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Ministério da Justiça

Arquivo Nacional

ACERVO
R e v i s t a d o A r quivo Nacional

Rio de Janeiro • v. 28, número 1 • janeiro/junho • 2015


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Arquivo Nacional publicado semestralmente, tem por obje-
con, Universidade Salgado Oliveira, Rio de Janeiro, RJ, Brasil /
tivo divulgar a pesquisa e a produção científica nas áreas de
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arquivística. A Acervo publica somente trabalhos inéditos no DF, Brasil / Heloísa Liberalli Bellotto, Universidade de São Pau-
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versidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil /
Presidenta da República Ismênia de Lima Martins, Universidade Federal Fluminense, Ni-
Dilma Rousseff terói, RJ, Brasil / James Green, Brown University, Providence,
Estados Unidos da América / José Bernal Rivas Fernández, Uni-
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José Eduardo Cardozo
Universidade British Columbia, Vancouver, Canadá / Luciana
Diretor-Geral do Arquivo Nacional Quillet Heymann, CPDOC/Fundação Getúlio Vargas, Rio de Ja-
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Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Rio de Janeiro,
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Fluminense, Niterói, RJ, Brasil / Rosa Inês de Novais Cordeiro,
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Resumos Brasil / Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira, Universi-
João Moura E. Marques da Fonseca (inglês) dade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil / Ul-
Vitor Manoel M. da Fonseca (espanhol) piano Toledo Bezerra de Menezes, Universidade de São Paulo,
Projeto Gráfico São Paulo, SP, Brasil
Judith Vieira e Alzira Reis

Diagramação e capa Acervo consta nos seguintes repositórios e sítios acadêmicos


Tânia C. Bittencourt
• Latindex (www.latindex.unam.mx)
Imagem da Capa • Google Scholar
Arquivo Nacional, Fundo Correio da Manhã
BR_RJANRIO_PH_O_FOT_00091_123 • Diretório de Revistas do SEER (IBICT) (seer.ibict.br)

Acervo: revista do Arquivo Nacional. –


v. 28 n. 1 (jan./jun. 2015). – Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 2015.
v. 28; 24 cm

Semestral
Cada número possui um tema distinto
ISSN 0102-700-X
1. Cidade do Rio de Janeiro
I. Arquivo Nacional
CDD 981
SUMÁRIO

| apresentação 6
| entrevista com alfredo britto
| an interview with alfredo britto 9

| dossiê temático

As reformas urbanas na cidade do Rio de Janeiro


Uma história de contrastes
The urban reforms in the city of Rio de Janeiro
A history of contrasts
Antonio Edmilson Martins Rodrigues
Juliana Oakim Bandeira de Mello 19

Um sertanejo na capital federal


Coelho Netto e o Rio de Janeiro dos primeiros anos da República
A "sertanejo" in the federal capital
Coelho Netto and Rio de Janeiro of the early years of the Republic
Leonardo Affonso de Miranda Pereira 54

Tradições culturais e gastronomia carioca


Cultural traditions and "carioca" gastronomy
Mariana de Oliveira Aleixo
Roberto Bartholo 67

O recrudescimento da crise habitacional e a criação de leis de incentivo


à construção de habitações populares no início dos anos de 1920
The intensification of the housing crisis and the creation of laws to
stimulate the construction of affordable housing in the early 1920
Romulo Costa Mattos 86

"São as águas de março fechando o verão..."


Chuvas e políticas urbanas nas favelas cariocas
"The waters of march closing the summer..."
Rains and urban politics in the cariocas slums
Rafael Soares Gonçalves 98
Rio, 40 graus
A disputa pela imagem da capital do Brasil nos anos dourados
Rio, 40 graus [100 degrees F]
The dispute on the image of the former capital of Brazil during the golden years
Carlos Eduardo Pinto de Pinto 120

A cidade do Rio de Janeiro no IV Centenário em algumas páginas literárias


The city of Rio de Janeiro in the fourth centenary in some literary pages
Vicente Saul Moreira dos Santos 132

O que era o trapiche?


O porto e a cidade do Rio de Janeiro no século XIX
What was "trapiche" [warehouse]?
The port and the city of Rio de Janeiro in the nineteenth century
Cezar Teixeira Honorato
Thiago Vinícius Mantuano 144

A fundação do Rio de Janeiro na ocupação régia do espaço vicentino


The foundation of Rio de Janeiro in the royal occupation of the vicentino space
Renato Pereira Brandão 159

O cotidiano de escravos e de trabalhadores livres na Ilha do Governador oitocentista


The daily life of slaves and free workers in Ilha do Governador in the nineteenth century
Judite Paiva Souto 173

A cidade do Rio de Janeiro


Cultura urbana e imagem turística
The city of Rio de Janeiro
Urban culture and touristic image
Amanda Danelli Costa 186

| artigos livres

Diplomática: novos usos para uma antiga ciência (parte V)


Diplomatics: new uses for an old science (part V)
Luciana Duranti 196

História, arquitetura e links


Registros digitais e fontes de arquitetura na cidade do Rio de Janeiro
History, architecture and links
Digital records and architecture sources in the city of Rio de Janeiro
Maria Cristina Nascentes Cabral
Rodrigo Cury Paraízo 216
Serviço Geográfico do Exército
A organização do acervo da biblioteca da 5ª Divisão de Levantamento
Geographical Service of the Brazilian Army
The organization of the library of the 5ª Divisão de Levantamento
Maria Gabriela Bernardino
Mariana Acorse Lins de Andrade
Moema Rezende Vergara 228

Preservação de documentos arquivísticos digitais autênticos


Reflexões e perspectivas
Preservation of authentic digital archival records
Reflections and perspectives
Henrique Machado dos Santos
Daniel Flores 241

O sistema de consulta prosopográfica colonial e a divulgação


de informação documental
Perfil social e trajetórias em Pernambuco, 1640-1822
The prosopography database and the dissemination of documental information
Social profile and trajectories in Pernambuco, 1640-1822
Kalina Vanderlei Silva
Welber Carlos Andrade da Silva
Carlos Bittencourt Leite Marques 254

| resenha
Copacabana, uma história
Copacabana, the history
Luciene P. Carris Cardoso 262

| documento
O álbum das obras do porto do Rio de Janeiro
Uma narrativa visual
Album of the works of construction of the port of Rio de Janeiro
A visual narrative
Maria Teresa Villela Bandeira de Mello 266
A P R E S E N TAÇ ÃO

Nos últimos anos, a cidade do Rio de Janeiro tem sido objeto de um grande número de
intervenções urbanas que, de forma variada, atingiram fortemente o espaço e produziram
questões, tensões, controvérsias e problemas. Essas intervenções fizeram com que as marcas
da cidade, seu cosmopolitismo, sua diversidade cultural e demais aspectos ligados às expe-
riências cariocas adquirissem força, criando condições propícias para a retomada de pesqui-
sas que tomaram como objeto a violência, as formas de sociabilidade, as distintas culturas,
a gastronomia, os planos urbanos, os eventos e deram à cidade uma nova dinâmica, assim
como desenvolveram caminhos que precisam de atenção, estudo e interpretação.
Uma pequena, mas variada amostra dessas pesquisas está presente neste número da
revista Acervo, nas seções dossiê temático, entrevista, documento e resenha, integrando as
comemorações dos 450 anos da cidade.
O dossiê é aberto com o artigo As reformas urbanas na cidade do Rio de Janeiro: uma his-
tória de contrastes, de Antonio Edmilson Martins Rodrigues e Juliana Oakim, que apresenta
um amplo histórico das reformas urbanas e as transformações sociais, políticas e culturais
decorrentes dessas ações.
Também no âmbito das intervenções, a questão da habitação popular é tratada por dois
artigos. No primeiro, Romulo Costa Mattos analisa os debates realizados na década de 1920
em meio às pressões da classe trabalhadora e dos construtores civis. No segundo, Rafael So-
ares Gonçalves destaca o impacto das “chuvas de verão”, presente na formulação de políticas
públicas, especialmente no caso das favelas, nos anos de 1966-1967, 1988 e 2010.
As favelas e outros dilemas da cidade retratados em Rio, 40 graus, de Nelson Pereira dos
Santos, são estudados por Carlos Eduardo Pinto de Pinto, que aborda a recepção e os em-
bates gerados pelo filme. Em outro artigo dedicado à produção artística e à (des)construção
de uma imagem do Rio de Janeiro, Leonardo Pereira analisa as tensões entre o modelo da
cidade civilizada e a cidade real na obra A capital federal, do escritor Coelho Netto. Distante
dessas tensões, a constituição de uma imagem turística da cidade é tratada por Amanda
Danelli Costa a partir da pesquisa em guias e mapas do início do século XX.
A formação de uma gastronomia carioca no século XIX, dividida entre as tradições euro-
peias, indígenas e africanas, é o tema do artigo de Mariana de Oliveira Aleixo e Roberto Bar-
tholo, que apresentam a singularidade desse processo em diálogo com as transformações
da cidade.
Ainda no século XIX, o cotidiano dos escravos e trabalhadores livres na freguesia de Nos-
sa Senhora da Ajuda da Ilha do Governador é abordado no trabalho de Judite Paiva Souto.
Aspectos importantes da história dos trapiches e das operações portuárias são elucidados
por Cezar Teixeira Honorato e Thiago Vinícius Mantuano. O porto em obras, já no começo do
século XX, pode ser visto no álbum de fotos comentado por Maria Teresa Bandeira de Mello
na seção Documento.
Recuando mais no tempo, a fundação da “vila” de São Sebastião do Rio de Janeiro por
Estácio de Sá constitui o objeto de estudo de Renato Pereira Brandão, que discute os limites
entre a normatização régia e a ocupação efetiva do espaço.
De retorno ao século XX, o artigo de Vicente Saul Moreira dos Santos tem como foco as
comemorações do quarto centenário a partir da análise das produções editoriais, com des-
taque para o livro O Rio de Janeiro em prosa & verso, organizado por Manuel Bandeira e Carlos
Drummond de Andrade.
Com o olhar para o futuro, os desafios para o século XXI são abordados na entrevista com
o arquiteto Alfredo Britto, que fala sobre sua trajetória, com destaque para suas iniciativas
em defesa do patrimônio e da cidade.
A revista ainda conta com a resenha de Luciene Carris do livro A invenção de Copacabana:
culturas urbanas e estilos de vida no Rio de Janeiro (1890-1940), de Júlia O’Donnell.
Para finalizar, queremos fazer deste número um presente e, ao mesmo tempo, saldar
parte da dívida que temos com dois daqueles que se estivessem entre nós, com certeza,
estariam presentes neste dossiê. Este número é dedicado a Eulalia Maria Lahmeyer Lobo e
Maurício Abreu, que como vários dos que aqui escrevem, lutaram para que a cidade do Rio
de Janeiro pudesse ter história.

Antonio Edmilson Martins Rodrigues e Angélica Ricci Camargo


entrevista com alfredo britto
an interview with alfredo britto

Alfredo Luiz Porto de Britto é arquiteto formado pela Universidade do Brasil (1961), atu-
almente Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde também atuou como professor
(1973-2005). Desde 2002, atua como professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio). É autor de vários projetos, como o da restauração
do conjunto arquitetônico do Arquivo Nacional e de restauração do Conjunto Residencial
Prefeito Mendes de Morais, o Pedregulho, e de livros, como Arquitetura moderna no Rio de
Janeiro (1991), junto com Alberto Xavier e Ana Luiza Nobre, e Paisagens particulares (2000),
com Felipe Taborda e Tom Taborda. Foi também curador da exposição Rio jamais visto (1998)
no Centro Cultural Banco do Brasil.

Acervo. Vamos começar por sua formação e trajetória profissional.

Alfredo Britto. A minha formação foi na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
que na época chamava-se Universidade do Brasil, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
(FAU). A sede da FAU era na Praia Vermelha, um campus interessantíssimo, muito convenien-
te para o convívio. E isso teve uma influência muito forte na formação de todos nós, porque
havia uma troca não só com os alunos da mesma unidade, mas das outras unidades, com
o pessoal de geografia, com o pessoal de letras, o que favorecia uma visão mais abrangen-
te, democrática e uma participação mais coletiva, mais política, no sentido de integração
e defesa dos interesses da sociedade. Sem dúvida alguma esse fato contribuiu para isso. E
também o curso tinha uma estrutura de turmas, era por ano, não era por disciplina, quando
você faz crédito. A turma tinha um sentido mais coletivo.

Acervo. Isso foi em meados dos anos 1950?

Alfredo Britto. Segunda metade dos anos 1950. Eu estudei exatamente de 1955 a 1961. No
final da minha passagem estudantil pela faculdade houve um movimento de um grupo de

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alunos e professores para transferir a faculdade para o Fundão. Eu me coloquei contra por-
que tinha certeza que aquilo era uma aventura. Não havia condições físicas para a mudança.
A faculdade não estava terminada, não havia infraestrutura adequada, não havia transporte.
E foi isso o que aconteceu. A mudança para o Fundão durante anos foi um sacrifício enor-
me para todas as pessoas que trabalhavam lá. Não havia transporte, pois as pessoas eram
largadas na avenida Brasil e dependiam de carona solidária. Felizmente, eu já terminara o
curso. Ainda fiz o exame final e fui buscar meu diploma lá no Fundão, mas o curso eu fiz
integralmente na Praia Vermelha. Isso foi muito importante para nós, porque vivíamos de
forma muito intensa a transformação que atravessava o Brasil no início dos anos 1960, o
movimento espontâneo da sociedade na transformação cultural por meio do Cinema Novo
no cinema, da Bossa Nova na música, do teatro, da literatura e também da arquitetura. O que
estava se discutindo era a transformação de uma visão da arquitetura que atendia a clientes
particulares para uma visão mais coletiva, que implicava um novo papel da arquitetura na
vida da sociedade.
Aquele momento, entre o vestibular e a faculdade, foi muito importante, porque foi tam-
bém o meu primeiro despertar para a questão cultural e a questão da sociedade. Durante o
vestibular eu fiquei amigo de pessoas que tinham uma formação cultural muito forte, princi-
palmente os colegas judeus. Eles conheciam o Teatro Municipal, tinham lido não sei quantos
autores. Tinha gente já direcionada, como o João das Neves, que ainda é meu amigo. Ele
não fez vestibular comigo, mas foi um amigo dessa época que se dedicou ao teatro e hoje
é um dos nomes mais importantes do teatro brasileiro. Luiz Paulo Conde, por exemplo, que
foi prefeito aqui desta cidade, com quem eu prestei vestibular e logo nos tornamos amigos,
tinha uma formação musical muito forte, que me influenciou bastante. Assim, quando entrei
para a faculdade, eu queria fazer tudo, balé, teatro, cinema. No primeiro ano, eu fundei uma
coisa que não existia aqui no Rio de Janeiro, um cineclube em uma faculdade. E foi impor-
tantíssimo. Eu tinha um amigo, do curso de direito, que também fundou um cineclube na
faculdade, no Caco. Éramos muito próximos, discutíamos, víamos, fazíamos muitas coisas
juntos. E dois anos depois ele se suicidou, foi uma coisa chocante para mim. Nós fundamos
os primeiros cineclubes, o primeiro na Faculdade de Direito e outro na Faculdade de Arqui-
tetura. A gente passava o grande cinema da época, o cinema neorrealista italiano, o cinema
francês. Eu também conseguia curtas-metragens nas embaixadas do Canadá, da França, dos
Estados Unidos, da Inglaterra, o que tinha disponível na época. Nesse período não tinha ví-
deo, era rolo de filme. E eu passei coisas extraordinárias sobre pintura, arquitetura, música...
Foi muito interessante. Nós criamos, também na faculdade, no diretório acadêmico, uma
revista de arquitetura, uma experiência muito rica que contou com a contribuição de vários
pensadores de arquitetura da época.
Minha vida profissional também começou ainda na faculdade. Não era obrigatório,
como é hoje, estagiar em escritório para iniciar a vida profissional. Mas procurei logo cedo
trabalhar, até porque eu também precisava. Perdi meu pai aos quinze anos, e como órfão
de pai e único filho, já que minhas três irmãs eram casadas, fiquei com a minha mãe e tive
que sustentar a casa. A morte do meu pai nos pegou de surpresa, e foi uma coisa um pouco

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trágica para minha família, tanto que eu tive que trabalhar imediatamente após entrar para
a faculdade. E então fiz um concurso público para desenhista do Instituto Nacional de Imi-
gração e Colonização (Inic), que na época era dirigido por integralistas. Por conta disso, não
tinha muito tempo para trabalhar em atividades de arquitetura, mas assim mesmo eu come-
cei a fazer estágio. Fazia concurso para projetos, desenhava para outros projetos, trabalhava
de noite, fazia o que podia para não perder esse contato.

Acervo. Qual foi seu primeiro grande contato com a cidade em termos de intervenção? Nesse
período a cidade passou por grandes transformações, não?

Alfredo Britto. É, mas eu não tinha muito contato com a cidade. Nessa época não. Minha
ligação era do ponto de vista cultural e do ponto de vista político. Nesse momento, eu tive
uma crise porque a minha formação foi toda católica. Eu estudei em colégio católico desde
garoto, no Notre-Dame, que era misto na época. Depois fui para o Colégio Santo Inácio, es-
tive interno um ano no Colégio São José e, em seguida, fui para o Colégio Santo Agostinho.
Quando entrei na faculdade, descobri um outro lado da vida. Eu era amigo de infância de
Leandro Konder, de Rodolfo Konder, seu irmão, e de Ivan Junqueira, todos meus vizinhos.
Era amigo deles desde os sete anos de idade, mas nunca tive contato político. Quando entrei
na faculdade, comecei a conversar com Valério Konder, pai dos meninos, e passei a ter outra
visão do Partido Comunista Brasileiro, e uma indignação com o catolicismo. Então, nesse
momento foi esse contato cultural e político. Não tinha noção da cidade ainda.

Acervo. Quando é que você teve contato com a cidade?

Alfredo Britto. Eu acho que comecei a ter contato com a cidade através da música.

Acervo. Da música?

Alfredo Britto. É, porque teve um fato muito curioso. Após o falecimento do meu pai, eu
tive que ficar em casa um ano, pois naquela época ainda guardava-se luto. Não ia ao cinema,
não podia jogar futebol, que era minha paixão. Eu jogava futebol todos os dias. No luto, não
podia ter esses prazeres. Então devia ficar em casa com uma tarja preta na roupa. Foi quando
descobri o rádio e comecei a ouvir um programa de música americana. Fiquei apaixonado
por Frank Sinatra, Nat King Cole etc. Pelo Nat King Cole eu conheci o jazz e do jazz, o choro,
e conheci Pixinguinha, Jacob... E até hoje eu tenho uma ligação muito forte com o choro.
Através do choro comecei a frequentar as rodas de choro, que na época eram no subúrbio.
Passei então a ver um outro lado do mundo, da própria cidade, e vi que a cidade era muito
mais múltipla. Naquele momento, início dos anos 1960, também começou a surgir uma mu-
dança na arquitetura, de atendimento às solicitações de caráter individual para as coletivas,
para uma arquitetura de caráter social, com preocupação com a habitação e a cidade. Então
passei a ver a cidade de uma forma diferente. Trabalhava no Centro e tinha contato com o
subúrbio através do choro. Depois me liguei ao samba e às escolas de samba, fui de diretoria
de escola de samba, e atuei como jurado de desfiles de escolas de samba por vários anos.
Adquiri um ponto de vista da cidade, conheci uma população que passava o ano inteiro

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envolvida com o trabalho comunitário, com o carnaval que se transformou muito. Na época
era uma coisa impressionante, pois a cidade toda se envolvia com escolas de samba e elas
tinham uma participação social muito grande, representavam um trabalho especial, uma
convivência e solidariedade que eram algo extraordinário. Emocionei-me muito e me en-
volvi demais com aquilo. E isso me proporcionou outra leitura da cidade. Foi a partir dessas
experiências que tive contato com a cidade e não pela Faculdade.

Acervo. É curioso porque naquele momento a cidade passava por inúmeras transformações,
como a construção do Aterro do Flamengo, do Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes,
conhecido como Pedregulho, um projeto premiado e reconhecido internacionalmente. Não se
falava sobre isso na universidade?

Alfredo Britto. Muito pouco. A universidade estava completamente dividida, com professo-
res que tinham uma preocupação predominante em criticar e destruir as imagens de Lúcio
Costa e Oscar Niemeyer, e outros poucos, alguns mais jovens, voltados para o moderno;
dentre esses um foi meu guru, Paulo Santos, que tinha uma visão diferente, de vanguarda,
moderna, que trazia casos brasileiros aliando a defesa das raízes, da tradição com o movi-
mento moderno e transformador. Mas, só fui ser aluno do Paulo Santos no final do curso. E
tinha também uma dificuldade de informação; a informação disponível era muito precária,
não era como hoje que você encontra tudo com facilidade na internet. Na época, a gente
dependia de um amigo que viajasse, trouxesse um livro, que comentasse alguma coisa, que
emprestasse, porque não era fácil comprar revistas e livros estrangeiros. Não só não era fácil
encontrar, como também a gente não tinha dinheiro para tanto. Então era uma formação
precária em vários sentidos. E você vê que nós já estávamos há trinta anos da passagem do
Le Corbusier pelo Brasil, da construção das sedes do Ministério da Educação e Saúde e da
Associação Brasileira de Imprensa (ABI).

Acervo. Quando é que você começou a intervir na cidade e não apenas lê-la?

Alfredo Britto. Eu acho que comecei a intervir na cidade nos anos 1960, ainda estudante,
por todas essas questões com as quais eu me envolvi. Nesse período, me envolvi também
com o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB). Ocupei o cargo de secretário no IAB aqui do Rio
de Janeiro, quando Maurício Roberto era o presidente, e lá comecei a discutir a cidade. Foi
exatamente nessa época que comecei a pensar a cidade.

Acervo. Maurício Roberto chegou a ser diretor da Escola Superior de Desenho Industrial (Esdi),
não foi?

Alfredo Britto. Ele foi o fundador e primeiro diretor da Esdi.

Acervo. E você conheceu a Esdi nesse momento?

Alfredo Britto. Não, só tive notícias.

Acervo. Nem Aloísio Magalhães?

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Alfredo Britto. Aloísio foi meu amigo. Nós éramos muito amigos, mas eu não me envolvi
com a Esdi. Em 1961, como secretário do IAB, fui procurado por três amigos estudantes que
queriam fazer uma revista. Como eles não tinham condições de fazer isso, queriam saber
se o IAB encampava a ideia. Com outro arquiteto, já falecido, o Maurício Nogueira Baptista,
fizemos a Revista de Arquitetura, que existiu até 1972 e era distribuída gratuitamente para
todos os arquitetos do Brasil. A linha dessa revista era discutir o planejamento urbano e a
cidade. Então nesse momento passei a ter outra compreensão de cidade, uma leitura dife-
rente da cidade. Não tinha formação nem informação para fazer isso, mas Maurício Roberto
tinha. Fomos os pioneiros nessa questão da divulgação porque a Revista de Arquitetura abriu
uma outra visão do papel do arquiteto e do papel da arquitetura em relação à cidade. E aí
eu comecei a me ligar, junto com a minha vivência nos subúrbios, ao Rio de Janeiro, com a
cultura do Rio de Janeiro.
Ainda nos anos 1960 abri meu escritório. Logo quando me formei, fiz uma dupla com ou-
tro arquiteto, o Joca Serran, um irmão de vida muito ligado ao planejamento. Fizemos uma
sociedade e depois fundamos um escritório com um terceiro parceiro, o Claudius Ceccon,
e uma visão de planejamento da cidade. A ditadura fez uma coisa equivocada para tentar
resolver o problema da habitação de caráter social, ao criar o Banco Nacional de Habitação
(BNH). E o BNH, pressionado pelos arquitetos, criou uma agência chamada Serviço Federal
de Habitação e Urbanismo (Serfhau), voltada para o problema de planejamento da cidade,
que instituiu uma norma, que depois virou lei, para que todos os municípios com mais de
vinte mil habitantes tivessem um plano-diretor. E no Brasil não havia quem produzisse. Não
havia essa cultura, não havia formação, era um terreno novo. Para aproveitar a situação, todo
mundo procurou prefeitos para pegar projeto, foi uma produção de papel monstruosa. Mas,
nós tínhamos uma experiência, tanto Joca Serran quanto eu, de planejamento e aí criamos o
GAP (Grupo de Arquitetura e Planejamento), para projetar e planejar cidades. Fizemos vários
projetos. Então essa foi minha ligação profissional com a cidade. Primeiro tive uma ligação
de sensibilidade e depois profissional.

Acervo. E como é que você chegou à questão do patrimônio?

Alfredo Britto. Eu cheguei por meio do Paulo Santos. Ele era o mestre da cadeira de história
da arquitetura no Brasil desde o Descobrimento até a atualidade, e eu o substituí, e passei
a ser o professor de história da arquitetura no Brasil do século XIX à contemporaneidade,
quando ele se aposentou. Não imediatamente, mas quando ele se afastou, a cadeira passou
para Augusto Carlos da Silva Telles, que foi uma figura importantíssima na minha vida, na
arquitetura, e para a preservação de nosso patrimônio histórico. Mas Augusto foi chamado
para assumir a superintendência do Iphan. E aí ele me telefonou e pediu para substituí-lo.
Disse-lhe que não tinha prática, não tinha como aceitar uma coisa dessas. Mas ele insistiu
e disse que já tinha me visto dar cursos no Museu de Arte Moderna, no Museu Histórico
Nacional, que eu tinha feito uns cursos muito interessantes, inovadores. Como ainda está-
vamos na metade do ano e eu assumiria as aulas em março do ano seguinte, comecei a me
preparar, a estudar. Peguei todo o material do Paulo Santos, assumi a cadeira e dei aulas por

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trinta anos na UFRJ, de história e de projeto. Foi quando me liguei ao patrimônio, dando aula
de história e também por ser muito amigo de Aloísio Magalhães, que foi diretor do Iphan a
partir de 1979. Aloísio me contratou para fazer alguns trabalhos na área de patrimônio. Nun-
ca entrei para a estrutura do Iphan, mas fiz alguns projetos para a instituição. E desde essa
época começou essa ligação. Depois mais ainda, quando foi formada a estrutura municipal
do patrimônio e criado o Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural do Rio de
Janeiro, para o qual eu fui chamado, lá permanecendo por oito anos. Depois fui chamado
para compor o Conselho Estadual de Tombamento, onde estive por onze anos.

Acervo. Quando você conheceu o Ítalo Campofiorito?

Alfredo Britto. Com Ítalo tive outra ligação, muito curiosa. Eu fui a Brasília, para conhecer a
construção de Brasília. Até dias desses fiquei emocionado de ver na televisão a construção
do Congresso, toda a estrutura metálica sem nada. Estive lá, subi em uma prancha até o vigé-
simo sétimo andar daquela estrutura, amarrado em uma corda. Inesquecível. Bom, quando
eu cheguei a Brasília, não havia nada, nem hospital, nem hotel, nem restaurante. Era poeira
e só. E aí Oscar Niemeyer disse que eu ia ficar na casa de um arquiteto, pois ele morava so-
zinho, e havia espaço. Era o Ítalo. E ele me acolheu praticamente por dez dias em sua casa e
nos tornamos muito amigos até hoje.

Acervo. Ele também ficou muito tempo nesses conselhos, não foi?

Alfredo Britto. Sim. Ele é uma figura que tem uma trajetória importantíssima ligada ao pa-
trimônio.

Acervo. E os seus projetos para a cidade do Rio de Janeiro? Que projetos você acha que te asso-
ciam à cidade? Projetos não apenas no sentido físico, mas coisas das quais você participou.

Alfredo Britto. Eu participei de muitas coisas... E com um bairro também...

Acervo. Depois falaremos de Santa Teresa.

Alfredo Britto. Primeiro, com a questão da defesa do patrimônio. O Palácio Monroe, que foi
uma luta muito grande. Na época liderei, através do IAB, um movimento em defesa do Palá-
cio Monroe. Foram muitos embates, muitos conflitos, porque houve um racha no Conselho
Municipal de Urbanismo entre Paulo Santos e Lúcio Costa. O parecerista do Conselho para a
questão da preservação do Monroe foi Paulo Santos, que fez uma defesa brilhante por sua
permanência. Mas Lúcio Costa se colocou contra o parecer, se colocou a favor da demolição,
e o jornal O Globo também fez uma virulenta campanha a favor da demolição. E nós nos
mobilizamos, tentamos trazer a OAB, o Clube de Engenharia e várias entidades, mas não
conseguimos manter o Palácio Monroe.
Há várias outras histórias. Tem um episódio pontual, que significa muito para essa
questão da cidade e do patrimônio, que é o Castelinho do Flamengo. Era um sábado, e me
ligou um amigo, Nilton Sá, que foi um pintor, do grupo que revolucionou o carnaval do
Salgueiro, do qual eu participei e “virei Salgueiro” por causa disso. Era uma ligação muito

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forte, com Nilton Sá, Arlindo, Fernando Pamplona. Bom, Nilton me telefonou e disse que
tinha um monte de operários no Castelinho e que estavam com tudo para demoli-lo. Ele
me perguntou o que se poderia fazer e eu respondi que ia pensar. E me lembrei logo de
dois amigos, que, com a abertura democrática, tinham acabado de ser eleitos vereadores,
que eram Sérgio Cabral e Maurício Azêdo. Liguei para eles e perguntei o que a gente podia
fazer. Cabral deu logo a ideia de chamar Albino Pinheiro, que era nosso companheiro, funda-
dor da Banda de Ipanema. E Albino resolveu levar uma banda. E aí fomos, Albino, eu, Sérgio
e Maurício para a porta do Castelinho. Quando chegamos lá, Albino começou a falar com os
operários, dizendo que eles eram criminosos, que não podiam fazer isso, ordenando para pa-
rarem imediatamente, dizendo que eles seriam presos etc., e a banda tocando na rua. Como
era um sábado de verão, muitas pessoas passavam para ir para a praia e a gente perguntava o
que elas achavam da demolição do Castelinho. E havia uma divisão, alguns o achavam bonito,
outros, horroroso, diziam que lá viviam muitos usuários de drogas. E a gente conseguiu movi-
mentar o negócio e os operários pararam. Nesse momento, eu estava no Conselho Municipal
de Patrimônio e na segunda-feira fizemos uma reunião com a presidente, que era a Zoé Noro-
nha Chagas Freitas; ela ligou para o prefeito Júlio Coutinho. Ele atendeu a Zoé e marcou uma
reunião. Pelo meu envolvimento fui designado a defender o Castelinho, o que fiz acentuando
para o prefeito seu significado para a arquitetura e para a cidade. A ideia da prefeitura era
demolir o Castelinho e abrir uma outra via para os carros, o que não tinha nenhum sentido. O
prefeito atendeu e ligou para um secretário, pedindo para parar a demolição.

Acervo. Vocês salvaram o Castelinho.

Alfredo Britto. Salvamos o Castelinho. Desse tipo de intervenção eu tive várias participa-
ções. E também defender, no Conselho e em outros movimentos, a cidade de certas trans-
formações que eram danosas. Esperávamos que não ocorressem, mas quase sempre fomos
derrotados. Mas essa história do Castelinho foi interessante, sobretudo no sentido de movi-
mentar espontaneamente a sociedade.

Acervo. Falando em movimentar a sociedade, e Santa Teresa?

Alfredo Britto. Santa Teresa foi um caso de descoberta e de afetividade. Na realidade, a mi-
nha ligação com Santa Teresa é curiosa. Após a minha primeira separação, eu não tinha re-
cursos para montar outra casa, mas tinha que ir para algum lugar. Santa Teresa era um bairro
muito barato em relação a Ipanema. Então resolvi dar uma passada por lá e fiquei impres-
sionado com a qualidade do lugar, os panoramas, o clima gostoso, a afabilidade do pessoal.
Descobri uma vida de cidade do interior dentro da cidade do Rio de Janeiro. Acabei alugan-
do um apartamento lá e imediatamente me apaixonei pelo bairro e comecei a mapeá-lo,
suas entradas e saídas. Na época eu contei 32 entradas e saídas. O bairro era um espetáculo.

Acervo. Todos os caminhos levam a Santa Teresa.

Alfredo Britto. Pois é, em Santa Teresa a gente podia se conectar com a cidade inteira. E era
tudo muito fácil na época, eu ia para a Tijuca em 15 minutos. Teve um período, quando eu

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tinha um escritório junto com Maurício Roberto, em Botafogo, que acordava às seis e meia
da manhã, ia para Ipanema, nadava e caminhava na praia, voltava, me arrumava, lia o jornal
e chegava ao escritório às oito e meia. Santa Teresa foi uma descoberta e eu passei a me ligar
profundamente com o bairro. Nos anos 1970, que foi o período mais intenso da especula-
ção imobiliária, do ataque à cidade pelo negócio imobiliário, facilitado pela conivência da
administração pública, apareceu um grande investidor, a maior construtora da época, que
se chamava Sérgio Dourado, juntamente com outra, a Gomes Almeida Fernandes, e come-
çaram a colocar placas em Santa Teresa: “vende-se”, “compra-se”. Corri para a administradora
da região administrativa, com quem me dava muito bem, e perguntei se ela tinha visto o
que acontecia no bairro e ela respondeu: “Puxa, é o progresso! Santa Teresa agora vai!”. E
eu disse: “Não senhora! É exatamente o contrário!”. E expliquei a necessidade de parar esse
processo, indagando se ela imaginava uma casa se transformando em um prédio com vinte
pavimentos com vinte automóveis, vinte esgotos. Nenhuma rua suportaria. Comecei a fazer
uma campanha em Santa Teresa. Aí um engenheiro da prefeitura, que foi muito importan-
te para esta cidade, o José de Sousa Reis, entendeu a situação e conseguimos encaminhar
uma lei que parava esse processo. E começamos a estimular essa legislação. No começo dos
anos 1980, com a abertura democrática, o vereador Sérgio Cabral (pai) teve participação
fundamental em Santa Teresa, pois elaborou uma lei que é a primeira APA, que era área de
preservação ambiental e hoje se transformou em Apac, área de proteção do ambiente cultu-
ral. E a primeira foi Santa Teresa. A lei deveria ser regulamentada em seis meses pelo prefeito
Marcello Alencar, mas em seis meses nada havia sido feito. Inclusive o Sérgio me nomeou o
representante da comunidade nesse processo de regulamentação. A gente chegou a entrar
com um pedido de impeachment de Marcello Alencar por ele não ter elaborado e aprovado
a regulamentação; mas logo depois disso fizeram a regulamentação. E com ela foram defini-
das as regras para a ocupação e construção no bairro.
Também participei do grupo que fundou uma Associação de Amigos do Bonde, da cria-
ção da Associação de Moradores e Amigos de Santa Teresa, a Amast, que existe até hoje. E
depois tive participação muito importante nos anos 1980, quando a violência se expandiu
por toda a cidade e subiu para Santa Teresa. Eram tiroteios, assaltos, roubo de carros e aca-
baram assassinando uma professora, nossa amiga, na porta de casa, às seis e meia da manhã.
Na missa de sétimo dia o pessoal decidiu fazer alguma coisa e então nos reunimos na casa
da jornalista Renata Bernardes. Foram doze pessoas, e decidimos criar um movimento, o
Viva Santa. Fui indicado para presidente do Viva Santa. Fizemos outras reuniões e esse mo-
vimento foi muito importante, tanto que conseguimos mudar a estrutura da delegacia, que
era conivente com a violência. O chefe do bando que roubava carros era um policial militar,
enfim, várias questões estavam relacionadas à delegacia. Conseguimos que se criasse um
destacamento do batalhão para o bairro, que existe até hoje, e tudo isso se desdobrou em
uma coisa muito interessante do ponto de vista da vida da cidade.
Nesse momento, um casal de artistas me contou uma experiência por eles vivenciada na
Inglaterra. Todos os domingos, em Oxford, os artistas abriam seus ateliês, vendiam comidas,
bebidas, e as pessoas iam visitar e conhecer sua produção. Então havia uma troca, uma con-

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vivência com essa sociedade. E nós do Viva Santa pensamos em fazer isso aqui, porque havia
alguns artistas residentes em Santa Teresa. Liderei esse movimento e descobrimos que havia
muito mais de dez artistas. Marcamos uma reunião e criamos o Arte de Portas Abertas, que
teve uma adesão pequena, porque as pessoas tinham muito medo de abrir a porta de casa
das 11 da manhã às oito da noite. Era uma coisa absolutamente espontânea, não envolvia
prefeitura, nada. E aí foi um sucesso, não houve qualquer acidente, nada que atrapalhasse.
Foram dezessete artistas no primeiro evento, sendo que dois aceitaram dar o número de
telefone para que as pessoas ligassem antes de ir. Foi um sucesso enorme e é até hoje.

Acervo. E hoje existe também em outros lugares, no Morro da Conceição, na Providência...

Alfredo Britto. Sim, em Curitiba, no Paraná. Houve também uma troca entre artistas brasilei-
ros, que foram para Paris, e artistas franceses que vieram para Santa Teresa. No terceiro ano
do “Arte de Portas Abertas” outros artistas, poetas, dramaturgos, dançarinos, reclamaram
que a gente só privilegiava as artes plásticas e pediram para participar também. E pensa-
mos em fazer outra coisa, que se chamou Festival de Inverno de Santa Teresa. O festival foi
um sucesso enorme. Fizemos um palco para shows de música, transformamos o bonde em
palco, os restaurantes se envolveram... Foi um movimento muito interessante, que provocou
uma renovação. Foi quando Olavo Monteiro de Carvalho me procurou e disse que estava
interessado em ajudar na manutenção do festival e trazer o apoio da Prefeitura. Eu disse que
o importante para a Prefeitura era não atrapalhar, mas se quisesse ajudar, o que mais precisá-
vamos era uma atenção maior para a parte de segurança. E conseguimos o apoio. O segundo
ano desse evento foi também um sucesso, mas mostrou outro lado do bairro e percebemos
então que não havia estrutura para um evento desse porte em Santa Teresa. E aí decidimos
não mais realizá-lo.

Acervo. Para finalizar esta entrevista, qual é a sua avaliação da cidade, não só como arquiteto,
mas como morador, dessas transformações que acontecem atualmente no Rio de Janeiro?

Alfredo Britto. Essa questão é complexa. O que acontece, e é muito grave, é que existe uma
falta de visão do desenvolvimento, do crescimento da cidade, que na verdade é um proble-
ma de todo o Brasil. Dos mais de cinco mil municípios existentes, talvez a gente tenha uns
dois por cento de prefeitos que sabem o que querem para a cidade, o que é bom para a
cidade, consultam a população... Tudo é feito a partir de interesses políticos e econômicos.
A cidade no Brasil está se transformando, mas ainda guarda essa visão de pasto de negócios
políticos e econômicos. É muito comum um dirigente, um administrador da cidade, destinar
áreas para um determinado vereador ou praticar um loteamento político e econômico. O Rio
de Janeiro está vivendo isso. Nós temos uma chance extraordinária de reestruturar o Cen-
tro da cidade, mas, veja, por exemplo, o projeto Porto Maravilha. O prefeito convocou três
empreiteiras que criaram um plano chamado Porto Maravilha e aí fizeram uma coisa para
mim inédita, que foi entregar todo o desenvolvimento e participação desta área para um
consórcio, que ficou com a venda da terra, a construção dos edifícios e com o fornecimento
futuro de serviços de água, esgoto e telefone. O destino da cidade está, portanto, nas mãos

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de interesses particulares. Isso pode até trazer benefícios pontuais, mas estará sempre em
função dos negócios e da rentabilidade que possa gerar. Com isso você tem um panorama
assustador. Agora mesmo, com a Copa do Mundo, todos os investimentos foram feitos a
partir de interesses de grupos específicos, como a própria questão do metrô, que gerou uma
grande discussão. É claro que estamos melhores em alguns aspectos. Tem muito dinheiro
sendo investido na cidade, nunca teve tanto dinheiro investido como atualmente, mas não
são obras que estejam estruturando a cidade para um futuro melhor para sua população. O
prefeito não tem essa visão, o que ocorre também em outras cidades como São Paulo. Então,
a visão da cidade como organismo, como ela pode se desenvolver, o que é bom para a vida
da população, em termos de espaço para convivência, espaço para a troca, espaço para se
viver bem, isso não existe.

Acervo. Você está dizendo que o Rio de Janeiro está deixando de ser carioca?

Alfredo Britto. Sem dúvida alguma. Mas você também pode ver que matar o carioca é muito
difícil e a Copa foi uma prova disso. Com tudo contra, obras inacabadas e que são desco-
nectadas, apareceu o carioca alegre, solidário. Então, matar o carioca é muito difícil, mas a
cidade está pressionando para isso.

Acervo. E aí a gente vai deixar de ir à “cidade” para ir ao “centro”, porque o Rio de Janeiro é uma
das poucas cidades que chama o Centro de cidade.

Alfredo Britto. Sim, a gente sempre chamou o Centro de “a cidade”.

Acervo. E esses movimentos de recuperação da Pedra do Sal, Largo da Prainha, por exemplo?

Alfredo Britto. Eles são muito positivos, mas são coisas pontuais e, por isso, desconectadas.
Um dos grandes problemas do Rio de Janeiro é o transporte público. É algo criminoso o que
se faz com a população diariamente, basta você passar pela manhã na avenida Brasil para ter
dimensão disso. E é a grande maioria que sofre com o transporte público, mas o que se tem
feito? Um BRT lá, uma linha do metrô aqui, tudo desconectado. O problema do transporte é
um problema mundial, mas várias cidades têm adotado uma política de fazer a interligação
modal dos transportes. A gente sabe disso. Não se pode ter metrô, ônibus, trem tudo no
mesmo lugar. Não pode ser assim, é preciso articular. E tem que se pensar em outras solu-
ções, como a bicicleta. Todos os países estão pensando nisso, mas aqui não. Aqui, a gente faz
mais do mesmo, desde que resultem verbas fabulosas. Esse é o nosso problema. Tudo tem
sido feito em função de grandes investimentos e rentabilidades.

Entrevista realizada em 29 de julho de 2014,


por Antonio Edmilson Martins Rodrigues e Angélica Ricci Camargo.

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as reformas urbanas na cidade do rio de janeiro
uma história de contrastes
the urbans reforms in the city of rio de janeiro
a history of contrasts

Antonio Edmilson Martins Rodrigues | Professor assistente da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-Rio) e professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Juliana Oakim Bandeira de Mello | Pesquisadora associada do Laboratório de Etnografia Metropolitana (LeMetro/
IFCS-UFRJ). Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

resumo

Este artigo delineia um histórico das reformas urbanas projetadas e realizadas na cidade do Rio
de Janeiro, de meados do século XIX até os dias de hoje, abordando diferentes momentos do
Rio de Janeiro e apresentando a cidade como o exemplo vivo do crescimento em todas as suas
facetas, sejam elas técnicas, produtivas ou culturais.

Palavras-chave: Rio de Janeiro (cidade); reforma urbana; urbanismo.

abstract

This article delineates the history of urban reforms designed and carried out in the city of Rio
de Janeiro, from the mid-nineteenth century to the present day, covering different times of Rio
de Janeiro and presenting the city as a living example of growth in all of its facets, whether
technical, productive or cultural.

Keywords: Rio de Janeiro (city); urban reform; urbanism.

resumen

En este artículo se describe una historia de las reformas urbanas diseñadas y llevadas a cabo en
la ciudad de Río de Janeiro, a mediados del siglo XIX hasta el presente día, cubriendo diferentes
tiempos y presentando la ciudad como un ejemplo vivo de crecimiento en toda su facetas, ya
sean técnicas, productivas y culturales.

Palabras clave: Río de Janeiro (ciudad); reforma urbana; urbanismo.

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Eu agradeço à natureza que me fadou prodigiosamente; Fez-me um prodígio de beleza,
bela entre as belas certamente./Não lhe agradando o paraíso, quis Deus um novo dar ao
mundo: Deu-me essa eterna primavera que tão simpática me torna,/Este calor que me
tempera/É a cordilheira que me adorna/Mas, se por Deus eu fui assim dotada,/Os ho-
mens, esses não deram nada! (Revista Mercúrio, de Arthur Azevedo e Moreira Sampaio,
apud Sussekind, 1986).

Evidentemente sabemos agora em todo o mundo de uma dolorosa malística: a pressa


de acabar (João do Rio. A pressa de acabar. In: ____. Cinematógrafo: crônicas cariocas).

introdução

Quando nos dedicamos a estudar cidades, temos, ao nosso alcance, um conjunto amplo
de proposições interpretativas que vão de avaliações conceituais e teóricas a experimen-
tações, principalmente quando se trata de tomar como temas as reformas urbanas. Neste
artigo partimos da ideia de que são as cidades, em seu dinamismo, que provocam, num
primeiro momento, as necessidades de mudança e, só num segundo estágio, verificamos a
associação a essas necessidades de comandos técnicos, políticos e ideológicos que modifi-
cam o dinamismo inicial na medida em que estão por cima daquilo que são os desejos e as
vontades das sociedades que habitam essas cidades.
Essas chamadas “intervenções” estão sempre presas a certos conceitos de progresso, de
desenvolvimento e, em especial, de civilização, quando nossos olhos estão voltados para
a cultura ocidental. Essa forma de intervir se relaciona diretamente com a noção de que a
cidade é um passo adiante quando se compara com o campo, ou seja, a cidade representa
claramente o momento em que o homem toma consciência de seu papel na transformação
da natureza.
Assim, a cidade é o exemplo vivo do crescimento em todas as suas facetas, sejam elas
técnicas ou produtivas. A Revolução Industrial, de algum modo, dá o primeiro sinal claro
dessa qualidade no âmbito da cultura capitalista, ao opor a cidade industrial à cidade capital
do Antigo Regime.
Mas é essa cidade capital do Antigo Regime que inicia a configuração moderna de ci-
dade, desenvolvendo os modelos expressos pela cultura renascentista e criando uma nova
noção de cultura urbana relacionada diretamente ao conjunto de proposições oriundas da
cultura barroca.
Para tratar uma cidade como a do Rio de Janeiro é necessário ter a atenção para es-
ses procedimentos interpretativos, já que a cidade estabeleceu uma conexão direta, em
sua fundação, com as referências europeias, e só posteriormente viveu um movimento de
alargamento de suas marcas originais, quando se envolveu com as culturas orientais. Nesse
sentido, a cidade do Rio de Janeiro é, em sua origem, uma cidade renascentista nos trópicos
e contém singularidades que, de um lado, acentuam esse vínculo e, de outro, asseguram a
sua história particular.

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Assim, a cidade do Rio de Janeiro possui uma dupla fundação. Ela é francesa e portuguesa,
além de, combinando essas duas culturas, ser uma cidade produto de luta. Em seu chão estão
as marcas de uma luta que define a sua dimensão inaugural. Essas marcas inaugurais definem
as suas funções e os seus usos, dando-lhe a qualidade de lugar de colonos e de centro articula-
dor e irradiador de políticas e de ideias, sobretudo quando, em 1763, se torna capital.
Por desempenhar a função de capital, exerce sobre o restante do território uma força
simbólica e estética que, além de um papel moral e civilizador, desempenha papel de difu-
são de condutas e modos de agir. Essas qualidades a transformaram num microcosmos da
nação, se confundindo com o próprio Brasil (Rodrigues, 2002).
Cidade latino-americana inscrita em uma referência na qual a cidade era um sonho de
ordem – não somente organizar homens dentro de uma paisagem urbana, mas moldá-los
com destino a um futuro (Rama, 1985). No Novo Mundo, com as cidades começadas do zero,
ocorre uma guerra de símbolos na qual vários projetos utópicos se encontram e se vinculam
ao pensamento platônico, seguindo a “convicção de que o processo da razão seria de impor
medida e ordem em todas as atividades humanas” (Rama, 1985). Para Angel Rama, as cidades
no Novo Mundo foram antecipadas por sonhos de futuro.
Nessa ideia de projeção de um futuro, o desenho urbanístico prévio (orientado para um
resultado) torna-se necessário para levar ao futuro almejado: “o futuro que ainda não existe
que é apenas sonho da razão, é a perspectiva genética do projeto” (Rama, 1985, p. 27). As-
sim, antes de existir na realidade, as cidades no Novo Mundo existiam como representação
simbólica.
Esses são os pontos de partida para dar conta das reformas urbanas: conhecer as quali-
dades singulares da cidade. Isso se torna necessário porque boa parte das ideias de reforma
que abordaremos vão dialogar com essa história, para o bem ou para o mal. Desse modo, no
caso da cidade do Rio de Janeiro é importante compreender que, por conta das marcas de
origem, ela constituiu tradições que se mantiveram como linhas de força de seu desenvolvi-
mento e que constantemente bloqueiam determinadas intervenções, assegurando, de certa
forma, a manutenção das referências primeiras.
Mas, vamos em frente e olhemos as reformas urbanas.

reformas pereira passos

Pode estranhar o uso de reformas no plural quando se trata de Pereira Passos, mas aqui o
plural significa que a chamada “reforma Pereira Passos” é uma luta entre tendências e interes-
ses diferentes que se apresentam na forma de proposições urbanas que, ao fim, se combinam.
Tomaremos como referência as duas linhas principais das reformas urbanas da cidade en-
tre 1902 e 1906, sabendo de antemão que seus conteúdos já estão presentes em ações e ati-
tudes que remontam à década de 1870, quando, ao lado da introdução dos temas da abolição
e da República, se desenham desejos civilizatórios mais concretos, na linha das reformas ur-
banas europeias que tiveram como modelo as reformas francesas de Haussmann. Porém, isso
não quer dizer que concordemos com a ideia simplificadora de que o Rio de Janeiro imita Paris.

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A década de 1870 representou um momento novo para a cultura brasileira. Os intelectuais
renovaram as suas ideias com relação ao Brasil e passaram a recepcionar mais criticamente as
ideias europeias. Esse movimento terminou por propiciar um arejamento das ideias e encami-
nhou uma forte produção de temas que continham a proposição de conhecer o Brasil.
Esse clima de reformas atingiu todos os setores e deu início a um conjunto de ações que
tinham como objetivo tirar o Brasil de seu sono colonial. Não que a cidade continuasse sen-
do colonial, há muito tempo que as intervenções davam à cidade um ar cada vez mais civili-
zado, resultado das recepções que se fizeram das tendências novas de produção da cultura,
especialmente do romantismo germânico, e dos ideais de Estado-Nação.
Era fundamental dar à capital um ar cada vez mais cosmopolita, retomando tradições
antigas e eliminando a mancha da escravidão que em muito contribuía, na visão de alguns,
para dar à cidade um ar colonial. A ebulição em torno de uma cidade capital moderna, assen-
tada em bases novas, se intensifica na década de 1870 quando se constituem as comissões
de melhoramentos e se torna fundamental reformar o porto do Rio de Janeiro, como modo
de intensificar a economia e os negócios com os mercados internacionais.
Desde logo, se observa que há duas linhas de argumentos vinculadas ao processo de
reforma da cidade. Uma que se orienta pela manutenção da força da economia agroexpor-
tadora e outra que toma a cidade como referência, procurando dar a ela o sentido do mo-
derno, que se constituiria pela independência cultural e pela produção de ideias brasileiras.
Mas, para que se entenda melhor esse movimento, vamos recuperar a história.
A década de 1870 configura o início sistemático de um processo de modificação no es-
paço urbano carioca. A expansão demográfica e o crescimento industrial, especialmente do
setor têxtil, indicam alterações no funcionamento e na distribuição da sociedade carioca.
Para além de sua composição social e étnica, outros elementos explicam essa nova con-
figuração: crescimento do setor de serviços, aumento das condições de acesso à riqueza em
função do surgimento do mercado de trabalho livre, ampliação das oportunidades comer-
ciais – que consequentemente aumentam os investimentos no setor mercantil, reforçando a
sua dominância e garantindo a expansão das manufaturas e dos ofícios –, crescimento dos
transportes e da circulação, ampliação dos setores ligados à construção civil e obras em ge-
ral e intensificação da política de migrações.
Como qualquer outra metrópole civilizada, esses problemas resultam da expansão
dos valores do progresso e acentuam a complexidade da autoridade pública, encarada
como agente de manutenção da segurança da população e base de todo o processo de
regeneração. A operação de limpeza da cidade passou a incluir também o afastamento
das “classes perigosas”, da nação subterrânea, daqueles que enfeavam a cidade e provo-
cavam tumultos, entendidos como manifestações de uma “barbárie colonial” (Sevcenko,
1983).
Numa sociedade onde não foram construídos mecanismos de representação política e
de cidadania, a distância existente entre as manifestações públicas do Estado e a forma de
ordenamento da sociedade dá à polícia uma função civilizadora, definindo-a como interme-
diária entre a população urbana e o governo.

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Para que essa dimensão de civilização se torne aparente, além da ação policial, era preci-
so cuidar de alguns outros aspectos: como a falta de um plano urbanístico que definisse sua
vocação de futuro em confronto com o passado colonial; a falta de luz elétrica, de esgotos
e de água pura; a questão da habitação, associada à da higiene, em função das doenças e
febres que assolavam a cidade, no inverno e no verão, dando-lhe um aspecto de atrasada.
No ano de 1870, uma postura municipal estabelece parâmetros em relação à higiene
das habitações: um “fiscal” é autorizado a verificar se nos quintais de todas as habitações
existiam “imundícies” ou quaisquer objetos que “possam prejudicar a salubridade pública”
(Ferreira Rosa, 1954).
Entretanto, desde 1855, a cidade assiste ao experimento dos esgotos. A Casa de De-
tenção é o objeto da experiência feita pela The Rio de Janeiro City Improvements Limited.
O resultado é positivo e, em 1870, o serviço é estabelecido nos bairros do Catete, Gávea,
Botafogo, Centro e Cidade Nova, ampliando-se até 1875, para Catumbi, Laranjeiras, São Cris-
tóvão e Engenho Velho. A iluminação a gás e o abastecimento de água seriam introduzidos
nas áreas nobres da cidade em 1872 e teriam relevância na Exposição Internacional de 1873:
“uma demonstração da vocação nobre e civilizada da cidade” (Macedo, 1943, p. 34).
Enfim, todas essas modificações introduzidas no espaço urbano acabam por expandir a
cidade e começam a dela excluir aquilo que não pode mais conviver com a modernidade.
Essas mudanças, porém, se, por um lado, atendem às demandas dos setores dominantes
da sociedade carioca, por outro, não configuram nada que se possa definir como um plano
organizado de reformas. São apenas melhorias necessárias a uma capital que aumenta sua
população, recebe a “fina-flor” da intelectualidade política nacional e se apresenta como o
centro político e cultural do Brasil.
As casas de modas crescem – Notre Dame, Salgado Senha e América e China; destacam-
se as livrarias que anunciam o crescimento cultural – Garnier, Laemmert, Faro, F. Alves, Cruz
Coutinho – e as confeitarias dão o tom do que é moderno nas suas fachadas e interiores,
como a Confeitaria Colombo, fundada em 1894.
Mas, por mais paradoxal que pareça, ao lado de todo esse movimento civilizatório, e
mesmo por causa dele, na área central assiste-se ao crescimento de vendedores ambulantes
e de ofícios menos prestigiosos, como por exemplo, o passeio dos perus, os vendedores de
flores do largo de São Francisco e o comércio de verduras e de leite. A cidade ainda está in-
definida, caminha cambaleante em direção ao moderno.
O Centro é o lugar do barulho e da multidão. Contudo, carrega em si a marca do trabalho,
o encontro de todos os tipos que caracterizam sua complexa estrutura social. Isso porque
convivem, lado a lado, as diversas dimensões de vida da cidade – miséria e esplendor moder-
no da riqueza –, maculando o esforço do progresso. A cidade e, principalmente, seu Centro
são um grande bazar, muito mais próximo das cidades orientais do que das europeias, idea-
lizadas pelas elites modernizantes e empreendedoras.
Mas, é necessário fazer a derradeira tentativa de regenerar a cidade. Alguns bairros vão
se formando na periferia dos antigos. Os abastados começam a tentar diferenciar o ambien-
te de trabalho do lugar destinado ao lazer e à família. As casas são cada vez mais amplas

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e sua arquitetura, sofisticada, revela um lado europeu que, através da incorporação da art
nouveau, determinará a visualização do progresso e do futuro, aproximando-se da vida ur-
bana das capitais europeias.
Toda essa movimentação de pobres e ricos aumenta o consumo e amplia as necessida-
des de abastecimento. Contudo, é impróprio continuar a ter o Centro da cidade como o lugar
por excelência do moderno, como o espaço de realização dessas trocas. A ideia de urbanida-
de não se coaduna mais com a existência de terrenos onde se criam animais – mesmo que
estes sejam pensados como instrumentos de desenvolvimento da viação urbana –, nem com
a agitação, o suor e a gritaria características da região.
A ideia de urbanidade, pelo contrário, significa sossego e tranquilidade para que se efe-
tuem negócios de alto nível que não sujam e nem fedem. O imaginário da beleza é concebi-
do como o único elemento da modernidade, e indica, portanto, a falta de competência das
elites para dar conta do movimento que é resultante do progresso. Pela primeira vez há uma
consciência do viver urbano e da urbanização.
Uma das expressões mais destacadas nesse momento de “confusão” de tendências de au-
mento da circulação na cidade são os quiosques. Explorados por portugueses, os quiosques
pertenciam a uma empresa cujo presidente era o barão de Ibirocaí – Freitas Vale. Funcionavam
como lugares de consumo popular. Sua clientela eram os trabalhadores braçais e os guardas
noturnos. Criando um clima de aumento da confusão e transmitindo odores que tornavam a
cidade conhecida pelo seu cheiro de gordura, os quiosques exemplificavam a pressa do pro-
gresso, uma vez que constituíam a base de sustentação dos operários das reformas.
Iniciava-se a construção de uma capital europeia na imaginação das elites cariocas. Os
jornais, agentes brilhantes dessa construção imaginária, anunciavam as novidades e forma-
vam opiniões a respeito. Tudo fervilhava no Rio de Janeiro. A ideia de uma cidade da “razão”
(letrada e ilustrada) começa a tomar forma.
Assim, a libertação dos escravos e sua disponibilidade para o trabalho agitam a vida
urbana, num momento em que ela também tem disponibilidade para recebê-los. As com-
panhias de bondes, de eletricidade, de abastecimento de água e da construção civil são
algumas das outras empresas que utilizam essa mão de obra, incorporando-a ao mercado
do trabalho livre.
Nesse aspecto, a abolição traz para a cidade algo de novo. A maneira de a cidade dar
conta dos negros libertos produz uma euforia cultural, civilizatória e econômica que legitima
o caminho das reformas, uma vez que atesta a verdade do discurso da ordem e do progres-
so. Acentua-se o cosmopolitismo. Afinal, sem escravos, a urbanidade é mais clara e a cidade
define-se enquanto a “vitrine do trabalho”.
A cidade assume, então, uma função exemplar para o restante do Brasil. É através dela
que os hábitos civilizatórios penetram no interior, levando a modernidade para todos os
cantos do país.
A República é, caracteristicamente, a retomada do sossego, ao enquadrar esses novos
modos de existência. O projeto republicano mostra sua espessura conservadora, expressa
na necessidade de retomar a direção sobre a sociedade numa perspectiva que não é nem

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tão antiga quanto as “permanências coloniais”, mas também não tão nova quanto o que se
vislumbrava. Nesse sentido, a República organiza a “regeneração”.
O resultado é, em síntese, o embelezamento da cidade. Em 1891, intensificam-se as proi-
bições de hortas e capinzais no centro urbano e, no ano seguinte, produzem-se as posturas
que têm como objetivo conter a ampliação das habitações coletivas. Uma dessas posturas
destaca a “irregularidade arquitetônica” provocada pela construção dos cortiços, considera-
dos como um traço colonial, e estabelece sua proibição entre as “praças D. Pedro II e Onze de
Junho, inclusive entre as ruas Riachuelo e Livramento” (Broca, 1975).
Mas essas renovações só poderiam ser satisfeitas se a cidade tivesse autonomia para
realizá-las. Até 1892, a administração da cidade era feita dentro do quadro da administração
central do Brasil, portanto sem autonomia municipal, o que prejudicava o seu desenvolvi-
mento. Em 20 de agosto de 1892 é definida a autonomia do Distrito Federal, que passa a
ter governo próprio. Barata Ribeiro é o primeiro a ser indicado como prefeito. Ele começa a
desencadear as mudanças, tentando estabelecer a vocação moderna da cidade.
Barata Ribeiro, por exemplo, reforma a Praça XV, intensifica a vigilância sobre a higiene e
o saneamento, e controla as habitações coletivas da cidade, entendidas como sínteses da fal-
ta de higiene e do crime, ou seja, marcos da barbárie. A ação contra os cortiços é tão intensa
que passará a ser um dos elementos centrais de sua administração.
O caso mais célebre, festejado intensamente pela imprensa, foi o da derrubada da “Cabe-
ça de Porco” – denominação de um cortiço que ficava atrás da Central do Brasil, onde hoje é
o túnel João Ricardo. De proporções imensas, lá residiam cerca de quatro mil pessoas, “entre
capoeiras e criminosos”, e dele diziam ser de propriedade do conde D’Eu:

Então, na noite de 26 de janeiro de 1893, Barata, acompanhado de cavalaria, infantaria


e polícia civil, apareceu diante da ‘Cabeça de Porco’ com uma turma de operários e man-
dou começar a demolição. Saiu gente que não acabava mais. Gente e bichos, carneiros,
burros, cavalos de cocheiras ocultas no meio das moradias. Uma rua, tapada pelas casas,
foi reaberta. Houve protesto, ameaças e choros. O prefeito ficou firme no local até as
6 horas da manhã. Regressou empoeirado, sonolento, exausto – mas a Barata roera a
Cabeça de Porco (Macedo, 1943, p. 62).

