19, 727a, 24-

172
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

25, trad. a partir de Loeb Classical Library. Aristotle, XIII,


Generation of Animals.
“Porque a mulher é um homem mutilado...” Da geração dos
animais, 737a, 27-28.
“But the Husband and Wife, though they have but one common Concern,
yet having different understandings, will unavoidably sometimes have
different wills too; it therefore being necessary, that the last
Determination, i.e. the Rule, should be placed somewhere, it naturally
falls to the Man’s share, as the abler and the stronger.” John Locke,
Second Treatise, § 82, in Two Treatises of Government, ed. Peter
Laslett, Cambridge University Press, 1996, p. 321. Ver também §§
52 e 53 do mesmo tratado.
Susan Moller Okin, Women in Western Political Thought ,
Princeton, Princeton University Press, 1992, p. 199.
V. Teresa Brennan e Carole Pateman, “Mere auxiliariesto the
Commonwealth: Women and the Origins of Liberalism” in
Political Studies, 27 (1979), pp. 183-200; Carole Pateman, “God
hath ordained to Man a Helper: Hobbes, Patriarchy and
Conjugal Right” in Mary Shanley e Carole Pateman (eds.)
Feminist Interpretations of Political Theory, Pennsylvania State
University Press, 1991, pp. 53-73; Carole Pateman, The Sexual
Contract, Cambridge, Polity Press, 1988; Karen Green, The
Woman of Reason , ed. cit.
V. Karen Green, op. cit. , p. 63.

173
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

HUME E A TRIVIAL DIFERENÇA


JOÃO PAULO MONTEIRO
(Universidade de Lisboa)

Para analisar o tema das virtudes femininas


numa filosofia complexa como a de Hume, é preciso
começar examinando a estrutura em que esse tema se
insere. A explicação humeana do cunho peculiar de
que se revestem algumas dessas virtudes é uma das
muitas que constituem sua teoria da natureza
humana. No Tratado da Natureza Humana1, essa
natureza é primeiro examinada em sua dimensão
cognitiva, no livro I, sobre o Entendimento – ou seja,
sobre a capacidade de apreensão racional do
mundo, que nessa filosofia vem substituir a clássica
razão dedutiva. Em segundo lugar, é estudada a
maneira como essa natureza se torna instrumento de
ação, no livro II, acerca das Paixões – paixões como o
desejo e o orgulho, o ódio e a humildade –, na sua
relação com a imaginação. O livro III e último é
dedicado aos temas da Moral, num sentido
alargado desse termo que abrange um amplo leque,
desde os sentimentos morais até as regras da justiça,
incluindo instituições como a propriedade privada e
o Estado.
Na filosofia de Hume, os sentimentos morais –
tanto os que se tem frente às chamadas virtudes
femininas quanto quaisquer outros, não fazem, a
rigor, parte daquela natureza que é
espontaneamente própria da espécie humana. A
filosofia de Hume é inteiramente explícita a tal
respeito: essa natureza tem somente duas “partes
principais”, as paixões e o entendimento2, e os
sentimentos morais distinguem-se nitidamente das
paixões. Como tudo na vida das pessoas, o
surgimento desses sentimentos depende dos
princípios fundamentais da natureza dos homens e
das mulheres – a mesma, aliás, nos dois gêneros, sem
que Hume tenha jamais sugerido qualquer diferença
relevante entre ambos. Mas esses sentimentos surgem
apenas em função da situação social em que os
homens e as mulheres sempre se encontram, em todos
os tempos e lugares.

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Os juízos morais, de aprovação ou censura da


conduta humana, exprimem sentimentos que, sem
dúvida, brotam naturalmente dos princípios da
natureza que é própria da nossa espécie, mas apenas
devido ao fato de vivermos em sociedade. Que essa
espécie é incapaz de viver sem sociedade é uma das
teses humeanas mais centrais. Escreve o filósofo num
de seus Ensaios: “Nascido numa família, o homem é
obrigado a manter a sociedade, por necessidade, por
inclinação natural e por hábito”3. Não haveria aqui
oportunidade para analisar o sentido dessa
“necessidade” e dos outros aspectos dessa “condenação à
vida social” que é própria da condição humana4.
Limito-me a assinalar que, para o filósofo em apreço,
a humanidade é espontaneamente levada pela força
das circunstâncias a viver em sociedade, e não na
solidão. E que a preservação dos grupos sociais
humanos, e portanto a da própria espécie, depende da
observância de certas regras morais.
A sobrevivência das sociedades humanas
depende de certas regras fundamentais, entre as
quais, tranquilizemo-nos, não se contam as virtudes
das mulheres ou dos homens. Não seria por um
pouco de pecado que iria acabar o mundo social.
Mas, para Hume, as regras da justiça são daquelas
cuja ausência levaria à entredestruição dos
membros de qualquer sociedade, na luta fratricida
pela posse dos objetos do desejo, à qual se
entregariam se fossem guiados apenas pela paixão.
Ocorre que eles são guiados também pelo
entendimento, e este leva a humanidade a conceber
e estabelecer as regras fundamentais de justiça que
consagram a propriedade privada e a obrigação das
promessas, afastando, assim, o espectro de uma
“guerra hobbesiana” de todos contra todos5. Mas um
problema se ergue: os seres humanos só podem se
guiar por essas considerações racionais quando lhes
é possível ver as consequências daquelas ações que
são contrárias à justiça e põem em perigo a própria
existência da sociedade.
Como as sociedades reais em que vivem esses
seres nunca são “transparentes”, no sentido de
permitirem que se siga com o olhar as consequências
sociais da conduta de cada um, dado o grande número
de pessoas que nelas vivem e a imensa massa das
relações inter-humanas que as atravessam, as regras
da justiça não podem ser mantidas apenas pela
“obrigação natural” racional que ordena a cada um

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

fazer sempre o que corresponde a seus interesses,


sendo o maior desses interesses a preservação do
corpo social – e, se elas podem ser mantidas, é somente
graças à presença daquele outro tipo de obrigação a
que o filósofo chama “obrigação moral”.
Tudo parece indicar que esse segundo tipo de
obrigação recebe este adjetivo, “moral”, devido à sua
ligação com a “moralidade”, mas é importante ver que
esse é mais um caso em que as aparências iludem. No
vocabulário filosófico humeano, como aliás na
língua inglesa falada e escrita no século XVIII,
quando “moral” se opõe a “natural”, como no presente
caso, o que é natural o é independentemente de
qualquer passagem pela mente do sujeito, e o que é
moral é assim adjetivado apenas porque depende de
algo mental (adjetivo esse que só muito
escassamente é usado por Hume6). Cada um de nós
tem obrigação natural de cuidar do que é do seu
interesse, quer saiba disso, quer não – mas só se
pode ter uma obrigação moral quando se adquire
consciência dessa mesma obrigação. Assim, as moral
sciences, por exemplo, são o equivalente aproximado
das ciências posteriormente chamadas “humanas”,
aquelas em que os fatores causais mais relevantes
são mentais (moral), e não naturais – os também
chamados fatores “psicológicos”, distintos dos fatores
“físicos”, etc.
A obrigação moral, do mesmo modo que, por
exemplo, a evidência moral7, só existe em função do
que se passa no espírito humano, em contraste com o
que se passa na realidade exterior. Se há obrigação
natural de não atentar contra o grupo social em que se
vive, é apenas do mesmo modo que há obrigação
natural de defender a própria vida. Tal como no
direito natural, que na filosofia de Hobbes se opõe à
lei natural8, o fundamento é o interesse na
autopreservação: existe obrigação natural de
defender o grupo social, obedecendo às regras da
justiça, em função da defesa da própria existência, tal
como existe direito natural hobbesiano de defender a
própria vida. Mas Hume transforma em obrigação
aquilo que no autor do Leviatã é “apenas” um direito.
Em contraste com isso, uma obrigação moral só pode
surgir em mim, e para mim, quando algum
mecanismo mental me faz ter o sentimento de que
tenho essa obrigação.
Ora, a falta de transparência das
consequências dos atos de desrespeito às regras da
justiça é uma “opacidade” inevitável nas sociedades

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

complexas em que vivemos – numa “narrow and


contracted society”, constituída por poucas pessoas,
poderia haver essa transparência, mas esse tipo de
grupo social talvez não passe de uma abstração
construída por Hume, sem qualquer realidade
histórica9. Sendo opacas todas as sociedades
realmente existentes, em todas elas a obrigação
natural é essencialmente um horizonte de
legitimidade filosófica, olhando para o qual se pode
descortinar ao longe o interesse público – talvez
como somatório dos interesses individuais que
conferem sentido à obrigação natural. Mas a
obrigação real e efetiva parece ser unicamente a
obrigação moral, por ser a única a permitir resolver o
problema da opacidade social.
A teoria humeana mostra como podemos nos
persuadir de que temos obrigação de obedecer às
regras da justiça, mesmo tendo perdido de vista
qualquer noção daquele interesse e utilidade
públicos de que essa obediência se reveste. Essa
persuasão torna-se possível quando se formam em
nós sentimentos morais de aprovação dos atos
expressivos dessa obediência, e de condenação dos
atos de desobediência a essas regras. Esses
sentimentos tornam-se, portanto, relevantes fatores
de preservação da sociedade em que vivemos, e
tanto mais quanto mais se multiplicarem entre todos
os membros de uma mesma nação. Mas tais
sentimentos não são produzidos pelo
entendimento, pela razão consciente, nem o seu
surgimento deriva ou depende da consciência da
sua utilidade social. Tudo se passa como se para a
teoria humeana houvesse uma espécie de harmonia
preestabelecida entre os princípios da natureza
humana produtores e geradores dos sentimentos
morais favoráveis à prevalência das regras da
justiça e as necessidades da sociedade, notadamente
a necessidade de comportamentos de obediência
capazes de preservar a paz social.
Creio que a resposta humeana a esse enigma
poderia ser simplesmente que, em verdade, não há
enigma algum. Se desde a origem da humanidade
houve grupos humanos nos quais não ocorreu o
predomínio dos sentimentos morais, esses grupos
terão provavelmente sido eliminados, devido às
lutas internas daí resultantes, ou pela pura e
simples entredestruição “rousseauniana”10, ou então
por um enfraquecimento interno capaz de tornar o
grupo presa fácil de seus inimigos. Não sei se Hume
terá chegado a formular uma resposta como essa.
Muitas são as questões de interpretação que aqui

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

deverão ser deixadas de lado. Mas fica a sugestão de


dissolução do aparente enigma representado pelo
misterioso acordo existente entre alguns dos
princípios da natureza humana e a necessidade dos
sentimentos morais para a preservação da
sociedade e, no limite, da própria espécie humana.
A mola principal, na formação daqueles
sentimentos, é o mecanismo humeano da simpatia, à
qual hoje talvez chamássemos empatia. Trata-se de
um simples jogo da imaginação: esta é
poderosamente governada pelos princípios da
associação de ideias, nomeadamente o princípio de
associação por semelhança. Nada mais comum,
portanto, do que a transição inconsciente das ideias
entre objetos semelhantes, de modo tal que, sendo o
outro ser humano semelhante a mim, a ideia do
outro e a ideia que tenho de mim mesmo tendem a
aproximar-se, e mesmo a confundir-se, na minha
imaginação, sempre que as circunstâncias a tal se
prestam. Assim, ocorre frequentemente que a dor do
outro me doa a mim, e que a alegria do outro me dê
satisfação, em circunstâncias nas quais o meu
interesse pessoal não é afetado nem positiva, nem
negativamente. É esse fenômeno de empatia com o
outro que o conceito rousseauniano de pitié viria
depois a ecoar, embora apenas na sua face mais
dolorida e negativa11, que permite o surgimento dos
sentimentos morais construtores da obrigação
“moral” de justiça.
A justiça ordena que cada um tenha
assegurada a fruição tranquila do que lhe pertence,
e ordena também que as promessas sejam sempre
cumpridas – o que é importante para tornar viável
a regra da transferência da propriedade por
consentimento, que é a terceira das grandes “leis
naturais” da justiça. Ora, quando alguém é roubado
ou espoliado, tudo se passa como se o espectador
dessa injustiça sentisse o sofrimento da vítima como
se da sua própria dor se tratasse, um sentimento que
tende a assumir a forma de regra condenatória dessa
injustiça e de todas as injustiças análogas, numa
espécie de projeção da interioridade dolorida do eu
num conjunto de normas de comportamento social
dotado de uma ambição universalista. É essa,
muito resumidamente, a origem dos sentimentos
morais geradores da obrigação moral de respeito à
justiça.
Talvez tenha razão Rousseau e seja para nós

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

próprios não sofrermos que condenamos quem causa


sofrimento aos outros – interpretação do altruísmo como
egoísmo “em última instância” que devo aqui deixar de
lado, pela dificuldade e amplidão do tema. Limito-me a
salientar que é da imaginação e da associação, e não da
razão ou do entendimento, que deriva esse mecanismo
empático em que se originam alguns dos mais
importantes sentimentos morais. Nesse aproveitamento
social dos mais triviais princípios da imaginação, o que
temos é uma irracionalidade a serviço de uma
racionalidade, pois certamente é racional procurar
preservar a sociedade por meio da generalização do
respeito pela justiça, e se a opacidade social deixa apenas
o recurso de uma obrigação moral “associacionista”,
gerada na fantasia12, o que certamente também é racional
é aceitar e acarinhar esse mecanismo, malgrado a
estranheza que sua origem “menos nobre” nos possa
fazer sentir. Antes de Nietzsche, já para Hume o que
conta é o uso efetivo, e não a origem, das instituições13.
Mas nossos sentimentos de obrigação moral,
própria e alheia, não se limitam ao caso das regras da
justiça. A esse núcleo fundamental vêm-se juntar
numerosos outros sentimentos e obrigações, e cabe
perguntar se a estrutura central do argumento acerca
da justiça se mantém para os outros casos, ou pelo
menos é útil para sua compreensão. Afora o caso da
escolha das regras específicas da propriedade privada
(da ocupação à sucessão), espécie de “aplicação
prática” da primeira lei natural da justiça, em que
vemos Hume atribuir cada regra a um misto de
utilitarismo e fantasia, com predomínio dessa última
– são os princípios da associação de ideias, agora sem
relação com a empatia, que, quer no caso da
semelhança, quer no da contiguidade, quer no da
causação, levam os “societários” a entregar as
propriedades a diferentes indivíduos, portadores de
diversos “títulos”14 –, há ainda fenômenos mais
propriamente políticos que também são explicados
por variadas formas de sentimentos “morais”. Nos dois
sentidos do termo: têm uma gênese “meramente
mental”, ligada à imaginação com fantasia, e têm uma
função normativa, em termos de aprovação ou
condenação propriamente moral ou ética.
Assim, os deveres de obediência aos
governantes recebem de Hume uma análise na qual
sua origem é explicitamente apresentada como sendo
a mesma que a das mais ingênuas superstições. O
poder monárquico não é poupado: os homens
acreditam que o “rei posto” depois do rei morto deve
ser o filho desse último, pois as ideias que temos de

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

ambos estão ligadas por “uma espécie de causalidade”


(sendo o pai encarado como uma espécie de causa do
filho); ou seja, trata-se de mera associação de ideias,
sem qualquer racionalidade, tal como no caso da
herança de propriedades15. Quanto às relações entre
estados, a “lei das nações” também estabelece um
conjunto de regras que comportam uma obrigação
natural e uma obrigação moral – só que agora as
“pessoas” são as nações ou “corpos políticos”.
Exemplos dessas regras internacionais são o
respeito pelaspessoas “sagradas” dosembaixadores,a
obrigatoriedade das declarações de guerra, a
proibição de armas envenenadas e outras normas
das relações civilizadas entre diferentes países16.
Hume esforça-se o mais possível por estender a esse
domínio internacional as mesmas categorias
explicativas que aplicara às obrigações dos
cidadãos, mas creio que sem muito sucesso. É como
se as obrigações entre países constituíssem uma
anomalia na teoria política humeana. Se o Tratado
pode aqui admitir que “devemos necessariamente
ser mais indulgentes com um príncipe ou ministro
que engana outro do que com um cavalheiro que
falta à sua palavra de honra”17, é porque no caso das
relações internacionais a obrigação se dilui a ponto
de, talvez, haver aqui lugar para uma nova teoria –
uma teoria que o filósofo desdenhou tentar
construir.

É nesse ponto que Hume introduz sua análise


das virtudes femininas, no capítulo “Sobre a Castidade e
a Modéstia”, com o qual se encerra a Parte ii do Livro III,
a mesma em que surgem os aspectos mais
marcadamente sociais e políticos de sua teoria moral,
acima discutidos. Essa parte intitula-se “Da Justiça e da
Injustiça”, e a Parte iii e última leva o título “Das outras
Virtudes e Vícios”. Por que razões o tema da castidade e
da modéstia ainda é incluído nesse território mais
“sociológico” da teoria humeana, em vez de ser
remetido para junto dos aspectos da moral mais
ligados à vida privada, como as virtudes naturais, a
grandeza de espírito, a bondade e a benevolência, é
coisa que poderá ser conjecturada após se examinar
o tratamento que o tema merece de Hume.
A natureza humana investigada por David
Hume em seu Tratado é, como vimos, a mesma em
homens e mulheres, e as diferenças discutidas pelo

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

filósofo jamais são atribuídas a imaginárias


diferenças psicológicas de gênero. Aí está, por
exemplo, o dever de castidade, a tal ponto mais
carregado no caso das mulheres, e tão pouco no dos
homens, que o filósofo traça um paralelo com as
obrigações morais dentro da sociedade e com as
obrigações entre nações: fortíssimas as primeiras,
quase nada as segundas, conforme vimos ser o caso
na filosofia humeana.
É bem nítida a presença da ironia nesses
textos18, como parece irônica também a brevidade da
explicação oferecida para essa diferença: é apenas
porque “o pai é sempre incerto” que a mulher foi
condenada a arrastar sempre uma tão pesada parcela
do dever de castidade. Para a boa condução da vida
em sociedade, é importante que se cuide bem das
crianças, e tanto homens como mulheres são
induzidos a tal quando estão convencidos de que se
trata realmente dos seus próprios filhos. Essa
convicção é naturalmente garantida no caso das
mulheres, que sempre sabem se os filhos lhes
pertencem (ainda não existiam grandes hospitais
nem, portanto, trocas de bebês...), simplesmente
devido ao caráter da procriação: “Visto que na
copulação entre os sexos o princípio da geração vai
do homem para a mulher, facilmente pode haver erro
do lado do primeiro, embora seja totalmente
impossível no caso da segunda.” E é unicamente nessa
“observação trivial e anatômica” que, segundo David
Hume, tem origem a “vasta diferença” existente nos
deveres que a educação inculca em cada um dos dois
sexos19. Nenhuma sugestão de dever transcendente a
impor ao gênero feminino um fardo tão díspar,
nenhuma sugestão tampouco de que seja a natureza
feminina a recomendar tal desigualdade. Nem Deus,
nem a Natureza tiveram aqui a dizer fosse o que fosse
– apenas à Sociedade foi dada voz em relação a esse
assunto. Com razão Lecaldano considera significativa
a inclusão da castidade entre as “virtudes artificiais”,
no quadro de uma ética que trata as questões do
nascimento e da morte, da família e da sexualidade
sem apelo a supostos processos naturais20.
A ironia humeana está sempre presente no trato
dessa questão, que a tal tanto se prestava no seu tempo
como se presta no nosso. Mas é enorme a seriedade com
que o estilo irônico é posto a serviço de uma explicação,
que atualmente diríamos talvez “psicossociológica”,
dessa diferença de gênero ainda tão marcante na maior
parte das nações de hoje, se não em todas. Para o
filósofo, é a sociedade a instância produtora dessa
diferença, mas por meio de processos a que presidem

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

sobretudo os princípios da natureza humana – essa


propriedade rigorosamente comum aos dois sexos que é
o objeto central da filosofia de Hume.
É próprio da natureza humana, segundo o
filósofo, estabelecer regras gerais a partir da
experiência e pautar por essas regras o
comportamento de todos os dias – mas é igualmente
próprio da natureza humana aplicar essas regras com
muito maior extensão do que se justifica a partir dos
princípios que as produzem. Ou seja, o entendimento
é naturalmente prolongado pelo trabalho da
imaginação ou fantasia – ainda uma vez, de modo
igual em ambos os gêneros, e não de modo mais
“caprichoso” no caso das mulheres, conforme os
estereótipos do século de Hume, e talvez também do
nosso21.
Cerca de uma dúzia de anos mais tarde, Hume
não esqueceu o tema da castidade na reformulação de
suas teorias morais na segunda Investigação22. A forma
da argumentação muda radicalmente, na medida em
que essa segunda versão das teorias humeanas está
muito mais centrada no conceito de utilidade do que
o Tratado. Mas a explicação da diferença de exigência
moral quanto ao comportamento sexual de mulheres
e homens permanece fundamentalmente a mesma. As
“leis da castidade” são mais rigorosas para com as
mulheres porque a eventual infidelidade destas é
mais perniciosa para a sociedade do que a dos
homens. E Hume continua a atribuir um papel
importante à imaginação humana, que aplica essas
“leis” fora do âmbito da procriação, exigindo às
mulheres que estão grávidas e àquelas cuja idade de
tal as impossibilita a mesma castidade que a todas as
outras.
Nessa segunda versão da teoria, encontramos
um maior “conformismo” do filósofo em relação aos
preconceitos mais marcantes da sociedade de seu
tempo, como já tive ocasião de apontar há algum
tempo23. É só nessa obra mais tardia que encontramos
a ideia de que “a maior consideração que pode ser
adquirida pelo sexo feminino deriva de sua
fidelidade”24 – o que em nada obscurece, de qualquer
modo, a clareza com a qual as regras da castidade
correspondem ao que hoje não hesitaríamos em
chamar uma “construção social” do papel da mulher.
Entre o interesse público e a influência dos triviais
princípios da fantasia, o segundo sexo sofre pressões
sociais geradoras de um tipo de obrigação diferente,
sendo-lhe reservada, pois, uma posição que Hume
atribui exclusivamente a constrições sociais, e não a
qualquer “missão” ou destino especialmente feminino.

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Nessa filosofia, a condição feminina resulta do peso


de circunstâncias que, meio biológicas e meio sociais,
preparam para as mulheres um destino independente
da sua vontade.
Um destino que tampouco depende da
vontade da metade masculina da sociedade. Em
momento algum o filósofo resvala para qualquer
denúncia do “autoritarismo patriarcal” ou algo
equivalente. A desigualdade de gênero que marca
os comportamentos sexuais nem é sacralizada, nem
é condenada, mas é apresentada, tanto quanto
possível, sobretudo pelo Hume mais jovem e mais
crítico do Tratado, por meio da visão calma e fria do
filósofo que já procurava fazer-se sociólogo. As
ciências humanas já estavam quase a dobrar a
esquina, seguindo a trilha de Hume no esforço para
compreender, se não para transformar, os aspectos
da vida das sociedades humanas que dificilmente
se deixam interpretar como puras escolhas da razão
humana.
Esse tema das virtudes femininas aparece,
segundo creio, ao mesmo tempo em continuidade e
em descontinuidade com o resto do setor
consagrado no Tratado aos temas ligados à justiça.
Tal como a observância da justiça e o dever de
obediência ao soberano, e mesmo como os deveres
reconhecidos entre as nações (por pouco que o
sejam), a castidade e a modéstia só têm sentido como
produtos e exigências da vida em sociedade.
Mas há também uma patente
descontinuidade, na medida em que não é nem
poderia facilmente ser sugerido que a preservação
do corpo social depende da observância dessas
virtudes. Às vezes a vida sexual dos dirigentes acaba
por ter repercussões políticas de certa monta, mas o
correspondente aspecto na vida da massa dos
cidadãos não suporta qualquer comparação com a
importância de que se revestem, pelo menos
segundo a filosofia política humeana, as atitudes de
respeito à justiça e à propriedade, bem como à
autoridade política dos governantes. Por isso
também não há aqui referência à questão da
obrigação natural, embora haja interesse social na
preservação da castidade. É como se o tema das
virtudes femininas funcionasse como uma espécie
de ponte entre a problemática social e política da
Parte ii, a que serve de fechamento, e os assuntos de
ordem mais privada que são discutidos na Parte III.
David Hume, solteirão inveterado, é conhecido

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

por suas variadas, embora inconstantes, relações com o


belo sexo25, mas poucas vezes ele se refere ao então
suposto sexo fraco para além do tema aqui glosado e de
alguns ditos de espírito. Que no Tratado tenha colocado
os prazeres obtidos com as mulheres ao lado dos da
música e da alegre companhia é talvez prova de bom
gosto, mas não é particularmente significativo26. Que
numa carta a um amigo tenha-se referido a uma certa
senhora como “dry and reserved, like the foolish English women”27,
talvez seja sinal de que não era grande apreciador da
modéstia nas mulheres. Que seja responsável por ter
dito que “women are the only heavenly bodies that Newton’s science
was unable to explain” talvez seja apenas simpático e
engraçado, mas também pode ser considerado revelador
de uma atitude pouco entusiástica para com a castidade
delas. Em suma: o homem David Hume provavelmen te
não se distinguia de maneira notável dos outros
cavalheiros de seu tempo no que diz respeito às atitudes
para com o outro sexo.
É certo que Hume nem sempre foi generoso
em seus comentários sobre as atitudes femininas,
como, por exemplo, no ensaio Of Love and Marriage,
em que nota ironicamente que as mulheres sempre
pensam que as sátiras ao casamento são sátiras contra
elas mesmas, entregando-se a outras ironias do
mesmo gênero28. Mas esse é um daqueles ensaios que
o filósofo veio a considerar “demasiado frívolos”29,
como Of Impudence and Modesty e Of Moral Prejudices, que
ele houve por bem retirar da edição das suas obras em
quatro volumes a partir da década de 1760 - decisão
que talvez seja sinal de uma atitude mais séria
perante os problemas da condição feminina e das
diferenças de gênero, atitude essa que se manifesta
em algumas passagens de suas principais obras.
No Tratado, a influência das regras gerais sobre
a imaginação é usada para explicar a enorme força de
que a patrilinearidade se reveste nas nossas
sociedades. Como o sexo masculino tem uma posição
mais vantajosa, a imaginação tende a fixar-se mais na
ideia do marido do que na “da sua consorte”,
reforçando a relação dos filhos com o pai e
enfraquecendo a relação com a mãe. Passa-se assim a
dar maior importância à linha paterna, concluindo
que os filhos são de nascimento mais nobre ou mais
plebeu conforme a família do pai, e não a da mãe. Ao
que Hume acrescenta: “E mesmo que a mãe seja
possuidora de espírito e gênio superiores aos do pai,
como tantas vezes sucede, o que prevalece é a regra
geral, apesar da exceção” (...). Mais ainda: mesmo
quando uma superioridade de qualquer espécie é tão

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

grande, ou quando quaisquer outras razões têm tal


efeito, que façam o filho representar mais a família da
mãe do que a do pai, a regra geral continua a manter
eficácia suficiente para enfraquecer essa relação,
produzindo uma espécie de ruptura na linha dos
antepassados”30. Essa análise humeana desmistifica
com grande clareza os privilégios masculinos típicos
da “sociedade de corte”, no sentido de Norbert Elias,
mostrando que eles estão longe de derivar de
considerações racionais, devendo-se exclusivamente
às facetas mais bizarras da imaginação dos homens…
que, aliás, é a mesma das mulheres. Se nesse caso há
dominação e privilégio, não é devido a qualquer
machismo imposto apenas pela força, mas ao poder
persuasivo de mecanismos semiconscientes comuns a
ambos os gêneros da espécie humana – o que nada
retira da força desmistificadora da desconstrução
humeana da prioridade patrilinear.
Exemplo mais significativo ainda é o do
paralelo estabelecido entre a condição dos povos
colonizados e a condição feminina, num texto da
segunda Investigação que não resisto a traduzir na
íntegra: “A grande superioridade dos europeus
civilizados sobre os índios bárbaros nos fez cair na
tentação de nos imaginarmos na mesma situação em
relação a eles [a mesma que a que temos em relação aos
animais], levando-nos a desprezar todas as restrições da
justiça, e mesmo da humanidade, na maneira como os
temos tratado. Em muitas nações, o sexo femini no é
reduzido a idêntica escravidão, sendo tomado incapaz
de qualquer propriedade, em oposição a seus amos e
senhores. Mas apesar de os homens, quando unidos,
terem em todos os países força física suficiente para
manter essa severa tirania, mesmo assim tais são a
insinuação, a habilidade e o encanto de suas belas
companheiras que é muito frequente as mulheres
tornarem-se capazes de quebrar essa aliança, passando
a partilhar com o outro sexo todos os direitos e
privilégios da sociedade”31. Esse texto dá razão a Price,
quando sustenta que a ironia humeana acerca das
mulheres implica sempre a igualdade entre elas e os
homens, “uma ideia que o século XVIII não estava
preparado para aceitar”32. Sem dúvida que para 1751,
data de publicação da segunda Investigação, o texto de
Hume parece demasiado otimista – e até para os dias de
hoje, em muitos casos. Mas devemos reconhecer que,

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o que os filósofos pensam sobre as mulheres

pelo menos até a data da publicação da obra humeana,


poucos filósofos foram capazes de sugerir em tais termos
a importância da exigência de justiça, e até certo ponto
de igualdade, no que diz respeito à condição feminina.