A Revista Ilustrada, de fevereiro de 1893, versejava:

Era de ferro a cabeça/De tal poder infinito/Que – se bem nos não pareça –/Devia ser de
granito./No seu bojo secular/De forças devastadoras/Viviam sempre a bailar/Punhais e
metralhadoras./Por isso viveu tranquila/Dos poderes temerosos/Como louco cão de fila/
Humilhando poderosos./Mas eis que um dia a barata,/Deu-lhe na telha, almoçá-la/E as-
sim foi – sem patarata – /Roendo, até devorá-la (apud Macedo, 1943, p. 63).

O caso denota o espírito das reformas e as pressões exercidas sobre as populações po-
bres, no sentido de limpar a cidade de tudo aquilo que representa o “casco colonial”. Afastar

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os pobres do Centro e não deixar que penetrem nos espaços nobres são os objetivos de
praticamente todos os prefeitos da cidade até Pereira Passos.
O século XX é para a cidade capital o momento de sua definição institucional e cultural.
A vocação de “grande capital européia” se delineia; trata-se agora de organizar sua estrutura
urbana para garantir essa vocação, uma vez que ela já é europeia no imaginário das elites
empreendedoras. Mais uma vez, assiste-se à implantação de uma “regeneração” que exclui
os segmentos tradicionais da sociedade. A cidade vai, aos poucos, deixando de ser colonial.
O caminho da renovação é agora idealizado, enquanto plano racional, ou seja, politiza-
do. Já com Felipe Pereira, em 1900, a prefeitura havia desenvolvido a “planta cadastral”, que
possibilitava ao governo o conhecimento de cada milímetro da cidade e que se definia como
um instrumento de controle da circulação de homens, ao permitir a percepção do movimen-
to da população, sua direção e nova localização.
Nicolau Sevcenko, ao abordar a temática da modernização da cidade, destaca a inau-
guração da avenida Central (atual avenida Rio Branco) e a lei da vacina obrigatória como os
marcos iniciais da mudança, da regeneração da cidade, do país.
Para a compreensão desses fatos é preciso entender o significado mais amplo das mudan-
ças. Para Sevcenko, temos que levar em conta: (a) a existência da hegemonia de padrões con-
servadores no trato da modernidade e na fixação dos limites da mudança; (b) a regeneração
nos quadros de uma economia exportadora que se vincula à economia internacional através
do porto, sem que necessariamente todas as dimensões estruturais do modelo burguês este-
jam contidas na modernização; (c) que a condição de realização da “regeneração” dependia,
de forma absoluta, da atuação do Estado; (d) a ideia de que a implementação da “regeneração”
já está contida na administração da cidade, pelo menos desde 1870 quando se constrói um
projeto de cidade do futuro; (e) que o século XX apresenta condições próprias para a explosão
do projeto de regeneração, especialmente porque já estava legitimada a ação da instituição
policial pela participação que tinha na eliminação de projetos alternativos de cidade e pelo
lugar que assume como realizadora da civilidade (Sevcenko, 1983, p. 28).
As reformas, além de indicarem que a atuação, mais patriótica, da população urbana – e,
por isso mesmo, política – é defender o progresso da cidade, atualizam uma determinada
inserção nacional, bem como a ideia do futuro da nação, através do futuro da cidade.
Se a ideia de ordem, até então, era definida pelo contraste com a desordem, agora havia
um projeto que, ainda que vinculado ao embelezamento da cidade, demarcava com clareza
os interesses políticos e econômicos do bloco dominante. A tendência higienizadora dessas
comunidades retrata bem a penetração do mundo civilizado e estabelece a unidade familiar
como o instrumento de controle do asseio.
A cidade, palco dessas mudanças, adquire uma vida cultural e artística intensa. É o tempo
das conferências, do desenvolvimento da imprensa, do aparecimento do automóvel. Todos
querem viver a época dourada da cidade e, se possível, como literatos e homens de letras.
Tudo aquilo que acontecia em Paris, pode acontecer no Rio de Janeiro. Viena e Londres fica-
ram mais perto e são temas de conversas em confeitarias e restaurantes. Nos salões elegan-
tes, e mesmo nos mais modestos, fala-se francês e inglês, sinais de um novo tempo num país

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de analfabetos. Recitam-se as últimas poesias e a moda é a mesma da grande capital Paris.
Até o café é substituído pelo chá às cinco da tarde. A cidade aburguesa-se e moderniza-se.
Nicolau Sevcenko, com muita propriedade, acentua essa defasagem através de quatro
princípios fundamentais, normatizadores das mudanças:

1o a condenação dos hábitos e costumes ligados pela memória à sociedade tradicional;


2o a negação de todo e qualquer elemento de cultura popular que pudesse macular a
imagem civilizada da sociedade dominante; 3o uma política rigorosa de expulsão dos
grupos populares da área central da cidade, que será praticamente isolada para o des-
frute exclusivo das camadas aburguesadas; 4o um cosmopolitismo agressivo, profunda-
mente identificado com a vida parisiense (Sevcenko, 1983, p. 10).

O ano de 1903 é decisivo. Pereira Passos é indicado prefeito. Imagem viva do novo tem-
po, mesmo já tendo setenta anos, ele é um empreendedor, homem de comando e decisão.
Além disso, proprietário da Estrada de Ferro do Corcovado, membro ativo do Clube de Enge-
nharia, estudou na França, e ajusta-se perfeitamente ao que a cidade precisa. Enfim, para os
setores dominantes é o exemplo límpido da regeneração. Pereira Passos ganha de Rodrigues
Alves plena autonomia para realizar as mudanças. E as realiza a fundo, chocando-se, por ve-
zes, com muitos dos interesses das elites dominantes. Isso provocou reações que abalaram a
vida política da cidade, principalmente no que concernia às questões de propriedade.
As reformas continuam. O barulho e o movimento, distantes do mundo do trabalho,
provocam as pessoas, mas é o sinal do novo, do progresso. A cidade civiliza-se. É cortada em
todos os sentidos. Todos os lugares são afetados ao mesmo tempo. Muitos não acreditavam
que fosse possível acabar a obra. O medo do fracasso aumenta a polêmica. Necessitava-se
acabar com as desconfianças.
Nesse contexto, ganham importância os laudos científicos e três instituições funcionam
como respaldadoras do progresso e avaliadoras do término das reformas: (a) o Clube de
Engenharia, que movimenta a “elite técnica” e se assenta nas figuras de Paulo de Frontin e
Francisco Bicalho, além do apoio de Lauro Muller, e institui as leis de desapropriação; (b) a
Saúde Pública, através de Oswaldo Cruz, que define os critérios de civilidade e atua como
instrumento de controle da vida social, estabelecendo padrões mínimos de higiene e sane-
amento para a cidade e sua população; e (c) a Polícia que cria as condições de defesa dos
padrões burgueses de educação e garante a renovação. Ademais, a Polícia, com uma nova
estrutura, amplia suas funções e ganha condições de cobrar as posturas municipais e de
cuidar do despejo das áreas desapropriadas.
A impressão que se tem das reformas é de que elas aconteciam enquanto todos eram
tomados de surpresa, ou seja, a população olhava, sem entender, as modificações que des-
truíam parte das áreas antigas da cidade. A imprensa, que, como vimos, se colocara contra
o “bota-abaixo”, não perde a oportunidade de se manifestar. João do Rio, com sua “finória
crítica”, alude aos acontecimentos da seguinte maneira: “Como queres tu originalidade, onde
tudo é igual ao que há em outras terras? As avenidas são a morte do velho Rio. Esse mercado

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fechado e higiênico pode ser aquela antiga praça centro da miséria, da luxúria viscosa, de
tantas e tantas tradições” (João do Rio, 1952, p. 23).
Para Pereira Passos e sua equipe de ilustrados, estava claro que a estrutura urbana, ain-
da tipicamente colonial, não se adaptava ao movimento da expansão mercantil. O “inferno
social” e a falta de saneamento básico provocavam tumultos e influenciavam negativamente
os estrangeiros, que tinham medo de contrair doenças tropicais.
Necessitava-se eliminar o ranço colonial e aproximar o Brasil dos créditos, da produção
e do comércio da Europa e Estados Unidos. Com o respaldo de Rodrigues Alves, da Igreja
Católica, das instituições civis e militares e da grande imprensa, o prefeito Pereira Passos
estabelece o seu plano e dá início ao “bota-abaixo”.
A construção da avenida Central, grande marco da reforma, criava as condições de co-
municação entre o centro comercial e o porto, também reformado. Além disso, integrava-se
à beira-mar, facilitando o transcurso de ricos e estrangeiros que moravam e se hospedavam
na região da Glória, Catete e Botafogo. Entretanto, a própria realização da reforma urbana
evidenciava percepções distintas da modernidade. Como a historiografia não problematiza
a reforma no seu processo de decisão, não compreende que as reformas de Pereira Passos,
para além de serem um momento de modificação na cultura urbana brasileira, representa-
ram vários embates que não transparecem no processo.
Em primeiro lugar, as reformas indicavam uma tensão entre razão técnica e razão cultu-
ral, da qual decorrem dois modos diferentes de ver a modernidade que também se associam
a dois grupos de interesses urbanos distintos, aqueles que são liderados por Lauro Muller,
que querem as reformas para facilitar o fluxo de integração ao capital estrangeiro e relacio-
nam as reformas ao porto e à avenida Central e os que, liderados por Pereira Passos, compre-
endem que a reforma deve estar voltada para a cidade.
O resultado é que Lauro Muller, representante da razão técnica, vence Pereira Passos,
representante da razão cultural, e a avenida Central torna-se o ícone da modernidade do Rio
de Janeiro. Em segundo lugar, as reformas indicavam, no seu processamento, a condição de
não serem uma imitação de Paris, embora a presença desta, como explicamos, fosse podero-
sa como monumento da modernidade, menos pelas reformas físicas e mais pela cultura de
modernidade lá desenvolvida.
Mas não bastava integrar o porto à cidade. Era preciso dar-lhe uma estrutura moderna,
para que os comandantes dos navios que para cá vinham não ridicularizassem o Brasil.
Porém, a realização estava incompleta. Precisava-se polir a beleza, tirar a poeira e o que
se amontoou para a realização do novo cenário. Ainda restaram, na cidade embelezada, dis-
postos estrategicamente, canteiros de obras e máquinas, mascates e vendedores de perus,
negras quitandeiras e vendedores de miúdos e, finalmente, os quiosques. Por mais paradoxal
que possa parecer, o comércio dos quiosques se agiganta no período do “bota-abaixo”: eles
sustentam a alimentação dos trabalhadores, realizadores da reforma. Carlos Maul, ao discutir
a questão do “bota-abaixo”, destaca a “raiva” que Pereira Passos nutria pelos quiosques, pelos
vendedores de perus e miúdos de boi, porque estes “se chocavam com o refinamento do
centro da cidade” (Maul, s.d., p. 35). Para Maul a batalha do prefeito contra os quiosques foi,

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em parte, perdida, uma vez que a intensificação das funções urbanas na cidade fez com que
eles fossem substituídos:

Em seu lugar, porém, teríamos ainda por muito tempo, à porta do Correio da Manhã, do
Jornal do Brasil e do Jornal do Commercio, os sucedâneos minúsculos dos quiosques,
com apelido obsceno, e em que os jornalistas se deliciavam pela madrugada, depois de
uma noite em suas bancas, com os gostosos fritados de camarão a duzentos réis cada
talhado de bom tamanho (Maul, s.d., p. 35).

No entanto, a “nação subterrânea” manteve-se. Ao lado do requinte do homem moder-


no, produzem-se tipos urbanos ligados aos “acampamentos da miséria”. São as profissões
ignoradas, descritas por João do Rio (1952): os “fumadores de ópio”, “os presepes”, “os vende-
dores de santinhos” e de “livros populares”, “os marcadores”, “os trapeiros”, “os ratoeiros”, “os
selistas” e uma infinidade de profissões que são desenvolvidas pela “academia da miséria”.
Esse mundo desconhecido e encoberto é o contraste da modernidade.
Se de um lado, criou-se uma imagem da cidade do progresso, da capital-nação, que pro-
tege e garante a riqueza e que pode conter todas as imagens da modernidade parisiense,
de outro se tem uma cidade da miséria e das estratégias de sobrevivência, que também
protege, mas não garante a sobrevivência e que, no final, mostra que a rua acaba na prisão.
O Rio de Janeiro é uma grande metrópole, avançada na sua arquitetura e renovada so-
cialmente. A cidade maravilhosa está concluída, mas seu futuro não está assegurado. A dire-
ção conservadora, que se mantém, não sabe dar conta dos novos tempos, não se acostuma
com as greves e sempre ameaça com sua potência autoritária.
O cosmopolitismo, sem tradição, exclui da modernidade não os homens, mas as formas
de transformá-los, ao mesmo tempo em que acentua a dependência externa, inviabilizando
a formação de um mercado interno.
As imagens da cidade são confusas, cheias de névoas, cabe a nós tentar dissipá-las e
procurar entender o imaginário da construção da cidade do Rio de Janeiro.

plano agache

Para compreendermos melhor o Plano Agache é fundamental que o observemos sob a


perspectiva de um plano diretor. Mas o que é um plano diretor? A Reforma Passos pode ser
pensada como um plano diretor?
Considerar o Plano Agache como plano diretor significa concebê-lo como uma interven-
ção racional sobre a cidade a partir de determinados princípios e valores que caracterizam
as relações urbanas. Definição um tanto geral, mas que no fundo quer dizer uma intervenção
que não seja localizada, que pense a cidade na sua dimensão estrutural.
Na história da cidade do Rio de Janeiro esses princípios e valores já haviam feito parte
das diretrizes da Reforma Passos, embora os elementos norteadores daquela reforma tives-
sem como base as intervenções realizadas desde o final do século XIX, quando da organi-

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zação das reformas implantadas pela Comissão de Melhoramentos, da qual Pereira Passos
fez parte.
Também essa base acumulada da Comissão de Melhoramentos e da Reforma Passos teve
presença no Plano Agache. Grande parte do sucesso de Agache deveu-se a essas interven-
ções anteriores que prepararam terreno para as novas intervenções. Entretanto, o Plano Aga-
che não é a continuidade dos planos anteriores. Ele possui diretrizes distintas daquelas que
até então motivaram as alterações espaciais. Isso porque o novo plano define a estratégia de
entrada da cidade na estética modernista, que tem como perspectiva a art déco.
No entanto, isso não quer dizer que o novo plano possuía uma unanimidade quanto
à sua aplicação. Pensado a partir das modificações que são experimentadas no início da
década de 1920, o plano tem, em primeiro lugar, a tensão do debate modernista, que
tinha como base a possibilidade de escolha entre Agache e Le Corbusier. Em segundo
lugar, as pressões do Clube de Engenharia, que considerava um absurdo a escolha de
engenheiros estrangeiros para a reforma da cidade. Por último, havia, no plano político,
a quebra da unidade do pacto oligárquico, que havia sustentado a política nacional na
Primeira República.
Ainda havia duas outras diretrizes importantes: adequar a cidade aos novos tempos no
plano da utilização do espaço cada vez mais valorizado das cidades e também acomodá-la
às novas dimensões do movimento social, aos novos atores que entram em cena: o proleta-
riado e a camada média.
Numa cidade como o Rio de Janeiro, essas adequações eram fundamentais, já que a cul-
tura das ruas aumentava a condição política de qualquer ato ou acontecimento público. Es-
tava na época de tratar o movimento social como um caso de política e não mais de polícia.
Um plano diretor serviria para distribuir essas tensões por vários lugares da cidade, es-
vaziando a concentração no Centro da cidade. Além disso, permitiria definir com clareza os
interesses de cada categoria social no espaço da cidade. Essa fragmentação da cidade é a
diretriz que impulsiona o avanço do capital imobiliário e redunda na ocupação da orla sul,
passando a iniciar-se o processo de diferenciação entre Zona Sul e Zona Norte da cidade. Por
outro lado, alguns bairros vão deixando as suas características aristocráticas para receber
as novas instalações fabris, como Tijuca e Vila Isabel. Do mesmo modo, na esteira dos avan-
ços dos setores médios configuram-se os bairros da Tijuca, Laranjeiras, Flamengo, Botafogo,
Méier e mais adiante do Grajaú. Copacabana, Ipanema, Leblon, assim como a Gávea com-
plementam esse avanço dos setores médios, também presentes nas adjacências do Méier,
especialmente do lado esquerdo da linha férrea.
Esse avanço dos setores médios resulta do aumento da burocracia do Estado e da ex-
pansão dos serviços na cidade capital, no seu processo de apresentar-se como espaço mo-
dernizado e cosmopolita. A presença dos setores médios desencadeará um movimento de
renovação das ideias que abriu caminho para a recepção de novos modos de vida, inspirados
nos costumes norte-americanos, e que se complementa com o movimento tenentista e o
alargamento das ideias de esquerda provenientes do Partido Comunista Brasileiro e das or-
ganizações anarquistas.

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A Revolução de 1930 consolida essas renovações, abrindo espaço para a hegemonia do
capital financeiro internacional. A cidade, que já possuía, no início do século XX, 500 mil ha-
bitantes, requer mudanças para se adequar a essa nova conjuntura. Mas o que era o desenho
da cidade no começo dos anos 1920?
A Reforma Passos havia rasgado a cidade e indicado as linhas de força de seu desenvol-
vimento. A avenida Central, depois avenida Rio Branco, foi a primeira diagonal que ligou
duas radiais: a avenida Beira-Mar, na direção da Zona Sul, e a avenida Rodrigues Alves, em
direção à Zona Norte, reforçando o caráter exportador do país, pois esse circuito de avenidas
enfatizava o novo porto da cidade.
As mudanças mais importantes, no entanto, ocorreram na década de 1920, quando da
administração de Carlos Sampaio na Prefeitura, embora boa parte delas tenha resultado
muito mais da evolução da conjuntura do que da ação específica do prefeito. Carlos Sam-
paio era um engenheiro envolvido com a expansão imobiliária e que já havia participado da
Comissão de Melhoramentos em 1870, ajudando na fixação das diretrizes urbanas. A partir
dessa inserção nas intervenções urbanas, Carlos Sampaio se tornou um homem ativo na
reflexão sobre as mudanças do Rio de Janeiro.
Voltado para o crescimento imobiliário da cidade, Carlos Sampaio participou da ação
mais discutida e necessária para o desenvolvimento do Plano Agache: a demolição do morro
do Castelo. A polêmica em torno da demolição colocou, de um lado, aqueles que defendiam
o arrasamento dos morros da cidade como condição de melhora da sua salubridade, uma
vez que a demolição dos morros de Santo Antônio e do Senado permitiria a entrada do ar
marinho e a construção de uma nova linha de circulação, a futura avenida Chile. De outro,
estavam aqueles que defendiam as tradições históricas da cidade e que viam no morro do
Castelo o elemento de memória da fundação da cidade.
Atravessou essa polêmica uma outra que foi a definição do conjunto de atos que cul-
minariam nas comemorações dos cem anos da Independência do Brasil na capital federal.
A derrubada do morro do Castelo criou um espaço novo e necessário para a realização des-
se grande evento, além de liberar uma grande área para a especulação imobiliária. A terra
resultante da derrubada do morro do Castelo aterrou uma área de enormes proporções na
baía da Guanabara, entre a praia de Santa Luzia e a praia do Russel, onde seriam construídos
os grandes pavilhões da Exposição Internacional do Primeiro Centenário da Independência.
As comemorações da Independência mostraram, com clareza, a direção conservadora
que orientava a política nacional, que olhava, nesse momento, para trás, celebrando a festa
da autonomia como registro do aniversário de uma nação fragmentada e dividida, enquanto
em São Paulo, capital do pacto oligárquico, ocorriam os eventos da Semana de Arte Moder-
na, que propunham uma “entidade brasileira” que buscasse o rumo de sua singularidade sem
perder a sua condição cosmopolita e desvinculada da doença do nacionalismo.
Os traços estéticos dos dois eventos já indicavam a possível escolha diante da necessida-
de de alteração do espaço da capital no momento de discussão das diretrizes das mudanças
urbanas: havia a possibilidade de escolher entre a ousadia e a radicalidade modernista de
Le Corbusier ou a opção por Agache, nos limites de um modernismo bem comportado que

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valorizava o espaço urbano como capital e mercadoria através do processo de verticalização,
utilizando a novidade do “arranha-céu”.
A escolha recaiu sobre Agache. Le Corbusier recebeu apenas uma presença ínfima, mas
contrastante, que foi a construção, na década seguinte, do prédio que serviria ao Ministério
da Educação e Saúde, hoje Palácio Gustavo Capanema. Outro dado importante que ajuda a
compreender a escolha de Alfred Agache é a presença na Prefeitura de um homem da polí-
tica paulista, que não conhecia a história da cidade do Rio de Janeiro.
Antônio Prado Junior era um típico representante das oligarquias paulistas na adminis-
tração de uma cidade que possuía 1.158.000 habitantes em 1920 e que dez anos depois teria
2.380.000, aumento demográfico proveniente da expansão dos serviços na cidade, atendendo
às demandas externas e internas, e das migrações rurais. Além disso, sua única experiência ad-
ministrativa foi a presidência de um clube da aristocracia paulista: o Atlético Clube Paulistano.
Essa experiência paradoxal na Prefeitura decorreu da ausência de eleições para o cargo
de prefeito, que era indicação direta do presidente da República e, nessa altura, indicava
como os novos atores sociais eram excluídos da cena eleitoral, especialmente as camadas
médias. Nesse momento, década de 1920, essa exclusão acelera as reivindicações desses no-
vos atores através da vanguarda tenentista, que pela posição que ocupava de abertura para
informações técnicas e intelectuais de renovação, conseguiam formular uma agenda de mo-
dernização. Essa agenda pressionou a dominação oligárquica, expondo os limites da sua re-
presentação nacional e os obstáculos que haviam criado para o desenvolvimento brasileiro.
Rebeliões militares e manifestações populares começam a ocorrer e são violentamente
reprimidas por falta de alternativas do governo federal. Essa forma de ver a política se re-
flete na discussão do plano de mudanças da cidade e consolida determinadas direções que
vão da definição da cidade renovada como cidade de função, que atenderia à dinâmica dos
interesses dominantes, fechando-se para as novidades, até a desconsideração absoluta do
movimento da população na cidade, desprezando a sociedade em sua relação com a cidade.
A novidade incorporada à perspectiva oligárquica era a atenção que esses setores tra-
dicionais começam a dar ao setor industrial. Essa aliança envolvia a adequação da capital a
esse cenário alternativo, já que a aliança era a única saída para a crise de representação que
se anunciava.
Essa nova direção se prepara para dar espaço para esses setores industriais e requer uma
renovação infraestrutural, vinculada ao sistema viário e ao saneamento, acrescido de uma
renovação estética para se adequar às exigências internacionais e tentar mais uma vez fazer
dessa reforma o renascer da nação.
O capital para a renovação era, nesse sentido, decorrente dos investimentos das oligar-
quias e das alianças com o capital internacional. Essa combinação favorece investimentos
nos serviços públicos e na preparação da cidade para atender a essas novas conjunturas,
pois estamos longe ainda da crise de 1929 e se beneficiando do boom americano posterior
à Primeira Guerra Mundial.
O objetivo da remodelação era, então, desenvolver a infraestrutura e o embelezamento
do Centro da cidade como condição de ampliar a recepção dos capitais externos, excluindo

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desse plano as camadas populares, que eram um dos novos atores, e desenvolvendo pers-
pectivas que pudessem, a médio prazo, fazer com que os setores médios, incorporados à
remodelação, passassem a apoiar as políticas do Estado.
Com esse apoio haveria o reestabelecimento da ordem, isolando os interesses popu-
lares. A reequipagem da cidade, a melhora dos serviços e a ampliação do consumo e do
lazer funcionaram como esfriamento da capacidade de mobilização das camadas médias,
intelectualmente mais avançadas e que dominavam os meios de informação. Como se sabe,
o resultado não foi positivo, mas estabeleceu e consolidou experiências novas na cidade.
Como consequência dessa conjuntura, Antônio Prado Junior resolve contratar um urba-
nista francês de renome internacional, que reunia as qualidades capazes de unir o modelo
de cidade europeia com a renovação política que estava sendo encaminhada, abrindo espa-
ço para a burguesia urbana, ainda fascinada pela estética francesa.
Alfred Agache se encarrega, então, do segundo plano diretor da cidade, entre 1926 e
1930. O plano, por conta de interesses tão diferentes, enfatizava a remodelação, pensada
enquanto adequação racional e funcional aos interesses do capital financeiro, e o embe-
lezamento, como mecanismo de revitalização da força da nação e do desenvolvimento do
sentimento nacional que aumentaria a legitimidade do Estado.
A base do Plano Agache era a renovação da dimensão físico-territorial e não a preparação
da cidade para o desenvolvimento. Era uma intervenção pontual que deveria ter como objeto
o Centro da cidade, lugar por excelência das negociações financeiras. Assim, as linhas delimi-
tadoras do campo de ação do plano já estavam dadas. Para Agache, o fundamento da remo-
delação era a realocação de valores a partir do melhoramento das edificações, da ordenação
dos arruamentos e da circulação, com o aceleramento do movimento sem congestionamento.
O aspecto visual era relevante para Agache, o que mostra a sua herança de homem for-
mado na École des Beaux-Arts de Paris, representado pela ênfase na combinação entre mo-
numentalidade e academicismo.
Entretanto, no plano do Rio de Janeiro percebe-se aquilo que fica mais expressivo na
atuação de Agache em Curitiba, que é a adequação do academicismo à funcionalidade e à
objetividade modernistas. Essa faceta renovadora faz com que se observe uma aproximação
de Agache com o urbanismo americano da Escola de Chicago, que produzirá a construção
dos arranha-céus e reforçará como base da remodelação o Centro da cidade, aproximando-o
do modelo da City Beautiful.
Essa combinação permitiu que o plano incorporasse alguns partidos do modernismo ra-
cionalista como as preocupações com saneamento – serviços públicos básicos, a circulação,
transportes – e definição das funções do espaço urbano, reforçado pela presença de grandes
parques públicos.
Esses conjuntos de diretrizes funcionaram como aceleradores da eficiência e da eficácia
do plano de remodelação. Entretanto, por mais abertura que Agache tivesse para as novida-
des modernistas, sua concepção de cidade ainda configura a presença forte de concebê-la
como um organismo vivo que seria a metáfora da própria vida humana, em que o funciona-
mento da cidade seria representado pelo metabolismo corporal humano.

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Assim, as praças, as avenidas e os jardins seriam os pulmões da cidade, o seu sistema
aeróbico. As ruas seriam aproximadas das veias do corpo humano e fariam parte do sistema
circulatório, tendo como função levar a vida até o coração da cidade: o Centro. Por fim, o
aparelho digestivo seriam os esgotos. Esse mecanismo estrutural-funcionalista deveria ter
como base o bom funcionamento de cada parte que compõe o sistema geral, realizando o
objetivo da harmonia entre as partes e o todo. A anomia ou disfuncionalidade do sistema
geraria “doenças” na cidade.
Como a cidade apresentava já uma ocupação de suas áreas elevadas, Agache fez refe-
rência às favelas, considerando-as cidades-satélites de formação espontânea, formadas por
uma população variável e avessa à higiene, cuja solução seria a construção de casas popula-
res, capazes de civilizar essas populações.
O ordenamento da cidade teria como pressuposto a combinação entre legislação ur-
bana e zoneamento, ou seja, a atribuição de funções especializadas ao espaço, com o
objetivo de alterar a cultura urbana através de mudanças nas relações sociais, fazendo
da cidade um agente de transformações de hábitos e de costumes, construindo a cidade
moderna.
Com essa naturalização, a cidade e sua vida girariam em torno da sua função político-ad-
ministrativa, como capital, e da função econômica, como porto e mercado. Essa combinação
de funções de base exigiria certos acertos: definir funções especializadas para os espaços
tradicionalmente ocupados, garantindo através do zoneamento sua funcionalidade; bordar
as vias de circulação para estabelecer uma conexão básica entre as zonas e o Centro; refor-
mular a política de habitação, atendendo às demandas das variações de hábitos e de costu-
mes da heterogeneidade da população urbana; definir a legislação urbana, regulamentando
as edificações e construindo uma política de construção e de ocupação.
O que ficou do Plano Agache? Talvez a imagem mais significativa tenha sido a Esplanada
do Castelo e o bairro das Embaixadas. Isso porque ali se encontram os exemplos mais impor-
tantes da estética de Agache, com a combinação entre academicismo, monumentalidade e
funcionalidade. Nesse perímetro da Esplanada, que vai da rua São José até o Aterro, há uma
perfeita conexão entre Agache e a arquitetura art déco através da dinâmica de mudanças
que se operaram na Cinelândia e no Passeio Público, por conta dos investimentos de Fran-
cisco Serrador no trecho final da avenida Rio Branco.
A Cinelândia e o Passeio Público, somados à praça Paris, engendram uma nova cidade
que tem como direção de expansão a Zona Sul, pois se acopla muito bem às novas fachadas
dos bairros de Flamengo e Botafogo, dando ao Catete uma moldura modernista.
Ao mesmo tempo, as soluções de construção de Agache vão ganhando expressão na
funcionalidade dos prédios e nas suas inter-relações com as construções mais antigas. Mas
há ainda outro aspecto a realçar no que concerne ao Plano Agache. Com a construção da Es-
planada do Castelo, as novas ruas que cortam a avenida Rio Branco acabaram por renovar a
obra de Pereira Passos, dividindo-a em mais partes do que aquelas duas que representavam
a tensão entre Pereira Passos e Lauro Muller. A remodelação de Agache, concentrada no Cen-
tro e aberta para a Zona Sul, confirmou o que já funcionava como vivência das diferenças no

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cotidiano carioca. A avenida 13 de Maio, o Tabuleiro da Baiana1 e o largo da Carioca articu-
lavam o sistema de circulação para a Zona Sul; enquanto a praça Tiradentes e o largo de São
Francisco faziam o mesmo para a Zona Norte. Antes mesmo da avenida Presidente Vargas, a
Rio Branco já estava dividida entre Sul e Norte.
A dimensão popular das diversões da praça Tiradentes contrastava com o refinamento
dos cinemas da Cinelândia. Esse é o momento inaugural da cidade partida, mostrando como
o Plano Agache, independente de Alfred Agache, projetou a cidade burguesa, dando a ela
um centro diferenciado: a Cinelândia, a Broadway brasileira. E com ele o teatro e o cinema
no estilo norte-americano. O frisson do carnaval na Cinelândia mostrava a diferença com o
carnaval mais popular da praça Tiradentes e adjacências.
Um novo Rio de Janeiro despontava, animado com a perspectiva cosmopolita e aristo-
crática, e Copacabana se insinuava em direção a sua marca de Princesinha do Mar. A cons-
trução do hotel Copacabana Palace encheu de alegria os cariocas, acostumados aos cassinos
de Mônaco. Copacabana mostrava a sua vocação de balneário e a natureza dava os primeiros
passos em direção à sua consolidação como principal marca da cidade.
Para quem viveu essa época, é bom recordar que até a década de 1960, o baile de carna-
val oficial da cidade acontecia no Teatro Municipal, no palco dos grandes concertos e óperas.
Ali, com as cadeiras da plateia cobertas por tapumes de madeira e os camarotes transfor-
mados em cenário de samba, recebíamos os astros do cinema e fazíamos os concursos de
fantasias de luxo.

a cidade na era vargas

Mas esse delírio não durou muito na década de 1920. Veio a crise de 1929 e a seguir a
Revolução de 1930. A cidade entristeceu. A seriedade política do momento retardou, um
pouco, o frisson da festa modernista. A moralidade associada à revolução tornou-se um obs-
táculo para o desenvolvimento à vida mundana. Era preciso moralizar para que o Brasil to-
masse o rumo do desenvolvimento e essa moralidade conflitava com a natureza tropical que
adornava a cidade.
Getúlio Vargas trouxe com ele essa nova etapa da história da cidade. Aproveitando a
monumentalidade do Plano Agache e o embelezamento do Centro e da Zona Sul, o gover-
nante provisório não precisou de um novo plano urbanístico. A novidade, porém, foi que
Vargas incorporou à cidade parte dos segmentos populares excluídos anteriormente, num
sinal claro de moralidade e de definição da capital como símbolo de uma nova era de traba-
lho e indústria.
Essa inclusão de Vargas foi realizada através de políticas sociais corporativas, evi-
tando que o movimento social e a esquerda assumissem o controle das ruas. Para isso,

1 O Tabuleiro da Baiana foi um terminal de bondes que se localizava nas imediações do largo da Carioca. Foi de-
molido na década de 1970.

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usará toda a capacidade repressiva do Estado, assim como a dimensão do nacionalismo
populista.
Mas Vargas expandiu a cidade em direção à Baixada da Guanabara, abrindo a ocupação
de uma nova avenida que com certeza só poderia ter o nome de Brasil. Aproximou a cidade
capital do seu entorno, aumentando a sua centralidade e capitalidade, ampliando a oferta
de postos de trabalho na economia e na burocracia do Estado. As camadas médias também
foram contempladas, assumindo um papel de relevo e usufruindo da política de educação
que valorizou as escolas normais e com elas os professores.
Por outro lado, animou a cidade e o país com a valorização do calendário heróico da
história do Brasil e a política de capacitação física, engendrada pela renovação educacional,
associada aos esportes com comemorações que foram do dia da raça até o aniversário do
presidente, transformando o estádio do Vasco da Gama, em São Januário, no centro febril da
mobilização popular.
Vargas encontrou num homem apaixonado pelos esportes o baluarte dessas mobiliza-
ções, Mário Filho, irmão de Nelson Rodrigues, fundador do Jornal dos Sports e homenageado
com o seu nome associado ao Maracanã. Na época da homenagem, a família de Mário Filho
consultou João Saldanha a respeito de o Maracanã transformar-se em Estádio Mário Filho.
Saldanha, com a sua competência, tentou fazer a família desistir da homenagem. Seu argu-
mento era simples: o estádio seria sempre do Maracanã e nunca Mário Filho, que a família
pedisse uma rua para homenageá-lo. A família não se sensibilizou com o argumento e acon-
teceu o que aconteceu, o Maracanã nunca foi Mário Filho.
Também se fazia necessário que a cidade assumisse, através da arquitetura, a materialidade
desse novo tempo. A avenida Antônio Carlos será aquela que reproduzirá esse novo momento,
através das edificações monumentais dos prédios dos ministérios da Fazenda e do Trabalho.
Sem ter um plano urbanístico, Getúlio deu forma à cidade, apresentando-a como era,
partida. Sua política social produziu uma feição nova para a cidade que se concretizaria no
seu segundo governo, mas que estava marcada pela separação entre Zona Norte e Sul. Os
sindicatos e os institutos ocuparam as franjas da cidade, mobilizando capital e trabalho. O
regimento de intervenção produziu mudanças e alterou as paisagens da cidade, às vezes
de forma paradoxal como foi o exemplo dos parques proletários na Gávea e a ocupação do
Jardim de Alá pelo Sindicato dos Jornalistas.
Essas mudanças merecem atenção porque afetaram a Zona Sul. Espaço por excelência da
demonstração do progresso cosmopolita, essa região ficou em compasso de espera frente à
inversão de valores patrocinada pela política de Vargas. O ideal de trabalho e de trabalhador
como expressão do novo tempo confrontava-se com o delírio pequeno-burguês da Zona
Sul, e o vencedor, naquele momento, foi o trabalho. Digamos que a vitória foi apenas uma
batalha vencida numa guerra perdida.
Entretanto, os efeitos apareceram e modificaram a correlação de forças na sociedade cario-
ca. Os pequenos proprietários e os trabalhadores industriais se sentiram poderosos e tomaram
conta da cidade. Nesse período, a integração é Centro-Zona Norte. A Zona Sul teve um de-
senvolvimento à parte, concentrado na dimensão do turismo e se transformava em reduto de

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uma burguesia heterogênea, que se dividia entre empresários empreendedores, vinculados ao
capital internacional e voltados para o setor de serviços, e burgueses aristocratas que se liga-
ram à burocracia do Estado e viviam do agenciamento de propinas para realização de obras e
outras atividades públicas. Ambos os segmentos, no entanto, miravam como futuro o conforto
de uma sociedade de consumo a la americana. Essa realidade só se modificaria após a Segunda
Guerra Mundial, com o processo de vulgarização de Copacabana.
A Segunda Guerra Mundial recompunha a economia porque forçava o desenvolvimento
de uma industrialização por substituição de importações, na qual as exportações de bens
primários cresceram. O capital que daí resultou foi investido na produção nacional que pas-
sou a suprir a falta das importações.
A conjuntura política também se modificou e os questionamentos do Estado Novo abri-
ram caminho para a redemocratização em 1945. Para a capital, a saída de Vargas, deposto, e
a entrada do marechal Dutra no comando do Estado não alteraram a situação, uma vez que
Dutra manteve a perspectiva moralizante de Vargas quanto à vida urbana, criando grandes
problemas que resultaram no fechamento dos cassinos, com a proibição do jogo que, da
noite para o dia, desempregou milhares de pessoas ligadas ao mercado das diversões. Essa
austeridade foi maior porque, ao lado de Dutra, estava a Igreja Católica, mais bem sentada
do que quando Getúlio estava no poder.
O retorno de Vargas ao poder em 1951 reanimou a cena política e criou novas expecta-
tivas que se moviam na direção de um embate entre uma perspectiva nacional de combate
ao imperialismo, que resultou na criação da Eletrobrás e da Petrobrás, e uma perspectiva de
continuidade da presença do capital financeiro internacional com a dependência da dinâmi-
ca da economia americana.
Entretanto, o segundo Governo Vargas avançou na política de modernização da cidade,
abrindo-a para novos empreendimentos que incorporavam a cultura na agenda do Estado
e com isso mobilizava a intelectualidade brasileira, dando-lhe condições de exercer sua di-
mensão criativa e assumir o papel de vanguarda. Isso redundou no processo de afirmação da
cidade capital como o centro de produção de uma nova realidade para o Brasil, até aquele
momento ainda compatível com a perspectiva americana de incentivar o desenvolvimento
da democracia nas Américas.
As artes tiveram a oportunidade de consolidar o modernismo, assim como a liberdade
de imprensa fez avançar os veículos de comunicação, ampliando as informações e consoli-
dando a esfera pública no Brasil. A reforma do Jornal do Brasil e os projetos arquitetônicos de
Lúcio Costa foram alguns dos exemplos dessa conjuntura favorável à liberdade.

a década de 1950 e os anos dourados

Foi nesse clima de novas expectativas que a cidade viu surgir, em alguns de seus bairros
mais tradicionais, um movimento de reação às medidas progressistas e vanguardistas dos
anos 1950. A sociedade carioca se dividia entre aqueles que defendiam Getúlio e os que o
combatiam. A polêmica ganhou os meios de comunicação com o debate de posições que se

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apresentavam sob a forma do grande debate nacional nas páginas dos jornais Última Hora e
Tribuna da Imprensa, que colocava diante do primeiro a figura de Vargas e diante do segundo
o grande líder da direita conservadora, o político da UDN, Carlos Lacerda.
Mesmo com essa reação capitaneada por Carlos Lacerda, a vitória nas eleições que se
sucederam ao suicídio de Vargas foi de um candidato liberal – Juscelino Kubitscheck (JK) –,
de Minas Gerais e que tinha o binômio democracia e desenvolvimento como base de seu
plano de governo.
O clima da América Latina nessa época era tenso e complicado e a eleição no Brasil de
um homem vinculado às reformas podia trazer problemas. Por isso, quase Juscelino Kubits-
chek não assume a cadeira de presidente ganha no voto. A situação se complicava porque
o vice-presidente eleito era João Goulart, que havia sido ministro do Trabalho no governo
Vargas e tinha ligação com as classes populares.
A reação à vitória de JK mostrou como já havia uma rede de defesa do conservadorismo
que incluía parte das Forças Armadas e como a questão envolvia uma palavra de ordem
mais radical: o anticomunismo. O medo do comunismo – o perigo vermelho – era anunciado
como iminente por veículos de comunicação como a revista O Cruzeiro, na palavra do jorna-
lista Davi Nasser, e a televisão, na palavra do apresentador Flávio Cavalcante.
Mas mesmo com esse clima pesado, a atmosfera da cidade não deixava de saborear as
novidades automobilísticas e os novos componentes do conforto do lar, as cozinhas ame-
ricanas. As eletrolas eram ultrapassadas pelas possantes vitrolas estereofônicas que faziam
a alegria dos jovens e velhos. O rock and roll também mostrava a sua cara e era a moda dos
brotinhos comandados na televisão por Sérgio Murilo. Mas o outro lado também aparecia
com o samba jazz e a bossa nova, inundando a Zona Sul e se aproximando do samba de raiz.
Os filmes da Atlântida transformavam a cidade num imenso pandeiro.
Tudo isso animava a capital e fazia retomar o gosto pela praia e pelas ruas. A vida mun-
dana da cidade se expandia da Lapa para Copacabana e se apresentava sobre aspectos dife-
rentes, da boa vida dos playboys aos novos experimentos da esquerda e do avanço da UNE.
Copacabana aumentava a sua densidade humana. As construções iam crescendo para
alegria dos empresários e dos nordestinos que vinham no embalo do êxodo rural e tinham
na construção civil a condição de manutenção. Mas Copacabana também crescia no sentido
inverso ao do mar. Nas quadras mais afastadas da praia surgiam unidades residenciais com
uma nova característica: eram apartamentos conjugados, ocupados por gente das camadas
médias, que preferia morar mal em Copacabana, e por ricos que faziam deles suas garçonie-
res, deliciando Nelson Rodrigues e Sergio Porto com motes para as suas crônicas.
O movimento da cidade, os tão badalados “anos dourados”, mostrava a sua força, porém
iludia aqueles que não observavam mais longe. Um dos aspectos mais marcantes desse pe-
ríodo era a falta de água na Zona Sul. Como o crescimento da cidade se deu de forma ver-
tiginosa, os serviços públicos não cresceram no mesmo nível. O abastecimento precário de
água fazia da cidade e de Copacabana lugares de igualdade, quando se tinha que ir à bica
pública com uma lata de banha de vinte litros para pegar água. Cauby Peixoto imortalizou
essa situação cantando “lata d’água na cabeça, lá vai Maria...”.

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Essa precariedade aumentava quando se olhava para os serviços de saneamento e para
os transportes. O lotação, pai das vans de hoje, era um instrumento de caos urbano e de mor-
tes e metia medo em todo mundo. Peter Kellemen escreveu, na época, um livro muito curio-
so que o tornou famoso; chamava-se Brasil para principiantes: venturas e desventuras de um
brasileiro naturalizado. Era editado pela Civilização Brasileira de Ênio da Silveira, o principal
editor dos textos de esquerda e de perspectiva nacionalista. Ênio da Silveira posteriormente
deve ter se arrependido da publicação, porque mais uma vez o húngaro naturalizado brasi-
leiro ficou famoso, não porque publicou um outro livro, mas porque criou uma das primeiras
grandes falcatruas, o Carnê Fartura, que levou o dinheiro de uma quantidade enorme de
brasileiros para o buraco. Em 1964, o livro já estava na sua oitava edição e é importante que
se dê ideia do que ele representa como documento dessa época. Sua avaliação foi tão fina e
refinada que permitiu ao autor criar o Carnê Fartura.

A orelha do livro, explicando-o, diz o seguinte:

País verdadeiramente onírico e surrealista, o Brasil é uma terra do ‘plantando-se, dá’, do


‘Deus é brasileiro’, do ‘amanhã, se não chover...’ É, também, cenário de contrastes e para-
doxos violentos ou, por vezes, engraçados: edificamos uma nova capital, toda beleza e
imponência, mas não temos um sistema de comunicações eficiente, nossa marinha mer-
cante está em frangalhos e cresce todo ano, em números absolutos, a percentagem de
analfabetos em nossa população. Compramos aviões a jato, para as linhas domésticas
e internacionais, mas não temos calçados para o homem do campo. Nossos milionários
e playboys podem sustentar as mais caras cortesãs do ‘grand monde’, mas esbravejam e
esperneiam quando lhes bate à porta o fiscal do imposto sobre a renda. Fortunas imen-
sas são feitas (frequentemente à noite) e perdidas (durante o dia) em mil e uma espe-
culações imobiliárias ou cambiais. Somos oficialmente católicos, mas praticamos – com
maior ou menor reserva – os ritos de umbanda... Somos nacionalistas, mas não ligamos
muito para o que é nacional...

O país do carnaval, onde um misto de ‘malemolência’, de cinismo, de sabedoria de vida


e de malandra esperteza, nos ensina a cada um, desde pequenos, a fórmula secreta para
se ‘quebrar o galho’, para ‘dar um jeitinho’...

Dialeticamente, contudo, vamos pouco a pouco tirando o pé da lama e erguendo a ca-


beça, abandonando o ‘complexo colonial’ de que sofríamos para conquistar um lugar ao
sol, somos um povo tolerante, bom, unido e otimista.

Tudo o que se disse acima, mais do que sabido é vivido pelos brasileiros natos. Mas que
dizer dos estrangeiros, que depois de mil esquemas de repressão ou de sistematização
do temperamento, vêm fixar residência? São espantosos e frequentemente pitorescos
os problemas que enfrentam, para se adaptarem a um novo estilo de vida, que é único
em todo o mundo (Kellemen, 1964).

Esse homem enganou o Brasil na década de 1960.

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lacerda e o plano doxiadis

A burguesia carioca avançava em direção à Lagoa, Leblon, Ipanema, Cosme Velho e Alto
da Boa Vista e resolvia a precariedade a seu modo, pois não precisava do Estado. Nesse con-
texto, foi anunciado o Plano de Metas, no qual 50 anos seriam resolvidos em cinco. Esse
modelo nacional-desenvolvimentista estava ancorado no capital internacional como me-
canismo básico para a construção de uma acumulação capaz de desenvolver a economia
brasileira e gerar uma nova etapa na história do Brasil. Na época, o imaginário social via essas
mudanças como a consolidação da modernização no Brasil.
Mas para que esse modelo ganhasse densidade, era necessário que se fizessem mudan-
ças estruturais no país, reduzindo a desigualdade através de uma distribuição de renda e
recursos mais desconcentrada do eixo sudeste. A estratégia dos polos de desenvolvimento,
em moda na época, combinada com um esforço nacional levaram à configuração da necessi-
dade de mudar a capital do Brasil para o interior, seguindo uma orientação que, por motivos
diversos, já havia aparecido no debate da primeira Constituição republicana.
A mudança da capital tinha lugar certo: o interior do estado de Goiás, bem no centro do
Brasil, fazendo dali saírem raios de desenvolvimento que alcançariam todo o país. Os inves-
timentos nesse projeto foram gigantes em termos de capital e de homens. Era a oportunida-
de de mostrar que o Brasil era maduro. Brasília seria a demonstração empírica do engenho
brasileiro que criaria a cidade mais moderna do mundo, capaz que concorrer com qualquer
outra capital europeia ou americana.
Com projeto urbano de Lúcio Costa e arquitetura de Oscar Niemeyer, o avião do cresci-
mento, marcado pelo desenho do plano de Brasília, seria a maneira de mostrar ao mundo a
nossa capacidade de mudança. Entretanto, o risco era enorme e parte dele foi minimizado pelo
desenvolvimento de uma industrialização restritiva que acelerava provisoriamente a desigual-
dade, concentrando as atividades nas mãos da elite empresarial brasileira. Quem pagava era o
povo, sofrendo com a inflação que desvalorizava a moeda e aumentava os impostos.
Esse mecanismo lembrava a década de 1930, pois manteve a concentração econômica
no sudeste, reforçando o papel de São Paulo como exemplo da dinâmica a ser seguida. O re-
sultado nem mesmo alterou as migrações, que se distribuíam agora entre o centro do Brasil
e o eixo Rio-São Paulo. Grandes massas de retirantes se dirigiam para Brasília, Rio de Janeiro
e São Paulo no afã de conseguir sobreviver através de uma experiência urbana nova. Essas
massas eram principalmente absorvidas pelas obras de Brasília e pelo avanço da construção
civil no Rio de Janeiro.
O Rio de Janeiro nos anos 1950 e 1960 ia se definindo como centro financeiro, dividindo
com São Paulo a renovação econômica, garantido a relação entre capital e trabalho, já que
em São Paulo concentravam-se as indústrias. Isso significou certa desmobilização do parque
industrial carioca, que permaneceu antiquado diante do progresso de São Paulo, fazendo
com que a antiga capital se confirmasse como vocacionada para os serviços.
Foi nessa conjuntura que o Rio de Janeiro, antigo Distrito Federal, perdeu as suas funções
de capital, e com elas a diminuição das atividades administrativas ligadas ao poder público, e

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parte do mercado consumidor mais importante do país. A barganha política que resultou da
decisão de mudança da capital gerou a criação de um novo estado na federação, exatamente
formado pelo antigo Distrito Federal e que se diferenciava do estado do Rio de Janeiro, área
política onde se localizava a antiga capital. O novo estado recebeu o nome de Guanabara e
recuperava parte da história da região, reforçando o imaginário popular de que essa mudan-
ça faria com que a região recuperasse suas tradições e iniciasse o movimento em direção ao
desenvolvimento. Esse arranjo político que deu à Guanabara autonomia significa que ela teria
recursos municipais e estaduais capazes de resolver as precariedades da antiga capital.
Mas essas decisões também acarretavam novos problemas, além daqueles já menciona-
dos como falta de água e de saneamento. O crescimento populacional aumentava o movi-
mento na cidade do Rio de Janeiro, agora capital do novo estado. As ruas não sustentavam
o aumento de automóveis, incentivado pelo desenvolvimentismo. Outro aspecto proble-
mático era o da ocupação das regiões altas da cidade. Os morros foram sistematicamente
ocupados pelas populações que participavam do êxodo do campo para a cidade. As favelas
aumentaram numa velocidade incrível, fazendo com que a população favelada em 1960 fos-
se 11% de um total de 3.800.000 habitantes.
Nas primeiras eleições para o governo do estado da Guanabara, a polarização estabele-
ceu-se entre o candidato da coalização progressista Sérgio Magalhães, que unia a esquerda
ao esforço desenvolvimentista, capitaneada pelo PTB, e o candidato da reação anticomu-
nista, da UDN, Carlos Lacerda. O vencedor foi Lacerda, conservador convicto que durante
o segundo governo Vargas havia organizado a oposição e forçado Vargas ao suicídio. Além
disso, continuava utilizando a força de seu jornal A Tribuna da Imprensa, o principal veículo
de defesa contra a invasão comunista dos lares brasileiros. Reproduzia-se a polarização na-
cional que vinha desde os anos 1950.
No comentário que fez a respeito de sua vitória eleitoral, Carlos Lacerda colocou o dedo
na ferida. Sua análise era correta e mostrava como as forças progressistas se comportavam
com relação ao projeto desenvolvimentista. Para Lacerda, sua vitória foi dada pelo próprio
candidato do PTB, que em seus discursos de campanha enfatizava a conjuntura internacio-
nal, usando como palavra de ordem “Abaixo o imperialismo ianque”, deixando de lado as
questões mais agudas do novo estado e aquelas que Lacerda utilizou como base de sua vitó-
ria. A plataforma de Lacerda concentrava-se em problemas imediatos como a falta de água.
Carlos Lacerda, líder capaz e inteligente, sentiu a dimensão do novo e falava daquilo que
podia unir a sociedade carioca, incluindo a perda da condição de capital como um fator de
mobilização. Seu projeto envolvia trabalho e crescimento e partia da construção de obras de
infraestrutura que resolvessem os problemas da cidade-estado. Para isso, era necessário mo-
dificar a paisagem urbana através de um projeto que modificasse a cidade estruturalmente.
Assim como o Plano Agache e a política urbana de Vargas, Lacerda manteve a perspec-
tiva da moralidade urbana, mas acompanhada de novos elementos de força, o anticomu-
nismo e a luta contra a corrupção. Lacerda se definia como aquele que vinha para salvar
o povo do nepotismo e do empreguismo e, para isso, denunciava o populismo daqueles
que anunciavam grandes projetos e não os realizavam. Moralidade urbana passou a ser

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sinônimo de ordem social e política, daí decorrendo a noção de que o controle das massas
populares poderia ser feito através de mudanças urbanas, alterações nos lugares, mexidas
nos espaços.
A cidade deveria representar os valores da sociedade e estes eram contrários ao comu-
nismo, à imoralidade e se assentavam na moral católica. Lacerda gostava muito de dizer que
os cariocas eram um povo que a nação abandonou no Rio. Esse era o mote da unidade em
defesa de um estado de coisas que coincidia com o novo estado da Guanabara. Outro fator
que ajudou na mobilização dos cariocas foi a proximidade do aniversário de quatrocentos
anos da fundação da cidade, cujas comemorações deveriam mostrar sua capacidade cultural
e rendeu a ideia de que a antiga capital agora era a Belacap, um misto de lugar de finanças
e de cultura, afinal aqui estavam as grandes emissoras de rádio e de televisão, as grandes
editoras, os grandes teatros.
Na realidade, o projeto de Lacerda para a Guanabara era a sua plataforma para a candi-
datura à Presidência da República, sucedendo Jânio Quadros, que teve em Lacerda a condi-
ção de sua vitória. Na avaliação do primeiro governador da Guanabara, o governo de Jânio
aumentaria a sua visibilidade, exatamente porque seria a concretização material do que se-
ria um novo Brasil, comandado pela UDN. Mas essas expectativas não se concretizaram no
plano internacional por conta da política externa independente e pela presença no governo
de um homem de oposição às ideias da UDN. Na eleição de Jânio a vitória para a presidên-
cia foi estrondosa, mas a UDN não conseguiu fazer o vice-presidente. Na época, a eleição
não era casada e o candidato vencedor foi do PTB e um inimigo de Lacerda, João Goulart.
Tudo isso acabou na condecoração de Che Guevara com a Ordem do Cruzeiro do Sul e com
a renúncia de Jânio e os problemas relacionados à sucessão. Para combater Jânio, Lacerda
lançou mão de suas relações com as Forças Armadas e conspirou com elas.
Desenvolvendo sua estratégia de mobilização, Lacerda anunciou que as reformas no
novo estado se iniciariam pelos subúrbios, que eram áreas mais desprovidas de ações go-
vernamentais, e pelo fortalecimento da educação, que deveria atingir todas as regiões do
estado, para que pudesse produzir efeitos imediatos e diretos sobre as classes populares.
Com isso, o governador ocupava o espaço da mobilização da esquerda. O anticomunismo
de Lacerda não era retórico, ele agia de modo a destruir a organização dos movimentos de
esquerda que, no geral, cabiam todos na denominação de comunistas.
Foi nesse cenário que Lacerda contratou o urbanista grego Constantinos Apostolos Do-
xiadis para elaborar o segundo plano diretor da cidade. Os recursos necessários para a im-
plementação desse projeto vieram de fora. Lacerda estabeleceu uma relação direta com os
bancos de ajuda à América Latina, aproveitando a nova política externa americana de com-
bate ao comunismo. O programa “Aliança para o Progresso” deu uma sustentação importan-
te à realização do plano.
Como o plano estava articulado à candidatura futura de Lacerda à Presidência, junta-
ram-se a ele as comemorações dos quatrocentos anos da cidade. A feliz coincidência desses
eventos transformou o Rio de Janeiro na capital da moralidade e do trabalho, dando ao pla-
no uma repercussão não imaginada. Desse modo, o plano ganhou dimensões salvacionistas

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e passou a ser visto como o exemplo de administração competente e de tino para o futuro. A
maioria das obras era anunciada como transformadora de paisagem e de valores.
Os resultados teriam de ser positivos, pois deles dependia a candidatura de Lacerda à
Presidência. Assim, a base do projeto de reformas deveria ser a competência técnica, que
tornaria possível realizá-lo e a eficácia administrativa que proveria as necessidades da refor-
ma. Nesse sentido, o Plano Doxiadis seria o instrumento técnico que auxiliaria na construção
de uma imagem nacional, tendo a Guanabara como vitrine política de Lacerda. A reunião
desses elementos deu confiabilidade ao plano.
A escolha de Doxiadis não foi aleatória. Pelo contrário. Levou em consideração uma das
questões-chave na campanha presidencial de Lacerda: a oposição a seu provável adversário
nas eleições presidenciais de 1965, Juscelino Kubitschek.
Doxiadis, já urbanista mundialmente reconhecido, era figura atuante nos Congressos
Internacionais de Arquitetura Moderna, os CIAMs, espaços de fundamental importância para
a concepção de projetos urbanos em todo o mundo e que eram marcados pelo paradigma
do urbanismo moderno, aquele utilizado por Lúcio Costa no projeto-piloto de Brasília. Com
o pós-guerra, inicia-se um processo de dissolução deste ideário e, consequentemente, do
fim da hegemonia do movimento moderno no urbanismo. O jovem urbanista Constantinos
Doxiadis era um dos principais expoentes deste movimento de contestação.
Nesse sentido, a escolha de Doxiadis refletiu uma afinidade ideológica com o posiciona-
mento de Lacerda: representava a aproximação com o pensamento urbano norte-americano
– ou seja, com seus aliados na luta anticomunista – e, concomitantemente, com um pensa-
mento urbano que considerava o paradigma moderno e sua concepção de cidade supera-
dos – em outras palavras, representava um passo à frente na concepção urbana de Brasília,
realização maior de JK.
A assinatura do contrato com os Consultores Associados Doxiadis ocorreu em janeiro de
1964. A escolha de um escritório estrangeiro gerou – assim como na década de 1920, quan-
do da contratação do francês Agache – grande indignação entre os arquitetos brasileiros,
a ponto do Instituto dos Arquitetos do Brasil investigar a existência de irregularidades no
contrato. Ainda assim, Doxiadis foi contratado e, ao final de fevereiro, já se instalava em um
escritório no edifício Avenida Central, na avenida Rio Branco.
Doxiadis defendia que, de modo a assegurar o desenvolvimento da Guanabara, fazia-
se necessário um planejamento em larga escala que coordenasse tanto o planejamento
socioeconômico quanto o planejamento físico a um programa de âmbito metropolitano,
que tinha como meta o ano 2000. Nesse sentido, o Plano Doxiadis foi, ao mesmo tempo, um
plano de gestão e um plano diretor físico, que definiu diretrizes para que, no inicio do milê-
nio seguinte, o estado estivesse urbanizado de acordo com “um padrão de crescimento equi-
librado e, portanto, pudesse funcionar perfeitamente” (Guanabara, 1967, parágrafo 1.720).
Segundo Doxiadis, os problemas de ordem econômica da Guanabara decorriam da ob-
solescência de sua infraestrutura física, ainda que Lacerda viesse, ao longo de sua gestão,
executando um grande número de obras públicas. Para o urbanista, faltava às intervenções
do governador uma linha norteadora, um plano geral de renovação.