Notas

David Hume, A Treatise of Human Nature (THN), Clarendon


Press, Oxford, 1958.
THN III, ii, 2, p. 493.
David Hume, Essays Moral, Political, and Literary, Philosophical
Works, Vol. III, Scientia Verlag Aalen, Darmstadt, 1964, p.
113.
Discuto essas questões em Teoria, Retórica, Ideologia, Ática,
São Paulo, 1975, pp. 33 e ss.
Hume nem sequer considera que a humanidade possa ter
passado por um estado de natureza hobbesiano, pois isso
tornaria impossível a sociedade, sem qual a espécie não
poderia sobreviver (David Hume, An Enquiry concerning the
Principles of Morals [EPM ], Enquiries, Clarendon Press, Oxford,
1975, IV, p. 206). Vai nisso mais longe do que Rousseau,
naquela crítica a Hobbes em que declara a impossibilidade
do estado de guerra, alegando que deste resultaria a morte
de todos menos o vencedor final – para Hume, nem mesmo
este sobraria... (Jean-Jacques Rousseau, Que l’Etat de Guerre
Nait de l’fítat Social, Oeuvres Complètes, Vol. III, Pléiade,
Gallimard, Paris, 1964, pp. 601e ss.).
Por exemplo, THN I, i, 4, p. 12, em que é sugerida uma analogia
entre a associação de ideias e a atração gravitacional
newtoniana: “Here is a kind of attraction, which in the mental world
will be found to have as extraordinary effects as in the natural”. É
curioso que os editores dos citados Philosophical Works de
Hume no século XIX, Green e Grose, incluam no índice
analítico do vol. IV referências a mental science e mental beauty
(sempre em oposição a natural) quando esse “mental” não
está nos textos. No primeiro caso, o que está (embora não no
mesmo texto, mas logo no início do capítulo) é a expressão
equivalente: moral philosophy (p. 9). No segundo caso, o que
está no texto é apenas a indicação de que a beleza reside na
mente (mind ), e não na coisa (p. 263). Em compensação, o
índice analítico do Vol. I esquece o mental world acima
mencionado, que evidentemente está no texto (p. 321
desse volume).
THN II, iii, 1, p. 404.
Thomas Hobbes, Leviatã, XIII, Imprensa Nacional,
Lisboa, 1995, pp. 155 e ss.
THN III, ii, 2, pp. 499 e ss.
Ver nota 5 acima.
Jean-Jacques Rousseau, Discours sur l’Origine et les Fondements de
l’Inégalité parmi les Hommes, Oeuvres Complètes, Vol. III, pp. 154 e ss.;
fímile, Oeu vres Complètes, Vol. IV , Pléiade, Gallimard, Paris,
1969, pp. 505 e ss.
Gilles Deleuze, Empirisme et Subjectivité (Essai sur Ia Nature
Humaine selon Hume), Paris, Presses Universitaires de France,
1953, p. 54, sobre a concepção humeana da lei natural: “Le
droit tout entier est associationniste”.
Para Nietzsche, “há um mundo de diferenças entre a
origem da formação de uma coisa, por um lado, e, por

187
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

outro, a sua eventual utilidade e o seu uso efetivo num


sistema de fins” (Friedrich Nietzsche, The Genealogy of Morals,
II, 12, Modern Library, Nova York, 1968, p. 51).
Analogamente, para Hume pouco importa que os
sentimentos de obrigação moral tenham origem na
fantasia, desde que sejam úteis à sociedade.
Cf. Teoria, Retórica,Ideologia ,pp. 82 e ss.
15 THN III, ii, 10, p. 562.
16 Ibid., 11, p. 567.
17 Ibid., p. 569.
18 Cf. John Valdimir Price, The Ironic Hume, University of
Texas Press, 1965, pp. 10 e ss.
19 THN III, ii, 12, p. 571.
Eugenio Lecaldano, Hume e la Nascita dell’EticaContemporanea ,
Laterza, Bari, 1991, pp. 201-2.
Esquecendo o papel atribuído por Hume à imaginação,J. L.
Mackie mostra-se incapaz de entender a explicação humeana
das virtudes femininas, como se vê nas considerações que
sobre ela tece em Hume’s Moral Theory (Routledge & Kegan
Paul, Londres, 1987, p. 118): “The machinery he [Hume] suggests
here for producing these sentiments is quite inadequate. Each husband
has, no doubt, an interest in his own wife’s fidelity; but he may have no
interest in the fidelity or modesty of other men’s wives, but rather the
reverse; and the same applies to unmarried women”. Mackie ignora aqui
que a obrigação moral se torna independente do interesse,
devido à ação da fantasia – além de esquecer que o interesse
envolvido na obrigação natural é o interesse da sociedade,
não o interesse pessoal dos maridos!...
EPM IV , pp. 207 e ss.
Teoria, Retórica, Ideologia , pp. 182 e ss.
EPM V I , I , p. 238.
Cf. Annette Baier, A Progress of Sentiments (Reflections on Hume’s
Treatise), Harvard University Press, 1991, pp. 257, 274; diz dele
J. V. Price, op. cit., p. 16: “Bachelor he may have been, but hater of
women he was not”. Ernest Mossner, além de comentar
extensamente a vida amorosa de Hume (The Ljfe of David
Hume, Clarendon Press, Oxford, 1970, pp. 432 e ss.), cita uma
carta de Madame d’Épinay em que se diz do filósofo na sua
estada na França: “All the pretty women have taken possession of him;
he goes to all the smart suppers, and no feast is complete without him ” (p.
444).
THN II , iii, 5, p. 424.
New Letters of David Hume , Clarendon Press, Oxford, 1954 ,
p. 28.
Essays Withdrawn, PhilosophicalWorks , Vol. IV , pp. 383 e ss. M.
A. Box classifica esse ensaio como um exercício de troça de
gênero: “banter of the ladies” (The Suasive Art of David Hume,
Princeton University Press, 1990, p. 130).
The Letters of David Hume , Clarendon Press, Oxford, 1969,
Vol. 1, p. 168. Cf. A. Baier, op. cit., p. 257 e nota 3. 30 THN
II, i, l0, pp. 308-9.
EPM III , i, p. 191.
J. V. Price, op. cit. , p. 17.

188
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

ROUSSEAU E A EXCLUSÃO DAS


MULHERES DE UMA
CIDADANIA EFETIVA
FERNANDA HENRIQUES
(Universidade de Évora)

“a servidão da casa a servidão da cama


quem te disse mulher que toda a
servidão se pode transformar em
chama?”
Y. K. Centeno, Perto da terra, Lisboa,
Editorial Presença, 1984, p. 22.

Para além do interesse inerente ao próprio


desenvolvimento do saber, que razões podem hoje
justificar um estudo acerca da perspectiva
rousseauniana da educação feminina?
Com efeito, embora pareça totalmente
pacífica a recusa das ideias daquele pensador sobre
a finalidade e os conteúdos que deveriam estar
adstritos ao processo de educação das jovens, dado
que eles se apresentam completamente obsoletos,
quer da perspectiva científica, quer da perspectiva
sociológica, continua a não ser despiciendo o
tratamento da questão. De fato, pode-se considerar
Rousseau um dos responsáveis mais determinantes
pelas dificuldades que as mulheres tiveram – e
ainda têm – para chegar a ser reconhecidas como uma
individualidade com entidade ontológica capaz de
protagonizar um modo de ser humano autónomo e
livre e, consequentemente, capaz de assumir a
cidadania na plenitude das suas dimensões.
É intuito da presente reflexão evidenciar a
responsabilidade de Rousseau na criação de uma
base teórica que, impedindo a construção de uma
antropologia que efetivamente tematizasse com
igual isenção os dois modos de ser humano,
contribuiu, de forma determinante, para a exclusão
das mulheres da cidadania, quando toda a
sociedade ocidental se redefinia e procurava novos
alicerces de funcionamento e liberdade.

189
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

1.Configuração da questão

Em 1801, Sylvain Maréchal publicou um


opúsculo com o título Il ne faut pas que les femmes sachent lire
ou Projet d’une loi portant défense d’apprendre à lire aux
femmes, que, embora ficcional, organizava-se como um
projeto de lei. O documento estruturava-se a partir de
dois princípios: a natureza e a razão – a primeira
determinava o verdadeiro e bom sentido das coisas; a
segunda, a razão, em função daquilo que aparecia
como naturalmente bom, exigia que essa bondade
natural se fizesse lei. A natureza fundava, assim, o
funcionamento social, por meio da mediação da
razão. No tocante aos sexos, a natureza marcava sua
diferença como um dado, uma evidência, e, nesse
quadro, a razão, funcionalizando essa diferença,
punha a mulher em posição de submissão, em virtude
de uma natural e eterna desigualdade. O escrito de
Maréchal tem como anexos os dez mandamentos do
amor e um poema, “A mulher culta”, no qual o amor,
separado do saber, aparece como fonte única de
felicidade para a mulher. Ela terá de optar pelo amor,
pela felicidade e pela beleza, ou pela instrução e pela
vida solitária e infeliz.
Que simbologia pode ser explorada com o
aparecimento de um texto desse teor nos alvores do
século XIX?
Geneviève Fraisse, em sua obra Muse de la Raison.
La démocracie exclusive et la différence des sexes1 – em que se
centra nos textos produzidos na França nas duas
primeiras décadas do século XIX e mostra, pela sua
análise, como, a partir do modo como se faz a redefinição
da diferença entre os sexos, excluem-se as mulheres da
democracia nascente –, toma como texto matricial o
opúsculo de Sylvain Maréchal, dizendo sobre ele ao
término de sua reflexão:
O texto de Sylvain Maréchal cristaliza todos os
temas que alimentam o debate da exclusão das
mulheres da democracia; poderemos reagrupá-
los deste modo: o medo que a exceção se converta
em regra, a recusa de uma vida pública para as
mulheres e o controle sobre sua aparência, a
insistência sobre a naturalidade do sexo feminino,
nomeadamente, por sua função reprodutora, a
certeza de um destino idêntico para todas as
mulheres produtoras de costumes, domésticas e
públicas, a vontade política de lhes não dar nem
cidadania, nem poder na cidade2.
Interpretando o conjunto da análise que essa
autora faz do opúsculo em questão, poder-se-ia dizer

190
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

que ele recapitula o debate que o século XVIII


desenvolveu sobre a natureza feminina, tomando
partido dos que advogaram a diferença entre os sexos
como uma deficiência por parte das mulheres,
nomeadamente, situando-se na continuidade direta
de Rousseau3. Lendo Sylvain Maréchal, parece-me
mesmo possível pensar que se está relendo ou
“ouvindo” Rousseau em alguns argumentos
“naturais” e determinações “racionais” utilizadas
(repetidas?) por aquele autor e que configuram o
feminino como o estado ou omodo de ser humano em
que a autonomia é, em si mesma, impensável e, na sua
referência social, o perigo de uma desestabilização
sempre iminente. Dir-se-ia que, para ambos os
autores, é preciso subordinar as mulheres para que a sociedade
possa existir. Maréchal defende-o por meio da ficção de
um projeto de lei; Rousseau o legitima na última parte
do seu fímile, que a crítica consagrou como um
romance pedagógico. Qualquer dos autores faz, assim,
apelo a um modo discursivo que, implicando o
registro ficcional, convoca as categorias humanas
talvez mais poderosas em termos de eficácia – a
imaginação, os afetos, as representações ancestrais.
Mas há ainda uma outra razão mais contundente para
que esses autores tivessem querido fazer História por
meio da retórica4. Assente na sistemática e rigorosa
análise de Geneviève Fraisse ao longo de sua obra,
pode-se verificar como, numa sociedade que se
redefinia em sua estrutura organizacional e
ideológica, a exclusão das mulheres da vida pública
se faz por uma linguagem que não ataca diretamente
o problema, mas, antes, por descentração do seu
núcleo, vai fazê-lo por meio do debate de outras
questões, como, por exemplo, se as mulheres devem
ser escritoras, se há conveniência em que as mulheres
sejam instruídas e, em última análise, a meu ver, pela
discussão sobre a natureza sexuada da razão.
É nesse quadro que tem poder simbólico a
brochura de Sylvian Maréchal, e sobre ele Fraisse pode
dizer que “cristalizou todos os temas que alimentam o
debate da exclusão das mulheres da democracia”,
como se citou atrás. Realmente, ele faz um trabalho
modelar de redefinição do papel feminino na nova
sociedade emergente por meio de uma questão
transversa: a conveniência pessoal e social que pode
ou não haver em as mulheres terem acesso à instrução.
É pela análise dessa questão que o autor vai forjando
as sucessivas exclusões das mulheres dos diferentes
planos da cidadania, e não pelo tratamento direto do
tema. A natureza mostra a diferença entre os sexos e a
especificidade de cada um deles; ora, a natureza é

191
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

tautológica, isto é, quer manter suas próprias


perfeições; assim sendo, a sociedade, por meio da
razão, tem de zelar para que haja reprodução do mesmo. É
por isso que o artigo 3 do Projeto de Sylvain Maréchal
afirma “A razão quer que cada sexo esteja no seu lugar
e aí permaneça”5. Para as mulheres não há, portanto,
historicidade nem cultura que possa entrosar-se com
sua natureza biológica e proporcionar-lhes um
horizonte de vida como projeto de liberdade. Para
elas, o futuro é sempre destino e destino de espécie.
Em outras palavras, na alvorada da
fundação da nova sociedade ocidental, redefinir o
papel dos sexos equivaleu a encontrar fundamentos
e argumentos que retirassem das mulheres o direito
de aceder aos novos espaços de liberdade e de
poder que se desenhavam.
E também aqui Sylvain Maréchal recapitula
Rousseau. Numa obra sobre Jean-Jacques
Rousseau6, Rosa Cobo defende a ideia de que
Rousseau lança as bases teóricas do patriarcado
moderno e que, nesse contexto, o livro V de fímile,
dedicado à educação de Sophie, tem como objetivo
definir o novo papel das mulheres no interior de
um nascente espaço teórico, social e político. Na
mesma linha se situa o escrito de Barbara Pope7, ao
desenvolver a perspectiva de que Rousseau,
querendo regenerar moralmente a sociedade, traça
duas esferas claras – a da cidadania e da liberdade e a
da submissão doméstica. Diz ela: “Se a igualdade e a
democracia para os homens eram um lado da sua
visão profética, a subordinação e a domesticidade
para as mulheres eram o outro lado”8.
Desse modo, o ponto de vista rousseauniano
sobre o novo ideal feminino aparece extremado no texto
de Sylvain Maréchal, sendo essa figura extrema, a meu
ver, um sinal claro do peso fundamental de Rousseau na
definição dos novos ideais sociais que, emergindo da
Revolução Francesa, fundaram a sociedade ocidental,
determinando seu imaginário. Se tivermos ainda em
conta, como nos relembra Geneviève Fraisse, que
“Legisla-se sob a Revolução Francesa. Fabricam-se constituições
gerais e leis particulares. (...) Fazer e refazer as leis: pode-se
imaginar a excitação suscitada por uma empresa tão excepcional
na história9, percebermos quão significativo pode ter sido
o gesto de propor uma lei que proibisse as mulheres de
aprender a ler.
No fundo, como já ficou sugerido antes, o que está

192
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

aqui em jogo é a interpretação sobre o tipo de razão que as mulheres


possuem, ou, noutros termos, se a razão é ou não sexuada.
Sobre esse assunto, Sylvain Maréchal, na esteira de
Rousseau, é maximalista, ou seja, defende que tudo é
sexuado, incluindo a razão e o funcionamento racional.
Que pode, então, representar esta questão?
Nancy Tuana, em sua obra Woman and the
History of Philosophy10 – na qual proclama a
necessidade de uma chave hermenêutica que permita
uma releitura dos textos filosóficos conducente a
desocultar a representação do feminino por eles
defendida ou suposta, de maneira a que seja realçado
se as mulheres são ou não excluídas ou
secundarizadas nas questões-chave de que tratam –,
estabelece um feixe de conclusões que se podem
articular em dois grandes princípios:
– por um lado, o reconhecimento de que o pensar
ocidental se constitui no interior de dualismos
sistemáticos, de tal modo, contudo, que um dos
polos é sempre privilegiado e, portanto,
hierarquicamente superior;
– por outro, a explicitação de que a filosofia
ocidental caracterizou o feminino, tomando o
masculino como sendo em si mesmo a
realização plena da humanidade e, portanto, o
padrão do que é humano e reproduzindo sempre
as concepções tradicionais, que foi retomando
sem problematizar, inclusive em momentos-
charneira do seu desenvolvimento, em que se
forjaram novos conceitos e novas perspectivas
teóricas e conceituais.
É interessante verificar que a análise realizada
pelo livro de Geneviève Fraisse, o qual tem vindo a ser
referência da minha reflexão, permite tomar
consciência dos princípios que a obra de Nancy Tuana
enuncia e, assim, reafirmar sua interpretação, porque
Fraisse põe a descoberto, ao longo dessa análise, o fato
de, na sociedade nova que emergia da Revolução
Francesa, vencerem as mais velhas tradições sobre o
feminino, reduzindo-se o “grande esforço” de
redefinição da feminilidade à construção de
argumentos que tornassem “racionalmente”
aceitáveis preconceitos ancestrais.
Geneviève Fraisse inicia seu texto num
registro irônico, dizendo:
Com o século XIX um debate, muito antigo, parece
caduco. Avelha questão fantasmática (...) de saber
se as mulheres têm uma alma tal como um
homem deixa de ser pôr (...) a Revolução Francesa
marca a passagem da era da força à era da
inteligência (...): seria, pois, inacreditável que

193
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

alguém pudesse ainda duvidar da pertença da


mulher à espécie humana11.
O que ela nos deixa interpretar, pela análise
cerrada que leva a cabo dos escritos franceses acerca
da diferença entre os sexos, de 1800 a 1820, é que a
discussão em torno da natureza sexuada da razão
representa, a seu modo, a reatualização da pergunta
sobre a alma feminina; diria, até, que é uma questão
com o mesmo sentido, ainda que historicamente
situada. Ou seja, novas categorias de pensar e de
organizar a sociedade, quais sejam, a democracia e
o desenvolvimento industrial, colocam novas
exigências na definição dos sexos; por isso, agora não
importa apenas a questão ontológica da alma;
interessa, igualmente, uma certa epistemologia
social que obriga a perguntar pelas funções que
pode desempenhar uma razão sexuada. Numa
sociedade que estava reinventando o
funcionamento democrático, não interessava
somente definir a natureza do ser humano, mas era
preciso, também, pensar seu ajustamento social e
político, ou seja, as questões funcionais. Considero,
por isso, legítimo dizer que o debate em torno do tipo
de razão que as mulheres possuem tem a mesma carga
simbólica daquele outro que a tradição nos legou
como tendo ocorrido em torno da dúvida sobre se
as mulheres teriam ou não alma, na medida em que
ambas assentam-se na descrença da estrutural igualdade
entreosdois modos do ser da humanidade.
A análise que Fraisse faz das diferentes
forças em presença no debate sobre a natureza da
razão, bem como de suas consequências sociais,
leva-a a concluir pelo oxímoro “desigual igualdade”.
A desigual igualdade corresponde ao modo como
a estrutura social representou a posição das mulheres na
cidadania; foi a maneira como realmente as excluiu sem
a afirmação direta dessa exclusão, mas sim pelo recurso
à definição de funções sociais que, sendo “próprias” da
natureza feminina, incapacitava-as para a vida pública,
para a vida da cidade. Todavia, o fundamento dessa
desigual igualdade decorre da forma como se interpretou
a diferença entre os sexos, colocando-se a mulher como
um ser da natureza e apenas parcialmente participante
da racionalidade12.
Nesse debate sobre a sexualização da razão,
perfilam-se dois aspectos muito importantes: em
primeiro lugar, as mulheres continuaram a ser vistas
como o totalmente outro, como a alteridade. São,
assim, objecto de análise pela cultura, não enquanto
membros dessa cultura e artífices dela, mas como

194
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

estranhas, estrangeiras, alguém a quem o processo


cultural não afetou. É como se sobre a mulher
continuassem a pairar, intactas na sua força
originária, as palavras divinas depois da transgressão:
darás à luz com sofrimento. Ou seja, um olhar cultural,
historicamente entretecido, olha para um ser, também
ele submetido à ação da temporalidade, como se nada
desse processo o pudesse afetar, como se a mulher
pertencesse a outra esfera, e o trabalho histórico não
passasse por ela em termos constitutivos. Nela, o ser
do seu ser permanece imutável, intransformável,
como uma natureza divina. Com essa dimensão de
sacralidade afasta-se a mulher da cultura e da
cidadania; mitifica-se sua imagem, para poder mantê-
la fora, excluída, das zonas de ação e de gestão das
forças transformadoras; em segundo lugar, os
mecanismos da nova sociedade, sua estrutura
funcional, exigiam que as mulheres se reconhecessem
como fazendo parte dela. Nesse contexto, estabelece-
se a participação parcial das mulheres na
racionalidade. Elas têm um certo tipo de razão, uma
razão prática – aqui a marca de Rousseau é absoluta
e literal. Se quiserem competir com o homem, serão
sempre e só imitadoras; no entanto, se assumirem seu
lugar de mães e guardiãs dos costumes, poderão
florescer de acordo com a “sua natureza”. Isto é, sua
razão não funciona na plenitude, que cabe apenas ao
sexo masculino protagonizar, mas lhes permite
resolver os problemas domésticos, ligados ao governo
da casa, ao cuidado dos filhos e à moral, porque tudo
isso depende, unicamente, da aquisição de um saber
que não é um saber teórico, e sim um saber fazer, bem
como da manutenção de uma conduta digna.
Essa caracterização da razão feminina como
sendo, tão-somente, uma razão prática pode justificar
a posição de Geneviève Lloyd13 quando defende que,
a partir do século XVII, com Descartes, corporiza-se
um ideal de racionalidade, que permanece como
herança subterrânea no pensamento ocidental e que
associa radicalmente a razão à masculinidade. É o que
ela designa como the Man of Reason, para dizer que
nesse quadro conceitual todas as características que
historicamente tinham sido associadas ao feminino
foram afastadas do conceito de razão e, por isso, a seu
ver, a partir do século XVII, a já tradicional aliança
entre a razão e o masculino é posta em quadros
qualitativamente diferenciados. Essa perspectiva é
tanto mais relevante quanto há nos séculos XVII e XVIII
uma situação especial de relação filosófica e cultural
com a razão que Lloyd consubstancia no vocábulo
attainement, que, de facto, pode ser explorado na dupla

195
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

significação de aquisição e consecução, ou seja, como


algo que simultaneamente se configura, se
autonomiza e atinge sua plena realização. Assim
sendo, ao ficar de fora da racionalidade na plenitude
de suas competências, as mulheres ficam à margem de
uma contribuição efetiva para o processo histórico.
Sem pretender dizer que Rousseau é o
responsável por esse quadro do qual nosso imaginário
social é herdeiro, parece-me, contudo, importante
realçar que as ideias que sustentam a proposta de
educação que Rousseau faz para Sophie no seu fímile
podem servir de esquema conceitual para poder
pensar, em diferentes níveis, a exclusão social das
mulheres e seu afastamento do espaço público da
cidadania.
2.Discussão da questão: a herança de Rousseau

Na carta III, V parte, de Julie ou La Nouvelle


Héloïse14, Rousseau põe as seguintes palavras na boca
da protagonista:
Mas há uma longa distância entre os seis e os
vinte anos: o meu filho não será sempre uma
criança e, à medida que a sua razão começar a
crescer, a intenção do seu pai é deixar que ela se
exerça. Quanto a mim, a minha missão não vai tão
longe. Eu alimento as crianças e não tenho a
presunção de querer formar os homens. Espero (...)
que mais dignas mãos se encarreguem dessa
nobre tarefa. Eu sou mulher e mãe e sei manter-
me no meu lugar. Mais uma vez, a função de que
estou encarregada não é educar os meus filhos,
mas prepará-los para serem educados.
Essa fala configura bem a gaiola dourada em
que Rousseau encerrou as mulheres. Ela representa
a teia que ele teceu e que conseguiu converter numa
prisão consentida e legitimada, mediante a
recuperação e solidificação de uma perspectiva
tradicionalmente desprestigiadora da imagem das
mulheres como individualidades autônomas e seres
plenamente capacitados de sua humanidade.
Tal como se pode ler no texto, ser mulher é
ficar na antecâmara – antecâmara do poder, do saber,
da própria vida, afinal, porque não lhe cabe senão
um papel introdutório, preparador, ficando fora de
suas possibilidades uma realização integral. Ou
melhor, sua realização total é, para o feminino,
somente uma parte da realização humana plena,
que apenas ao homem cabe protagonizar. Mas ser
mulher é também saber isso e aceitá-lo como uma

196
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

bênção. Essa é a herança de Rousseau para as


mulheres – um legado pesado e difícil de superar.
Karen Green, num livro cujo título, The Woman
of Reason, deixa-se interpretar em simetria com o de
Geneviève Lloyd, The Man of Reason, antes referido,
evidencia o fato de que, hoje, os novos feminismos das
diferenças fazem emergir a necessidade de uma leitura
de Rousseau que obrigue à consideração de seus
textos numa perspectiva mais complexa do que a da
simples figuração da misoginia estabelecida pelos
feminismos clássicos15. Concordo com ela; todavia,
considero fundamental sistematizar algumas linhas
determinantes do pensamento pedagógico
rousseauniano que são, seguramente, responsáveis
pela reprodução da mais tradicional e retrógrada
concepção sobre as mulheres, na véspera de se
debater, ardorosamente, a posição recíproca dos
dois sexos e quando se procurava, já, instaurar
sobre essa questão uma nova ordem16. Nesse
contexto, porque reafirma por meio de um novo
quadro conceitual a velha maneira de pensar contra
uma outra forma que se queria impor, Rousseau
contribui para a construção de um substrato
teórico que foi largamente explorado na
transformação política e social que originou a
sociedade moderna e que excluiu as mulheres da
cidadania.
O aprofundar da perspectiva pedagógica de
Rousseau no âmbito da hipótese de trabalho desta
reflexão justifica-se pelo paralelismo que é possível
estabelecer entre o modo como ele e Platão
concebiam a dimensão política da pedagogia,
pensando-a como transportando consigo o fermento
da transformação social e política.
Quase no final do prefácio à sua primeira
versão de fímile, Rousseau diz o seguinte:
Se queremos ter uma ideia precisa da instituição
pública, épreciso ler a República de Platão. Este livro
não é, de todo, uma obra política como pensam
aqueles que julgam os livros pelos seus títulos; é o
mais belo tratado de educação que alguma vez foi
feito.17
Está claro, portanto, que Platão é modelo e,
nesse contexto, temos a liberdade de o ler na sua
plenitude pedagógica – só uma paideia justa pode
gerar um Estado Justo –, podendo, na sequência,
perceber que a evocação que Rousseau faz dele se
prende ao reconhecimento dessa dimensão política
da pedagogia. Defensor de uma educação doméstica,
privada, uma vez que a instituição pública não pode
existir “porque já não há pátria”18, Rousseau

197
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

apresenta o pedagógico como o processo de formar


o homem virtuoso e, pelo menos em termos
utópicos, o cidadão da sociedade que urgia
construir. Paralelamente, por essa razão, sua
proposta de educação feminina também deve ser
lida como o modelo educativo consentâneo com a
sociedade nova e com o lugar que nela as mulheres
deveriam ocupar.
Partindo desse suposto, vou centrar minha
análise no complexo educativo consubstanciado na
obra fímile, tendo em atenção, sua primeira versão, o
Manuscrito Favre, e, digamos, contudo, sua
continuação, que fímile et Sophie ou Les Solitaires
representa. Trata-se de um conjunto de textos
elaborados na segunda metade do século XVIII, nos
quais o autor cruza e entretece as linhas de força do
seu pensamento global. Sobre fímile, que Pierre
Burgelin apresenta como um tratado sobre a
bondade original do homem, diz aquele autor que
deve ser lido
como a empresa de um filósofo que defende uma
tese; as reflexões sobre a pedagogia só têm sentido
se repousarem sobre uma psicologia, ou melhor,
uma antropologia, explicitamente confirmada por
uma teologia. Tal é o segredo desse livro.19
É essa dimensão de pensamento sistemático
que Burgelin sublinha que me interessa considerar,
porque é ela que dá força à minha hipótese da
influência direta e subterrânea que as ideias
pedagógicas de Rousseau sobre as mulheres
tiveram na definição do modelo de educação
feminina nos alvores da sociedade moderna.
A análise vai ser desenvolvida, primeiro,
explorando-se a simbólica dos sinais emitidos pelo
conjunto do corpus e, em seguida, pela estruturação
dos princípios defendidos no interior da trama
textual.
Focalizando, então, o conjunto dos textos
referido a partir de um princípio de leitura
simbólico, podemos facilmente verificar como as
mulheres estão colocadas fora do cenário. Elas são
sombras – diríamos, talvez, suportes ou horizontes
de referência – mas nunca personagens. Essa
perspectiva é, a meu ver, denunciada tanto pelo
modo como ocorre a presença feminina no processo
educativo, quanto pelo contexto em que essa
presença se dá. Creio que se poderia qualificar a
maneira de aparecer das mulheres nos textos em
análise por meio da designação presença – ausência.
Vejamos por quê:

198
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

A primeira versão de fímile não contempla


espaço para a educação feminina. Quanto à segunda
redação, a que assume o título fímile ou de 1‘éducation,
dos cinco livros que constituem o corpo da obra
apenas um, o V, é dedicado à educação das
mulheres, e mesmo esse pouco se ocupa do tema que
se propõe tratar; realmente, aquilo que o livro V
verdadeiramente desenvolve é a última etapa da
educação de fímile, a sua transformação em chefe de
família e cidadão, sendo que, no último quarto de
texto, as referências a Sophie são meramente
esporádicas20.
Se, como é aceito unanimemente, a ideia
educativa central de fímile é a de processo, alcançar a
maturidade por meio da maturação, de um
desenvolvimento faseado que permita o
desabrochar natural de cada indivíduo, fácil se
toma concluir, pelo espaço que a obra dedica à
educação feminina, que esse princípio não é
aplicado à mulheres. Na mesma linha de
pensamento, também parece lícito considerar que o
exíguo espaço referido à educação das mulheres,
nesse tratado sobre educação, é consequência da
pouca relevância que o autor dava a tal
problemática.
Por fim, em fímile et Sophie ou Les Solitaires,
Sophie aparece apenas por intermédio do discurso
de Émile, que fala dela falando de sua traição e sua
morte. Desse modo, a mulher que tinha feito sua
aparição para possibilitar a continuação da educação
do homem desaparece de cena da mesma forma
repentina como tinha surgido, e, aliás, com a mesma
finalidade, uma vez que é na total solidão que Émile
se assume plenamente como ser livre e autônomo e
pode mostrar a grandeza e o valor de sua liberdade.
Pelo que ficou dito, parece legítimo falar de
presença-ausência ou pseudopresença feminina no
sistema educativo que Rousseau propõe; contudo,
esse aspecto fica ainda mais realçado se se focalizar,
agora, a trama do texto, começando por se observar o
contexto em que a presençafeminina ocorre no início
de livro V de fímile, quando se diz: “Não é bom que o
homem esteja só; Émile é homem; tínhamos-lhe
prometido uma companheira, é preciso dar-lha.
Essa companheira é Sophie”21. Fica aqui claramente
explicitado que é como futura mulher de Émile que
Sophie aparece; ela não surge como um ser
humano, mas como função. Sophie não é um

199
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

indivíduo; ela é paradigma da mulher, situação,


aliás, que o subtítulo do livro V, Sophie ou de la femme,
deixa totalmente claro.
Essa perspectiva assimétrica no tratamento
dos dois modos de ser humano que Rousseau
realiza é denunciada por Pierre Burgelin, que
explicita a atitude equívoca daquele autor na
abordagem da natureza feminina e masculina
quando assim afirma:
Digamos que, se Émile representa o Homem, ele
só muito tarde se torna o Macho, depois de um
segundo nascimento, e a educação natural
retarda tanto quanto pode o encaminhamento
para um estado adulto em que a sexualidade tem
apenas uma importância medíocre. (...) Para
Sophie, não há segundo nascimento: ela é, desde
o início, a Mulher, e tudo nela representa a
Mulher e é feminino”.22
A questão posta em relevo pelo texto de
Burgelin é absolutamente fulcral para se
compreender o modo como Rousseau encara a
educação feminina. Na realidade, Émile é, antes de
mais nada e acima de tudo, um ser humano, e só
pontual e circunstancialmente sua natureza
sexuada tem alguma influência em sua
humanidade; em contrapartida, Sophie esgota-se na
sua determinação sexual, que surge como a chave de
sua vida humana. Em Sophie é o sexo que comanda o
destino, porque, enquanto mulher, ela é absorvida
por sua função reprodutora.
É esse princípio hermenêutico da assimetria
com que Rousseau trata a natureza feminina e
masculina que permite dar sentido à proposta
educativa por ele apresentada no livro V de fímile23
e cuja carga discriminadora se configurará se
observarmos três aspectos:
– por um lado, a caracterização do feminino que
é apresentada ao longo do texto;
– por outro, o modo como o texto encena o espaço
social destinado às mulheres;
– por fim, a estrutura ideológica do texto, que
está construído de forma sistemática e com
uma argumentação falaciosa.

2.1.Afigura feminina
Comecemos por analisar a imagem de
Sophie que o livro V nos fornece:
“Sophie não é bela; mas junto dela os

200
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

homens esquecem as mulheres belas, e as mulheres


belas ficam descontentes consigo próprias. (…) ela
encanta e não se saberia dizer por quê (...)”24
“O que Sophie sabe melhor, aquilo que a
fizeram aprender com maior cuidado, são os trabalhos
do seu sexo (...)”25
“Sophie tem um espírito agradável sem ser
brilhante e sólido sem ser profundo.”26
“(...) ela sofre com paciência os erros dos outros
e corrige os seus com prazer (...)”27
“Sophie tem religião, mas uma religião
razoável e simples (...)”28
“(...) ela limita-se a ajuizar as coisas que estão ao
seu alcance e só julga alguma coisa quando isso serve
para desenvolver qualquer máxima útil (...)”29
“(...) ela tem gosto sem estudos, talentos sem
arte, juízos sem conhecimentos. O seu espírito não
sabe, mas está cultivado para aprender; é uma terra
bem preparada que só espera o grão para se
desenvolver; (…) Ela nunca será a professora de seu
marido, mas a sua discípula; (...) ele terá o prazer de
lhe ensinar tudo.”30
Desse quadro, no mínimo espantoso, que
Rousseau traça de Sophie, destacaria três aspectos:
– seu carácter impreciso e difuso. Nada em
Sophie é definido ou marcado; sua imagem é
impressionista, feita de sugestões e ocultações: não
se sabe por que é que encanta; agrada mas não brilha;
não chega a ser bela...
– sua mediania. As características de Sophie
podem definir-se pela razoabilidade; é como se nela
tudo ficasse a meio caminho ou não pudesse
manifestar-se plenamente: sua solidez não tem
profundidade; sua religião não tem misticismo ou
complicações; só avalia aquilo que pode ter
utilidade...
– sua sujeição. Não há reflexividade na figura
de Sophie. O seu saber não tem compreensão, não
tem consciência de si como saber: é um talento sem
arte e um julgar sem fundamento; ela não trata a
vida diretamente, a partir de suas próprias
motivações: aprendeu o que devia aprender, o que
lhe estava destinado; julga o que está ao seu alcance,
o que lhe pertence julgar; e, por fim, virá a saber
apenas aquilo que seu marido lhe quiser ensinar.
Esses três aspectos, possíveis de isolar do
retrato de Sophie, representam com muita clareza
aquilo que Rousseau pensava da figura feminina e que
se pode sintetizar em três vetores: uma racionalidade

201
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

prática, a ausência de autonomia e a inconsistência ontológica.


Para Rousseau – como depois para Sylvain
Maréchal, como se viu –, o funcionamento racional é
sexuado, sendo a razão feminina uma meia razão,
uma razão simplesmente prática, que jamais
permitirá o acesso ao conhecimento teórico ou ao
pensamento especulativo. A natureza racional das
mulheres só as capacita para as questões morais e
nunca para a aprendizagem das ciências ou da
filosofia.
Por outro lado, o ser feminino define-se em
relação ao homem, e não por si mesmo; a mulher é
amante, mãe ou esposa, mas jamais um ser
individual que valha por sipróprio.
Esse é, talvez, um dos temas mais
recorrentes do texto em análise: a mulher configura-
se em relação ao homem. Contudo, não se trata de
uma definição recíproca dos dois modos de ser da
humanidade, como Rousseau diz explicitamente:
A mulher e o homem são feitos um para o outro,
mas a sua dependência mútua não é igual: os
homens dependem das mulheres pelos seus
desejos; as mulheres dependem dos homens quer
pelos seus desejos, quer pelas suas necessidades;
nós subsistiríamos melhor sem elas do que elas sem
nós31.
Ou seja, a relação homem-mulher caracteriza-
se por uma reciprocidade hierárquica, desigual. O
homem não necessita da mulher para se realizar como
ser humano, dado que tem muitos modos de
expressão para além do sexual, o qual, aliás, nem
sequer o vincula como necessidade; a mulher, não.
Como ela é totalmente assimilada à natureza e,
portanto, apenas se define por meio da fecundidade,
sua realização passa, necessariamente, por uma
relação ao homem. Dito de outra forma, a relação
homem-mulher, no caso do homem, é um fator
acidental, mas para a mulher é essencial e
constitutiva. Esse aspecto vislumbrava-se já no início
do livro V de fímile, quando se dizia: “Não é bom que
o homem esteja só”, na medida em que demonstra,
por um lado, que o aparecimento de Sophie só se dá
para servir a Émile e, por outro, que para ele esse fator
poderia não existir, embora assim sua vida seja
melhor32.
O que interessa aqui ressaltar é que a mulher
nunca é pensada em sua autonomia de ser humano,
em si mesmo valioso, mas simplesmente enquanto
fêmea, enquanto ser sexuado a serviço do homem.

202
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Por isso, Rousseau não tem dúvidas quanto à forma


de educação que serve às garotas:
Desse modo, toda a educação das mulheres deve ser
relativa aos homens. Agradar-lhes, ser-lhes útil,
fazer-se amar e honrar por eles, educá-los quando
são jovens, cuidar deles quando são grandes,
aconselhá-los, consolá-los, tornar-lhes a vida
agradável e doce – eis os deveres das mulheres de
todos os tempos e aquilo que se lhes deve ensinar
desde a sua infância33.
A base dessa atitude de Rousseau assenta-se
no fato de negar consistência ontológica ao ser
feminino. Para ele, o ser da natureza feminina é o seu
aparecer. Ou seja, como entidade ontológica, a mulher é
inconsistente porque seu ser é apenas o resultado das
representações que dela faz o mundo circundante; as
mulheres são exclusivamente imagem dita e, por isso,
seu ser está constantemente em causa e tem sua sede
fora de si: elas não são enquanto não são ditas,
avaliadas, julgadas. Para Rousseau é evidente: “as
mulheres, tanto por si como por seus filhos, estão à
mercê do juízo dos homens”34. Nada é, pois,
consistente ou pertença sua. O ser do seu ser está
sempre em perigo.

2.2.O espaço social do feminino


Ser dependente, social e ontologicamente, ser
cuja marca distintiva é a penumbra e a discrição, as
mulheres não podem aceder a qualquer espaço
público, quer do saber, quer do poder. Como se dizia
no retrato de Sophie, as mulheres só devem emitir
juízos acerca das matérias que estão a seu alcance,
que se confinam, necessariamente, ao espaço
privado do lar e da família. E, mesmo nessa esfera, a
ação das mulheres deve ser indireta:
O império da mulher é um império de doçura, de
compostura e de abertura; suas ordens são as
carícias e suas ameaças são as lágrimas; (...) quando
ela desconhece a voz do chefe, quando ela quer
usurpar seus direitos e ser ela mesma a
comandar, dessa desordem só resultam miséria,
escândalo e desonra”.35
Isto é, mesmo na família, as mulheres são
figuras de obscuridade cuja atividade se deve pautar
pelo enviesamento, o recurso ao subterfúgio – uma
mulher não pode, em circunstância alguma, fazer a
afirmação de si, confrontando-se, em termos de

203
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

igualdade, com o homem. É certamente por essa


razão que na caracterização de Sophie Rousseau se
apressa a dizer que ela nunca será a professora do seu
marido; pelo contrário, deve ir para o casamento
“meio feita”, para que deixe ao marido o espaço de a
formar e de ser o senhor. É muito claro para Rousseau
que as mulheres não devem aceder ao saber; ser sábias
é contrário à sua natureza feminina e as transforma
em seres aberrantes que os homens desprezam.
Assim, tal como Sylvain Maréchal irá repetir depois,
Rousseau dirá: “Toda jovem letrada permanecerá
solteira por toda a vida, enquanto houver apenas
homens sensatos sobre a terra”36.

2.3.A estrutura ideológica do texto – a falácia rousseauniana


Dizia Burgelin, como referi atrás, que o
segredo de fímile residia na unidade sistemática que
o constituía. Esse aspecto é particularmente
marcante no que concerne à perspectiva educativa
feminina, sendo elucidativo disso o modo como o
livro V de fímile está construído.
O texto está organizado a partir de um
elemento exterior ao objeto de análise – o que motiva
o texto é arranjar para Émile uma companheira que
lhe sirva e o faça feliz. Por conseguinte, a mulher não
vai ser pensada a partir de si mesma, enquanto
expressão da humanidade, mas sim
funcionalmente, como a companhia que tomará a
vida do homem mais agradável. Essa perspectiva
vai ser determinante, porque a construção do texto
se fará a partir desse requisito inicial, que obriga a
conceber a mulher no contexto do casamento e, por
isso, com um conjunto de características que
viabilizem esse casamento, isto é, que assegurem
todos os privilégios e prerrogativas masculinas.
Daí que a ordem do texto seja a seguinte: um
ponto de partida arbitrário, gerador de um grupo de
suportes que o possibilitem, o que, nesse caso, quer
dizer uma panóplia de preconceitos sobre a natureza
feminina. Na sequência, a ordem textual vai
apresentar esses preconceitos como se eles
constituíssem um núcleo de princípios emanados da
natureza das coisas e deduzir a partir deles tudo o
que seja conveniente determinar. Vejamos apenas
um exemplo:
Na união dos sexos cada um concorre igualmente
para o objeto comum, mas não da mesma
maneira. (...) Um deve ser forte; o outro, passivo e

204
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

fraco: é preciso, necessariamente, que um vigie e


tenha poder, sendo suficiente que o outro ofereça
pouca resistência. Estabelecido esse princípio,
deduz-se que a mulher é feita especialmente para
agradar ao homem.37
A questão basilar é defender uma família na
qual o homem detenha o poder e seja,
incontestavelmente, o chefe; na sequência, essa
conveniência é tomada como necessidade – como
princípio –, permitindo deduzir o que convier a seu
funcionamento. Em termos do feminino, isso se
converte em que o ser da mulher é, desde o início, um
deve ser, um padrão exterior a si e ao qual sua educação
deve conformá-la.
Em conclusão, a falácia do texto está em
nunca clarificar o nível das premissas do raciocínio
que vai desenvolvendo e, desse modo, permitir que
o texto promova e explore a confusão entre natureza
e cultura, inato e adquirido – no fundo, entre sexo e
gênero. É nessa confusão que se assenta a coerência
e, portanto, a força de toda a perspectiva de
Rousseau sobre a figura feminina e sobre sua função
social e humana.
É esse aspecto que leva Nancy Tuana a
afirmar que “tendo concluído que é necessário para o
bem do Estado a existência de diferentes papéis
sociais, Rousseau infere que a educação das
mulheres deve ser diferente da dos homens”38. Ou
seja, é o pensamento político e social de Rousseau
que vai condicionar sua perspectiva antropológica e
que o leva a determinar sua figura educativa para as
mulheres.

3. Notas finais

Tal como o apresenta, o processo educativo de


Rousseau é um processo de renaturalização, não no
sentido de conduzir o humano a um estado primitivo,
sim de o fazer assumir, racionalizadamente, sua
intencionalidade constitutiva,deofazer retornar àquilo que
efetivamente é. Compreender isso e o seu alcance, no
quadro desta reflexão, obriga a ter claro qual é o
significado de estado de natureza no pensamento de
Rousseau.
Algumas interpretações39 desse conceito
mostram-no com uma função reguladora ou
arquetípica, isto é, como modelo teórico e princípio
fundador. Desse modo, o estado de natureza,
“Enquanto puro ideal, tem, pois, uma dupla função:

205
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

negativa e crítica, como critério de medida do desvio


efetivo da civilização em relação à sua direção
teleológica originária” e “natural positivo ou ético-
metafísico, como marca ou sinal de um imperativo
formal40; ou seja, colocado num horizonte de referente
da ação social correta, nomeadamente, a ação
educativa, o estado de natureza configura-se como o
topos a atingir para articular a estrutura ideal da
sociedade perfeita.
Ser a educação um movimento de
renaturalização significa, assim, o retorno ao estado de
natureza com esse estatuto de figura modelar atrás
apontado, o que é fazer a reafirmação simultânea de
um arquétipo de natureza humana – nesse caso, de
duas: uma masculina e outra feminina – e de um modo
ideal de a fazer emergir. Por isso, a antropologia de
Rousseau e a proposta educativa dela adveniente,
constituindo-se em sistema e funcionando como
imperativo formal, pode ter sido, em diferentes
momentos e circunstâncias sociais, um recurso
fundamental para argumentar como benéfico para as
mulheres e para a sociedade a exclusão daquelas da
cidadania.

Notas

Fraisse, Geneviève, Muse de la Raison. La démocratie exclusive et la


différence des sexes, Aix-en-Provence, Editions Alinéa, 1989.
Ibidem , p. 169.
G. Fraisse, na obra referida, acentua a predileção de
Maréchal por Rousseau e afirma mesmo que é Rousseau
e Diderot que alimentam a aversão de Maréchal pela
emancipação intelectual das mulheres (p. 26).
O título do último capítulo do livro em referência de
Geneviève Fraisse é “Histoire et rhétorique: de la querelle à
l’ impossible procès”, pp. 169-195; o jogo que faço dos dois
termos é inspirado no título do capítulo.
Citado por G. Fraisse, op. cit., p. 21.
Cobo, Rosa, Fundamentos del patriarcado moderno . Jean-Jacques
Rousseau. Madrid, Cátedra, 1995.
Pope, Barbara C., “The influence of Rousseau’s Ideology of
Domesticity”, in J. Boxer, Marilyn e Quartaert, Jean H. (eds),
Connecting Spheres. Women in the Western World, 1500 to the
Present, New York, Oxford University Press, 1987, pp. 136-
145.
Ibidem , p. 137.
Fraisse, Genèvieve, op. cit., p. 13.
Tuana, Nancy, Woman and the History of Philosophy ,New York,
Paragon House, 1992.
Fraisse, Geneviève, op. cit. , p. 7.
É e ss e “r e ma t e ” d a R e v o l u ç ã o F ra n c e s a qu e a c aba p o r
ret irar das mulheres o acesso à cidadania, o que leva
muitas feministas a considerarem que a questão das

206
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

mulheres tem de ser tratada a partir do princípio da


especificidade, e nunca com base na igualdade.
Esse tema é amplamente tratado por essa autora; relevaria
dois textos: Lloyd, G., “Reason as a attainement”, in Lloyd, G.
The Man of Reason.” “Male” and “female” in Western Philosophy,
London, Routledege, 1993, pp. 38-56; Lloyd G., “The man of
reason”, in Carry, A. e Pearsall, M. (eds.), Women, Knowledge
and Reality, Boston, Urwin Hyman, 1989, pp. 111-128.
Rousseau, J.-J., Julie ou La Nouvelle Heloïse, Oeuvres Complètes ,
Paris, Gallimard, 1961, tomo II, pp. 19-20.
Green, Karen, The Woman of Reason. Ferninism, Humanism and
Political Thought, Cambridge, Polity Press, 1955, pp. 65-81.
Ao longo de todo o livro V de fímile se vai atacando,de forma
mais ou menos clara, os defensores da igualdade entre os
sexos ou mesmo as mulheres que se notabilizaram pelo seu
saber. Por outro lado, segundo Pierre Burgelin – J.-J.
Rousseau, Oeuvres Complètes, Paris, Gallimard, 1969, tomo IV ,
p. CIX –, Rousseau ter-se-á dedicado a fímile no outono de 1758,
depois de ter lido Helvétius; ora, a obra desse autor, De
L’Esprit, assenta-se no suposto de que, a não ser a constituição
sensível, nada é dado ao ser humano, tudo nele é adquirido,
construído, relevando, por isso, uma grande importância à
educação a que as mulheres também deveriam ter direito. Por
sua vez, havia na França os escritos de Poulain de la Barre – De
l’égalité des sexes (1673) e De l’éducation des dames (1674) –, os
quais explorando a perspectiva cartesiana da separação e da
independência da Res cogitans, afirmava a autonomia da
racionalidade em relação à determinação sexual.
Assim, ao defender a diferença e a desigualdade entre os
sexos, Rousseau tomava partido numa disputa.
Rousseau, J.-J., Oeuvres Complètes , Paris, Gallimard, 1969 ,
tomo IV, pp. 58-59.
I b id e m , p. 59.
Burgelin, Pierre,“Émile ou de L’éducation”, in J.-J. ROUSSEAU ,
Oeuvres Complètes, tomo IV , pp. LXXX VIII CLII, p. CIX.
Na edição em análise, a ausênciade referênciasa Sophie
ocorre fundamentalmente a partir da p. 814, voltando a
aparecer a partir da p. 860, já nas últimas páginas, no
contexto do casamento. De notar, contudo, que o livro
termina nas pp. 867-868, com uma fala de Émile
anunciando que vai ser pai.
Rousseau, J.-J. “Émile ou de L’éducation”, Oeuvres Complètes ,
tomo IV , p. 692.
Burgelin, Pierre, “Emile ou de L’éducation”,p. CXXII .
Essa é também, no fundo, a tese de Rosa Cobo na obra já
referida, que desmonta a pretensa unidade do
pensamento rousseauniano, que, segundo ela, assenta-se
em duas concepções de natureza humana, uma
masculina e outra feminina.
Rousseau, J.-J.,“ Émile ou de L’éducation”, Oeuvres Complètes ,
tomo IV, p. 746.
Ib id em , p. 747.
Ib id em , p. 749.
Ib id em , p. 750.
Ib id em , p. 751.
Ib id em , p. 752.
30 Ibidem , pp. 769-770.
Ib id e m , p. 702.
Esse aspecto é ainda reafirmadopelo fato de Émile, só na total
solidão, chegar a mostrar o valor do seu ser e da sua

207
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

liberdade, como se explicita em fímile et Sophie ou Les Solitaires.


Rousseau, J.-J., “Émile ou de L’éducation”, Oeuvres Complètes ,
tomo IV, p. 703.
Ib id e m , p. 702.
Ibidem , p. 766-767.
Ibidem , p. 768. Esse medo das femmes savantes parece ser uma
constante da História da Educação. Nicole Mosconi, “La
femme savante. Figure de I’idéologie sexiste dans l’histoire de
l’éducation”, Revue française de Pedagogie n.° 93 (1990), pp. 27-40,
mostra como essa figura, a partir do paradigma de Molière,
permanece na França e ganha um relevo importante
quando, no séc. XIX, discutem-se a Lei Camilie Sée e o
acesso das mulheres à instrução.
Rousseau, J.-J.,” Émile ou de L’éducation”, Oeuvres Complètes .
tomo IV , p. 693.
Tuana, Nancy, Woman ana the History of Philosophy ,p. 46.
Ver o artigo de Irene Borges-Duarte , “Naturaleza y
voluntad en la Filosofia Ético-Política de J.-J. Rousseau”,
Annales del Seminario de Historia de la Filosofia n° 7, Madrid, U.
C., 1989, pp. 163-194, em que a autora dá conta de um
conjunto de interpretações sobre o estado de natureza em
Rousseau, nomeadamente a de Eric Weil, que lê esse
conceito à maneira das ideias reguladoras de Kant,
propondo também a sua própria leitura, de ser o estado de
natureza um “conceito principial”.
Irene Borges-Duarte, “Naturaleza y voluntad en Ia
Filosofia Ético-Política de J.-J. Rousseau”, p. 175.

208
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

KANT E O FEMINISMO
PEDRO M. S. ALVES
(Universidade de Lisboa)

“Der Mensch als ein Thier ist ein sehr unverträgliches Thier.”
Kant. Vorlesungen, Ak. XXV, II, p. 677

I. A pertinência de um questionário kantiano

Numa apresentação sinóptica, concisa mas


bem incisiva, Jane Mansbridge e Susan Okin põem o
“feminismo” sob a égide de “três questões” reitoras,
questões que, ainda em suas palavras, alimentam e
“conduzem a ciência social feminista e a filosofia
política”. São elas: “como aconteceu a dominação
masculina?”; “por que razão foi ela tão
universalmente aceita?”; “quais as suas
consequências?”.1
Trata-se indubitavelmente de questões
momentosas epertinentes. Que não se trate de simples
inquisições teoréticas, que esteja aí em jogo todo um
projeto de diagnóstico e crítica do existente – isso faz
ainda de todas elas questões não só pertinentes, mas
sobretudo questões cujo dilucidamento e cabal
respondimento se afigura como uma tarefa urgente.
Uma pertinência e uma urgência tais não
devem, porém, fazer perder de vista uma ordem de
questionamento anterior e ainda mais radical. No
questionário “feminista”, o “feminino” não é apenas
apreendido, circunscrito, em oposição ao “masculino”
e às relações diferenciais daí emergentes. O traço
fundamental do discurso feminista consiste antes em
surpreender o feminino sob a categoria da dominação,
exibir esta como um traço permanente, isolar em
retrospectiva seus múltiplos mecanismos e pô-los, em
conjunto, sob o título do “masculino”. A diferença
masculino-feminino sobredeterminada pelo tema da
dominação constitui o lugar e a forma de emergência do
discurso “feminista”.
No entanto, como se disse, não é essa ainda a
questão radical. Pois a questão crucialíssima e
absolutamente primeira não será simplesmente: “por

209
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

que a dominação?”, mas antes: “como pode a dominação


vir a ser reconhecida justamente como dominação?”. A
questão decisiva diz respeito não ao puro “fato”, mas ao
que o torna justamente perceptível como tal fato.
Respeita, assim, às próprias condições de
possibilidade a partir das quais essa diferença
masculino-feminino e todas as relações sociais sob ela
fundadas vêm a ser percepcionadas como relações
estruturando-se sobre o fato da dominação. Dirá
respeito, portanto, às próprias condições de
possibilidade que permitem que a diferença
masculino-feminino, e as relações diferenciadas
sobre ela erguidas, venham justamente a ser
percepcionadas e descritas como relações
estruturando-se sobre um “fato”, multiforme mas
permanente, de dominação.
Bem entendido, essa outra direção não
pretende contornar ou denegar o “fato” sobre o qual se
interroga. Não se trata certamente de dizer, “contra” o
discurso feminista, que nada há como uma tal
“dominação”, que esta seja uma ficção discursiva, e não
algo objetivamente verificável. Trata-se antes de
vencer a ingenuidade primeira do questionar e
perguntar regressivamente pelas próprias condições a
partir das quais esse fato pode ser precisamente
reconhecido enquanto tal, surpreendido na sua
positividade e posto num horizonte crítico apontado
à sua supressão.
Na verdade, uma desigualdade, mesmo uma
subordinação consciente e explícita, nem sempre como
casos de dominação podem ser percepcionadas. Aí onde
o sentido de identidade individual se estrutura no seio
das relações hierárquicas e diferenciadas de uma
comunidade fáctica qualquer, a desigualdade de
estatuto, a limitação do campo da liberdade, a
subordinação aparecem como definidores da própria
identidade pessoal no seio grupal. Mas, por isso
mesmo, elas jamais podem aparecer como casos ou
fatos de dominação. Tudo se passa, portanto, como
se o próprio discurso sobre a “dominação”, a própria
possibilidade de identificar e isolar isso como um
“fato”, carecesse de uma elaboração da identidade
pessoal que se alicerçasse a partir de um recuo do
indivíduo perante seu ser-comunitário fáctico,
construísse nesse recuo a consciência de si como
humano e a projetasse em seguida como instrumento
de reconfiguração da própria comunidade. A questão
pertinente é, pois, a da identificação desse lugar para
onde se recua ou do que está permitindo esse exercício

210
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

de reconfiguração da própria consciência de si.


Perguntar como é possível o reconhecimento
de algo como uma “dominação” não será, por
conseguinte, contestar a própria positividade do fato.
O que sobremaneira importa para que a questão da
dominação se abra como um questionamento radical
será justamente esse movimento regressivo, essa volta
da pergunta sobre si mesma, inquirindo não
ingenuamente sobre o facto que tem diante de si, mas
sobre a própria possibilidade de se articular como
instância de reconhecimento disso como um “fato”. Que
mutações essenciais, que mutações nas ordens
política, social e civilizacional tornam possível que
uma “dominação” sempre exercida e por isso mesmo
invisível seja subitamente desnudada e exibida em
sua positividade? Mais ainda, e seguindo o ritmo do
questionário de Mansbridge e Okin: de que ordem
deverá ser essa dominação para não carecer de algo
como o exercício explícito da força, mas assumir essa
forma sub-reptícia e imperceptível que a torna tão
“universalmente aceita”? E finalmente: como se vem
ela justamente a exercer, qual o seu lastro e seu
verdadeiro âmbito, para que seja ainda obscuro o que
deve ser reconhecido como consequência sua e posto
diretamente na sua conta?
Desse modo, para o feminismo, do lugar de
onde se ergue e toma voz, a questão crucial é a da
dominação como fato. É do seu indisputado
reconhecimento como fato, da sua objetivação no
tecido complexo das relações sociais que o discurso
feminista arranca e toma forma. A questão
crucialíssima, dentro do questionamento sobre a
própria possibilidade de seu reconhecimento como
“fato”, será, porém, esta outra: que condições tornam
possível que haja um reconhecimento e um discurso
sobre algo como a “dominação”? A primeira pergunta
se faz a partir do espaço próprio da crítica feminista; a
segunda, contudo, visa a situar esse mesmo espaço, a
determinar as condições de possibilidade de sua
emergência e os núcleos de sentido que articulam seu
discurso. Mas não só: como resultado derradeiro, essa
segunda e crucialíssima de todas as questões
permitirá ainda determinar o modo como tal discurso
não se afirma já como privativamente “feminista”,
mas antes como o discurso consensual e unânime de
uma humanidade em busca de um horizonte de
justiça que enforme o seu viver.
Eis aqui o ponto em que não tanto,
anacronicamente, uma posição “kantiana” qualquer
sobre “o feminino” pode ser exumada dos seus escritos,
mas, bem mais tempestivamente, uma maneira kantiana de

211
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

pensar a “questão feminina” pode ser explicitada e


articulada nos seus traços de conjunto. Na verdade, se a
mais crucial de todas as questões versa, aqui, sobre a
própria condição de possibilidade de um tal discurso
“feminista” sobre algo como o “fato da dominação”,
então, nessa regressão da facticidade dada até às
condições que de direito a possibilitam, encontramos já
uma proximidade essencial entre o modo kantiano de
pensar e a questão mais radical do “feminismo”. E tal
aproximação não se queda nesse parentesco algo ainda
exterior. A proximidade não está aqui determinada
apenas por uma metodologia particular e por um modo
específico de circunscrever o questionário que a deve suportar.
De Kant podemos tirar uma outra e bem mais preciosa
lição: se o plano de possibilitação é, nas esferas teorética,
prática ou estética, sempre apresentado como um plano
de aprioridade “transcendental” indiferente às
vicissitudes e contingências da história e da cultura, no
que às tarefas da justiça e da liberdade respeita, esse
mesmo a priori assume-se como uma tarefa que perpassa
a história da humanidade, alimenta-se de sua riqueza,
absorve a diversidade do empírico, ao mesmo tempo em
que, em conjunto, unifica-o sob as bandeiras do progresso
e da civilização.
Há, assim, duas questões, bem diversas no seu
escopo e significado, em torno do tema “Kant e o
feminino”. A primeira é necessariamente de erudição
e interpretação textual. Ela pretenderia extrair dos
escritos kantianos algo como uma “representação do
feminino”. E, na exata medida em que o feminino não
constitui, em Kant, uma categoria filosófica ou um
conceito temático, interrogá-lo a propósito do
“feminino” seria, em larga medida, interrogar o
homem da sua época, e não o pensador. Sob esse
ângulo, a partida está de antemão decidida: no que
Kant tem a dizer sob o feminino lê-se já, em filigrana,
a construção social de uma “identidade” que define
toda uma época da cultura do Ocidente; nessa época
ler-se-á ainda, em pano de fundo, toda a história da
cultura europeia e, nessa última, a contínua e sempre
presente eficácia de uma mesma desigualdade e
dominação.
Por amor da verdade, há de se dizer que Kant
não é certamente imune a essa denúncia, se bem que
o próprio ato da denúncia se faça à custa de um
injustificável anacronismo. Um texto inicial, intitulado
Observações sobre o sentimento do Belo e do Sublime, fala,
aliás, por si. E fala com uma voz eloquente.
Procurando lançar luz sobre a dualidade masculino-
feminino, descreve o “caráter moral” do homem como
estando determinado pela tendência para o sublime.

212
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Ao “caráter moral” feminino atribui Kant, no mesmo


passo, a tendência simétrica para o belo. Os dois
“caracteres” não são opostos ou mutuamente
exclusivos, como o mesmo texto se apressa a
sublinhar. Mas essa construção de uma putativa
identidade feminina pondo a “tendência para o belo”
como elemento dominante permite que, logo em
seguida, o feminino seja acantonado na esfera da
domesticidade, que seja ainda diminuído por uma
educação restrita ao elementar e, finalmente, que se
veja expulso da vida teorética pela ridícula imagem
de uma “mulh er barbada”, o u a que “s ó faltariam as
barbas” para que um traço de masculinidade
emprestasse um necessário tom de profundidade a
seus pensamentos2.
Não é, porém, nessa primeira direção que se
podem colher os melhores frutos do pensamento
kantiano. Kant não é instrutivo pelo que diz de uma
suposta “essência feminina”; é sumamente instrutivo,
todavia, pelo modo como permite formular a própria
questão em torno do feminino. Pois, se a questão
crucialíssima está em saber que ordem de mutações
essenciais estão permitindo a visibilidade do “feminino”
sob a categoria da “dominação”, se a questão é saber
como uma dominação sempre exercida, mas por isso
mesmo invisível, tornou-se subitamente descortinável
como um fato presente e sempre reidentificável num
olhar retrospectivo, teremos então encontrado o plano
em que Kant é, para nós, um interlocutor instrutivo e
mesmo decisivo. Na verdade, o modo próprio do
questionamento kantiano está em regredir do simples
“fato” até às condições de sua própria possibilidade e em
circunscrever por estas a esfera própria da
subjetividade humana. Por aí, o que era
factualidade meramente dada, peso inerte de uma
empiricidade autoimpositiva, mostra-se agora
como resultado de uma atividade subjetiva de
construção que chama o homem como seu
protagonista último e seu único responsável.