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De modo a construir este plano geral, Doxiadis elaborou uma malha de comunidades,
estruturada segundo uma hierarquia funcional e de grandeza. Essas comunidades autossu-
ficientes estariam separadas por vias expressas de alta velocidade que seriam construídas
sobre estruturas elevadas e direcionadas segundo os eixos norte-sul e leste-oeste. Ademais,
Doxiadis propõe uma cidade com dois centros: um centro industrial em Santa Cruz e um
centro cívico e de negócios no antigo Centro.
Muitas das propostas de Doxiadis foram aproveitadas das intervenções que Lacerda já
vinha implementando enquanto governador da Guanabara. Por exemplo, a criação de distri-
tos industriais na região de Santa Cruz e às margens das vias expressas já estava em execu-
ção desde 1961, quando foi criada a Copeg (Companhia de Progresso da Guanabara).
A opção de Doxiadis pelo transporte rodoviário também era uma realidade na Guanaba-
ra da década de 1960. Assim que chegou à cadeira de governador, Lacerda havia substituído
os antigos bondes por ônibus elétricos da Companhia de Transportes Coletivos (CTC). Ade-
mais, a construção de vias expressas era solução para o transporte desde a década anterior,
intimamente ligadas ao modelo nacional-desenvolvimentista que impulsionou o crescimen-
to da indústria automobilística no Brasil.2
Restava, entretanto, um problema: as favelas. Com o nacional-desenvolvimentismo e os
resultados positivos no que tange ao aumento da capacidade de consumo da cidade, assim
como com a oferta de postos de trabalho, a cidade transformou-se em referência para aque-
les que queriam enriquecer. As populações saídas de todos os lugares do Brasil procuravam
a cidade como salvação, em especial as massas de retirantes nordestinos que, como anun-
ciava Caymmi, pegavam um ita no Norte para vir no Rio morar.
Um dos pontos de honra do Plano Doxiadis era a eliminação das favelas que, na visão de
Lacerda, enfeavam a cidade e desvalorizavam as áreas que poderiam expressar as belezas
naturais da cidade. Com isso, o projeto de remoção das favelas deveria estar incluído no
plano de reforma da cidade.
A centralidade do debate sobre as favelas repercutiu na elaboração do Plano Doxiadis
que incorporou, de certa maneira, a política de construção de conjuntos habitacionais na
periferia da cidade que Lacerda vinha implementando desde a criação da Cohab em 1962.
Doxiadis apresentou seu Programa especial de política habitacional para favelados na forma
de um relatório emergencial, entregue apenas quatro meses após sua contratação, em junho
de 1964.
O programa especial para a eliminação das favelas por meio da criação de acomodações
a todos os favelados foi concebido para durar até 1980 e tinha em seus primeiros cinco anos
um momento chave. Doxiadis propunha como diretriz fundamental um esforço global para
mobilização de recursos públicos e privados.

2 Em 1962, eram concluídas as obras do túnel Santa Bárbara e iniciadas as do túnel Rebouças. Também foram
executadas obras de ampliação da antiga avenida Suburbana, abertura do túnel da rua Toneleros, construção
do trevo das Forças Armadas (importante eixo de ligação com a Zona Norte), além das obras do viaduto dos
Marinheiros, do parque do Aterro do Flamengo, da avenida Radial Oeste e a construção da Rodoviária Novo Rio.

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Esse plano de remoção não foi de fácil aceitação e se transformou numa questão política
em função da oposição que as forças de esquerda fizeram a tal projeto e principalmente a
forma pela qual as remoções começaram a ser feitas. O ponto central era a precariedade de
comunicação entre as vilas e os lugares de trabalho na cidade e também as questões rela-
tivas ao tempo para a remoção, justificado pela pressa do plano e criticado por seu caráter
autoritário. Para conter a primeira crítica, Lacerda criou uma empresa estadual de transpor-
tes – a CTC – que integraria as vilas ao Centro e eliminaria a primeira questão; quanto à
segunda, foi mais difícil, pois envolvia a Secretaria de Serviços Sociais, comandada na época
por Sandra Cavalcanti e que era acusada de fazer uma política de exclusão que teria chegado
ao ponto de jogar os mendigos no rio da Guarda, para eliminar a miséria da cidade durante
os festejos do aniversário da cidade.
Outro ponto que deve ser mencionado é o do financiamento das mudanças e da ocupa-
ção das áreas liberadas. Lacerda criou, junto com a elite de seu governo, um mecanismo de
acumulação que resolveu boa parte dos problemas de financiamento: o Banco da Habitação.
Esse instrumento de acumulação respondia pelo financiamento da casa própria para os ha-
bitantes do novo estado e permitia a continuidade dos projetos de saneamento e de abas-
tecimento, dando condição de sua realização. Durante o governo Lacerda, foram removidas
cerca de 42 mil pessoas em 27 favelas (sobretudo na região da avenida Brasil), construídos
quatro conjuntos habitacionais e urbanizadas quatro favelas (Valladares, 1978).
Ainda que não tenha dado o devido crédito, Negrão de Lima (que assumiu o governo do
estado em 1966) levou em consideração a reflexão de Doxiadis acerca dos conjuntos habita-
cionais, principalmente no que diz respeito à infraestrutura necessária para sua habitabilidade.
As remoções de favelas não se encerraram com o governo Lacerda, sobretudo após a
enchente de 12 de janeiro de 1966, quando um forte temporal deixou 50 mil desabrigados e
250 mortos. A tempestade, com duração de mais de 72 horas (e cujas águas demoraram cer-
ca de três dias para baixar), deixou a cidade completamente paralisada. O temporal atingiu,
principalmente, a zona da Leopoldina e os subúrbios da Central do Brasil. Também foram
atingidos bairros como Madureira, Jacarepaguá, Botafogo, Tijuca, Praça da Bandeira e Jardim
Botânico.
As medidas foram rápidas frente à tamanha tragédia. Em setembro de 1966, foi criado
um grupo de trabalho liderado pelo BNH para elaborar um plano habitacional para toda a
Guanabara. Após pouco mais de um ano, em dezembro de 1967, o governo do estado apre-
sentou o Plano de erradicação das favelas e urbanização do Rio de Janeiro, que seria iniciado
nas favelas do entorno da lagoa Rodrigo de Freitas e atingiria cerca de 35 mil pessoas.3
Em maio de 1968, a opção remocionista ganhava mais força com a criação da Chisam
(Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio), órgão

3 De maneira contraditória, em março de 1968, Negrão de Lima formava a equipe que constituiria a Codesco
(Companhia de Desenvolvimento de Comunidades), composta por sociólogos, economistas e arquitetos. Com
projeto pioneiro e uma concepção humanística da intervenção na favela, a nova companhia pretendia estudar
e urbanizar três favelas da Guanabara.

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subordinado ao Ministério do Interior, que foi o responsável pela realização das grandes
remoções de favelas até 1973, quando foi extinto.
Uma observação atenta das remoções mostra resultados surpreendentes. Apesar de a me-
mória do carioca apontar Lacerda como o governador responsável pelas maiores remoções ocor-
ridas, o número de pessoas removidas durante o governo Negrão de Lima foi quase o dobro!4
Uma análise geográfica das remoções realizadas durante esses dois governos também
surpreende. A maioria das remoções levadas a cabo durante o governo de Lacerda atingiu
favelas próximas à avenida Brasil. O programa de remoções passou a atingir amplamente a
Zona Sul somente em dezembro de 1967, já no governo Negrão de Lima.
Apesar de importante referência, o Plano Doxiadis teve importância prática reduzida.
Muito vinculado à figura de Carlos Lacerda, o plano foi entregue em um momento em que
a associação à imagem do governador não era desejada nem pelos militares, nem pela opo-
sição ao regime. A situação se agravou ao final de 1965 quando, após o cancelamento das
eleições presidenciais, Lacerda rompia com Castello Branco e, concomitantemente, não con-
seguia eleger um sucessor ao governo da Guanabara.
Contudo, o Plano Doxiadis nunca foi completamente abandonado.
Mesmo após a saída de Lacerda do governo do estado da Guanabara, a opinião pública
não se esqueceu do plano. Logo que Negrão de Lima assume a cadeira de governador, ini-
ciam-se cobranças a respeito de sua implementação.5 Em resposta, em junho de 1966, criou-
se um grupo de estudo que teria o prazo de trinta dias para estudar o plano e estabelecer sua
viabilidade. Este grupo deu origem à Comissão Executiva de Projetos Especiais (Cepe), órgão
responsável pelo prosseguimento dos estudos.
Ainda assim, o plano permaneceu praticamente intocado. Exceções foram as diretrizes
para a política de remoção de favelas e as obras implementadas na região do antigo Man-
gue, que incluía o vizinho Catumbi. Visto por Doxiadis como um bairro estagnado, a região do
Mangue deveria ser objeto de um plano de renovação urbana que permitisse a expansão do
Centro. Para tal, previam-se desapropriações em massa, modificação das dimensões dos lotes,
mudança na legislação urbana de modo a permitir um adensamento e abertura de avenidas.
A renovação urbana do Catumbi foi detalhada em 1966 pela Cepe-1, que procurou avan-
çar com o projeto viário e um programa do BNH de cooperativas habitacionais que previa a
construção de moradia para famílias filiadas a sindicatos e associações profissionais. Frente
à ameaça de despejo, os moradores, a partir de 1967, travaram com o governo do estado um
embate que contou com a participação do arquiteto Carlos Nelson Ferreira dos Santos. Al-
guns anos depois, conseguiram que as famílias despejadas fossem abrigadas em conjuntos
construídos no próprio bairro.

4 Foram transferidas, desde 1966 até abril de 1970, cerca de trinta favelas, totalizando 70.595 pessoas (Valladares,
1978).
5 A título de curiosidade: na década de 1960, a imprensa dizia que Negrão havia proibido a consulta ao plano e
trancado os poucos volumes existentes em uma gaveta. Posteriormente, na década de 1980, denunciou-se que
volumes do plano foram encontrados no poço de um dos elevadores do edifício da antiga Sursan.

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Em 1971, o Departamento de Estradas de Rodagem (DER) apresenta o famoso Plano das
linhas policrômicas. Segundo o projeto, a cidade possuiria um anel rodoviário que circun-
daria os maciços da Tijuca e Pedra Branca que, por sua vez, seria cortado por quatro auto-
estradas denominadas linhas policrômicas. São elas: (a) Linha Vermelha, responsável pela
ligação entre a Zona Sul e o Aeroporto Internacional na Ilha do Governador; (b) Linha Verde,
responsável pela ligação entre a rodovia Presidente Dutra e a lagoa Rodrigo de Freitas; (c)
Linha Amarela, responsável pela ligação entre a Barra da Tijuca e a ilha do Fundão; e (d) Linha
Azul, responsável pela ligação entre o Recreio dos Bandeirantes e a estrada Rio-Petrópolis.6
Apesar da apresentação do Plano das linhas policrômicas, a pressão pública pela implan-
tação do Plano Doxiadis perdura.
Em 1971, é criado pelo governador Chagas Freitas outro grupo de trabalho para rever o
Plano Doxiadis. Em 1972, o movimento pela retomada do Plano se fortalece e, em resposta,
Chagas Freitas volta a divulgar o plano do DER. Em sua defesa, afirma que, na elaboração do
projeto, o DER considerou os estudos anteriores, inclusive o de Doxiadis.
A execução do Plano das linhas policrômicas se inicia com a construção da Linha Verde
por meio da abertura do túnel Noel Rosa, ainda em 1972. Em 1977, por falta de verbas, as
obras foram paralisadas. A situação se reverte somente em 1992, quando foram iniciadas as
obras de construção da Linha Vermelha, inaugurada em 1994, e seguida da construção da
Linha Amarela, cujas obras se estenderam até 1997.
É do princípio da década de 1990 a confusão entre o Plano das linhas policrômicas e o
Plano Doxiadis. De maneira estrita, as linhas coloridas não pertencem ao Plano Doxiadis,
mas trata-se de projeto do DER de 1971. Contudo, é de Doxiadis a proposta de que uma
rede de transportes de velocidade deveria funcionar como estrutura para o desenvolvi-
mento e a descentralização dos serviços na cidade, assim como a defesa da construção de
vias arteriais com controle de acesso, sobre viadutos. Por fim, para além da semelhança
dos traçados, o plano elaborado por Doxiadis era um plano de diretrizes, que deveria ser
detalhado, a cada cinco anos, pelas equipes do governo do estado. De modo que, de certa
maneira, o trabalho que o DER fez de desenvolver as linhas policrômicas estava previsto
no Plano Doxiadis.
Mas retornemos às intervenções na cidade do Rio de Janeiro na década de 1970.

o pub rio e o pit metrô

A tese de que, no período de 1964 a 1974, a capital, de fato, retornou para o Rio de Janei-
ro, em função das estratégias de dominação definidas pela política dos primeiros governos
militares é reforçada quando se olha para os planos PUB Rio (Plano Urbanístico Básico do

6 Em 1973, é incluída no projeto mais uma autoestrada: a Linha marrom, que ligaria a avenida Presidente Vargas
à Santa Cruz. Em 1976, o município apresenta outra linha colorida, a Linha lilás que, inspirada no Plano Agache,
ligaria Laranjeiras ao Santo Cristo.

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Rio de Janeiro) e PIT Metrô (Plano Integrado de Transportes), pois, como nos adverte Vera
Rezende “torna-se necessário levar em consideração o fato de que esses planos representam
intenções em maior grau do governo federal que os órgãos a que estão diretamente ligados,
nos casos específicos, a Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro e a Companhia do Metropoli-
tano” (Rezende, 1982, p. 63).
Isso nos mostra como os interesses do Estado estavam dando as cartas, principalmen-
te depois de estabelecerem a nova política urbana, baseada nas regiões metropolitanas,
definidas como áreas institucionais, fazendo com que os municípios perdessem a sua au-
tonomia e dependessem diretamente da ação do Estado. Para isso, foi criada a Comissão
Nacional de Regiões Metropolitanas de Política Urbana que tinha como principal diretriz
construir as definições da política urbana brasileira que constariam do II Plano Nacional
de Desenvolvimento (PND). O apoio de sustentação dessa política foi idealizado a par-
tir da criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento Urbano, que fazia parte do Fundo
de Desenvolvimento dos Transportes, e seria a base de sustentação financeira da política
urbana. Como decorrência desse tipo de tratamento, foi criada a Empresa Brasileira de
Transportes Urbanos (EBTU), que coordenaria todas as questões de política de transportes
nas cidades.
Essa linha de ação estava claramente definida no II PND, onde, em linhas gerais, a estra-
tégia era direcionar a força da política urbana para as cidades de porte médio, com a inten-
ção de produzir mecanismos que levassem à eliminação das diferenças regionais, propician-
do tanto a distribuição de renda como renovando mercados, para o que era fundamental
a política de transportes. Havia, ainda, um certo cuidado com as cidades do Rio de Janeiro
e de São Paulo, que deveriam ser monitoradas para não se transformarem em cidades cujo
crescimento fosse incontrolável.
Essas definições podem ser percebidas no I Plan Rio que se orienta para a transformação
do estado do Rio de Janeiro no segundo pólo nacional de desenvolvimento, buscando com
isso eliminar as desigualdades entre rural e urbano, fornecendo alternativas para o desenvolvi-
mento de uma economia estável que auxiliasse no desenvolvimento das cidades do interior do
estado, que deveriam buscar as suas vocações. Para isso, se definiu um eixo de desenvolvimen-
to que centralizaria todas as ações com o intuito de realizar um processo de aumento da renda
para gerar investimentos, ao lado dos outros instrumentos que o governo federal possuía. Isso
justificava a fusão do antigo estado da Guanabara com o estado do Rio de Janeiro.
Percebe-se um claro movimento de integração dessas áreas à política nacional, com o in-
tuito de fortalecer a ideia de uma nação unida e integrada, sem conflitos e aberta para o futuro.
O PUB Rio é, nesse contexto, exemplar para definir a concretude da fusão de estados. A
plena realização do projeto ocorreu pela sintonia que havia entre o governador do estado
do Rio de Janeiro, Faria Lima, e o prefeito do Rio de Janeiro, Marcos Tamoyo. Juntas, as duas
autoridades nomeadas pelo governo federal realizaram as reformas que atenderam às orien-
tações da política urbana federal, embora houvesse uma questão central a resolver: com a
fusão, a cidade do Rio de Janeiro tornou-se um município e com isso perdia boa parte de sua
renda; havia ainda as rendas comprometidas com os empenhos dos empréstimos feitos ao

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longo do período de 1961 até 1974. Tudo isso, afetava a condição de desenvolvimento da
cidade do Rio de Janeiro, pois inviabilizava investimentos.
Os objetivos do PUB mantêm a linha geral dos planos da cidade que são de orientação
física. A diferença é que neste, como há uma ligação com a política de Estado, são envolvidas
também as áreas da economia e da sociedade por conta da necessidade de definir a cidade
como ordenadora das políticas públicas metropolitanas. Nesse sentido, a dimensão física foi
privilegiada como base para o crescimento econômico e social. Assim, foram assumidas três
diretrizes: (a) definir uma política de apoio ao planejamento municipal; (b) estabelecer uma
relação orgânica entre os vários níveis da estrutura urbana compatibilizando-os com as ati-
vidades de produção; (c) reforçar a dependência das políticas federais, integrando a política
municipal ao nível nacional.
Interessante notar que este é o primeiro momento em que surgem, em um plano diretor
da cidade do Rio de Janeiro, noções como incentivo ao turismo e promoção do patrimô-
nio histórico-cultural. Esse ponto é reflexo direto do esvaziamento de uma peculiaridade
político-administrativa da cidade: não mais capital ou única cidade-estado. Nesse sentido, a
noção de patrimônio histórico-cultural mostra uma cidade não mais voltada para um futuro
com papel de liderança, mas para uma memória de um passado em que ocupou o centro do
poder politico.
O PIT Metrô segue a mesma direção do PUB Rio, marcando de forma concreta a presen-
ça da dinâmica federal no Rio de Janeiro. Seu início de elaboração coincide com o ano da
fusão do estado da Guanabara com o estado do Rio de Janeiro e é apresentado em setem-
bro de 1977.
Seus pressupostos seguem as linhas gerais dos planos anteriores, enfatizando a cidade
como um todo, mas aos poucos ganhando uma diretriz mais definida, que é a do sistema de
transportes. Por ter essa dimensão de circulação, o plano teve como marca a arrumação da
cidade, privilegiando os equipamentos urbanos e a construção do sistema de metrô. Esta
última ação vai tomar conta do plano e modificar a estrutura da cidade para muito além
dos transportes. A implantação do metrô foi usada para reverter o movimento que a cidade
vinha tendo como metrópole, destruindo determinados espaços onde novas alternativas
sociais e políticas começavam a adquirir expressão, como a limitação da prostituição em
lugares como a Cinelândia.
Embora tivesse uma dimensão mais técnica e atingisse a cidade como um todo, havia
a associação da modificação gerada pela implantação do metrô à moralidade urbana.

o brizolismo no rio de janeiro

Em meados da década de 1970, iniciava-se o processo de liberalização, lenta e controla-


da do regime autoritário. Em 1979, em atendimento à pressão de ampla mobilização social,
foi finalmente concedida a anistia e permitido o retorno dos exilados e a recuperação dos
direitos políticos daqueles que haviam sido cassados. Ainda em 1979, era extinto o sistema
bipartidário e reintroduzia-se o pluripartidarismo no Brasil.

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A anistia e o retorno ao pluripartidarismo abriram espaço para a entrada de uma nova
corrente no campo político carioca: o brizolismo. Com uma estratégia de campanha focada
na insatisfação com o regime civil-militar, Brizola conquista em 1982 uma vitória apertada
para o governo do estado do Rio de Janeiro. Essa eleição foi marcada pela famosa tentativa
de fraude escandalosa na contagem dos votos perpetrada pela empresa de computação
Proconsult, que transferia, irregularmente, votos brancos e nulos ao candidato dos militares,
Moreira Franco.
O brizolismo abraçou as minorias não representadas no debate da democracia que se
construía na década de 1980, focada nos direitos dos perseguidos políticos e cassados pelo
regime autoritário.
Ao longo da década de 1980, na cidade do Rio de Janeiro, a força do brizolismo foi cada
vez maior. Nas eleições de 1985 para a prefeitura da capital elegia Saturnino Braga. Em 1988,
Marcello Alencar também vencia com ampla margem as eleições municipais. E, em 1991, Bri-
zola retornava ao governo do estado. Durante a década de 1980, não foram elaborados planos
diretores para a cidade do Rio de Janeiro. O foco da administração transferiu-se das grandes in-
tervenções urbanas para as questões sociais, com o enfrentamento direto da pobreza urbana.
Destaca-se, neste cenário, a nova relação com as favelas e a opção por sua urbanização.
Sob a responsabilidade da Secretaria de Habitação e Trabalho, o governo do estado lançou o
programa Cada família um lote, que tinha como objetivo a distribuição de um milhão de tí-
tulos de posse por todo o estado. Detalhe interessante do programa foi a opção pela entrega
da titulação de posse das terras às mulheres, vistas como chefes de família. Ainda no âmbito
das favelas, foram executadas ações de implementação de infraestrutura de água e esgoto, o
chamado programa Proface. Também importante foi o programa Uma luz na escuridão, que
implantou rede elétrica nas favelas.
Ademais, cabe lembrar a importância do projeto dos Centros Integrados de Educação
Pública, os Cieps, escolas onde a criança permanecia por tempo integral, tinha direito a cinco
refeições diárias, banho, atendimento médico e dentário e espaço para socialização e espor-
te. Com arquitetura de Oscar Niemeyer, os Cieps se traduziam em símbolos edificados de
uma nova nação que se firmaria com a liderança de Brizola.
A construção do primeiro Ciep esteve associada a outro importante projeto: a Passarela
do Samba, ou, como ficou conhecido, o Sambódromo. Ali, onde também foi erguida uma
escola para 16 mil crianças, se encontravam a cultura erudita da escola e a cultura popular
do carnaval.
Talvez o ponto mais polêmico do brizolismo no Rio de Janeiro tenha sido a reformulação
da política de segurança pública. Desde a gestão anterior, o governador Chagas Freitas vinha
enfrentando problemas relacionados a denúncias de abuso de autoridades policiais, princi-
palmente dos temidos esquadrões da morte. Ainda em campanha, Brizola afirmava que não
permitiria a continuidade de tais práticas, obrigando as forças de segurança a tratarem de
forma igualitária todas as classes sociais.
Suas medidas polêmicas geraram um debate acalorado acerca da violência urbana no
Rio de Janeiro. Ao longo das décadas de 1980 e 1990, a cidade conviveu com altos índices

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de criminalidade violenta. Emblemáticos desse processo foram os casos das chacinas de Vi-
gário Geral e Candelária e os arrastões nas praias da Zona Sul, ocorridos em 1992 e 1993. Em
1994, as Forças Armadas intervêm diretamente na segurança pública da cidade, na chamada
Operação Rio.
Diante desse cenário, o discurso acionado por Brizola de defesa dos direitos humanos
acabou por se desgastar e ser associado à noção de inoperância e falta de iniciativa do es-
tado em lidar adequadamente com criminosos. De modo que, no início da década de 1990,
opera-se uma mudança na imagem do Rio de Janeiro: de cidade maravilhosa para cidade do
crime e do medo.
Essa insatisfação refletiu diretamente nas eleições municipais de 1992, quando a candi-
data de Brizola, Cidinha Campos, sequer chegou ao segundo turno. Ao contrário, a eleição
foi vencida por um ex-pedetista, o economista César Maia, que tomou como foco de sua
campanha o combate à desordem urbana, em uma crítica direta à atuação de Brizola.
o planejamento estratégico

Em 1993, César Maia é eleito prefeito; em 1997, elege seu sucessor, Luís Paulo Conde;
em 2001, retorna à prefeitura e em 2005 é reeleito. Esse período de 12 anos é marcado por
uma nova característica: a despolitização do papel do prefeito, que passa a atuar como um
administrador da cidade. Há um retorno às grandes intervenções, visto que a cidade passa a
ser administrada por obras urbanas. Diferentes projetos são executados por toda a cidade,
principalmente por meio dos programas Favela Bairro e Rio Cidade. Também na década de
1990, surge, no campo do planejamento urbano, um novo conceito: o planejamento estraté-
gico (trazido pelo então secretário de Urbanismo, o arquiteto Luís Paulo Conde).
Esta mudança se concretizou em 1993 com a divulgação do primeiro Plano Estratégico
da Cidade (PECRJ), Rio sempre Rio. Segundo o plano, de modo a reverter a suposta crise de
falta de investimentos, seria necessário um reposicionamento da cidade em termos globais.
Ademais, o PECRJ inaugurou, no Rio de Janeiro, a adoção do marketing urbano como ferra-
menta de projeção internacional da cidade. Em outras palavras, tratava-se de construir uma
nova capitalidade para aquela que já havia sido capital do Império e da República, além da
única cidade-estado do país. Foi inserida nessa lógica que nasceu a primeira candidatura do
Rio de Janeiro para sediar os Jogos Olímpicos de 2004.
Em 2001, Maia retorna à prefeitura após disputa eleitoral com aquele que fora seu suces-
sor. Em 2004, lança um novo Plano Estratégico: As cidades da cidade. Propondo a subdivisão
da cidade em doze macrozonas com planos específicos, o plano tratava cada região da cida-
de de forma independente e optava por empreendimentos isolados do espaço da rua, como
a Cidade do Samba na Gamboa, a Cidade da Música na Barra da Tijuca, ou ainda a Cidade das
Crianças em Santa Cruz.
Em 2009, Eduardo Paes elege-se à prefeitura e em 2013 reelege-se. Sua eleição repre-
senta a continuidade do processo iniciado em 1993, com a busca pela internacionalização
da cidade. Ponto alto desse processo ocorreu em outubro de 2009, quando foi anunciada a
escolha da cidade do Rio de Janeiro para sediar os Jogos Olímpicos de 2016. Ainda em 2009

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e, posteriormente, em 2013, Paes apresenta um novo plano estratégico para a cidade: Pós-
2016. O Rio mais integrado e competitivo (ambos com o mesmo nome). Também em sua ges-
tão (e se utilizando de instrumentos previstos nos planos estratégicos anteriores), Paes deu
início a uma grande operação urbana de revitalização da zona portuária da cidade: o projeto
Porto Maravilha, que, mesmo focado nos bairros da Saúde, Gamboa, Santo Cristo, São Cristó-
vão e Centro, é um projeto que tem como horizonte toda a cidade do Rio de Janeiro.

***

Ao longo deste texto, trabalhamos diferentes momentos do Rio de Janeiro.


Em pouco mais de um século, a cidade demandou mudanças, que correram junto a tran-
sições políticas e econômicas de caráter nacional.
Nesse sentido, o Rio de Janeiro, mesmo após a perda do status oficial de capital, perma-
nece exercendo função de difusor de modismos e costumes, de novos conceitos de cidade,
de uma imagem do Brasil.

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Recebido em 15/1/2015
Aprovado em 19/1/2015

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um sertanejo na capital federal
coelho netto e o rio de janeiro dos primeiros anos da república
a “sertanejo” in the federal capital
coelho netto and rio de janeiro of the early years of the republic

Leonardo Affonso de Miranda Pereira | Professor associado do Departamento de História da Pontifícia Uni-
versidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Mestre e doutor em História Social pela Universidade de Campinas
(Unicamp).

resumo

Em meio às turbulências políticas dos primeiros anos da República, Coelho Netto publicou o ro-
mance A capital federal, nos folhetins de O Paiz. Tratava-se de um relato supostamente escrito
por Anselmo Ribas, um jovem do sertão de Minas Gerais, que visitava pela primeira vez o Rio de
Janeiro. Ao invés da civilização e fausto que projetara, Anselmo viu ruas estreitas e feias, e ouviu
histórias sobre pestes e epidemias, e assim se propôs a expressar uma visão realista da cidade,
que a afastasse das imagens rebuscadas constituídas pelos ideólogos da República. O objetivo
deste artigo é entender essa leitura da cidade.

Palavras-chaves: Coelho Netto; Rio de Janeiro (cidade); Brasil – Primeira República.

abstract

During the political turmoil of the early years of the Republic, Coelho Netto published the novel
A capital federal, in the newspaper O Paiz. The story was supposedly written by Anselmo Ribas,
a young man from the countryside of Minas Gerais, who was visiting Rio de Janeiro for the first
time. Instead of projected civilization and magnificence, Anselmo saw narrow and ugly streets,
and heard stories about plagues and epidemics which induced him to aim at expressing a realistic
view of the city, departing from the elaborate images created by the ideologues of the Republic.
Understanding this view of the city is the objective of this article.

Keywords: Coelho Netto; Rio de Janeiro (city); Brazil – First Republic.

resumen

En medio a la agitación política de los primeros años de la República, Coelho Netto publicó la no-
vela A capital federal, en el periódico O Paiz. Era una historia supuestamente escrita por Anselmo
Ribas, un joven del interior de Minas Gerais, que visitaba por primera vez Río de Janeiro. En lugar
de la civilización y el lujo que había proyectado, vio calles estrechas feas, y oído historias sobre
plagas y epidemias y así se propone expresar una visión realista de la ciudad, que se apartan de
las imágenes elaboradas por los ideólogos de la República. El propósito de este artículo es la
comprensión de esa visión sobre la ciudad.

Palabras clave: Coelho Netto; Rio de Janeiro (ciudad); Brasil – Primeira República.

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E m novembro de 1892, poucos dias após o terceiro aniversário da Proclamação da Re-
pública, aparecia na primeira página do jornal O Paiz uma coluna intitulada “A capital
federal”. Assinada por um certo Anselmo Ribas, ela trazia, sem maiores avisos ou explicações,
as lembranças e sensações do narrador em sua chegada de trem ao Rio de Janeiro. Depois de
viajar em um dos “confortáveis vagões de 1ª classe”, ele contava sua excitação ao desembarcar
na capital federal: “senti um deslumbramento tal que tive de fechar os olhos”. Vindo de uma
“vila” que descreve como uma “pobre terra de bárbaros, alumiada ainda pelas estrelas de Deus
e pelas candeias de colza que a intendência manda pendurar em postes”, mostrava-se impres-
sionado com “a luz lactescente das lâmpadas” que iluminavam a estação. “Com que vaidade
patriótica, com que enfatuado orgulho chauvinista contemplei aquele supremo clarão”, lem-
brava Anselmo, dando vivas ao “século das luzes”: “com seiscentos diabos! Isso é que é terra!”.
As sensações e expectativas desse homem do interior recém-chegado à capital davam forma
a uma narrativa que, como sugerido por um aviso de “continua” no seu fim, seria retomada nos
dias seguintes, constituindo o capítulo inicial de um folhetim que tinha por subtítulo “impres-
sões de um sertanejo”. Publicado quase diariamente até o dia 7 de fevereiro de 1893, ele se es-
truturava a partir dessa premissa inicial, dando a ver o testemunho de um narrador do interior
sobre a cidade do Rio de Janeiro que começava a conhecer.1
A julgar pelo noticiário de outras folhas, a repercussão do romance foi significativa.
Segundo o jornal A Capital, aquele foi um folhetim “interessadamente acompanhado” pelo
público, o que indicaria o sucesso do “aplaudido Sr. Anselmo Ribas”. 2 Como resultado do
“alvoroço” com o qual o romance teria sido “acolhido pelos leitores”, poucos dias após o
fim de sua publicação O Paiz anunciava o início de um novo folhetim do mesmo narrador.3
Uma dúvida, porém, permanecia entre os interessados naqueles escritos: quem era An-
selmo Ribas? Ao tratar do folhetim no momento em que ele era lançado em livro (outro
atestado do sucesso do romance), um redator do jornal O Tempo se interrogava sobre seu
narrador: “nome ou pseudônimo?”.4 Tratava-se, para o formulador da pergunta, de uma
“controvérsia que só pelo tempo será resolvida”. Sem chegar a responder à questão, passa-
va a conjecturar sobre ela:

Seja como for, o certo é que se lia Anselmo Ribas com verdadeiro prazer, convencendo-
se logo de duas cousas: de que se apresentando modestamente como sertanejo, o autor
conhecia a fundo a nossa capital, estudando-a com grande observação e que se por
acaso não fosse bacharel, formado como toda gente, devia ter frequentado cursos supe-
riores, tal a erudição que revelava.

1 Anselmo Ribas (Coelho Netto), A capital federal: impressões de um sertanejo, O Paiz, 18 de novembro de 1892.
2 A Capital, 17 de fevereiro de 1893.
3 “Miragem”, O Paiz, 17 de fevereiro de 1893.
4 O Tempo, 20 de agosto de 1893.

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Ainda que sem identificar o autor, a nota tratava de desnudar a premissa que estruturava
o folhetim: fosse ou não seu autor um sertanejo, seu relato se configurava como um meio de
refletir, de um ponto de vista exterior e elevado, sobre a cidade do Rio de Janeiro. Configu-
rava-se, assim, uma perspectiva narrativa que permitia ao autor daqueles escritos se afastar
das visões superficiais associadas à capital federal republicana, “cidade-capital” cujo brilho
era então projetado como um farol da nação republicana que se afirmava (Neves, 2003).
Àquela altura, no entanto, o mistério não teria mais vida longa. Com o lançamento do
livro, a própria imprensa se encarregaria de desfazer a dúvida. Na véspera da notícia publi-
cada por O Tempo, a revista literária A Semana noticiava também o lançamento do volume,
e identificava seu autor: Coelho Netto, “o primoroso estilista, o imaginoso poeta da prosa”.5
Poucos dias depois, seria a vez do Jornal do Brasil deixar claro que “poucos são os que igno-
ram que o pseudônimo de Anselmo Ribas esconde um dos nossos mais notáveis escritores”,
ainda que não desse seu nome.6
Nem precisava. Coelho Netto era, a essa altura, um jovem escritor de talento já reco-
nhecido por seus pares. Após surgir para o mundo das letras com alguns versos publica-
dos na imprensa acadêmica quando era estudante da Faculdade de Direito de São Paulo,
engajou-se na capital paulista com a campanha abolicionista patrocinada por Antônio
Bento. De lá retornou ao Rio de Janeiro em 1885, onde passou a trabalhar na redação
da Gazeta da Tarde, folha dirigida por José do Patrocínio que era então verdadeira trin-
cheira do abolicionismo e do republicanismo (Pereira, 2000). Nos anos seguintes, passou
ainda por muitos outros jornais, sempre na busca por um espaço de expressão literária
de ideais ligados às ideias novas do tempo (Mello, 2007). Dessa forma, A capital federal
era o primeiro romance do já reconhecido literato, cujo prestígio havia sido assegurado
nos anos anteriores tanto por essa intensa produção de contos e crônicas na imprensa
quanto pela publicação, dois anos antes, do livro de contos intitulado Rapsódias (Coelho
Netto, 1942).
Apesar do sucesso alcançado pelo jovem escritor, os primeiros anos da década de 1890
traziam um grande desafio para literatos e jornalistas que, como ele, haviam se colocado
nos últimos anos do Império como republicanos radicais. Depois de sonharem com uma
transformação que idealmente se daria pela simples substituição do regime de governo, eles
testemunharam nos primeiros anos da República o desmoronamento de seus ideais, em de-
sastre expresso pelas contradições e desmandos que marcaram a prática política dos primei-
ros governos republicanos (Pereira, 2003). No próprio momento em que escrevia A capital
federal, Coelho Netto via vários de seus colegas de letras, como Olavo Bilac e Pardal Mallet,
serem presos e perseguidos pelo governo de Floriano Peixoto. Abrigado sob o republicanis-
mo do jornal O Paiz, passou por isso a publicar crônicas leves e aparentemente distantes do
universo da política, sob o título “Bilhetes postais”.

5 Gazetilha Literária, A Semana, 19 de agosto de 1893.


6 Jornal do Brasil, 27 de agosto de 1893.

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Afastado a partir desse momento das discussões propriamente políticas, Coelho Netto
passava a dar forma a uma literatura que evitava o enfrentamento. Não é de se admirar, por
isso, que ele tenha sido muitas vezes definido como parte de um “filão letrado que se solda
aos grupos arrivistas da sociedade e da política, desfrutando a partir de então de enorme su-
cesso e prestígio pessoal” – como sugere Nicolau Sevcenko (2006). Por estarem “plenamente
assimilados à nova sociedade”, autores como ele teriam assumido “o estilo impessoal e anó-
dino da Belle Époque”, sendo sua produção literária apropriadamente definida como simples
“sorriso da sociedade” (Sevcenko, 2006, p. 131). Distante de interesses políticos mais diretos,
Coelho Netto seria assim definido por um cosmopolitismo literário acrítico, desinteressado
da realidade social.
Em tempos mais recentes, no entanto, outros autores trataram de sugerir uma imagem
diversa para o escritor. Ao analisar a própria série “Bilhetes postais”, Ana Carolina Feracin
demonstra como, para além das aparências, o autor fazia dela um meio de veicular críticas
veladas aos rumos do regime pelo qual tanto lutara (Silva, 2002). Por mais que adotasse um
procedimento narrativo cuidadoso, expressando suas críticas alegoricamente sob a forma
inofensiva de cartas endereçadas a seus leitores, mostrava não ter aberto mão do impulso
de reflexão e intervenção sobre sua realidade.
Pois foi justamente em meio a tal experiência que Coelho Netto escreveu seu primeiro
romance, produzido em um momento de inquietação e perigo, no qual se via diante do
desafio de equilibrar a precaução em relação à realidade política do momento com a neces-
sidade de expressão literária de seus ideais. Extrapolando as amarras da memória projetada
pela posteridade sobre a produção de Coelho Netto, cabe por isso tentar decifrar o testemu-
nho de Anselmo Ribas, de modo a entender como que aquela prosa leve e despretensiosa,
cuja finalidade única parecia ser o entretenimento dos leitores do jornal, pode ter servido de
um canal de expressão de projetos e sonhos mais amplos de seu autor.

as fantasias da civilização

Ao ser publicado em livro, o romance apresentava a mesma estrutura básica do folhetim


do jornal O Paiz, ainda que com alguns acréscimos e complementos. Reproduzia-se assim o re-
lato supostamente escrito por Anselmo Ribas – jovem nascido e criado em Tamanduá, cidade
fictícia no sertão de Minas Gerais, que no início da década de 1890 visitava pela primeira vez o
Rio de Janeiro. Hospedado na casa de um tio que enriquecera durante o Encilhamento, deixava
no livro suas impressões sobre a capital federal, em mecanismo através do qual Coelho Netto
estabelecia um olhar crítico sobre a cidade do Rio de Janeiro (Coelho Netto, 1924).
Ainda que a essa altura já fosse de conhecimento público ser ele o autor do romance, fez
questão de colocar o nome de seu personagem na assinatura do livro. Ao atribuir a Anselmo
Ribas a autoria do volume, o romancista deliberadamente mantinha, no novo suporte, a pers-
pectiva narrativa adotada no folhetim. Desse modo, mais uma vez contava aquela história a
partir do olhar de seu personagem sertanejo, que se apresentava de forma diversa daquela
do literato. Dizendo-se “incapaz da mais insignificante imagem poética” (Coelho Netto, 1924,

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p. 36), Anselmo Ribas mostrava-se de fato bem diferente do autor que lhe dava vida. Através
deste artifício, Coelho Netto adotava uma estratégia narrativa já utilizada por autores como
Machado de Assis, que antes dele tratou de constituir elaborados personagens-narradores
para contar suas histórias (Chalhoub et al., 2003).
Ainda que mantivesse a mesma perspectiva narrativa do folhetim, na forma de livro o
romance se apresentava de modo mais elaborado, com acréscimos que se iniciam na sua
dedicatória. Uma nota inicial, supostamente escrita em 1893 por Anselmo Ribas na cidade
de Tamanduá, dedicava o livro ao “padre Ambrósio Coriolano d´Anunciação Lousada, vigá-
rio de Tamanduá, como humilde testemunho de gratidão” pelos conselhos e cascudos “com
que me abriu a cabeça para que nela entrassem as regras de concordância e os versos de
Virgílio” (Coelho Netto, 1924, p. 5). Logo em seguida, em novo adendo ao texto, o narrador
transcreve uma breve carta ao tio que antecede o relato propriamente dito – na qual explica
que a dedicatória se devia ao fato de que, sem os ensinamentos do padre, “seria ainda hoje
tão bronco como o Venâncio Dias, do rancho de Santa Engracia, ou como o José Taborda, da
cordoaria” (Coelho Netto, 1924, p. 7). Através de tais mecanismos, Coelho Netto reforçava a
ideia de que Anselmo Ribas seria de fato um autor que havia retornado à sua cidade natal,
apostando com isso na autonomia de seu narrador.
Outra diferença do livro em relação ao folhetim aparecia logo no segundo parágrafo do
primeiro capítulo. Se n’O Paiz a ação se iniciava com a chegada do protagonista ao Rio de
Janeiro, na edição em livro Coelho Netto inseria uma cena passada ainda no trem, que ajuda-
va a situar todo o enredo: acomodado “nos bancos do expresso”, Anselmo Ribas contava ter
viajado ao lado de “dois homens terríveis, de ideias contrárias”. Um deles era descrito como
“um rotundo, conservador e católico, saudoso do monarca, bramando contra a indiferença
do povo, que deixara partir para o exílio o velho soberano, sem um protesto, sem um tiro ao
menos”. O outro era um “livre pensador, formidável em teorias republicanas”, que “discorria
sobre as revoluções, reclamando um batismo de sangue, como o de 89, em França, sem o
que a república nunca chegaria à consolidação perfeita” (Coelho Netto, 1924, p. 10). Chama-
do a se colocar em meio aos fortes desacordos entre os dois, Anselmo conta ter encolhido os
ombros “para fugir à discussão”. Anunciava-se, com isso, o perfil de um narrador interiorano
distante das paixões políticas da capital federal, interessado somente no brilho de civilização
que esperava encontrar no Rio de Janeiro, que somente havia visitado por poucos dias ainda
na infância, em 1872, quando testemunhou uma epidemia de febre amarela que o havia
feito tomar “horror” à Corte imperial (Coelho Netto, 1924, p. 84).
As novidades anunciadas com a Proclamação República pareciam, porém, ter mudado as
expectativas do narrador, que desde o início da trama mostrava projetar para o Rio de Janei-
ro uma imagem de brilho e modernidade. Logo que chegou, Anselmo Ribas foi levado para
a casa de seu tio, um “confortável chalet suíço” na praia do Russel, na Glória. Enriquecido da
noite para o dia em “transações felizes”, provavelmente ligadas às instabilidades do Encilha-
mento, o anfitrião vivia confortavelmente de suas rendas, sozinho em uma casa ampla com
dois criados e um cozinheiro (Coelho Netto, 1924, p. 23). A riqueza do banheiro, em espe-
cial, impressionou Anselmo: ao descrevê-lo como um “santuário da limpeza” (Coelho Netto,

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1924, p. 29), viu nele a chance de receber, logo em seu primeiro banho na capital federal,
o “batismo da civilização”, capaz de limpar “a barbárie de sua alma ignorante e insaciada”
(Coelho Netto, 1924, p. 33-34). No deslumbramento com as luzes da estação ferroviária ao
fascínio pela riqueza exuberante da casa do tio, pareciam se confirmar as altas expectativas
do narrador em relação à capital federal, que em seus sonhos seria capaz de tirar o país e
seus habitantes de séculos de atraso.
Uma grande distância viria separar, porém, a expectativa de Anselmo Ribas daquilo que
ele avistaria nas ruas em seu primeiro passeio pela cidade. Levado pelo tio em sua luxuosa
carruagem, chegou pela primeira vez à região central da cidade, iluminada então pela luz
do dia. “O Rio começava a aparecer-me”, contava o narrador, explicitando uma expectativa
que começou a se dissipar no momento em que chegou ao largo de São Francisco. Em suas
lembranças, “era uma grande praça quadrada e clara, murada pelos edifícios que reverbera-
vam à luz radiante do sol”, na qual se destacava ao centro “a estátua tosca de um homem, em
atitude cheia de solenidade” – que o tio logo lhe explicaria se tratar de José de Bonifácio, “o
patriarca da nossa independência”. Ao fundo da praça, lhe apontava ainda o prédio da Escola
Politécnica, que representava “a ciência”, em torno da qual se estabeleciam “o comércio, a
indústria, o movimento” (Coelho Netto, 1924, p. 62-63). “Com efeito, a vida parecia decorrer
do ponto indicado”, lembrava Anselmo Ribas, reconhecendo no ponto em que o tio o levou
o coração da própria cidade que começava a conhecer.
Junto ao fascínio com a novidade e o movimento da capital federal, no entanto, come-
çava a se manifestar no sertanejo certo desapontamento. Em frente ao largo viu uma rua
“cheia de gente”, que o tio lhe explicou ser a realização de um desejo que manifestara para
ele em uma carta: “ver a rua do Ouvidor” (Coelho Netto, 1924, p. 65), a tão falada “artéria da
civilização patrícia” (Coelho Netto, 1924, p. 67). Nesse momento, o fascínio gerado por suas
elevadas expectativas sobre o Rio de Janeiro começava a desmoronar. “Uma desilusão”, disse
ele ao tio, dando início à sua reflexão:

- Então... o que esperavas tu?


- Eu? Uma avenida como as que tenho admirado em gravuras, como as que tenho visto
descritas: com grandes casas apalaçadas, ruas cuidadosamente calçadas de mármore...
arquitetura e gosto, arte e elegância, e largueza sobretudo, meu tio; largueza, muita
largueza (Coelho Netto, 1924, p. 65).

Apertada e escura, a rua do Ouvidor apresentava-se muito diferente daquela imagem


moderna de cidade imaginada por Anselmo Ribas. Por mais que encontrasse ali o “luxo dos
mostradores”, as novidades das vitrines, os trajes elegantes de alguns transeuntes, a rua ain-
da parecia para ele muito distante da modernidade esperada. O tio ainda tenta defendê-la,
chamando a atenção do sobrinho para alguns de seus encantos – como o fato de que con-
centrava “todas as forças ativas da nação”, como o comércio, a indústria e a imprensa, de
onde escoava sua “seiva intelectual”. Acaba, porém, por reconhecer que ela “não foi traçada
por um Haussmann”, sendo um simples “beco” (Coelho Netto, 1924, p. 70). “Parado em meio

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da rua, olhando, eu sentia caírem dentro de mim, um a um, todos os meus sonhos ingênuos
de roceiro”, relembrava o narrador. Enquanto vislumbrava aquela “viela atarracada e sórdi-
da”, mostrava assim sua indignação contra todos que o haviam enganado “com exageradas
fantasias e soberbas descrições de um fastígio incomparável” (Coelho Netto, 1924, p. 66-68).
Na decepção de Anselmo Ribas com a rua do Ouvidor, cristalizava-se um sentimento que
marcaria suas opiniões sobre a capital federal como um todo. Junto à crítica ao seu aspecto
urbano, o narrador dava a ver suas más impressões sobre a população local. Sentindo-se
sufocado ao andar espremido por aquelas ruas apertadas, Anselmo maldizia a “promiscuida-
de terrível” da mistura em meio àquele cenário urbano de “todas as variadas escamas desse
camaleão – o povo” (Coelho Netto, 1924, p. 76). Tão distante de seus sonhos de civilização
quanto o aspecto físico da cidade, a turba urbana que via pelas ruas, na qual se misturavam
os mais diferentes sujeitos, aparecia para ele como uma ameaça, um “inferno”. Já esquecido
do luxuoso banheiro do tio, o jovem sertanejo se percebia incapaz de ver naquele “oceano
tumultuoso da populaça” qualquer poesia (Coelho Netto, 1924, p. 77).
Através de um narrador capaz de estranhar uma realidade vivida com naturalidade pe-
los habitantes da capital federal, Coelho Netto construía um enredo que se estruturava em
torno de um questionamento das imagens de civilização associadas à capital federal. Ao
observar a cidade ao longo dos oito dias que ali permaneceu, o narrador diferenciava-se de
“todos quantos caminharam pelas ruas da cidade excelsa” e que, a partir dessa experiência,
“gabam-lhe as maravilhas” (Coelho Netto, 1924, p. 269). Propõe-se, com isso, a expressar em
sua narrativa uma visão realista do Rio de Janeiro, criticando os “sonhadores ou mentirosos”
– “sonhadores em suma, porque a mentira é um produto do sonho” – que formavam proje-
ções irreais sobre a capital da República (Coelho Netto, 1924, p. 270).

o caminho da regeneração

Nem só de desilusão, no entanto, é feito o romance de estreia de Coelho Netto. Se a de-


cepção de Anselmo Ribas com a capital federal é a marca fundamental de todo o livro, ela é
contraposta, ao longo da narrativa, à fala de outro personagem, ao qual o narrador dedica
grande atenção: o dr. Gomes de Almeida, “um rapagão de fartos bigodes loiros, pince-nez,
sobrecasaca e calça clara”, apresentado pelo tio como “moço de talento e rico” (Coelho Netto,
1924, p. 82). Conhecido por sua “boa prosa”, ele se torna o acompanhante preferencial de
Anselmo e seu tio no processo de descoberta da cidade, que o ajuda a entender com sua
vasta erudição e suas opiniões filosóficas. Embora o narrador o tenha achado de início um
tanto “exagerado”, reconhecia sua inteligência e capacidade de expressão. Do momento em
que o conhece em diante, o romance assume assim a forma de um diálogo entre Anselmo e
seu interlocutor, de quem ouve com atenção e interesse explicações e perspectivas diversas
sobre a vida da capital federal.
Dr. Gomes parece de início corroborar as primeiras impressões negativas do jovem ser-
tanejo sobre o Rio de Janeiro. “Deu-se comigo o mesmo”, explicava a Anselmo ao ouvir dele
a sensação de decepção com a capital federal, relatando a desilusão que também teve por

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projetar nela a imagem de “uma cidade artística, monumental, com abundância de mármo-
res, avenidas, longos passeios abrigados sob toldos, palácios de estilo e fausto clássico”. Por
não poder encontrar ali “o espírito, a elegância, a beleza” com a qual sonhara, reconhece que
a primeira impressão causada pelo Rio de Janeiro seria a de “uma cidade vulgar, sem nada
absolutamente do que lhe emprestara a sua imaginação” (Coelho Netto, 1924, p. 85).
Aos poucos, porém, o dr. Gomes dá nova direção a esse raciocínio. Ao citar os exemplos
de Paris e do Oriente, cuja realidade teria também frustrado seus sonhos imaginativos, mos-
trava ter experimentado, em diferentes lugares do mundo, a mesma sensação de decepção.
“Depois que vi o mundo estou convencido de que o Rio de Janeiro é uma bela cidade”, con-
cluía, prevendo que o interlocutor em breve iria concordar que ele “não era tão mau como
parece” (Coelho Netto, 1924, p. 93). Desse momento em diante, o romance muda de tom.
Guiado por este “ilustre e douto cicerone” (Coelho Netto, 1924, p. 248), que vira sua principal
referência e ponto de apoio na capital, Anselmo testemunha uma outra forma de olhar a
cidade. Sem deixar de insistir na sensação de decepção, que o acompanha até o fim, o narra-
dor abre espaço para as reflexões de seu interlocutor, que aponta para uma visão do Rio de
Janeiro que o jovem não conseguia reconhecer à primeira vista.
Uma das primeiras expressões dessa perspectiva diferenciada do seu interlocutor sobre
a cidade apareceria em uma longa explicação dada por ele para Anselmo sobre a própria rua
do Ouvidor. Depois de terem se conhecido logo após as primeiras impressões negativas do
narrador com a cidade, eles passaram a tarde em conversas no salão da Confeitaria Pasco-
al. Ao saírem, encontraram a rua com aspecto diverso daquele que causara a decepção do
narrador. “Sem a multidão que a cobria quando a deixamos, mostrava-se impudicamente a
meus olhos esboroada e suja”, comentava Anselmo de início, a reafirmar suas más impres-
sões. Ressaltava ainda a presença na rua, naquele final de tarde, de muitos trabalhadores –
“homens em mangas de camisa, tisnados, arrastando, com estardalhaço, sólidos tamancos”,
com “marmita de lata” ou “pequenos feixes de lenha miúda” (Coelho Netto, 1924, p. 105).
A reiteração da primeira impressão negativa sobre a rua foi interrompida, porém, pelas
explicações do dr. Gomes. “É a hora dos operários”, lhe explicava o interlocutor, para quem
“as modificações dessa rua acusam-se pelos seus tipos”. Para ele, “a rua do Ouvidor varia de
aspecto e de aroma conforme a hora, conforme a gente”: às quatro da manhã, momento em
que as casas e vendas se abasteciam, era tomada por “grandes carroças atulhadas de ver-
duras e de frutas, a lenha, os ovos, o pão e, algumas vezes, não raras, rebanhos”; duas horas
depois começava a “vida do mercado”, com “bandos de cozinheiro” conversando alto com
suas cestas cheias; pouco depois a rua “fede a lixo quando os grandes carroções da limpeza
começam a assear as casas”; às seis e meia apareceriam os meninos a gritar os “pregões dos
jornais” e as “primeiras caras femininas” – como as cozinheiras a ir ao mercado, as costurei-
ras em caminho de suas oficinas ou aquelas que voltavam de um mergulho no mar. Pouco
depois começavam a aparecer os “caixeiros apressados”, seguidos mais tarde pelos “patrões,
pesados do almoço”, e os “capitalistas”. Afigurava-se então, a partir das três da tarde, a rua do
Ouvidor em toda a sua diversidade: “a elegância, o espírito, o trabalho, o vício, a miséria” –
até que o dia acabava com a volta do “operário que vem dos Arsenais e das fábricas” (Coelho

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Netto, 1924, p. 106-111). Se o olhar sertanejo de Anselmo Ribas só percebera na rua uma
multidão disforme e confusa, o dr. Gomes tratava assim de explicá-la ao jovem, descortinan-
do a beleza e a força daquela diversidade que assustara o jovem.
Por trás da ambiguidade da postura do dr. Gomes – que concorda com o sentimento de
desilusão de Anselmo com a capital federal, mas chama a sua atenção para a beleza singu-
lar daquela realidade – escondia-se uma postura em relação à cidade que iria se evidenciar
na continuidade da narrativa. Se não era o berço da civilização projetado pela propaganda
republicana, o Rio de Janeiro apresentava-se a seus olhos como o espaço perfeito para sua
construção. Isso porque era lá que ele podia encontrar o “povo” diverso e multifacetado de
que falava em sua descrição da rua do Ouvidor (Coelho Netto, 1924, p. 107). Era sobre ele,
em sua opinião, que deveria se dirigir a atenção dos que projetavam para a capital federal o
ideal do progresso.
Não que o dr. Gomes visse na realidade desse “povo” algum tipo de grandeza – antes
pelo contrário. Por acreditar que “a democracia reduziu tudo a comezinho, a vulgar”, recla-
mava que o verdadeiro “sentimento artístico” estaria desaparecendo com o progressivo pro-
cesso de expressão das culturas das ruas. Exemplo disso, para ele, seria a música que ouviam
ao fundo enquanto conversavam na Confeitaria Pascoal: “uma triste harpa gemendo sambas”
(Coelho Netto, 1924, p. 116). Até mesmo os instrumentos do “puro classicismo” eram assim
“espezinhados pela multidão ignara”, que o tocava “com um pires ao lado” e “indiferente à
corda que estala, ao compasso que se precipita” (Coelho Netto, 1924, p. 117). Distante de
qualquer elevação, o povo que via pelas ruas, com seus costumes e práticas próprias, seria
assim um elemento corruptor a macular qualquer possibilidade de civilização.
Era exatamente por isso que recaía sobre esse povo a atenção e interesse do dr. Gomes.
Por mais que reclamasse da falta de cultura do povo, não deixava de acreditar que haveria
nele a potencialidade para se transformar em “um povo artista como os gregos” – o que se-
ria para ele “uma verdade, posto que desmentida diariamente pela improdutividade e pela
inércia estéril”. De seu ponto de vista, o problema tinha por base o fato de que se tratava de
um “povo híbrido, sem raça discriminada, sem antecedentes firmes” (Coelho Netto, 1924, p.
147-148). Frutos de uma mistura em que se cruzavam o “glóbulo africano” ligado ao “banzo”,
a herança dos “navegadores” com sua atividade, tenacidade e egoísmo, e o “glóbulo virginal
do sangue indígena”, o brasileiro teria uma “miséria de origem” que se refletiria na realidade
que o dr. Gomes enxergava pelas ruas – em opinião na qual reverberavam concepções raciais
sobre os prejuízos da formação nacional mestiça (Schwarcz, 1993). Era assim o esforço de
superar esse quadro que explicava seu interesse por aquele povo pelo qual Anselmo Ribas
não havia demonstrado, de início, nenhuma simpatia.
Para atingir este fim, o dr. Gomes indicava ao narrador um caminho claro. De seu ponto
de vista, o meio de combater esse prejuízo da formação nacional seria a educação – fosse ela
a “educação física”, meio de “aperfeiçoar a obra natural” pelo fortalecimento dos músculos e
garantia da “saúde e bom humor” do povo, ou a “educação moral”, que “fornece ao homem os
conhecimentos práticos do bem e do útil”, aí incluída a “educação cívica”. “O nosso povo, na
sua maioria, é ignorante”, explicava o doutor, mostrando ver na população carioca do tempo

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uma “massa rude que serve de instrumento aos privilegiados”. Mostrava-se com isso concor-
dar com a avaliação negativa de Anselmo Ribas sobre o decepcionante atraso da população
da capital federal, justificava assim a necessidade de um pesado investimento sobre ela para
transformar a face da capital e da nação por ela representada. “Antes de fazer arte tratemos
de fazer o povo, eis o princípio”, concluía o dr. Gomes (Coelho Netto, 1924, p. 148-150).
Não por acaso, em outro trecho do romance, ele chega mesmo a afirmar que, ao passar
“por uma dessas casas de pasto, onde o grosso povo de trabalho se ajunta para comer”, tinha
“ímpetos de entrar, sentar-me no mesmo banco, acotovelando estivadores e canteiros, fasci-
nado pela voracidade pantagruélica desses brutos que devoram pratos enormes, com mais
apetite do que um de nós, em dias de fome, trincaria uma fatia de caça” (Coelho Netto, 1924,
p. 228). Era essa necessidade de mergulho sobre o mundo popular, sobre um povo que de-
finia como um “animal amoroso e puro” (Coelho Netto, 1924, p. 230), pronto a ser iluminado
pelas luzes de gente como eles, que Anselmo aprendia com seu interlocutor.

um olhar elevado sobre as coisas inferiores

Por meio de uma cuidadosa elaboração literária, configurava-se no romance uma pers-
pectiva na qual o próprio Anselmo Ribas é colocado na posição de aprendiz, a descobrir
através de seu cicerone os mistérios e desafios da cidade do Rio de Janeiro. Parece explicável,
por isso, que o próprio narrador comece o livro reconhecendo haver nele muitas páginas
“derivadas da sabedoria fecunda do dr. Gomes, de quem guardo saudades e conceitos” (Co-
elho Netto, 1924, p. 7). Da decepção que demonstrou inicialmente com o atraso e a falta de
civilização da capital federal, através da qual Coelho Netto mostrava o limite de um ideal de
modernidade republicana que estava ainda longe de estar efetivado, o narrador é aos pou-
cos convencido de um diagnóstico sobre o caminho da necessária transformação da cidade,
que passava pelo investimento sobre a suposta incultura de seu povo. Com sua mania de
“contemplar da montanha as coisas inferiores” (Coelho Netto, 1924, p. 173), o dr. Gomes mos-
trava o povo como um desafio a ser enfrentado, cabendo a gente como ele próprio elevá-lo
ao olimpo da civilização do qual pensavam olhar o mundo ao seu redor.
Não era de se admirar, por isso, que um crítico como Olavo Bilac, amigo íntimo de Coelho
Netto, comentasse em sua “Crônica livre” que era pela boca do dr. Gomes que se expressava
de forma mais direta as opiniões do autor do livro e dos membros de seu grupo literário, e
não pela do narrador:

Este dr. Gomes és tu, Anselmo, sou eu, somos nós – sois vós todos, ó poucos homens de
coragem real que, entre o terror de uns e a estupidez de outros, ainda se dão ao trabalho
de percorrer essas linhas, enquanto os canhões revólveres ainda trovejam no litoral...
Coelho Netto, a tua alma, em que a fantasia fez ninho, está dentro do dr. Gomes! Está den-
tro dele o teu sarcasmo gelado, Mallet! Está dentro dele o teu lirismo de ouro, Guimarães
Passos! Estão dentro dele o teu arreganho de herói, Luiz Murat, mestre do verso, e a tua
ironia de aço, Machado de Assis, mestre da crônica! E é por isso que ele aparece como um

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monstro, pesando nas páginas do livro, rebentando o molde da frase, enchendo todo o
volume com o espalhafato do seu gesto (Gazeta de Notícias, 12 de setembro de 1893).

Com o cuidado de diferenciar a autoria da narração, Bilac mostra o quanto as opiniões do


dr. Gomes expressavam um olhar elevado sobre a cidade que condensaria a perspectiva de
toda a geração literária de que ele e Coelho Netto faziam parte. Depois de compartilharem,
nos últimos anos do Império, a esperança de uma transformação que se daria de forma pura
e simples pelo fim da escravidão e pela proclamação da República (Pereira, 2004), eles teste-
munhavam a dificuldade de fazer valer estes ideais nos primeiros anos do novo regime – ex-
pressas, por exemplo, nos tiros e explosões da Revolta da Armada então em curso, aos quais
Bilac faz referência. Era, assim, como uma reelaboração dos ideais desse grupo literário que
apareciam as opiniões do dr. Gomes, a apontar para novas estratégias de ação que tinham
no investimento sobre o povo da capital federal seu alvo principal. Perdida a crença de que a
simples mudança do regime bastaria para transformar a realidade, Coelho Netto e seus pares
passavam a tentar investir sobre ela.
O romance se encerra com a volta de Anselmo Ribas à sua cidade natal, desiludido com a
capital federal e seu povo. Depois de oito dias frenéticos, ele retornava a Tamanduá passan-
do a valorizar o seu “quarto modesto” e outras “coisas mínimas” para as quais não costumava
atribuir muito valor. Lembrado pelo pai de que “a terra não produz perfídias nem calúnias
e que viver entre as árvores é bem melhor do que viver entre os homens”, resolve “ficar no
campo, lavrando” (Coelho Netto, 1924, p. 265-266). Apesar disso, no entanto, a elaboração
narrativa ali desenvolvida ainda daria muitos frutos – que se expressam de forma direta a
partir de outubro de 1896, quando o jornal A Notícia passa a publicar uma nova coluna se-
manal assinada por Anselmo Ribas. Intitulada “Semanais”, ela se propunha a fazer aquilo que
é anunciado pelo título: discutir, com tom aparentemente casual, os fatos da semana. O fato
de que fosse assinada pelo narrador sertanejo, contudo, tornava mais complexo o sentido
desse comentário sobre os acontecimentos do tempo – pois era através do personagem ela-
borado no romance de 1893 que Coelho Netto se propunha a discuti-los.7
Mais uma vez, a assinatura de Anselmo Ribas marcava para as crônicas escritas por Coe-
lho Netto um ponto de vista bem claro: como no romance, tratava-se de constituir um nar-
rador que se colocava em posição de estranhamento em relação aos símbolos da civilização.
Ligado à simplicidade da vida do interior, o narrador dava a Coelho Netto a chance de discu-
tir, sob uma perspectiva diferenciada, alguns dos consensos ilustrados do tempo. Já ciente
dos limites de uma modernidade que tenta se impor por decreto, ele fazia de Anselmo Ribas
um meio de lançar sobre ela um olhar que levasse em conta a concretude dos problemas
nacionais, vistos pela lente de um ilustrado homem do interior.

7 Tratava por isso de deixar bem clara a distância que separava a autoria da narração – como em uma crônica
na qual afirma não lhe sobrar “espaço para falar do Sertão de Coelho Netto”, em alusão ao livro de contos que
lançava na ocasião Anselmo Ribas. Anselmo Ribas (Coelho Netto), “Semanais”, A Notícia, 6 de fevereiro de 1897.

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Presente em maior ou menor grau em toda a série, tal perspectiva se anuncia logo na
crônica de estreia. Ribas se propõe, de início, a discutir as mazelas que impediriam que a
América, vista como um “sinônimo de esperança”, continuasse a ser “apenas um celeiro”
incapaz de desenvolver civilização própria. Para responder tal questão, o narrador se valia
de sua sinceridade para criticar algumas instituições que, no caso brasileiro, não cumpriam
seu papel, como o Congresso, a Intendência, o Partido Republicano ou o Conservatório
Dramático. Era com tal perspectiva que Anselmo Ribas lançava um olhar sobre a capital
federal que deixava transparecer seu atraso e decadência, creditados ao descaso dos go-
vernos republicanos:

À Intendência devemos a poeira como a que, há dias, se levantou nas ruas, dando a
esta cidade o aspecto africano de um Saara; devemos a falta d’água, devemos o sargaço
das praias e o lixo das ruas, devemos o corte das árvores, devemos as cinco pessoas
espremidas em um banco de bonde, devemos os pesados caminhões e o preço da car-
ne, devemos o calçamento, devemos as casas elegantes da rua do Senhor dos Passos,
devemos, enfim, todos os benefícios que nos assolam desde a praia do Peixe até a febre
amarela. [...]. Que importa o lamento do contribuinte, se o fisco tem meios fortes de lhe
extorquir as verbas? Para enriquecer o Brasil basta a sua primavera e para embelezá-lo
basta-lhe a natureza.
[...]. Quando havemos nós de ver, trêmula, a luz da esperança dos que nos hão de trazer
a civilização? [...]. Quando chegará a nossa vez, senhor?8

No olhar crítico de Anselmo Ribas sobre o Rio de Janeiro – descrito pelo cronista como
um antro de sujeira, desconforto, privação, doença e prostituição – configurava-se um diag-
nóstico sobre a cidade, expresso originalmente no romance A capital federal. Ao perceber o
caráter superficial de seus antigos sonhos, cuja realização formal não se fizera acompanhar
de uma substantiva transformação do quadro que via pelas ruas, passava a fazer de crônicas
como aquelas um meio de lutar pela efetiva transformação daquela realidade urbana.
Para isso, no entanto, mostrava ter aprendido as lições do dr. Gomes. Além de criticar
a realidade que via pelas ruas da cidade, passava a dar espaço em suas crônicas a persona-
gens do mundo popular como Chico Bumba, os romeiros humildes da Festa da Penha ou os
seguidores de Antônio Conselheiro. Como aprendido com o amigo, o fazia em perspectiva
superior, apontando a imoralidade, a fraqueza e a ignorância que via em suas manifestações.
Ao mesmo tempo em que se mostrava atento a práticas e tradições que anos antes não te-
riam lugar na prosa dos literatos de sua geração, mostrava mais uma vez a necessidade de
educação desse povo para vencer suas superstições e vícios, de modo a fazê-lo caber nos
ideais de civilização que pretendia ajudar a construir. Era por esse caminho de tenso diálogo
com o mundo das ruas que Coelho Netto passaria, a partir de então, a tentar transformar a

8 Anselmo Ribas (Coelho Netto), “Semanais”, A Notícia, 13 de outubro de 1896.

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capital federal. Mais do que afastá-lo da imagem de um esteta distante e desinteressado da
realidade social do tempo que foi por tempos para ele projetado, tal opção permitiria que
ele participasse a seu modo, em diálogo com as ruas, de um processo de profunda recon-
figuração da identidade da cidade – cujo resultado ele mesmo ajudaria a cristalizar, pouco
mais de trinta anos depois, em 1928, em um livro de contos sobre o Rio de Janeiro, para o
qual deu o título de Cidade maravilhosa.9

Referências bibliográficas

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ocaso da Monarquia (Machado de Assis, cronista). Revista Brasileira, v. 55, p. 289-316, 2008.
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COELHO NETTO, Paulo. Coelho Netto. Rio de Janeiro: Zelio Valverde, 1942.
MELLO, Maria Tereza Chaves de. A República consentida. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.
NEVES, Margarida de Souza. Uma capital em trompe l’oeil: o Rio de Janeiro, cidade-capital da
República Velha. In: MAGALGI, Ana Maria et allii. Educação no Brasil: história, cultura e política.
Bragança Paulista: Edusf, 2003. p. 253-286.
PEREIRA, L. A. M. Barricadas na Academia: literatura e abolicionismo na produção do jovem Coe-
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Piracicaba: Editora da Unimep, 2003. p. 53-72.
PEREIRA, Leonardo. O carnaval das letras: literatura e folia no Rio de Janeiro do século XIX. Cam-
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SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil,
1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira Repú-
blica. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
SILVA, Ana Carolina Feracin da (org.). Bilhetes postais: Coelho Netto. Campinas: Mercado de Le-
tras, 2002.

9 Por mais que o uso da expressão não constituísse então uma novidade – aparecendo pelo menos em artigos e
canções carnavalescas sobre a cidade (O Paiz, 16 de fevereiro e 4 de março de 1904), – o livro de Coelho Netto
ajudaria a associá-lo definitivamente ao Rio de Janeiro, a partir do reconhecimento de sua singularidade.

Recebido em 19/11/2014
Aprovado em 8/12/2014

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tradições culturais e gastronomia carioca
cultural traditions and "carioca" gastronomy

Mariana de Oliveira Aleixo | Doutoranda do Instituto Alberto Luiz de Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa em
Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e docente do Curso de Gastronomia do Instituto Bra-
sileiro de Medicina e Reabilitação (IBMR).

Roberto Bartholo | Professor associado do Programa de Engenharia de Produção do Instituto Alberto Luiz de Coim-
bra de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador
do Laboratório Tecnológico e Desenvolvimento Social (LTDS).

resumo

Este artigo discute o processo de formação da gastronomia carioca, com ênfase na produção
de hábitos e fazeres alimentares desenvolvidos no século XIX e na comida de rua da cidade do
Rio de Janeiro, a partir das dualidades que envolvem as tradições europeias, observadas na co-
mida da Corte, e as tradições indígena e africana, representadas pelas formas do fazer culinário
popular. O ponto de partida para a análise é que se a comida é uma variável importante para a
compreensão das tradições culturais, a cidade do Rio de Janeiro expressa experiência e vivên-
cias que traduzem a alma e a gastronomia carioca.

Palavras-chave: gastronomia; cozinha carioca.

abstract

This article discusses the process of formation of Rio de Janeiros’s cuisine, with emphasis on
street food and the creation of dietary habits and culinary activities developed in the nine-
teenth century, in light of the dualities involving European traditions, observed in the food of
the Court, and the indigenous and African traditions, represented by the popular culinary. The
starting point is that if food is indeed an important variable for understanding cultural tradi-
tions, the city of Rio de Janeiro reflects experiences that translate Rio’s soul and gastronomy.

Keywords: gastronomy; Rio’s cuisine.

resumen

En este artículo se analiza el proceso de formación de la cocina de Río de Janeiro, con énfasis en
la producción de hábitos alimentarios y actividades culinarias en el siglo XIX y la comida de la
calle en la ciudad, a partir de las dualidades que implican las tradiciones europeas, observadas
en la comida de la corte, y las tradiciones indígenas y africanas, representadas por la culinaria
popular. El punto de partida es que si la comida es una variable importante para la comprensión
de las tradiciones culturales, la ciudad de Río de Janeiro expresa experiencias y vivencias que
reflejan el alma y la gastronomía de Río.

Palabras clave: gastronomia; cocina de Río de Janeiro.

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apresentação

O presente artigo é um desdobramento da minha pesquisa de mestrado, de título Gas-


tronomia situada e a comida de rua na cidade do Rio de Janeiro, realizado pelo Laboratório
Tecnológico de Desenvolvimento Social (LTDS) no Programa de Engenharia de Produção da
COPPE/UFRJ. Teve como recorte o reconhecimento de uma identidade alimentar na cidade
do Rio de Janeiro através do estudo da história da cidade, possibilitando a descoberta de
elementos que puderam fazer avançar o reconhecimento de uma gastronomia local, partin-
do da hipótese de que comida é cultura e, desse modo, corresponde à pulsão que existe nas
experiências humanas na cidade, ganhando as marcas daquilo que a cidade é.
Essas descobertas decorreram das leituras das fontes e da bibliografia produzida sobre
a história urbana da cidade do Rio de Janeiro e da conclusão daí decorrente de que a cidade
possuía um perfil urbano bem peculiar que transformava seu cotidiano em vida pública,
voltada para fora de casa, o que respondia, em parte, ao que era o seu frenético comércio de
comida de rua, praticado desde a sua fundação.
Cronistas que descreveram essas experiências cariocas indicam essa vivência de rua
como uma alma encantadora, passível de exprimir estados da alma e criar identidades, in-
clusive gastronômica. Ao mesmo tempo, é possível perceber também os contrastes de uma
cidade em pleno processo de modernização, acompanhando os modelos europeus.
A partir daí, foi possível perceber como a cidade produzia uma cultura gastronômica dual,
que nascia da própria divisão presente na cidade, onde, no período colonial, despontavam
as diferenças entre os modos de comer e de fazer relacionados à cultura branca europeia e à
cultura dos negros africanos, aqui transformados em escravos e se tornando fundamentais no
exercício e nas práticas culinárias, com a participação também das tradições indígenas.
Entretanto, essa dualidade não anunciava apenas dois caminhos no modo do saber gas-
tronômico. Embora derivadas de origem distintas no âmbito da vida urbana carioca – cultura
europeia ligada à casa e cultura africana vinculada à rua –, elas acabaram se tocando, se
misturando e se adaptando aos ingredientes existentes no Brasil.
Essa região de fronteira entre as duas culturas produziu novas formas de fazer e comer
que integram, até hoje, as tradições cariocas que dão à cidade, com sua mistura de localismo
e cosmopolitismo, uma marca de não tipicidade alimentar. Os pratos cariocas são formas de
misturas diferentes e mantêm vínculos dialogais com as histórias várias que giram em torno
da gastronomia.

rio de janeiro capital e corte imperial

Em 1763, o Rio de Janeiro passou a ser o principal centro das atividades da metrópole
portuguesa no Brasil, visto que o marquês de Pombal transformou a cidade na capital da
colônia. Isso possibilitou a concentração de todas as dimensões cosmopolitas decorrentes
das experiências maiores de troca com a Europa, a África e a Ásia que passaram a se ligar ao
Rio de Janeiro.

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Com a transferência da Corte portuguesa para o Brasil, em 1808, o Rio de Janeiro ampliou
suas funções, ganhando uma característica ainda mais cosmopolita, pois se transformou na
capital do império português e passou a abrigar na cidade antigas e novas dimensões socio-
culturais. Dessa combinação resultaram os traços fundamentais da cultura carioca.
Entretanto, antes de receber a função de capital, o Rio de Janeiro já acumulava experiên-
cias de cidade mercantil, fazendo do seu espaço urbano um local de trocas em vários níveis e
de diferenciações sociais que mostravam um cenário repleto de dualidades. A principal delas
era aquela que indicava a existência de duas cidades numa só, duas cidades que ocupavam
o mesmo espaço. Uma que recepcionou os valores europeus e os combinou com aqueles
da nobreza da terra, tornando-se o principal centro político e econômico do Atlântico Sul,
definindo-se como cidade-Corte. Outra, que incorporava as tradições da cidade desde sua
fundação e combinava-as com as culturas indígena e africana, mantendo-se, de certa forma,
à margem do circuito europeu.
Essas constatações permitem desvendar a cultura carioca. Mas, para verdadeiramente
descobri-la, foi preciso reunir relatos de viagem, anúncios de jornais e referências bibliográ-
ficas que colocam experiências de contato sistemáticas entre os variados segmentos que
atuavam em ambas as cidades e suas relações com os estrangeiros que por aqui passaram
no período em que assumiu a condição de capital e Corte imperial.

gastronomia de uma cidade - corte

A transferência da Corte portuguesa, em 1808, trouxe para o Rio de Janeiro a família


real, o governo da metrópole e transformou a cidade no maior terminal negreiro da América
portuguesa e do Atlântico Sul. Com a Corte veio, sobretudo, boa parte dos aparatos admi-
nistrativo e cultural portugueses. Desse modo, se intensificaram as trocas entre a colônia
americana e a Europa, África e Ásia.
Novos hábitos e costumes foram se associando àqueles que já marcavam a tradição da
cidade. Esse movimento de ida e vinda de funcionários e personalidades continuou se in-
tensificando mesmo depois da chegada da família real ao Brasil, pois com a expansão na-
poleônica e a invasão de Portugal, a cidade se transformou no único refúgio da liberdade
monárquica no Novo Mundo.
Como nos informa Alencastro (1997, p. 12-13), a afirmação de liberdade transforma a
cidade num novo cenário, onde se expandem os debates e as atividades cotidianas, justifi-
cando, para ele, a sua condição de grande centro urbano.
Enquanto a família real e a aristocracia nobre se adaptavam ao Novo Mundo, importan-
tes mudanças atravessavam o cotidiano colonial. Com hábitos alimentares específicos e exi-
gentes, decorrentes dos costumes europeus à mesa, que repousavam na tradição da cozinha
francesa, ficou clara a necessidade de importação de ingredientes não existentes na colônia,
pois, embora aqui existisse uma variedade enorme de ingredientes, a falta de costume nos
seus usos e sua associação aos escravos africanos impedia, de início, que fossem utilizados
como substitutos dos cheiros e dos aromas europeus (Cascudo, 2011).

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Entretanto, mesmo com essas limitações, ocorreram trocas que determinaram mudan-
ças nos hábitos alimentares, fazendo com que as relações entre as formas de fazer e de
comer dos diferentes segmentos sociais se transformassem. Assim, os hábitos alimentares
europeus foram transferidos para a cidade e a delicadeza passa a ser o ponto chave para a
alimentação. A qualidade e a quantidade do que era posto à mesa passaram a ser apreciadas
(Cascudo, 2011).
Essa aparente delicadeza é a marca do modo elegante da sociabilidade aristocrática que
para Savarin – um dos pioneiros no estudo das relações entre culinária e sociabilidade à
mesa e, hoje, um clássico da historiografia gastronômica – está representada pelo modo
como os pratos são servidos, aos poucos e separados em entrada, prato principal e sobre-
mesa. O sabor passa a ser mais delicado a fim de não perturbar o paladar básico do alimento
(Savarin, 1995).
No entanto, embora ocorressem trocas de experiências culinárias no Rio de Janeiro, a
Corte manteve os hábitos parisienses no que diz respeito ao figurino de moda, às músicas,
danças, serviços de cardápios e à arte em todas as suas modalidades e vícios, transformando
os hábitos europeus em dominantes no Brasil (Edmundo, 1956).
Luís Edmundo (1956), uma das fontes primárias para os estudos da cidade do Rio de
Janeiro, nos dá uma indicação da presença desses hábitos, observando que era comum a
leitura de textos gastronômicos que evidenciavam a imitação dos textos franceses, como a
Arte de cozinha, de Domingos Rodrigues, chef de cozinha de d. Pedro II, e o Cozinheiro mo-
derno, de Lucas Rigaud, que apontavam ensinamentos da culinária francesa em Portugal, e,
consequentemente, colaboravam para a formação da cozinha carioca.
Câmara Cascudo (2011) realça esse ambiente ao nos fornecer a lista do que era encontra-
do nas mesas da Corte, a partir da necessidade de organização da alimentação dos europeus
na capital. Ingredientes como presuntos, paios, chouriços, queijos do Alentejo e de Monte-
mor, ceiras de passas, figos e amêndoas do Algarve, sardinhas, castanhas piladas, ameixas,
passas e azeitonas desembarcaram na colônia e constituíram uma nova dimensão culinária,
que combinava comida indígena e africana e da Corte, criando técnicas e modos de produ-
ção na nova terra.
Nesse momento, se intensificaram os usos dos produtos coloniais que passaram a se
agregar às tradições europeias, combinações que se transformaram em experiências exóti-
cas como a do uso de frutas, peixes e caça nas refeições, reunindo o que vinha de fora com
o que aqui existia. O resultado foi a inauguração de uma culinária completamente diferente,
que misturava a Europa, o Brasil e a África (Cascudo, 2011).
Apesar da influência francesa na culinária lusitana, hábitos tradicionais foram mantidos
e a falta de elegância à mesa era comum na Corte. Oferecer alimentos na alegria do convívio,
comer juntos, é a mais antiga fórmula de cordialidade portuguesa. A voracidade do comer
na Corte acabou por pressionar o uso mais intensivo das coisas do Brasil, uma vez que ficava
cada vez mais difícil importar ingredientes e produtos na velocidade da voracidade. Isso re-
sultou na introdução dos produtos típicos brasileiros na alimentação diária.

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A aristocracia, que tinha o privilégio de viajar, ainda continuava a imitar os serviços fran-
ceses no seu cotidiano e em seu comportamento à mesa. O serviço de aves selvagens e pás-
saros pequenos oferecidos nos jantares harmonizavam com a referência europeia e começa-
vam a surgir os pratos exóticos com cisnes, garças, cegonhas e pavões. Essas famílias nobres
conheciam os códigos de distinção e etiqueta e acumulavam objetos que as aproximavam
do luxo europeu (Edmundo, 1956).
Com o clima tropical, receitas aqui chegadas iam se adequando a partir da disponibili-
dade dos ingredientes, acarretando um aumento das trocas culturais e culinárias, seja por
assimilação, deturpações ou por diferentes interpretações. Luís Edmundo concorda com
essa visão, mas ressalta que a cozinha da Casa Real e da aristocracia se ampliava e, embora
recebesse novas influências e aspectos, mantinha, em linhas gerais, o espírito da chamada
arte francesa de cozinhar (Edmundo, 1956).
O sentimento de excentricidade dos ingredientes brasileiros, pouco a pouco, deixa de
ser um obstáculo e vai ganhando espaço por conta da curiosidade e da necessidade, pas-
sando a fazer parte do cotidiano dos estrangeiros. Farinhas de mandioca, milho, feijão preto,
carnes, sopas e frutas chamavam a atenção dos novos habitantes. Pratos muito condimenta-
dos com cebola, alho e fortes especiarias também impressionavam. Silva, em seu texto sobre
as relações entre a cultura europeia e a mesa brasileira, menciona que a mistura desses in-
gredientes, a curiosidade e o desconhecimento dos produtos nacionais surpreendiam toda
a Corte (Silva, 2008).
A viajante inglesa Maria Graham (1990), também uma fonte primária central pela acui-
dade com que observava a vida cotidiana da cidade, relata seu contato com os produtos da
terra quando estava hospedada no Rio de Janeiro e revela o ponto de vista do estrangeiro
com relação aos produtos disponíveis no Brasil. Graham acentua o cotidiano da família real,
ao realçar o grande apetite de d. João VI, devorando as galinhas e os frangos. Seu prato favo-
rito era ensopado de carneiro com ervilhas. Já seu neto, d. Pedro II, imperador do Brasil, tinha
preferência pela canja, alimento para os paladares doentes. Para Cascudo, o rei tinha como
preferência uma sopa de caldo de galinha com arroz, sal e alguns temperos, diariamente
tomada por ele até mesmo nas quintas-feiras santas, quando ia ao teatro, em seu camarote
imperial, entre o segundo e o terceiro ato (Cascudo, 2011).
A Corte e a aristocracia nobre expandiam seus processos alimentares, passando a se ali-
mentar de mamíferos, crustáceos, moluscos, peixes, presentes na biodiversidade local, e iam
transformando pratos e preparações. Entre elas, o guisado português de cabidela.
Cascudo (2011) nos mostra como era o seu preparo, dizendo que no processo tradicio-
nal eram utilizadas partes da galinha como penas, asas, pescoço, patas, fígado, baço, cora-
ção, bofe e que teve como primeiro nome rabadela, pois era produzida com asas, pernas
e patas, até chegar às mesas da Corte do Rio de Janeiro como galinha cabidela ou galinha
ao molho pardo, aqui preparado com um delicioso molho ouro-cendrado, feito a partir
do sangue vivo, no prato fundo, e adicionando vinagre, muito apreciado por d. João VI.
Todas essas adaptações geraram mudanças no cotidiano da Corte. Por exemplo, Cascudo

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(2011) nos informa que o jantar em Portugal, segundo o conde de Gobineau, observador
das maneiras e hábitos de d. João VI, seu filho d. Pedro I e do neto d Pedro II, era às quatro
horas da tarde. Mas, para se adaptar aos soberanos europeus esse horário passou para as
cinco horas da tarde.
As ruas do Rio de Janeiro começavam a ter algum movimento às 10 horas da manhã,
quando o comércio fechava as portas e a multidão dos caixeiros corria para casa, com certa
alegria, por conta da pequena refeição e de alguma visita fortuita.
As casas da Corte possuíam ampla e arejada área de cozinha, onde era possível ter um
fogão a lenha fechado em forma de abóbora e horizontal, com uma chapa de ferro com dois
ou três orifícios para as panelas e caçarolas, grelhas e frigideiras de ferro. Talheres, cadeiras e
mesas, trazidas pelos portugueses, compunham esse espaço. A cozinha, área de maior circu-
lação dos escravos, era o local de integração, onde se realizavam as trocas e os intercâmbios
culturais, principalmente em dias de festas.
No livro Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, Debret foi, talvez, quem melhor retratou
o cotidiano da cidade através de suas pranchas, nas quais é possível se ter ideia da vida ca-
rioca, ao se evocar um jantar no Rio de Janeiro, por exemplo, como ilustrado na prancha Um
jantar à brasileira (Debret, 1940, prancha 7, p. 132-133).
Pela representativa importância da carne na alimentação europeia, o fornecimento des-
se alimento na cidade do Rio de Janeiro estava extremamente interligado aos estrangeiros

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e viajantes da cidade. Pela má qualidade, seu uso era reservado apenas aos caldos e cozidos
brasileiros.
Esse processo acarretava alto custo para esses alimentos, pois a criação de animais ainda
não era intensiva. As galinhas, assim como as carnes vermelhas, eram iguarias quase exclusi-
vas dos convalescentes e criadas para a produção dos ovos (Luccock, s.d.).
O viajante inglês Luccock foi o criador de superstições inexistentes no Brasil, ditadas pela
zombaria anglicana contra os católicos, e sem comprovações. Ele informa, por exemplo, que
o carneiro era pouco procurado pelos cristãos europeus no Brasil, porque sua carne repre-
sentava um símbolo cristão. Mas, na verdade, o pouco acesso a esse tipo de carne se dava
por conta do elevado preço da carne de cordeiro, o que fazia com que os pratos produzidos
a partir de sua carne fossem consumidos pelos segmentos da elite carioca (Luccock, s.d).
Câmara Cascudo (2011) afirma que os viajantes estrangeiros mencionam o feijão como
essencial e típico, um prato nacional, inseparável da farinha à mesa. Os indígenas, como os
africanos, não cozinhavam os alimentos em conjunto, apenas feijão ou apenas milho. Esses
pratos sempre estavam acompanhados de misturas como carnes que seriam preparadas em
outra vasilha. Não há prato mais brasileiro que o feijão preto com carne seca e farinha, prato
fundamental das refeições nas classes mais abastadas ou ricas.
Alguns ingredientes eram de difícil acesso, como a manteiga que vinha de Portugal, já
importada da Inglaterra, fazendo com que ao chegar tivesse um aspecto vermelho e com
sabor de rançosa e salgada (Cascudo, 2011).
Câmara Cascudo (2011) registra, em seu estudo sobre a alimentação brasileira, a im-
portância dos doces, derivada da abundância da cana-de-açúcar e dos hábitos europeus,
e dá atenção especial aos bolos como um dos itens importante da mesa. Para ele, na vida
portuguesa, o bolo tinha uma função social imprescindível, pois representava a solidarieda-
de humana e estava presente nos noivados, casamentos, aniversários, visitas de parteiras,
enfermidades e em situações de convalescência. Era uma cortesia muito generosa, uma legí-
tima delegação simbólica da doçura.
Por essas marcas, compreende-se porque as tradições boleira e doceira de Portugal se
reimplantaram imediatamente no Rio de Janeiro, servindo-se dos elementos locais e reu-
nindo-os aos recursos trazidos da Europa, como a farinha de trigo, os ovos e as especiarias.
A doceria portuguesa logo se aclimatou aos cheiros e sabores da cidade e passou a ser um
elemento de destaque para a sua vida social, produzindo novas sensibilidades e sociabilida-
des (Cascudo, 2011).
Por outro lado, determinados hábitos como o de servir-se de várias frutas ao mesmo
tempo, se transformaram em tabu, mostrando como as tradições se impunham mesmo
numa sociedade ainda em processo de afirmação.
Outro aspecto da formação da cultura gastronômica carioca envolve os Estados Unidos
da América (EUA). As relações com os EUA tornaram-se mais vivas a partir de 1850, possibili-
tando a entrada de hábitos e costumes americanos no Rio de Janeiro e em todo o Brasil. Isso
deu início a mudanças na forma de se referir às maneiras de mesa. Por exemplo, batizaram
de “à americana” usos nacionais antigos e comuns, como o chamado “jantar à americana” que

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consistia no que também se chamou de “ceia volante”, em que cada um se servia à vontade
e sem lugar marcado (Cascudo, 2011).
Nas páginas do Jornal do Commercio observamos um anúncio curioso que amplia o es-
copo de usos e costumes na cidade. O anúncio comenta a utilização de gelo ao mencionar
que nos navios americanos que atracavam no Rio vinha o gelo do inverno de Nova Iorque
para o verão carioca. Com essa nova possibilidade na cidade do Rio de Janeiro, surgiram as
primeiras sorveterias que vendiam raspadinhas de diversos sabores. O sorvete acrescentou
um novo dado à sofisticação e ao cosmopolitismo da Corte (Jornal do Commercio do Rio de
Janeiro, 1853).
A presença americana nos portos da baía da Guanabara contribuía para agregar ao co-
mércio exterior norte-americano maior número de produtos. Segundo Alencastro, Nathaniel
Sands, uma importante casa de importação americana no Rio, publicava propagandas de
máquinas de debulhar milho e fogões para cozinha, que podiam ser usados por escravos e
negros livres (Alencastro, 1997).
O pintor e cronista Debret, residindo no Rio de Janeiro, notou a operosidade italiana na
rua do Rosário com as casas comerciais de comestíveis europeus, mais delicadas e finas, e
registra que em vez da concorrência áspera estavam unidos pela cooperação mais fraternal.
Divulgaram os sorvetes – sobertto – modificados em sua forma original, transformando-os
em deliciosos doces gelados. Um dos destaques na cidade era o Fracioni, uma glória nas
festas cariocas, fornecedor dos doces, confeitos, gulodices no plano do vient de paraître (De-
bret, 1940).
Para o historiador Senna (2006), a cidade possuía sabores e cheiros diferentes e um des-
ses era o de açúcar. Ele indica a Confeitaria Paschoal, localizada no térreo da rua do Ouvidor
n. 128, como aquela que fabricava roscas, biscoitos, bolachinhas e bolachas para embarque
na Marinha nacional, realizando grande número dos banquetes na capital e muito conhecida
por seus famosos serviços realizados no Palácio Monroe para 540 talheres. Além de confeita-
ria, suas instalações também incluíam uma padaria.
A rua do Ouvidor era, na época, o espaço de representação das modas, incluindo as da po-
lítica e, nesse sentido, era o local das batalhas políticas que, em vários momentos, como no En-
cilhamento, produziram grande prejuízo para a confeitaria, com mesas e cadeiras quebradas,
assim como mármores, garrafas de bebida e mostradores de vidro – as vitrines (Senna, 2006).
Em um prédio da rua Direita n. 7 e 9, o italiano Antonio Francioni instalou uma confeitaria
e café, também fornecedora de banquetes com preços muito módicos e que tinha o maior
depósito de gelo do Brasil. Famoso por fabricar sorvetes, Francioni instalou na vasta calçada
em frente ao estabelecimento, pequenas mesas e bancos, alinhados debaixo de uma grande
árvore, dando o agradável aspecto de “boulevard” parisiense, muito frequentado pelo impe-
rador do Brasil (Senna, 2006).
Mas, apesar dos esforços de Francioni, o estabelecimento foi sucessivamente vendido.
Em 1875, na rua Direita (Primeiro de Março), se estabeleceu no pavimento térreo do prédio
n. 7 um botequim e nos andares superiores do prédio n. 5 um hotel restaurante, chamado
Hotel do Globo. O hotel era o ponto de reunião e debate da grande maioria dos assuntos

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relacionados à política nacional. O endereço ficou tão famoso que os bondes da Companhia
de Carris Urbanos deram ao ponto de parada a designação de parada do Hotel do Globo.
Com o passar dos anos, o famoso hotel ampliou suas acomodações para o prédio n. 7; no
térreo se instalou um café, e no segundo pavimento o famoso salão de banquetes, local da
moda, onde se realizavam os jantares políticos e todos os grandes negócios eram comemo-
rados e regados a champagne Clicquot. Foi no Hotel do Globo que se realizaram os grandes
eventos da época e, por isso, era o local de preferência dos homens notáveis do tempo, nas
ciências, letras, diplomacia, artes e indústrias (Senna, 2006).
D. Pedro II possuía o hábito de, após a missa da quinta-feira santa, ir ao Hotel do Globo.
Entretanto, em se tratando da qualidade dos pratos, observava-se certa monotonia interna-
cional com raríssimas apresentações de pratos regionais, um tanto deformados para atender
ao paladar dos hóspedes não habituados às peculiaridades locais (Edmundo, 1956).
Outro hábito da Corte envolvia o uso de muita caça assada. A presença da área de floresta
próxima à Quinta da Boa Vista propiciava o hábito da nobreza europeia de praticar a caça. Mu-
danças importantes na cultura gastronômica e culinária se realizaram a partir do incremento
da agricultura de exportação com o café, o algodão, o arroz, o tabaco e a cana (Senna, 2006).
Para Alencastro (1997), a partir delas há alterações nas relações de importação, em fun-
ção dos produtos provenientes de Minas Gerais. Com a ampliação de suas atividades econô-
micas, incluindo a pecuária e os laticínios, Minas Gerais passou a fornecer mercadorias para
o Rio de Janeiro. Todas essas alterações incrementaram os hábitos alimentares e produziram
um novo ambiente para o desenvolvimento da gastronomia carioca. Agora, as novidades
nacionais e estrangeiras recebiam a aprovação da sociedade e da imprensa da Corte e eram
irradiadas para o país.
De qualquer forma, a cozinha conservou seus horizontes de manutenção alimentar. A
moda pode muito, mas não pode tudo quando enfrenta o reino das panelas e dos modestos
fogões provincianos.
A cozinha carioca que nasce a partir da Corte é um trabalho português de aculturação
compulsória, utilizando as reservas indígenas e os recursos africanos aclimatados. O alarga-
mento da rede de interdependência das pessoas que formam a Corte possibilitou trocas com
as demais camadas sociais, transformando o costume de todos, exatamente porque as trocas
se realizaram por mão dupla.
Os hábitos europeus que foram implantados tiveram que seguir um caminho oposto e
se adequar ao clima e aos hábitos tradicionais do local, projetando uma cultura particular
no que se refere à mesa. Essa ideia de adaptação, no entender de Malerba (2000), apesar do
mercado em franca abertura, surgiu da limitada disponibilidade de alimentos europeus que
impossibilitou aos estrangeiros cristalizar e cultivar seus hábitos.
No importante livro de Eulália Lahmeyer Lobo (1978) sobre a história do Rio de Janeiro,
um estudo pioneiro e que chamou a atenção para a história da capital, são fornecidos argu-
mentos para se compreender as mudanças e adaptações na economia da cidade. Para ela, a
influência estrangeira no Rio de Janeiro recanalizou os fluxos externos e os acomodou aos
regionalismos em uma esfera maior, legitimamente nacional.

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As atividades concentradas na cidade do Rio de Janeiro superavam a renda municipal
do conjunto de cidades de qualquer uma das vinte províncias do império, referente à renda
tributária de impostos e taxas recolhidos pela Câmara. O porto fluminense apresentava-se
como uma escala quase obrigatória dos navios que cruzavam o Atlântico para os portos
americanos do Pacífico. O Rio de Janeiro constituía o ponto de encontro e de redistribuição
da economia nacional. Metade do comércio exterior brasileiro passava pelo cais carioca du-
rante o século XIX (Lobo, 1978).
Singular na geografia política do Novo Mundo, o império representou também um mo-
mento único na história brasileira. Efetivamente, o regime monárquico forjou no país, a par-
tir do Rio de Janeiro – capital política, econômica e cultural –, um padrão de comportamento
que moldou o Brasil a partir do século XIX.
A Corte reunia os atributos políticos e culturais que acentuavam os contrastes da escravidão
urbana no Rio de Janeiro e que, por sua vez, mostravam as dualidades entre a cidade-Corte e a
cidade-popular, daqui por diante identificada como Rio de Janeiro. Entretanto, como elas intera-
gem, as trocas com o passar do século XIX vão se ampliando entre os vários segmentos sociais.
De um lado, porque havia a necessidade de ter mão de obra para os serviços que envol-
viam a modernização da cidade, desde os serviçais da Corte e da nobreza até os trabalhos
urbanos. A particularidade da escravidão na cidade fazia com que o movimento de trocas se
ampliasse e os acessos às informações aumentassem. Isso propiciou contatos mais intensos
entre escravos e as camadas não nobres europeias.
A mesa da Corte é diferente da mesa da cidade do Rio de Janeiro, mas como a socieda-
de carioca é extremamente estratificada e dividida, as duas formas de mesa se relacionam
de maneira aberta para trocas, e incorporam certos hábitos e costumes da mesa da Corte e
também da mesa africana. Entretanto, é importante ressaltar que boa parte da manutenção
desse fluxo alimentício é feita pelos escravos.

a gastronomia escrava e das ruas do rio de janeiro

A escravidão urbana carioca se diferenciava bastante das outras formas de escravidão


vigentes no Brasil, em especial daquelas ligadas ao mundo rural. Isso significa que, no Rio de
Janeiro, a massa de escravos circulava e, com esse movimento, tinha oportunidade de am-
pliar seu conhecimento sobre as outras formas de culturas aqui desenvolvidas e, ao mesmo
tempo, influenciar também os hábitos e costumes (Alencastro, 1997).
Para El-Karek e Bruit (2004), além da Corte, da nobreza e da elite econômica, a cidade do
Rio de Janeiro era povoada por escravos e um grande número de imigrantes que pertenciam
às camadas médias com pouco poder aquisitivo, constituídas pelos médios e pequenos bur-
gueses brasileiros e estrangeiros, que com o desenvolvimento da cidade passaram a fazer
parte, como funcionários, da burocracia do Estado, naturalmente influenciados pelos valores
europeus, hábitos e costumes importados.
Por outro lado, crescia a população livre e pobre, de homens e mulheres, brasileiros e
estrangeiros que procuravam no Brasil a oportunidade de enriquecerem através da possibi-

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lidade de empregos no comércio, nos serviços e em residências, ou de realizar o sonho de
possuir um pequeno negócio ou ateliê (Karasch, 2000).
Aqui, a presença do regime escravista concorria para uma convivência intensa e bas-
tante íntima entre os diferentes grupos sociais. A capital do país, cidade-Corte monárquica,
sede das legações diplomáticas, maior porto do território e área de forte concentração urba-
na de escravos, representa o palco das contradições imperiais, funcionando como caixa de
ressonância da política brasileira e produzindo com isso conflitos que têm na cidade o seu
lugar privilegiado de acontecer.
Para Alencastro (1997), a principal contradição dizia respeito à convivência de um re-
gime escravista com os valores liberais que eram afirmados na monarquia. Daí, pode-se
entender a dualidade que atravessa todo o império, onde os escravos possuíam um tipo de
atributo particular cuja posse e gestão exigia reiteradamente o aval da autoridade pública
e a oposição senhor/escravo desdobrava-se numa tensão racial que impregnava toda a
sociedade.
Em estudo único sobre o cotidiano dos escravos na cidade do Rio de Janeiro, Karach
(2000) realiza um balanço da importância da presença escrava na cidade, aludindo às rela-
ções de tensão. Para ela, a escravidão era combatida pelos ingleses que, com a Revolução
Industrial, precisavam de mais mercado e também era um obstáculo às pretensões civiliza-
tórias do Estado brasileiro.
Na colônia era crescente o número de escravos retirados do meio rural para atender às
demandas de serviços. Entre 1799 e 1821, a percentagem de cativos no município do Rio de
Janeiro saltou de 34,6% para 45,6% (Karasch, 2000). Segundo Silva (1993), o censo de 1849
mostrava que de cada três habitantes do município do Rio de Janeiro, um havia nascido na
África. Viviam na Corte 74 mil africanos escravos ou livres, fazendo do espaço urbano do Rio
de Janeiro uma cidade negra.
A gastronomia cotidiana das outras camadas sociais do Rio de Janeiro não foi ape-
nas aquela minutada nos livros de receitas divulgados no período. Os banquetes eram
usados em períodos festivos ou entre as camadas mais privilegiadas. A quantidade era o
grande elemento de distinção entre as classes, e as mais baixas priorizavam a simplicida-
de e a satisfação das necessidades habituais. No uso cotidiano, o carioca usava produtos
de sua horta ou jardim – aqueles cultivados nos quintais –, cuja preparação era realizada
pelos escravos ou pelas senhoras portuguesas que já estavam acostumadas a esse servi-
ço (Edmundo, 1956).
Isso significa que havia, nesse período, certa dominação desses hábitos em confronto com
as outras formas culturais, abrindo caminho para um processo de troca entre a simplicidade e
o cosmopolitismo na culinária carioca. Essas trocas foram registradas desde o início do século
XIX, principalmente depois de 1808, e também pela Missão Artística Francesa, em 1816.
Com a proibição do tráfico negreiro, um fluxo intenso de imigrantes lusitanos chega à
Corte. O desenvolvimento da cidade despertou o desejo dos estrangeiros em deixar suas
pátrias e embarcar para um novo mundo em busca de riquezas. Isso acarretou modificações
na composição social da cidade, ao mesmo tempo em que incentivou o desenvolvimento do

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comércio e o incremento de novos ofícios que agora eram praticados também por portugue-
ses e franceses (El-Kareh; Bruit, 2004).
Essas novas situações engendraram uma dinâmica peculiar na cidade do Rio de Janeiro
para além daquela que fazia com que as relações escravistas aqui assumissem uma forma par-
ticular. Para Coroacy (1988), memorialista carioca e, como Luís Edmundo, fonte para a história
da cidade, aqui os escravos eram urbanos, tinham um contato mais sistemático com a cultura
europeia e eram usados para dar e produzir riqueza para seus senhores, sendo alugados para
todos os serviços urbanos, o que se denominava de escravo de ganho ou de aluguel.
No caso da culinária houve uma grande mudança, já que eles tinham contato com as
casas europeias e isso significava uma redefinição daquilo que até então eram as formas de
uso da mesa, dos ingredientes e dos produtos.
Karasch (2000) nos explica as diferenças entre escravos homens e mulheres. Segundo
a autora, para estarem nas ruas, os escravos necessitavam de uma licença municipal. Essas
licenças indicam que majoritariamente os escravos de ganho eram homens, devido à sua
maior resistência para manter-se integralmente na atividade e também porque as mulheres
eram escravas domésticas.
Karasch (2000) descreve também o labor dos envolvidos na escravidão. Para ela, uma das
atividades dos escravos era a venda de alimentos como frutas, verduras, aves, ovos, carne de
gado, peixe, pastéis e doces de porta em porta. Esse trabalho, comum entre os negros, era
realizado em tempo parcial ou integral e não havia distinção de idade ou sexo. Essas ativida-
des eram executadas no período em que estavam livres das tarefas dos seus senhores, como
domingos, feriados e no horário da noite. A partir dessas atividades, consolidou-se o negro
de ganho, escravo ambulante que vendia alimentos ou objetos nas ruas do Rio que geravam
rendimentos aos seus senhores.
Para Debret, que acompanhou o cotidiano dos escravos na cidade através da produção
de pranchas que ilustravam as cenas do comércio de rua da cidade, esse movimento dos es-
cravos nas ruas mostrava a diversidade de mercadorias vendidas, como ilustrada na prancha
Vendedoras de refrescos no largo do Paço, cuja imagem, além do registro das vendas, mostra
o movimento no porto da praça XV (Debret, 1940, prancha 9, p. 132-133).
No espaço doméstico, o uso de escravos e também de homens livres como cozinheiros
e cozinheiras, desde “forno e fogão” ao trivial, era comum nas casas cariocas. O conheci-
mento do cozinheiro ou cozinheira não se limitava a saber preparar os alimentos, sendo
mais abrangente, envolvendo a economia doméstica e a escolha dos ingredientes segun-
do critérios de qualidade e de preço. Isso demonstra que, nesse período, a gastronomia
ocupava um lugar secundário nas preocupações das famílias cariocas, que se contentavam
com o trivial em sua alimentação cotidiana, conforme se observa no Jornal do Commercio
(4 de janeiro de 1849).
El Karek e Bruit (2004) nos dão um relato do mercado, afirmando que não eram apenas
os cozinheiros ou cozinheiras que iam à praça do Mercado ou à rua fazer compras. As quitan-
deiras, escravas negras que cozinhavam doces para fora, na cozinha das suas donas, vendiam
quitutes de produção doméstica, que tinham suas raízes na tradição colonial açucareira e

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no paladar forte das perfumadas frutas tropicais, como caju, maracujá, laranja e diversas
outras. Havia as geleias de pitanga e tamarindo, que podiam ser adquiridas em vidros ou em
“latas de quatro libras”, pelas ruas da cidade, hábito muito difundido entre os cariocas. Já a
goiabada e a marmelada eram vendidas em pasta, utilizando uma forma mais sofisticada de
embalagem, os enlatados a vácuo, encontrados na rua do Cano n. 41.
Debret ilustra bem o comércio de comida de rua, quando em suas pranchas apresenta as
cenas do cotidiano, como em Negra tatuada vendendo cajus, Vendedores de aves, Vendedor de
palmito e de samburás, Vendedores de milho e carvão, Vendedores de capim e leite, Transporte
de café e vendedoras de café torrado e Vendedoras de pão de ló (Debret, 1940).
As fontes continuam indicando os modos de preparo, mencionando que o preparo de
doces para fora logo deu origem a uma nova experiência, a de cozinhar pratos salgados para
o público do comércio, para os profissionais liberais e homens solteiros. Cozinhar para fora
era uma profissão hegemonicamente feminina e que florescia na cidade pela carência de
muitos serviços, passando a ser designada de “tomar comida de uma casa particular”, “dar
jantar para fora” e, principalmente, “comer de pensão”.
A oferta das refeições ocorria ao meio-dia e no horário do jantar. Nos sobrados, onde as
donas de casa produziam a comida, essa atividade era vista como uma extensão das tarefas
domésticas, como no sobrado da rua da Prainha n. 156 (El-Kareh; Bruit, 2004).

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Há uma anotação importante no texto de Debret (1940) que registra a presença de uma
fábrica de balas na rua da Ajuda, frequentada pelas negras revendedoras nos dias de festas
e pelos pais que queriam agradar suas filhas.
Para Zeldin (1994), esse ambiente foi modificado pela reintrodução da sofisticação culi-
nária por parte dos cozinheiros franceses que difundiram a comida francesa pelo mundo,
não só servindo às classes nobres ou trabalhando em hotéis, dos mais simples aos mais luxu-
osos, como também abrindo restaurantes e pensões, a ponto da importação de cozinheiros
no Brasil vir, talvez, logo em seguida a dos livros franceses. Entretanto, El-Kareh e Bruit (2004)
chamam a atenção para a possibilidade de errarmos ao considerarmos a sofisticação culi-
nária de origem francesa como um dado dominante na mesa carioca. Para eles, os cariocas
procuravam “asseio e prontidão” a fim de atender uma clientela que não era muito exigente
com higiene, nem tão pouco com a qualidade da comida servida. Os restaurantes franceses
existentes na cidade possuíam pratos com longo tempo de preparo e isso contrastava com a
prontidão das outras nacionalidades, mostrando como predominava a referência ao paladar
e ao asseio (El-Kareh; Bruit, 2004).
Ainda para El-Kareh e Bruit (2004), essas dualidades implicavam o surgimento de no-
vas formas de comer na rua. Os restaurantes mais simples, denominados “casas de pasto”,
e o crescente número de botequins apontavam para um novo hábito de consumo dos
cariocas.
O Hotel Comercial, na rua dos Latoeiros n. 23, oferecia seu “sarrabulho à portuguesa e
muitos diferentes petiscos”. O Gambá do Saco do Alferes, casa de pasto localizada próxima
da área portuária, oferecia todos os dias e todas as horas asseio e prontidão. Na rua do Ro-
sário n. 52 era possível provar pastéis de Santa Clara, de carne e de nata, além dos de outras
qualidades e empadas de vitela e porco. Pudins e bom-bocados podiam ser comidos na
confeitaria da rua de São José n. 1 C. “Boa feijoada” havia todas as terças e quintas na casa de
pasto junto ao botequim Fama do café com leite (El-Kareh; Bruit, 2004).
Como se pode ver, era costume identificar as casas de pasto pelo endereço ou pelo nome
do proprietário. Elas passaram a representar e ditar hábitos à sociedade, como as refeições
matinais, o café da manhã que passou a ser tomado bem cedo, seguido da segunda refeição,
o “almoço de garfo” no antigo horário do “jantar”, ao meio-dia, o jantar que se deslocou para
o fim da tarde e a ceia para o final da noite (El-Kareh; Bruit, 2004).
El-Kareh e Bruit (2004) concluem que os novos hábitos alimentares refletiam a nova so-
ciedade carioca efervescente, com perceptíveis mudanças resultantes de um mercado que,
com o grande desenvolvimento comercial da cidade e o aumento de sua importância como
centro de exportação, oferecia muitas alternativas. Além disso, os consumidores estavam
mais ocupados com os negócios e tinham pouco tempo para retornar às suas casas para “o
jantar” do meio-dia. Consequentemente, crescia o número de casas de pasto e a procura por
negros e brancos especializados para assumir o cargo de cozinheiro.
O que se nota, em geral, é que não havia na cidade uma particularização dos estabeleci-
mentos que ofereciam alimentos no comércio local. Uma confeitaria podia vender o mesmo
que se vendia em um café ou botequim, principalmente os petiscos, preferência da popula-

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ção carioca que comia nas ruas iluminadas a gás e comprava para levar para casa. O espaço
doméstico tendia a se afeminar, enquanto o espaço público mantinha suas características
masculinas (El-Kareh; Bruit, 2004).
Essas mudanças, entretanto, não fizeram com que os segmentos populares pudessem
ter acesso a essas novidades. Nesse período da metade do século XIX, o uso fundamen-
tal na mesa dos seguimentos populares, incluindo, sobretudo, os escravos, eram os restos
das mesas da Corte ou das mesas nobres, o que tem um significado muito importante, pois
mostrava como as práticas nobres das caças e pratos sofisticados em forma de exagerados
banquetes produziam enorme desperdício (Debret, 1940).
Os escravos da Corte tinham privilégios, pois se alimentavam das sobras das refeições
dos nobres pela falta de métodos de conservação que permitissem o não descarte desses
alimentos. Usufruíam desses alimentos que eram preparados de modo diferente, o que evi-
dentemente levou a certa troca, a um intercâmbio entre as formas tradicionais de preparos e
técnicas e aquelas que experimentavam no contato com a vida da Corte.
Debret (1940) cita um dos mais antigos quitutes da capital do império: o angu. Iguaria
generalizada no Brasil, o angu se compõe, no seu alto grau de requinte, de pedaços de carne,
coração, fígado, bofe, língua, amígdalas. Cozia-se o fubá na água, sem acrescentar sal, fazen-
do uma espécie de polenta grosseira. O prato elogiado por Debret é o angu de quitandeiras,
encontrado nas praças, nos tabuleiros que também vendiam frutas e legumes, como ilustra-
do em Vendedoras de angu (Debret, 1940, prancha 35, p. 212-213).
O milho podia ser utilizado de várias outras maneiras, inclusive como alimento para o
gado, além de ser um prato de resistência para a mesa de escravos e homens livres pobres.
O angu, entretanto, só tomou lugar na mesa carioca, como elemento de identidade, a partir
da recepção que os brancos europeus fizeram dele através de uma reescrita de sua receita.
Assim, o angu se transformou no elemento de síntese da mistura cultural brasileira, pois
reuniu a cultura indígena, europeia e negra, já que possuía semelhanças com o mingau eu-
ropeu, a papa escrava e a maniçoba indígena. Uma das tradições que ajudou o milho a ser
incorporado à mesa europeia no Brasil deriva da maneira pela qual a religião católica imagi-
nava as virtudes da natureza, observando que todos os produtos que cresciam em direção
ao céu eram bons para consumir e o milho possuía essa qualidade.
Podia-se fazer, assim, uma farinha mais apetitosa que a da mandioca, mas isso deman-
dava algumas preparações a mais. O grão era limpo de sua película no "mojico" e depois
deixado de molho na água em alguidar, por três dias. Após esse primeiro preparo, era leva-
do ao "mojico", que reduzia os grãos a uma espécie de pasta que passava por uma peneira
grossa sobre um tacho pouco fundo, sob o qual se acendia o fogo. A pasta cozida e seca era
reduzida a pó grosso que constituía a farinha pulverizada sobre alimentos. Com essa farinha,
faziam-se bolos, biscoitos e pães. Misturada com farinha de trigo, essa pasta produzia pães
mais leves (Debret, 1940).
Em seu livro Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, Saint-Hilaire (2000)
afirma que a farinha de milho ou de mandioca era consumida misturada com melaço, for-
mando uma pasta de sabor bastante agradável.