II. Contratualismo e comunidade política

Olhos postos nos textos de filosofia política e


do direito, é possível fazer a Kant esta pergunta de
fundo: sob que ideia deve a emergência da
comunidade política ser pensada para que possa ser
surpreendida naquilo que, em essência, é?
Relativamente a ela, os textos de Kant são, no
seu conjunto, convergentes, e nenhuma

213
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

ambiguidade vem ensombrar a clareza de sua única


resposta: essa ideia é a liberdade.
Tributário de sua época, herdeiro de
Rousseau, mas também de Thomas Hobbes e de John
Locke, Kant pertence, em sua doutrina sobre a
essência do político, áquilo que comummente se
designa como a “tradição contratualista”. Kant não é,
porém, para ser lido como um simples epígono. Sua
doutrina não deve ser simplesmente posta na esteira
de um corpo doutrinário preexistente. E isso porque
devemos precisamente a Kant uma decisiva
depuração das deficiências do contratualismo e, por
essa via, também a mais incisiva apreensão do que
esse mesmo contratualismo essencialmente signjfica
como aclaração da essência do político, para além das
ingenuidades e inconsistências que tantas vezes o
desfiguraram na obra de seus antecessores.
Olhemos primeiro a ingenuidade maior que
percorre a obra dos clássicos do contratualismo. Ela é
sobretudo evidente no Segundo Tratado sobre o Governo
Civil, de John Locke3. E, em substância, cifra-se nisto: o
contrato é aí apresentado como lugar de passagem da
comunidade humana de um putativo “estado de
natureza” primitivo para o “estado civil”; mas porque o
momento de passagem é sempre entendido como um
ato, explícito e expresso, de consentimento efetivamente
ocorrido na história dos homens, toda a doutrina deve
interpretar realisticamente estado de natureza e pacto
civil, pô-los como um passado realmente acontecido e
fazer depender a legitimidade do poder civil de um
consentimento original cuja efetividade e eficácia
diferida, geração após geração, é impossível justificar.
Já David Hume fora o crítico percuciente dessa
ingenuidade de fundo4. Se ela é, porém, ainda
defensável, dentro dos supostos do contratualismo,
por referência à ideia de um consentimento implícito,
já a incoerência em que labora aparece como uma
debilidade difícil de extirpar, uma debilidade que é,
portanto, absolutamente comprometedora. De fato,
que algo como um “contrato”, fundado num mútuo
consentimento, ocorra como acontecimento real na
história das comunidades humanas não só significa,
então, que o indivíduo está colhido numa
anterioridade de princípio relativamente à
comunidade civil, mas ainda que essa última se
deverá construir na órbita de uma racionalidade
estritamente individualista e por referência a
finalidades em si mesmas empíricas e contingentes.
Em Thomas Hobbes, é a insociabilidade e o medo,

214
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

como dados permanentes de uma suposta “natureza


humana”, que agem como mola propulsora do pactum
unionis civilis5. Em John Locke, é o desígnio de “reforçar
a lei natural” que conduz à instauração de um governo
civil apontado apenas à “garantia” dos direitos
estritamente individuais e, nomeadamente, ao direito
de propriedade6. No Rousseau do Contrato social, é a
necessidade de cooperação ou de ajuntamento
organizado das forças humanas que conduz a
humanidade à sociedade e à instituição do Estado7.
Por todos os lados, portanto, um mesmo suposto está
atuando, um mesmo suposto está configurando o
modo como o surgir originário da comunidade é
surpreendido e interpretado – toda a comunidade
política deverá aparecer como um fim instrumental
em vista de fins últimos que têm não na comunidade,
mas numa individualidade atomizada e
egoisticamente compreendida, sua derradeira
justificação. Toda a comunidade política será, por isso
mesmo, um fim condicionado à posição prévia de
outros fins formados num horizonte
extracomunitário, fins esses em si mesmos
contingentes, e terá por isso mesmo, também ela, uma
imperatividade meramente condicional e
contingente. Em última análise, é a desconfiança, como
traço de fundo da convivência humana, que a explica
e torna necessária. Assim, o contrato e a instituição do
horizonte comunitário aparecem desde a raiz
comprometidos com uma exigência de justiça e de
defesa dos direitos que só se deixa compreender se a
relação entre os homens se desenvolve sob o signo da
injúria e da desconfiança recíproca. A oposição do
contrato ao mito romântico da “verdadeira
comunidade”, bem como a contraposição do direito a
uma putativa ordo amoris, têm aqui as bases de onde
retiram sua força de atração e sua aparente
plausibilidade.
Breve mas decisiva é, nesse ponto, a lição de um
texto kantiano de 1793: “este contrato (chamado
contractusoriginarius ou pactum sociale) (...) não se deve de
modo algum pressupor como um fato (…) mas é uma
simples ideia da razão, a qual tem, no entanto, a sua
realidade (prática) indubitável (...)”8. Uma anotação
kantiana reforça essa tese: “o contractus originarius não é o
princípio de esclarecimento da origem do status civilis,
mas sim como ele deve ser”9.
Para sopesar o significado dessa asserção
kantiana, a primeira e mais imediata chave está na
distinção entre instituição primitiva e instituição
originária10. O pacto instaurador é dito “originário”. Mas

215
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

o conceito do originário não se deixa amalgamar com o


conceito de primitividade. Se “primitivo”, o pacto seria o
fato primeiro ou o primeiro acontecimento da história
fenomênica da comunidade humana; seria, pois,
enquanto res facta, individualizável por referência a um
espaço e a um tempo determinados; seria, portanto, um
simples acontecimento e, como acontecimento, algo
destituído de caráter normativo ou de qualquer
imperatividade para além de uma “exemplaridade”
suposta e para sempre controvertível. Mas, porque
originário, a precedência do pacto relativamente à
comunidade política nada tem a ver com a ordem de
razões que fariam dele um suposto – mas para sempre
inverificável – “acontecimento primeiro”. As razões da
originariedade, seu horizonte próprio, são de uma outra
ordem, e de uma ordem inteiramente diversa. O pacto é
originário porque é como pacto ou sob a figura de um
pacto que a comunidade política é pensável e
racionalmente compreensível. E essa genealogia racional da
comunidade política vale, eo ipso, como determinação do
que ela deve ser. Ante a ingenuidade de um Locke, mas
também de um Hobbes ou de um Rousseau, o traço de
fundo do contratualismo kantiano está no tríplice
dispositivo que permite pensar a instauração da
comunidade política por referência à ideia de um pacto
originário; essa originariedade, por referência a uma
exigência da pura razão; a razão pura, por referência a
seu poder ou eficácia prática. A comunidade política
não se assenta mais sobre os desígnios –
circunstanciais ou permanentes, mas para sempre
empíricos e contingentes – de qualquer “natureza
humana”. Isso significa que, como exigência racional,
a comunidade política deve ser construída no suposto
da liberdade e igualdade dos indivíduos em
comunidade. Ela, como forma de uma convivência
entre indivíduos iguais em sua liberdade, é válida e
estende sua imperatividade a qualquer ser racional, e
não privativa ou exclusivamente àqueles seres
racionais que contêm as determinações empíricas do
“humano”, sejam quais forem essas últimas. Assim,
nenhuma suposta “desigualdade natural” entre os
homens (nomeadamente, mas não em exclusivo,
aquela suposta desigualdade “natural” entre homem e
mulher) pode limitar a forma pura, racional, de uma

216
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

comunidade, ou condicioná-la no seu teor. Desse


modo, estatuir que a comunidade política “advém”
(uma adveniência que não é, porém, um acontecer
empírico, mas uma gênese racional e pura) sob a forma
de um “pacto” significa dizer que só pensada como um
pacto ela se torna inteligível naquilo que em si mesma é,
sejam, aliás, quais forem as formas de sua efetivação
fenomênica no horizonte limitado de cada
comunidade humana.
Na figura do “pacto originário” está o modo
kantiano de desfazer a ingenuidade maior do
contratualismo. Mas nela está sobretudo o modo
kantiano de cortar cerce a incoerência de fundo em
que esse mesmo contratualismo havia laborado.
Contra Hobbes, Kant dirá que a comunidade
política se institui como um fim em si mesmo, quer
dizer, por uma imperatividade incondicional, que
não se deixa compreender por retrorreferência a
qualquer ordem de finalidades supostamente
anterior e cuja sede só poderia ser o indivíduo no
seu ser extracomunitário”11. Ao denunciar esta
debilidade na posição hobbesiana – uma debilidade
que não é, bem entendido, exclusiva de Thomas
Hobbes –, Kant surpreende a gênese da comunidade
política como respondimento a um imperativo
racional, quer dizer, a um imperativo que sempre se
põe como em si mesmo universal e necessário por
sobre a órbita de todas as motivações individuais
contingentes ou empíricas, sejam elas traços gerais e
permanentes de uma suposta “naturezahumana”.
Essa é a primeira lição do texto kantiano. Ela
prepara e torna compreensível esta segunda, que é, na
realidade, aquela mesma de onde partíramos:
pensada na sua gênese racional sob a figura de um
“pacto originário”, a comunidade política vem
mostrar-se como lugar de efetivação da ideia de
liberdade. Kant pensa a liberdade como autonomia; o
indivíduo, como vontade autolegisladora. A aparente
limitação da determinação kantiana da liberdade está
em que a esfera do político, na qual ela concretamente
se efetiva, define-se em contraposição às esferas
privada e doméstica, em que ela parece não ser já o
princípio enformador e normativo. Essa limitação de
princípio do âmbito da liberdade à cidadania política
parece, pois, em Kant, colher o indivíduo em sua
abstração jurídico-política e ser incapaz de descer até

217
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

a concreção da via social e privada. Ora, justamente


porque essa última é o lugar onde estão atuantes,
segundo a própria letra kantiana, “relações de
desigualdade e dominação”12, a liberdade na cidadania
política tenderá a aparecer como um princípio inane e
sem eficácia. De fato, ela não suprime, ela deixa antes
florescer a dominação, deixa-a subsistir como um fato,
porque esta se passa numa esfera que ela própria põe
como lhe sendo exterior. Mas talvez haja ainda mais:
Kant seria, na realidade, o pensador que entenderia a
cidadania política ativa como apenas outorgável
àqueles que, nas esferas social e doméstica, não
estivessem presos a qualquer laço de dependência que
pusesse sua vontade sob o domínio da vontade de
outrem. Justamente por isso, um texto da Doutrina do
Direito recusará explicitamente a cidadania ativa ou a
personalidade civil aos domésticos, a todos aqueles
que põem sua força de trabalho a serviço de um outro
e, em geral, a “(...) todas as mulheres”13, como se estas
apenas encontrassem seu verdadeiro rosto na
subordinação ao masculino e no acantonamento à
esfera familiar e doméstica. A gravidade dessa linha
de reflexão é fácil de divisar: não se trata apenas de
a liberdade, como cidadania política, conviver por
todos os lados com o fato da dominação nas esferas
pré-políticas da sociedade e da família; agora, será a
própria cidadania política que se encontra limitada
pelo fato pré-político da dominação. A liberdade,
enquanto cidadania, será doravante apenas residual.
Em aparência, Kant seria, pois, o autor que tornaria
possível uma comunidade em que toda a liberdade do
cidadão se eclipsasse pelo fato universal da
dominação. Aí onde isso sucedesse, o político
cristalizaria apenas as relações pré-políticas de
dominação, expressá-las-ia como recusa sistemática
da cidadania e abriria, assim, as portas a um
despotismo universal.
O ponto aqui decisivo está em como conjugar
(não: conciliar) kantianamente o princípio da liberdade
como cidadania política com o fato da dominação na esfera
pré-política. Que o ponto de vista kantiano pareça ser o
de uma limitação da cidadania pela dominação, que a
tese de Kant pareça ser a da não-dependência, como
fato, para a elevação à cidadania política, em vez de uma
crítica do fato da dominação à luz do princípio da cidadania
política – tudo isso dá certamente oportunidade ao
discurso feminista para ler Kant como expressão de uma
liberdade e cidadania ainda e só “masculinamente”
pensadas. Em suas versões mais radicalizadas, a crítica
“feminista” deve ir ainda mais além e identificar as

218
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

figuras da própria racionalidade, da cidadania e em


geral da cultura como outros tantos dispositivos de uma
permanente dominação do “masculino”14.
Que, em Kant, a questão esteja assim
decidida, que as categorias da liberdade e da
cidadania apenas sirvam para legitimar o fato bruto,
nunca radicalmente perscrutado em sua amplitude
e alcance, da dominação, tal é justamente a aparência
ou o falso juízo que urge submeter a um escrutínio
mais atento. Aí se joga, segundo pensamos, a reta
compreensão do que faz de Kant um interlocutor
essencial do discurso “feminista” e um fator decisivo
na própria posição da “questão feminina”.

III. A cidadania como projeto e como tarefa

O que parece ser a debilidade maior do


pensamento kantiano é, segundo pensamos, aquilo
mesmo de onde retira sua força mais estuante. A
suposta debilidade estava justamente nessa
“abstração jurídico-política” na construção da
individualidade e no modo como, por ela, a
liberdade, como significado de fundo da emergência
do político, via-se limitada pelo fato oposto da
dominação nas esferas societária e doméstica, que
formavam a tecitura pré-política de onde a própria
esfera do político deveria emergir.
Outros são, porém, o ritmo e o modo do
pensar kantiano. O gesto liminar que o subtende
está precisamente na recusa de qualquer derivação
do direito a partir do fato. A afirmação kantiana, por
toda parte repetida, é justamente a de que a
facticidade daquilo que é não fornece o princípio ou
norma para a determinação daquilo que deve ser15.
Trata-se, prima facie, de duas legalidades. Mas, mais
profundamente, há de se dizer que esse é um domínio
no qual a legalidade segundo a natureza não se pode vir
contrapor à legalidade segundo a liberdade e limitá-la
em seu alcance. Na esfera política, não haverá nenhum
“direito” para o fato, mas tudo o que aí é, porque diz
respeito ao humano tal como emerge sob a ideia de
liberdade, resultará do plano normativo do dever-ser e
instaurar-se-á como legalidade que retira da liberdade
seu único princípio construtor. O “dever” não está,
assim, limitado em seu alcance pela positividade do que
factualmente o contradiz. E o “dever-ser” não
permanece, perante a positividade daquilo que é, como
um simples desígnio inane e sem eficácia. Porque, na
esfera humana, é a legalidade segundo a liberdade que
deve ser constitutiva, que deve sobrepor-se e evacuar

219
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

tudo o que não esteja de acordo com seu conceito, o


“dever ser” será, aí, sinônimo do que há de ser, quer
dizer, daquilo que compromete a humanidade
consciente de si numa tarefa de progresso e de
realização prática configuradora de futuro.
A ideia de uma gênese racional como exibição do
originário é, nesse ponto, o fator determinante e a
melhor chave para a plena inteligência do
significado último do pensar kantiano. A esfera
política não deve ser pensada como emergindo a
partir de uma esfera pré-política, societária ou
doméstica, simplesmente admitida e suposta de
antemão como um “facto primitivo” qualquer. Não
deve, por isso mesmo, simplesmente cristalizar, ao
emergir, as relações de força, de desigualdade e de
dominação pré-constituídas na esfera societária. A
lógica interna do modo kantiano de pensar consiste
antes na recusa de toda e qualquer primitividade
do que simplesmente “é” e na regressão do fato até
às condições de direito de sua própria
possibilidade. Pois aqui, tal como na esfera
teorética, há também “conceitos usurpados, (...)
que circulam certamente com indulgência quase
geral, mas acerca dos quais, por vezes, levanta-se a
interrogação: quid juris?”16 – tais são os conceitos de
desigualdade e de dominação, assentes no jogo da
necessidade natural e nas relações tensionais entre
os homens, conceitos cuja ilegitimidade adentro da
esfera política a questão quid juris?, a eles apontada,
é suficiente para exibir. Assim, kantianamente
pensado (um modo de pensar que, neste posto, far-
se-á em larga medida contra a própria letra de
alguns textos kantianos), o político é em si
primeiro, porque é justamente o conceito de uma
comunidade política que primeiramente emerge na
ordem de uma derivação racional apontada à
exibição do originário. Pois é precisamente nela
que a humanidade surge pela primeira vez em seu
traço específico: como instauração e mútuo
reconhecimento da liberdade, como comunidade que
se constrói, que se edifica sob o princípio único de
uma legalidade segundo a liberdade. O político,
como esfera primária, nada deve pressupor,
portanto, “antes” ou “fora” de si, nada pode

220
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

encontrar que o limite ou o diminua na sua eficácia


e no alcance universal de sua legalidade. A esfera
política abre-se quando ao conceito de uma
vontade livre como autofinalidade e
autodeterminação se vem conjugar o conceito de
uma outra vontade que não está apenas perante ela,
mas com ela deve entrar na unidade de um “nós”
comunitário. Colhida nesse momento de sua
emergência originária (ou de sua “gênese racional
e pura”), a esfera do político será justamente o lugar
da coexistência das liberdades e da instauração de
uma ordem que, nesse jogo das relações recíprocas,
deixe-as interagir como liberdades17. De fato, aí onde
o encontro das liberdades se transmutou na
submissão de uma a outra, aí onde as liberdades
emergem como força de dominação, aí elas surgem,
portanto, sob uma forma que desde o início as
suprime, porque essa transmutação do interagir das
liberdades no jogo tensional do afrontamento, da
força e da dominação é, eo ipso, a supressão da
própria liberdade, o evacuar do humano por sua
degradação ao nível de uma “coisa” e, por aí, o
evacuar do que deve dar a forma de fundo de toda
e qualquer comunidade política.
Pensado originariamente e segundo sua reta
acepção kantiana, a comunidade política não se
instaurará, portanto, a partir de uma vinculação
mais primitiva entre os indivíduos, seja ela a
família, as relações societárias em geral ou
mesmo a unidade coletiva de um todo nacional.
A esfera política retira antes sua origem e sua
forma da ideia de uma coexistência possível das
liberdades, de uma união das liberdades que as
potencie na sua interação, em vez de as suprimir.
Por isso mesmo, a determinação kantiana da
esfera política deve ser lida como negação
consequente e radical de qualquer laço vinculativo
instituído sobre o fato “primitivo” da força, da
desigualdade ou da dominação. E o essencial não é,
aqui, que essa força explicitamente se exerça,
coisa que supõe, do outro lado, uma vontade
expressa de resistência e seu reconhecimento
como injusta. Aquela dominação, insidiosa ou

221
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

sub-reptícia, que não é sentida como dominação


e que, por isso, não carece de um exercício
explícito de força, mesmo essa deverá aparecer
como contraditória com o conceito de uma
comunidade política – porque em si mesma
negadora do humano – e ser consequentemente
evacuada do seu horizonte. É precisamente esse o
significado do programa kantiano de uma educação
para a liberdade, como projeto global de emancipação
humana. E se essa tese kantiana for tomada
radicalmente, há mesmo a dizer que nada há como
uma individualidade humana “antes” da emergência
da esfera política. Porque só nela e por ela cada
indivíduo pode emergir na sua liberdade, porque só
por ela vem a liberdade a ser determinação essencial
dos indivíduos humanos em comunidade; aí onde ela
faltasse eclipsar-se-ia também aquilo que é traço de
fundo caracterizador da sua humanidade. No plano
factual, o político será sempre algo que se institui
numa história empírica e a partir de um espaço
comunitário pré-político. Essa é, certamente, a lição
de uma história apenas ocupada com o registro de um
acontecer factual e empírico. Uma história que, por
isso mesmo, está totalmente privada do ponto de vista
que dá significado e unidade de conjunto a esse
mesmo acontecer. Mas se essa mesma história
“considerar no seu conjunto o jogo da liberdade da
vontade humana (...)”18: se ela se puser, por isso, não
no plano meramente factual, mas no plano de que é
originário, a esfera do político apresentar-se-á como
esfera sempre primeira, porque só por ela a própria
empiricidade pode cobrar sentido e unidade de
conjunto enquanto história da liberdade ou do progresso da
humanidade na efetivação crítico-prática de uma plena
consciência de si.
É sabido como, em Kant, o tema da liberdade
vem sobredeterminar a dualidade teorética do
fenômeno e do númeno. É sabido como tudo culmina na
ideia de um Reino dos Fins ou de uma Comunidade
Ética, qual corpus mysticum indiferente às vicissitudes da
história, do direito e da política. É sabido, por fim, como,
em Kant, a liberdade em sede moral subalterniza o
conceito de liberdade política, acantona esta na esfera da
“simples legalidade” e a determina como uma liberdade

222
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

apenas “externa”19. A comunidade política é, assim, em


última instância, ainda e sempre um “mecanismo” sob
um princípio de coação, um arranjo exterior do jogo
ativo e reativo das liberdades, mas não o lugar de sua
plena efetivação. As relações entre política e moralidade
são, em Kant, complexas e nem sempre totalmente
coerentes. Quase incidentalmente, a Ideia de uma História
Universal com um propósito cosmopolita sugere que a
edificação de uma “constituição civil perfeitamente
justa” supõe o investimento de uma “boa vontade”, de
tal modo que o problema político surge como
subsidiário do problema moral20. Em vivo contraste, Paz
perpétua sublinha a tese, só em aparência paradoxal, de
que o problema político é solúvel mesmo para um “povo
de demônios”, quer dizer, para uma humanidade
destituída de qualquer disposição para a moralidade21.
Não importa aqui entrar no dédalo das
posições kantianas a respeito do laço entre política e
moral22; interessa antes e sobretudo relevar este ponto
essencial: em sua meditação sobre a essência do
político como espaço de emergência dos homens,
todo vínculo comunitário será para ser construído
sobre a liberdade, retirará sua força obrigante da ideia de
um consentimento racional e deverá, por isso, fazer
suprimir quaisquer formas de existência comunitária
construídas sobre as formas contrárias da
subordinação e da dominação. E esse não é um
princípio que só diga respeito, privativamente, à
esfera do político. Retamente considerado, ele
significa antes que a totalidade das relações comunitárias
terá aí o fundamento único da sua justiça e da sua
legitimidade. No plano factual e empírico, a
desigualdade emergente das esferas doméstica e
social precede certamente a adveniência de uma
comunidade política edificada sobre o princípio da
liberdade. A própria figura de um “chefe de Estado”
que detém o corpo político como propriedade sua
acusa a preexistência dos fatos da força e da
dominação como pano de fundo das relações entre os
homens. Mas, se o fato bruto é visto sob o ângulo da
exigência racional de liberdade, então ele torna-se
pela primeira vez reconhecível como tal fato, e esse
reconhecimento vale, do mesmo lance, como
denúncia de sua intrínseca ilegitimidade ou como o
peso de um anacronismo para uma humanidade
lançada nos caminhos de sua própria emancipação.

223
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Eis a razão por que a doutrina kantiana sobre a


essência do político se apresenta como instrumento
eficaz para uma crítica e uma reconfiguração radicais
do existente. Tanto quanto cada indivíduo tome a si
mesmo como sujeito de liberdade, tanto quanto a
consciência de si se produza a partir desse princípio,
tanto mais as relações de força, de subjugação e de
dominação que entretecem suas formas empíricas de
existência aparecerão como contraditórias com o
próprio conceito do humano e com a humanidade
realizada na sua pessoa. Não se trata, assim, da ficção
de uma comunidade instituindo-se ab ovo e criando
explícita e conscientemente todo o complexo de
relações que estruturam o seu viver; trata-se antes de
pôr a liberdade como norma para aferir a justiça de
todas essas relações humanas preexistentes, de
introduzir o princípio da liberdade como critério que
as permite julgar e, por essa via, realizar uma
consciência de si que é, ao mesmo tempo, avaliação e
transformação crítico-prática do existente projetando-
se sobre um horizonte de futuro.
Como pode a dominação vir a ser
precisamente percepcionada como dominação? Como
pode ela emergir da invisibilidade primeira em que
opera para a visibilidade que a reconhece e a
denuncia? Eis as perguntas de onde partíramos. O
discurso “feminista” dá voz ao fato da dominação. Ele é
o lugar de sua visibilidade como tal dominação. Mas o
discurso feminista não pode por si mesmo dar ainda
conta do modo como, para ele, essa dominação se
torna por si mesma apreensível e visível. Que a teia
complexa das relações humanas se tenha, de fato,
quase sempre erguido sobre a desigualdade
masculino-feminino, isso é, justamente, apenas um
fato bruto e um dado mudo na sua positividade. Que,
por sobre isso, a exibição desse fato venha a constituir-
se como um propósito de transformação prática do
existente, isso só será por sua vez possível se a própria
percepção do fato na sua positividade estiver
enformada por exigências normativas e um quadro
prévio de valores. De onde ou a partir de que posição
essa crítica é possível – eis justamente a questão que o
discurso feminista já não coloca e já não introduz na
sua autocompreensão. Mas é precisamente na
compreensão dessa exigência que o discurso feminista
pode chamar Kant como um interlocutor essencial.
Na verdade, de Kant esta é a lição crucial: a
crítica “feminista” do fato da dominação não investe

224
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

imperativos privativamente “femininos”, mas


imperativos de humanidade. Não na reivindicação de uma
putativa “especificidade” ou “identidade” do feminino,
não na promessa mirífica de uma humanidade “outra”,
de uma outra forma da cultura, da civilização e da
racionalidade, mas antes sob a bandeira de uma plena
efetivação do projeto de civilização e de
racionalidade, que tomou forma na cultura
europeia e ocidental, deve a crítica feminista vir se
fundamentar.
De fato, foi possível argumentar que a
subordinação ou menorização de algo como o
“feminino” continuaria a operar, mesmo quando as
mulheres se veem reconhecidas como cidadãs livres e
iguais. É que, na emergência da esfera política em
oposição ao domínio privado e doméstico, por força
dessa mesma oposição, as virtudes da cooperação, da
solidariedade e da existência partilhada em laços de
responsabilidade mútua teriam sido construídas como
apenas “privadas”, ao mesmo tempo em que a mulher
ficaria aprisionada a essa esfera, de tal modo que a
virtude “cívica” ou “política” se viria a construir, em
contraste, por referência ao ideal “masculino” da
autonomia e da independência. No emergir dessas
dimensões “privadas” para a edificação de uma nova e
outra cidadania estaria, portanto, o essencial da crítica
“feminista”, já que o ideal de existência cívica por toda
parte atuante seria precisamente o instrumento de uma
permanente dominação.
Relativamente a isso, bastará talvez o argumento
da relatividade, pois parece haver aqui a suposição de
algo como uma “essência” fixa e estável do “feminino”.
O fato da dominação construída sob a diferença homem-
mulher é um dado universal, que rompe os limites da
cultura europeia e ocidental. Nessa multiplicidade, a
“identidade” do feminino encontra-se em cada caso
construída de formas diversas e não coincidentes. Desse
modo, se um projeto de emancipação tivesse de se
fundar na circunscrição de algo como uma “essência” do
feminino, esta teria de cada vez um teor diverso, de tal
maneira que esse mesmo projeto não poderia jamais
revestir-se de uma amplitude universal. Se ele pode vir
a tê-la, será, então, pelo recuo até o gênero humano e os
direitos de toda a humanidade, e não pela fixação em
qualquer particularismo de essência que faça da questão
do feminino uma questão apenas feminina.
Efetivamente – e tanto quanto Kant seja aqui
um interlocutor –, trata-se, co m iss o, de um desígnio
único – e co nsensual – de humanidade, e não de um
particularismo que rompa a unidade do gênero
humano e que só se possa afirmar numa lógica de

225
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

oposição e de contradominação. Que as condições de


possibilidade da crítica feminista sejam imperativos
de uma humanidade em busca de si própria, que essa
crítica, assim alicerçada e desenvolvida, se possa
assumir como projeto universal e consensual de todo
o gênero humano – eis o significado mais essencial da
meditação kantiana sobre a essência do político, sobre
a compreensão do humano como liberdade, sobre,
numa palavra, a circunscrição originária do horizonte
comunitário como lugar de emergência do jogo externo
das liberdades. Assim pensada, a liberdade não é algo
como um atributo fixo e de uma vez por todas
instituído. A liberdade é projeto de libertação. O mesmo é
dizer: veículo de uma perpétua atividade de exame e
reconfiguração do existente. Mais ainda, apenas numa
meditação kantiana pode a questão do feminino obter
sua completa significação. As mutações na cultura
pelas quais o fato da dominação vem a ser
reconhecido e denunciado não são, kantianamente
pensadas, mutações contingentes e passageiras que
possam vir a ser apagadas por mutações em sentido
contrário.
Se o horizonte da comunidade política é o
reino dos homens enquanto sujeitos da liberdade, se
essa é a ideia reitora na compreensão da história
empírica das sociedades humanas, então o
reconhecimento e a crítica consequente da dominação
vale eo ipso como progresso adquirido por toda a
humanidade no caminho da civilização.
Kantianamente pensado, o diagnóstico de toda a
dominação, sua percepção como de raiz incompatível
com a essência do humano será via para a formação
de uma verdadeira consciência de si humana e modo
como progressivamente se configura uma existência
comunitária que plenamente a restitua.
Olhemos num relance as maiores lutas que
atravessaram este século sob a bandeira da
emancipação feminina: a reivindicação do direito à
cidadania política, a libertação da esfera doméstica e o
acesso ao mundo do trabalho, a igualdade de estatuto
no seio familiar – tudo isso, e mais ainda, não carece
para sua justificação interna de outras exigências que
as encontradas na meditação kantiana sobre a
essência do político. Kant, o homem, não é decerto
partícipe ou voz invocável no fragor desses combates.
Ninguém está acima de sua época; mas ninguém
pode, por isso mesmo, convocar uma voz à distância
de dois séculos sem vício de anacronismo. Sejam
quais forem as limitações ou debilidades da doutrina
kantiana positiva no que diga respeito a isso, o que
assoma como ponto decisivo é precisamente a

226
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

circunstância de ser largamente a partir de Kant, a


partir da ideia kantiana do político que todas essas
lutas se podem em grande medida compreender nos
seus motivos últimos, internamente se justificar e
assumir-se como um projeto convocando toda a
humanidade. Pois é justamente em sua ancoragem no
gênero humano e nos direitos de toda a humanidade que o
fato da dominação pode aparecer simultaneamente
como tal fato e como um fato que só emerge, que só é
enquanto tal reconhecível na medida em que fica
desde o início contraposto à forma originária (quer
dizer: racional) de toda a humana comunidade.

Notas

“Three central questions drive feminist social science and political


philosophy: ‘How did male domination arise?’ ‘Why was it so widely
accepted?’ and ‘What are its consequences?’”, Jane Mansbridge e Susan
Okin, “Feminism”, A Companion to Contemporary Political Philosophy,
Oxford, Blackwell Publishers, 1993, p. 271.
“Ein Frauenzimmer, das den Kopf voll Griechisch hat, wie die Frau
Dacier, oder über die Mechanik gründliche Streitigkeiten fúhrt, wie die
Marquisin von Chastelet, mag nur immerhin noch einen Bart dazu haben;
denn dieser würde víelleicht die Míene des Tiefsinns noch kentlicher
ausdrücken, um welchen sie sich bewerben.” Beobachtungen über das Gefühl
des Schönen und Erhabenen, Ak. II, pp. 229-230.
“Tis often asked as a mighty Objection, Where are, or ever were, there any
Men in such a State of Nature? To which it may suffice as an answer at
present; Thatsince allPrinces and RulersoflndependentGovernments all
through the World, are in a State of Nature, tis plain the World never was,
nor never will be, without Numbers of Men in that State.” John Locke,
Two Treatises of Government, Book II, § 4, Cambridge, Cambridge
University Press, 1960, p. 276. Esse era já o argumento final de
Hobbes. Ver, p. ex., Leviathan , Cap. XIII, in fine.
“But the contract, on wich government is founded, is said to be the original
contract; and consequently may be supposed too old to fall under the
knowledge of the present generation. lf the agreement, by which savage
men first associated and conjoined their force, be here meant, this
acknowledged to be real; but being so ancient, and being obliterated by
thousand changes of government and princes, it cannot now be supposed
to retain any authority. (...) Besides that this supposes the consent of the
fathers to bind the children, even to the most remote generations (...),
besides this, I say, it is not justified by history or experience in any age or
country of the worlds.” D. Hume, Of the Original Contract, Stephen
Copley and Andrew Edgar (eds.), David Hume, Selected Essays,
Oxford, Oxford University Press, 1993, pp. 278-279. E
ainda: “It is strange, that an act of mind, which every individual is
supposed to have formed, and after he came to the use of reason too,
otherwise it could have no authority; that this act, I say, should be so much
unknown to all of them, that, over the face of the whole earth, there scarcely
remain any traces of rnemory of it”, idem.
Ver Leviathan, Cap. XVII.
Ver Second Treatise, Cap. VII, §88.
Ver Le Contrat Social, Livro I, Cap, VI.
Über den Gemeinspruch...: “Allein dieser Vertrag (contractus originarius
oder pactum sociale gennant) (...) ist keinesweges als ein Faktum
vorauszusetzen nötig; (...) Sondern es ist eine blosse Idee der Vernunft, die

227
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

aber ihre unbezweifelte (praktische) Realität hat”. Ak. VIII, 297.