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Essas formas de comer eram acompanhadas, como nos relata Debret, por uma bebida
fresca para combater o calor do Rio de Janeiro, que recebeu a denominação de Aluá, vendida
por vendedores de trajes limpos e elegantes: “bebida composta de água de arroz fermenta-
do, ligeiramente acidulada, embora açucarada” era muito conhecida nos segmentos mais
populares e tornou-se, com o tempo, uma bebida peculiar da cidade (Debret, 1940).
No caso dos escravos do Rio de Janeiro, a circulação pela cidade possibilitou que eles
adaptassem sua cultura alimentar aos ingredientes disponíveis na nova terra.
Para Karasch (2000), as escravas dominavam a arte doméstica de cozinhar e eram res-
ponsáveis pela alimentação da família dos seus senhores e de todos que viviam na casa. Na
cozinha das casas mais nobres, podiam inventar pratos mais sofisticados com o uso de ingre-
dientes presentes na capital, como ovos, carnes, tubérculos, amendoim, leite de coco, cama-
rão seco, gengibre, abóbora, feijão, milho, batata-doce, berinjela, quiabo, banana e pimenta.
Além disso, criavam receitas a partir desses ingredientes como canja, sopa de galinha, arroz
feito com presunto, farofa, mandioca torrada servida fria e misturada com legumes, moque-
ca e vatapá com azeite de dendê.
Como o universo de ingredientes era similar ao encontrado em seu país natal, os escra-
vos tiveram moderadas mudanças em sua alimentação cotidiana. A vinda das baianas com
seus doces e salgados para o Rio de Janeiro, decorrente do aumento das atividades da estiva
do porto, foi representativa para a culinária carioca e logo se combinou aos pães e à paste-

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laria, incorporados das tradições francesas, e ao bacalhau dos portugueses. Assim, os pratos
cariocas eram recheados de diferentes tradições culturais, mas a culinária afro-brasileira era
preservada na cidade (Karasch, 2000).
Uma das características mais importantes do angu carioca veio da tradição europeia de
comer sempre acompanhado de algum tipo de mistura, como as carnes menos nobres. Se-
gundo Cascudo (2011, p. 445), “o milho e o feijão, cozidos misturados, foi comida de escravos
no Brasil”, prato disponibilizado pelos colonizadores como alimentação.
A cozinha dos escravos estava intimamente ligada aos cultos religiosos que praticavam.
Mesmo depois de aprimorarem suas técnicas urbanas mais europeizadas, mantiveram sua
cultura alimentar unida à religião, o que fez com que vários pratos de outras tradições fos-
sem também por eles sacralizados.
Câmara Cascudo afirma que os escravos estavam anexados à administração senhorial e
nunca tiveram autonomia alimentar. Mantinham-se abastecidos pela casa grande dos en-
genhos de açúcar, de café, garimpos de diamantes e na área urbana, e recebiam o alimento
essencial para o dia ou a semana. Tudo convergia para os mesmos alimentos. Entretanto, a
alimentação diária se ampliou, aderiu às iguarias locais e tradicionais, o que possibilitou não
só a troca entre as tradições, mas certa padronização da alimentação de todos os segmentos
sociais cariocas (Cascudo, 2011).
Nos hábitos alimentares cariocas dos segmentos populares ainda havia o uso intenso do
café. Em 1851, o dr. Antônio José de Sousa informava que “as classes pobres e os escravos fazem
uso imoderado da infusão de café”, em sua investigação sobre a alimentação das classes abasta-
das do Rio de Janeiro. O café simples com leite era muito consumido, costume influenciado pelo
chá com leite que já se bebia na Europa e, consequentemente, pela aristocracia carioca.
Essa mistura do café com o leite é um indício claro de que minha hipótese sobre as trocas
no âmbito culinário se realizava plenamente. Além disso, o café servia de estimulante para
as atividades do trabalho. Antes mesmo da generalização dos cafés na cidade, os escravos já
possuíam o hábito de finalizar o jantar com café puro, enquanto o chá era consumido pela
aristocracia (Sousa, 1851).
Além do café, a dieta alimentar dos habitantes da cidade incluía aguardente de cana,
presente na mesa dos escravos e homens livres, pois aliviava a tristeza e fazia esquecer os
problemas (Edmundo, 1956).
O consumo de bolos e doces, resultado também das trocas entre as diversas tradições
presentes na cidade, tornou-se quase indispensável ao convívio humano e o aumento do
seu uso indica um crescimento da sociabilidade, mostrando certa cordialidade entre os ha-
bitantes das duas cidades (Cascudo, 2011).
A partir do exposto, não se pode ter o mesmo parâmetro de análise para a cozinha ar-
tística, sofisticada dos banquetes da Corte, e para a cozinha cotidiana e popular em sua
normalidade estável. O que se comia em um hotel não poderia satisfazer, etnograficamente,
a alimentação do povo carioca.
A criação dos pratos com produtos baratos e típicos representou a criatividade de uma
população que usava de poucos insumos nas suas preparações diárias e normais, aprovei-

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tando as práticas da tradição ou mesmo criando novas, alheias ao habitual. O povo não co-
mia galinha assada com recheios, comia as carnes mais baratas, farinha de mandioca e de
milho, feijão e arroz (Edmundo, 1956).
Os livros de receitas não incluem os pratos populares e as refeições simples. Ficando de
fora da cozinha mais sofisticada, esses pratos representam uma iguaria legitimamente local.
Estavam presentes na mesa dos estrangeiros quando estes solicitavam a apresentação de
um prato nacional. Todo esse processo corrobora minha avaliação de que a ideia intuitiva
de uma gastronomia situada e local já estava presente nessa mistura de tradições, em que
o diálogo entre culturas abria caminho para alternativas de sobrevivência (Edmundo, 1956).
É possível afirmar que a constituição de uma culinária carioca se originou nas tradições
culturais dos grupos humanos que se misturaram na cidade. Com os diferentes encontros, as
trocas se ampliaram e a reunião desses diferentes traços essenciais ocasionou a construção
de uma alimentação peculiar.
Nesse processo de trocas houve, porém, a manutenção da singularidade de cada uma des-
sas culturas alimentares. O que ocorreu foi a naturalização de todas as culturas alimentares,
seja por uma simples acomodação aos ingredientes locais, seja pelo intercâmbio, influências e
até, em certa medida, pela imposição. Assim, a culinária carioca sempre será mais local que im-
portada, sempre será produto da convergência e jamais de um único elemento determinante.

considerações finais

Aspectos identitários da cidade do Rio de Janeiro compõem as suas diferentes formas de


produção de cultura. Neste artigo foi possível mobilizar um grande número de textos e fon-
tes que permitem propor um modelo interpretativo para a história da gastronomia carioca,
partindo da ideia de que as combinações que são observadas no processo de desenvolvi-
mento da cidade apontam para dualidades positivas que abriram caminho para o que iden-
tifico como peculiar em sua gastronomia, que não é um prato, mas os modos de preparar
e produzir as combinações. Essa proposição adveio da intenção de troca entre a dimensão
local e a global, em função da presença de movimentos que acentuavam, na cidade, uma
grande perspectiva cosmopolita. Assim, o século XIX foi responsável pelo desenvolvimento
da cidade e pela criação de hábitos alimentares locais.

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Recebido em 15/1/2015
Aprovado em 2/2/2015

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o recrudescimento da crise habitacional e a criação de leis
de incentivo à construção de habitações populares no início dos anos 1920
the intensification of the housing crisis and the creation of laws to
stimulate the construction of affordable housing in the early 1920

Romulo Costa Mattos | Professor do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-Rio). Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

resumo

Este trabalho objetiva analisar o debate sobre a habitação popular no momento anterior à pro-
mulgação das leis que pretendiam incentivar a construção das chamadas casas higiênicas para
os trabalhadores. A leitura dos jornais do início dos anos 1920 permite entrever a pressão da
classe trabalhadora por melhores condições de moradia, e a dos construtores civis por maiores
favorecimentos nas leis habitacionais. Em meio à campanha da grande imprensa a favor dos
interesses do setor da construção civil, também será analisado o discurso sobre as favelas.

Palavras-chave: habitação popular; favelas; Brasil – Primeira República.

abstract

This work aims to analyze the debate on affordable housing at the time immediately prior to the
enactment of the laws intended to encourage the construction of the so-called hygienic hou-
ses for workers. The reading of newspapers of the early 1920’s allows one to discern both the
pressure of the working class for better housing, as well as the pressure of the homebuilders for
better incentives in the housing laws. Amid the great media campaign in favor of the interests
of the construction industry, the discourse on slums will also be analyzed.

Keywords: affordable housing; slums; Brazil – Primeira República.

resumen

Este trabajo tiene como objetivo analizar el debate sobre la vivienda social en el momento
antes de la promulgación de leyes destinadas a fomentar la construcción de las llamadas casas
higiénicas para los trabajadores. La lectura de los periódicos de principios del 1920 deja entre-
ver la presión de la clase obrera para la mejora de la vivienda, y de los constructores civiles por
mayor favoritismo en las leyes de vivienda. En medio de la campaña en los medios de comuni-
cación en los intereses de la industria de la construcción, también se analizará el discurso sobre
las “favelas”.

Palabras clave: vivienda social; favelas; Brasil – Primeira República.

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N o segundo semestre de 1920, o debate sobre a habitação popular na grande im-
prensa foi fortemente influenciado pela atuação da Associação dos Construtores
Civis do Rio de Janeiro, que foi astuta ao perceber a ótima oportunidade que se abrira com
a pressão da classe trabalhadora por melhores condições de vida – no que o tema da crise
habitacional ganhava destaque. Representante do referido grupo, o italiano Antonio Jannu-
zzi chegou a conferenciar com o presidente da República, a quem apresentou um projeto
em nome de sua firma, a Antonio Jannuzzi & Filhos. O engenheiro europeu pretendia formar
uma grande empresa construtora de habitações para funcionários públicos e operários –
que viria a ser a Sociedade Construtora de Casas Proletárias –, negócio que, é claro, interes-
sava a muitos construtores da capital. O pedido de privilégios por Jannuzzi aparecia logo na
primeira linha de sua carta de intenções: do volumoso capital inicial necessário à concreti-
zação da proposta, a empresa entraria somente com 10% do valor. O restante poderia ser
emprestado pelo Estado a um juro módico (5%), adquirido nos bancos ou conseguido por
meio de qualquer outra operação de crédito que o governo achasse conveniente (Correio da
Manhã, 1920a).
Em contrapartida aos favorecimentos, a empresa proposta por Jannuzzi daria como pe-
nhor os 10% do capital empregado, a idoneidade das firmas que a compunham, a primeira
hipoteca de todos os prédios e o seguro de vida no valor de cada construção, que seria
feito na pessoa do inquilino (Correio da Manhã, 1920a). Um direito da classe trabalhadora
– em favor do qual o advogado Evaristo de Moraes tanto lutara entre 1909 e 1911 (Mattos,
2008, p. 188) – parecia solidificado a essa altura: a possibilidade de aquisição do imóvel pelo
proletário ou funcionário público. Desde o primeiro aluguel, o inquilino ganharia o título
provisório de propriedade, que se tornaria definitivo após 15 anos – ou mesmo antes, caso
aquele o quisesse. Ao mesmo tempo, o locatário seria segurado em vida (no valor do prédio)
pela empresa; assim, se viesse a morrer, o governo e a família não teriam prejuízos (Correio
da Manhã, 1920a).
Os favores pecuniários reivindicados pelos construtores civis eram maiores do que
os estabelecidos na lei n. 2.407, de 18 de janeiro de 1911, 1 que acenava com a possibi-
lidade de a União emprestar 50% do valor estimativo das casas (e não 90%, conforme
Jannuzzi pleiteava em 1920). Se o Jornal do Commercio abriu espaço para artigos assi-
nados pelo engenheiro italiano, o concorrente Correio da Manhã reproduziu em tom de
concordância os temas vinculados à campanha dos construtores civis, em reportagens
cotidianas.
O último jornal soube se aproveitar da ocasião ao prestar uma espécie de satisfação aos
trabalhadores – por meio da abordagem da chamada questão social – e, ao mesmo tempo,
apoiar a campanha do setor da construção civil. Esse parecia ser o momento mais adequado

1 Essa lei remonta ao projeto n. 337, de 1905, originário na Câmara dos Deputados, que adentrou o Senado em
1906, sob a denominação 54-A. Embora aprovado em 1911, tal ato legislativo permanecia até aquele momento
como letra morta por falta de um regulamento de competência municipal.

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para pressionar o governo a acatar os interesses da iniciativa privada. Não por acaso, a maté-
ria sobre a proposta encaminhada por Jannuzzi ganhou um título que transcendia o seu ca-
ráter corporativista, como se tratasse somente de assunto de interesse público: “O problema
da habitação” (Correio da Manhã, 1920a).
A Associação dos Construtores Civis do Rio de Janeiro havia sido fundada em 1919. Jan-
nuzzi, o seu presidente, vinha empreendendo uma grande campanha junto à imprensa, ao
Executivo e ao Conselho Municipal, na qual pregava a união de esforços entre os poderes
públicos e as firmas particulares (Lobo; Carvalho; Stanley, 1989, p. 109) – ou seja, um discur-
so idêntico ao que os jornais da grande imprensa adotaram na época. O Correio da Manhã
(1920b) anunciava que havia “um indício de reação viva contra a crise das casas”, tendo em
vista a profusão de planos apresentados pela “iniciativa particular com o intuito de erguer
novas construções”. Vemos aqui certo louvor à atitude dos empresários do setor da constru-
ção civil, que os destituía de qualquer tipo de interesse econômico. Outro detalhe: a movi-
mentação pela resolução da questão da habitação parecia vir única e exclusivamente do
grupo dos construtores civis, e não da classe trabalhadora – que nesse contexto invadira o
espaço público com suas reivindicações por melhores condições de vida.
O Correio da Manhã (1920b) relacionava aquela situação ao “fenômeno da aglomera-
ção cosmopolita que aqui se concentrou, depois de restabelecidas as comunicações com
a Europa e de criada nas cidades do interior do Brasil uma corrente de deslocação de habi-
tantes que vieram instalar-se no Rio”. Assistimos nessa citação a um tipo de análise social
reducionista e consagrada pelo tempo, que incorre na responsabilização da migração in-
terna pelo adensamento populacional nas metrópoles – nos dias de hoje, a associação das
favelas aos nordestinos é amplamente divulgada nos meios de comunicação brasileiros. O
jornalista também lembrou a Primeira Guerra Mundial como um possível desencadeador
do deslocamento populacional para o Brasil. Mas deixou de dizer que o conflito contribuí-
ra para o aumento do déficit habitacional ao elevar os preços dos materiais importados – o
que diminuiu a uma oitava parte o número de construções e reconstruções na capital (Elia,
1984, p. 120).
Não foi apenas a Grande Guerra que criou uma conjuntura desfavorável ao setor habi-
tacional. Podemos apontar para “o capital imobiliário, retendo grandes áreas de terra nos
subúrbios, o monopólio detido pela Light e pela Leopoldina Railway de grande parte dos
serviços de transporte oferecidos às áreas suburbanas, aliado às exigências crescentes no
tocante à construção de prédios” (Lobo; Carvalho; Stanley, 1989, p. 107). O crescimento po-
pulacional e a necessidade de um juro compensador para o capital empregado também
haviam contribuído para o aumento do preço dos aluguéis (Elia, 1984, p. 120).
O Correio da Manhã (1920b) destacou o tema dos aluguéis, cujo aumento teria ocorri-
do “em proporções assustadoras” – ou seja, de 30% a 50% nas casas destinadas à moradia,
enquanto nos imóveis alugados para fins comerciais não haveria limites para o reajuste. Na
opinião do jornalista, a razão para tamanho descontrole seria a “ganância dos proprietários”,
motivo pelo qual apoiava a criação de um regime legal que estabelecesse igualmente as
garantias dos inquilinos e dos proprietários em tal relação. O repórter argumentava que o

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contrato de aluguel, da forma como existia, seria antes uma garantia para o proprietário –
principalmente, no contexto de crise habitacional, quando este último podia ditar as cláu-
sulas que quisesse.
Toda essa preocupação com os direitos da classe trabalhadora se explica pela pressão
que ela vinha realizando no espaço público. Na conjuntura da virada da década de 1910 para
a de 1920, que realçou a chamada questão social, as classes sociais se agitaram e a política
tomou conhecimento de sua realidade (Carone, 1989, p. 55). Por isso, o conflito havia de ser
ocultado nas páginas do Correio da Manhã (1920b): “pode-se dizer que o interesse do inqui-
lino e do proprietário constituem [sic] um único interesse. Por que não se unem ambos para
provocar a criação dum regime que só lhes pode dar sossego e garantia mútuas?”. Perceba-
mos que, diante da possibilidade de os proprietários cederem às reivindicações dos traba-
lhadores, o jornal apontava para a necessidade de uma negociação mais igualitária, já que as
aspirações de um não se rivalizariam com as do outro. Nesse sentido, é rica de significados a
frase: “O momento é o mais propício” (Correio de Manhã, 1920b).
A mesma matéria deixava claro que havia nessa conjuntura a percepção de que a cidade
mudara de feição e que a questão da habitação girava em torno de um problema maior,
novo, de ordem urbana – não por acaso, a década de 1920 seria a do urbanismo no Brasil: “O
Rio de Janeiro não pode mais viver como há vinte ou trinta anos; [...] é uma grande capital
onde os problemas urbanos, de ordem municipal como de ordem social, aparecem e se mul-
tiplicam todos os dias” (Correio de Manhã, 1920b). Tema constante nas literaturas francesa
e inglesa do século XIX, o medo das multidões estava presente: “a vida toma cada vez mais
o aspecto das imensas aglomerações humanas da Europa e requer já outras soluções” (Bres-
ciani, 1989).
A campanha do Correio da Manhã em prol dos interesses dos construtores civis fica evi-
denciada na reprodução de uma bandeira de luta da Associação dos Construtores Civis do
Rio de Janeiro, que era a união de esforços entre os poderes públicos e empresas particu-
lares: “as soluções, aí, têm que ser administrativas, com o aproveitamento sistemático das
iniciativas particulares de que possa resultar um incremento das construções”. Isso, “sem a
exigência de favores fiscais intempestivos e exagerados”, relativizava o jornal.
O problema era que, sem esses alentados privilégios concedidos pelo Estado, os cons-
trutores não viam nas casas populares um investimento seguro. A discussão sobre a crise
habitacional tomava um vulto cada vez maior, pois a Liga dos Inquilinos e Consumidores,
fundada por servidores municipais do Rio de Janeiro, estava disposta a lutar contra o au-
mento desenfreado dos aluguéis. A luta pela moradia constituiu um movimento duradou-
ro e efetivo das classes médias nos anos 1920, quando mudaram de tática e radicalizaram
sua ação. Assim, a questão da habitação foi um dos pontos de atrito entre a chamada
pequena burguesia e as oligarquias no poder. No primeiro ano daquela década, a referida
liga pressionou o governo para que ele construísse casas, tendo pedido o apoio dos jor-
nais, enviado memoriais aos poderes públicos ou mesmo sugerido o não pagamento dos
aluguéis. Em 1921, novas formas de luta foram empregadas, como a realização de comícios
esporádicos, nos quais eram defendidos o desrespeito à ordem constituída e a greve geral

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dos inquilinos – além da ideia de levar móveis para a praça pública em sinal de protesto
(Carone, 1978, p. 182-183).2
A preocupação do Correio da Manhã com o tema do aluguel também era resultado da
pressão da Liga dos Inquilinos e Consumidores. O debate estava aberto na grande imprensa,
e os políticos resolveram entrar em ação. O novo prefeito, Carlos Sampaio, louvou a atuação
dos construtores civis, mas disse que faltava dinheiro aos cofres públicos para resolver a crise
da habitação (Correio da Manhã, 1920c). Já o ministro da Fazenda, Homero Baptista, presen-
ciou o estado de abandono em que se encontrava a vila proletária Marechal Hermes, que
começara a ser construída em 1912 (Correio da Manhã, 1920d). A reportagem que noticiou
a passagem do político pelo subúrbio tentava arrefecer os ânimos da classe trabalhadora:
“Cada vez mais esse assunto [o da habitação popular] se impõe à cogitação dos administra-
dores, não só nos países onde a questão social apresenta aspectos perigosos, como também
na nossa terra, de operariado pacífico, obediente à ordem e à lei”.
Reafirmava-se o mito da índole pacífica do povo brasileiro, em cujo país a chamada ques-
tão social não apresentaria “aspectos perigosos” como na Europa. Esse pensamento ia de en-
contro à preocupação demonstrada pelos próprios periódicos da capital, que cediam amplo
espaço ao tema e reproduziam depoimentos alarmantes dos especialistas: “Nada podem os
poderes públicos em face da crise que ameaça tomar um caráter agudo, expondo aos pe-
rigos de uma agitação das classes pobres” (Correio da Manhã, 1920e). As revistas ilustradas
também não puderam ignorar o assunto e registraram a força do protesto dos trabalhado-
res contra a falta de moradias, que seria ouvido até pelos habitantes dos planetas vizinhos:
“Chegar-lhes-á aos ouvidos este clamor rugido por vozes dos mais diversos timbres e sons
de maior contraste: ‘Casas!... Nós queremos casas!’” (Careta, 1920).
A forte repressão policial ao operariado contradizia com maior nitidez os argumentos em-
pregados naquela tentativa de ocultação do conflito. O ano de 1920 foi o último da fase de
maior mobilização da Primeira República, na qual o movimento operário atingiu um alto grau
de organização e de consciência de classe. Isso pode ser medido pelo nível de politização das
greves, como também pelo número de greves em si. Entre 1917 e 1920 houve nada menos que
90 greves na capital, sendo 25 de pauta política, 14 de pauta econômica, 22 de pauta política
e econômica, e vinte de pauta não identificada. Em uma conjuntura sobre a qual pairava o
espectro da Revolução Russa, o avanço das reivindicações do proletariado inaugurou uma era
de métodos de prevenção e repressão à mobilização política nos sindicatos. Assim, os aparatos
policiais passaram por uma reestruturação, principalmente em torno da chamada polícia po-
lítica, que se especializou ou definiu mais claramente suas funções e poderes de intervenção.
Não há dúvida de que a forte repressão desencadeada aos trabalhadores nesse período tenha
conseguido frear o impulso combativo e organizativo de suas lutas: se em 1920 haviam ocorri-
do 26 greves, em 1926 ocorreram apenas quatro (Costa; Freitas, 2004, p. 141-145).

2 Vale ressalvar que a ideia de uma greve de inquilinos havia sido tema de uma peça do anarquista português
Neno Vasco (1923), encenada no Rio de Janeiro em 1907, conforme citou Samis (2006).

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Outra dimensão a ser analisada com mais vagar é a da economia. Em 1919, o grande
problema era o da carestia de vida, tendo o Correio da Manhã alarmado as classes dominan-
tes com o prognóstico de uma “revolução”, levando-se em consideração o inconformismo
da população que não deixava as ruas e atacava os comerciantes (Correio da Manhã, 1919).
No dia 1o de maio, 60 mil manifestantes haviam se reunido no Distrito Federal para criticar
a exploração ao proletariado no sistema capitalista. Na década seguinte, o país conheceu
a depressão do pós-guerra e arcou com o ônus do desaceleramento industrial. No segun-
do semestre de 1920, o Rio de Janeiro enfrentou uma nova crise de crédito, em virtude da
convergência da recessão mundial e da escassez do meio circulante, essa última decorrente
da mobilização sazonal de recursos para atender às necessidades da colheita do café e da
borracha (Lobo, 1978, p. 527, 533).
Nesse conturbado contexto, a sensação de que providências imediatas deveriam ser to-
madas dominava as classes dominantes. Carlos Sampaio visitou o morro da Favela (nome
pelo qual era mais conhecido o morro da Providência), para conhecer suas necessidades e in-
troduzir melhoramentos (Correio da Manhã, 1920f ). Chegou, inclusive, a percorrer a ladeira
do Barroso, para vistoriar o calçamento que seria inaugurado em poucos dias. Ou seja, ape-
sar de todo o palavrório contra a sua permanência, as favelas mais tradicionais eram agra-
ciadas com uma política de tolerância, a ponto de receberem infraestrutura financiada pela
própria Prefeitura. Em um momento crítico e de exceções, esse tipo de assentamento habi-
tacional podia estar sendo considerado pelos poderes públicos como uma alternativa viável
de moradia da classe trabalhadora. O mesmo parece ter ocorrido quando da promulgação
do decreto n. 391, de 10 de fevereiro de 1903, em meio à Reforma Passos, o qual autorizava,
mediante licença, a construção de “barracões” em morros que ainda não tinham habitações.3
Mais um indício de que as favelas fortaleciam a sua presença no tecido urbano da capital
pode ser encontrado nos classificados do Jornal do Brasil (1920): “Aluga-se a casal decente e
sem filhos, um barracão com 2 quartos, sala, cozinha e quintal, independente, nos fundos do
prédio da r. 8 de Dezembro 95, estação da Mangueira”. Notemos no anúncio dessa casa situ-
ada no morro da Mangueira, em primeiro lugar, a dimensão do mercado imobiliário a essa
altura desenvolvido nas favelas; em segundo, a preocupação com a índole dos interessados
em ocupar o imóvel numa localidade que havia sido considerada um novo morro da Favela
(Correio da Manhã, 1914) – que, na ótica dos jornalistas, seria o território por excelência das
“classes perigosas”; e, em terceiro, a forma de identificação das residências, que, muitas ve-
zes, não tinham número e se localizavam em ruas sem nome.
Em outra reportagem do Jornal do Brasil (1920b), vemos certa indignação com a atitude
da administração Carlos Sampaio, que, ao mandar destruir “barracões” erguidos a poucos
metros da avenida Niemeyer, nas fraldas do morro da Gávea, deixou seus moradores ao re-

3 Vale lembrar que houve a construção de “barracões” na praça da Bandeira para abrigar a população retirada do
morro do Castelo. A total falta de infraestrutura nesses abrigos apenas piorou as condições de vida dos mora-
dores pobres expulsos da colina (Barros, 2005, p. 195).

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lento. O periódico chegou a denunciar o espancamento de Graciana Maria da Conceição por
funcionários municipais, a golpes de cabo de enxada, diante da resistência da popular, que
não queria deixar sua casa ser demolida. Percebamos que o diário não discordava do arra-
samento das habitações onde hoje provavelmente se situa a favela do Vidigal, mas entendia
que a favelização deveria ser permitida em locais mais retirados ou escondidos:

Nunca vi tamanha desumanidade, mormente em país como o nosso, que se gaba de


ser o mais liberal do mundo. Estou de pleno acordo com a retirada para outro local dos
barracões que ficam próximos da avenida Niemeyer, e que lhe tiram a estética. Mas, a
Prefeitura não permite que eles sejam construídos em outro lugar, por exemplo, no meio
das matas, que ficam longe das vistas dos que passam por aquela avenida.

O maior sinal de urgência em relação ao déficit de casas populares foi a mensagem en-
viada pelo presidente Epitácio Pessoa aos membros do Congresso Nacional, na qual dizia
que os poderes federais deveriam atuar mais energicamente em tal questão. Claramente
baseado no memorial escrito por Jannuzzi, o chefe da nação considerava o sistema adotado
pela lei n. 2.407, de 1911, como o mais indicado e acrescentava: “Não é de se recear [...] a ele-
vação do limite de 50% [...] até 90% do valor das construções, como pedem os construtores
do Distrito Federal” (Correio da Manhã, 1920g).
Os construtores civis pareciam se encontrar em posição privilegiada nesse momento. Na
mesma edição em que a mensagem de Epitácio Pessoa foi publicada, havia uma matéria que
louvava o despertar dos poderes públicos para a questão da habitação. Acreditando pres-
tar um serviço de utilidade pública, o Correio da Manhã (1920h) resumiu as propostas que
transitavam na esfera política. No Conselho havia um projeto de moradias que reivindicava a
isenção de vários impostos municipais. Na Câmara, outro plano aventava a exploração pelo
Estado de casas operárias. O presidente da República, por sua vez, pretendia conceder facili-
dades à iniciativa particular, na forma de companhias organizadas para construir habitações
populares. O mais interessante é que, dessas três sugestões, o diário considerava como “a de
mais difícil execução [...] a relativa à exploração direta do Estado, dada a deficiência de meios
com que luta o Tesouro Nacional”.
Defendida nos jornais socialistas do começo do século XX, a proposta de atuação di-
reta do Estado na construção de moradias populares – sem a intermediação de empresas
construtoras particulares – era descartada como praticamente irrealizável, porque os cofres
públicos não disporiam de tanto dinheiro. Nesse ponto, é conveniente acusar um tipo de
abordagem reducionista realizada pela grande imprensa, que se satisfazia com as explica-
ções dos motivos pelos quais o Estado não poderia investir em áreas fundamentais para o
bem-estar da maioria da população, sem esforçar-se em argumentar sobre como esses en-
traves poderiam ser superados.
O mais interessante é que aquele discurso se encaixava com o que a Associação dos
Construtores Civis do Rio de Janeiro defendia na época. No memorial apresentado ao presi-
dente Epitácio Pessoa, Jannuzzi declarou que dois pontos não sofreriam mais contestação

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nos congressos internacionais: “1º. Deve-se dar preferência à iniciativa privada [...]; 2º. É ne-
cessário procurar capitais a juros módicos e em medida tal que façam frente não somente
à metade ou aos dois terços do custo da construção, mas também às frações sucessivas do
custo total” (Jannuzzi, 1927, p. 18-19). Ao discorrer sobre a lei n. 2.407, de 1911, o engenheiro
italiano chegou a incluir a intervenção direta do governo na construção de casas populares
entre as razões que explicariam a não resolução da crise habitacional:

[...] o limite de 50%, equiparando o favor ao comumente oferecido pelos bancos de cré-
dito real, e mesmo inferior a este [...] e mais a circunstância da intervenção direta do
Governo da União na construção de casas populares, [...] em vez de regulamentar a lei
e estimular a iniciativa privada, tudo isso deu em resultado nada se ter conseguido até
hoje do magno desideratum! (Jannuzzi, 1927, p. 21).

As palavras de um especialista europeu citado por Jannuzzi (1927, p. 19) eram ainda mais
contundentes e beiravam as raias do alarmismo: “Seria perigosa, inadequada e mesmo subs-
tancialmente danosa, a linha de conduta que quisesse conferir aos municípios a construção
direta de casas municipais para a generalidade das classes necessitadas”. Em resumo, a expe-
riência do Estado na edificação das vilas operárias Marechal Hermes e Orsina da Fonseca, na
década de 1910, teria sido, na opinião do referido construtor civil, “a mais flagrante negação
dos objetivos daquele ato legislativo [a lei n. 2.407, de 1911]” (Jannuzzi, 1927, p. 8).
É preciso esclarecer que, entre 1911 e 1914, haviam ocorrido várias iniciativas do go-
verno federal e da municipalidade visando à superação da chamada questão habitacional.
No entanto, as diferentes autoridades entraram em conflito e acabou não se definindo uma
política em nível municipal. Em um contexto de aproximação com o operariado, o fracasso
do esforço da União pode ser creditado em grande parte à depressão econômica iniciada em
1913 e agravada no ano seguinte. Na primeira metade da década de 1910, o conflito entre o
capital privado e a ação intervencionista do Estado estava exposto nos diversos projetos que
chegavam à Câmara (Lobo; Carvalho; Stanley, 1989, p. 110-111).
Condenação à intervenção direta dos poderes públicos e reivindicação de grandes in-
centivos fiscais, eis os pontos básicos da campanha empreendida pela Associação dos Cons-
trutores Civis do Rio de Janeiro. Tamanho empenho resultou na aprovação pelo Conselho
Municipal do projeto n. 371, de 1920 – apresentado pelo intendente Pio Dutra, a pedido
da referida associação –, que concedia favores de sua competência, de acordo com a lei n.
2.407, de 1911. Mas a felicidade dos empresários da construção civil durou pouco. Carlos
Sampaio vetou a aludida proposta – que pedia a isenção de impostos municipais pelo perí-
odo de 15 anos – por temer a especulação imobiliária, numa época em que a preocupação
com o valor de troca do solo urbano passava a figurar explicitamente nos planos municipais
(Abreu, 1997, p. 78). Jannuzzi respondeu imediatamente com a publicação de um manifesto
n’O Jornal (1921). Dois dias depois, vislumbrou uma saída desesperada: a concessão de todos
os favores autorizados pela lei n. 2.407, sem a dependência dos contratos que as firmas de-
viam celebrar com a municipalidade – nesse caso, o valor do aluguel aumentaria.

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A legislação habitacional foi finalmente regulamentada em 20 de maio de 1921, pelo de-
creto n. 14.813, que manteve a isenção de impostos durante 15 anos – exceto no caso da im-
portação de madeira – e corroborou as vantagens concedidas pelo decreto n. 4.209, de 11 de
dezembro de 1920, como o empréstimo de 80% do valor dos imóveis a serem construídos e o
juro módico a cinco e meio por cento.4 Esse decreto – que alterava a lei n. 2.407, de 1911, para
contemplar as reivindicações dos construtores civis5 – tinha entre os seus objetivos garantir a
conclusão das vilas Marechal Hermes e Orsina da Fonseca, por contrato ou administração. Não
obstante, previa o abatimento nas passagens de trens para os moradores das casas populares,
a fim de garantir a redistribuição da mão de obra (Jornal do Commercio, 1927).
Os construtores civis agrupados em torno de Jannuzzi ficaram eufóricos com a aprova-
ção do regulamento sobre a concessão de favores para a construção de casas populares, em
1921. Esse parecia ser o momento perfeito para eles entrarem no mercado da habitação po-
pular. O próprio líder do grupo, envolvido na construção de casas higiênicas para as classes
pobres desde o fim do século XIX, quando era diretor técnico e sócio da Companhia Evoneas
Fluminense, voltou a elogiar Carlos Sampaio, em 1922. Depois de ter vetado em dezembro
de 1920 o projeto n. 371 – que complementava a lei do governo federal ao conceder os
favores de competência da Municipalidade –, o prefeito que mandara demolir o morro do
Castelo queria terminar a sua administração como tendo sido também o promotor da cons-
trução de casas populares na cidade do Rio de Janeiro. Assim, a Sociedade Construtora de
Casas Proletárias assinou no dia 16 de outubro de 1922 um contrato com a Prefeitura, que
ainda prometia àquela a cessão gratuita de um terreno nas fraldas do morro de São Carlos,
no Estácio (O Jornal, 1922).
Sobre esse terreno, Jannuzzi afirmou que era “vastíssimo e situado em um ponto ameno
e belíssimo, bem arejado e enxuto” (O Jornal, 1922). Vale ressalvar que esse ponto “ameno e
belíssimo” se localizava ao lado da Casa de Correção. Como se não bastasse, na década de
1920, o morro de São Carlos começava a desbancar o morro da Favela na crônica policial da
capital, sendo às vezes chamado de “Nova Favela” (Vida Policial, 1925; 1926). Ou seja, o local
parecia ter sido escolhido a dedo por um prefeito que, em 1920, enxergara na lei habitacio-
nal o perigoso componente da especulação imobiliária. Mas o construtor italiano teve de
abrir mão desse terreno – que, de privilegiado, tinha, de fato, a proximidade ao Centro da
cidade – em prol de outro, situado na rua Indiana, no Cosme Velho. Isso porque o terreno
do Estácio pertencia ao Ministério do Interior, o que exigia da firma uma solicitação ao Mi-
nistério da Fazenda; portanto um processo demorado demais para as pretensões de Carlos
Sampaio, “que desejava ser o iniciador dos trabalhos das casas operárias” (O Jornal, 1923).

4 O contrato entre a Prefeitura e a Antonio Jannuzzi & C. foi assinado em 16 de outubro de 1922. Mas a falta de
entendimento entre o Estado e a iniciativa privada não seria resolvida nesse episódio, conforme veremos mais
adiante.
5 Vale ressalvar que os empresários liderados por Jannuzzi queriam financiamento de 90% do valor das moradias
pelo governo, e não 80%.

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Mas nada que tirasse o entusiasmo de Jannuzzi, que aceitou a nova oferta do prefeito de
bom grado – afinal, nesse momento, o interesse de um harmonizava-se com o do outro.
A Sociedade Construtora de Casas Proletárias apresentou todos os documentos ao minis-
tro da Fazenda, que os despachou para o Patrimônio Nacional, o qual, por sua vez, os aprovou
com uma nota de louvor. Agora faltava apenas o governo federal acertar o contrato com a
firma, especialmente organizada para o negócio das casas populares. No entanto, com tudo
pronto para a pedra fundamental da construção no Cosme Velho ser lançada no dia 12 de
novembro de 1922, surgiu um novo entrave aos planos do construtor italiano: Epitácio Pessoa
– o presidente que, em 1920, publicara uma mensagem em que citava longos trechos do me-
morial organizado pela Associação dos Construtores Civis do Rio de Janeiro – resolvera assinar
uma nova lei autorizando o governo a construir cinco mil casas para os funcionários e os ope-
rários federais; além disso, deixava para a próxima administração a incumbência de lavrar o de-
creto concedendo à Sociedade os favores que os seus sócios tanto cobiçavam (O Jornal, 1923).
Mais uma vez era adiado o projeto dos construtores civis capitaneados por Jannuzzi, que
reclamou dos prejuízos, mas não desistiu da empreitada. A luta do referido grupo pelo direi-
to de construir casas higiênicas a módico preço, conforme proporcionava a lei, ocorre até o
fim da Primeira República. No entanto, os constantes apelos de Jannuzzi para que o governo
concedesse os favores regulamentados pela lei n. 14.813, de 1920, não foram atendidos.
As suas palavras parecem ter sido sufocadas pelo argumento daqueles que consideravam
exagerados os incentivos contidos na legislação habitacional. Ao mesmo tempo, tornava-se
claro que agora a União pretendia limitar e controlar a atuação das empresas particulares na
construção das casas populares – e assim a ação dos especuladores imobiliários.
A legislação que procurava incentivar a construção de habitações populares, elaborada no
início dos anos 1920, obedecia mais ao objetivo de aliviar a pressão da classe trabalhadora do
que efetivamente combater a questão da habitação popular. Isso porque ela jamais foi devi-
damente sistematizada e colocada em prática, como podermos ver no I Congresso das Caixas
Econômicas, realizado em 1935. Sobre as leis habitacionais então existentes, Pinto de Aguiar
apontou para a ausência de uma “uma lei que faça cumprir as outras, e que, obedecendo à
força imperiosa das circunstâncias, dinamizará, sob a pressão de uma realidade tangente, a
letra morta da lei” (Aguiar, 1935, p. 20-21). Além disso, no processo de discussão e criação de
tais atos legislativos, é possível observar conflitos, por um lado, entre as autoridades federais
e municipais e, por outro, entre o Estado e a iniciativa privada – os quais tanto prejudicaram
a criação e a execução de uma legislação habitacional realmente eficaz. Ao mesmo tempo, o
Estado se recusava a atender as propostas operárias de simplificar as normas municipais e as
exigências das autoridades da saúde pública para a construção nos subúrbios.
Uma das consequências dessa inação dos poderes públicos foi o crescimento mais acelerado
das favelas. A difusão multidirecional e incontrolável (Abreu, 1994, p. 40) desse tipo de assenta-
mento habitacional pode ser percebido no tom resignado adotado por certos agentes sociais
favoráveis a sua erradicação: “se tem havido um tal ou qual silêncio em torno delas [as favelas], é
que se chegou, afinal, ao desânimo, pela convicção de que não vale a pena malhar em ferro frio.
Já se dá de ombros como quem diz: paciência... que fazer?” (Correio da Manhã, 1922).

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Recebido em 15/1/2015
Aprovado em 21/1/2015

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“são as águas de março fechando o verão...”
chuvas e políticas urbanas nas favelas cariocas
“the waters of march closing the summer...”
rains and urban politics in the cariocas slums

Rafael Soares Gonçalves | Mestre e doutor em História e Civilização pela Universidade de Paris VII/Denis Diderot
e pós-doutor no Laboratório de Antropologia da Escrita da École des Hautes Études en Sciences Sociales. Professor
adjunto da PUC-Rio.

resumo

Se grandes enchentes aconteceram com frequência no decorrer do século XX, algumas tornaram-
se uma referência na memória carioca. O presente artigo sublinha o papel das “chuvas de verão”,
enquanto agente ambiental de impacto na cidade, analisando as chuvas de 1966/67, 1988 e 2010.
A hipótese central repousa na ideia de que as chuvas, em diferentes ocasiões, suscitaram forte de-
bate público, sobretudo em relação às favelas, mobilizando discursos e recursos, que impuseram
mudanças no modo de agir dos poderes públicos nesses espaços, tanto em termos de formulação
de políticas públicas, como de novas técnicas de intervenção nessas áreas.

Palavras-chave: desastres; favelas; Rio de Janeiro – chuvas e enchentes.

abstract

Great floods occurred frequently during the 20th century, some of which have become a refe-
rence in the memory of the city of Rio de Janeiro. This article emphasizes the role of the “sum-
mer rains” as a high-impact environmental agent in the city, analyzing in particular the rains of
1966/67, 1988 and 2010. The central hypothesis is the idea that the rains, in different occasions,
have prompted strong public debate, especially in relation to slums, mobilizing resources and
discourses, which resulted in changes in the interventions of the public authorities in these spa-
ces, both in terms of public policy formulation and of new intervention techniques in these areas.

Keywords: disaster; slums; Rio de Janeiro – rains and floods.

resumen

Si grandes inundaciones se produjeron con frecuencia durante el siglo XX, algunas se han con-
vertido en una referencia en la memoria de la ciudad de Río de Janeiro. Este artículo pone de
relieve el papel de las “lluvias de verano” como agente ambiental de impacto en la ciudad, anali-
zando particularmente las lluvias de 1966,1967, 1988 y 2010. La hipótesis central se basa en la
idea de que las lluvias, en diferentes ocasiones, levantaron un fuerte debate público, sobre todo
en relación a los barrios marginales, movilizando recursos y discursos, imponiendo cambios en
el modo de acción de las autoridades en estas áreas, en términos de formulación de políticas
públicas y de nuevas técnicas de intervención en estas áreas.

Palabras clave: desastre; favelas; Río de Janeiro – lluvias y inundaciones.

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A água é um elemento vital para a sobrevivência humana. A localização das cidades se
explica em grande medida pela oferta desse “precioso líquido”, conforme descreve Maurício
de Abreu (1992) em relação às lutas pela água na formação da cidade do Rio de Janeiro. As
águas tranquilas e seguras da baía de Guanabara e a abundância de córregos que descem a
serra da Carioca em direção à baía e às lagoas da cidade permitiram a ocupação e expansão
da cidade. Como analisam Maia e Sedrez (2011, p. 226), a grande questão urbano-ambiental
da cidade, desde o século XIX, era a água. De um lado, faltava e, de outro, sobretudo no ve-
rão, havia em excesso.
Com a expansão da cidade, foi necessário buscar água em áreas cada vez mais distantes.
A solução para o abastecimento da cidade foi, em parte, solucionada com a construção da
adutora do rio Guandu pelo governador Carlos Lacerda (1960-1965), mas as chuvas conti-
nuavam a “castigar” a cidade. A reputação de excelente gestor de Lacerda se desmoronou,
quando as chuvas de 1966 vieram. O sítio geográfico único, onde se encontra a cidade, e o
acelerado processo de ocupação urbana explicam a incidência cada vez mais frequente de
enchentes. Em períodos de chuvas, os rios que descem as serras da cidade em direção à baía
de Guanabara, ao mar ou às lagoas extrapolam seus leitos irregulares e, o que não é absorvi-
do pelo solo, escoa para os manguezais da cidade.
As chuvas intensas de verão são, assim, fundamentais para a reprodução do ecossis-
tema local. A intensa urbanização da cidade, a partir do modelo modernista de extinção
dos fluxos hídricos lentos, levou à retificação e canalização de rios, ao aterro de mangue-
zais e à drástica impermeabilização do solo. Esse processo, aliado à ocupação intensa dos
morros, intensificou os fenômenos de enchentes e deslizamentos. De certa forma, a diver-
sidade das questões ambientais da cidade, conforme sublinha Galvão (1992, p. 22), pode
ser sintetizada com bastante clareza em suas diferentes dimensões, através de um evento
climático de grande significado na vida da cidade: as chuvas de verão. O presente artigo
pretende, assim, sublinhar o papel das chuvas de verão, enquanto agente ambiental de
grande impacto na cidade.
Se grandes enchentes aconteceram com frequência no decorrer do século XX, em perí-
odos que variavam entre cinco a dez anos, as enchentes de 1966/67, conforme afirma Lise
Sedrez (2008), se não foram as mais fortes, acabaram se fixando na memória da cidade, tor-
nando-se uma referência histórica para as chuvas subsequentes. Além de analisar os impac-
tos das chuvas desses anos, este artigo pretende analisar também as chuvas de 1988. Ambas
são extremamente evocadas em contextos de novas chuvas, como foi o caso, por exemplo,
da enxurrada de 2010. A hipótese central deste trabalho repousa sobre a ideia de que as chu-
vas, em diferentes ocasiões, suscitaram um forte debate público, sobretudo em relação às
favelas, mobilizando discursos e recursos, que impuseram importantes mudanças no modo
de agir dos poderes públicos nesses espaços, tanto em termos de formulação de políticas
públicas, como na definição de novas técnicas de intervenção nessas áreas. Em primeiro lu-
gar, serão debatidos, suscintamente, os conceitos de risco e de desastres, com o objetivo de
se compreender, posteriormente, os casos das chuvas de 1966/67 e 1988 e, como conclusão,
tais realidades serão brevemente comparadas com as recentes chuvas de 2010.

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por uma história urbana dos desastres

Christian Topalov (1997) descreve a evolução do pensamento urbanístico, analisando


como a discussão sobre as expressões urbanas da questão social é paulatinamente absor-
vida por um discurso técnico sobre os problemas urbanos da cidade industrial. Tal discurso,
nas últimas décadas, conforme analisa Topalov (1997), se reveste de fortes contornos am-
bientais. No contexto do surgimento e da consolidação do discurso ambiental, a noção de
risco, sobretudo daqueles produzidos pela própria evolução da técnica, tornou-se um ele-
mento frequentemente evocado para se compreender a sociedade atual, especialmente em
relação à gestão e ao planejamento urbano (Beck, 2010). Apesar de defender que os riscos
impactam de forma distinta a população, a “sociedade de risco” relativiza o papel central que
as desigualdades sociais representam na compreensão da sociedade atual, já que, segundo
Beck (2010, p. 27), os riscos da modernização contêm um “efeito bumerangue”, que atinge a
todos, implodindo o esquema de classes.
Kenneth Gould (2004, p. 70), ao contrário, sublinha que os riscos e seus impactos refle-
tem a estrutura da sociedade em que vivemos, já que existe uma distribuição desigual dos
riscos, que favorece a segregação de classes, a partir das áreas residenciais. Em sua crítica
às correntes de modernização ecológica e da sociedade de risco, Henri Acserald (2002) sus-
tenta, a partir da perspectiva da justiça ambiental, que a compreensão dos riscos devem ne-
cessariamente levar em consideração que nossa sociedade é estruturada em classes. É nesse
sentido que se posiciona, também, a reflexão de Marcelo Porto (2012) sobre a ecologia po-
lítica dos riscos e a necessidade de se implantarem metodologias participativas em relação
à gestão dos riscos, de forma a reverter os quadros de vulnerabilidade e injustiça ambiental.
O risco não é um dado pré-estabelecido, que pode ser mensurado de forma objetiva, a
partir de questões técnicas quanto às dimensões naturais de um local, mas reflete aspectos
políticos, quanto às formas de ocupação das áreas urbanas e às intervenções e/ou omissão
das autoridades públicas. É preciso, assim, superar os discursos moralizadores que estig-
matizam grupos e suas práticas. Assim, as diferentes leituras técnicas do risco podem estar
associadas mais às concepções políticas subjacentes do que à dita “objetividade” técnica do
fenômeno (Cardoso, 2006). A noção de risco não deve ser evocada como questão de ordem,
já que pode se metamorfosear, por trás da fachada de um discurso técnico, em questões
morais, de poder e de ‘decisionismos’ arbitrários e segregadores (Beck, 2010, p. 24). A pre-
tensa objetividade técnica, conforme analisa Valencio (2012, p. 63) em relação a práticas de
cartografia do risco, ressalta a hipocrisia de que a informação tecnicista sobre os riscos seria
imparcial, como também protetiva dos pobres.
Como veremos no decorrer deste artigo, a transformação paulatina da menção às favelas
como áreas de risco não levou em consideração a história dessas áreas e a luta dos morado-
res para permanecer em suas moradias. Ademais, o conceito de áreas de risco, inicialmente
voltado para o pretenso risco geofísico, é aleatoriamente empregado também como refe-
rência aos problemas sociais ali encontrados, sobretudo em relação à violência urbana. Há,
assim, uma inversão: não se trata do risco para os moradores das favelas, mas, ao contrário,

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as próprias favelas e seus moradores são considerados um risco para o restante da socieda-
de. Isso se manifesta com contornos mais nítidos em contextos de grandes chuvas, quando
o debate sobre o destino das favelas e seus moradores vem novamente à tona. O que fazer
com as favelas? Urbanizá-las ou removê-las? A pretensa preocupação com os moradores
das favelas torna-se uma excelente oportunidade de dar cabo a esses espaços, que estariam
expondo ao perigo o conjunto da sociedade.
Para compreender o contexto das enxurradas na cidade, é preciso compreender tam-
bém a natureza do fenômeno desastre. Valencio (2012) ressalta que três críticas podem ser
feitas ao arcabouço discursivo evocado em relação aos desastres. Em primeiro lugar, há um
esforço em circunscrever temporalmente o fenômeno ao dia específico do evento amea-
çante, como, por exemplo, as fortes chuvas, sem levar em consideração as razões sociais e
políticas que conduziram ao desastre. Em segundo lugar, o esforço discursivo de comprovar
a volta à normalidade acaba desmobilizando a opinião pública sobre as causas estruturais
dos desastres e oculta, de um lado, a realidade daqueles diretamente atingidos pelo evento
e, de outro lado, a precária resposta dos poderes públicos ao problema. Para aqueles que
perderam suas casas, por exemplo, o “desastre” continua por meses e/ou anos, apesar da tão
anunciada “volta à normalidade”. Analisando uma série de reportagens sobre as chuvas de
1966/67, 1988 e 2010, constatamos que, apenas alguns dias após as chuvas, as reportagens
sobre as enxurradas começaram a se tornar mais escassas. Isso não quer dizer que tudo
tenha voltado à normalidade, muito pelo contrário, já que nos três episódios citados, os afe-
tados ficaram meses e mesmo anos em abrigos provisórios.
Por fim, o uso do termo desastre natural, como defende Valencio (2012, p. 41), tende a
ressaltar que os fatores de ameaça naturais seriam incontroláveis, escamoteando o fato que
parte dos impactos urbanos de tais ameaças se explica pelas enormes desigualdades socio-
ambientais de nossas cidades. Os desastres, conforme analisa Quarantelli (1998), articulam
fenômenos físicos e a organização política de determinada sociedade, refletindo, por exem-
plo, a ausência de medidas preventivas e as dificuldades da gestão de suas consequências.
Assim, conforme analisa Quarantelli (2005) em um trabalho posterior, duas questões mere-
cem ser sublinhadas na análise dos desastres: de um lado, trata-se de um fenômeno intrin-
secamente social e, de outro, as fontes dos desastres estão enraizadas nas estruturas sociais.
É preciso, assim, dissociar o conceito de desastre do azar, da fatalidade, ou seja, daquilo que
não se pode prever. Ao contrário de se enfatizar a perspectiva física e natural, o desastre
deve ser encarado como um problema social (Quarantelli, 2005).
A história recente das chuvas no Rio de Janeiro demonstra a evolução das representa-
ções sociais associadas a certas zonas da cidade, como as favelas, assim como das técnicas
que foram sendo desenvolvidas para garantir a ocupação dessas áreas. Segundo Pádua
(2010, p. 91), o grande desafio teórico da história ambiental é pensar o ser humano na to-
talidade tensa e complexa de suas dimensões biológicas e socioculturais. Pádua (2010, p.
94) afirma, ainda, que as pesquisas de campo e as transformações sociais contemporâneas
convergem no sentido da busca de teorizações mais abertas, que articulem tais dimen-
sões, já que se percebe, cada vez mais, a presença da história humana na constituição de

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paisagens “naturais”. O Rio de Janeiro é um caso exemplar. Basta observar suas praias e flo-
restas para compreender que muitas dessas paisagens são objetos diretos da intervenção
humana. A aprovação do Comitê do Patrimônio Mundial da Unesco, em julho de 2012, para
o ingresso do Rio de Janeiro na lista de patrimônio mundial reforça esse entendimento.
A cidade entrou na categoria de paisagem cultural pelo seu cenário urbano excepcional,
constituído por elementos naturais que moldam e inspiram o seu desenvolvimento (Gon-
çalves, 2013a, p. 196).
Se as fortes chuvas são um elemento central na ecologia da cidade, os discursos e as
políticas em respostas às suas consequências no espaço urbano, sobretudo em relação às
favelas, sofrem alterações no decorrer dos anos, revelando, como veremos, uma cada vez
mais acentuada ambientalização das questões urbanas. Um dos elementos centrais desse
processo de justificação ecológica (Thevenot; Lafaye, 1993, p. 500) se manifesta pelo esforço
de afirmar que a solução de determinado conflito ambiental deve ultrapassar os interesses
particulares, associando a ação e os diferentes interesses ao bem comum. Ademais, a co-
munidade de referência requisitada para a avaliação do bem comum se estende, segundo
os autores (1993, p. 516), também aos não humanos: as espécies vegetais, as paisagens, as
unidades de conservação e, mais amplamente, a própria noção abstrata de natureza são evo-
cadas e atuam como atores dos conflitos. De certa forma, como veremos, as fortes chuvas se
manifestam igualmente como um elemento não humano, exercendo um papel importante
nos direcionamentos das políticas urbanas no Rio de Janeiro.
Finalmente, como sustenta Donald Woster (1991) sobre a história ambiental, é preciso
rejeitar a premissa convencional de que a experiência humana se desenvolve sem restri-
ções naturais. Quando lidamos, por exemplo, com os ciclos hidrológicos, estamos diante
de energias relativamente autônomas que não derivam necessariamente de nós, mas que
interferem diretamente na vida humana. Como veremos para o caso do Rio de Janeiro, as
possíveis variações desses ciclos podem resultar em desastres, de acordo com as formas de
constituição do urbano e de prevenção aí implantadas.

chuvas de 1966/67: por uma solução final ao problema das favelas

Antes de descrevermos as chuvas de 1966/67 e suas consequências, faz-se mister apre-


sentar brevemente o contexto político do então estado da Guanabara nos anos que pre-
cederam as enxurradas. Como analisamos em um trabalho anterior (Gonçalves, 2013b), a
política urbana da administração Carlos Lacerda foi bastante contraditória e modificou-se
de forma apreciável a partir de 1962. Inicialmente, ainda em 1960, essa administração, sob a
influência de José Arthur Rios, inaugurou a primeira iniciativa pública visando à urbanização
em grande escala das favelas, através do estímulo aos mutirões. Diante da pressão do mer-
cado imobiliário, o projeto de urbanização das favelas foi esquecido e José Arthur Rios foi
destituído do cargo de coordenador de Serviços Sociais, e substituído por Sandra Cavalcanti,
em 1962. Nesse novo contexto político, as verbas estadunidenses direcionadas para projetos
habitacionais na América Latina foram alocadas, no Rio de Janeiro, para projetos de constru-

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ção em grande escala de conjuntos habitacionais, o que permitiu que a administração Carlos
Lacerda iniciasse uma política de remoção em massa de favelados.
O balanço final do governo Lacerda nessa área foi a remoção de cerca de 42 mil pessoas,
a demolição de 8.078 barracos e a erradicação total ou parcial de 27 favelas, entre 1962 e
1965. Durante esse período, a Companhia de Habitação da Guanabara (Cohab-GB) construiu,
em subúrbios distantes, vários grandes conjuntos habitacionais para abrigar a população
removida.1 Essa primeira fase da política de remoção esbarrou imediatamente em acirradas
críticas, até mesmo por parte dos organismos financiadores.2
No contexto turbulento do golpe de 1964, o antigo prefeito do Distrito Federal, Negrão
de Lima, candidato da oposição a Lacerda, venceu as eleições com forte apoio popular,3 le-
gitimado principalmente por seu discurso contra a política de erradicação das favelas. Como
sublinha Motta (2000, p. 95), a esmagadora vitória de Negrão de Lima sobre o candidato de
Lacerda, Flexa Ribeiro, sobretudo da “praça da Bandeira pra lá”, indica quem foi mais benefi-
ciado pelo governo anterior.
Nesse contexto político turbulento, vieram as chuvas de 1966. Segundo Lise Sedrez
(2008), elas atingiram fortemente a cidade nos dias 10 e 11 de janeiro, provocando o total
colapso do sistema de transporte e do fornecimento de energia elétrica. A opinião pública
voltou suas críticas inicialmente ao ex-governador Carlos Lacerda. O jornal Correio da Manhã,
de 11 de janeiro, afirmou que “as chuvas que caíram na noite de ontem mostraram a ver-
dadeira face do novo Rio decantado na propaganda oficial como uma nova cidade à prova
de inundações.” O mesmo jornal, em 13 de janeiro, voltava às críticas: “As chuvas também
fizeram ruir toda uma concepção superficial de administração que se havia implantado na
Guanabara. Nunca a precariedade e a miséria das favelas se tornaram tão evidentes. Nunca a
ausência da infra-estrutura capacitada a suportar emergências se mostrou tão clara”.
Apesar das chuvas terem atingido toda a população, inclusive bairros da elite carioca,
os setores mais duramente atingidos, conforme nos descreve o Correio da Manhã, de 15
de janeiro, “foram os dos moradores de favelas e vilas, isto é, os das classes menos favo-
recidas: trabalhadores, operários, domésticas, contínuos, soldados, biscateiros, etc.”. Logo
após as chuvas, o jornal Última Hora, de 20 de janeiro de 1966, afirmou que o governo da
Guanabara já tinha plano de urbanização da favela do Jacarezinho e de melhoramento do
Parque Proletário da Gávea (Maia; Sedrez, 2011, p. 243). No entanto, o mesmo jornal criti-
cava a posição do governo de auxiliar os mutirões para reconstrução de casas nos morros
e, segundo Maia e Sedrez (2011), várias manchetes de capa desse jornal afirmavam que o

1 Vila Kennedy (5.509 moradias), Vila Aliança (2.187 moradias), Vila Esperança (464 moradias). A administração
Carlos Lacerda iniciou também a construção do conjunto da Cidade de Deus (6.658 moradias).
2 Tanto o programa estadunidense Aliança para o Progresso quanto a Agência dos Estados Unidos para o Desen-
volvimento Internacional (USAID) declararam, ainda no final da década de 1960, que seria mais interessante
investir na urbanização do que na remoção de favelas (Gonçalves, 2013b).
3 A diferença de votos entre o candidato de Carlos Lacerda, Flexa Ribeiro, e o candidato Negrão de Lima foi maior
justamente nas regiões onde existia o maior número de favelados ou de ex-favelados.

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“governo fará ressurgir as favelas”. O escritor e líder católico Gustavo Corção manifestou-se
assim sobre o problema:

Se necessário deve ser empregado a força para que o trabalho de caráter social tenha
efeitos positivos. O importante é não se refazer a tolice de urbanizar. A tragédia que se
abalou nos últimos dias sobre a cidade veio comprovar que remover os favelados é a
melhor solução (Diário de Notícias, de 16 de janeiro de 1966).

A discussão em torno da urbanização ou erradicação entrou novamente no debate po-


lítico, conforme demonstra o longo trecho a seguir, de um relato de um favelado, publicado
no Diário de Notícias de 16 de janeiro de 1966, criticando a política de remoção do governo
da Guanabara:

Neste instante, meu problema seria resolvido com algum material, com o qual subiria
meu barraco dois metros, tornando-o livre da água. O problema dos favelados, em geral,
porém somente será resolvido com a urbanização das favelas [...]. Tomemos, por exem-
plo, minha pessoa. Trabalho na Zona Sul e pouco serviço tenho no subúrbio. Perto de
onde moro, no morro do Pinto, existem quatro escolas, dois hospitais e muita condução.
Ontem à noite, minha filhinha passou mal e corremos, assustados, minha mulher e eu, à
procura de um médico, que foi encontrado logo. Se fosse na Zona Norte, em Bangu ou
Vila Kennedy, ficaríamos loucos de aflição. Moro na praia do Pinto há 32 anos e já conhe-
ço toda a redondeza. Fui aumentado, agora, no serviço para Cz$ 76 mil e o dinheiro não
dá. Minha filha menor, que ainda não tem um ano, gasta, por semana, uma lata e meia
de leite em pó, a razão de Cz$950 cada. Faço Cz$17 mil por semana e, no domingo, já
não há dinheiro para nada, tudo gasto em comida. Às vezes, venho andando para casa
para economizar um pouco e comprar alguma roupa para a família. Se formos morar na
Zona Norte, morreremos de fome, mas se urbanizarem as favelas teremos uma vida mais
digna e humana, sem muito sacrifício.

A posição do governo Negrão de Lima era ambígua em relação às favelas, conforme


demonstra, por um lado, a manchete do Diário de Notícias de 15 de janeiro de 1966: “Negrão
insiste na velha tese: remoção não é solução, favela só com urbanização”. No entanto, no
dia seguinte, o secretário de Economia da administração Negrão de Lima, Armando Masca-
renhas, declara ao mesmo jornal que “a ideia de remover as favelas do sr. Carlos Lacerda é
muito boa, e o governo Negrão de Lima vai adotá-la”.
É bem verdade que Negrão de Lima não retomou imediatamente as remoções. Uma de
suas decisões políticas mais importantes, atribuída diretamente às chuvas, foi a criação pelo
decreto n. 609, de 12 de maio de 1966, do Instituto de Geotécnica do Município do Rio de
Janeiro (hoje Fundação Instituto Geotécnica (Geo-Rio)). O Instituto nasceu a partir de uma
forte demanda popular diante dos impactos das chuvas e passou a exercer um papel central
nas obras de contenção de encostas. O pioneirismo mundial deste órgão, aliado ao conheci-

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mento e ao empreendedorismo de seu quadro técnico, levou, em pouco tempo, ao seu reco-
nhecimento como órgão geotécnico de excelência mundial. Nas chuvas de fevereiro de 1967,
já tinha executado, em poucos meses de existência, 39 obras de contenção. No final desse ano,
o Instituto de Geotécnica já havia concluído mais de cinquenta obras de contenção.4
Como se não bastassem os impactos das chuvas de janeiro de 1966, conforme des-
creve Lise Sedrez (2008), novas chuvas, igualmente excepcionais em dimensões, causa-
ram em fevereiro de 1967 mais de cem mortes no Rio de Janeiro. Quando as chuvas se
repetem em 1967, vários jornais, como o Jornal do Brasil, usam as enchentes incessan-
temente para acusar o governador Negrão de Lima de incompetência (Sedrez, 2008). O
Correio da Manhã, de 21 de fevereiro de 1967, descreve o cenário desolador da cidade,
após as chuvas:

As chuvas voltaram a espalhar morte e destruição pela cidade, que teve todos os seus
bairros atingidos por um temporal que durou sábado e domingo e repetiu, quase com a
mesma intensidade, a tragédia de janeiro do ano passado. Novamente o Maracanazinho
abriu seus portões para acolher uma multidão de flagelados: agora, são cinco mil pesso-
as, que perderam suas casas e todos os seus bens e muitos parentes e amigos.

A mesma reportagem afirmou que até o comércio se movimentava para o protesto e que
“uma comissão das classes produtores está disposta a exigir do governo a retirada das fave-
las, com providências prioritárias para as que estão situadas nos morros. Por que a chuva não
tem previsão”. A pressão midiática surtiu efeito, já que o Correio da Manhã do dia seguinte
(22 de fevereiro) relatou que o governador Negrão de Lima

assinou decreto proibindo o licenciamento de obras nas encostas dos morros do Rio, sejam
obras de edificação, terraplanagem, abertura de logradouros ou loteamentos. O decreto
estabelece ainda que as licenças de obras naqueles locais só serão revalidadas mediante
audiência prévia do Instituto de Geotécnica do Estado, que fica autorizado a embargá-las,
em qualquer oportunidade, uma vez constatado o descumprimento de exigência técnica
ou de fato que possa afetar a estabilidade dos edifícios ou a segurança pública.

O decreto estadual n. 1.454, de 21 de fevereiro de 1967, em seus considerandos afirma-


va “ser da competência do poder público a imediata repressão das influências danosas re-

4 Ver <http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/141481/DLFE-3404.doc/HistoriadaGeoRio.doc>. Acesso em: nov.


2014. Em entrevista realizada em março de 2014, o coronel Silva da reserva do Corpo de Bombeiros do Estado
do Rio de Janeiro, ainda um bombeiro de início de carreira nas chuvas de 1966, nos descreveu o impacto das
chuvas na administração do Distrito Federal: “Foi muito importante. Tudo que vemos de contenção por aí foi
aquele ‘boom’, porque foi muito sério, foi caracterizado como desastre pela ONU. Houve injeção do governo
federal aqui de forma geral. Vocês não têm noção do que vimos, todos os morros da Guanabara ficaram sem ve-
getação. Caiu tudo, hoje você vê que a contenção é geral”. Ainda segundo o coronel Silva, o governador Negrão
de Lima criou, em 1967, a Coordenadoria de Estado de Defesa Civil (Cedec).

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sultantes de eventos dessa natureza, cumprindo-lhe promover o fortalecimento do sistema
preventivo implantado com o objetivo de atenuar as consequências de tais eventos”.5 No
entanto, o próprio Correio da Manhã questionou, na edição do dia 23 de fevereiro, o perigo
desse decreto promover uma remoção em massa. Segundo a reportagem, as habitações em
favelas não poderiam ser “destruídas sob pena, inclusive, de se intensificar brutalmente o
problema social da moradia, numa cidade onde sequer um quinto da população é formada
por proprietários de imóveis”. A mesma reportagem defendeu a realização de uma série de
obras nas favelas, que conduziriam, na prática, à sua urbanização:

Urge, pois, para prevenir novas catástrofes as obras públicas de tratamento dos mor-
ros e outras elevações, ou seja, emparedamento, remoções de pedras, reflorestamento,
traçado de curso artificiais das águas das chuvas, eliminação de fendas, sustentação de
barreiras, enfim, muita coisa a ser feita e em ritmo acelerado.

Ao contrário de nosso entendimento inicial, quando começamos esta pesquisa – que


as chuvas conduziriam a formação de um discurso consensual pelas remoções –, constata-
mos que muitas personalidades utilizaram justamente as chuvas para criticar as remoções
e advogar pela urbanização. Ainda no contexto das chuvas de 1966, por exemplo, o reno-
mado arquiteto Sergio Bernardes afirmou que tinha “um plano de urbanização das favelas
cariocas”, mas que seria impossível realizá-lo, “enquanto o governo estadual não levar água,
luz, esgotos às favelas”. Disse, ainda, que é necessário que se aproveite “psicologicamente
este momento, provocado pelo desabamento de barracos nos morros, devidos ao temporal,
para agir, urbanizando as favelas, no próprio local onde se encontram, para evitar novas ca-
tástrofes no futuro". Afirmou, por fim, não ser aconselhável remover moradores para locais
distantes por causa da necessidade de se acessar o mercado de trabalho. Os desabamentos,
segundo o arquiteto, acabariam com a urbanização das favelas, pois as curvas de nível que
ali seriam implantadas os evitariam. Ainda segundo o arquiteto, os moradores vão acabar
voltando para os mesmos locais em que moravam antes, “esperando por novas chuvas para
desabar, até que o governo se lembre dum dia de urbanizar as favelas, com água, luz, esgoto,
ruas e casas de concreto”.6
Da mesma forma, o relatório – organizado pela Sursan, com ajuda do Itamarati e de uma
equipe de técnicos encarregados pela Unesco, “para estudar, opinar e apresentar soluções
sobre a situação das encostas cariocas ante o estado em que ficaram depois das grandes
chuvas que assolaram a cidade em 1966” (Sursan, 1966) – também se voltou para a solução
da urbanização. Apoiando-se provavelmente na experiência iniciada por José Arthur Rios
enquanto secretário de Serviços Sociais da Guanabara, o relatório afirmou que

5 Correio da Manhã, de 21 de fevereiro de 1967.


6 Para a manifestação do arquiteto Sergio Bernardes, ver Correio da Manhã, de 16 de janeiro de 1966.

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a recuperação dos aglomerados do tipo favela é extremamente facilitada, sempre que
for possível promover a sua urbanização local. Os germes da solidariedade vicinal de-
verão ser aproveitados pelo emprego das modernas técnicas de desenvolvimento de
comunidades, de resultados surpreendentes. Entre essas técnicas avulta, no caso, a au-
toconstrução, realizada através de programas de ajuda própria e ajuda mútua dirigidas
(Sursan, 1966, p. 19).

O relatório defende, assim, a urbanização das favelas, resguardando aquelas áreas, onde
o risco geológico não pudesse ser evitado:

Se argumentos geológicos válidos condenarem globalmente as favelas de morro, não


haverá como deixar de incluí-las, todas, entre aquelas que devem ser removidas. Acre-
ditamos, no entanto, que assim como acontece em relação às muitas construções de
pedra e cal que a classe média plantou nos morros cariocas, muitos casos aparecerão
– quando completados os nossos estudos geotécnicos – em que, satisfeitas certas exi-
gências, estarão asseguradas tranquilizadoras condições de estabilidade (Sursan, 1966,
p. 20).

A remoção, como vimos, foi uma das razões do fracasso eleitoral de Carlos Lacerda nas
eleições de outubro de 1965. Apesar das chuvas, Negrão de Lima chegou a propor a criação,
em março de 1968, da Companhia de Desenvolvimento de Comunidades (Codesco), cujo
objetivo era promover a integração de favelas e aglomerações consideradas subnormais ao
bairro do entorno. Apesar do impacto simbólico, a atuação da Codesco foi limitada e, das
três favelas inicialmente escolhidas para serem urbanizadas (Brás de Pina, Mata Machado
e Morro União), o projeto só avançou realmente na primeira delas. No entanto, em maio de
1968, ou seja, alguns meses apenas após a criação da Codesco, Brasília criou a Coordenação
de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio (Chisam), para relan-
çar o projeto de erradicação das favelas no Rio de Janeiro.
O estado da Guanabara, apesar do discurso contrário às remoções, acabou apoiando os
esforços do governo federal,7 através da Secretaria dos Serviços Sociais, encarregada de ela-
borar os estudos socioeconômicos prévios às operações de remoção, e da Cohab-GB, encar-
regada não apenas de construir os conjuntos habitacionais, mas também de comercializar os
novos apartamentos aos favelados (Valladares, 1978, p. 78). As chuvas já não eram mais evo-
cadas sistematicamente para justificar as remoções em 1968. Um dos critérios que deveria
ser atendido pelo programa de desfavelização da Chisam era o caso das famílias envolvidas
habitando locais instáveis que pudessem oferecer riscos de segurança e de vida aos seus

7 Durante as enchentes (1966-1967), foram removidas 6.685 pessoas. No restante do mandato de Negrão de Lima
(maio/1968-março/1970), já com a intervenção da Chisam, foram removidos 63.910 pessoas (Valladares, 1978,
p. 39).

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ocupantes (Chisam, 1969). Tais locais foram, em sua maioria, na Zona Sul, onde os terrenos
ocupados pelas favelas removidas eram posteriormente leiloados para a incorporação imo-
biliária. De acordo com a Cohab-GB (1969, p. 6): “Como resultado paralelo [das remoções],
ter-se-á modificada a fisionomia da Zona Sul do Estado, onde a favela deverá, então, consti-
tuir exceção residual”. Se as chuvas saem temporariamente de cena, os desastres viriam com
os incêndios, de autoria por certo duvidosa, que se tornariam práticas correntes nas favelas
para acelerar as remoções.

chuvas de 1988: é preciso avançar na urbanização das favelas

Entre essas duas enxurradas, várias chuvas de verão caíram na cidade, assim como muitas
mudanças aconteceram nas políticas voltadas para as favelas. O projeto de erradicação de fa-
velas foi paulatinamente substituído, com o processo de democratização, por iniciativas volta-
das para a sua urbanização e consolidação. A cidade do Rio de Janeiro virou um grande labo-
ratório de iniciativas de urbanização de favelas, que envolveram diferentes entes federativos.
O contexto político local, nos anos que precederam as chuvas de 1988, foi também tur-
bulento. Saturnino Braga, após ter rompido com o PMDB, fora eleito prefeito nas eleições
de 1985 pelo PDT, o que significou uma breve aproximação entre o PDT e grupos petistas,
próximos ao seu vice, o ex-presidente da Federação das Associações de Moradores do Es-
tado do Rio de Janeiro (Famerj), Jó Resende, que entraram em dissidência com o PT (Freire,
2012, p. 272). No entanto, Saturnino rompe com o PDT dois anos depois. Grande parte do
movimento favelado, representado sobretudo pela Federação das Associações de Favelas do
Estado do Rio de Janeiro (Faferj), se isola, rompendo tanto com o governo municipal quanto
com o estadual, após a vitória de Moreira Franco no final de 1986 (Brum, 2006, p. 136). Apesar
do distanciamento da Faferj, a administração municipal, através da Secretaria Municipal de
Desenvolvimento Social (SMDS) e seu secretário, Sergio Andrea, próximo do PT e da Famerj,
procurara exercer, como veremos, uma forte presença nas favelas (Brum, 2006, p. 121).
A SMDS fora criada a partir da Secretaria de Turismo, através da lei municipal n. 110, de
23 de agosto de 1979, que criou também o Fundo-Rio. Esse fundo, vinculado à SMDS, deveria
captar recursos financeiros destinados a promover o desenvolvimento da cidade do Rio de
Janeiro. A SMDS, nas diferentes administrações municipais que se sucederam, se posicionou
contrária às remoções, iniciando projetos de melhoria da infraestrutura urbana e programas
sociais nas favelas. A missão da SMDS seria a de coordenar os esforços dos diferentes orga-
nismos públicos no sentido de levar a cabo os projetos de urbanização das favelas.
No contexto dos esforços pela urbanização das favelas, foi criado, no bojo da SMDS, em
1982, o projeto Mutirão. A SMDS se encarregava de elaborar os projetos de urbanização e
de executá-los com a mão de obra fornecida pelos próprios moradores. Apesar da preca-
riedade de recursos e da dificuldade de se manter a mobilização social dos moradores em
torno dos mutirões, o projeto evoluiu ao ponto de, a partir de 1985, a mão de obra começar
a ser remunerada pelo Projeto de Urbanização Comunitária/Mutirão Remunerado. O projeto
atingiu um conjunto importante de favelas da cidade, 26% do total (Fontes; Coelho, 1989,

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p. 54), melhorando as condições de vida (instalação de esgotos e água encanada, melhoria
nos acessos, obras de contenção de encostas) e instalando equipamentos coletivos, como
quadras poliesportivas, postos de saúde e, sobretudo, creches (Prefeitura do Rio de Janeiro,
2003, p. 53).
No entanto, o trabalho da SMDS também foi alvo de críticas. A despeito da importância
da SMDS, esta se transformou em uma espécie de prefeitura das favelas, o que, de certa for-
ma, acabava reproduzindo institucionalmente a exclusão que se queria justamente eliminar
(Fontes; Coelho, 1989, p. 60). Oliveira (1993, p. 99) nos descreve que um dos frutos dessa
política, além das obras realizadas, foi a cooptação de diversas lideranças, que se viram pro-
gressivamente numa situação de dependência, não mais de um ou outro político, mas dos
órgãos públicos responsáveis pelas obras.
Ocorreram, ainda, problemas na fiscalização das obras e foram questionados os crité-
rios, por vezes eleitoreiros, na escolha das favelas, privilegiando os locais de maior visibi-
lidade e as favelas mais conhecidas da opinião pública, como aquelas da Zona Sul. Sergio
Andrea (1988, p. 5), secretário de Desenvolvimento Social em 1987 e 1988, concordava com a
constatação sobre os rumos que tinha tomado a SMDS, afirmando que a secretaria “havia se
transformado em uma minisecretaria de obras com o reflexo do fisiologismo que envolve as
políticas públicas, sempre cercadas muito mais de propaganda e publicidade do que, na prá-
tica, de um projeto para a efetiva melhoria das condições de vida da população pobre”. Por
sua vez, Ricardo Bielschowsky (1988, p. 11), ex-diretor geral do Fundo-Rio, também criticou o
funcionamento da SMDS, afirmando que se tratava de uma espécie de “balcão de demandas
da fração mais organizada das comunidades carentes”.
O objetivo da SMDS, durante o mandato de Saturnino Braga, era investir 3% dos recursos
de um ano do município em urbanização de favelas (Andrea, 1988, p. 6). Houve, por certo,
um incremento do mutirão, com intervenções variadas: contenção de encostas, obras de
drenagem, esgoto, reflorestamento, abertura de vias de acesso internas (para facilitar inclu-
sive a coleta de lixo) e ambulatório. A maior intervenção da SMDS no período foi, sem dúvi-
da, a expansão da rede de creches nas favelas. Se no início do governo Saturnino Braga eram
trinta creches, no final já eram mais de trezentos, com 28 mil alunos matriculados (Andrea,
1988, p. 7).
Cesar Benjamin (1988, p. 37), ex-chefe de Gabinete da SMDS, também criticou o fato
da SMDS ser considerada como uma “prefeitura dos pobres”. No entanto, ele reconheceu
que a SMDS foi uma vitória parcial das favelas, pois “representou uma adaptação parcial da
máquina administrativa, por muito tempo desaparelhada para atuar em áreas – densamente
povoadas – onde não têm vigência códigos e rotinas aplicados na cidade formal”. Por fim,
Benjamin (1988, p. 37) descreveu que uma das medidas da prefeitura antes das chuvas foi
promulgar o decreto n. 6.436, de 12 de janeiro de 1987, criando a comissão especial de con-
trole de áreas de risco. Segundo o autor, já tinham sido constatadas 145 situações limite na
cidade, na época. Essas áreas já estavam sendo estudadas antes das chuvas de 1988.
Os esforços em mapear as áreas de risco não foram suficientes para evitar os impactos
das chuvas de 20 de fevereiro de 1988. As descrições da cidade nos jornais nos dias seguintes

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à enxurrada eram de um cenário de guerra,8 conforme demonstra a reportagem do Jornal
do Brasil, de 21 de fevereiro de 1988: “o Rio de Janeiro conheceu o seu definitivo Waterloo
diante da conjugação de forças da natureza e da irresponsabilidade de sucessivos governos”.
A dura crítica prosseguia com questionamentos à passividade da administração Saturnino
Braga, afirmando que a

cidade foi mais uma vez humilhada, espezinhada ao ver-se impotente ante uma situ-
ação de emergência que, no entanto, era perfeitamente previsível: um grande centro
urbano imprensado entre o mar e a montanha tem que estar equipado para as chuvas
fortes, que descem para os vales com o impulso adquirido nas encostas.

O “pensamento conservador”, segundo Cesar Benjamin (1988, p. 42), tinha aproveitado


as chuvas para difundir a ideia de que a favela e risco são uma só coisa, “apontando nova-
mente a política de remoção como o único caminho racional e não demagógico, inclusive
para preservar a própria população favelada”. A mesma reportagem do Jornal do Brasil evo-
cou as enchentes de 1966/67, afirmando que, após as chuvas, os poderes públicos escora-
ram alguns morros, mas depois deixaram “a vida correr, no ritmo preguiçoso do dia a dia,
enquanto os morros sempre suportavam uma carga sempre maior de construções ilegais, e
a cobertura vegetal diminuía sempre na mesma proporção”.
No clamor do desastre, a justificativa pelo retorno das remoções se baseava, em grande
parte, em dois elementos discursivos. O primeiro se voltava para os aspectos ecológicos da
questão, inaugurando o grande protagonismo concedido ao discurso ambiental para jus-
tificar políticas públicas nas favelas cariocas. O Jornal do Brasil, de 6 de fevereiro de 1988,
afirmou que a “favela em expansão é sinônimo de destruição do meio ambiente, de pre-
paração de catástrofes, pois os morros simplesmente não suportam esse tipo de ocupação
predatório”.
Essa mesma posição foi reforçada em um longo texto publicado no Jornal do Brasil, de
23 de fevereiro, da então deputada federal pelo PFL, Sandra Cavalcanti, intitulado “As favelas
e a luta ecológica". Segundo a deputada, o “problema não é político, nem ideológico, nem
sociológico. O problema é ecológico”. O texto continua, trazendo a “natureza”, como novo
sujeito central no debate público da cidade: “natureza tem suas leis, suas regras, suas razões,
seus mistérios, e suas vinganças. As provas aí estão, marcando de tragédias a vida de tantas
pessoas”. Por fim, ela sublinha que infelizmente a “luta pela ecologia desprezou, de início,
alguns alvos urgentes e essenciais. É o caso das favelas”.
Além do discurso ambiental, o debate em prol da remoção retomou a velha temática
da marginalidade das favelas e seus moradores. A teoria da marginalidade marcou os espa-

8 Uma das explicações populares à chuva incomum foi a alteração do feriado do patrono da cidade para segunda-
feira. O Jornal do Brasil, de 23 de fevereiro de 1988, trouxe a fala de Renato Rodrigues, um dos voluntários no
apoio as vítimas: “O que a gente pede é que as autoridades respeitem as crenças da gente simples e não mude
mais o feriado de um santo católico”.

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ços informais como patológicos. Autores, como Robert Redfield ou Oscar Lewis, utilizavam
noções de “folk” e urbano para identificar que os valores rurais dos migrantes eram incom-
patíveis com a vida urbana na América Latina. A marginalidade significava esse processo de
rompimento entre as estruturas rurais do migrante e a nova vida urbana, fazendo com que
houvesse uma estagnação desses grupos (Fischer, 2014, p. 42). Segundo essa teoria, as fave-
las eram um dos sinais propriamente espaciais desse rompimento e deveriam desaparecer
para permitir a integração plena dos migrantes ao modo de vida urbana.
No mesmo texto citado de Sandra Cavalcanti (Jornal do Brasil, de 23 de fevereiro de
1988), a deputada afirmou que não se pode urbanizar favelas. Ao contrário, é preciso urba-
nizar os favelados:

Ele é que deixa de ser um habitante à margem das leis e se incorpora ao quadro huma-
no. Fora disso, é demagogia. Demagogia criminosa, quando, a título de urbanização, a
autoridade delinquente fixa o morador naquelas condições. Permite que ele more sem
habite-se. Permite-se que ele não pague impostos. Permite que ele fique sem serviço
de limpeza de ruas, varrição. Permite que ele se instale sem rede de esgotos, ou mesmo,
de fossas sépticas. Permite que ele não tenha galerias pluviais, nem ruas pavimentadas.
Permite que ele não tenha lixo coletado. Permite que ele não tenha água encanada.
Permite... Permite... Permite...

Sandra Cavalcanti prossegue em suas críticas aos projetos de urbanização, afirmando


que “nessas horas, as encostas geologicamente condenadas serão reflorestadas e os pobres
terão o direito de ser urbanizados. Eles serão urbanizados. Eles subirão de 'status'. Eles terão
direitos e deveres”. Alguns dias antes, o Jornal do Brasil, de 21 de fevereiro, trouxe uma des-
crição extremamente negativa das favelas e afirmou que elas eram uma espécie de doença
urbana, retomando discursos de cunho higienistas, muito comuns no início do século XX:

A favela não tem lei, não tem escola, não paga impostos, não tem coleta de lixo, cres-
ce de tal maneira sobre a cidade “legal”, devastando as encostas, que já ultrapassou
em muito o pitoresco, o ocasional, para transformar-se em fenômeno de massa que
faz do Rio de Janeiro literalmente uma cidade de pernas para o ar. [...]. Onde estão
os projetos de remanejamento, de criação de novas zonas urbanizadas? Onde está
o mínimo de fiscalização que impeça a contínua expansão desse câncer que vai es-
trangulando o Rio?

Assim como aconteceu em 1966/67, poderosos grupos econômicos voltaram seus esfor-
ços para a retomada das remoções. A Associação Comercial sugeriu o adiantamento do IPTU
e a criação de um banco de materiais de construção para viabilizar recursos e estruturas para
a prefeitura providenciar a remoção de moradores em favelas de alto risco para locais segu-
ros (Jornal do Brasil, de 23 de fevereiro de 1988). Francisco das Chagas Machado, em artigo
escrito no Boletim da Associação Brasileira de Administradoras de Imóveis (Abadi), afirmou que

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para se evitarem novas “hecatombes, só há um remédio eficaz, a erradicação das favelas dos
morros e das encostas”. Segundo o autor:

Não existem as mínimas condições de habitabilidade e segurança para a construção


desordenada de barracos ou mesmo de pequenas casas de alvenaria nesses locais. A
permissividade, a tolerância ou mesmo o incentivo de certos políticos que advogam a
urbanização de favelas, constituem crime contra essa enorme massa de trabalhadores.9

As chuvas e seus impactos trouxeram um questionamento às profundas mudanças es-


truturais que ocorriam às favelas durante a década de 1980. Além do questionamento das
intervenções públicas voltadas para urbanizá-las, a proliferação de construções em alvena-
ria foi evocada como um elemento que reforçaria o risco nas favelas. Assim como o trecho
citado do Boletim Abadi, o artigo de Sandra Cavalcanti mencionado anteriormente também
fazia alusão a essa questão: “Fecha os olhos [o poder público] para casas precárias, alvenaria,
com lajes e sobrados, que vão subindo dia a dia, acabando com a cobertura vegetal” (Jornal
do Brasil, 23 de fevereiro de 1988).10 Esse novo cenário foi objeto de fortes críticas de outra
reportagem do Jornal do Brasil, do dia 24 de fevereiro, sobre as chuvas:

O cenário vinha sendo montado há anos e anos, desde que se interrompeu a ideia e a
prática da remoção de favelados em nome de uma alegada urbanização que não pas-
sava de embuste. Como é possível urbanizar, isto é, tornar cidade, um amontoado que
desafia ao mesmo tempo a geologia e a gravidade? Não se pode considerar moradia um
precário amontoado de tábuas ou mesmo de alvenaria, numa inclinação de terrenos
instável e sujeito a deslizamentos. A própria construção de favelas solapa as suas bases:
a água da chuva que penetra na terra acelera os riscos. A falta de esgotos inviabiliza a
vida, em condições sanitárias normais. Tudo é risco numa favela.

Por fim, a mesma reportagem (Jornal do Brasil, 24 de fevereiro) associa que o risco
da consolidação das favelas não se volta somente aos moradores, mas à própria demo-
cracia:

Quanto ao Rio, como governo e sociedade, além da relocação dos desalojados como
primeiro passo em nível habitacional, terá que se responsabilizar pela definição de uma
política que tenha a coragem de declarar as favelas incompatíveis com a cidade e a

9 Ver Francisco das Chagas Machado, Boletim ABADI, n. 72, ano 8, março de 1988 (anexo ao Jornal do Brasil, de 4
de março de 1988).
10 Em manifestação ao Jornal do Brasil, de 23 de fevereiro de 1988, o então pe. Olinto Pegoraro, muito atuante no
morro do Borel, culpou as autoridades por não fiscalizarem as construções em áreas de risco e admitiu que seria
dali em diante mais cuidadoso quando providenciasse material de construção para os moradores, verificando
se as casas seriam construídas em áreas de risco.

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democracia. E partir, portanto, para uma irreversível política de remoção, sem medo de
palavras e de preconceitos ideológicos que geraram toda essa tragédia.

Se o discurso pela remoção ganhou força em um contexto de elaboração da nova Cons-


tituição, em que as garantias jurídicas dos favelados ainda eram frágeis, a administração
municipal, representada, sobretudo, pela SMDS, manteve-se coerente com as medidas que
vinham sendo aplicadas às favelas. Sergio Andrea, ex-secretário da SMDS, relatou-nos que a
secretaria solicitou ajuda do Exército logo após as chuvas. A SMDS se esforçou em socorrer
os desabrigados, promovendo o cadastramento dos afetados e levantando os terrenos livres
disponíveis para reassentá-los. Andrea relatou, ainda, que nos locais onde aconteceram os
mutirões, os impactos das chuvas foram sensivelmente menores, ficando patente a necessi-
dade de se avançar na urbanização das favelas. Após as chuvas, foram reforçados também,
segundo Andrea, os projetos de gari comunitário e o reflorestamento comunitário.11 A po-
sição de César Benjamin vai ao encontro da opinião do ex-secretário, afirmando que, para
“além das leituras ideológicas, a calamidade mostrou que onde houvera implantação dos
serviços públicos (principalmente esgoto, drenagem, coleta de lixo e reflorestamento), as
favelas resistiram melhor às chuvas do que certas áreas consideradas plenamente integradas
à malha urbana”.
Luiz Alfredo Salomão, ex-secretário estadual de obras e meio ambiente e, no momento
das chuvas, deputado federal pelo PDT, reforçou essa posição em um artigo publicado no
Jornal do Brasil, de 17 de março de 1988, em que sublinha o falso dilema sobre a urbanização
de favelas. Segundo o ex-secretário, “algumas favelas podem ser urbanizadas. Outras sim-
plesmente não são viáveis do ponto de vista econômico e de engenharia”. Ele comentou que
o projeto de regularização fundiária do governo Brizola, Cada família um lote, deveria vir jun-
to com a urbanização, mas, segundo Salomão, o projeto foi boicotado pelo governo federal
e se resumiu a entrega de títulos de lotes de zonas já ocupadas. Sobre as chuvas e as críticas
às políticas de urbanização, Salomão defendeu a importância das intervenções nas favelas:

A retomada do programa de urbanização das áreas consolidadas das favelas existentes


contribuirá para amenizar o problema, minimizando o risco de repetição das catástrofes
de fevereiro passado. A desgraça do morro da Formiga e do Sumaré seria muito maior,
se essas favelas não tivessem alguma infraestrutura. Outras comunidades, igualmente
semiurbanizadas, foram castigadas por chuvas intensas e não enfrentaram maiores difi-
culdades, o que recomenda a continuidade do programa.

O Jornal do Brasil, de um mês antes (25 de fevereiro), já havia indicado essa questão com
a constatação de que as favelas que melhor resistiram, como as do Salgueiro e da Formiga,
foram exatamente as que tiveram um programa de reflorestamento com base em apoio co-

11 Entrevista de Sergio Andrea, outubro de 2014.

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munitário. As consequências políticas diretas das chuvas foram, de um lado, a ampliação do
programa de contenção de encostas e eliminação de riscos (Prefeitura do Rio de Janeiro,
2003, p. 57) e, de outro lado, o estímulo ao prosseguimento do projeto Reflorestamento
comunitário; uma das iniciativas mais longevas e exitosas da prefeitura do Rio de Janeiro.
Tal iniciativa nascera em 1986, na SMDS, com a função de recompor a cobertura vegetal e
aumentar a oferta de mão de obra. Serve, ainda, para estabelecer um limite à expansão das
favelas para áreas consideradas de risco.12 Além da delimitação da expansão da ocupação, o
projeto permite, assim, a contenção e estabilização das encostas e promove a recuperação
das nascentes e dos mananciais (Prefeitura do Rio de Janeiro, 2003, p. 54)
Apesar das críticas às políticas de urbanização das favelas, o fato das favelas em processo
de urbanização terem sofrido muito menos impactos com a enxurrada reforçou a certeza
da necessidade de se avançar com a política de urbanização, através de projetos que não
fossem tão pontuais e fragmentados. Apesar de propostas que não tiveram maiores êxitos
– como o Programa Municipal de Regularização de Favelas (Profavelas), instituído pela lei n.
1.421, de 18 de julho de 1989, já sob o mandato de Marcelo Alencar –, o entendimento de
que as favelas tinham que ser urbanizadas se consolidou, sobretudo após a promulgação
do Plano Diretor de 1992. Com a transferência das equipes do Mutirão para a nova Secretaria
Extraordinária de Habitação e com a experiência adquirida na SMDS, surge, finalmente, em
1994, o renomado projeto Favela Bairro.

e mais uma vez as chuvas fazem história

O presente artigo procurou iniciar uma discussão sobre os impactos das chuvas de 1966-
67 e 1988 em relação às políticas urbanas referentes às favelas. Não se pretende, aqui, anali-
sar detalhadamente as últimas grandes chuvas que caíram na cidade, em 2010, mas compa-
rá-las brevemente com as duas chuvas evocadas anteriormente neste artigo. Em relação às
primeiras chuvas mencionadas, apesar da perspectiva de mudanças políticas com a eleição
do governador Negrão de Lima, os desastres provocados pelas chuvas de 1966/67 contribu-
íram para críticas às mudanças que estavam sendo formuladas pelo novo governador. Por
outro lado, as chuvas permitiram também a constituição de novos órgãos técnicos, capazes
de responder e mitigar os riscos geotécnicos da cidade e de responder com mais eficácia aos
desastres.
As chuvas de 1988, por sua vez, suscitaram um questionamento da política de urbani-
zação das favelas, que se consolidara no Rio de Janeiro desde o final da década de 1970. A
maior segurança jurídica dos moradores, com o fim das remoções, como analisamos, trouxe

12 Ver <http://www.mma.gov.br/port/conama/processos/2C87C7CF/SeminAPPConamaMarcelo.pdf>. Segundo re-


portagem da revista Vejario, de 25 de novembro de 2013, o programa já tinha reflorestado mais de 2.200 hec-
tares em cerca de 140 pontos da cidade, tendo atuado em mais de 150 favelas, contando com um contingente
de oitocentos trabalhadores. Disponível em: <http://vejario.abril.com.br/materia/cidade/projeto-reflorestamento-
rj/>. Acesso em: nov. 2013.

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também uma mudança significativa na paisagem das favelas: casas construídas com mate-
riais precários deram paulatinamente lugar a casas e prédios em alvenaria, ou seja, a favela
se consolidava. Esse processo foi objeto de fortes críticas após as chuvas, mas também foi
amplamente evocado o fato de que as favelas parcialmente urbanizadas tinham sido consi-
deravelmente menos impactadas pelas chuvas.
As favelas tornaram-se, uma vez mais, o principal problema público (Gusfield, 1981) do
Rio de Janeiro após as chuvas da noite de 5 de abril de 2010, que atingiram fortemente a
metrópole carioca. A maré alta, a forte precipitação e o ineficaz sistema de escoamento das
águas pluviais pararam a cidade. Como nas chuvas anteriores, os morros da cidade foram os
mais castigados pela enxurrada. O balanço no dia seguinte à tempestade era desanimador:
quase trezentos mortos e centenas de desabrigados. A opinião pública voltou-se contra as
favelas e seus habitantes, fazendo destes os grandes responsáveis pela amplitude do drama.
E, mais uma vez, evocava-se as chuvas anteriores para justificar o retorno das remoções:

a tragédia de 2010 tem de ser o marco zero de uma política séria de remoções de mora-
dores de áreas de risco e de pequenas favelas, ainda em condições de ser erradicadas.
Não há mais por que manter o preconceito contra remoções, quando é possível fazê-las
sem os erros do passado [...]. A ficar como está, a próxima catástrofe será maior que
a atual, por sua vez mais extensa que as da década de 60, e assim sucessivamente. O
drama se agravará ao ritmo da favelização. É inexorável (O Globo, de 9 de abril de 2010).

O discurso pelas remoções se explica, antes de tudo, em razão da desqualificação de


toda e qualquer iniciativa voltada para a urbanização. O Globo, de 10 de abril de 2010, afir-
mou que as recentes chuvas desafiavam o princípio da urbanização das favelas, especial-
mente devido ao fato de que certos desabamentos ocorreram em áreas que já haviam sido
reabilitadas pela prefeitura, inclusive com obras de contenção de encostas. Todavia, o jornal
não mencionou que os investimentos municipais contra deslizamentos no Rio de Janeiro
vinham diminuindo há alguns anos, e que os últimos trabalhos em grande escala de urbani-
zação de favelas – o projeto Favela Bairro – ocorreram durante os anos 1990 e, desde então,
pouco foi feito na conservação e manutenção dessas intervenções.
É bem verdade que as chuvas de 2010 forçaram paulatinamente o retorno de investi-
mentos da prefeitura em contenção de encostas e permitiram a construção do moderno
Centro de Operações Rio, no final desse ano, para monitoramento do cotidiano da cidade. Da
mesma forma, as chuvas estimularam a instalação de sirenes de alerta nas favelas da cidade
para evacuar os moradores de áreas consideradas de risco, quando a precipitação das chuvas
for elevada. Infelizmente, o novo projeto de urbanização da prefeitura, Morar carioca, pouco
avançou e as intervenções se revestem novamente de um caráter fragmentado e pontual.
Assim, mais do que trazer consensos, as chuvas contribuíram para revelar conflitos. A
grande aporia carioca – urbanizar ou remover favelas – se manifestou com força em con-
textos de desastres. Cabe sublinhar a importância que a questão ambiental foi adquirindo
nesse debate: se o discurso ecológico ainda era pouco acionado nas chuvas de 1966/67, ele

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ganhou forte centralidade a partir das chuvas de 1988 e tornou-se, finalmente, elemento
incontornável nos dias atuais, conforme demostra, por exemplo, o trecho a seguir de repor-
tagem do jornal O Globo, de 19 de abril de 2010: “há comunidades inteiras vivendo sob risco,
à parte os agravos ao meio ambiente decorrentes da degradação de áreas preserváveis. [...].
O combate ao problema pressupõe ações de desfavelização de áreas já ocupadas. É política
a ser elaborada urgentemente, para prevenir a repetição do drama atual”.
Como observamos no decorrer do artigo, as chuvas estimularam uma reflexão técnica de
intervenção em áreas de favelas, com a constituição de organismos e projetos para essas áre-
as. No entanto, o que constatamos é que, no plano político, mais do que inaugurar novas me-
didas, as chuvas reforçaram dinâmicas que já estavam em marcha. O impacto de fenômenos
naturais deve ser compreendido no contexto social e político da realidade onde acontecem.
Em relação às chuvas de 1966/67, as remoções já estavam ocorrendo desde 1962, e, apesar
da pequena pausa na política de erradicação de favelas nos primeiros anos do governo Ne-
grão de Lima, setores da construção civil e do mercado imobiliário tinham forte interesse em
expandir e consolidar tais medidas. Se as remoções atingiram quase 140 mil pessoas entre
1962 e 1975, o período de maior remoção foi justamente durante o governo de Negrão de
Lima. Esse número só foi possível por causa da presença do governo federal, mas não se
pode negligenciar o papel ativo do governo do estado da Guanabara.
Em relação às chuvas de 1988, já estava bem consolidada a política de urbanização de
favelas. As chuvas trouxeram certamente um questionamento a tais medidas, mas não foram
suficientes para reverter o cenário político. Aliás, muito pelo contrário, como observamos, as
chuvas mostraram a necessidade de se avançar na urbanização das favelas, a fim de adequar
o ambiente construído das favelas à nova dimensão de seu tecido urbano, com construções
sólidas e cada vez mais altas.
As chuvas de 2010, por sua vez, vieram logo após o Rio de Janeiro ter sido escolhido
como sede de inúmeros eventos internacionais. Nesse contexto, é notório que a cidade
entrou em uma nova fase de remoção de favelas antes mesmos das primeiras gotas de
chuva. Um dos objetivos abertamente anunciados pelo plano estratégico do município
de 2009 visava reduzir o espaço ocupado por favelas em 3,5% até o ano de 2016, a partir
dos dados de 2008. Essa meta já tinha sido aumentada para 5% no plano estratégico de
2013. 13 As chuvas e o uso da noção do risco colaboraram para o esforço de se alcançar
tal objetivo. Logo após as chuvas de abril de 2010, a prefeitura anunciou a intenção de
remover integralmente quase duas centenas de favelas com dezenas de milhares de ha-
bitantes. Houve uma forte mobilização popular contrária a tais medidas, o que “limitou”
esse número, em dados de 2012, a 17.400 moradias, representando, de qualquer forma,

13 Ver Plano Estratégico da Prefeitura do Rio de Janeiro 2009-2012: Pós 2016/Rio mais integrado e competitivo.
Disponível em: <http://www.riocomovamos.org.br/arq/planejamento_estrategico.pdf>. Acesso em: dez. 2014; e
Plano Estratégico da Prefeitura do Rio de Janeiro 2013-2016: Pós 2016/Rio mais integrado e competitivo. Dis-
ponível em: <http://www.conselhodacidade.com/v3/pdf/planejamento_estrategico_13-16.pdf>. Acesso em: dez.
2014.

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segundo o jornal O Globo, de 20 de maio de 2012, uma diminuição de 2% do espaço ur-
bano ocupado por favelas. 14
Ao contrário do contexto político das chuvas anteriores, a legislação local e federal atual
assegura o princípio da não remoção de favelas, exceto quando apresentarem risco de vida
aos seus moradores. O relatório técnico que define as condições físicas do terreno em que
se situa uma ocupação irregular é, então, importante para a remoção ou a permanência da
população. O problema, segundo constata Compans (2007, p. 88), é que a avaliação dos ris-
cos geológicos, assim como o estudo da possibilidade de implementação de obras, visando
à estabilização do terreno, depende, no Rio de Janeiro, somente de um órgão integrado à
administração municipal: a Geo-Rio.
O controle deste conhecimento técnico dificulta os moradores das favelas contestarem
os relatórios produzidos pelos técnicos desse órgão. Em suma, os que controlam o poder
de nomear e identificar o risco detém um enorme poder. É mais simples ampliar a noção
técnica de risco na esfera técnico-administrativa do que empreender uma revogação da lei
visando ampliar as possibilidades de remoção das favelas. Foi justamente o que ocorreu
após os eventos de abril de 2010. Se a Geo-Rio, criada após as chuvas de 1966, tornou-se
uma referência mundial no tratamento de encostas, observa-se infelizmente um uso político
da noção de risco nos dias atuais, ao ponto de se observar, em nosso contato com os mora-
dores de diferentes favelas ameaçadas de remoção da cidade, certa desconfiança quanto à
atuação da prefeitura em situações de riscos geológicos. A impressão que temos é que o pior
impacto das chuvas é a perda da legitimidade dos poderes públicos nessas áreas.
Enfim, é um desafio compreender as articulações entre os fenômenos naturais e suas
repercussões sociais. As chuvas de verão do Rio de Janeiro são certamente um campo pri-
vilegiado para estudar tais articulações. Os impactos causados pelas chuvas mobilizam a
opinião pública e forçam o surgimento de órgãos, projetos e novas técnicas de intervenção
nas favelas. No entanto, apesar da frequência das chuvas, as respostas dos poderes públicos
ainda são fragmentadas e ineficientes, provavelmente pelo fato de atingirem, sobretudo,
a população mais pobre. A memória das enxurradas jaz adormecida quando tudo “volta à
normalidade”, até que novas chuvas voltem a cair na cidade e façam reviver histórias e re-
latos das tempestades anteriores. É preciso repensar, no Rio de Janeiro, a relação por vezes
conturbada entre o seu ambiente construído e as forças da natureza, que revela a forte in-
justiça de cunho ambiental da cidade. Mais do que justificar remoções generalizadas, que
a memória das chuvas de verão possa contribuir na luta por um Rio de Janeiro ambiental e
socialmente mais justo.

14 É difícil afirmar que esse número se limita somente às remoções motivadas pelo discurso de risco. É provável
que nesse número estejam também as famílias removidas no contexto de preparação da cidade para a Copa do
Mundo e os Jogos Olímpicos. Esse número certamente aumentou nos últimos anos.

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Recebido em 15/1/2015
Aprovado em 4/2/2015

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rio, 40 graus
a disputa pela imagem da capital do brasil nos anos dourados
rio, 40 graus [100 degrees f]
the dispute on the image of former capital of brazil during the golden years

Carlos Eduardo Pinto de Pinto | Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Professor do De-
partamento de História da PUC-Rio.

resumo

O filme Rio, 40 graus, de Nelson Pereira dos Santos, de 1955, foi censurado e teve sua estreia proi-
bida, por mostrar as favelas da então capital da República. Por meio da análise dos discursos de
defesa e ataque da obra, bem como de algumas de suas sequências, o artigo se dedica a pensar
a disputa pela imagem da cidade – e do país –, colocando em xeque a noção de “anos dourados”.

Palavras-chave: anos dourados; autoritarismo; cinema; Rio de Janeiro.

abstract

Nelson Pereira dos Santos’s Rio, 40 graus (1955) was censured and had its release forbidden for
showing the slums of Brazil’s former capital, Rio de Janeiro. Through the analysis of discourses in
favor and against the movie, as well as some of its sequences, this article aims to reflect on the
dispute regarding the representation of the city – and of the country –, questioning the idea of
“golden years”.

Keywords: golden years; authoritarianism; cinema; Rio de Janeiro.

resumen

La película Rio, 40 graus (Nelson Pereira dos Santos, 1955) fue censurada y su debut fue prohibido
por mostrar los barrios marginales de la entonces capital de la República. A través del análisis de
los discursos de defensa y ataque de la película, así como de algunas de sus secuencias, el artículo
está dedicado a pensar en la batalla por la imagen de la ciudad – y del país –, poniendo en cues-
tión la noción de “años dorados”.

Palabras clave: años dorados; autoritarismo; cine; Rio de Janeiro.

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um filme proibido

A realização de Rio, 40 graus por Nelson Pereira dos Santos, em 1955, é considerada um
marco na história das representações cinematográficas do Rio de Janeiro. Trata-se de um
diálogo profícuo com o neorrealismo italiano, deixando para trás a imagem de paraíso nos
trópicos que vigorava até então, em prol de uma representação mais realista do Rio. A obra
foi considerada o ponto de partida para o surgimento do cinema moderno no Brasil (Xavier,
2001), marcando, sobretudo, os primeiros anos do cinema novo (Pinto, 2013).
O neorrealismo foi a principal alternativa ao cinema hollywoodiano no pós-guerra e
propunha, em linhas gerais, a realização de filmes com poucos recursos, fora dos estúdios
e usando não atores, de preferência aqueles que estivessem inseridos no contexto da nar-
rativa. A ideia era registrar, sem enfeites, a “realidade” – o que, no caso do filme de Nelson,
foi alcançado por meio do protagonismo de cinco meninos vendedores de amendoim, mo-
radores de uma favela. Para completar o diálogo com o neorrealismo, a produção do filme
foi realizada por meio de um sistema de cotas, que envolveu toda a equipe e amigos, e as
sequências filmadas, quase integralmente, em externas.
A expectativa em torno dessa série de novidades era grande, mas foi frustrada por uma
notícia impactante. Antes de conseguir chegar aos cinemas, o filme foi proibido – depois
de já ter sido liberado pela Censura – justamente por ousar representar as favelas cariocas.
Logo a obra se tornou o centro irradiador de um debate em torno da liberdade de expressão
e o que seria a “verdadeira” face da, então, capital da República. Ironicamente, o Brasil vivia
o décimo ano após o fim da ditadura de Vargas e podia desfrutar do retorno das instituições
democráticas. A proibição ao filme demonstra o caráter ainda autoritário da política cultural
do momento, dando contornos vagos e imprecisos ao conceito de democracia. Por outro
lado, a campanha em favor de sua liberação, vitoriosa, demonstra que os tempos realmente
haviam mudado.
Essa tensão entre autoritarismo e democracia é um dado precioso para a tarefa de
repensar o epíteto de “anos dourados” para a década. Certamente, foram anos marcados
pelo “aumento da prosperidade e [por] uma efervescência cultural” (o que lhe garantiu
a boa fama), mas também pelo “crescimento da desigualdade que contribui para novas
formas de críticas e conscientização das pessoas” (Burton, 2003, p. 206) – processo em
que Rio, 40 graus é um dos agentes. Mesmo que o epíteto tenha sido construído a poste-
riori e seja mais associado a eventos localizados na segunda metade da década – os anos
JK e o avanço da indústria de bens duráveis; os concursos de Miss iniciados em 1954; a
vitória do Brasil na Copa do Mundo e o surgimento da bossa nova em 1958 –, vale no-
tar que o período nasce sob o signo da esperança, no Brasil e no mundo. Tratava-se da
inauguração da segunda metade do século XX, castigado por duas guerras mundiais,
impulsionando a necessidade e a vontade de começar de novo, resgatando valores mais
otimistas. No Brasil, como já indicado, havia o retorno da democracia e a instalação de
um espírito empreendedor que procurava atingir, a todo custo, o desenvolvimento in-
fraestrutural do país.

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É certo que a censura ao filme destoa do clima democrático, mas ela pode ser compre-
endida, caso se pense no esforço em manter, à força, a imagem de harmonia e prosperidade
que marcava a década. O autor da proibição foi o coronel Geraldo de Meneses Cortes, indica-
do pelo presidente João Café Filho – que assumira após o suicídio de Vargas, no ano anterior
– ao cargo de chefe do Departamento Federal de Segurança Pública (DFSP) (Salem, 1996).
Em uma coletiva de imprensa, Meneses Cortes disse que o filme só apresentava “os aspectos
negativos da capital brasileira” (Salem, 1996, p. 115), de forma desorganizada e miserável,
sendo habitada por personagens que falavam na “pior gíria dos marginais” (Salem, 1996, p.
116). Ainda, o filme havia sido feito tão habilmente que só poderia servir “aos interesses do
extinto PCB” (Salem, 1996, p. 115). Para “comprovar”, fazia comparações entre a linguagem
cinematográfica usada por Nelson e alguns filmes “comunistas” que havia apreendido pouco
tempo antes. Contudo, a observação mais visada pela crítica e pelos intelectuais foi sobre
a suposta inverdade contida no título, afinal, segundo o coronel, o clima do Rio nunca teria
chegado a 40 graus.
Pompeu de Sousa, uma figura de relevo no meio jornalístico, chefe da redação do Diário
Carioca – um jornal de tiragem modesta, mas com acentuada influência política no Rio –, es-
creveu uma matéria na primeira página defendendo o filme. Vale notar a liderança do Diário
Carioca no processo de modernização por que passaram alguns jornais brasileiros na década
de 1950, privilegiando a objetividade em detrimento da defesa de opinião pessoal, o que
só reforça o peso da campanha. Juntaram-se a Pompeu de Sousa figuras marcantes da cena
cultural brasileira, como o crítico e cineasta Alex Viany e o escritor Jorge Amado, além de inte-
lectuais e artistas franceses que escreveram uma carta apresentando votos de solidariedade.
Todos enfatizavam as qualidades estéticas do filme, bem como seu caráter realista.
Nesse sentido, Moacir Werneck de Castro ironizava a atitude de Meneses Cortes: “os ca-
riocas, para ele, constituem um harmonioso conjunto de pessoas que cheiram a perfume
francês, que dirigem possantes automóveis americanos e se reúnem à noite, antes da boite,
em apartamentos decorados pelos próprios comerciantes da rua Barata Ribeiro”.1 Em outro
ponto, ao se referir a um semanário não identificado em que imagens do filme apareciam
dispostas ao lado de fotos de pequenos vendedores de amendoim “reais”, decretava: “São os
mesmos personagens, é a mesma vida”. Teor semelhante tem a observação do escritor Aníbal
Machado, realizada depois de uma sessão privada do filme, voltada para artistas e intelec-
tuais, no MAM de São Paulo: “Rio, 40 graus é uma película que retrata o Rio de Janeiro, num
sentido puramente expositivo”.
A campanha pela liberação coincidiu com um momento delicado da política brasileira,
quando da articulação de um golpe para impedir que Juscelino Kubitschek (JK), recém-eleito
presidente da República, assumisse o cargo. A arquitetura do plano coubera a Carlos Lacer-
da, afiliado à UDN (União Democrática Nacional), partido conservador que exercia oposição

1 A crítica, originalmente publicada na Imprensa Popular, em 1955, está disponível no catálogo organizado por
Dolores Papa por conta dos cinquenta anos de Rio, 40 graus. Não há referência à página.