“Der contractus originarius ist nicht das Princip der Erklaerung des
Ursprungs des status civilis, sondern wie em seyn soll.” Refl. 7740, Ak.
XIX, p. 504.
Um texto da Metaphysikder Sitten, Rechtslehre ,§ 6, Ak. VI , p. 251,
a propósito da apropriação, esclarece o sentido da distinção entre
o originário e o primitivo: “Diese ursprüngliche Gemeinschaft des
Bodens, und hiemit auch der Sachen auf demselben (communio fundi
originaria), ist eine Idee, welche objektive (rechtlich-praktische) Realität
hat, und ist ganz und gar von der uranfänglichen (communio primaeva)
unterschieden (...)”.
“Verbindung vieler zu irgend einem (gemeinsamen) Zwecke (den alle haben)
ist in allen Gesellschaftsverträgen anzutreffen; aber Verbindung derselben,
die an sich selbst Zweck ist (den ein jeder haben soll), mithin die in einem
jeden äusseren Verhältnisse der Menschen überhaupt, welche nicht umhin
können, in wechselseitigen Einfluss auf einander zu geraten, unbedingte
und erste Pflicht ist.” Über den Gemeinspruch…, Ak. VIII, 289.
Ver Rechrslehre, em particular o capítulo sobre um suposto
“direito pessoal segundo um tipo coisal”, § 22 e ss.: “Dieses Recht
ist das Besitzes einer äusseren Gegenstandes als einer Sache und des
Gebrauchs desselben als einer Person”. Assim, “Die Erwerbung nach
diesem Gesetz ist dem Gegenstande nach dreierlei: Der Man erwirbt ein
Weib, das Paar erwibt Kinder und die Familie Gesinde”. Ak. VI, pp.
276-277. Ver ainda idem , § 4, nomeadamente: “ich kann ein W eib,
ein K ind, ein G esinde, und überhaupt eine andere Person nicht darum als
Meine nennen, weil ich jetzt, als zu meinem Hauswesen gehörig, befehlige,
oder im Zwinger und in meiner Gewalt und Besitz habe, sondern wenn ich,
ob sie sich gleich dem Zwange entzogen haben, und nich sie also nicht
(empirisch) besitze. dennoch sagen kann, ich besitze sie durch meinen blossen
Willen, so lange sie irgendwo oder irgendwenn existieren, mithin bloss-
rechtlich; sie gehören also zu meiner Habe nur alsdann, wenn und so fern
ich das letztere behaupten kann ”. Ak. VI, p. 248.
“Nur die Fähigkeit der Stimmgebung macht die Qualifikation zum
Staatsbürger aus; (...) Die letztere Qualität macht aber die Unterscheidung
des aktiven vom passiven Staatsbürger notwendig (…). Folgende
Beispiele können dazu dienen, diese Schwierigkeit zu heben: Der Geselle bei
einem Kaufmann, oder bei einem Handwerker;derDienstbote (nicht der im
Dienste des Staats setht); der Unmündige (naturaliter vel civiliter); alles
Frauenzimmer, und überhaupt jedermann, der nicht nach eigenem Betrieb,
sondern nach der Verfügung anderer (ausser des Staats), genötig ist, seine
Existenz (Nahrung und Schutz) zu erhalten, entbehrt der bürgerlichen
Persönlichkeit, und seine Existenz ist gleichsam Inhärenz”. Rechtslehre,
§ 46, Ak. VI, p. 314 (subl. nossos).
V., p. ex., G. Gilligan, In a DifferentVoice , CambridgeMass.,
Harvard University Press, 1982, e Genevieve Lloyd, The Man
of Reason, London, Routledge, 19932.
Um texto da Crítica o diz já com toda a clareza: “Man siehet
leicht, dass wenn alle Kausalität in der Sinnenwelt bloss Natur wäre, so
würde jede Begebenheit durch eine andere in der Zeit nach notwendigen
Gesetzen bestimmt sein, und mithin, da die Erscheinungen, so fern sie
die Willkür bestimmen, jede Handlung als ihren natürlichen Erfolg
notwendig machen müssten, so würde die Aufhebung der
transzendentalen Freiheit zugleich alle praktische Freiheit vertilgen. Denn
diese setzt voraus, dass, obgleich etwas nicht geschehen ist, es doch habe
geschehen sollen, und seine Ursache in der Erscheinung also nicht so
bestimmend war, dass nicht in unserer Willkür eine Kausalität liege,
unabhängig von jenen Naturursachen und selbst wider ihre Gewalt und
Einfluss etwas hervorzubringen, was in der Zeitordnung nach empirischen
Gesetzen bestimmt ist, mithin eine Reihe von Begebenheiten ganz von selbst
anzufangen”. K.r. V, Auflösung der dritten Antinomie, Ak. III, p.
364.
“Es gibt indessem auch usurpierte Begriffe, (...) die zwar mit fast
allgemeiner Nachsicht herumlaufen, aber doch bisweilen durch die

228
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Frage: quid juris, in Anspruch genommen werden (...)”. K.r. V., § 13,
Ak. III, p. 99.
É esse o lugar de gênese do conceito puro do direito. V.
Rechtslehre: “Das Recht ist also der Inbegriff der Bedingungen, inter denen
die Willkür des einen mit der Willkür des andern nach einem allgemeinen
Gesetze der Freiheit zusammen vereinigt werden kann ”. Enleitung, §
B, Ak. VI, p. 230.
“Die Geschicht (...) lässt dennoch von sich hoffen: dass, wenn sie das Spiel
der Freiheit des menschlichen Willens im grossen betrachtet, sie einen
regelmässigen Gang derselben entdecken könne”. Idee zu einer allgemeinen
Geschichte in weltbürgerlicher , Absicht, Ak. VIII, 17.
“Der Begriff des Rechts (...) betrifft (...) nur das äussere und zwar
praktische Verhältnis einer Person gegen eine andere, sofern ihre
Handlungen als Facta
aufeinander (unmittelbar, oder mittelbar) Einfluss haben können.”
Rechstlehre, Einleitung, § B, Ak. VI, p. 230.
“(...) dass hiezu richtige Begriffe von der Natur einer möglichen
Verfassung, grosse durch viel Weltläufe geübte Erfahrenheit, und, über das
alles, ein zur Annehmung derselben vorbereiteter guter Wille erfordert
wird.” Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht,
Ak. VIII, 23.
“Das Problem der Staatserrichtungist, so hart wie es auch klingt, selbst für
ein VoIk von Teufeln (...) auflösbar (...)”. Zum Ewigen Frieden , Erster
Zusatz, Ak. VIII. 366.
O texto de Paz perpétua fornece, aliás, elementos decisivos
para seu tratamento.

229
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

A QUEDA DE ADÃO: O PAPEL DA


MULHER
NO “CETICISMO ÉTICO” DE RUSSELL
MARIA TERESA XIMENEZ
(Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa)

Com o texto “A queda de Adão: o papel da


mulher no ‘cepticismo ético’ de Russell”, pretende-se dar
a conhecer algumas linhas gerais do pensamento de
um dos grandes filósofos de nosso tempo sobre a
mulher e seu papel na comunidade. Esse pensamento
(ou reflexão) brota do interior de uma ética social
inovadoramente proposta para se contrapor às morais
tradicionais. Política, sociedade e comunidade são os
eixos fundamentais que enquadram essas reflexões de
Russell.
Centramo-nos, para isso, apenas em
algumas de suas obras que destacam esse
pensamento, a saber:

Principles of Social Reconstruction (1916);


Marriage and Morals (1929); e
Human Society in Ethics and Politics (1954).
Noutras obras como Philosophical Ideas (1910),
Political Ideals (1917), Roads to Freedom (1918), On Education
(1925), Education and Social Order (1932) e Unpopular Essays
(1950), também recolhemos alguns elementos
importantes para essa reflexão.
O presente texto organiza-se em três pontos:
1. A queda de Adão;
2. Virtudes femininas, morais tradicionais – a
ruptura;
3. O caminho para uma nova Ética.
#

Vendo a mulher que o fruto da árvore devia ser


bom para comer (…) agarrou o fruto, comeu, deu

231
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

dele a seu marido, que estava junto dela, e ele


também comeu. Então, abriram-se os olhos aos
dois e, reconhecendo que estavam nus,
prenderam folhas de figueira umas às outras e
colocaram-nas como se fossem cinturões à roda
dos seus rins (…).
O Senhor Deus expulsou-o [a Adão] do jardim do
Éden (…). Depois de ter expulsado o homem,
colocou, a Oriente do jardim do Éden, querubins
armados de espada flamejante para guardar o
caminho da árvore da vida.
(Livro do Gênese, 3-4)

1.A queda de Adão

Conhecemos Bertrand Russell sobretudo por


seus estudos em Filosofia, Lógica e no campo das
Matemáticas, os quais o consagraram como um dos
grandes filósofos do nosso século.
Mas o grande racionalista que foi Russell
quis também mostrar a seus leitores e críticos um
interesse pelas paixões humanas e pela Filosofia
enquanto atividade prática e deintervenção, como o
revelam seus textos sobre Ética, Política e Pedagogia.
A necessidade de considerar a Filosofia como
uma prática, como a possibilidade de passar à ação e
como uma forma de intervir na esfera pública levou-
o a vários posicionamentos de natureza política e à
criação de uma escola (em Beacon Hill, Sussex) que
possibilitasse a efetiva realização de muitas de suas
concepções sociais, comunitárias e educativas.
Defensor de uma sociedade democrática,
Russell vê nas várias formas de luta pela liberdade
um modo de manter a possibilidade de
desenvolvimento do homem e de sua
individualidade.
Profundamente antidogmático, crítico e
contestador das normas e convenções sociais, seu
envolvimento político levou-o a participar de
campanhas a favor do sufrágio feminino e a tomar
posições frontais contra a guerra, atitudes essas que
lhe acarretam pesadas consequências,
nomeadamente o afastamento do Trinity College
(em 1915), várias prisões por insubordinação (a
última das quais teve lugar quando já tinha 86 anos
de idade, em 1961) e a condenação por imoralidade
(nos Estados Unidos).
Grande parte de sua vida decorreu no

232
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

período entre as duas Grandes Guerras,


circunstância essa que terá marcado profundamente
sua forma de se opor aos impulsos e à violência que
conduzem à guerra, bem como reforçado a
necessidade de procurar a paz.
Sua preocupação com a comunidade, com a
sociedade em geral e com o modo como o público
pode ser influenciado pelo privado levou-o a refletir
sobre a moral, as instituições sociais, o casamento e a
propor uma nova ética, que, na sua radicalidade, não
deixou jamais de chocar a mentalidade conservadora
do seu (e do nosso) tempo.
A moral tradicional, tão criticada por
Russell, viu, sobretudo a partir do cristianismo e das
considerações de São Paulo, o sexo como imoral e
como uma nefasta consequência da queda de Adão.
Fora do casamento o sexo é pecado e, no seu
interior, corresponde a uma necessidade de
procriação e de manutenção da espécie. Para a
moral tradicional, a mulher ocupa um papel inferior
na sociedade, diretamente relacionado com a
estrutura familiar patriarcal, alicerce da sociedade
ocidental, na qual a instituição do casamento e a
concepção de vida sexual ocupam um lugar de
relevo.
Marx e Freud tiveram o mérito de influenciar
o destino do mundo ocidental ao proporem, de
forma inovadora e contestatária, uma análise social
baseada nas relações econômicas, no caso de Marx,
e nas relações parentais e sexuais, no caso de Freud.
Apesar de não seguir a perspectiva de
nenhum deles, Russell reconhece a importância
desses pensadores para a construção de uma nova
ética e para a destruição, nas suas grandes linhas de
força, da moral tradicional. E, por isso, o casamento
enquanto instituição social e a sexualidade enquanto
relacionada com a vida da comunidade vão ser objeto
de sua análise crítica, donde emergem considerações
sobre o papel da mulher após “a queda de Adão”.
É nesse contexto que se inscreve “o que Russell
disse sobre as mulheres”. Não se pode propriamente
dizer ou considerar que haja um pensamento
específico de Russell sobre o feminino. Contudo, em
sua análise social, centrada nas sucessivas
modificações que ao longo dos tempos sofreram as
relações sociais, econômicas, familiares e sexuais,
revela-se o percurso do papel da mulher.
A mulher ocupou um papel fundamental
nessas modificações com sua luta pela emancipação,

233
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

pelo sufrágio e pela igualdade de direitos, luta que


deu origem a uma nova forma de encarar sua
sexualidade.
Saber até que ponto a luta das mulheres
influenciou e mesmo alterou a vida das diferentes
comunidades é uma das tarefas que, para Russell,
impõem-se à nova ética.
Em seus textos, a reflexão sobre o papel da
mulher emerge da análise das questões sociais,
políticas e éticas, não se encontrando desligado destas.
O papel da mulher na ética de Russell, ou, se
quisermos, em seu “ceticismo ético”, faz parte do
projeto mais geral de reconstrução social e da
proposta de uma nova ética social. Encontra-se, assim,
relacionado com a análise social das relações entre o
Estado e o indivíduo e com a influência que o
indivíduo tem na comunidade e na nova forma de ver
a sociedade e a ética que a deve orientar.
Alguns episódios da vida de Russell são
reveladores da influência familiar em seu pensamento
ético. De família aristocrata de tradição liberal, os pais
de Russell podem-se considerar discípulos das ideias
de John Stuart Mill defendidas na obra Subjection of
Women. A mãe de Russell foi, ela própria, uma
femininista, proferindo, em diversas ocasiões,
discursos a favor do sufrágio feminino e tendo mesmo
dado à luz seu filho Bertrand assistida pela primeira
mulher médica (a dra. Garrett Anderson).
O projeto russelliano de reconstrução social
passa pela tentativa de repor o liberalismo do século
XIX de Bentham e de Stuart Mill. Pretende avançar
(em 1915) com uma teoria política que enfatise o
papel dos impulsos na vida humana e que
considere a necessidade de promover os impulsos
criativos nas relações familiares, na educação e nas
instituições políticas.
Os impulsos possessivos do homem
inscrevem-se em formas sociais como o Estado, a
guerra, a propriedade e a política, ao passo que os
impulsos criativos se revelam na educação, na religião
e no casamento (v. Principles of Social Reconstruction, p. 7).
Mas, porque o impulso é cego e anárquico,
necessita ser guiado ou orientado por um sistema
organizado, isto é, pelas diversas instituições de
caráter político e por outras de caráter público.
A sociedade da época de Russell viu emergir
uma nova forma de pensar a mulher e o seu papel
na comunidade. Por meio da luta pela emancipação
e, aliando-se a esta, da descoberta e do uso dos
contraceptivos, a mulher descobriu uma nova
sexualidade, liberta do peso social da maternidade.

234
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

É nesse contexto que Russell, falando sobre o


casamento e a moral, estabelece as bases de uma
nova ética sexual.

2.Virtudes femininas, morais tradicionais – a ruptura

Mediante a análise de várias sociedades e de


suas instituições sociais e políticas, Russell mostra
como as relações familiares e sociais se intercruzam e
evidencia o fato de as sociedades modernas se
fundarem na família patriarcal, tendo-se construído
uma ideia de “virtude feminina” possibilitadora da
existência e da continuação desse modelo familiar.
Em Marriage and Morals, obra de 1929, Russell
refere-se às análises de Malinowski sobre as relações
familiares nas ilhas Trobriand, composta por uma
sociedade matriarcal em que o papel da mulher é
visto de uma forma muito diferente daquele a que
nos habituamos na sociedade ocidental.
Os habitantes das ilhas Trobriand
desconhecem o papel do pai, pois é apenas a linha
feminina que é tida em conta. Nessas sociedades, o
tio materno é a figura masculina que ocupa um lugar
de relevo e que tem autoridade sobre os filhos da
irmã. Nessas sociedades, segundo evidencia Russell,
as questões familiares estavam confinadas apenas às
mulheres.
As sociedades patriarcais ficaram marcadas
por fatores de ordem econômica e religiosa
poderosos, os quais alteraram substancialmente o
papel das mulheres na sociedade e na família. O
cristianismo, ao introduzir a noção de pecado e ao
confinar as relações de natureza sexual ao
casamento e à procriação, foi, em grande parte,
responsável por uma noção de virtude feminina que
consignará à mulher o papel de dominada e
subjugada. Seu lugar é a casa e as tarefas que a ela se
ligam.
Garantir a virtude feminina é, na sociedade
patriarcal, uma necessidade masculina de ter a
certeza da paternidade.
Com o cristianismo surgiu uma nova ética
sexual que restringe a liberdade da mulher, esta
sendo subjugada física e mentalmente em nome da
virtude. A relação entre o homem e a mulher passou
a ser uma relação completamente desprovida de
amor.
Segundo Russell, as relações humanas só

235
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

poderão ser autênticas se não envolverem apenas


impulsos e instintos, mas implicarem racionalidade.
Mesmo as relações sexuais, muitas vezes
consideradas meramente instintivas, implicam, no
caso dos seres humanos, uma aprendizagem social e
racional que envolve o amor.
Ligada ao papel da mulher, tanto nas
sociedades patriarcais como nas matriarcais, há
uma ética sexual, ou um conjunto de regras e
preceitos que constituem um código moral que rege
as relações familiares nessas sociedades. Para
analisar qualquer ética sexual, dever-se-à tomar em
consideração o ponto de vista da família, o da lei, o
da comunidade e o da população, dado que essa
questão tem implicações na vida pública,
nomeadamente na procriação.
A virtude das mulheres foi garantida
essencialmente pela ética cristã, a qual acabou por
justificar, em muitos casos, abusos de autoridade e
de poder, tornando a relação sexual uma relação
entre dominador e dominado. Russell reconhece
que aatitude frente às mulheres veiculada pela ética
cristã e pela sociedade patriarcal tem servido para
manter a estrutura familiar e garantir a paternidade.
O problema da herança dos bens, da sucessão,
também acaba por ser garantido, nessas sociedades,
pela certeza da paternidade.
Ao confrontar tais sociedades com as
sociedades matriarcais, conclui que o papel da
mulher só pode ser considerado em relação com a
instituição do casamento e com outros fatores de
ordem social, política e económica, pois todos eles
se intercruzam de forma complexa.
A luta das mulheres por sua emancipação tem,
em Russell, uma faceta mais social do que política. A
conquista da igualdade de direitos e a consequente
emancipação da mulher têm maior significado no
tocante à modificação de mentalidades no interior
de uma sociedade do que no aspecto meramente
político. E, dado que o casamento continua a ser
influenciado pela ética cristã, o mais importante
para poder propor uma nova ética será analisar a
importância das conquistas individuais das
mulheres no foro público da comunidade.
A ética cristã enfatizou a virtude sexual e foi
responsável pela degradação da posição das
mulheres na sociedade. As mulheres aparecem
sempre como tentadoras, Evas revisitadas, pelo que
as sociedades tiveram de encontrar meios de
dificultar as suas oportunidades de serem livres ou
de encetarem relações de natureza sexual fora do

236
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

casamento. O casamento funcionou, assim, como


garantia da virtude feminina na moral tradicional.
Russell critica a moral tradicional com sua
concepção de virtude feminina como virtude
sexual, considerando, em Marriage and Morals, que a
ideia de imoralidade associada às relações sexuais
fora do casamento é aberrante e mesmo antinatural.
Segundo Russell, qualquer relação, seja de que
ordem for, entre seres humanos deve ser sempre
livre; deve ser uma troca mútua. A mulher não
deverá ser socialmente penalizada pelo fato de
desejar ter relações sexuais fora do casamento, desde
que seja tida em conta a questão da maternidade.
Isto é, o fato de haver relações sexuais das quais
resulte descendência é um fato que não diz respeito
apenas à esfera individual, mas é também uma
questão da sociedade e da comunidade. Nesse
sentido, reconhece que a descoberta e uso dos
contraceptivos foi fundamental, pois permitiu à
mulher, solteira ou casada, ser livre em suas relações
de natureza sexual.
Assim, a moral sexual da época de Russell
tem apenas uma condição transitória, devido à
emancipação das mulheres e à invenção dos
contraceptivos. A história da emancipação das
mulheres revela como estas alcançaram, com relativa
rapidez, os seus direitos políticos, mas é uma
história bem mais lenta no que diz respeito às
consequências sociais dessas conquistas.
A nova moralidade que Russell propõe
frente à moral tradicional implica uma ruptura com
a concepção de virtude feminina e admite as
relações extraconjugais, desde que destas não
resulte a procriação; desse modo, o papel do pai
deixa de ser fundamental, e o casamento deixa de
ser a instituição pilar da moralidade.
A educação terá um papel fundamental a
desempenhar na construção de uma nova Ética,
dado que é nesse campo que várias dificuldades se
encontram. Nas escolas são os mais velhos que
veiculam ideias, muitas vezes antigas e que
continuam a considerar o sexo algo impuro.
Para Russell, o casamento pode ser a melhor
forma de um homem e uma mulher manterem uma
relação, caso respeite as liberdades individuais e se
alicerce numa salutar relação mútua. Recordemos, a
tal propósito, que Russell casou quatro vezes (em
1824, com Alys Pearsall Smith; em 1921, com Dora
Black; em 1936, com Patricia Spence; e finalmente,

237
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

em 1952, com Edith Finch).


No período do pós-guerra, sobretudo em
países como a Alemanha, os EUA e na
Escandinávia, muitas mulheres passaram a ter
relações exteriores ao casamento. Esse fato,
consequência da emancipação da mulher, veio,
segundo Russell, acabar com a concepção de virtude
feminina, a qual instituíra, paralelamente ao
casamento, a instituição da prostituição. As
mulheres deixaram de sentir como uma obrigação
moral e social a necessidade de preservar aquilo que
fora durante longo tempo considerado sua virtude.
A proposta de Russell é ousada e chocou a
mentalidade do seu tempo: todas as relações sexuais
que não envolvam procriação só dizem respeito ao
indivíduo, são do foro privado. Nem o homem, nem
a mulher deverão casar com o propósito de ter filhos
sem terem tido relações sexuais prévias.

3.O caminho para uma nova Ética

As reflexões éticas de Russell foram


influenciadas pelos Principia Ethica de G. E. Moore e
reunem-se, essencialmente, nos “Elements of Ethics”
publicados em 1910 nos Philosophical Essays. Neste
como em outros textos (por exemplo, em Human
Society in Ethics and Politics), Russell toma posições
próximas de um certo “ceticismo ético”. Pretende uma
ética antidogmática, em que se evidenciem elementos
sociais e subjetivos. Não acredita na objetividade dos
juízos éticos; em Human Society in Ethics and Politics
chega mesmo a perguntar (v. Cap. IX) se haverá em
Ética algo que não seja subjetivo.
Seus críticos opuseram-se às suas concepções
éticas, sobretudo no que diz respeito ao caráter
indefinível do “bem”. G. Santayana critica-o por
Russell considerar que o “bem” não é uma
propriedade objetiva que as coisas possuem
independentemente do sujeito. Após tomar
conhecimento da crítica de Santayana, Russell revê
algumas de suas concepções éticas, considerando
que o “bem” não é definível, mas está ligado aos
desejos humanos, em termos dos quais pode vir a
ser definido. Se há alguma objetividade em Ética,
esta deverá ser política e não lógica, o que significa,
sobretudo, que ela tem um papel fundamental na
intervenção ativa. Essa posição de Russell também
foi contestada por seus críticos, que a consideraram
contraditória e que não viam, nessa linha,

238
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

possibilidade de o filósofo justificar em termos


éticos suas intervenções políticas. Para Russell, a
razão deve (como Hume também já o dissera) ser
escrava das paixões; assim, a razão tem um sentido
muito claro – ela significa a escolha de meios certos
para um fim que se pretende alcançar e nada tem a
ver com a escolha dos meios.
A razão não é uma causa da ação, apenas a
regula; só os desejos, as emoções e as paixões podem
ser causas da ação.
Para Russell, a Ética está intimamente ligada
à política e à vida da comunidade. Ambas permitem
desenvolver desejos coletivos. A Ética permanece
sempre subjetiva e surge como uma necessidade de
os homens entrarem em acordo em relação às suas
aversões e aos seus desejos. É por não estarmos todos
de acordo, diz Russell, que temos de encontrar razões
para persuadir um grupo de pessoas a querer as
mesmas coisas que nós queremos.
A Ética e os códigos morais são necessários ao
homem devido ao conflito entre impulso e
inteligência; se só existisse um sem o outro, não
haveria propriamente um lugar para a Ética.
A “nova ética” que Russell propõe, em oposição
à moral tradicional, foi muito influenciada pela
sociedade do seu tempo. Dessa época destacamos
dois fatos importantes: as duas Grandes Guerras,
como já referimos anteriormente, e a violência e os
crimes que as acompanharam, bem como as
consequências disso tudo no tocante às mudanças
sociais do período do pós-guerra. Entre as várias
consequências desses conflitos, Russell destaca o
papel da mulher, a luta travada por sua emancipação
e pela conquista de igualdade de direitos e a
importância que tal luta teve no que respeita à
sociedade. Tais lutas permitiram um novo olhar
sobre o papel da mulher na comunidade e sobre a
moral sexual dessa comunidade.
A partir da Guerra de 1914-18, a luta pela
emancipação das mulheres deu um grande passo
adiante, na medida em que estas passaram a
desempenhar certos cargos e a ocupar lugares
anteriormente reservados aos homens. Passaram a
estar mais tempo fora de casa e a compreender que
sua liberdade e sua emancipação passavam por sua
autonomia econômica. Em consequência desse novo
papel da mulher na sociedade, emergiu, também,
uma outra forma de encarar a sexualidade, ligada à
descoberta e utilização dos contraceptivos. As
relações sexuais fora do casamento passaram a ser

239
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

frequentes, e esse fato abalou as instituições


tradicionais, como o casamento.
Em oposição à moral tradicional, que relegou
a mulher a um plano inferior, Russell propõe uma
nova ética, adequada às inovações sociais de sua
época. Essa nova Ética surge na sequência da luta
feminina pela emancipação e liberdade sexual e
permite evidenciar o papel da mulher como fator de
mudança.
Há, contudo, várias dificuldades que se
colocam à transição para uma nova Ética, pois a
Ética tradicional, arraigada nas instituições, tem
ocupado um pesado papel na vida das
comunidades. Coube à mulher o papel de
possibilitar a transição para uma nova Ética, a qual
supõe uma crença no instinto treinado pela
educação.
Essa “nova Ética” surge no intercruzamento
entre seus ideais políticos, sociais, econômicos e
comunitários.
Como nos diz em Political Ideals, um mundo
melhor, aquele que se pretende construir, surgirá
das ruínas do velho, que se tem vindo a destruir.
Nesse mundo melhor, os impulsos criativos
deverão ocupar uma grande parte e os impulsos
possessivos deverão ser reduzidos. Esse será um
mundo de Paz, no qual cada homem poderá se
desenvolver individualmente no que em si próprio
há de melhor. Será um mundo onde as relações
humanas irão se basear na liberdade mútua (v.
Roads to Freedom) e onde instituições como o
casamento serão um encontro livre e espontâneo do
instinto natural.
Em Principles of Social Reconstruction, Russell
considera que ainda não houve tempo suficiente para
analisar as consequências da influência da liberdade
feminina na vida privada e na vida pública. No
entanto, reconhece que há fortes consequências
quanto ao crescimento da população e ao próprio
lugar que a mulher ocupa na sociedade. O
casamento, ao deixar de ser uma forma de vida para
as mulheres, perdeu força no tecido social, e a
estrutura familiar em que a sociedade patriarcal se
apoiava foi abalada.
O sistema social ideal proposto por Russell
deverá iniciar-se gradualmente e deverá garantir às
mulheres a possibilidade de terem filhos fora do
casamento, se o desejarem. A comunidade deverá
garantir essa possibilidade às mulheres, mesmo que
estas sejam solteiras.
A nova Ética proposta por Russell apresenta

240
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

uma nova forma de encarar a ética sexual,


reconhecendo à mulher um papel fundamental na
viragem de concepção da moral tradicional.

241
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

LÉVINAS E A ALTERIDADE NO FEMININO


CRISTINA BECKERT
(Universidade de Lisboa)

Polêmica, a concepção levinasiana do


feminino reveste-se da mesma ambiguidade que
perpassa toda a obra do filósofo como seu núcleo
hermenêutico fundamental. Assim sendo, as três
metáforas com que este pretende exaurir o sentido
profundo da feminilidade – a saber, a morada, a
volúpia e a maternidade – podem ser lidas quer como
retratos da mulher, tal como esta é representada por
uma tradição secular, de índole masculina, quer como
expressões de uma alteridade cuja função primordial
reside, precisamente, na contestação de todo poder
autoafirmativo de um sujeito bem assente no ser.
Trata-se, pois, de perscrutar até que ponto o feminino
corresponde, para Lévinas, ao sexo e ao gênero
femininos, a uma transcendência em si mesma
indizível e não categorizável (no sentido ético-
metafísico), ou ainda, numa perspectiva conciliatória,
a uma categoria ontológica que prepara e constitui a
condição de possibilidade do advento da
transcendência ética, sem, no entanto, com ela se
identificar.
No intuito de elucidar essa questão,
analisaremos, num primeiro momento, as três
metáforas enunciadas, procurando detectar o modo
como cada uma articula o mesmo e o outro, no
sentido de um aprofundamento progressivo da
identificação entre o feminino e a alteridade, para,
em seguida, confrontarmo-nos com algumas críticas
feministas às teses de Lévinas, com o objetivo de
precisar a situação deste no quadro do feminismo
contemporâneo.

I. As metáforas do feminino

Um exame atento das ocorrências da temática


do feminino nas primeiras obras de Lévinas –
nomeadamente, Le temps et l’autre e De l’existence à

243
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

l’existant – em comparação com Totalité et Infini, revela,


desde logo, a crescente complexidade que se instala no
tratamento dessa questão. Enquanto na década de
1940 o feminino se identificava com a própria
alteridade, ou seja, o outro era dito no feminino, já em
1961 este não só se reparte entre o acolhimento na
morada e o mistério da volúpia, como a própria
alteridade se diz quer na discrição feminina, quer na
virilidade e altura do rosto.
De fato, a afirmação, feita em Le temps et l’autre,
de que “(…) o contrário absolutamente contrário, cuja
contrariedade não é afetada em nada pela relação que se
pode estabelecer entre ele e o seu correlato, a
contrariedade que permite ao termo permanecer
absolutamente outro, é o feminino”1 torna bem clara a
identificação deste com o absolutamente outro. A
diferença entre os sexos não pode, assim, ser dita em
termos lógicos, nem pela contrariedade, pois tal
pressuporia um gênero comum, um plano de
mesmidade anulador da diferença, nem pela
contradição, à qual estaria subjacente um ser
indiferenciado, igualmente unificador. Pelo contrário, a
feminilidade só pode constituir “a própria qualidade da
diferença”, o movimento de diferenciação que
continuamente escapa à luz do conhecimento e à posse,
não permitindo qualquer ato identificador capaz de a
fazer retornar à esfera do Mesmo. Ora, a dupla
impossibilidade da posse e da fusão, pelo excesso de
alteridade que o feminino supõe, constitui, para Lévinas,
o cerne da relação erótica. Eros não representa uma
possibilidade, uma escolha com sede num sujeito livre,
mas o puro acontecer de um encontro em que os
protagonistas são transportados para além de si
mesmos, em direção a um futuro insuscetível de
qualquer antecipação2. Antes, porém, de aprofundarmos
a fenomenologia de eros, tal como se apresenta,
sobretudo, em Totalité et Infini, analisemos o aparente
recuo levinasiano na concepção do feminino, ao
introduzir nessa mesma obra uma outra metáfora, a da
morada, como primeira manifestação da feminilidade.
A morada ou a capacidade de habitar, de
conferir sentido ao mundo, é a figura por excelência
da subjetividade que anseia por uma identidade
própria. Porém, embora a constituição de tal centro
perspectívico, a partir do qual o mundo é
percepcionado, obrigue a um recolhimento em si do
sujeito, a uma solidão monádica, este revela-se
indissociável do acolhimento de que o eu é objeto por
um outro, pois “a intimidade que a familiaridade já
supõe é uma intimidade com alguém. A interioridade do
recolhimento é uma solidão num mundo já

244
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

humano. O recolhimento refere-se a um


acolhimento”3. Este acolhimento humano que
proporciona o recolher-se em si do sujeito é
personificado pela mulher, expressão da
hospitalidade e da habitabilidade do mundo. No
entanto, uma questão se impõe desde já: até que
ponto Lévinas não está simplesmente nos
devolvendo uma imagem masculina da mulher
tradicional como “guardiã do lar”? Um pequeno texto
surgido um ano antes da publicação de Totalité et
Infini e intitulado “Le judaïsme et le féminin” talvez
possa esclarecer algumas perplexidades surgidas,
ao mostrar, a partir da identificação talmúdica da
mulher com a casa, como o feminino não é apenas
metáfora, mas categoria ontológica, capaz de
temperar a faceta masculina do ser humano,
dominada por uma racionalidade objetivante e
desertificadora. Neste sentido, “(…) superar (…) uma
alienação que, em última instância, resulta da
própria virilidade do logos universal e conquistador
que persegue até as sombras que o poderiam abrigar
– tal seria a função ontológica do feminino”4.
Como podemos depreender dessas
palavras, uma humanidade exclusivamente
dominada pela categoria ontológica do masculino
revelar-se-ia totalmente desprovida de
subjetividade, isto é, de capacidade reflexiva e do
próprio ato de pensar. Voltado para o exterior,
alienado nos objetos que julga conquistar pela posse
e pelo trabalho, o masculino personifica o poder da
técnica, em sua faceta impessoal e uniformizadora,
destrutiva de qualquer reduto de intimidade do
sujeito consigo mesmo e com o outro5. O feminino,
pelo contrário, enquanto criação de um espaço
habitado, é veículo da comunicação intersubjetiva
imediata, pois significa a familiaridade necessária a
uma relação eu-tu, em que o silêncio é condição de
enriquecimento e fortalecimento interior do eu. Por
isso, a presença do outro-feminino é “discretamente
umaausência”,umretirar-separaqueoeuseja, o criar
de um espaço vazio, mas acolhedor, para este
repousar. Poder-se-ia afirmar, então, que as
categorias ontológicas do masculino e do feminino
representam as duas faces complementares do ser do
homem – nomeadamente, a afirmativa, pela qual este
vive no exterior, num movimento expansivo sem
retorno, em que ignora a presença da alteridade, e a

245
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

negativa, mediante a qual enceta um movimento de


regresso a si, possibilitado pelo retirar-se de um
outro que, no entanto, deixa marcas indeléveis no
mesmo.
Isso posto, facilmente se compreenderá
assentar-se a crítica dirigida por Lévinas ao
pensamento ocidental – em particular, ao predomínio
da totalidade sobre o infinito, da imanência sobre a
transcendência e, sobretudo, do mesmo sobre o outro
– no primado do masculino sobre o feminino, o que,
por si só, indicaria quanto um modelo alternativo de
pensar deverá necessariamente passar por uma
reflexão aprofundada sobre o estatuto da
feminilidade. No entanto, estamos ainda na esfera do
ontológico, e não do ético-metafísico, em que a
alteridade se dá na sua forma mais acabada. O
feminino dito pela morada inaugura uma relação de
intimidade entre um eu e um tu, relação essa que, por
um lado, mostra-se unilateral, pois o tu é simples
instrumento de satisfação do eu, e, por outro,
antissocial, dado que se basta a si mesma, não
podendo, por isso, constituir a base de uma
verdadeira comunidade ética. Com efeito, enquanto “a
sociedade do amor é uma sociedade a dois, sociedade
de solidões, refratária à universalidade”6, a relação
ética visa à alteridade, não só na sua forma intensiva,
como extensiva, perdendo em intimidade aquilo que
ganha em verticalidade.
Se o feminino, em sua identidade metafórica
com a morada, constituía uma categoria pré-ética, o
modo como Lévinas retoma o tema da relação
erótica aponta, em sua equivocidade estrutural,
simultaneamente para além e aquém do ético,
enquanto fecundidade e voluptuosidade. De fato, o
rosto é a figura incontestável da alteridade ética,
pois ordena, da sua altura, uma dádiva
incondicional de mim mesmo, ordem essa que
constitui a fonte de todo sentido para o agir. Por seu
turno, o feminino, identificado agora com a pura
passividade e vulnerabilidade do sensível, opõe-se
diametralmente ao rosto, procedendo à inversão da
significância com que este se exprime na
insignificância do puro exibir sensível, do qual se
ausenta todo significado e expressão. Assim, “o rosto
da amada (...) cessa de exprimir ou, se preferirmos,
apenas exprime essa recusa de exprimir, esse fim do
discurso e da decência (...). No rosto feminino, a
pureza da expressão perturba-se já pelo equívoco do
voluptuoso (...)”7, ao assumir a forma da perversidade
da mulher-criança ou mesmo da simples animalidade.