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agressiva contra o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro, fundado sob a inspiração de Getúlio
Vargas) e o PCB (Partido Comunista Brasileiro). Vale lembrar o envolvimento de Lacerda nos
eventos que culminaram com o suicídio de Getúlio, um ano antes.
A candidatura de JK, e, principalmente, a do vice João Goulart (Jango), representava
uma ameaça para a UDN, tanto pelo passado de Jango como ministro do Trabalho de Vargas
quanto pelo apoio do PCB aos dois políticos. Cabe aqui apontar a força do PCB na capital,
onde o partido tivera a sua melhor performance eleitoral, antes de ter sido posto na ilegalida-
de em 1947 – o que também denuncia o perfil polarizado do Distrito Federal (Ferreira; Dan-
tas, 2000). Os desdobramentos da tentativa de golpe envolveram a participação das Forças
Armadas, ameaças de bombardeio, deposições e um estado de sítio que perdurou entre 24
de novembro de 1955 e a posse de JK, em 31 de janeiro do ano seguinte.
A simpatia de Meneses Cortes pela UDN e o envolvimento de Nelson e outros membros
da equipe de Rio, 40 graus na companha em favor de JK ajudam a compreender os fortes la-
ços que uniam a situação política à campanha de liberação do filme. Fora isso, num momen-
to de fragilidade das instituições democráticas, a proibição de uma obra tende a ganhar mais
relevo e gravidade. Em meio à crise descrita acima, os advogados Vitor Nunes Leal e Evandro
Lins e Silva procuraram resolver a questão legalmente. Entraram com um mandado de se-
gurança contra a portaria da proibição, alegando que tal iniciativa passava por cima da de-
cisão do Serviço de Censura, único órgão que tinha autoridade constitucional para fazer tal
interdição. O resultado da ação judicial, liberando o filme, saiu em 31 de dezembro de 1955.
Enfim, em março de 1956, Rio, 40 graus estreou em grande circuito, levando um número
expressivo de pessoas às salas de cinema. Por ironia, a proibição acabou contribuindo para
uma boa recepção, realizada num clima de muita expectativa. Como percebido à época, Me-
neses Cortes foi o maior difusor do filme. Segundo Nelson, no entanto, o entusiasmo durou
pouco, pois muitos desavisados achavam que a obra tinha sido proibida por ter cenas com
mulheres nuas. Ainda assim, o filme se pagou na bilheteria e recebeu os prêmios de melhor
direção, filme e argumento do Distrito Federal. O diretor ganharia também no Festival de
Karlovy Vary, na Tchecoslováquia, o prêmio de jovem realizador, o que deve ter proporciona-
do a Meneses Cortes um leve sabor de vitória. Afinal, eram tchecos os filmes comunistas aos
quais ele comparava Rio, 40 graus...

um rápido passeio por uma cidade quente

A recepção ao filme, apresentada anteriormente, é uma ótima oportunidade para o des-


lindamento de seu espaço de comunicação (Odin, 2011), entendido como o circuito social
em que são construídos seus sentidos. A partir desse ponto, vale buscar alguns elementos
narrativos e diegéticos que permitam completar o circuito de interpretação, focando nos
elementos narrativos elencados pela recepção.
A diegese de Rio, 40 graus acompanha um dia na vida de cinco meninos moradores de
uma favela, que atravessam diversos espaços da urbe. Ao cruzarem com um número relati-
vamente alto de personagens, tanto no “morro” quanto no “asfalto”, esses meninos permitem

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que o filme “desenhe” as características da favela, lugar de onde saem, e do restante da cida-
de. Fazem parte desse jogo de oposição elementos identitários tais como o samba, o futebol,
a praia, a presença de estrangeiros e de migrantes, a política e mais.
Dados os limites deste trabalho, preferi fechar o foco no contraste que a narrativa dese-
nha entre a favela e alguns ícones urbanos do Rio, vulgarmente referidos como “cartões pos-
tais”. É preciso demarcar, de partida, que a apropriação dessas imagens pelo filme se dá de
forma inovadora. Em vez da estática e distância de uma fotografia convertida em souvenir,
ao longo da narrativa eles são solicitados como lugares que abrigam e propiciam o drama. A
narrativa se esforça por apreender a “carne” dessas imagens que representariam facilmente a
dimensão pétrea da cidade – para fazer referência ao título de Richard Sennet, Carne e pedra
(2008) –, mas eclipsariam o calor de seus conflitos sociais.
O filme constrói cenas na Quinta da Boa Vista, no Pão de Açúcar, no Maracanã e, nas
duas sequências que analiso em seguida, no Cristo Redentor e em Copacabana. A partir de
agora, procuro refletir sobre o porquê da escolha desses lugares – tendo em vista a força que
já possuíam no imaginário social da cidade – e o papel que desempenham na narrativa, de
acordo com a forma como se dá a sua representação.
No início da sequência que incluirá o Cristo Redentor na narrativa, dois meninos ven-
dedores de amendoim conversam na escadaria que dá acesso ao monumento. É preciso
lembrar que os meninos são os “cicerones” da narrativa em seu passeio pela cidade, sendo
os primeiros personagens a entrar em cena, logo após a sequência de abertura do filme.
A presença deles no alto do Corcovado, portanto, remete a esta situação previamente
exibida – sabemos quem são e os valores que representam. Um deles está sentado e só
vemos o seu rosto no quadro. O outro, de pé, deixa entrever, acima de sua cabeça, a es-
tátua do Cristo Redentor – de costas e mal enquadrada, sendo impossível ver a cabeça
inteira. O menino que está sentado diz, com o olhar perdido na paisagem: “Queria tá lá, no
Maracanã...”. O outro abre os braços, joga o corpo um pouco para frente, dizendo: “Se eu
fosse o Super-Homem dava um pulo daqui e ia cair bem no meio do estádio”. Ele usa uma
camisa branca e, quando se movimenta, cobre parcialmente a vista do Cristo – que, por
conta da fotografia em p&b e da luz estourada, também parece estar “vestido” de branco.
A ação resulta numa correspondência mimética entre o menino e a estátua, também de
braços abertos.
É nesse momento que chega um cadillac trazendo o sr. Durão, um suplente de depu-
tado que visita a capital e será seduzido por Maria Helena, bela moça de classe média,
moradora de Copacabana. O vendedor de amendoim se aproxima correndo do grupo e
é escorraçado pelo político, que diz estar ali para cumprir uma promessa. Trata-se de um
dado interessante, já que, embora seja mais procurado como possibilidade de fruição esté-
tica – do ícone e da paisagem –, a função religiosa também se associa ao monumento. Leila
Grinberg (1999, p. 72) defende que a construção do Cristo “limita o território da cidade (ou
do país, por extensão, porque símbolo do país) como território católico”.
Situada no alto do morro do Corcovado, a escultura foi inaugurada em 1931, por esforços
da Igreja Católica – que mobilizou os brasileiros no projeto de construção de um monumen-

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to católico na capital do país. Trata-se de uma escultura de trinta metros (mais oito de pedes-
tal), em estilo art déco, assinada pelo brasileiro Carlos Oswald (responsável pelo desenho),
com colaboração do francês Paul Landowski, que desenvolveu os braços e o rosto.
Concorrendo com o Pão de Açúcar como símbolo nacional, também está associado à
monumentalidade da natureza brasileira. Afinal, embora imagens isoladas do Cristo não se-
jam raras, é mais comum haver a associação de sua imagem à do morro sobre o qual se
encontra, além das fotos aéreas que exibem, aos pés da estátua, a complexidade geográfica
da paisagem natural carioca. Além disso, o fato de a estátua representar uma figura divina re-
força tal leitura: “Se o Rio, historicamente, pode ser pensado como promessa de um paraíso,
com a construção do Cristo não só estamos mais uma vez diante da ratificação deste sonho,
como em frente à imagem de um deus que contempla sua criação” (Pereira, 2000, p. 326).
Já Copacabana vivia, na década de 1950, o seu auge como a “princesinha do mar”. Primei-
ro espaço da cidade a ser apropriado como balneário, sua crescente ocupação – catalisada
pela especulação imobiliária – imprimiu ao estilo de vida carioca muitos dos adjetivos que
lhe são aplicados até hoje. Durante muito tempo, o bairro ditou ao resto do país “as novas
modas do consumo: primeiro fast-food (1952), primeiro supermercado (1955), primeiras lo-
jas de eletrodomésticos [...]” (Enders, 2009, p. 261).
No filme, Jorge, um dos meninos favelados, está nas areias de Copacabana quando per-
de seu material de trabalho por conta de um acidente causado por Bebeto, um “rato de praia”
que se recusa a pagar pelo prejuízo. Em seguida, Bebeto é apresentado como um “caça-
dotes” que namora Maria Helena, a “moça de fino trato” que não se furta à prostituição se o
montante oferecido for alto o suficiente para manter seus hábitos burgueses. Na sequência
analisada, é ela quem seduz o sr. Durão. Aqui, ela e o namorado estão se bronzeando nas
areias de Copacabana, enquanto interagem com outros tipos sociais que, na década de 1950,
eram considerados imorais: um homossexual e uma desquitada.
As personagens deitadas nas areias são frívolas, conversam sobre assuntos mundanos e
não se compadecem do menino Jorge, representante da exclusão social. Mais do que não se
compadecerem da pobreza, as personagens parecem incomodadas por sua presença, que
“polui” o espaço de prazer. Por exemplo, quando Bebeto é abordado por Jorge, ordena com
violência que o menino se afaste. Em seguida, é interpelado por um homem bem vestido. Ao
saber de Bebeto que o “malandrinho” queria lhe “dar um golpe”, o homem comenta em tom
afetado: “são uns criminosos esses pais que largam os filhos na rua”.
A narrativa então faz um corte para uma cena no barraco onde se encontra a mãe de
Jorge, uma mulher adoentada que recebe ajuda de uma vizinha que veio trazer comida e
arrumar a casa. Enquanto conversam, descobre-se que ambas são lavadeiras que sustentam
suas famílias com esse ofício. Trata-se, evidentemente, de um “embate” com a cena anterior.
A proposta é reforçar, através do corte da montagem, o contraste entre a fala do homem
(sobre a irresponsabilidade dos pais) e a “verdade” que ele desconhece: a extrema carestia só
é suportável porque amenizada pela solidariedade. Assim, a representação da “vida fácil” lo-
calizada, mais do que no asfalto, nas areias, se opõe simetricamente ao universo de trabalho,
companheirismo e desprendimento representado pela cena no barraco.

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dentro, mas fora da cidade

Através da análise dessas sequências, é possível perceber no filme uma leitura da favela
como uma face distinta da vida na cidade, enquanto um lugar em que resistem os valores
positivos de cooperação, amizade e altruísmo. Como uma espécie de “vingança” perpetrada
pela narrativa, os vendedores de amendoim – que estão “fora” – são interpostos, aparecendo
em primeiro plano, a todos os “cartões postais”, que simbolizam o “dentro”. É uma espécie de
“contaminação” da paisagem pelas personagens que evidenciam a exclusão social. Ao espec-
tador, refém da construção visual que a narrativa lhe proporciona, não há escapatória: é im-
possível ver o Rio dos cartões postais sem ver também os pequenos moradores das favelas.
O caso do Cristo Redentor é ainda mais significativo, pois o garoto literalmente se sobre-
põe ao monumento, assumindo a mesma posição que a estátua. Sua disposição no quadro,
de braços abertos – como a escultura – cria um entrecruzamento de imagens e signos bas-
tante eloquente. Embora não seja uma imitação proposital, pois em seu discurso ele afirma
querer ser o Super-Homem– e aqui se deve levar em conta que o super-herói evocado voa
com os braços esticados para frente e não para os lados –, em termos visuais essa sobrepo-
sição agrega muitos sentidos à narrativa. Em contraposição às figuras excelsas que evoca, o
menino surge imerso na miséria de ser humano e terráqueo: pesado e limitado.
Outro dado que vale destacar é a força que a natureza ocupa na constituição de Copaca-
bana e do Cristo. Embora surjam como exemplos de domínio técnico – afinal nenhum deles
se mostra acessível sem uma dose de urbanismo – estão longe de significar um aniquilamen-
to da natureza pelos processos de urbanização. Ao contrário, reforçam a superioridade do
elemento natural sobre o construído, quando se pensa em termos de força de representação
no imaginário carioca e brasileiro. Isso porque, mesmo que elementos construídos façam
parte do “cenário”, as pessoas estão lá, em última instância, para fruir a natureza. Seja através
do prazer voyeurístico da vista, seja pelo mergulho – literal – no hedonismo da praia.
A apreensão da natureza americana e, em particular, a do Rio, como “paraíso nos trópi-
cos”, remonta ao século XVI e, tendo passado por inúmeros processos de ressignificação, está
presente ainda hoje em discursos vários sobre a cidade. Em Rio, 40 graus essa imagem é con-
trabalançada pelos meninos, constantemente expulsos ou impedidos de entrar no “paraíso”.

qual cidade representar?

O Rio de 1955 era uma cidade ambígua, que oferecia argumentos abundantes tanto a
Nelson Pereira dos Santos quanto a Meneses Cortes. Apesar de claudicante – sofrendo do
complexo de inferioridade diante do processo de modernização de São Paulo, empreendido
por conta de seu Quarto Centenário – seu protagonismo como laboratório de experiências
urbanísticas e criações culturais ainda era mantido. Importante notar que este é um dos tra-
ços mais fortes da capitalidade carioca, e uma das bases de sustentação de sua capacidade
de representar o país (Azevedo, 2002). No entanto, a cidade sofria com o aumento das fa-
velas, encaradas como “chagas” em sua paisagem, uma flagrante ameaça à sua capitalidade.

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Afinal, como conjugar a abertura ao novo – sobretudo em termos de experimentos urbanís-
ticos – com uma exibição da miséria tão explícita quanto permite a altitude do relevo?
Caso se atenha apenas a esse contraste, a escolha de Nelson Pereira por filmar as fa-
velas poderia pressupor tão somente um interesse em exibir uma dimensão mais realista
da cidade, o que se configuraria como uma denúncia social. Contudo, menos que “apenas”
mostrar uma favela, a obra constrói uma interpretação sobre ela. Embora não sejam deixa-
dos de lado, os aspectos que evidenciam a carestia convivem com elementos pitorescos que
reforçam o espírito comunitário. Trata-se de um dado que torna o processo mais instigante,
já que a favela pode ser lida, ao mesmo tempo, como entrave à capitalidade e como um de
seus alicerces.
Para compreender essa dubiedade é preciso voltar ao Estado Novo, percebendo-se que,
em paralelo às remoções e ações de controle, havia uma proposta de apropriação das manifes-
tações culturais produzidas nas favelas, de forma a construir uma nova ideia de nacionalidade.
Pela perspectiva de Lúcia Lippi de Oliveira (2000, p. 144), “a junção de símbolos e agências
culturais produz a construção de um ‘caráter’ carioca que, muitas vezes, aparece e é divulgado
como o caráter nacional”. Por certo, a favela em si não é o elemento aglutinador, mas muitos
dos aspectos desse “caráter carioca” estão associados a ela, como o samba e o Carnaval.
Na valorização das favelas, entretanto, Vargas não estava só: o PCB também se interessa-
ria, mas de forma diferenciada. Caso se considere o exemplo do samba, que na perspectiva
do governo era um produto nacional – e, portanto, deveria ser reconhecido e consumido por
todos os brasileiros –, para os comunistas ele deveria ser considerado um produto popular,
devendo permanecer com a classe que o produzia, sendo uma de suas forças de atuação
(Guimarães, 2009).
Enfim, a presença da favela em Rio, 40 graus pode ser entendida, por um lado, como um
ataque à capitalidade, se configurando em um espaço que pareceria mais próximo à realidade
que o imaginário hedonista associado à capital. Tal leitura está na base da reação de Meneses
Cortes que, como outros atores sociais, encarava as favelas como um problema a ser resolvido
e sobre o qual se deveria manter alguma discrição. Por outro lado, o filme também permitia
que ela fosse vista como um lugar privilegiado, em que a vocação do Rio para “cadinho” da
nação se realizava. Aqui, as políticas culturais da Era Vargas e do PCB se aproximavam.
Como abordarei mais adiante, o olhar de Nelson Pereira dos Santos está coadunado com o
do PCB, mas não diria que o filme seja resultado apenas dessa perspectiva. A política cultural
de Vargas também se faz presente, mesmo que não totalmente acatada. É fundamental ter em
conta que os efeitos de tal política, extremamente bem articulada, não se desvanecem junto
com o governo que a engendrou. Se o apelo de um samba-exaltação ainda se mostra potente
no século XXI, que dirá de um sujeito que passou parte da infância e da adolescência sob o re-
gime ditatorial de Vargas, caso de Nelson? Fora isso, ainda que os objetivos fossem diferentes,
parece tênue a linha que separa a noção de cultura nacional, na perspectiva do Estado Novo, e
de cultura popular, como defendida pelo PCB. Ao conceber e realizar o filme em meio a essas
polaridades, Nelson reelaborava a cidade com vistas à defesa de uma cultura nacional-popular,
mobilizando os imaginários disponíveis e os entrecruzando em sua percepção.

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o olhar de meneses cortes

Meneses Cortes vinha, desde a década de 1930, construindo uma carreira militar que a
partir de então enveredaria para o campo da política, de onde não sairia até sua morte, em
1962, em um desastre aéreo. Seria ainda eleito deputado federal pela União Democrática
Nacional (UDN), no qual chegaria a ser vice-líder e mesmo líder por um curto período. Já no
fim da década de 1950, com a confirmação da transferência da capital para Brasília, desem-
penhou um papel importante no processo de decisão do destino que o Rio de Janeiro teria
depois de perder o posto de capital.
É certo que ser militar e político não é garantia contra um olhar obtuso, mas de fato esse
não parece ser o caso do secretário de Segurança da capital, como indica sua atuação após
os eventos envolvendo a proibição do filme. Com base nesse percurso, pode-se inferir que
não se tratava de um “imbecil” ou de um “louco”, ou qualquer outro termo pejorativo que
poderia caber à sua figura no calor da hora da defesa do filme de Nelson. Considero mais
adequado interpretar a atitude do coronel como sintoma de um olhar específico lançado à
sociedade e à capital – sem querer, com isso, minimizar sua responsabilidade sobre a ação
autoritária de que lançou mão.
É compreensível que uma figura conservadora como Meneses Cortes, responsável pelo
papel de manter a segurança da capital, apesar de consciente de todos os males, acreditasse
que, na hora de filmá-la, deveriam ser enfocados somente os seus aspectos positivos. Vale
lembrar o comentário irônico de Moacir Werneck Castro, citado anteriormente, em que ridi-
culariza a visão de cidade que o coronel teria – pessoas bem vestidas e refinadas, desfrutan-
do dos prazeres oferecidos por Copacabana. Não à toa, esses traços caricaturais poderiam
ser associados, no imaginário, à ideia de “anos dourados”.
Outro ponto a destacar é o fato de se tratar de cinema, uma espécie de vitrine capaz
de exibir o país para o mundo. É provável que os problemas em si não preocupassem
tanto o coronel quanto a exibição dos mesmos. Assim, Meneses Cortes desejava para
o Rio aquela representação aparentemente despolitizada que a cidade vinha tendo até
então. Mesmo que o tema da liberdade presente na filmografia associada à cidade pu-
desse desagradar ao coronel – ainda hoje é comum que bandidos cinematográficos
escolham o Rio como um abrigo eficiente contra a ação da lei –, não parece haver de
sua parte qualquer problema em relação à imagem cristalizada de cidade com vocação
para a beleza e o prazer. Por outro lado, segundo sua perspectiva, o tema da exclusão
social merecia ser interdito e essa postura não parece estar dissociada de certa reserva
em relação a um discurso que pudesse enaltecer os pobres, o que certamente lhe “chei-
rava” a comunismo.
Quando proibiu Rio, 40 graus, a atuação de Meneses Cortes ainda não estava as-
sociada a uma política partidária, mas já apresentava assumida posição anticomunista,
um dos traços que poderia caracterizar a UDN, partido que o acolheria pouco tempo
depois. Deve-se ressaltar, inclusive, que sua atuação política como chefe do Departa-
mento Federal de Segurança Pública (DFSP), em especial a sua atitude em relação ao

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filme, impulsionou sua carreira, o que demonstra que não estava só em sua empreitada.
Segundo Helena Salem, baseada em entrevistas realizadas com Nelson Pereira dos San-
tos, o motivo da proibição do filme foi um aviso recebido pelo coronel de que se tratava
de uma obra de comunistas, com apoio financeiro de Moscou (Salem, 1996). A sua pos-
tura, portanto, rebatia a da UDN, que nesse momento tentava impedir as posses de JK
e Jango, apoiados pelo PCB. A liberação do filme e a chegada dos novos governantes
ao poder significariam, portanto, uma vitória para os comunistas. Assim, além de estar
comprometido com um olhar mais benevolente sobre a capital, Meneses Cortes também
se mostrava atento ao seu dever de “protegê-la” contra perigos diversos – comunismo
incluso, obviamente.

o olhar de nelson pereira dos santos

Dado indissociável do alinhamento do Brasil ao bloco capitalista durante a Guerra Fria,


nesse momento o PCB atuava na clandestinidade. Nelson era um de seus membros desde
a adolescência, quando entrara para a Juventude Comunista. Não sem motivo, o seu olhar
sobre a capital era bem diferente do de Meneses Cortes. Nascido em São Paulo em 1928, o
cineasta estava prestes a completar 27 anos de idade e Rio, 40 graus era o seu primeiro longa-
metragem. Formado em direito pela Universidade de São Paulo, nunca tinha exercido a pro-
fissão. Como muitos cineastas brasileiros do período, abandonara uma carreira considerada
mais séria e rentável em nome do desejo de fazer cinema.
Viria para o Rio – onde ainda vive – a convite de Ruy Santos, documentarista também
vinculado ao PCB, que tentava fazer seu primeiro longa-metragem de ficção, jamais finaliza-
do. Em entrevista de 2007, Nelson lembra os primeiros contatos com uma favela, que antece-
deram e marcaram a realização de Rio, 40 graus: “foi então que conheci a verdadeira feijoada
carioca e a roda de samba. Era um espaço humano acolhedor, rico, brasileiro e diferente. E
eu, um paulista meio cru, não me contive: ‘isso é o filme’” (Santos, 2007).
Mesmo que esse comentário guarde uma distância de mais de cinquenta anos da con-
cepção da obra – o que dá espaço suficiente para inúmeras reelaborações da memória – ain-
da assim ele pode ser encarado como uma pista para o olhar de Nelson. Recém-chegado à
capital do país, o cineasta não relata seu encanto pelas belezas dos cartões postais, mas sim
pelo aspecto brasileiro das favelas. É, portanto, nos espaços mais representativos da exclusão
social que ele vê a riqueza antropológica do “ser brasileiro”.
Apesar de Nelson ser categórico ao afirmar que o PCB se recusou a apoiar seu filme, con-
siderado apenas uma “aventura” inconsequente, não é desprezível sua formação ideológica.
Mesmo atuando na clandestinidade, o PCB contava com inúmeros simpatizantes entre a eli-
te intelectual e artística do país. Entre suas ideias, a defesa de um nacionalismo calcado na
aproximação, por parte dos intelectuais, de elementos do povo, considerados a encarnação
simbólica da nação. Claro que, como adiantado acima, a essa leitura também deve ser acres-
centada uma visão antropológica, difundida pelo Estado Novo, que via na miscigenação e
nos seus vestígios culturais, os verdadeiros traços nacionais.

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além do olhar vencedor

A proibição de Rio, 40 graus e a imediata campanha de liberação permitem refletir sobre


temas diversos da pauta política do Brasil da década de 1950, entre eles o mais evidente é,
por certo, o direito de expressão. Através de uma ação autoritária, que destoava do clima
democrático de então – cujos limites bem claros eram percebidos pela intolerância aos co-
munistas –, o coronel Meneses Cortes provocou um debate sobre o direito de representação,
sem dúvida no campo da política e das ideologias, mas também, em última instância, no
plano da visualidade. Tanto quanto a liberdade de filmar, o que estava em jogo era que ima-
gem de cidade construir. O que se disputava nessa batalha era, enfim, o direito à imagem da
cidade. Mais especificamente, o direito a decidir qual aspecto da capitalidade do Rio deveria
figurar nas telas.
Menos que saber qual olhar saiu vencedor – cuja resposta é simples, já que o filme foi
liberado, exibido, premiado e continua reconhecido ainda hoje –, acredito que o mais impor-
tante seja reforçar os contornos do que estava em jogo. Assim, a análise dos olhares se apre-
senta como uma oportunidade de compreender a apropriação (Chartier, 1989) do filme – as
formas como seus sentidos foram socialmente construídos, bem como as práticas que gerou.
Ainda – por se tratar especificamente de um filme urbano –, os debates desenvolvidos a par-
tir de sua proibição são pistas interessantes para se perceber as outras leituras da urbe que
eram oferecidas à representação durante o período de concepção do filme e que poderiam
ter sido abordadas, mas permaneceram fora de seu “enquadramento”. Por certo, é a favela o
eixo central dessa disputa sobre o que mostrar e o que ocultar, e a observação sobre o que
se esperava dela permite distinguir com precisão os dois olhares.
Meneses Cortes seguiu uma linha de interpretação que encarava a favela como “um pro-
blema social, estético, higiênico, urbanístico e policial” (Perez, 2007, p. 251). É preciso, aqui,
reforçar que o coronel lê a cidade de acordo com a noção de ‘anos dourados’, tendendo a
reforçar os traços de hedonismo e modernidade vinculados a essa interpretação. Nelson e
os defensores de seu filme, por sua vez, tinham “uma visão que enaltecia a cultura musical e
artística do favelado e a sua luta diária pela sobrevivência” (Perez, 2007, p. 251).
De um lado, uma visão de cidade excludente, que preferia uma “vida de cartão-postal”,
uma espécie de “capital dos anos dourados”. De outro, um olhar mais complexo, que não ne-
gava a dimensão hedonista da urbe, mas incorporava a exclusão social a tal “realidade”. Entre
um olhar e outro, amarrada pelas tramas da cultura e esgarçada nas tensões das disputas
pela construção de sentidos, estava a cidade.

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Recebido em 30/11/2014
Aprovado em 19/1/2015

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a cidade do rio de janeiro no iv centenário em algumas
páginas literárias
the city of rio de janeiro in the fourth centenary in some
literary pages

Vicente Saul Moreira dos Santos | Historiador, doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História, Política
e Bens Culturais do CPDOC-FGV.

resumo

Este artigo aborda a cidade do Rio de Janeiro por ocasião da comemoração dos seus 400 anos,
em 1965, algumas produções editoriais referentes e, especialmente, o livro O Rio de Janeiro em
prosa & verso, organizado por Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, lançado pela
editora José Olympio.

Palavras-chave: Rio de Janeiro; comemorações; produção editorial.

abstract

This article focuses on city of Rio de Janeiro on the occasion of the commemoration of its 400
years, in 1965, on some related editorial production, and, more particularly, on the book O Rio
de Janeiro em prosa & verso, organized by Manuel Bandeira and Carlos Drummond de Andrade,
released by the publisher José Olympio.

Keywords: Rio de Janeiro; commemoration; editorial production.

resumen

Este artículo se centra en la ciudad de Río de Janeiro por la ocasión de la conmemoración de


sus 400 años, en 1965, y en parte de la producción editorial relacionada a ese evento, espe-
cialmente el libro O Rio de Janeiro em prosa & verso, organizado por Manuel Bandeira y Carlos
Drummond de Andrade, publicado por el editor José Olympio.

Palabras clave: Rio de Janeiro; conmemoraciones; producción editorial.

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rio de janeiro e o seu iv centenário (1965)

A comemoração do aniversário de quatrocentos anos de fundação da cidade do Rio de


Janeiro ocorreu no dia 1º de março de 1965. Permitiu que seus contemporâneos se jun-
tassem para selecionar o que devia ser lembrado e também o que devia ser esquecido. O
mercado editorial publicou ou relançou relevantes obras sobre a cidade, como a antologia O
Rio de Janeiro em prosa & verso, organizado por Manuel Bandeira e Carlos Drummond de An-
drade. Essa urbanidade estava vivendo desde 1960 a situação de ter deixado de ser a capital
da República e se tornado capital de um novo estado da federação – o estado da Guanabara.
A vitória eleitoral de Juscelino Kubitschek para presidente da República em outubro de
1955 foi crucial para a história do Brasil e da cidade do Rio de Janeiro. Durante seu mandato,
foi implementado o Plano de Metas, no qual a transferência da capital federal para Brasília
representava a meta-síntese da política governamental. No contexto desenvolvimentista e
de busca pela modernização, manteve-se o otimismo patriótico e o crescimento econômico
proporcionado pelas iniciativas governamentais.
A confirmação da mudança da capital durante o governo de Juscelino Kubitschek trouxe
para a cidade do Rio de Janeiro um dilema. Qual e como seria definido seu futuro? A opção
evidenciada pela documentação indica que foi buscada uma conciliação com sua tradição e
capitalidade exercida desde o período colonial, passando pela instalação da Corte em 1808,
sendo o principal centro político do Império (1822-1889) e da República até, pelo menos,
meados do século XX. Esse contexto dos primeiros anos da década de 1960 foi marcado pela
“redefinição de uma identidade, não só para o Rio de Janeiro, que deixava de ser a capital,
mas também para o Brasil, ameaçado de perder a sua vitrine, tão cuidadosamente inventada
e reinventada, por meio de propostas distintas que disputaram espaços através do tempo”
(Motta, 2001, p. 63).
Devido à inauguração de Brasília, em abril de 1960, a cidade do Rio de Janeiro, até en-
tão Distrito Federal, foi transformada no estado da Guanabara.1 O embaixador Sette Câmara
foi indicado como governador interino, permanecendo até a posse do representante eleito,
Carlos Lacerda. Embora a Constituição de 1946 indicasse que após a transferência da capital,
a cidade se transformaria numa nova unidade federativa, esse processo foi lento e envolveu
longo debate político sobre o futuro do Rio. Vale lembrar as 32 reportagens publicadas em
1958 pelo jornal Correio da Manhã intituladas “Que será do Rio?”, além de uma série de arti-
gos e crônicas veiculadas em jornais e revistas sobre o IV Centenário. Elas denotam o interes-
se da impressa e da população carioca e reforçam como tais “comemorações, “efemérides”,
datas alusivas a episódios considerados notáveis da história permitem refundar, reatualizar
identidades, sejam elas nacionais ou locais, oficiais ou privadas, públicas ou pessoais” (Oli-
veira, 2000, p. 185).

1 A mudança da capital federal e a criação do novo estado foram oficializadas pela lei n. 3.752, de 14 de março de
1960.

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Entre os símbolos representativos do novo estado cabe ressaltar a definição do hino
oficial. O vereador Francisco Sales Neto, da União Democrática Nacional (UDN), apresentou
projeto sugerindo a escolha da marcha Cidade maravilhosa, de André Filho.2 O governador
Sette Câmara o sancionou através da lei n. 5, de 25 de maio de 1960. Essa escolha não foi
unânime, pois essa canção era considerada profana e excessivamente popular.
O Rio de Janeiro mantinha-se como capital cultural do Brasil, mas encontrava-se diante
da busca de sua nova identidade após deixar de ser formalmente a capital política nacional.
Havia o claro objetivo de reafirmar a Belacap – a Guanabara – em oposição a Novacap (Com-
panhia Urbanizadora da Nova Capital, criada em 1956) – Brasília. Paralelamente, o cronista
Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo de Sérgio Porto, criou a expressão Buracap, em referên-
cia aos buracos que atormentavam e atormentam os cariocas (Mesquita, 2008).
Carlos Lacerda foi eleito o primeiro governador da Guanabara, pela UDN, e tomou posse
em 5 de dezembro de 1960. Os cinco primeiros anos da Guanabara foram marcados pela
busca do governador em se firmar como um administrador competente e reconhecido na-
cionalmente. Tal legitimidade o habilitaria a disputar a sucessão presidencial, para além da
consolidada fama de jornalista, bom orador e crítico voraz. Lacerda declarou que teve o
desafio de reformular “uma cidade que se fez Estado de repente, por decreto, e não tinha
condição para se governar”. Ainda segundo ele próprio, “os problemas foram proclamados,
oficialmente insolúveis e que parecia condenada a uma espécie de alegre dissolução”, mas
invoca para sua administração o mérito de

Sem perder a sua capacidade de alegria, ela (a cidade do Rio) mergulhou de cabeça no
trabalho e está num começo de reconstrução em que as obras valem ainda mais pelo
que significam do que pelo que aparentam. Tudo o que se faz no Rio hoje, tem o senti-
do de uma ressurreição do espírito, de uma criação da inteligência, de uma realização
do esforço do homem, do valor da criatura, da capacidade do brasileiro construir seu
próprio destino e fazer uma grande Nação como foi capaz de fazer uma grande cidade
(Lacerda, 1965, p. 566).

Nesse artigo, publicado no volume organizado por Drummond e Bandeira e que será
analisado adiante, Lacerda seguiu o enfoque de relacionar a cidade e o país. O trabalho
realizado na Guanabara deveria servir como exemplo para todo o Brasil. O governador,
como outros políticos, tinha a percepção da excepcionalidade do estado da Guanabara,
que fora palco de eventos importantes da história brasileira, sede de instituições e caixa
de ressonância em escala nacional e internacional. Nos primeiros anos da década de 1960,

2 A canção, lançada por Aurora Miranda em 1934, ganhou enorme repercussão a partir do carnaval de 1936, sendo
executada nos bailes de carnaval e ao longo dos anos. Em 1908, Coelho Netto publicou no jornal A Notícia um
artigo intitulado “Os sertanejos” que se referiu ao Rio como “Cidade maravilhosa”. Álvaro Moreyra (1991) publi-
cou, em 1923, o livro Cidade mulher que retomou a expressão, além de relacionar o Rio com a figura feminina,
sedutora e capaz de despertar paixões.

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o Rio ainda desempenhou capitalidade política, devido à permanência na cidade de diver-
sas instituições públicas, o que garantia a ela importante lugar de articulação e espaço de
eventos políticos.
Um dos principais legados da administração de Lacerda para a cidade foram as muitas
obras,3 como os túneis Santa Bárbara (entre Catumbi e Laranjeiras), Rebouças (Rio Comprido
– Cosme Velho – Lagoa) e Major Vaz (em Copacabana, entre as ruas Toneleros e Pompeu Lou-
reiro). Essas realizações foram importantes para a circulação rodoviária e para a facilidade de
acesso aos bairros da Zona Sul carioca. Outra medida que contemplou essa região da cidade,
especialmente a lagoa Rodrigo de Freitas, foi a polêmica remoção de favelas (da ilha das
Dragas, Piraquê e avenida dos Pescadores), além da construção dos conjuntos habitacionais
nos subúrbios para as populações que residiam nesses locais. Em seu mandato, o governa-
dor também melhorou o abastecimento de água, um dos problemas crônicos da cidade, que
recebia críticas bem humoradas de famosas marchinhas. Esse grande volume de obras foi
viabilizado por empréstimos realizados com o Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID) que denotam a circulação internacional de Lacerda. Ao mesmo tempo, a difícil relação
do governador com o presidente João Goulart dificultou a liberação de recursos públicos
pelo governo federal.
Formado pelos jardins e pistas do trecho Calabouço, Glória, Flamengo e praia de Bota-
fogo, o Aterro do Flamengo foi uma das obras mais importantes do IV Centenário do Rio de
Janeiro. O espaço foi viabilizado pela demolição do morro de Santo Antônio e tornaria-se
um dos landmarks mais famosos da cidade, apresentado como o Central Park carioca, ba-
nhado pela baía de Guanabara, com vista para o morro do Pão de Açúcar.4 O Aterro conta
com 1.200.000 m² e em alguns locais com 220 metros de largura. As duas pistas que cruzam
o espaço tornaram-se uma das principais vias de acesso rodoviário entre o Centro e a Zona
Sul. A paisagem carioca passou por importantes transformações com o objetivo de ampliar
o espaço da cidade, viabilizar a circulação e valorizar regiões. Essa obra também remodelou
as praias do Flamengo e de Botafogo. Contudo, cabe ressaltar que o arrasamento do morro
de Santo Antônio e o aterramento da região foi iniciado no governo de Alim Pedro (1954-
1955), inclusive a enseada da Glória foi sede do XXXVI Congresso Eucarístico Internacional,
realizado entre 17 e 24 de julho de 1955, considerado como “o maior espetáculo de fé a que
assistiu o povo carioca”.5
A demolição do morro do Castelo, iniciada na década de 1920 para os festejos do Cen-
tenário da Independência, somente foi concluída em 1965, e assim a chamada Esplanada do
Castelo foi considerada também uma das obras do IV Centenário. Seus arranha-céus, onde

3 Entre 1963 e 1965, a Secretaria de Estado de Obras Públicas foi ocupada pelos engenheiros Enaldo Cravo Pei-
xoto e Marcos Tito Tamoyo da Silva. Este último foi o primeiro prefeito da cidade do Rio de Janeiro após a fusão
(1975) do estado da Guanabara com o estado do Rio de Janeiro.
4 O projeto paisagístico ficou a cargo de Burle Marx, que também foi o responsável pelo Parque do Ibirapuera em
São Paulo.
5 O Cruzeiro, 5 dez. 1964.

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outrora se abrigara o casario colonial, constituíam verdadeiro símbolo da metrópole moder-
na e da imagem que se pretendia para a cidade.
No jogo político, Lacerda transformou a Guanabara no bastião da democracia contra a
administração federal de João Goulart, considerada por ele como esquerdizante e simpática
às ideias comunistas. Foi ainda um dos articuladores civis do movimento que derrubou o
presidente e instaurou os militares no poder a partir de março de 1964, assim como da as-
censão de Castelo Branco como o primeiro presidente.
Nos primeiros dias de 1965, o presidente Castelo Branco recebeu o título de Cidadão
Honorário Carioca dado pela Assembleia Legislativa da Guanabara (Aleg). No seu discurso,
o presidente afirmou:

Capital do país durante dois séculos, e, portanto, ponto natural de convergência dos
filhos de outras regiões, assim como de estrangeiros também atraídos pela vossa con-
dição e as vossas belezas insuperáveis, acostumastes-vos a acolher uns e outros sem,
contudo, perder o espírito local. Soubestes ser, concomitantemente, nacional e cosmo-
polita. De fato, pelo espírito, pelo trabalho, pelas peculiaridades dos seus habitantes,
logrou a vossa cidade conservar aquele traço de orgulho nacional ao mesmo tempo em
que se mantém profundamente ciosa do seu próprio destino.6

O próprio Castelo Branco nasceu em Fortaleza, seguiu carreira na Escola Militar do Rea-
lengo, mantendo longo vínculo com a cidade. Ainda nessa mesma visita ao Rio, o presidente
visitou a obra da adutora do Guandu, em Bangu, uma das principais obras do governo Lacer-
da, e o Aterro do Flamengo. Contudo, Lacerda não teve o apoio esperado do governo federal
no regime militar. O governador retornou à oposição, função que desempenhou muito bem
ao longo de sua trajetória política, e levantou a bandeira da eleição presidencial direta o
quanto antes, pois afinal era um dos maiores interessados.
Lacerda, ciente da importância de seu governo na Guanabara para a cidade e para sua
trajetória política, vai aproveitar o IV Centenário e o fim de sua gestão para publicar o livro
Rio de Janeiro em seus quatrocentos anos. O volume, sob responsabilidade da Secretaria de
Obras da Guanabara, foi idealizado e organizado pelo engenheiro Fernando Nascimento Sil-
va, e contou com a colaboração de Gilberto Ferrez, Lúcio Costa, Mário Barata, entre outros.
Segundo o prefácio do secretário de Estado de Obras Públicas Enaldo Cravo Peixoto, o livro
teria por “finalidade fixar a história da evolução urbanística do Rio de Janeiro, ao mesmo
tempo em que se buscaria pôr em relevo os nomes daqueles que, nesses quatro séculos,
contribuíram para seu engrandecimento e progresso” (Silva, 1965, p. 13). Seguindo essa lógi-
ca, o artigo “O Rio de Janeiro à época do IV Centenário” enalteceu a trajetória do governador
Lacerda:

6 “Castelo Cidadão Carioca visita obras da Guanabara”. O Cruzeiro, 9 jan. 1965.

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A obra de seu governo que, tendo início no momento difícil, em que o Rio de Janeiro
perdia sua posição privilegiada de capital do país, soube elevar o novo estado no con-
ceito de todos brasileiro, atuando em todos os campos da Administração, resolvendo
velhos problemas da cidade, tornando melhor a vida de seus habitantes e provando a
capacidade de sobrevivência política e econômica do pequeno estado da Guanabara,
precisa ser apreciada como um todo para ser compreendida (Silva, 1965, p. 165).

O IV Centenário motivou a produção de variados souvenires, de capas de discos, a rea-


lização de eventos esportivos (como dois torneios de futebol realizados no Maracanã), de
eventos de moda, seminários e eventos acadêmicos, exposições, além de suscitar uma série
de suplementos e reportagens publicados em importantes veículos da imprensa nacional.
O mercado livreiro foi também impulsionado, valendo notar que os livros relacionados ao
evento trouxeram o logo idealizado pelo designer Aloísio Magalhães que se tornaria um dos
símbolos da comemoração. A Coleção Vieira Fazenda dirigida por Maciel Pinheiro, publicada
pela Livraria Brasiliana Editora, também deve ser citada, por publicar a quarta edição de His-
tória das ruas do Rio (1965), de Brasil Gerson, obra de referência sobre a cidade.
A temporada musical do ano do IV Centenário (França, 1966) foi um dos livros que merece
ser citado, pois contemplou as atrações do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, considerado
“o centro artístico por excelência do Rio” (França, 1966, p. 2). Houve incentivo do governo da
Guanabara para viabilizar a realização de grandes espetáculos, motivando a afirmação de
que “o Rio assumiu a aparência de centro importante de cultura da música” (França, 1966,
p. 169). A inauguração da temporada foi realizada no dia 9 de janeiro com O martírio de São
Sebastião, de D’Annunzio e Debussy. A grande presença do público confirmou 1965 como
um dos anos mais importantes para a instituição. Esse livro foi somente dedicado à progra-
mação do Teatro e deixou de fora a programação clássica de outros locais, assim como a da
música popular.
Outro aspecto importante das comemorações foi o desfile das escolas de samba. Ao lon-
go dos anos, o carnaval foi se constituindo como referencial da cultura carioca, alcançando,
em 1965, o reconhecimento de porta-voz das representações sobre o passado da cidade e as
perspectivas para o futuro, pois o governo da Guanabara determinou que todas as escolas
tivessem como tema o IV Centenário.
A efeméride foi importante momento de definição da identidade urbana. Durante o
mandato do governador Lacerda, foi criada a Secretaria de Turismo e a Superintendência
do IV Centenário da Cidade, ainda em 1963. Essa estratégia pretendia causar “aos olhos dos
turistas estrangeiros, e principalmente dos eleitores brasileiros, (que) a Guanabara deveria
aparecer como o principal mostruário do que o Brasil poderia vir a ser” (Motta, 2001, p. 237).
Foi justamente essa “dimensão celebrativa, ritualizadora, a que mais resplandece no concer-
to comemoracionista, faceta esta salientada pela historiografia das comemorações” (Arruda,
2001, p. 97).

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a produção intelectual e as comemorações do iv centenário do rio de janeiro

Eventos comemorativos tradicionalmente tornaram-se um momento oportuno para a


indústria livreira publicar diversos títulos específicos, porque “os livros editados nos contex-
tos comemorativos tentam mostrar através da história uma tradição, um passado na história
local e pátria, atualizando os temas pertinentes ao presente” (Oliveira, 1989, p. 184).
A histórica capitalidade cultural representada pela cidade do Rio de Janeiro deve-se
ao papel-chave que desempenhou e desempenha “como espaço de atração para intelec-
tuais vindos de várias partes do Brasil”. Diversos compositores, músicos e intérpretes, assim
como intelectuais, jornalistas, escritores, artistas plásticos, atores, dramaturgos, cineastas,
entre outros, vieram construir ou consolidar a carreira nesta urbe. Aqui viveram e teceram
suas redes de sociabilidade, pois ser carioca significava mais uma identidade simbólica, um
pertencimento sentimental, uma afinidade afetiva ou um registro territorial de nascimento.
Oriundos de outras regiões mantiveram vínculos com seus conterrâneos contribuindo com
articulações e divulgação de imagens dessa urbanidade (Gomes, 1999). Assim, o Rio foi o
local de conexões para várias manifestações artísticas e redes entre diversas esferas cultu-
rais locais, regionais, nacionais e internacionais. “Enquanto capital da República [e depois
como principal centro cultural], o Rio funcionaria como verdadeiro polo de atração dos mais
diferentes grupos que trariam, do restante do país, experiências culturais distintas” (Velloso,
1990, p. 208). O livro O Rio de Janeiro em prosa & verso resultou das representações dessas
produções artísticas e intelectuais, realizadas por aqueles que nasceram, ou viveram, que
passavam temporadas ou que simplesmente passavam pela cidade.
A Livraria José Olympio Editora publicou em 1965 a coleção Rio 4 Séculos, com subtítulo
“Contribuição às comemorações do 4º centenário de fundação da muito leal e heróica cida-
de de São Sebastião do Rio de Janeiro (1º de março – 1565-1965)”. Essa coleção foi elaborada
num “momento em que a cidade do Rio de Janeiro se redefine no contexto federativo e vê
reacender antigas disputas pela hegemonia nacional”, quando vários intelectuais ligados ao
Rio “investem na fixação do carioca como a síntese da brasilidade” (Mesquita, 2008, p. 58).
A própria nota introdutória da coleção se intitula “O IV Centenário da cidade-rainha” e
tinha por objetivo “apresentar uma série de publicações que fossem o testemunho de sua
gratidão à terra sob cuja sombra hospitaleira se desenvolveu” (Bandeira; Andrade, 1965, p.
XXI). Ainda nesse texto, foi rememorado que a Livraria e Editora, fundada em São Paulo, se
instalou na cidade no dia 3 de julho de 1934, na rua do Ouvidor, quase esquina com a ave-
nida Rio Branco.
Trata-se de uma coleção memorialística sobre o passado da cidade digno de ser lembra-
do para o presente e o futuro. Os dois primeiros volumes referem-se à Aparência do Rio de
Janeiro (notícia histórica e descritiva da cidade), de Gastão Cruls, com prefácio de Gilberto
Freyre e revisado por Hélio Vianna. Vivaldo Coaracy escreveu o terceiro volume da coleção,
Memórias da cidade do Rio de Janeiro, prefaciado por José Honório Rodrigues. O quarto vo-
lume, Paquetá – imagens de ontem e de hoje, teve prefácio de Rachel de Queiroz e o sexto
volume, O Rio de Janeiro no século 17, traz prefácio de Francisco de Assis Barbosa. O quinto

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volume da coleção, o livro O Rio de Janeiro em prosa & verso, foi organizado por Manuel Ban-
deira e Carlos Drummond de Andrade. Esses autores integraram a primeira linha do panteão
de personagens que viveram, trabalharam e mantiveram relações pessoais no Rio de Janeiro.
O contrato dos autores com a editora foi firmado no dia 27 de agosto de 1964. Previa
inicialmente uma tiragem de quatro mil exemplares, mais 150 para serem distribuídos como
publicidade para críticos e jornalistas do país e cinquenta para os organizadores. Bandeira
e Drummond receberam “um adiantamento de duzentos mil cruzeiros por ocasião do lan-
çamento do livro, importância essa que será deduzida da primeira prestação de contas”,7
além de 5% cada do preço vendido nas livrarias.8 As prestações de contas da editora para
Manuel Bandeira permitiram acompanhar a progressão de venda até outubro de 1967.9 Os
organizadores foram responsáveis pela revisão de provas, pelas alterações feitas nas provas,
e a importância cobrada pela tipografia seria deduzida dos direitos autorais. A parte material
e comercial ficou a cargo da Livraria José Olympio Editora S.A. Os originais foram “datilogra-
fados a dois espaços, de um só lado do papel” e os textos foram publicados com a ortografia
moderna. O contrato também previa o aumento da tiragem, caso o mercado permitisse.
O livro foi lançado no mês de fevereiro de 1965, por Cr$ 10.000 cada. Em julho de 1966,
tinham sido lançados nove mil exemplares, dos quais quinhentos foram distribuídos para
publicidade e aos organizadores e 5.500 haviam sido vendidos.10 Em setembro de 1967, res-
tavam 2.529 exemplares. Nessa época, o preço era NCr$ 12,00.11
A obra é uma “literatura de memórias – memória dos companheiros, memória dos es-
paços: as ruas, os bairros, o centro da cidade, as praias, os prédios, as lojas, os restaurantes
que desapareceram mas deixaram as suas marcas sobre as histórias de vida” (Szklo, 1995, p.
81-82). Contribuiu para preservar impressões sobre a cidade para o presente e o futuro que
não mais a reconhecem. A obra foi pensada como uma autêntica “antologia-reportagem” na
qual os autores reuniram o:

Mais expressivo ou característico (que) se escreveu, quer em prosa ou poesia, acerca da


vida citadina e da paisagem que a enobrece – de pessoas, hábitos, fatos e coisas que em
quatrocentos anos realizaram o milagre de uma tão amorável atmosfera urbana, criando
e aperfeiçoando com o passar do tempo o ser humano carioca, capaz de absorver e de-
cantar todos os resquícios provincianos, para se tornar a mais completa e talvez a mais
autêntica encarnação do povo brasileiro (Bandeira; Andrade, 1965, p. XXIII).

7 Fundação Casa Rui Barbosa. MB 06 336 DP Contratos (5).


8 O salário mínimo valia Cr$ 42.000. Disponível em: <http://www5.jfpr.jus.br/ncont/salariomin.pdf>. Acesso em: 12
abr. 2013.
9 Fundação Casa Rui Barbosa. MB 06 336 DP Contratos (5).
10 Idem.
11 O salário mínimo valia NCr$ 105,00. Disponível em: <http://www5.jfpr.jus.br/ncont/salariomin.pdf>. Acesso em:
12 abr. 2013.

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O conhecimento de Bandeira e Drummond sobre a produção bibliográfica que trata a ci-
dade tornou-se evidente pela variedade de autores e ângulos priorizados. Contudo, resultou
em uma escolha, um enquadramento que contribuiu para demarcar referências para a nação
e para o exterior. A cidade “como paisagem e como expressão humana pode ser realmente
considerada uma espécie de mostruário do Brasil” (Veríssimo, 1965, p. 71).
A atração despertada e o acolhimento oferecido a pessoas de todo lugar, desde o século
XVI, podem ser uma marca do Rio de Janeiro. Confirmando esse traço, vale lembrar que o
poeta Manuel Bandeira era pernambucano do Recife, o poeta Carlos Drummond de Andrade
era mineiro de Itabira e os editores eram paulistas de Batatais, mas na cidade esses intelec-
tuais se estabeleceram, criaram e consolidaram suas carreiras, se tornando “autênticos cario-
cas” que contaram e divulgaram a cidade em sua produção bibliográfica e editorial.
Os organizadores frisaram na apresentação que a obra seria “menos antologia do que
reportagem sobre a grande pessoa viva que é o Rio de Janeiro – reportagem de muitos
autores, explorando muitos temas, em quatro séculos de existência da cidade” (Bandeira;
Andrade, 1965, p. XLIV).
A história, a paisagem, os costumes e o “modo de ser” cariocas foram alguns dos temas
abordados por textos literários, letras de música e matérias jornalísticas, pois segundo os
próprios organizadores “a alma do Rio pousa em uns e outros escritos, e para captá-la na va-
riedade de suas expressões é indispensável dilatar o campo de visão e a curiosidade de ver”
(Bandeira; Andrade, 1965, p. XLIV).
Assim essa obra foi uma compilação de “flagrantes do Rio de hoje, de ontem e dos pri-
meiros tempos, colhidos pelo padre catequista, pelo viajante estrangeiro, pelo sociólogo,
pelos poetas, pelos cronistas do dia e da noite, por todos a quem seduziu a ideia de dar tes-
temunho do Rio, depois de lhes haver seduzido o gosto de viver no Rio” (Bandeira; Andrade,
1965, p. XLIV).
Algumas abordagens não privilegiaram apenas admiração pela cidade ou prazer por
nela viver, pois se falou “mal do Rio querendo bem ao Rio” (Bandeira; Andrade, 1965, p. XLIV).
Também sobre isso, os organizadores foram perspicazes ao afirmar as “feições não idílicas da
cidade, pois não se quer difundir a impressão de que este é o paraíso terrestre, e de que todos
os seus habitantes são anjos” (Bandeira; Andrade, 1965, p. XLIV).
A organização do volume procurou focar diversos ângulos da Guanabara, tanto aspectos
físicos (praias e montanhas), urbanos (bairros, ruas e construções), sociológicos, como hu-
mor, afetividade, religiosidade, sentimento orgiástico, vocação política, linguagem, quanto
a sociabilidade dos moradores nos meios de transportes, nos espaços de lazer, no carnaval
e no estádio.
Os textos foram apresentados na íntegra ou em fragmentos com títulos elencados pelos
organizadores, mas a referência bibliográfica completa está nas fontes. Os contos e roman-
ces dos ficcionistas ficaram de fora dessa coletânea devido à vastidão deste material, con-
tudo seus autores tiveram crônicas contempladas. Alguns escreveram especialmente para
essa publicação, como Sérgio Porto que escreveu “Vocábulos e expressões da gíria carioca
em uso no ano da graça de 1965”, integrante do tópico “O carioca inventa linguagem”. Sér-

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gio Porto considerava a grande importância do linguajar popular para a cidade (Mesquita,
2008). Na carta que escreveu para Drummond, em 29 de dezembro de 1964, desculpou-se
pela demora em enviar o material, e negociou que palavras deviam ser incluídas e que não
deviam ser cortadas.
O tópico “Rio, capital Rio” se refere à capitalidade carioca e à mudança da capital política.
O primeiro texto é de autoria de Machado de Assis, escrito em 1896, intitulado “No futuro,
o estado da Guanabara” (Assis, 1965, p. 497-499). O escritor carioca tece comentários sobre
as discussões na Câmara dos Deputados acerca do projeto de construção da nova capital
no planalto de Goiás, os discursos favoráveis ao papel de capital dado pelos “tempos e a
história” e o alegado perigo do cosmopolitismo da cidade. Ele lamentou a falta de oposição
dos cariocas à proposta, não expôs “o seu passado, nem o seu presente, nem o seu provável
futuro, não examinou se as capitais são ou não obras da história”. Concluiu que a cidade
achava “que não devia ser capital da União”, e frente a essa posição, Machado concordava
com a hipótese da transferência. Ainda segundo o escritor, o Rio ainda seria

A nossa Nova Iorque [...]. Não levarão daqui a nossa vasta baía, as nossas grandezas
naturais e industriais, a nossa rua do Ouvidor. Cá ficará o gigante de pedra, memória
da quadra romântica, a bela Tijuca, descrita por Alencar em uma carta célebre, a Lagoa
Rodrigo de Freitas, a enseada de Botafogo, se até lá não estiver aterrada, mas é possível
que não; salvo se alguma companhia quiser introduzir (com melhoramentos) os jogos
olímpicos, agora ressuscitados pela jovem Atenas... Também não levarão as companhias
líricas, os nossos trágicos italianos (Assis, 1965, p. 498).

A cidade manteria o status de urbe símbolo da nação, bem como os aspectos físicos que
a tornaram famosa, os locais de sociabilidade e as atividades culturais. As possíveis mudan-
ças da paisagem seriam motivadas por grandes eventos, vale lembrar que Machado escreveu
o texto no ano em que foi realizada a primeira Olimpíada da era moderna. Ainda imaginou
o impacto desse tipo de evento para o espaço urbano, uma possível ponte metálica ligando
o Rio à Niterói e a capital federal como capital dos fluminenses num estado chamado de
Guanabara.
O texto seguinte coube a Carlos Drummond de Andrade, escrito pouco antes da mudan-
ça da capital. O escritor mineiro afirmou: “Minha cidade do Rio,/ Meu castelo de água e sol,/
A dois meses de mudança/ Dos dirigentes de prol;/ Minha terra de nascença/ Terceira, pois
foi aqui,/ Em êxtase, alumbramento,/ Que o mar e seus mundos vi” (Andrade, 1965, p. 499).
Drummond reafirmou a cidade do Rio como local de pertencimento, onde descobriu
novos horizontes. Do espaço urbano, dos hábitos cariocas e dos moradores destacou as “fa-
velas portinarescas/ Onde o samba se arredonda”; o claustro de São Bento; o futebol carioca;
os bairros do Andaraí, Méier, Gávea e Tijuca; as ruas de Botafogo; o Cristo Redentor, o Pão de
Açúcar e o Jardim Botânico; assim como “minha igrejinha do Outeiro (da Glória),/ Que Ro-
drigo (Melo Franco de Andrade) zela tanto,/ E entre cujos azulejos/ Esvoaça o Espírito Santo”
(Andrade, 1965, p. 500).

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Vinícius de Moraes encerrou esse tópico com texto no qual se posicionou favoravelmen-
te à criação do estado da Guanabara. O poeta compositor defendeu a importância da desig-
nação carioca ao invés de “guanabarino ou guanabarense” para os naturais e habitantes da
cidade, pois

Um carioca que se preza nunca vai abdicar de sua cidadania. Ninguém é carioca em vão.
Um carioca é um carioca. Ele não pode ser nem um pernambucano, nem um mineiro,
nem um paulista, nem um baiano, nem um amazonense, nem um gaúcho. Enquanto
que, inversamente, qualquer uma dessas cidadanias, sem diminuição de capacidade,
pode transformar-se também em carioca; pois a verdade é que ser carioca é antes de
mais nada um estado de espírito. Eu tenho visto muito homem do Norte, Centro e Sul do
país acordar de repente carioca, porque se deixou envolver pelo clima da cidade e quan-
do foi ver... kaput! Aí não há mais nada a fazer. Quando o sujeito dá por si está torcendo
pelo Botafogo, está batendo samba em mesa de bar, está se arriscando no lotação a um
deslocamento de retina em cima de Nélson Rodrigues, Antônio Maria, Rubem Braga ou
Stanislaw Ponte Preta, está trabalhando em TV, está sintonizando para Elisete (Moraes,
1965, p. 501-502).

O carioquismo era e é “mais que ter nascido no Rio, é ter aderido à cidade e só se sentir
completamente em casa, em meio à sua adorável desorganização” (Moraes, 1965, p. 502).
Outras condições se colocam a essa cidadania, como ser notívago; trabalhar com olho no
“telefone, de onde sempre pode surgir um programa”; dar mais importância ao amor que ao
dinheiro e flanar pela cidade.

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Recebido em 28/11/2014
Aprovado em 19/1/2015

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o que era o trapiche?
o porto e a cidade do rio de janeiro no século xix
what was the “trapiche”?
the port and the city of rio de janeiro in the nineteenth century

Cezar Teixeira Honorato | Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Professor da Univer-
sidade Federal Fluminense.

Thiago Vinícius Mantuano | Pós-Graduando do curso de Mestrado no PPGH da Universidade Federal Fluminense.

resumo

Este artigo tem como objetivo clarificar o que foi uma das principais unidades de produção da
operação portuária no Rio de Janeiro durante o século XIX, o trapiche. Presentes até as primeiras
décadas do século XX, os trapiches se confundiam com a paisagem da região portuária, uma das
mais antigas da cidade.

Palavras-chave: Rio de Janeiro; trapiche; porto.

abstract

This article aims to elucidate what was a major production unit of port operations in Rio de Ja-
neiro during the nineteenth century, the “trapiche” [warehouse]. Present until the first decades of
the twentieth century, the “trapiches” were blended with the landscape of the port area, one of
the oldest in the city.

Keywords: Rio de Janeiro; warehouse; port.

resumen

El artículo tiene por objeto aclarar lo que era una de las unidades de producción más importantes
en la operación portuária en Río de Janeiro durante el siglo XIX, lo “trapiche” [almacén]. Presente
hasta las primeras décadas del siglo XX, los “trapiches” estaban confundidos con el paisaje de la
zona del puerto, una de las más antiguas de la ciudad.

Palabras clave: Rio de Janeiro; almacén; puerto.