246
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Não se diz, porém, que o feminino é ausência de rosto,


mas tão-só rosto que exprime a inexpressividade ou a
recusa de exprimir; em outras palavras, a
insignificância do feminino introduz-se na
significância do rosto sem a anular. Daí que a
“ultramaterialidade” do corpo feminino em sua nudez
signifique a possibilidade de inverter o sentido deste,
que é, simultaneamente, sua forma suprema de
expressão, pois “só um ser que tem a franqueza do
rosto pode 'descobrir-se' na não-significância do
lascivo”8. O “mistério do feminino” resulta, então, da
coincidência entre a franqueza com que o rosto
significa e a dissimulação inerente ao lascivo erótico.
Representa um ocultar-se no próprio ato de se dar ou
essa irredutibilidade à posse que incita à profanação,
nunca consumada, dado que a alteridade que se
esconde na volúpia da carne nunca está nela presente,
mas se anuncia a partir de um horizonte de futuro
inobjetivável.
A “fenomenologia da carícia” testemunha bem
o equívoco inerente a uma alteridade que não se deixa
dizer pela palavra – antes se diz a ela própria pelo
silêncio. Com efeito, a carícia revela, para Lévinas, o
sensível em sua máxima pureza, pois nela este não é
intuitivamente ou categorialmente informado, mas se
transcende a cada momento, sem, no entanto, passar
para uma outra esfera, para o suprassensível.
Alimenta-se, assim, de sua própria natureza
inexaurível, da distância criada no seio do contato
mais imediato, o que faz dele uma procura daquilo
que já encontrou, mas cuja refração à posse e à
delimitação ôntica obriga a uma caminhada infinita
em direção àquilo que, estando presente, é já futuro9.
O tatear da carícia não é, pois, sinônimo de uma
tentativa de apropriação nem de uma curiosidade que
impele o sujeito para fora de si, mas com a segurança
de poder retornar a seu foro íntimo. Se assim fosse, o
outro-feminino entraria ainda na esfera da
possibilidade, constituiria um futuro passível de se
converter em presente e de ser possuído. Pelo
contrário, o futuro que a carícia adivinha não só não é
presentificável em ente, como desentifica aquele que
inicialmente tomara a iniciativa da carícia, obriga-o a
colocar o centro de seu prazer no prazer do outro e,
como tal, a transcender-se a si próprio, num processo
de transsubstanciação que equivale, para Lévinas, à
fecundidade, ou seja, à geração do filho10.
Esse diacronizar ou futurizar do elo amoroso
corresponde a uma efeminação da postura
afirmativa do eu no ser, um desvio pelo qual este
renuncia a ser o cerne de sua própria experiência.

247
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Assim sendo, o sujeito se vê transportado pela


fecundidade para um futuro de onde não pode
regressar idêntico a si, visto que o possível já não
está em seu poder, sem que, contudo, o
despojamento de si queira dizer uma dissolução no
todo. A abertura a uma dimensão para além do
possível é pura transcendência acima da
inteligibilidade do todo; significa, em última
instância, criação do múltiplo em absoluta
gratuidade. Desse modo, a sexualidade e a
fecundidade não têm, para Lévinas, uma origem
imediatamente biológica, mas metafísica, uma vez
que, como explicitamos anteriormente, a diferença
entre os sexos não pode ser entendida a partir do
binômio gênero-espécie, em que a presença de um
gênero comum nivela a assimetria da relação entre
as espécies e a reduz ao saber do todo. O encontro
erótico não se limita a confirmar e a justificar aquilo
que já é, a reunir o que provisoriamente foi
separado; constitui antes o garante da “pluralidade
do nosso existir”. Ora, é justamente esse sentido
plural do sujeito que permite compreender o elo
entre fecundidade e paternidade, pois só a relação
pai-filho dá conta de um eu múltiplo que se recria a
cada instante na proximidade do outro,
abandonando no encontro a identidade substancial
consigo próprio, ao mesmo tempo em que mantém
a referência a si. A paternidade representa uma
“transcendência em que o eu não se exalta, pois o
filho não sou eu; e, contudo, eu sou o meu filho. A
fecundidade do eu é a sua própria transcendência”11.
A separação biológica entre o pai e o filho, muito
maior do que entre este e a mãe, serve, desse modo, a
Lévinas, para exprimir a separação metafísica entre
o eu e o outro e a fissura que se instaura no seio do
próprio eu12.
Nessa fenomenologia de eros desenha-se um
novo conceito de subjetividade que irá ser
determinante nas obras posteriores a Totalité et Infini,
nomeadamente em Autrement qu’être. Trata-se de
pensar um sujeito totalmente vocacionado para a
resposta ao apelo da alteridade, a ela submetido,
conforme a etimologia do termo, até à obsessão e à
substituição, palavras que servem a Lévinas para
designar a responsabilidade ética em sua expressão
mais acabada. Ora, a metáfora que melhor dá conta
dessa subjetividade que suporta e carrega o outro,
numa proximidade que é contato anterior a toda
decisão de entrar em contato, é a da maternidade.

248
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Definida em termos de “gestação do outro no


mesmo”13, simboliza o primado incontestável do
sensível, entendido como marca indelével da
alteridade – num plano prévio à tomada de posse de
si pelo eu –, capaz de gerar essa dependência
obsessiva pelo outro que reclama a minha
responsabilidade por ele. Efetivamente, “a
experiência sensível enquanto obsessão por outrem –
ou maternidade – é já a corporeidade que a filosofia
da consciência quer constituir a partir dela.
Corporeidade do corpo próprio (…)”14 que apenas se
assume plenamente na proximidade irrecusável de
um outro corpo que dele se alimenta e depende.
A relação maternal diz, assim, o elo
privilegiado com um outro ainda sem configuração
plástica; logo, insuscetível de objetivação e
conhecimento pelo eu como entidade autônoma,
mas cuja presença constante e exigente, não
permitindo ao eu descansar em si mesmo,
identificar-se, lança-o continuamente para fora de si,
em resposta a esse apelo anterior a todo o presente da
consciência. Ora, essa alteridade cuja presença carnal
é, paradoxalmente, uma ausência e uma estranheza,
mas que, por isso mesmo, torna-se objeto de
perseguição e obsessão pelo eu, constitui, para
Lévinas, a alteridade ética por excelência, aquela a
quem o sujeito deve sua própria constituição
enquanto resposta infinita à voz que o reclama e da
qual, no limite, não se distingue. É nessa
experiência refractária a toda categorização que se
dá a coincidência entre o exterior e o interior, o outro
e o mesmo, de tal modo que é pela minha boca que
o outro fala e é mesmo antes de ouvir sua ordem que
eu respondo, a ele me substituindo, de tal modo que
se poderá afirmar que o outro sou eu15.
A caracterização da experiência do outro no
mesmo a partir da metáfora da maternidade parece
perfazer a identificação entre o feminino e a
subjetividade ética. Se a figura da morada
representava a condição de possibilidade de um
sujeito ontologicamente constituído, pelo acolhimento
discreto de que era alvo, e a de eros, a ruptura com a
ontologia da presença, pelo advento de um futuro
nunca presentificável, a maternidade, ao superar
definitivamente os princípios lógicos da identidade
e da contradição, do mesmo e do outro, instaura
uma subjetividade diversa, em que a categoria
ontológica do feminino é enfatizada até ganhar os
contornos do ético16.

249
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

II. Do feminino ao feminismo

Uma vez expostos os modos levinasianos de


dizer o feminino, importa agora tentar situá-los
sucintamente no contexto do feminismo
contemporâneo, a partir da leitura que algumas
mulheres mais ou menos conotadas com esse
movimento deles fizeram. Não tendo como objetivo
a exaustividade, escolhemos três posições distintas,
nomeadamente a de Luce Irigaray, Catherine
Chalier e Tina Chanter, com as quais procuraremos
entrar em diálogo.
Talvez a mais contundente crítica de Lévinas,
Luce Irigaray apoia-se na opinião expressa por
Simone de Beauvoir, para quem “(…) é surpreendente
que ele tenha deliberadamente adotado o ponto de
vista do homem (…)”, ao abordar o tema do
feminino17. Fixando-se nas metáforas da volúpia e da
carícia, menos obviamente identificadas com uma
concepção tradicional da mulher do que as da morada
e da maternidade, a autora procura desmontá-las com
o intuito de mostrar como nelas o feminino é
instrumentalizado em prol da afirmação da
identidade masculina. Prova desse caráter meramente
negativo e instrumental do feminino seria o par
simbólico a que Lévinas recorre, o da luz e da
obscuridade, em que ao aspecto positivo e divino da
luminosidade, fonte de toda determinação racional e,
como tal, masculina, opor-se-ia a ausência de
contornos e ambiguidade do obscuro feminino18. Por
outro lado, a utilização sistemática do termo amada
(aimée) e não amante (amante) para retratar o polo
feminino da relação amorosa reforçariam ainda mais
a passividade da mulher, fazendo desta objeto, e não
sujeito da intencionalidade desiderativa, reservada ao
homem. Ora, o não preenchimento integral desta na
carícia é interpretado por Irigaray não como sinal da
alteridade irredutível à posse com que o feminino se
apresenta, mas como expressão lúdica da relação do
sujeito masculino consigo mesmo, pela qual este se
transcende em direção a um futuro em aberto, mas
apenas seu, perdendo, como tal, a alteridade
feminina, pois não conhece a comunhão no prazer19.
Julgamos que essa interpretação confunde
posse do objeto desejado com comunhão dos amantes,
fazendo da “perda” da alteridade feminina sua
resistência à posse, enquanto, para Lévinas, é esta que
garante, justamente, que o feminino permaneça outro.

250
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Também a separação entre dois níveis de análise, o


fenomenológico, patente no movimento da carícia, e o
metafísico, protagonizado pela relação de
paternidade com que o homem encara sua postura
perante Deus, retira toda a ambiguidade entre volúpia
e fecundidade que, como observamos, diz a “verdade
do rosto”. Sem ela, a ordem da imediatez sensível,
expressa pela animalidade, pela perversidade da
mulher-criança sem rosto, torna-se inequivocamente
“insignificante” e antiética20. Não queremos com isso
contestar o modelo paternal da relação ética tal como
esboçada em Totalité et Infini, mas tão-só chamar a
atenção para a dependência imediata em que se
encontra do binômio voluptuosidade-fecundidade
que a sustenta.
Já as posições adotadas por Catherine Chalier,
uma profunda conhecedora da obra levinasiana, e por
Tina Chanter nos parecem menos carregadas de intuitos
polêmicos, embora se mostrem menos conclusivas. O
pressuposto hermenêutico de onde parte a primeira
consiste, basicamente, na distinção entre as “figuras do
feminino” e uma “ética do feminino”. Enquanto a
linguagem metafórica propõe um nome para dizer essa
catego ria, ainda que de forma não objetivante, confina-
se à esfera ontológica, ao passo que uma ética do
feminino exige a superação da própria metáfora,
instaurando uma equivocidade radical apenas dada no
silêncio. Por isso, na morada, “o destino mais alto seria
reservado para o masculino uma vez convertido ao ético
graças ao feminino”21, mas, já na inexpressividade do
rosto da mulher, quando da relação amorosa, imiscui-se
a possibilidade de inversão do ético, pois “(…) quando
se trata do rosto absolutamente incontornável da
mulher, as palavras faltam para dizer o infinito que aí se
exprime. Ora, só elas fariam cessar a vertigem e o
habilitariam ao respeito. Só elas poriam fim à inversão
do ético em jogo lascivo.”22
Como se pode observar, contrariamente a
Irigaray, Catherine Chalier concebe o equívoco do
feminino não apenas na imanência do jogo erótico,
mas entre este e a transcendência da significação
ética dada pelo rosto, entre o silêncio e a palavra, de
tal maneira que o feminino seria o silêncio que se
esconde por trás de toda palavra, denunciando seu
poder nominativo, contestando sua função
ontológica. Resta perguntar que estatuto atribuir à
maternidade. Estaremos ainda perante uma
metáfora - logo, na esfera ontológica –, ou
representará a relação maternal a subjetividade ética
para além de toda significação metafórica? Ao optar
pelo segundo termo da alternativa, a autora deixa,

251
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

contudo, uma outra questão: até que ponto o feminino


se esgota na maternidade?23 Diríamos apenas que, se
a maternidade recobre na perfeição o sentido da
subjetividade ética, o feminino não pode a ela reduzir-
se, sob pena de pôr em causa a equivocidade que, essa
sim, constitui o seu cerne.
Finalmente, há de se reiterar um argumento a
favor do “feminismo” de Lévinas, já parcialmente por
nós aduzido, mas que Tina Chanter leva às últimas
consequências. É que, se a fecundidade da reflexão
levinasiana consiste em propor uma concepção
inédita do outro, pensando-a de forma radical, e se o
feminino é encarado no interior de tal intento, então,
não é possível defender que estamos perante a
simples reiteração da perspectiva que foi a de uma
civilização essencialmente masculina24. Mais ainda: há
de se interpretar a ambiguidade que perpassa as
metáforas enunciadas e que atinge o seu acme na
maternidade - enquanto destituição da identidade
própria – à luz de um projeto contestatário de todos os
essencialismos, facilmente degeneráveis num
biologismo redutor. De fato, “talvez a impossibilidade
de fixar a concepção de Lévinas do feminino não seja
acidental, mas antes a tomada de consciência da
impossibilidade de levantar a questão ‘o que é a
mulher?’ sem ter já decidido acerca de sua essência”25.
Deveremos, então, considerar Lévinas um pós-
feminista?

Notas

“Je pense que le contraire absolument contraire, dont la contrariété n’est affectée
en rien par la relation qui peut s’établir entre lui et son corrélatif, la
contrariété qui permet au terme de demeurer absolument autre, c’est le
féminin.” Lévinas, Le temps et l’autre, Paris, PUF, 1983, p. 77. Cf.,
ainda, ibidem , p.14 e idem , De l’existence à l’existant, Paris, Vrin,
19842, p. 145.
“L’amour n’est pas une possibilité, il n’est pas dû à notre initiative, il est
sans raison, il nous envahit et nous blesse et cependant le je survit en lui.
(…) La relation avec autrui, e c’est l’absence de l’autre, non pas absence de
pur néant, mais absence dans un horizon d’avenir (…)” Lévinas, Le temps
et l’autre, pp. 82-83.
“L’intimité que déjà la familiarité suppose – est une intimité avec
quelqu’un. L’intériorité du recueillement est une solitude dans un monde
déjà humain. Le recueillement se réfère à un accueil.” Lévinas, Totalité et
Infini, Haia, Martinus Nijhoff, 19844, p. 128.
Depois de afirmar explicitamente que, segundo a tradição
talmúdica, a casa é a mulher, Lévinas acrescenta: “Mais dans
le judaïsme, le moral a toujours la portée d’un fondement ontologique. Le
féminin figure parmi les catégories de l’être. (...) Surmonter (...) une
aliénation qui, ultime, résulte de la virilité même du logos universel et

252
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

conquérant qui chasse jusqu’aux ombres qui auraient pu l’abriter – telle


serait la fonction ontologique du féminin (...).” Lévinas, "Le judaïsme et
le féminin" in Difficile Liberté. Essai sur le judaïsme, Paris, Albin
Michel, 19843 pp. 53 e 55.
“Le voilà, l’esprit dans son essence masculine, qui vit au-dehors, exposé au
soleil violent qui aveugle, aux vents du large qui le battent et l’ abattent,
sur une terre sans replis, dépaysé, solitaire et errant et déjà par là même
aliéné par les choses produites qu’il avait suscitées et que se dressent
indomptées et hostiles.” Lévinas, “Le judaïsme et le féminin” in
Difficile Liberté, p. 55.
“Le rapport intersubjectif de l’amour n’est pas le début, mais la négation de
la société. Et il y a là certainement une indication sur son essence. L’amour
c’est le moi satisfait par le toi, saisissant en autrui la justification de son
être. (...) La société de l’amour est une société à deux, société de solitudes,
réfractaire à l’universalité.” Lévinas, “Le Moi et la Totalité” in Entre
nous. Essai sur le penser-à-l’autre, Paris, Grasset, 1991, p. 33.
“Le visage de l’aimée (...) cesse d’exprimer ou, si l’on préfère, il n’exprime que
ce refus d’exprimer, que cette fin du discours et de la décence (...). Dans le
visage féminin, la pureté de l’expression se trouble déjà par l’équivoque du
voluptueux (...).” Lévinas, Totalité et Infini, p. 238.
“Seul l’être qui a la franchise du visage peut se ‘découvrir’ dans la non-
signifiance du lascif.” Lévinas, Totalité et Infini, p. 238.
“Approcher Autrui, c’est encore poursuivre ce qui déjà est présent, chercher
encore ce qui l’on a trouvé, ne pas pouvoir être quite envers le prochain.
Comme caresser. La caresse est l’unité de l’approche et de la proximité.
Toujours en elle la proximité est aussi absence. Qu’est-ce que la tendresse de
la peau caressé, sinon le décalage entre la présentation et la présence?”
Lévinas, “Langage et proximité” in En découvrant l’existence avec
Husserl et Heidegger, Paris, Vrin, 19822, p. 230. Cf. Idem , Le temps
et l’autre, p. 82 e Totalité et Infini, pp. 235 e 236. Para uma
análise fenomenológica da carícia, cf. A. Renaut, L’ère de
l’individu . Contribution à une histoire de la subjectivité, Paris,
Gallimard, 1989, pp. 236-246.
“Je n’aime pleinementque si autruim’aime, non pas parce qu’il me faut la
reconnaissance d’Autrui, mais parce que ma volupté se réjouit de sa volupté
et que dans cette conjoncture non pareille de l’identification, dans cette trans-
substantiation, le Même et l’Autre ne se confondent pas, mais précisément
– au delà de tout projet possible – au delà de tout pouvoir sensé et
intelligent, engendrent l’enfant.” Lévinas, Totalité et Infini, p. 244.
“La paternité est une relation avec un étranger qui tout en étant autrui (…)
est moi; une relation du moi avec un soi qui cependant n’est pas moi. (…)
Transcendance où le moi ne s’emporte pas, puisque le fils n’est pas moi; et
cependant je suis mon fils. La fécondité du moi, c’est sa transcendance même.”
Lévinas, Totalité et Infini, p. 254.
Para a prevalência do ponto de vista masculino sobre o
feminino, em Totalité et Infini, cf. B. Forthomme, Une philosophie de
la transcendance. La métaphysique d’Emmanuel Lévinas, Paris,
Vrin, 1979, p. 332 e E. Lopes Nunes, “A Condição Feminina em
Emmanuel Lévinas”, Brotéria, 119 (1984), nº 1, janeiro, pp. 47-
51.
“(…) arrachement à soi, moins que rien, rejection dans le négatif – en arrière
du néant – maternité, gestation de l’au tre dans le m êm e.” Lév in as,
Au trem ent qu’être ou au-delà de l’essence, Haia, Martinus Nijhoff,
1986, p. 95. A substituição da metáfora da paternidade pela da
maternidade, para dar conta do sujeito ético, compreende-se,
a nosso ver, pela ênfase que ganha, em Autrement qu’être, a
dimensão da sensibilidade como contato imediato com o

253
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

outro, ao passo que, em Totalité et Infini, a tônica era posta na


separação metafísica.
“L ’expérience sensible en tant qu’obsession par autrui – ou maternité – est
déjà la corporeité que la philosophie de la conscience veut constituer à partir
d’ elle. Corporeité de corps propre (…)” Lévinas, Autrement qu’ être, p.
97.
Essa inversão do eu no outro dá-se pela eleição daquele como
único visado pela acusação da alteridade: “Le soi dans l’ être
c’est exactement le ‘ne pas pouvoir se dérober’ à une assignation qui ne vise
aucune généralité. Il n’y a pas d’ ipséité commune à moi et aux autres, moi
c’est l’ exclusion de cette possibilité de comparaison. Dès que la comparaison
s’installe. L’ipséité est par conséquent un privilège ou une élection
injustifiable qui m’élit moi et non pas le Moi. L’unique est élu. Election par
sujétion.” Lévinas, Autremet qu’être, p. 163). Transpondo esta
temática para a esfera religiosa, a eleição que conduz à
substituição é expressa pela figura do Messias na sua
coincidência com cada subjectividade ética. Com efeito, “Le
Messie c’est Moi. Etre Moi,c’estêtreMessie.(…)Lefaitdenepassedérober
à lachargequ’imposela souffrance des autres définit l’ipséité même. Toutes
les personnes son Messie.” Idem , “Textes messianiques” in Difficile
liberté, p. 129.
Acerca da ênfase como método filosófico que permite a
passagem do ontológico ao ético, cf. Lévinas, “Questions et
réponses” in Du Dieu qui vient à l’ idée, Paris, Vrin, 19862, pp.
141-142.
“Je suppose que M. Lévinas n’oublie pas que la femme est aussi pour soi
conscience. Mais il est frappant qu’il adopte délibérément un point de vue
d’homme sans signaler la réciprocité du sujet et de l’objet.” S. de
Beauvoir, Le deuxième sexe, I, Paris, Gallimard, 1949, p. 15.
Partindo do princípio de que a única diferença é a que se
estabelece entre os sexos, L. Irigaray procura fazer remontar
o sentido do binômio luz-obscuridade ao domínio
civilizacional do sexo masculino sobre o feminino, em que a
ocultação da sexualidade feminina contrastava com o modo
como era ostentada nos cultos primitivos prestados a deusas.
Cf., a esse propósito, L.. Irigaray, “Questions à Emmanuel
Lévinas: sur la divinité de l’amour”, Critique, 522 (1990),
novembro, pp. 911-912.
“Caresser, pour Lévinas, revient donc non pas à aborder l’autre dans ce sens
de la vie même: le toucher, mais à la réduction de cette dimension vitale du
corps de l’autre à l’élaboration d’un avenir pour lui. (…) Dans cette
transformation de la chair de l’autre en sa propre temporalité, le sujet
masculin perd évidemment le féminin comme autre.” L. Irigaray,
“Questions à Emmanuel Lévinas: sur la divinité de l’amour”,
pp. 912-913. Para uma abordagem mais desenvolvida do tema da
carícia, cf. idem , fíthique de la différence sexuelle, Paris, Minuit, 1984,
pp. 173-199.
Cf., a esse propósito, L. Irigaray, “Questions à Emmanuel
Lévinas: sur la divinité de l’amour”, pp. 915-916.
“The highest destiny would be reserved for the masculine once it has been
converted to ethics thanks to the feminine.” C. Chalier, “Ethics and the
Feminine” in Re-Reading Lévinas, Bloomington/lndianapolis,
Indiana University Press, 1991, p. 123. Cf., também, idem , Figures
du féminin. Lecture d’Emmanuel Lévinas, Paris, La nuit surveillée,
1982, p. 100.
“Quand il s’agit du visage, tout aussi incontournable, de la femme, les
mots manquent pour dire l’infini qui s’y exprime. Or, seuls ils arrêteraient
le vertige et l’habiliteraient au respect. Seuls ils mettraient fin au

254
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

renversement de l’éthique en jeu lascif.” C. Chalier, Figures du féminin,


p. 28.
“But we have to take note of the fact that, according to Lévinas, ethics in its
feminine achievement means to be a mother and nothing else. Can we agree?”
C. Chalier, “Ethics and the Feminine” in Re-Reading Lévinas, p.
127.
“(…) If Lévinas’s philosophy succeeds in its attempt radically to rethink
the Other, then we cannot understand Lévinas’s account of the otherness
which ‘accomplishes itself in the feminine’ as a restatement of the traditional
domination of the Other by the same. In other words, by identifying the
feminine with discretion, Lévinas is not unthinkingly reasserting the
invisibility of women; he is making of this historical invisibility a
philosophical positivity – in a move that protests the virile world in which
everything is ‘clear as day’.” T. Chanter, “Feminine and the Other”
in The Provocation of Lévinas. Rethinking the Other, London/New
York, Routledge, 1988, p. 36.
“Perhaps the impossibility of pinning down Lévinas’s account of the feminine
is no accident, but rather an acknowledgement of the impossibility of
raising the question ‘what is woman?’ without already having decided her
essence.” T. Chanter, “Antigone’s Dilemma” in Re-Reading Lévinas,
p. 143. Cf., ainda para o significado da equivocidade do
feminino, idem , “Feminism and the Other” in The Provocation of
Lévinas. Rethinking the Other, p. 51.

255
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

FOUCAULT E A QUESTÃO DA
IDENTIDADE
JOSÉ DE ALMEIDA PEREIRA ARÊDES
(Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa)

“Quem, que seja português, poderá viver a


estreiteza de uma só personalidade?”
Fernando Pessoa1

Introdução

Se excetuarmos os casos da Mãe2 e de


Jacqueline Verdeaux (a quem Michel Foucault
chamava “ma femme”3), é sabido que a mulher não
ocupou grande lugar nem na vida, nem na obra desse
filósofo4. Seria, pois, inglório e infrutífero buscar o
lugar da mulher no pensamento de Foucault.
No entanto, um pouco contraditoriamente
pelo menos à primeira vista, seria grave lacuna que
uma investigação subordinada ao tema A filosofia no
feminino não incluísse um estudo sobre Michel
Foucault, na clara medida em que alguns setores dos
movimentos feministas contemporâneos muito se
interessaram pelo diálogo com o pensamento de
Foucault e, em certos casos, buscaram mesmo
inspiração em sua obra.
Meu objetivo aqui não é, contudo, traçar uma
genealogia das influências e diálogos entre as
pensadoras femininas e/ou feministas e Foucault,
tampouco a história dos seus amores e desamores,
mas antes apresentar algumas linhas de uma
contribuição possível de Foucault para uma reflexão
sobre as possibilidades de uma Filosofia no feminino.
Nesse contexto, e se atentarmos ao título
desta comunicação, poderia parecer de duvidosa
utilidade, e até legitimidade, procurar em Foucault
material para uma reflexão sobre a identidade (e,
consequentemente, sobre o sujeito e a subjetividade), se
tivermos em conta o célebre e bombástico anúncio da
“morte do Homem”5, uma vez que também não consta
que tivesse anunciado o nascimento da Mulher!

257
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Ora, a verdade é que, para além do clima


estruturalista em que foi feito, tal anúncio não
passou de uma das conhecidas boutades deFoucault,
que, aliás, sempre considerou o sujeito6 um dos temas
centrais de sua própria obra, coisa que
reiteradamente afirmou e que resulta clara da última
entrevista que concedeu, a 29 de maio de 19847.
Se a mulher, com efeito, não ocupa lugar de
revelo nas preocupações desse homem, o mesmo não
se poderá dizer da questão da identidade, um dos temas
que mais tem interessado aquelas dentre as
pensadoras femininas que, a partir de alguns quadros
conceituais de Foucault, procuram equacionar a
questão do feminismo.
Como então Foucault problematiza tudo isso?

O interesse pela identidade

As/os leitoras/es mais atentas/os ter-se-ão


claramente dado conta do interesse de nosso filósofo
pelos jogos sexo/verdade/poder, ou, se se preferir, pela
relação entre sexo e identidade, assim como pela
genealogia da construção da identidade moderna a
partir justamente da incidência desses jogos sobre o
corpo e a alma do sujeito moderno ou, dito de outro
modo, o interesse de Foucault pela genealogia dos
dispositivos (o “conjunto de elementos heterogêneos,
discursivos e não discursivos, que conseguem isolar
estratégias de relações de força subjacentes a um certo
domínio do saber”8) da sexualidade.
Esse interesse de Foucault pela identidade
não resulta, julgamos poder defender, de uma tardia
descoberta do tema; antes constitui uma linha de
leitura fundamental de toda a sua produção teórica,
na justa medida em que, como ele afirmava, toda a
sua obra é autobiográfica9, embora com a
particularidade de se tratar de uma autenticidade
mascarada, pois, como judiciosamente diz
Macherey, “afirmar o caráter autobiográfico do
pensamento [como o faz Foucault] é reconhecer o
anonimato de todo o discurso, pois a fórmula ‘Eu sou
um autor’ equivale à tela de Magritte ‘Ceci est une
pipe’”10.
Poder-se-á, talvez, afirmar que a interrogação de
Foucault sobre a identidade, sendo aggiornamento do
socrático conhece-te a ti próprio, dá-se no quadro de uma
crise, crise da modernidade, que levou à erosão dos
modelos de identidade propostos (ou impostos?),
uma modernidade que Foucault problematizou não

258
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

como acontecimento singular cronologicamente


situado, mas como uma conjuntura histórica cuja crise
é consequência do aniquilamento do referencial de
sentido, análogo ao que outros indivíduos, noutras
épocas, também já viveram.

Normalizar e disciplinar

A problematização da sociedade de
adestramento que é, segundo Foucault, a sociedade
moderna será feita a partir de dois conceitos que se
tornarão chave para a leitura de Vigiar e punir, a saber,
disciplina e norma. As disciplinas, poder e tecnologia
que trabalham, por toda parte11, os corpos e as almas
dos indivíduos com vistas à constituição de um novo
tipo de subjetividade e, consequentemente, de
identidade, tecnologias do corpo, atuando em função
de uma norma, medida e padrão de produção do
homem modelo a implementar, são definidas por
Foucault como “os métodos que permitem o controle
minucioso das operações do corpo, asseguram a
sujeição constante de suas forças impondo-lhes uma
conexão docilidade-utilidade”12.
As disciplinas, que começam por ter uma
função negativa-repressiva (neutralizar os perigos,
controlar e fixar as populações), passam depois a
exercer uma outra positiva (aumentar a possível
utilidade dos indivíduos13), assistindo-se, então, ao
nascimento de uma arte (techné) do corpo que fabrica
corpos-indivíduos quanto mais dóceis mais úteis,
corpos exercitados e submissos, dotados de maior
força, o que lhes aumenta a utilidade, em termos
econômicos, diminuindo-lhes a periculosidade, em
termos políticos.
Portanto, não sendo as disciplinas instituições,
mas antes técnicas, e sendo disciplinar não só toda
sociedade, mas a sociedade toda, o que interessa a
Foucault são essas técnicas disciplinares, mais do que as
descrições particulares de instituições como a Escola,
o Exército ou a Prisão, seus momentos visíveis, pois o
que se torna efetivamente relevante são as técnicas
de sujeição e o que permite opor-se-lhe, a saber, as
técnicas de subjetivação, tecnologias do eu, como
Foucault virá, mais tarde, a chamar-lhes.
As disciplinas dirigem-se a todos, sendo assim
que “a escola cristã não deve simplesmente formar
crianças dóceis, mas deve também permitir vigiar os
pais, informar-se do seu modo de vida, dos seus
recursos, da sua devoção, dos seus costumes”14,

259
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

visando o exercício desse poder difuso e onipresente


a três objetivos simultâneos: religioso (conversão e
moralização); econômico (incitação ao trabalho); político
(luta contra o descontentamento e a agitação).
Sendo a fuga ao trabalho e a preguiça os pecados
mortais da burguesia, é claro que o fim último desse
adestramento é o aumento da produtividade,
inaugurando-se, assim, uma nova teologia moral, que
visa a retificar moralmente a preguiça, essa substância
ética que vem substituir a carne como lugar de pecado
e que, em vez da repressão do eros, pratica, na verdade,
a criação de desejos e a reificação dos corpos e dos
prazeres. No fim, mais que uma técnica de aumento
da produtividade, revelar-se-á uma nova e poderosa
forma de exercício do poder.
Assim, se o próprio da modernidade é a
aparente suavização ou humanização do exercício
do poder, de fato, isso apenas corresponde,
segundo Foucault, a uma mudança de estratégia
patente na abolição das práticas que tomavam o
corpo como alvo da repressão penal, pois, se as
práticas de torturas públicas são abolidas, isso se
deve apenas à premência de construir um novo
paradigma de relações de poder.
O que aconteceu foi que se juntou a
necessidade de adestramento dos corpos para fins
produtivos à caducidade das formas de exercício de
poder que haviam feito da ofensa à pessoa do rei,
fonte de autoridade, norma de toda penalidade.
O novo poder, com sua respectiva tecnologia, é
agora apresentado não como dominação – sentido
negativo –, mas, em sentido biunívoco e positivo15, como
relação, o conjunto de relações que “uns exercem sobre
os outros”16, e caracterizado como a procura do
adestramento dos indivíduos mediante a constituição
de um complexo científico-judiciário que será,
afinal, a arqueogenealogia do sujeito moderno, em que
se entrelaça o discurso científico com a prática
punitiva, interação de uma tecnologia disciplinar e de
uma ciência social normativa17.
Substituindo a tortura do corpo por uma
ortopedia das almas, a destruição do corpo dá lugar à
sua domesticação18; o carrasco é reciclado em técnico
de adestramento19, uma vez que o objetivo não é,
doravante, extirpar um membro (social) gangrenado,
mas curá-lo e prevenir a putrefacção de outros.
Daí a constituição de uma semiotécnica do poder
com novas regras, desde a colaboração entre a

260
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

polícia e a Justiça até a “personalização” das


penas: está-se criando indivíduos e transformando
esses indivíduos em sujeitos (leia-se em objetos).
O locus pedagógico da aplicação da
penalidade é agora o psiquismo, não sendo alheio a
isso o lançamento das bases da Psicologia
Experimental no asilo e na prisão a partir do séc.
XVIII, pois o poder torna-se mais científico, sendo
razoável esperar que a mudança de paradigma
atualmente em curso desloque o controle das almas
para os genes.
Os reformadores humanistas, concebendo o
Homem como uma unidade psicossomática, queriam
que seu saber fosse aplicado à alma, sem descurar,
claro, o corpo. O controle das representações e dos
interesses, ligado ao contrato social e ao imperativo de
eficácia, resultou em receita para o exercício do poder
sobre os indivíduos: “o espírito como superfície de
inscrição, tendo a semiologia por instrumento; a
submissão dos corpos mediante o controle das ideias;
a análise das representações como princípio de uma
política dos corpos bem mais eficaz que a anatomia
ritual dos suplícios”20.
Assim, enquanto fabrica indivíduos
mediante o controle minucioso de seus tempos,
ocupações e gestos e o cuidado com suas diferenças,
o poder disciplinar vai tornando homogêneo o
espaço social; e, se antes se dava como espelho e
modelo, esconde-se agora controlando todos e cada
um, fazendo de cada indivíduo um caso, numa
individuação infinita e interminável, formação
contínua e continuada de identidades. A sociedade
é agora um espaço concentracionário aberto, em que
cada um tem a ilusão de ser diferente, de ser livre e
de ser ele próprio.
Por isso a exclusão já não é para fora desse
espaço social, mas no seu interior. O delinquente, o
anormal da penalidade, não é expulso, mas reciclado,
pois o objetivo é normalizar por meio da disciplina.
Daí que a prisão seja reeducadora e se pretenda a
reintegração daquele que errou, pois, dado que não há
natureza substancial a respeitar, a identidade de cada
um é fruto da aplicação da técnica adequada visando
objetivo eleito.
Se as “luzes” descobriram a liberdade, também
criaram as disciplinas21, e o sonho de libertação da
Aufklärung por meio da razão tornou-se
perversamente o pesadelo climatizado da
racionalização, origem das Ciências Humanas, do
nascimento da Psicologia Forense, das técnicas

261
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

biográficas que criam personalidades e identidades,


enfim, da coligação discurso penal – discurso psiquiátrico,
progenitores do indivíduo perigoso22.
Se muitos gostam de rotular Foucault como pós-
moderno pela crítica que dirigiu à modernidade, ele
próprio nos diz que é por continuarmos em plena
modernidade que as prisões, criticadas há mais de
cento e cinquenta anos, mantêm-se em funções com
algumas melhorias pontuais. Na verdade, elas
produzem um tipo de ilegalismo (ou anormalidade)
controlável, legitimam o controle policial sobre as
populações e os indivíduos, justificando o modelo de
normalidade proposto pelo “poder da classe
dominante”23.
O desenvolvimento dessa tecnologia do
micropoder encontra seu desenvolvimento na
vigilância eletrônica e informática hoje à disposição
das instâncias de controle.

A minha proposta

Para um exercício de análise da pertinência


das categorias buriladas por Foucault para a
reflexão sobre a identidade, que constitui, em
minha opinião, um dos temas fundamentais de
toda a sua obra teórica, nossa sugestão é centrarmos
a atenção num texto autobiográfico de um(a)
hermafrodita publicado sob o nome Adelaïde Herculine
Barbin, dite Alexina B24, encontrado em fevereiro de
1868, num quarto do bairro parisiense de Odéon,
junto ao cadáver de Abel Barbin.
O texto de Alexina B. foi publicado em 1978, pela
Gallimard, na colecção “Les vies parallèles”, dirigida por
Foucault.
Essas vidas paralelas, título pedido
emprestado a Plutarco, tinham uma intenção
diferente da do filósofo grego, pois não se
destinavam a trazer à luz do dia vidas exemplares
propostas como paradigmas, mas vidas de
marginais, de excluídos, modelos de anti-heróis
bem ao gosto de Foucault. E isso porque, como é
sabido, Foucault dirigia sua crítica à sociedade
normatizadora e normalizadora, que exclui, por
definição, o outro, o anômalo, ou seja, o diferente do
modelo proposto.
Tal foi um dos combates do filósofo, sendo
lícito afirmar que uma das grandes linhas
subterrâneas que percorrem toda a sua analítica do
poder (no período em que o definiu como dominação)

262
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

gira ainda em torno do paradigma da exclusão, e que


foi ela que lhe permitiu apresentar a longa família dos
marginalizados da cultura ocidental recente: o louco,
o anormal da razão, identificado como tal segundo a
norma do pensar; o delinquente, o anormal da
penalidade, trânsfuga à norma do agir público; e,
posteriormente, o perverso, o anormal do desejo, o
subversor do agir privado25.
Ora, se “uma sociedade normalizada é o efeito
histórico de uma tecnologia de poder centrada na
vida”26, importará ver como é que a sociedade
moderna tentou normatizar a vida, sobretudo desde
que a sociedade vitoriana inventou a sexualidade.
Foucault não aderiu àquilo que classificou
como hipótese repressiva do comportamento sexual e
que, no quadro da teoria da luta de classes, fundava-
se na convicção de que as classes dominantes teriam
interesse em inibir a atividade sexual das massas
trabalhadoras, tendo em vista canalizar sua energia
libidinal para fins produtivos, funcionando,
simultaneamente, a repressão sexual como um
instrumento da dominação capitalista27.
Para se compreender bem a recusa dessa
hipótese, temos de ter em conta a reelaboração
levada a cabo por Foucault em sua própria reflexão
sobre o poder quando teorizou a passagem do poder
como dominação, ou jurídico negativo, ao poder
como relação, ou técnico estratégico.
Com efeito, é essa reelaboração que permite
compreender por que é que a chamada hipótese
repressiva constitui, para Foucault, uma
interpretação errônea do que verdadeiramente
ocorreu na sociedade ocidental, sobretudo a partir
do chamado puritanismo vitoriano, momento em
que as tecnologias disciplinares, em vez de reprimir,
orientaram o comportamento sexual, pois, na
verdade, o novo poder, agindo positivamente,
procurava canalizar esses comportamentos, em vez
de, negativamente, eliminá-los.
Na verdade, o que está agora em causa é a
passagem das relações de poder para o interior dos
corpos28, de modo a reforçar a sujeição dos indivíduos
e o controle das populações quando, a partir do
interesse nascido pela demografia, o séc. XVIII
relacionou sexualidade e poder.

Foucault diferenciou sexo e sexualidade

Nesse sentido, o sexo, objeto de “um discurso


específico que articula as obrigações religiosas e

263
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

jurídicas do casamento com os códigos de transmissão


de bens e os laços de sangue”29, constitui uma questão
familiar e é remetido a um dispositivo de aliança30 que
estabelece a conexão entre casamento, procriação e
transmissão de riqueza, de propriedade e de poder, ao
passo que a sexualidade, “o conjunto de efeitos
produzidos no corpo, nos comportamentos e nas
relações sociais por um certo dispositivo que releva de
uma tecnologia política complexa”31, é objeto do
saber médico, nascida de uma ruptura entre o sexo e os
dispositivos de aliança, que se reportaria aos prazeres do
indivíduo, a seus segredos e fantasmas, e que se
constituiria, pouco a pouco, como sua natureza
essencial, o núcleo de sua identidade pessoal, sendo,
pois, uma questão individual, que é remetida ao que
Foucault designa por dispositivo de sexualidade.
A importância de toda essa análise baseia-se
na relação que, segundo Foucault, o Ocidente
sempre estabeleceu entre sexo e verdade na definição
da identidade.
Tal conexão, com efeito, já estaria estabelecida
desde a Grécia clássica, onde a verdade e o sexo se
ligavam sob a forma de uma pedagogia que
transmitia, corpo a corpo, um saber veiculado, sem
metáforas, pelos Logoi Spermatikoi, ainda que, no caso
do cristianismo, a verdade e o sexo deixem de ter
uma relação erótica para passar a ter uma relação
analítica, pois, se o outro ainda está presente, já não é
como cúmplice, mas como testemunha, uma vez que a
confissão não é uma entrega de si num ritual de amor,
mas uma hermenêutica do eu, em que a culpa se
substitui à alegria.
Nessa genealogia, a confissão, afastando-se
progressivamente da penitência pública a que estava
ligada e que no cristianismo primitivo a precedia, foi
ganhando autonomia e função própria,
constituindo-se como arquivo dos prazeres,
transformando progressivamente a experiência não
escrita do confessor em arquivo e espólio da Ciência,
sendo as repercussões filosóficas dessa relação de tal
ordem que Foucault julga poder encontrar aí a
justificação para as discussões sobre a
fundamentação subjetiva da ciência, como se o
sujeito produtor de verdade (que se confessa) fosse o
sujeito condição de verdade.
O genealogista vê, portanto, um paralelismo
entre a confissão e a discursividade científica, na
medida em que ambas são modalidades de
produção da verdade do sujeito, pois se no caso da
confissão não basta que ela seja dita, mas é preciso

264
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

que seja validada pelo Mestre da Verdade, Hermes


descodificador que traduz ao que confessa a
verdade de si próprio que se oculta a si próprio, o
mesmo ocorre no caso da Psicanálise, em que o
analista inventa o outro.
Nesse quadro, o grande objetivo da moderna
scientia sexualis seria, então, e sem esquecer a eugenia
nascente, construir um imenso aparelho de produção
do verdadeiro e do falso a partir da progressiva
formação de uma nova ludicidade na relação poder-
verdade passando pelo sexo.
Esses jogos poder-prazer, porém, não visam a
uma verdade qualquer, mas à constituição dessa
verdade fundamental, embora efêmera, que é a
identidade do sujeito moderno, pois, convencendo o
indivíduo de que deve falar para ter acesso à
verdade recôndita de si, ao seu eu profundo, a
confissão moderna (leia-se as Ciências do
Homem, em geral, e a Psiquiatria, em particular)
torna a identidade uma hermenêutica do poder
legitimada pela autoridade do saber, em que a
construção do mesmo é feita pelo outro, uma vez
que essa tecnologia do eu opera a partir da ideia
de que o indivíduo pode, com a ajuda de
especialistas, chegar a dizer toda a verdade sobre
si próprio.
Assim, a hipótese que Foucault propõe como
alternativa à hipótese repressiva é a de um século que,
em vez de recusar o sexo, reifica-o e o instrumentaliza,
inventando uma tecnologia política do corpo,
encruzilhada em que se cruzam poder, saber e corpo,
rebatendo-se, nesse caso, a técnica sobre o uso do sexo,
eleito o locus privilegiado de normalização do
indivíduo. Desse modo, se não há repressão sexual,
mas uma economia política da vontade de saber que
produz, a partir de mecanismos positivos de poder, a
multiplicação do discurso legitimado pela
cientificidade do saber, o sexo e a sexualidade tornam-
se, então, a chave hermenêutica fundamental da
identidade, como Foucault o repete32.

Herculine Barbin versus Abel Barbin

Compreende-se, pois, a importância fulcral


que assume a pequena mas dramática autobiografia
de Alexina B. não só para a/o própria/o autor/a,
como para Michel Foucault, pela simples razão de

265
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

que a vida deste é uma vida paralela à de Alexina B.,


não nos parecendo exagerado, pois, afirmar que
Herculine Barbin é uma das chaves fundamentais
para a leitura de Foucault, que, de outro modo, faz
algo semelhante a seu autor, ao problematizar a
verdade (leia-se a constituição) de si por meio da
experiência gnóstica da escrita de si que é a sua
inteira obra teórica, com particular relevo para a
História da Sexualidade33.
Com efeito, se o séc. XIX, com seu conjunto de
estratégias discursivas e não discursivas (dispositivo),
transformou o que pertencia ao domínio do pecado e da
falta moral e teológica em algo do domínio do normal e
do patológico, inventando a sexualidade onde até então
havia carne, fê-lo apenas para organizar o corpo e o sexo
com vistas aos fins de controle já referidos, dado que o
sexo, tal como Foucault o define34, instância que parece
nos dominar e constituir nossa natureza mais profunda,
não passa de uma extensão da ideia romântica da
libertação de uma natureza oculta existente no interior
de nós.
Efetivamente, argumenta Foucault, o sexo,
uma vez que não está dependente de uma natureza
mas de uma história, é, de fato, apenas um produto
do dispositivo de sexualidade, um elemento
especulativo e ideal35 que o poder organiza com
vistas a orientar o acesso de cada um à sua própria
inteligibilidade, à totalidade do seu corpo e à sua
identidade. É, obviamente, o sexodesejo, não o sexo-
corpo36, uma questão de representação, não uma
questão de anatomia. Estando esclarecido o caráter
não natural mas histórico do sexo, primeiro motor da
identidade, falta esclarecer a diferença entre sujeição e
subjetivação, jogo conceitual correspondente a uma
evolução fundamental no pensamento de Foucault
relativamente à sua concepção de sujeito e de poder.
É sabido que o sujeito, para Foucault, é
resultado de um processo de transformação do
indivíduo, processo gnosiológico e ontológico
análogo ao que ocorre com a transformação de
“coisas” em objetos no interior de um campo
epistêmico.
Ora, se o sujeito não é substância, o que
Foucault faz é apresentar o modo como o sujeito é
joguete dos diferentes modos de objetivação do
indivíduo na nossa cultura, isto é, os “modos de
transformar os seres humanos em sujeitos”37.
Foucault defende que o sujeito pode ser
entendido em dois sentidos: sujeito submetido ao
outro pelo controle e pela dependência, e sujeito
ligado à sua própria identidade pela consciência e

266
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

conhecimento de si, existindo, em ambos os casos,


uma forma de exercício de poder que subjuga e
sujeita38.
No primeiro sentido, trata-se da
heteroconstituição do sujeito, que consiste a) na
objetivação como sujeito falante, produtor e vivo, b) na
partição normal/anormal, padronização que,
conforme a época, reveste as figuras de
louco/racional, doente/são, delinquente/ordeiro, e
constituem o que chamaríamos os modos de sujeição do
indivíduo, quando o indivíduo humano é passivo nos
processos de enculturação que o transformam de ser
sociável em ser social, no contexto das complexas
relações de produção, de sentido e de poder39 que mantém
com os outros.
O sujeito é aí moldado e construído a partir
do exterior de si, sofre uma pressão que visa a
orientar ou a programar suas ações. É a concepção
do sujeito na dependência dessa outra temática
fundamental de Foucault, o poder, num momento
em que este ainda é pensado como dominação, relação
unívoca em que o sujeito é heterogovernado.
No segundo sentido, trata-se da autoconstituição
do sujeito, no quadro do que Foucault designa por
relações de poder, essa referida evolução da concepção
de poder que lhe permitiu criticar a dominação como
forma cristalizada de relação entre os humanos.
Chamar-lhe-emos, com Rabinow, modo de
subjetivação40, para designar a atitude ativa do
indivíduo na sua autoconstrução.
No quadro dessa concepção, o sujeito é visto
como podendo querer ser outro, autoconstituir-se,
governar-se a si próprio, passar da sujeição à
subjetivação, trabalhar no sentido da criação de uma
outra identidade diferente da resultante dos jogos de
saber-poder que ocorrem na História e que
transcendem ao indivíduo. Diz Foucault: “chamarei
subjetivação ao processo pelo qual se obtém a
constituição de um sujeito, mais precisamente, de
uma subjetividade, que é, evidentemente, apenas uma
das possibilidades dadas na organização de uma
consciência de si”41. Esse é o conceito aplicável com
propriedade quando o indivíduo busca
autoconstituir de forma autônoma sua subjetividade e
identidade, exercitando-se na via do governo de si.
Como é evidente, o primeiro sentido (a
sujeição) não consente qualquer veleidade de
autodeterminação, e só o segundo sentido (a
subjetivação) é consentâneo com a possibilidade de ser
outro.
Esse momento corresponde ao da

267
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

problematização do prazer, ao modo como os seres


humanos na nossa cultura se reconhecem como
sujeitos de uma “sexualidade”.
Nesse quadro teórico podemos perguntar:
como é que foi constituída a identidade da/o
hermafrodita?
Sabendo que os movimentos feministas
estabelecem a identidade feminina de base a partir do
conceito de sexo (no sentido de caracteres sexuais
primários) e aproveitam da teoria de Foucault a
panóplia de instrumentos teóricos que explicam o
modo como o poder modela a alma para subjugar o
corpo (a famosa inversão “l’âme, prison du corps”)42, o jogo
anteriormente proposto consistirá em ver como alma,
corpo, sexo, sexualidade, poder e resistência se
conjugam de modo a fornecer uma chave
hermenêutica da identidade de Alexina B.
A biografia pode resumir-se do seguinte
modo: nasceu uma criança cujos pais identificaram,
a partir dos aparentes indícios anatômicos, como
pertencente ao sexo feminino, sendo em
conformidade legalmente registrada.
Educada em colégios para moças, acabou por
fazer um curso de professora primária, indo
posteriormente lecionar em um colégio interno (de
moças, claro), onde partilhava o quarto com a filha
da proprietária da instituição. Alexina B. e a filha da
referida senhora acabaram por se apaixonar e
partilhar a mesma cama e seus prazeres.
Não se trata, porém, de um caso de
homossexualidade feminina, pois nossa Alexina B.
estava anatomicamente dotada de um pênis que lhe
permitia um comportamento sexual de homem.
A situação veio a tornar-se explosiva quando
Alexina B., já com mais de vinte anos, e que nunca
tivera menstruação, queixou-se de fortes dores no
baixo-ventre. Levada ao médico, descobriu-se o
hermafroditismo: pênis, escroto, vagina, mas
ausência de útero. A razão das dores foi que um dos
testículos não descera, na puberdade, para o
escroto, fazendo-o tardiamente. Instalou-se o
escândalo, entretanto abafado.
Alexina B. confessou ao pároco local o seu
problema, mas, em vez da esperada compreensão,
encontrou ódio. Valeu-lhe o bispo da diocese a que
pertencia, acabando tudo por se resolver com a
constituição de uma nova identidade legal, Abel
Barbin, aconselhado a deslocar-se para Paris, na
esperança de que pudesse encontrar uma salvação
para seu tormento psicológico. O fim da história é
trágico: a morte (suicídio) provocada por

268
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

emanações de CO2, oriundas da combustão de


carvão no quarto em que vivia.
Foucault analisou esse texto autobiográfico43
ao explorar a relação entre sexo, verdade e identidade,
mostrando, nessa perspectiva, como, a partir do séc.
XVIII, e contrariamente ao que se passava na Idade
Média, em que a/o hermafrodita, ao chegar a adulto,
e caso pretendesse casar-se, podia mudar de sexo,
desde que não tentasse, posteriormente, recuar na sua
decisão, sob pena de ser acusado de sodomita, o
aparelho administrativo do Estado exige a definição
clara, uma vez por todas, do sexo e,
consequentemente, da identidade homem/mulher,
passando a questão da fixação do verdadeiro sexo do
indivíduo a ser da competência da ciência (a
Medicina) e da jurisprudência (o Registro Civil), dois
correlatos do Poder.
É certo que o séc. XIX, ainda segundo
Foucault, trouxe uma maior flexibilidade à análise
dessa questão, mas o sexo e a identidade continuaram
a orbitar em torno da categoria fundamental de
verdade, sendo por isso considerada uma espécie de
erro (definido como “um modo de agir que não está
adequado à realidade”44) a existência de um homem
“passivo” e de uma mulher “viril”.
Para Foucault, a causa do suicídio de Alexina
B. foi a incapacidade de se adaptar à sua nova
identidade, uma vez que Alexina era um sujeito sem
identidade possuído por um grande desejo de
mulheres. Se, porém, sua anormalidade não era
consentida pelo poder normalizador (talvez uma
das características mais marcantes da racionalidade
peculiar da modernidade), que fazer?
É sabido, e foi importante para Foucault esta
descoberta, que as relações
identidade/sexo/verdade estiveram também na
mira das investigações de Peter Brown45, para quem
“a sexualidade se tinha tornado, nas culturas cristãs,
o sismógrafo da nossa identidade”46.
Com efeito, a tecnologia cristã do sujeito havia
conduzido ao estabelecimento de uma conexão
positiva entre as três variáveis referidas, na
medida em que o crente era convidado a
utilizar técnicas de autoanálise, o célebre exame
de consciência herdado da última filosofia
grega, em particular dos estoicos e epicuristas.
Ora, uma vez que a luta espiritual, travada
no seio do indivíduo, embora sob a orientação de

269
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

um diretor de consciência, consistia em decifrar os


ímpetos da libido, esse combate interior apresenta-
se como uma hermenêutica de si que visava ao
restabelecimento da pureza original do Paraíso
antes da Queda, quando a prática sexual, a existir
(como o admite Santo Agostinho), não seria
motivada por um impulso libidinal de caráter
satânico, mas antes por um abandono total à
vontade divina, consistindo, assim, o pecado não na
atividade sexual propriamente dita, mas na
insubmissão da vontade individual humana à
vontade divina, manifesta na ereção involuntária,
fruto da libidinosa carne.
Todo esse quadro teórico, embora
extremamente aliciante e fecundo no tocante à
decifração da genealogia do sujeito moderno, parece
insuficiente para dar conta da complexidade da
questão da identidade humana, ainda que centrada
no sexo.
Com efeito, se recordarmos as definições de
sexo e sexualidade apresentadas anteriormente,
teríamos que o sexo parece funcionar no registro do
dever, uma vez que lhe está reservada uma função
procriativa no quadro das questões de família, sendo
seu uso regulado pelo Direito, ao passo que a
sexualidade se reporta às questões do prazer, função
afrodisíaca, sendo sobre ela que se exerce a função da
Ciência Psicológica, a quem compete definir o
normal e o anormal, com vistas à constituição da tal
identidade individual.
Parece, assim, que a dimensão propriamente
biológica não é considerada, pois que é à
sexualidade e aos seus dispositivos que Foucault
reserva o papel de gestor dos fantasmas eróticos,
núcleo caótico sobre o qual se organizaria
lentamente um superego modelar e normalizador.
O controle dos corpos é feito, já se viu, por meio
do controle da alma. Entre o indivíduo e ele/ela
próprio/a, instala-se um abismo, sendo a alma,
“efeito e instrumento de uma anatomia política, a
prisão do corpo ”47.
Há, pois, uma diferença entre sujeito e alma
(psyché). Se, com efeito, a psyché é a instância que o
Poder procura trabalhar com vistas à produção do
sujeito, ela parece ser, também, a zona de resistência,
uma vez que inclui o inconsciente. A questão da
resistência é de fundamental importância para a
compreensão da teorização que Foucault fez da
identidade.
Falamos já de subjetivação , no sentido da

270
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

autoconstituição do sujeito, em contraste com a


heteroconstituição, que designamos por sujeição. É
justamente essa possibilidade de autoconstituição,
de ser outro, que nos permite afirmar que a obra de
Foucault não é um mapa do universo
concentracionário do sujeito moderno, ou uma
cartilha determinista da condição humana. Era
convicção de Foucault que o grilhão responsável pela
não liberdade dos Seres Humanos modernos é
justamente o seu apego ao desejo, inteligentemente
explorado pelo poder dominante, e que só
poderíamos nos libertar dessa prisão por meio de uma
nova relação com os prazeres48, só alcançável a partir
de um novo tipo de erótica, um eros pós-desejo49,
construída com base numa ética do cuidado de si, a que
a Filosofia definida como “trabalho crítico do
pensamento sobre si mesmo”50, “uma ascese, um
exercício de si no pensar”51, nos poderia dar acesso.
Essa ética, assente no que poderíamos designar por
princípio da parcimônia no uso dos prazeres, foi
longamente exposta na obra do último Foucault e
assenta-se essencialmente na recuperação de uma
askesis antiga, os exercícios ascéticos dos filósofos
estoicos e cínicos que Foucault apreciava
particularmente.
Infelizmente Alexina B. não conhecia esses
exercícios, e Foucault afirma que sua morte ocorreu
por incapacidade de adaptação a uma nova
identidade.
Quanto a nós, e a fazer fé no relato
autobiográfico, foram o desespero, a solidão, a falta
de amor e a dificuldade da sociedade em lidar com
uma transformação digna das Metamorfoses de Ovídio,
segundo Abel Barbin, as razões que o terão levado ao
suicídio.
Se o sexo anatômica e fisiologicamente era
indefinido, se o indivíduo foi sujeito a uma identidade
que contrariava seu desejo e não teve apoios que o
ajudassem a reconstruir uma identidade outra,
podemos compreender o desejo de fuga de uma tal
situação. Se tivesse havido amor, como o
(auto)biógrafo tantas vezes afirma, talvez tivesse
encontrado no seu psyché forças para assumir no plano
somático o que, segundo alguns, parece ser a
constituição ontológica do plano psíquico.
Assim, posta em confronto com a experiência
psicológica e ontológica da constituição de uma
identidade tal como foi vivida pela/o hermafrodita,
parece que a análise de Foucault peca por
insuficiente, o que talvez se deva ao caráter

271
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

marcadamente androcêntrico52 de sua obra, em que


pese sua reconhecida homossexualidade.
É nossa opinião que, embora fundamental
para a compreensão da construção da identidade
moderna, a teorização de Foucault exige um
enriquecimento conceitual que nos permita dar
conta de algumas outras nuances peculiares da
constituição ontológica do ser humano.
Referimo-nos, por exemplo, às teorias de
uma androginia fundamental dos Seres Humanos
encontradas, entre outros, em Platão e em C. G.
Jung.
Por isso gostaríamos de sugerir a utilização
dos pares conceituais macho/fêmea, homem/mulher,
masculino/feminino, para, fazendo-os orbitar em torno das
categorias sexo, sujeito e psyché, respectivamente,
permitir às/aos interessadas/os uma posterior
análise do tema em debate.
A nossa sugestão é, assim, de que os
indivíduos humanos constituiriam sua identidade
em torno da seguinte tópica categorial:
– sexo (organizador dos conceitos macho/fêmea): sua
natureza biológica, manifesta nos caracteres
sexuais primários;
– sujeito (organizador dos conceitos homem/mulher):
tal como Foucault o define, o locus da sujeição, da
sexuali-
dade, a identidade produzida pelo “poder”, o
superego da psicanálise;
– psyché (organizador dos conceitos
masculino/feminino): locus de resistência à sujeição, o
par de conceitos que, em jogo com o sexo e o sujeito,
permite a subjetivação, o ser outro.

Teríamos, desse modo,

272
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

sexo

sujeito psyché

Possibilitar-nos-á essa trindade conceitual


compreender melhor a complexidade da
identidade humana?
Como nota final, gostaria apenas de dizer
que um dos aspectos que imediatamente ressalta do
texto de Alexia B. (ou será de Abel Barbin?) é a
indecisão do gênero (masculino/feminino) no uso
dos adjetivos e das formas verbais. Ao longo da
narrativa, é clara a dificuldade de se reconhecer e
identificar como homem ou como mulher (ou será
como masculino/feminino?)
O sofrimento provocado pela diferença é
atroz. Não menos pungentes são a já sublinhada
solidão e o desespero confessado após o afastamento
da amada, ocorrido depois da transformação da
identidade oficial.
O texto, em seu dramatismo, não deixa,
contudo, de conter uma afirmação assaz curiosa,
conhecida que é a dificuldade dos homens em
compreender as mudanças de humor atribuídas às
senhoras.
É com essa declaração, não destituída de
interesse sobre o chamado mistério feminino, que
concluímos:
Par une exception dont je ne me glorifie pas, il m’a été donné, avec le
titre d’homme, la connaissance intime, profonde de toutes les
aptitudes, de tous les secrets du caractère de la femme. Je lis dans ce
coeur, à livre ouvert. Je pourrais en compter toutes les pulsations.
J’ai, en un mot, le secret de sa force et la mesure de sa flaiblesse; aussi

273
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

est-ce pour cela que je ferais un détestable mari; aussi je le sens,


toutes mes joies seraint empoisonnés dans le mariage, et
j’abuserais cruellement, peut-être, de l’immense avantage qui
serait le mien, avantage qui tournerait contre moi53.

Notas

Fernando Pessoa, Revista Portuguesa, nº 23/24, 13 de


outubro de 1923.
Ver Jon Simons, Foucault’s Mother , Hekman, J., (ed.),
Feminist interpretations of Michel Foucault, Pennsylvania,
Pennsylvania State University Press, 1996, pp. 179-209.
Trata-se de uma senhora com quem Foucault trabalhou nos
anos da sua formação em Psicologia, e cujo marido fez uma
tese sobre Lacan. Foi a seu convite que Foucault prefaciou
a tradução que ela fizera da obra de Otto Binswanger, O
sonho e a existência, em que o psiquiatra alemão aplicou a
“análise existencial” (Daseinanalytik) do Heidegger de Sein
und Zeit. Cf. Eribon, Didier, Michel Foucault 1926-1984, Paris,
Flammarion, 1991, pp. 62-69, em especial a p. 66. O prefácio
de Foucault pode ser encontrado em Dits et fícrits, vol. I, pp.
65-119 (DE).
Embora possamos encontrar algumas reflexões sérias
sobre a complexidade das relações estabelecidas entre
mulheres no decurso de uma conversa que Foucault
manteve com o cineasta Werner Schroeter a propósitodos
filmes A morte de Maria Malibran e Willow Springs, parece,
contudo, que a atenção de Foucault foi mais atraída pela
análise das diferenças entre paixão e amor.
A morte do Homem foi (re)anunciada por Foucault: “(…) c’est
dans la mort de l’homme que s’acomplit la mort de Dieu”, in TC , p. 127;
“Plus l’homme s’instale au coeur du monde, plus il avance dans la
possession de la nature, plus fortemente aussi il est pressé par la finitude,
plus il s’approche de sa propre mort.”, MC, p. 271; e “L’homme est une
invention d’ont l’archeologie de notre pensée montre aisément la date
récente. Et peut-être la fin prochaine.”, MC , p. 398. Essa declaração
provocou, na época, e sem qualquer justificação, um certo
alarido, pois o tema já fora tratado por André Malraux, que,
na senda de Nietzsche, afirmou: “Pour détruire Dieu, et après
l’avoir détruit, l’esprit européen a anéanti tout ce qui pouvait s’opposer à
l’homme: parvenu au terme de ses efforts, comme Rancé devant le corps de
sa maîtresse, il ne trouve que la mort.”, La tentation de l’Occident,
Paris, Livre de Poche, p. 158.
“Ce n’est pas le pouvoir, mais le sujet, qui constitue le thème générale de mes
recherches”, M. Foucault, Deux essais sur le sujet et le pouvoir,
in Dreyfus & Rabinow, Michel Foucault, un parcours
philosophique, Paris, Gallimard, 1984, p. 298, Le sujet et le
popuvoir, DE, IV , pp. 222-243, p. 223.
M. Foucault, Le retour de la morale, entrevista a G. Barbedette
e A. Scala, DE, IV, pp. 696-707.
“Foucault définit le ‘dispositif’ comme ce qui apparaît quand on a réussi à
isoler ‘les stratégies des rapports de force qui sous-tendent le savoir et vice-
versa’”, Dreyfus e Rabinow, MF, un parcours, p. 178. Com efeito,
diz Foucault: “Le dispositif] (…) c’est (…) un ensemble résolument
hétérogene, comportant des discours, des institutions, des aménagements
architecturaux, des décisions réglementaires, des lois, des mesures
administratives, des énoncés scientifiques, des propositions philosophiques,
morales, philanthropiques (…). Le dispositif lui-même, c’est le réseau qu’on
peut établir entre ces éléments.” M. Foucault, Le jeu de Michel

274
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Foucault, Ornicar? Bulletin pétiodique du champ freudien, nº. 10,


Juillet 1977, pp. 62-93, DE, III, pp. 298-329, p. 299.
“Chacun de mes livres reprèsente une partie de mon histoire. (…) il ma été
donné d’éprouver ou de vivre ces choses”, M. Foucault, Vérité, pouvoir et
soi, DE, IV , pp. 777-783, p. 779.
“(…) affirmer le caractére autobiographique de la pensée, c’est aussi
reconnaître l’anonymat de tout discours, la formule ‘je suis un auteur’
ayant tout autant le sens (…) qui donne son titre au fameux tableau de
Magritte ‘Ceci est une pipe’. (…)”, P. Macherey, Foucault: éthique et
subjectivité, À quoi pensent les philosophes, série mutations, nº. 102,
Paris, Autrement, 1990, pp. 92-103, p. 102.
“(…) L ’extension progressive des dispositifs de disciplines au long des XVIIe.
Et XVIIIe. siècles (…) la formation de ce qu’on pourrait appeler en gros la
société disciplinaire.”, M. Foucault, Surveiller et Punir, Paris,
Gallimard, p. 211. (SP).
“Ces méthodes qui permettent le contrôle minutieux des opérations du corps,
qui assurent l’assujettissement constant de ses forces et leur imposent un
rapport de docilité-utilité, c’est cela qu’on peut appeler les ‘disciplines’”,
Foucault, SP,p. 139.
“On leur demandait surtout à l’origine de neutraliser les dangers, de fixer
des populations inutiles ou agitées (…) on leurs demande désormais (…)
de jouer un rôle positif, faisant croître l’utilité possible des individus”, M.
Foucault, SP, p. 211.
“Ainsi l’école chrétienne ne doit pas simplement former des enfants dociles;
elle doit aussi permettre de surveiller les parents, de s’informer de leur
mode de vie, de leurs ressources, de leur piétè, de leurs moeurs”, M.
Foucault, SP, p. 213.
O poder em sentido negativo é apresentado como o
exercício da dominação, caracterizado por uma total
ausência de relações – portanto, de sentido único. Ainda
assim, gerador de resistência.
“( … ) i l n’y a p a s d e p o uvo i r q u’e xe r cé p a r l es ‘uns’ sur l es ‘a utr es ’”, M .
Foucault, Deux essais sur le sujet et le pouvoir, Dreyfus e Robinow,
op. ult. cit., p. 312.
François Ewald adverte-nos: “Il faut ne pas confondre ‘norme’ et
‘discipline’”. Les disciplines visent les corps, avec une fonction
de dressage; la norme est une mesure, une manière de
produire de la commune mesure”, Un pouvoir sans dehors,
Michel Foucault philosophe, Paris, Ed. du Seuil, 1989, pp. 196-
202, 201-202.
“Une fois pour toutes, Mably a formulé le principe: Que le châtiment, se je
puis ainsi parler, frappe l’âme plutôt que le corps”, M. Foucault, SP, p.
22. A necessidade de preservar os corpos e de os fazer
produzir já tinha sido apresentada em Histoire de la Folie; v., p.
ex., Troisième partie, Cap. II, pp. 427-431: trata-se da
descoberta da população como força produtiva e do
consequente nascimento do célebre bio-pouvoir.
“Par l’effet de cette retenue nouvelle, toute une armée de
techniciens est venue prendre la relève du bourreau,
anatomiste immédiat de la soufrance: les surveillants, les
médecins, les aumôniers, les psychiatres, les psychologues,
les éducateus; (...)”, M. Foucault, SP, p. 17.
“(…) L ’‘esprit’ comme surface d’inscription pour le pouvoir, avec la
sémiologie pour instrument; la soumission des corps par le contrôle des
idées; l’analise des
représentations, comme principe d’une politique des corps bien plus efficace
que l’anatomie rituelle des supplices”, M. Foucault, SP, p. 105.
“Les ‘Lumières’ qui ont découvert les libertés ont aussi inventé les
disciplines”, M. Foucault, SP, p. 224.
“La technique pénitentiaire et l’homme délinquant sont en quelque sorte
frères jumeaux. (…) Elles sont apparues toutes deux ensemble et dans le
prolongement l’une de l’autre (…)”, M. Foucault, SP, p. 259.

275
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

“On peut dire que la délinquance,solidifiée par un système pénal centré sur
la prison, représente un détournement d’illégalisme pour les circuits de
profit et de pouvoir illicites de la classe dominante”, M. Foucault, SP, p.
286.
Herculine Barbin dite Alexina B ., présenté par M. Foucault,
Paris, Gallimard, 1978. Com direção de Hervé Guibert foi
mesmo rodado um filme com Isabelle Adjani no papel
principal, tendo o próprio Michel Foucault
desempenhado um papel secundário.
“C ’est l’innombrable famille des pervers qui voisinent avec les délinquants
et s’apparentent aux fous”, M. Foucault, La Volonté de Savoir, p. 55-
56, (VS).
“Une société normalisatrice est l’effet historique d’une
technologie de pouvoir centrée sur la vie”, M. Foucault, VS, p.
190.
Isso seria particularmente verdade, segundo Wilhelm
Reich, no sistema político-social genericamente designado
por fascismo e, depois, também sob o stalinismo.
M. Foucault, Les rapports de pouvoir passent à l’intérieur
des corps, La Quinzaine Littéraire, nº. 247, 1-15 de janeiro de
1977, pp. 4-6, DE, III, pp. 228-236.
“(…) Un discours spécifique sur le sexe en articulant les obligations
religieuses ou légales du mariage sur les codes de transmissions des biens
et les liens du sang ”, Dreyfus e Rabinow, Michel Foucault, un
parcours (…), Paris, Gallimard, 1984, p. 245.
“On peut admettre sans doute que les relations de sexe ont donné lieu, dans
toute société, à un dispositif d’alliance (…)”, M. Foucault, VS, p. 140.
“(…) ‘Sexualité’, c’est l’ensemble des effets produits dans les corps, les
comportements, les rapports sociaux par unecertaine dispositifrelevantd’une
technologie politique complexe (…)”, M. Foucault, VS, p. 168.
“La question de ce que nous sommes, une certaine pente nous a conduits (…)
à la poser au sexe”, “Dès qu’il s’agit de savoir qui nous sommes, c’est elle [la
logique de la concupiscence et du désir] qui nous sert désormais de clef
universelle”,
M. Foucault, VS, pp. 102 e 103, respectivamente.
Assumimos aqui uma certa consonância com Angel
Gabilondo, que também aceita a existência de uma gnose em
Foucault, nomeadamente em “Moi”: el gnoze de Foucault”,
Anuario de Filosafia, Universidad Autonoma de Madrid, 1986-
1988, pp. 63-81. Divergimos, no entanto, quando o autor
considera Moi, Pierre Riviére (...) a “(...) clave/llave de su [dos
escritos de Foucault] lectura”. Se existe uma chave
(preferimos pensar que há várias), estaria antes em Herculine
Barbin dite Alexina B. Diz Gabilondo a propósito de Moi,
Pierre Riviére (...): “La narración del Sr. Riviére vincula a Pierre a una
determinada identidad. (...) Pierre Rivière [...] se historiza como sujeto
ético (...). No estamos sólo ante la constitución de un yo (je), sino de una
experiencia”. Se nosso juízo é correto, tal asserção aplica-se à
obra em referência, mas, por maioria de razão, a Herculine
Barbin dite Alexina B : não é aí, com efeito, que o sujeito
procura constituir-se, não apenas ética mas ontologicamente
(se em Foucault tal diferença se consente), por meio da
problematização e da escrita da experiência da sexualidade? Fez
Foucault algo de diferente em sua Histoire de la Sexualité? O
texto de Gabilondo aparece inserido no nº. 19 da Revista de
Comunicação e Linguagem , dedicado a Foucault, em tradução de
Bragança de Miranda, pp. 137-149, sob o título “Moi” – o eixo
de Foucault.”
“Le sexe, cette instance qui nous paraît nous dominer et ce secret qui nous
semble sous-jacent à tout ce que nous sommes (…). Le sexe n’est sans doute
qu’un point idéal rendu nécessaire par le dispositif de sexualité (…)”, M.
Foucault, VS, p. 205.

276
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

“Le sexe est au contraire l’élément le plus spéculatif, le plus idéal (…)”,
M. Foucault, op. ult. cit., ibidem.
“(…) le sexe-désir (…)”, M. Foucault, VS, p. 208 .
“(…) Des trois modes d’objectivationqui transforment les êtres humains en
sujets”, M. Foucault, Le sujet et le pouvoir, DE, IV , pp. 222-
243, 223.
“Il y a deux sens au mot ‘sujet’: sujet soumis à l’autre par le contrôle et la
dépendance, et sujet attaché à sa propre identité par la conscience ou la
connaissance de soi. Dans les deux cas, ce mot suggère une forme de pouvoir
qui subjugue et assujetit”, M. Foucault, op. ult. cit., ibidem, p. 227.
“(…) Le sujet humain est pris dans des rapports de production (…) de
sens (…) [et] de pouvoir d’une grande complexité.”, M. Foucault, op. ult.
cit, ibidem.
Paul Rabinow, The Foucault Reader , N. York, Penguin
Books, p. 11.
“J ’apellerai subjectivation le processus par lequel on obtient la constitution
d’un sujet, plus exactement d’une subjectivité, qui n’est évidemment que
l’une des possibilités données d’organization d’une conscience de soi.”,
M. Foucault, L’éthique du souci de soi comme pratique de la
liberté, DE, pp 708729, 706.
“L ’h o mm e d o nt o n n o u s p a rl e e t q u ’ o n i n v i t e à l ib é r e r es t d é j à e n lu i -
m ê m e l’effet d’un assujettissement bien plus profond que lui. Une ‘âme’
l’habite et le porte à l’existence, qui est elle-même une pièce dans la
maîtrise que le pouvoir exerce sur le corps. L’âme, effet et instrument
d’une anatomie politique; l’âme, prison du corps”, M. Foucault, SP ,
p. 34. Ver, a propósito, Judith Butler, Subjection, Resistance
Resignification: between Freud and Foucault, in Rajchman,
John, ed., The Identity in question, Routledge, N. Y., 1995, pp.
229-249, e Bartky, Sandra Lee, Femininity and Domination ,
Routledge, N. Y., 1990, em especial o Cap. 5, Foucautl,
Femininity and the modernization of patriarchal power, pp.
63-82.
Introduction in HerculineBarbin, Being the RecentlyDiscoveredMemoirs
of a Nineteenth Century French Hermaphrodite, N. Y. Pantheon
Books, 1980, pp. VII-XVII, trad. francesa, revista pelo autor,
DE, IV, pp. 115-123.
M. Foucault, DE , IV , p. 118.
Brown, Peter, The Body and Society: Men, Women & Sexual
Renunciation in Early Christianity , N. York, Columbia
University Press, 1988.
M. Foucault, Sexualité et Solitude , DE , IV , pp. 168178, p. 172.
V er nota 26.
“Contre le dispositif de sexualité, le point d’appui de la contre-attaque ne
doit pas être le sexe-désir, mais les corps et les plaisirs”, M. Foucault, VS,
p. 208.
“Eros after desire”, na expressão de Rajchman. Cf. Rajchman
J., Truth and Eros, Foucault and the Question of Ethics, New York,
Routledge, 1991, p. 87.
“(…) le travail critique de la pensée sur elle-même.”, M.
Foucault, UP, p. 14, “(…) la philosophie (…) une ‘ascèse’, un exercice de
soi, dans la pensée.”, M. Foucault, UP, p. 15.
“(…) la philosophie (…) une ‘ascèse’, un exercice de soi, dans la pensée.”,
M. Foucault, UP, p. 15.
Jon Simons fala mesmo de cegueira(para a diferença)de
gênero e de androcentrismo. Ver nota 2.
Herculine Barbin dite Alexina B ., pp. 119-120.

277
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

POSFÁCIO

No livro O que os filósofos pensam sobre as mulheres, Maria


Luísa Ribeiro Ferreira nos convida a reler a história da filosofia
expondo de que forma a mulher é compreendida. O que resulta
é um amálgama de descrições negativas sobre as mulheres e,
muitas vezes, a exposição da ausência do debate na filosofia.
Tanto a ausência, quanto a assimetria na representação da
mulher em relação à figura masculina, pode nos dizer muito
acerca do androcentrismo naturalizado e perpetuado ao longo
da história do pensamento. O que Maria Luísa Ribeiro faz é
expôr esse subtexto para, através do rompimento desse silêncio,
finalmente possibilitar o debate acerca deste tema urgente. A
iniciativa que gerou o livro lançado em Lisboa em 2009, produz
efeitos que ainda ecoam no Brasil em 2021. Nós do GEIMF
encontramos no texto um meio para suprir as lacunas percebidas
nas grades curriculares dos cursos de Filosofia que lecionamos,
na nossa própria formação e um apoio importante no processo
de visibilizar as vozes femininas na filosofia no Brasil.
Atualmente, o passo dado por Maria Luísa Ribeiro nos
possibilita almejar ir além da representatividade – este, que é um
elemento importante para o debate acerca das mulheres na
filosofia. Além de incluir mulheres nos espaços filosóficos,
talvez, a reflexão crítica acerca da história da filosofia e a
denúncia da parcialidade imposta através de uma suposta
universalidade conceitual, nos leve à conclusão de que, mais do
que questionar a representação da mulher no modelo de
produção filosófica tradicional/cânone, a discussão precise
voltar-se também sobre como fazemos filosofia.
A partir da pergunta de Maria Luísa Ribeiro sobre o que
os filósofos pensam sobre as mulheres, nós podemos, então,
perguntar também: o que pensam as filósofas? Dessa forma,
finalmente, seria possível construir um discurso sob nossas
próprias vozes e ressignificar a autoridade de uma tradição do
passado e da busca de referências femininas apagadas da história
da filosofia. Considerando estas perguntas não apenas em
retrospectiva, através da revisão filosófica mas, sobretudo,
prospectivamente, na construção de novos debates. Pois, em que
medida o modo como compreendemos conceitos fundamentais
da filosofia como razão, sujeito, trabalho, democracia, espaço

279
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

público, entre muitos outros exemplos possíveis, não está


construída sob um androcentrismo velado? A inclusão de novas
vozes não se faz efetiva através da inserção no cânone da história
da filosofia, mas apenas através da subversão deste mesmo
cânone.
Percebemos o debate atual acerca das mulheres e a
filosofia, em consonância – e, talvez, em continuidade – com a
crítica filosófica à modernidade. Mais do que um tema esquecido
a ser explorado, a tarefa de compreender o lugar das mulheres
na filosofia significa o aprofundamento do movimento de crítica
à metafísica iniciada por Hegel, investigada pela filosofia
posterior, sob pontos de vista diversos, e em curso na filosofia
contemporânea. Significa uma continuação inevitável do
processo de destranscendentalização da filosofia clássica
europeia. Como resultado desse processo, o pluralismo e
contextualismo ganham espaço na filosofia contemporânea,
confrontando a sua vocação universalista anterior. Esse
movimento de autocrítica não se faz completo sem a reflexão
acerca da pretensa neutralidade do sujeito epistemológico e a
devida compreensão acerca das subjetividades subalternizadas.
O sujeito universal, trajado em vestes de pretensa totalidade e
suposta neutralidade, representativo para humanos como tal,
oblitera as diferenças de gênero, raça e contexto social,
deslegitimando o papel dessas diferenças na formação da
subjetividade. Ao fim e ao cabo, é a imagem do sujeito masculino
europeu – e seu modo de conhecer – que, ao constituir-se como
universal, relega à subjetividade feminina ao caráter de uma
variante secundária. Quando Kant em Resposta à Pergunta: O que
é o Esclarecimento nos expõe o ideal de um sujeito racional e
emancipado, visualizamos esse sujeito como uma mulher?
Atualmente, outras vozes emergem e disputam seu
lugar. Outras subjetividades pretendem também ser
reconhecidas como sujeitos epistemológicos. A crítica decolonial
expõe o elemento eurocêntrico implícito à filosofia. A crítica
feminista aponta o androcentrismo, desnaturalizando o gênero
biológico e desestabilizando a narrativa da filosofia clássica. A
crítica antirracista expõe o subtexto racista da razão iluminista.
O processo é incontornável: precisaremos discutir como incluir
essas vozes na filosofia. Isso implica ir além de expôr sobre como
se falou acerca destas subjetividades até então, ou como não se
falou. É nascente a necessidade de trazer para dentro da teoria
elementos tratados como divergentes, secundários e, por isso,
excluídos da pretensa universalidade. Como articular o discurso

280
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

filosófico para além da epistemologia europeia e masculina, a


partir da qual este articulou-se até então? Esta é uma pergunta
que construiremos as respostas através de passos como o de
Maria Luíza Ribeiro, cuja relevância nós do GEIMF renovamos
através da iniciativa de relançar essa obra no Brasil. E em novos
passos, que seguramente daremos daqui para frente, assumindo
o imenso desafio de não restringir-nos em buscar nossas
representações em outras vozes.
Maria Luísa Ribeiro põe a mulher como uma questão a
ser apreciada filosoficamente, assim como o fez anteriormente
Simone de Beauvoir em seu célebre O Segundo Sexo em 1949.
Beauvoir evidencia como a filosofia auxiliou na definição da
alteridade feminina como segundo sexo na história. A frase a
“humanidade é masculina, e o homem define a mulher não em
si, mas relativamente a ele” (BEAUVOIR, 2009, p.16)
movimentou todo um campo discursivo de busca de nomes das
mulheres apagadas na história do pensamento. A filosofia
tradicional silenciou as vozes femininas, o que mobiliza
atualmente uma certa urgência na busca da construção de um
campo epistemológico e político na área. Uma necessidade de
representação e visibilidade intelectual toma corpo e nos
impulsiona para outras águas. Dessa forma, verificamos que as
filhas e netas de Simone de Beauvoir fazem ainda rebuliço na
construção do conhecimento. A produção na área de filosofia e
gênero, tanto a nível internacional, como nacional é
consideravelmente recente. No Brasil podemos demarcar o início
há mais ou menos vinte décadas, quando a professora Márcia
Tiburi organizou em 2001 o congresso As Mulheres e a filosofia
na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), e que
resultou em 2002 numa publicação pela editora da mesma
universidade. O livro As Mulheres e a filosofia foi uma produção
inédita e que inaugurou, portanto, as movimentações na área de
estudo no país3.

3 Vale ressaltar que a nossa escolha da demarcação temporal do início da

produção filosófica feminista no Brasil, tomando como referência a professora


Márcia Tiburi se justifica pelo fato da obra As mulheres e a Filosofia ter aberto
caminhos institucionais para o debate na área, não tendo como pretensão
abandonar ou inferiorizar as referências intelectuais anteriores como, por
exemplo, a produção da filósofa e ativista/militante Lélia Gonzalez. Gonzalez
inaugurou a discussão sobre interseccionalidade entre gênero e raça no Brasil na
década de 70 e 80, e na militância foi co-fundadora do Instituto de Pesquisas das
Culturas Negras do Rio de Janeiro (IPCN-RJ), do Movimento Negro Unificado
(MNU) e do Olodum.

281
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Percebe-se a relevância da Universidade do Vale do Rio


dos Sinos (UNISINOS) para com esse momento embrionário de
pesquisa neste campo temático a nível nacional, o que irá
preparar terreno para recepção calorosa de outra produção em
2010, o livro O que os filósofos pensam sobre as mulheres organizado
pela professora portuguesa Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Esta
pesquisa nos abriu caminhos novos e, hoje, a produção é sem
dúvidas destaque em qualquer bibliografia de pesquisa referente
ao assunto. A abertura do campo de pesquisa com a publicação
da Professora Márcia Tiburi e nove anos depois a publicação
organizada pela professora Maria Luísa Ribeiro Ferreira,
estruturou a percepção e ação da produção filosófica feminina no
nosso país.
É possível que estes fatos tenham influenciado decisivamente o
início da construção de grupos de pesquisas na área de filosofia
e gênero no Brasil. Destacamos, entre eles, o surgimento do
laboratório de pesquisa Antígona, este ligado ao departamento
de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
coordenado desde o surgimento pela Professora Susana de
Castro (UFRJ), também Coordenadora do GT Filosofia e Gênero
e atualmente Presidente da Associação Nacional de Pesquisa em
Filosofia (ANPOF) no biênio 2021-2022.
No cenário português, a obra da professora Maria Luíza
Ribeiro Ferreira se acentua como pioneira na temática. Como ela
nos afirma na apresentação do texto da primeira edição
brasileira, o projeto de pesquisa Uma filosofia no feminino (1997-
2002) surge por uma indagação levantada em um ciclo de
conferências sobre filosofia, a grande questão era “por que será que
não há mulheres filósofas?”. A professora nos relata que a partir
dessa provocação, houve uma mobilização para construção do
projeto de pesquisa, que até 2016 já tinha sido publicados seis
volumes, e se fortaleceu numa linha de investigação na
Universidade de Lisboa.
Portanto, consideramos de extrema importante a
reedição deste texto para nosso cenário atual. A produção na área
se multiplicou desde a primeira publicação desta obra no Brasil,
e acreditamos que a reedição no momento com tanta pulsação de
vida na área será de grande valia para mais um passo de
consolidação do campo. Esperamos que a Revolução se
aproxime cada dia mais, e que possamos não mais justificar
nosso lugar como produtoras de conhecimento filosófico, mas
que tenhamos respeito e trocas com reciprocidade. Avante,
companheiras!

282
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

ENTREVISTA COM A PROFA. DRA. MARIA LUÍSA R.


FERREIRA

GEIMF. 1. O seu livro responde à pergunta “O que os


filósofos pensam sobre as mulheres”. Porque a escolha de
falar das mulheres através da voz masculina?

Maria Luísa R. Ferreira. A escolha foi feita deliberadamente


para mostrar que os filósofos também têm preconceitos. É
curioso como pessoas que deliberadamente se colocam num
plano diferente daquele que é seguido pelo senso comum, no
que respeita ao tema das mulheres aceitam sem qualquer
reserva o estatuto que durante séculos foi o delas – o de
cidadãs de segunda, circunscritas ao espaço doméstico e às
tarefas do cuidado. É pouco comum analisar o que os filósofos
escreveram sobre a situação feminina. Na realidade nunca se
demoraram muito sobre esse tema mas quando o abordaram
a grande maioria aceitou os clichés dominantes. Exemplifico
com pensadores de várias épocas: Platão, Aristóteles, Santo
Agostinho, Padres da Igreja, Espinosa, Rousseau, Kant,
Nietzsche, Russell, etc.

2 - A ideia de trabalhar uma filosofia no feminino está


necessariamente ligada com o feminismo (ou pautas
feministas)?
Sim, necessariamente nos situamos numa perspectiva
feminista ao querer mostrar o contributo das mulheres no que
respeita à filosofia. É um dever ético pois o esquecimento a
que durante muito tempo foram votadas é incompreensível e

283
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

imoral. Presentemente a situação alterou-se muito, mas


lembro-me que, há vinte anos atrás, quando concorri a um
projeto de investigação da FCT (Fundação para a Ciência e
Tecnologia) a proposta foi aceite pelo seu carácter inovador
em Portugal. Obviamente que nem todas as filósofas foram
feministas mas a recuperação do seu pensamento, mesmo
quando não tratam de problemas de género, é um contributo
para a dignificação das mulheres enquanto pensadoras,
mostrando a sua existência bem como o modo como lhes foi
possível participar num mundo onde durante muito tempo
as vozes masculinas tinham um domínio exclusivo.

3- Além disso, a sua obra escolhe abordar essa questão


através da história da filosofia canônica e europeia. A
questão acerca da invisibilidade das mulheres na Filosofia
não nos suscita também a discussão acerca da ideia de que
a filosofia continental representa a História “oficial” da
filosofia?
O problema levantado nesta questão é pertinente e começa
hoje a ser trabalhado nos estudos feministas que se abrem a
fatores étnicos e culturais. Um campo que começa a dar fruto
nos “women studies” é o da multiculturalidade e dos diferentes
modos de habitar o mundo. A necessidade de respeitar as
diferenças culturais e as mundividências específicas, exigem
uma reflexão simultaneamente de abertura e de justiça. O
caso das mulheres islâmicas, africanas e asiáticas, desejosas
de liberdade mas simultaneamente guardiãs de tradições
seculares que não pretendem esquecer, levanta problemas
interessantes - o uso do véu, os costumes matrimoniais, o

284
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

estatuto do chefes de família, o acesso das mulheres à cultura


e ao mercado profissional, devem ser objeto de reflexão,
numa tentativa de harmonizar tanto quanto possível os seus
direitos em contextos onde eles têm sido ignorados. É um
problema que diz respeito genericamente à filosofa e à
necessidade que nela sentimos de abrir novos horizontes que
de longe ultrapassam a sua matriz europeia e ocidental.

4- Sabemos deste e outros livros publicados, bem como


a construção de uma linha de pesquisa na Universidade de
Lisboa. A professora poderia destacar quais os frutos que o
projeto “uma filosofia no feminino” trouxe ao cenário
português?
Felizmente este projeto não é nem foi único. Há em Portugal
um grande interesse pelos estudos sobre mulheres, não só no
domínio da filosofia mas também no âmbito de outras
disciplinas como a história, a sociologia, a psicologia, a
antropologia cultural e outras ciências humanas. Quando nos
debruçamos sobre os currículos oferecidos pelas diferentes
universidades portuguesas verificamos que o interesse se
mantém. Mas tudo depende do entusiasmo das(dos)
investigadoras(es). Parece-me significativo o facto de a
disciplina de As mulheres na filosofia ter desaparecido do curso
de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa, depois da minha aposentação.

5- Na sua opinião, a visão que os filósofos têm das mulheres


influenciaram ou influenciam os escritores literários na
escrita de suas obras?

285
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

Nunca me debrucei sobre este tema e agradeço a pista que me


levantaram para uma eventual investigação num futuro
próximo.

6- Após tanto tempo de pesquisa, escrita e publicação


sobre a posição (o pensamento) dos filósofos acerca da
mulher, como a professora avalia atualmente a relevância
dessa abordagem para os círculos acadêmicos da filosofia e
além destes?
Como já referi na questão quatro a importância deste tema
depende muito do entusiasmo e da boa vontade do(a)s
investigadora(e)s e da(o)s docentes. Mas o balanço é positivo
pois ele continua presente quer no currículo das várias
universidades portuguesas quer nos projetos de investigação.
Acontece, no entanto, que o interesse é maior no que respeita
às ciências humanas do que na filosofia propriamente dita.
Ao analisar os programas de diferentes cursos universitários
constatamos que os estudos sobre mulheres aparecem
frequentemente no elenco disciplinar das humanidades.

7- Você acredita que é possível a academia romper com


essa estrutura androcêntrica e européia ampliando suas
discussões, pensando sobre novas perspectivas a partir de
grupos que foram silenciados, como mulheres, população
lgbtqi+, população negra e indígenas?
Há um ditado português que afirma: “a esperança é a última
a morrer”. Verifico que nomeadamente nos Estados Unidos
da América e em alguns países europeus onde as emigrantes
têm peso, há bastante investigação alargada a diferentes tipos
de população, nomeadamente lgbtqi+, população negra e

286
o que os filósofos pensam sobre as mulheres

indígenas. Mas verifico, com pesar, que os estudos realizados


se têm processado mais no âmbito das ciências humanas do
que na filosofia stricto sensu.

287

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