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introdução

Todos os que têm se dedicado a estudar o porto do Rio de Janeiro ao longo do século XIX
deparam-se com a questão dos trapiches. O que era um trapiche? Qual a sua participação na
operação portuária, no Rio de Janeiro? Onde se localizavam e quantas unidades existiam?
Buscar responder a estas perguntas é um dos objetivos do presente artigo, pois, embora
pareçam simples de serem respondidas, vêm exigindo uma verdadeira garimpagem em di-
versos arquivos e fontes de informação.
A cidade do Rio de Janeiro surge a partir da sua baía, como um porto, graças, em grande
medida, às suas especificidades físicas. Afinal, era demanda fundamental para a navegação
colonial haver um sítio abrigado. No século XVI, uma área litorânea com possibilidade de
atracação, e que não sofria grandes intempéries da natureza, era a garantia de um bom em-
barque e desembarque de mercadorias. O litoral do Rio de Janeiro se adequava a este fim
por ser uma hinterlândia com grande número de pequenas baías, arrecifes, enseadas e ilhas
próximas, protegido de ventos fortes e das grandes vagas marítimas.
Devido a suas características, o recôncavo guanabarino tornou-se também centro de
produção e distribuição de mercadorias, especialmente escravos, para os “sertões de dentro”.
A expansão da mineração e do comércio de escravos ao longo do século XVIII transformou
o Rio de Janeiro em porto fundamental da colônia, como área de abastecimento e de pro-
visões para as viagens de longo curso (alimentos, água etc.) e de carregamento do retorno
de frete (açúcar, ouro e pedras preciosas, por exemplo). Mais ainda, a historiografia constata,
mesmo que de forma controversa, o desenvolvimento de um grupo de negociantes que se
enriquecia no controle destas atividades (Piñeiro, 2002; Fragoso, 1992).
A chegada da Corte ao Rio de Janeiro em 1808 fez com o que o principal sítio que funcio-
nava como porto, o atracadouro em frente ao Paço Imperial na atual praça XV de Novembro,
ficasse saturado frente à nova movimentação de embarcações, mercadorias e pessoas, ao
mesmo tempo em que a expansão de vários trapiches e atracadouros em toda a baía dificul-
tava o controle por parte das autoridades, em especial o trabalho de alfandegagem. Dessa
forma, “obras se tornavam necessárias no Rio de Janeiro, sede da Corte e centro comercial,
para a construção de porto capaz de atender aos novos reclamos. Para isso, o príncipe re-
gente d. João mandou demarcar terrenos nas praias da Gamboa e Saco dos Alferes para a
construção e armazéns de trapiches” (Honorato, 1996, p. 72).
Essas unidades deveriam ser construídas por quem tivesse, em menor tempo, os recur-
sos para tal e poderiam ser alfandegadas, com a permissão para operar exportação e impor-
tação.
A área definida pelo príncipe regente compreendia as freguesias de Santa Rita e Santa-
na, sendo estendida a São Cristovão,1 atuais bairros da Saúde, Gamboa, Santo Cristo, Caju e

1 Santa Rita fora criada em 1721, desmembrada da Candelária; Santana, que fora desmembrada de Santa Rita, foi
criada em 1814; e São Cristovão fora criada em 1856, sendo desmembrada do Engenho Velho.

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São Cristovão, que até então se destacavam, principalmente a primeira, como área do tráfico
e alojamento de escravos. Em pouco tempo a região foi ocupada pelas “mais importantes
casas comerciais, muitos trapiches e estaleiros” (Lobo, 1978, p. 237), relacionadas direta ou
indiretamente à atividade portuária formando assim uma comunidade econômica portuária
(Mantuano; Honorato, 2014). Nesse sentido, a evolução urbana do Rio de Janeiro foi afetada
e, durante o transcorrer do século XIX, a maior parte do embarque e desembarque de merca-
dorias passou a ser feita nessa região e não mais na central, tendo assim um porto contíguo
ao centro (Abreu, 2000). Ainda assim, durante todo o nosso recorte, a região central conti-
nuou recebendo o desembarque de pescado, alguns produtos de abastecimento (como os
hortifrutigranjeiros) e passageiros no cais Pharoux, até a construção do cais da Imperatriz em
meados do século.

características gerais e constituição física dos trapiches

Ao compulsarmos a bibliografia acerca do tema constatamos uma escassez de informa-


ções coerentes sobre o número de trapiches, como operavam, como eram geridos enquanto
negócio e as próprias características do seu processo de trabalho. Se encontramos algumas
referências acerca das características físicas dos trapiches, poucas referências o situam como
uma das unidades da operação portuária de antigo tipo (Lamarão, 1991; Benchimol, 1990;
Vellasco e Cruz, 1998).
Temos como elemento primacial para o entendimento deste, na tentativa de caracterizar
o nosso objeto, uma questão que necessita ser dita para os não especialistas: todo trapiche
tinha de ter acesso direto ao mar, rio ou canal, em um trecho acostável, o que fora consa-
grado na legislação como terras de marinha (Honorato, 1996). A principal necessidade para a
operação dos trapiches era conjugar estruturas que permitiam o embarque e desembarque
de mercadorias, sua função precípua, com outras que forneciam armazenagem, guarda e
proteção.
Os trapiches contavam com armazém, pátio e/ou telheiros mal integrados às pontes ou
a pequenos cais. Os produtos que lá desembarcavam deveriam ficar o menor tempo possí-
vel, pois os custos de sua armazenagem eram altos e as condições extremamente precárias,
como afirma Lamarão: “Os serviços então prestados deixavam muito a desejar. Os trapiches,
que ocupavam longos trechos do litoral, ofereciam transporte e armazenagem do tipo mais
primitivo” (Lamarão, 1991, p. 140). A principal razão de ser do trapiche era a circulação, em-
barque e desembarque de produtos e alfandegagem, não sendo a armazenagem a atividade
mais importante.
Muitos trapiches tinham toda a sua estrutura em madeira, embora houvesse alguns com
armazéns de alvenaria e telheiros de metal, com melhor infraestrutura, e por isso conseguiam
permissão para alfandegagem. A disparidade em termos de infraestrutura e os interesses par-
ticulares tornavam improvável uma integração mais ou menos racionalizada entre eles.
Os modernos vapores e os grandes veleiros não acostavam nos trapiches (isso ocorria
no Rio de Janeiro e se repetia em toda a costa brasileira, notadamente em Santos) por duas

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razões principais: pelo baixo calado que a sua atracação permitia, ou seja, a profundidade de
embarcações com grande lastro não era compatível com as pontes ou pequenos cais ofere-
cidos pelos trapiches; e tinham restrito espaço acostável, pois suas pontes e cais possuíam
pequena extensão. Isso se devia ao grande número de unidades, sua concentração e, no fim
do século XIX, às outras estruturas criadas com os projetos de melhoramentos portuários,
que passaram a ocupar considerável espaço acostável.
Para demonstrar que a realidade dos trapiches não se restringia ao Rio de Janeiro, e
marcava a operação portuária brasileira desde o período colonial, registremos o comen-
tário de Gitahy acerca do porto de Santos: “as embarcações de alto mar ficavam a mais de
cem metros dos velhos trapiches, ligados a eles por simples pontes de madeira ” (Gitahy,
1992, p. 24).

o trapiche em perspectiva

O presente artigo objetiva avançar na possibilidade de entendimento da operação por-


tuária no Rio de Janeiro, tendo como enfoque principal a questão dos trapiches em três
perspectivas: o negócio, a operação portuária e o seu funcionamento.
Antes, é necessário entender a posição central deste equipamento para a operação por-
tuária brasileira. O que na época se considerava um porto não passava de um conjunto mal
articulado e mal construído de trapiches de madeira onde encostavam pequenas embarca-
ções que levavam as cargas destinadas aos navios que, por sua vez, permaneciam fundeados
ao largo, em profundidade precavida do movimento das marés (Honorato, 1996).
Na perspectiva do negócio, em trabalho recente demonstrou-se que além de pequenas
e médias empresas, algumas grandes foram proprietárias de trapiches para serviço privativo
ou como mais um dos seus rentáveis negócios:

uma certa solidez das principais firmas que tinham trapiches e sobreviveram a essas
duas crises, atravessando as duas primeiras décadas do nosso recorte, como a Wilson,
Sons & C., a Companhia Docas de Pedro II (que durante sete anos da virada da década de
1870 até meados da década de 1880, chegou a ter três trapiches), as das famílias Lage,
Moss, Cardia e Freitas (Honorato; Mantuano, 2013, p. 9).

A gestão dos trapiches poderia ser conduzida de três formas: a) pelo próprio proprietá-
rio, e isso se dava, majoritariamente, nos casos de pequenas unidades, em especial os que
tratavam de abastecimento da cidade; b) por um administrador especializado contratado
pela empresa, e isso se dava recorrentemente quando o trapiche era uma das unidades de
grandes empresas; c) e através do arrendamento, quando os proprietários transferiam a em-
presas menores a operacionalização do negócio.
Podemos comprovar que essa última opção perdeu força durante a década de 1880,
principalmente devido à crescente importância estratégica das grandes firmas estarem pre-
sente diretamente no porto do Rio de Janeiro.

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Considerando a série por nós trabalhada, tendo como referência os trapiches que são
relacionados no Almanak Laemmert, podemos perceber o aumento do número total de uni-
dades e a diminuição daqueles que eram arrendados. Em realidade, o arrendamento dos
trapiches era mais comum no momento em que os proprietários tinham interesse apenas
em sua exploração comercial.

Gráfico 1 – Trapiches arrendados

Fonte: Almanak administrativo, mercantil e industrial da Corte e província do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tipografia
Laemmert, 1870-1902.

Como demonstrado no gráfico acima, a partir da década de 1870 o interesse estraté-


gico na gestão direta (mesmo possuindo um administrador contratado) dessa unidade de
produção cresceu, assim como a sua rentabilidade, exatamente quando o número total de
trapiches também cresceu, pois o bom funcionamento do porto do Rio de Janeiro passou a
depender mais ainda do conjunto de trapiches. As empresas que possuíssem unidade trapi-
cheira tinham a grande vantagem do acesso direto ao serviço portuário mais concorrido e
caro de toda a operação portuária, portanto não faria sentido aliená-lo a outros interessados.
Ao compararmos com outras fontes, especialmente as da Junta Comercial, podemos
perceber que durante todo o século XIX os trapiches foram de propriedade diversa e inde-
pendentes entre si. As empresas proprietárias diferiam no tamanho e as disparidades são
perceptíveis na documentação. Tomemos como exemplo o trapiche do Carvalho, situado na
rua da Saúde (ocupando dois lotes) e de propriedade da empresa José Antônio de Carvalho
& C. (gerida pelo próprio e por José Ribeiro Freitas, que também era sócio solidário). A em-
presa contava com um capital social de 30:000$000 em 1870, sendo que quase metade des-
te era correspondente a “7 escravos, móveis e utensílios no Trapiche e no escritório”.2 Essas
diferenças tornam-se expressivas quando constatamos que o negócio de Carvalho e Freitas

2 Brasil. Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Junta Comercial. Livro 638, registro 9.172. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional.

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convivia com um gigante como a Antônio Martins Lage & Filho, operando na mesma ativida-
de, tendo o seu capital social fixado em 400:000$000 e ocupando toda a ilha das Enxadas.3
Podemos inferir o quão lucrativa era a atividade de exploração de trapiches, percebendo
a evolução do capital das empresas que tinham no trapiche uma de suas atividades mais
importantes, olhando, por exemplo, para a dissolução da sociedade de Antônio Martins Lage
& Filho.4 Como já vimos, essa grande empresa registrou um capital social de quatrocentos
contos de réis em 1873, e menos de dez anos depois foi desfeita a sociedade por Antônio
Martins Lage e seu próprio filho, em 1882. No contrato de dissolução firmado e registrado na
Junta Comercial, o principal sócio se retirava da empresa com o total de mil contos de réis
compostos de capital e lucros, em bens (terrenos, edifícios, ações etc.) e valores. Ainda assim,
restava para a fundação de uma nova firma (que seria a Lage Irmãos5) um saldo positivo de
trezentos contos de réis, entre ativos e passivos.
A conclusão é nítida: em menos de uma década os Lage deram um poderoso salto com
a sua empresa em mais de três vezes o valor do seu capital inicial. Para efeito de compara-
ção, considerado o maior empreendimento portuário da cidade, a Docas de Pedro II previa
em seus cinco primeiros anos de atividade uma taxa de lucro de 9% ao ano com relação ao
capital inicialmente empregado (Rebouças, 1871). Ou seja, respeitadas as dimensões dos
negócios, a Docas de Pedro II jamais atingiria a taxa de lucratividade de uma empresa que
explorava serviços portuários (principalmente o trapiche), como a dos Lage.
Podemos concluir também, que o capital social das empresas detentoras de trapiche
era, em geral, composto por recursos dos seus proprietários (como desde a regularização da
atividade pelo príncipe regente), principalmente vindo da esfera da circulação, e por coman-
ditários, como no caso da Meirelles & C., que passou a administrar o antigo Trapiche Leonida.
Entretanto, existem casos especiais de empresas que devem ser examinadas mais de-
tidamente por concentrarem vários trapiches sob sua propriedade. Mais ainda, as fontes
nos sugerem a presença do capital financeiro, nacional e internacional, empregado nas
atividades envolvidas direta ou indiretamente com a operação portuária e de transporte
marítimo.
Muitas dessas empresas são sociedades anônimas, como

[...] a Companhia Brazil Oriental e Diques Flutuantes que adquiriu o Trapiche Carvalho
da tradicional família Freitas; do Lloyd Brasileiro, que chegou a ser proprietário de três
trapiches; da Companhia União de Trapiches, que chegará a ter cinco trapiches, dentre
eles os tradicionais Trapiche da Saúde e do Vapor; a Companhia Geral das Estradas de

3 Brasil. Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Junta Comercial. Livro 652, registro n. 12.184. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional.
4 Brasil. Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Junta Comercial. Livro 131, registro n. 24.009. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional.
5 Brasil. Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Junta Comercial. Livro 130, registro n. 23.984. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional.

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Ferro, que assumiu a estrutura da Docas de Pedro II (que passou a ser Docas Nacionais) até
1894, quando assume a Empresa Industrial de Melhoramentos no Brasil; a Companhia de
Aguardente; a Belmiro, Rodrigues & C., proprietária do Trapiche do Lazareto na Gamboa,
ocupando quatro endereços; e a Sá, Guimarães & C. (Mantuano; Honorato, 2013, p. 10).

Os dados quantitativos de trapiches que dispomos conseguem dar conta da maioria das
unidades que existiam pela região portuária do Rio de Janeiro, mas não de todas. As nossas
fontes omitem a maioria dos trapiches que atuavam privativamente (ou seja, serviam apenas
para o serviço da empresa detentora e não estavam “abertos ao público”), como o Trapiche
Soares Lopes. Também podemos considerar que havia trapiches irregulares ou clandestinos.
Exatamente por tais razões podemos supor que, para além do grande número de trapiches
que apontamos, existiam muitos outros instalados no recôncavo guanabarino.6
Devemos entender o trapiche também na perspectiva da operação portuária, e para isso
é preciso observar que as unidades apenas poderiam funcionar mediante aforamento, con-
cedido pela Câmara Municipal sem critérios estabelecidos previamente.
Nessa operação, o trapiche dependia de várias outras atividades, que conjuntamente
integravam a operação portuária pré-capitalista do porto do Rio de Janeiro durante o oito-
centos (Mantuano; Honorato, 2014). Convém realçar que os agentes e empresas responsá-
veis pelas diversas atividades mal se comunicavam ou conjugavam seus fins, pelo contrário,
constantemente conflitavam-se.

Gráfico 2 – Empresas de transporte marítimo

Fonte: Almanak administrativo, mercantil e industrial da Corte e província do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tipografia
Laemmert, 1870-1900.

6 Em Niterói, em especial, e ao longo dos rios que deságuam na baía.

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Os transportes marítimos (que incluíam a cabotagem, o transporte de passageiros e o cur-
to tráfego de carga entre as embarcações de longo curso e a costa), os trapiches, os carroceiros,
os armazéns, as companhias de seguros marítimos, as casas de importação e exportação, as
casas comissárias e os terminais ferroviários eram geridos por agentes particulares diferentes,
sem articulação ou controle, e que muitas vezes atuavam em mais de uma dessas atividades.
Antes de abordarmos o gráfico, temos de clarificar o papel dessas empresas. As empre-
sas de transporte marítimo na Guanabara se ocupavam do translado entre as embarcações
fundeadas ao largo e os trapiches ou cais na orla. Algumas delas ainda atravessavam a baía
de um lado a outro do recôncavo ou faziam fretes na orla entre as freguesias centrais e por-
tuárias. Essas pequenas embarcações carregavam mercadorias e passageiros.
O gráfico 2 demonstra o crescimento exponencial da atividade de transporte marítimo
ao final da década de 1870, com a entrada de novas empresas no negócio antes operado
apenas pela Companhia de Transportes Marítimos e Saveiros. Entre as empresas que pas-
saram a fazer esse serviço, podemos apontar duas que também operavam com trapiches: a
partir de 1876 a E. P. Wilson (que daria lugar a Wilson, Sons & C.); e a partir de 1877 a Antônio
Martins Lage & Filho. Essas empresas, além de competir entre si, em uma ou mais atividades,
ainda passaram a concorrer com as empresas que geriam as estruturas dos projetos de me-
lhoramentos portuários.
Outro aspecto decisivo para aferirmos o tamanho e importância do trapiche é a permis-
são de alfandegagem definida a partir de 1860 no Regulamento das Alfândegas e Mesas de
Renda (Brasil, 1860). Convém antes debatermos o que compreendemos como alfandega-
mento. O processo de alfandegagem consiste no recebimento, fiscalização, aferição e aufe-
rição de mercadorias que são taxadas com obrigações pelo governo. No geral, são merca-
dorias de importação e exportação ou de grande importância para a sobrevivência de certa
sociedade.
No Brasil, desde a chegada da Corte, o processo de alfandegagem se viu extremamente
limitado, em termos de sua infraestrutura física e de preparo dos funcionários da Alfândega
(Luccock, 1942). A necessidade de obter recursos através da alfândega fica patente na Aber-
tura dos portos às nações amigas (Brasil, 1808), procedida pelo príncipe regente. O comércio
internacional ganhou outra escala e o processo de alfandegagem sofreu lenta descentraliza-
ção física durante o século XIX.
Logo em 1808, o Trapiche da Cidade7 pôde servir como depósito temporário de produ-
tos que ainda deveriam ser alfandegados. Essa permissão se estendeu a outros e a política de
permissões pontuais foi mantida até o supracitado regulamento de 1860, que não só definiu
regras mais claras, como regulamentou a possibilidade do processo de alfandegagem ocor-
rer nos próprios trapiches (Vellasco e Cruz, 1999).
Importa notar que a maioria dos trapiches não era alfandegada. Para conseguir essa
permissão era necessário cumprir uma série de requisitos e vencer um longo processo em

7 De posse e administração da Câmara Municipal do Rio de Janeiro.

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vários órgãos para que, por fim, a alfandegagem fosse obtida junto ao Ministério da Fazenda
e mais:

O alfandegamento de um trapiche tinha, no entanto, consequências que não podem ser


ignoradas. Pressupunha, em primeiro lugar, a aceitação da constante interferência fis-
calizadora do Estado, pois, uma vez alfandegado, o trapiche adquiria o status de arma-
zém externo aduaneiro e ficava sob jurisdição das autoridades alfandegárias (Vellasco
e Cruz, 1999, p. 11).

O programa de melhoramentos dos portos de 1869 apontou como política do Império


grandes obras de melhoramento dos portos, e não a manutenção dos trapiches (Honora-
to, 1996). Ao contrário, procurava dotar a costa brasileira de unidades e equipamentos que
substituíssem os trapiches.
Em realidade, o que constatamos no caso do Rio de Janeiro é a proliferação das unidades
trapicheiras após o decreto de 1869, por três razões básicas: o Brasil estava sofrendo o pro-
cesso de inserção na mundialização da economia capitalista e na nova divisão internacional
do trabalho; a maior parte dos projetos para melhoramentos dos portos brasileiros – no ge-
ral eram propostas de docas, como as da Inglaterra – fracassaram, no caso do Rio de Janeiro,
notadamente, a Docas de Pedro II; e apesar do constante endurecimento da legislação para
alfandegagem dos trapiches, os empresários também empreendiam obras para melhora-
mentos das arcaicas estruturas trapicheiras.

Gráfico 3 – Trapiches alfandegados no Rio de Janeiro

Fonte: Almanak administrativo, mercantil e industrial da Corte e província do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tipografia
Laemmert, 1870-1904.

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Não cabe neste artigo aprofundarmos a análise da evolução quantitativa dos trapiches.
Mas, utilizamos o gráfico 3 na tentativa de entendermos a diminuição do número de trapi-
ches alfandegados nos meados das décadas de 1870 e 1880, justamente quando o número
total de trapiches mais crescia.
O fato é que, mesmo não tendo o sucesso que o Império pretendia, os projetos de me-
lhoramentos garantiram algum serviço de alfandegagem, o que pôde tornar um pouco mais
restrito o alfandegamento dos trapiches. Não é demais lembrarmos também do novo recru-
descimento das regras para alfandegamento com a Consolidação das Leis das Alfândegas e
Mesas de Renda de 18858 e o seu similar republicano em 1894, quando dividiu as alfandega-
gens em oito tabelas nas quais os trapiches poderiam alfandegar apenas em duas.9
O funcionamento desse complexo era absolutamente caótico. As suas unidades eram
mal articuladas, não só as que desempenhavam papéis diferentes, como as análogas. Não
era raro o conflito entre proprietários de trapiches vizinhos que concorriam não só pela
movimentação, como pela extensão de suas pontes ou acesso à rua. Em suma, não havia
qualquer coordenação entre as diversas unidades da operação portuária; era oferecida uma
péssima integração com os modernos meios de transportes, comunicação e maquinário en-
tre as suas unidades e as demais atividades da comunidade econômica portuária, além da
frágil relação com a própria cidade como mercado consumidor e redistribuidor. O controle
era absolutamente ineficiente, pois alfandegavam-se armazéns e, sobretudo, trapiches, mas
a alfândega tinha precárias condições de fiscalização.
Esse quadro se devia pela falta de uma autoridade portuária com maiores competências.
A Capitania dos Portos atuava como polícia naval, além de cuidar apenas de registrar os tra-
balhadores embarcados e da segurança marítima (Brasil, 1945). Muito longe do que Suaréz
Bosa (2003) caracteriza como uma autoridade portuária.
O fato do porto e a cidade estarem amalgamados piorava essa situação. A corrupção dos
agentes da alfândega, o contrabando e a insalubridade foram assunto corrente e estavam
presentes nos mais diversos relatórios produzidos sobre o porto do Rio de Janeiro (De Los
Rios Filho, 2000).
Não existia qualquer grau de uniformidade de estruturas, processo de trabalho ou entre
as empresas proprietárias das mais diversas unidades na operação portuária de tipo antigo.
No que se referem aos trapiches, as disparidades de infraestrutura entre as unidades são
palpáveis na documentação.
Podemos entender melhor esse precário funcionamento pela conclusão de que o espaço
que tinham (principalmente no que concerne à sua faixa de costa disponível) era extrema-
mente limitado, visto que a grande maioria deles – até as reformas Rodrigues Alves, quando

8 Brasil. Ministério da Fazenda. Consolidação das leis das Alfândegas e Mesas de Rendas. Rio de Janeiro: Tipogra-
fia Nacional, 1885.
9 Brasil. Ministério da Fazenda. Regulamento das Alfândegas e Mesas de Rendas. Rio de Janeiro: Tipografia Nacio-
nal, 1894.

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foi construído no Rio de Janeiro o porto moderno que conhecemos hoje – estava amontoada
na rua da Saúde, como podemos ver no gráfico 4.

Gráfico 4 – Concentração dos trapiches

Fonte: Almanak administrativo, mercantil e industrial da Corte e província do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tipo-
grafia Laemmert, 1870-1902.

Desde o começo do século XIX, os trapiches se espraiavam primacialmente na orla da


Saúde. Isto se dava por ser essa a freguesia mais próxima da alfândega e das freguesias
centrais. Segundo o negociante inglês John Luccock, vários desses trapiches na Saúde pas-
saram a ser utilizados como depósitos de cargas de exportação e importação, após o devido
processo de alfandegamento. São eles: o Trapiche do Sal, o Trapiche do Colhete, o Trapiche
da Ordem e o Trapiche da Saúde (em ordem de proximidade com o morro de São Bento).
Segundo o viajante, anteriormente à chegada da Corte, alguns já funcionavam desembar-
cando e armazenando produtos de abastecimento da cidade (que não necessitavam de al-
fandegagem) (Luccock, 1942).
Luccock nos esclarece também que a ocupação feita pelos trapiches na freguesia de
Santana ocorreu desde o começo do século, mas a distância da enseada da Gamboa frente
ao local tradicional de ancoramento das embarcações e das freguesias centrais não a torna-
va atraente naquele momento. Dessa forma, a ponta da Chichorra (local de divisão entre as
freguesias de Santa Rita e Santana), a enseada da Gamboa e a praia dos Alferes foram mais
intensamente ocupadas pelos trapiches a partir da década de 1850, coadunando-se com a
expansão habitacional e dos negócios na freguesia (Mantuano; Honorato, 2014).
O mesmo ocorreu com as ilhas na orla da região portuária, que também foram ocupadas
desde os primeiros tempos da Corte no Rio de Janeiro, mas os inconvenientes naturais fize-
ram com que sua plena utilização como trapiches só se desse mais tardiamente. Falamos de
três especificamente: a ilha de Mocanguê, a ilha dos Melões e a ilha Seca. Constitui exceção

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a ilha das Enxadas, utilizada pelos armadores portugueses da família Lage desde 1825 (Cam-
pello Ribeiro, 2007).
Se nos atermos ao Almanak Laemmert, poderíamos concluir que a presença dos trapi-
ches na freguesia de Santana foi residual até a década de 1890, assim como em São Cristo-
vão, que nem sequer consta nos registros da referida fonte. Porém, temos indícios de que a
ocupação de trapiches privativos10 nessas áreas era mais intensa. Os trapiches Aspinall, Flora
e Norte América, todos situados na rua da Gamboa, não constam no Almanak Laemmert,
mas fizeram petições à Câmara Municipal antes do brusco aumento de unidades na fregue-
sia de Santana.11 Assim como em São Cristovão, quando a Societé Anonyme du Gaz do Rio
de Janeiro informa à mesma câmara que adquiriu um antigo trapiche na praia do Retiro
Saudoso e pede permissões diversas para o seu funcionamento.12
Analisando mais detidamente o gráfico, percebe-se que a grande mudança ocorrida ao
final do Império tem essencialmente duas razões: a primeira é o programa de melhoramen-
tos dos portos, previsto em lei e incentivado desde a década anterior, que passa a ser efetiva-
do. Nesse momento, unidades de outro tipo como a Docas da Alfândega, a Docas de Pedro II,
o Dique da Saúde, o Moinho Inglês, o Moinho Fluminense e a Estação Marítima da Gamboa,
assim como outros trapiches em expansão e reformas, ocuparam maiores espaços e fizeram
com que o número de unidades diminuísse. A segunda mudança reflete a busca por novos
espaços, tanto como desdobramento da primeira razão, quanto na medida em que o mo-
vimento do porto do Rio de Janeiro fica mais intenso. A partir da década de 1880, surge a
necessidade de se incorporar novas áreas, como São Cristovão e Caju.
No caso já explorado do Trapiche Carvalho, comprovamos que os escravos faziam parte
do capital imobilizado nos trapiches, e isso se repete em uma sociedade anônima, a Compa-
nhia Oficinas de Mecânica Industrial, que foi incorporada com 26 escravos trabalhando em
sua oficina na ponta da Chichorra e tinha como objetivo construir um trapiche.13
Temos indícios que durante o decorrer do século o número de escravos de ganho e tra-
balhadores livres cresce (poucos destes eram assalariados e a maioria era de ex-escravos). A
relação entre este fato e a queda proporcional do número de escravos no imobilizado das
empresas possuidoras de trapiches é direta, o que pode ter mudado sensivelmente essa
proporção da força de trabalho no porto do Rio de Janeiro.
Ainda não alcançamos esta comprovação empírica, mas Vellasco e Cruz nos oferece um
caminho:

10 Trapiches privativos são os que estavam a serviço apenas de sua empresa proprietária, não abertos a negócios
com outros interessados, portanto não necessitavam de publicidade.
11 Rio de Janeiro (cidade). Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Trapiches (licenças). Livro: 50.3.16. Rio de Janeiro:
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.
12 Rio de Janeiro (cidade). Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Trapiches (licenças). Livro: 50.3.16. Rio de Janeiro:
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.
13 Brasil. Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Junta Comercial. Livro 15, registro n. 2.003. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional.

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[...] a organização e a plasticidade do sistema marcam profundamente a vida dos carre-
gadores e estivadores, desenhando o mercado de trabalho, as relações de emprego e os
recortes internos da classe operária que surge no porto durante o oitocentos e chega
ao século XX em muitos aspectos preservada. Esse resultado aparentemente paradoxal
tem, contudo, uma explicação. É que entre os escravos de ganho e os trabalhadores
livres avulsos há continuidades insuspeitas e relacionadas precisamente às característi-
cas analisadas do complexo portuário (Vellasco e Cruz, 1999, p. 18).

conclusão

Podemos concluir que os trapiches foram unidades essenciais para o funcionamento da


operação portuária no Rio de Janeiro do século XIX, ademais notamos que essas estruturas
são típicas da formação econômico-social do Brasil durante o período.
Ao longo deste artigo, buscamos entender melhor o que era um trapiche, como funcio-
nava, como era gerido e operado dentro da complexa rede portuária pré-capitalista. Não
pretendemos esgotar o tema, visto que se trata de um trabalho em vias de resultar numa
produção de maior fôlego.
Em nossos esforços por um melhor entendimento da operação portuária do Rio de Ja-
neiro do século XIX, saber que os trapiches se constituíam fisicamente de forma muito simi-
lar aos tempos de colônia é extremamente importante. A historiografia nos legou algumas
bases para essa pesquisa, mas consideramos que aprofundamos o conhecimento a respeito
dessa parte importante da história do Rio de Janeiro.
Consideramos ter deixado claro sua principal função: o embarque e desembarque de
mercadorias, o que dependia de sua caraterística central: estar em terras de marinha. Além
disso, explicitamos a complexidade das redes de empresas que atuavam com trapiches e
outros serviços portuários. Foi importante notar como os trapiches poderiam operar, na
complementariedade conflitiva com outras unidades e atividades, além de sua maior valia
pública: ter a possibilidade de alfandegagem. Consideramos ainda ter caracterizado o caos
que era o funcionamento do conjunto das unidades trapicheiras e deixamos claro a principal
razão para tal: a falta de uma autoridade portuária que tivesse prerrogativas para organiza-
ção do complexo.
O conjunto de trapiches na região portuária marcou para sempre a história do local. Sua
relação com a escravidão, a imigração e os bolsões de pobreza que caracterizavam a área
contrastou com as ricas casas comerciais, as modernas indústrias e uma abundância de ma-
terial que passava caoticamente pelo conjunto de dezenas das unidades trapicheiras.
Temos desafios, notadamente nas questões sobre a força de trabalho, sobre a atuação
do capital financeiro e a respeito da evolução das regras de alfandegagem. Nossas fontes
ainda carecem de totalização, de serem abordadas e questionadas com maior profundidade
e complexidade, o que não se trata de um trabalho simples pela vasta documentação que
mobilizamos.

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Neste momento de profundas mudanças e reformulações da região portuária do Rio de
Janeiro, que muitas vezes não fazem jus ao valor histórico, social, cultural, material e ima-
terial daquela parte da cidade, é necessário reafirmar que a intensa atividade (econômica,
social, política e cultural) nos bairros da Saúde, Gamboa, Santo Cristo, Caju e São Cristovão
não deixou de existir em boa parte desses 450 anos, especialmente do século XIX em diante.
Porém, nem sempre nas melhores condições, como no relato de João do Rio: “Porque foi
sempre má, porque foi sempre ali o aljube, ali padeceram os negros dos três primeiros trapi-
ches do sal, porque também ali a força espalhou a morte!” (Rio, 1908, p. 5).

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Recebido em 30/11/2014
Aprovado em 21/1/2015

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a fundação do rio de janeiro na ocupação régia do espaço vicentino
the foundation of rio de janeiro in the royal occupation of the
vicentino space

Renato Pereira Brandão | Bacharel em Arqueologia pela Unesa. Mestre em História da Arte pela UFRJ. Doutor
em História pela UFF. Pesquisador colaborador e vice-coordenador do Laboratório de Estudos Socioantropológicos
sobre o Conhecimento e a Natureza (Lesco) da Universidade Federal Fluminense (UFF).

resumo

Objetivamos demonstrar que a fundação da “vila” de São Sebastião do Rio de Janeiro por Es-
tácio de Sá expressa uma anomalia às normas administrativas da Coroa referentes aos direitos
donatários e caracterização dos espaços urbanos. Discutimos, à luz do contexto de construção
da rede ultramarina, as razões de tais transgressões às normas impostas pela Coroa na América
portuguesa.

Palavras-chaves: Rio de Janeiro (cidade) – fundação; vila; cidade; São Vicente.

abstract

The paper aims to demonstrate that the foundation of the “village” of São Sebastião do Rio
de Janeiro by Estácio de Sá represents an anomaly within the context of the administrative
rules of the Portuguese Crown in respect to the rights of occupation of urban areas. In light of
the construction of an overseas network by Portugal, the paper discusses the reasons for such
transgressions of the rules of geographical occupation.

Keywords: Rio de Janeiro (city) – foundation; village; city; São Vicente.

resumen

Objectivamos demostrar que la fundación de la “vila” de São Sebastião de Río de Janeiro por Es-
tácio de Sá expresa una anomalía a las normas administrativas de la Corona, en lo que se refiere
a los derechos de los donatários de las capitanias y la caracterización de los espacios urbanos
coloniales. Discutimos las razones de tales infracciones a las normas impuestas por la Corona
Portuguesa en América.

Palabras clave: Rio de Janeiro (ciudad) – fundación; villa; ciudad; São Vicente.

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introdução

Até o presente permanece a polêmica a respeito da categorização do núcleo urbano


fundado por Estácio de Sá no sopé do morro Cara de Cão em 1° de março de 1565. Seria este
identificável como arraial, vila ou já como cidade? Roberto Maurício, em obra publicada no
bojo das comemorações do IV Centenário da Cidade do Rio de Janeiro, afirma que a cidade
de São Sebastião do Rio de Janeiro foi fundada quando Estácio de Sá mandou construir uma
forte cerca em torno do arraial (Maurício, 1966, p. 16).
Morales de Los Rios, ao informar que o local onde foi estabelecido o povoado por Estácio
de Sá logo veio a ser posteriormente conhecido por Vila Velha, vem reforçar a versão de que
inicialmente foi fundada uma vila, que só ganharia a categorização de cidade quando de sua
transferência para o morro do Castelo, em 1567 (Los Rios, 1915, p. 1.085).
A questão aqui proposta não se resume a mera identificação da categoria urbana do
núcleo populacional fundado por Estácio de Sá. Por entender que a questão diz respeito não
apenas ao processo de ocupação dos espaços donatários e implantação da rede urbana na
América portuguesa, julgamos que o histórico da implantação da cidade do Rio de Janeiro
extrapola em importância o mero estudo de ocupação urbano colonial.

a implantação das diferenciadas estruturas urbanas quinhentistas

Para melhor entendimento, julgamos procedente iniciar por uma abordagem sumária da
categorização das estruturas urbanas nos domínios da Coroa de Portugal e sua normatiza-
ção de implantação na América portuguesa.
Partindo do mais simples, arraial, ao mais complexo, cidade, o primeiro está referido
a uma ocupação de caráter provisório, como um acampamento militar, ou a um local de
aglomeração por conta de atividades festivas. Como, neste último caso, o arraial poderia ser
reconstruído periodicamente, algumas vezes resultava em uma ocupação definitiva.
Um núcleo populacional de caráter definitivo costumava ser identificado como povoado
ou, mais comumente, vilarejo. Originado de um arraial ou pela atração exercida por algum
elemento agregador – moinho, capela, pousada de tropeiros etc., para estes agrupamentos
populacionais não havia uma norma organizacional estabelecida pelo poder régio.
Esta norma se faz efetivamente presente no caso das vilas. Para estas eram necessários
os estabelecimentos de instituições oficiais, representados materialmente pelo prédio da
Câmara e pelo pelourinho. Uma característica marcante da colonização da América portu-
guesa está no fato de, ao contrário do ocorrido na América hispânica, não ter sido criada uma
legislação específica, sendo considerada extensão do Reino. Contudo, havia particularidades
coloniais que resultavam em diferenciações, mesmo na obediência da mesma ordenação.
Uma delas estava no fato de no Reino caber à Coroa elevar um povoado à condição de vila
por concessão de um foral, onde estão normatizados os direitos e deveres da administração:
“a cerca da polícia, juízo, imposto, privilégios e condição civil de cada uma delas” (Franklin,
1816, p. 10).

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Na América portuguesa, este poder foi delegado, como direito exclusivo, aos donatários
de capitanias. Na ausência deste, ficava com o encargo seu representante legal, designado
locotenente, ou o capitão-mor em exercício. A ausência de um foral específico era suprida
pelo expresso no foral da capitania e no Regimento do Governador.
Contudo, independente se na colônia ou metrópole, era a Câmara a instituição central
da vila.

Como representante do Estado português e da administração colonial, a Câmara as-


sumiu o papel de agente organizador do espaço urbano em constituição, como repre-
sentante dos interesses dos habitantes, atuou como porta-voz das queixas e súplicas
dos moradores, muitas vezes, contestando as normas governamentais e ultramarinas
(Borrego, 2004, p. 168-169).

Os cargos camaristas, inclusive de juiz, eram funções eletivas não remuneradas, ou seja,
isenta de custos para os cofres da Coroa. Cabiam também à Câmara funções tributárias,
como responsável pelos recolhimentos de rendas, tributos e donativos.
As prerrogativas das vilas não se encerravam na conjuntura jurídica administrativa exer-
cida pela Câmara, mas estendia-se à esfera militar e à religiosa.
Assim como no Reino, a vila tinha por função sediar um corpo da tropa de ordenan-
ça, organização militar auxiliar, de caráter defensivo e de preservação da ordem interna
do termo da vila. Formado por convocação temporária, porém compulsória, de moradores
fisicamente aptos na faixa etária de 18 a 60 anos, excluindo alguns, como religiosos e auto-
ridades judiciárias. Apesar de sua relação com a Câmara ser mais bem conhecida no estabe-
lecido pelo Regimento das Companhias de Ordenanças, promulgado por d. Sebastião em
1570 (Mendonça, 1972, p. 157-178), este é um aperfeiçoamento do regimento original feito
ainda no reinado de Afonso V, por sua vez posteriormente aperfeiçoado por d. Manuel, em
1508, (Castro, 1763, p. 371) e por d. João III, em 1549. No Brasil, o donatário, além dos ou-
tros direitos previstos, ocupava o cargo de capitão-mor das tropas de ordenanças das vilas
situadas em seus domínios donatários, razão de ser denominada capitania. Na ausência do
donatário, seu substituto como capitão-mor do corpo de ordenança da capitania era por
ele, ou pela Coroa, designado, enquanto que os oficiais de patentes menores eram desig-
nados pela Câmara.
No aspecto religioso, as vilas contavam necessariamente com uma sé paroquial e seu
respectivo sacerdote, responsável por atender à freguesia referente. Ainda quanto ao reli-
gioso, há de se fazer destaque para uma diferenciação marcante em relação ao Reino, em
respeito à questão do padroado da Ordem de Cristo. Apesar de este poder real sob a ins-
titucionalidade católica no Brasil não encontrar expressão na constituição das vilas, se fará
marcantemente presente, como veremos, na constituição das cidades.
O padroado, a priori, não era atribuído ao rei de Portugal, mas ao mestre da Ordem de
Cristo, sediada em Tomar. Passou a ser atribuição real quando d. Manuel assumiu de forma
hereditária este mestrado.

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Nota-se, assim, que, por ter sido a América portuguesa integralmente dividida em capi-
tanias hereditárias, não se previu inicialmente a possibilidade de existência de cidades, mas
somente de vilas coloniais.
A primeira vila a existir no Brasil, a de São Vicente, foi fundada em 1532, ou seja, antes
do estabelecimento do regime de capitanias hereditárias. Martim Afonso de Sousa, seu fun-
dador, obedecendo à legislação, providenciou o estabelecimento da Câmara e a ereção do
pelourinho, dando ainda curso ao primeiro processo eletivo dos cargos municipais. Com a
criação do sistema de capitanias, esta vila deveria estar situada no espaço da capitania que
veio a ser doada a Martim Afonso de Sousa em 1534.1 Por ser a “cabeça” da capitania, esta
veio receber o mesmo nome da vila, São Vicente.
No Reino, as vilas que ganhavam importância maior, tanto em termos populacionais
como econômicos, eram alçadas à categoria de cidades.
A cidade era, portanto, um centro urbano diferenciado, possuidor de privilégios inexis-
tentes nas vilas. Tanto no Reino como na colônia americana, unicamente a autoridade real
poderia elevar uma vila à condição de cidade.
Uma das diferenciações mais importantes entre vila e cidade está no fato que nesta,
além dos cargos camaristas eletivos, havia um corpo de funcionários régios nomeados dire-
tamente pela Coroa, que exerciam suas funções de forma remunerada.
Quanto à relação intestina Igreja/Estado, há de se destacar que cabia à cidade sediar não
somente uma, ou diversas, sé paroquial, mas também uma sé episcopal, materializada no
templo designado por catedral, por abrigar a cátedra do bispo. Nesse último aspecto, a ques-
tão do Padroado da Ordem de Cristo trará uma diferenciação marcante entre o Reino e a Amé-
rica portuguesa. Por deter este mestrado o poder soberano institucional da Igreja no Brasil,
não cabia ao papa o direito da nomeação episcopal, mas sim referendar a indicação do rei,
como mestre da Ordem de Cristo. Com a instituição do governo geral na América portuguesa,
se fez necessário que o representante da Coroa estivesse estabelecido não mais em uma vila,
onde o poder maior era exercido pelo capitão-mor donatário, mas sim em uma cidade, onde a
Coroa seria soberana. Como o Brasil foi todo dividido em capitanias hereditárias, seria preciso,
inicialmente, que a Coroa retomasse o poder sobre uma das capitanias doadas.
Essa oportunidade veio com o falecimento do donatário da capitania da Bahia de Todos
os Santos, Francisco Pereira Coutinho, quando a Coroa recuperou o domínio pleno desta
capitania por negociação e indenização de seu herdeiro.
Ao desembarcar no Brasil em 1549, Tomé de Sousa trazia em seu Regimento as instru-
ções para o estabelecimento do governo geral. É importante observar que a implantação
deste novo regime administrativo não tinha como objeto a substituição do regime das capi-
tanias hereditárias, pois os direitos donatários estabelecidos nos forais das capitanias foram

1 A maior parte dos autores considera haver dúvida se a vila de São Vicente foi estabelecida no espaço da capita-
nia de Martim Afonso de Sousa ou da de seu irmão, Pero Lopes de Sousa. Constatamos, contudo, que, indubi-
tavelmente, estava situada no espaço que fazia parte da capitania deste último, ou seja, na capitania de Santo
Amaro.

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na maior parte preservados, assim como a autonomia das Câmaras. “O governo real surgiu,
pois, não para substituir, mas para corrigir o sistema já instalado [...]. A grande falta, que as-
sim se supria, era a de um centro de unidade, a carência de unidade administrativa” (Avelar,
1976, p. 71). Desse modo, como representante dos interesses da Coroa, ao governador-geral
foram atribuídos encargos de cunho tanto administrativo, quanto militar.
Como o poder de comando militar do donatário, como capitão-mor, estava restrito às
tropas estabelecidas em sua capitania, ao governador-geral foi atribuída a função de dar
organicidade ao sistema defensivo. Assim, ao governador-geral era facultado o poder de
socorrer uma determinada capitania deslocando não só tropas sob seu comando direto, mas
também por convocação das estacionadas em outras capitanias.
No Regimento de Tomé de Sousa (Mendonça, 1972, p. 33-51), em seu capítulo 32, cons-
tam determinações sobre os tipos e quantidades das armas e artilharias que “os capitães das
capitanias e senhorio dos engenhos e moradores da dita terra” eram obrigados a ter. O capí-
tulo 36 trata especificamente do combate aos corsários, determinando que ao saber “que há
corsários em alguma parte da dita costa, ireis a ele com os navios e gente que vos parecer”.
Especial atenção é dada, ainda, à questão indígena onde se encontra expressa nos ca-
pítulos 5, 31 e 45 a política de guerra inclemente às “nações” indígenas hostis, procurando
deslocá-las da costa para o sertão, a fim de preservar o espaço litorâneo sob o controle das
“nações” aliadas, cooptadas ao projeto colonial pela conversão religiosa (Brandão, 1993, p.
156-157).
Dentre as atribuições de Tomé de Sousa, estava a fundação da primeira cidade a ser
estabelecida no Brasil, o que ocorreu no ano seguinte, o mesmo ano em que o papa Júlio
III confirmou institucionalmente a Companhia de Jesus. Tendo por nome São Salvador, foi
implantada próxima a onde já existia uma vila fundada pelo falecido donatário, a vila do Pe-
reira. Já no ano seguinte, em 25 de fevereiro de 1551, o papa Júlio III, pela bula Super Specula
Militantis Ecclesiae, cria para esta cidade o primeiro bispado na América portuguesa, que
veio a ser ocupado em 22 de junho de 1552 por Pero Fernandes Sardinha.
É importante observar que tanto as primeiras vilas como a primeira cidade na América
portuguesa surgem por “fundação”, e não por constituição processual e orgânica, conforme
ocorria no Reino, por consequência do adensamento populacional e expansão econômica.

a fundação da vila de são sebastião no estratégico espaço vicentino

A invasão francesa, iniciada em 1555, foi de pronto denunciada por Brás Cuba, capitão-
mor em exercício da capitania de São Vicente. Impotente para fazer frente à força expedi-
cionária francesa, Brás Cuba requisitou reforços ao governador-geral Duarte da Costa, não
sendo por este atendido. Somente em 1560, já na regência de d. Catarina em nome de seu
neto d. Sebastião, o novo governador-geral, Mem de Sá, é incumbido da responsabilidade
de expulsar os franceses da baía da Guanabara. Afinal, como vimos, no caso de uma “invasão
corsária”, tal como a ocorrida na Guanabara, o governador-geral se via obrigado a dar com-
bate, independentemente de qual fosse a capitania.

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Apesar de vitorioso no embate, arrasando a fortaleza erguida na entrada da baía por
Villegaignon, comandante da força francesa, Mem de Sá se viu obrigado a deixar a Guana-
bara por exigência dos encargos como governador-geral, o que possibilitou o retorno dos
franceses refugiados no interior e a retomada do controle da baía.
Providenciada uma segunda expedição, agora sob o comando de Estácio de Sá, após
uma primeira tentativa frustrada em fevereiro de 1564, no mesmo mês do ano seguinte con-
segue ele se instalar na entrada da baía da Guanabara, no local hoje conhecido como Urca.
Em conformidade com o relato de Anchieta em 1° de março, teve início o desbastamento
do mato, roçado da terra e edificação da cerca de proteção ao povoado, indo Estácio dormir
em terra “e dando ânimo aos outros para fazer o mesmo” (Anchieta, 1988, p. 259). Esta data
foi então adotada como de fundação do núcleo urbano ali instalado. “À pequena cerca deu
Estácio de Sá o nome de S. Sebastião, em lembrança do patrono do rei de Portugal sob cujo
signo se erguia a nova cidade” (Serrão, 1965a, p. 109).
Apesar de questionável a referência a este núcleo como cidade, como faz Serrão, consi-
derando que experiência anterior demonstrou a necessidade de não se restringir a expulsar
os franceses, mas originar uma ocupação definitiva, nos parece lícito considerar que seu
fundador teria a incumbência de estabelecer não um simples e temporário arraial, mas um
novo povoado. Contudo, deve-se observar que Estácio de Sá, apesar de comandante da for-
ça expedicionária, ao não portar a patente de capitão-mor de São Vicente, já que não se tem
conhecimento de qualquer fonte documental, ou mesmo sua referência, atribuindo a ele
esta patente, estaria impossibilitado de elevar este povoado à condição de vila.
No entanto, Varnhagen informa que logo instalado, Estácio de Sá nomeia Pero Martins
Namorado para o cargo de juiz. Em setembro deste mesmo ano de 1565 nomeia ainda
Francisco Dias Pinto para o cargo de alcaide-mor “com as formalidades usadas em tais
ocasiões” (Varnhagen, 1854, p. 252). Segundo Joaquim Serrão, após instalada a Câmara,
Estácio de Sá passou a conceder cartas de sesmarias para a região do entorno da baía da
Guanabara. Somente de setembro de 1565 a novembro do ano seguinte foram concedidas
45 cartas de sesmarias para esta região, atribuídas por este autor a Estácio de Sá (Serrão,
1965a, p. 110-111).
O referido historiador estranha o fato de que entre as cartas de sesmarias doadas em
1565 consta a recebida por Antônio Rodrigues de Almeida, “concedida por Pedro Ferra To-
bias, capitão e ouvidor-geral em S. Vicente” (Serrão, 1965a, p. 111). Em nota, assim expressa
sua estranheza em relação ao fato: “Que direito assistia a Pedro Tobias para dar essas cartas?
Haverá engano na data? – deixemos o problema em suspenso, visto não nos ter sido possível
analisar o documento”.
Voltando ao problema, observa-se, inicialmente, um engano em relação ao nome do ca-
pitão de São Vicente, já que, quando da chegada de Estácio de Sá, este cargo estava ocupado
por Pedro Ferraz Barreto. Assim a ele se refere o controvertido autor da “Continuação das
memórias de fr. Gaspar da Madre de Deus” ao tratar do Rio de Janeiro, onde temos informa-
ção de diversas doações de sesmarias ali situadas, por capitães-mores da capitania de São
Vicente, inclusive no século XVII.

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A cidade do Rio de Janeiro está em altura de 23 graus, e ainda antes de ser fundada em
1567 por Estácio de Sá, e depois por seu tio Mem de Sá, 3° governador-geral do estado
do Brasil, os capitães-mores governadores da capitania de S. Vicente, concediam terras
de sesmaria no Rio de Janeiro. E habitando só os índios tamoyos, aos que quiseram ir
povoar esta terra, como foram Jorge Pires, e seu filho Simão Machado em tempo que era
donatário Martim Afonso de Sousa, e seu loco tenente Pedro Ferraz Barreto, em 1554,
como se vê dos registros destas sesmarias no cartório da provedoria da fazenda real de
S. Vicente liv. tit. 152, p. 29 v. et seguintibus até 1565, etc., estão as sesmarias de terras,
que concedeu no Rio de Janeiro desde 1623, até 1634, Francisco da Rocha capitão-mor,
governador, locotenente da donatária condessa de Vimieiro [...]. No liv. 9° tit. 1.638, p.
52 está a sesmaria de terras dadas no Rio de Janeiro pelo governador d’aquela cidade
Salvador Corrêa de Sá e Benevides no ano de 1638, como procurador da dita condessa.
Todas estas sesmarias provam que o Rio de Janeiro é da doação do primeiro donatário
Martim Afonso de Sousa, por se achar dentro das 55 léguas de costa de sua doação, que
como está declarado, principiam em 13 léguas ao norte do cabo Frio até o rio Curupacê
(Madre de Deus, 1861, p. 541-542).

Em trabalho anterior, ao tratar não da cidade, mas da capitania do Rio de Janeiro, tínhamos
já observado o inusitado fato de Salvador de Sá e Benevides, quando governador do Rio de Ja-
neiro em 1638, ter concedido sesmarias não respaldado no cargo que ocupava, mas como pro-
curador da condessa de Vimieiro, donatária da capitania de São Vicente (Brandão, 2011, p. 7).
Invertendo o direcionamento do problema apontado por Serrão, por constatar que o
capitão-mor de São Vicente, ao conceder sesmaria no Rio de Janeiro em 1565, agiu dentro de
suas prerrogativas legais, consideramos mais procedente questionar, caso realmente assim
o tenha feito, sobre o direito que assistiria a Estácio de Sá para dar cartas de sesmarias na
região da baía da Guanabara e fazer nomeações de cargos camaristas. Acreditamos ser este
o verdadeiro problema que até o presente permanece em suspenso.

a vila sobe o morro e vira cidade

Com a chegada dos reforços, trazidos pelo governador-geral Mem de Sá em 1567, se deu
o embate final com os franceses, resultando na expulsão destes e na morte de Estácio de Sá.
Neste embate, teve participação decisiva os indígenas da “nação” temiminó liderados por
Arariboia. E vale notar que, em consonância com a política expressa no referido Regimento
do governo-geral, esta tropa indígena fora deslocada do aldeamento jesuítico de São João,
estabelecido na capitania do Espírito Santo (Brandão, 1993, p. 160).
Ao recuperar o controle da baía da Guanabara, Mem de Sá transfere a sede da adminis-
tração municipal para o alto do morro do Castelo, passando a dar continuidade às nomea-
ções dos cargos camaristas e concessões de sesmarias.
O governador-geral justifica a legalidade dessas ações administrativas com base nos po-
deres concedidos em seu Regimento. Contudo, em uma carta de sesmaria, datada de outu-

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bro de 1567, reconhece que neste seu Regimento não se “diga nem fale em esta dita cidade
de são sebastião deste rio de janeiro” (Serrão, 1965b, p. 56).
Logo após esses fatos, em 20 de janeiro de 1568, d. Sebastião, no dia em que completava
catorze anos, era aclamado rei de Portugal. Era este jovem rei fruto de sucessivas relações
consanguíneas, já que não só seu avô paterno, d. João III de Portugal, era primo de seu avô
materno, Carlos I de Espanha e V do Sacro Império, como seu pai, o príncipe d. João de Por-
tugal, era igualmente primo de sua mãe d. Joana, infanta de Espanha. Nasceu em 20 de ja-
neiro de 1554, poucos dias após a morte de seu pai, recebendo como nome de batismo não
o de algum monarca que o antecedeu, conforme era usual, mas, como exceção por seguir
a tradição popular, o do santo consagrado no dia de seu nascimento, São Sebastião. Em 15
de maio de 1554, d. Joana abandonou Lisboa para nunca mais voltar, deixando seu filho d.
Sebastião entregue aos cuidados dos sogros. Quando este tinha apenas três anos de idade,
seu avô paterno veio a falecer, ficando como regente do reino sua avó materna, d. Catarina,
irmã de seu avô materno, Carlos V.
Enquanto d. Catarina tinha particular afeição pela Ordem Dominicana, o tio paterno de
d. Sebastião, cardeal d. Henrique, era fervoroso adepto da Companhia de Jesus. Por inter-
venção direta de d. Henrique, após longa controvérsia no Conselho do Reino, foi escolhido
como mestre de d. Sebastião o padre jesuíta Luís Gonçalves da Câmara, que iniciou as lições
ao fazer o príncipe seis anos de idade. Proclamado regente em substituição a d. Catarina
em dezembro de 1562, d. Henrique permaneceu na regência até o príncipe tomar conta do
poder, como rei e mestre da Ordem de Cristo (Veloso, 1938, p. 15-48).
Ainda em 1568, d. Sebastião encaminhou provisão “como gouernador e perpetuo ad-
ministrador que sam da ordem e cauallaria do mestrado de nosso Sñor Jesu X°” ao reitor do
Colégio da Companhia de Jesus da Bahia com determinações “sobre o collegio dos padres da
cõpanhia de Jesu que se haa de fundar e fazer na capitania de S. Vicente das partes do Brasil”
(Carta régia mandando fundar colégio etc., Serrão, 1965b, p. 61-64).
Para entender o alcance desta determinação régia, é preciso diferenciar o Colégio fun-
dado a mando do rei, como mestre da Ordem de Cristo, das escolas de catequeses e alfabeti-
zação. Nos Colégios eram ministrados ensinos complementares voltados para a formação de
noviços, mas também abertos a leigos. Seus cursos abrangiam as áreas de letras, filosofia e
teologia. O primeiro Colégio fundado em Portugal foi o de Coimbra, em 1542. Com a funda-
ção da Universidade de Évora, em 1559, por intermédio do cardeal d. Henrique, apesar dos
protestos da Universidade de Coimbra, os jesuítas passaram a ter uma universidade própria.
Os ensinos nos Colégios nos domínios da Coroa foram direcionados então a preparatórios
para o ingresso nesta universidade.
Na Bahia, os jesuítas fundaram em 1551 o Colégio dos Meninos de Jesus, com a finalida-
de de ministrar o ensino básico. O Colégio da Bahia, nos moldes citados, veio a ser fundado
em 1553.
Em 1554, os jesuítas tinham já fundado uma escola missionária na capitania de São Vi-
cente, o Colégio de São Paulo. Assim seria de esperar, conforme ocorrido na Bahia, que o Co-
légio fosse estabelecido junto à escola que já funcionava nesta capitania. Contudo, o reitor

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do Colégio da Bahia determinou a sua instalação não no planalto vicentino ou na vila de São
Vicente, “cabeça” da capitania indicada por d. Sebastião, mas sim no Rio de Janeiro. É preciso
observar que, a princípio, não haveria nenhuma desobediência à determinação do rei, no
caso como mestre da Ordem de Cristo, já que o Rio de Janeiro fazia parte da capitania de
São Vicente. Por outro lado, assim sendo, ao fazer parte da capitania de São Vicente, o Rio de
Janeiro só poderia ser vila, e não cidade autônoma e independente da capitania.
A questão que fica em suspenso diz respeito à razão do reitor do Colégio da Bahia ter
preterido o planalto vicentino, onde a Companhia de Jesus já exercia o ensino, em favor de
um pequeno núcleo urbano recém-instalado, principalmente ao considerar que a instalação
de um Colégio era obra complexa, exigindo grande alocação de recursos e professores bem
preparados. Observa-se ainda que neste mesmo ano de 1568 foi também instalado o Colé-
gio de Olinda, quando este núcleo urbano já estava densamente ocupado, por sediar o mais
rico polo açucareiro da América portuguesa.

a intervenção régia na legitimação da cidade do rio de janeiro

Apesar de Mem de Sá usar distorcidamente seu Regimento para categorizar o núcleo


urbano estabelecido no alto do morro do Castelo como cidade, a nosso ver somente a partir
da intervenção direta do rei d. Sebastião, em 1570, o Rio de Janeiro pôde ser incontestavel-
mente assim considerado. Isso se deu, não por emissão de foral, mas por fazer nomeações
régias de cargos administrativos, alguns inexistentes nas vilas.
A primeira conhecida é datada de 7 de março de 1570, nomeando Aires Fernandes Vitória
para o cargo de almoxarife “da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro”. No ano seguinte,
d. Sebastião nomeou Cristóvão de Barros por quatro anos “capitão e governador da capitania
e cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro nas partes do Brasil”, em substituição a Salvador
Correia de Sá, se referindo, assim, não somente à cidade, mas também a uma nova capitania.
Em 11 de maio de 1576, d. Sebastião fez ainda diversas nomeações, inclusive de tabelião
das notas e do público e judicial. Em de agosto de 1577, meses antes de seu falecimento em
Alcácer Quibir, nomeou Salvador Correia de Sá para novamente ocupar o cargo “de capitão e
governador da dita capitania e cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro por tempo de três
anos” (Cf. Alvarás régios e traslados de provisões, Serrão, 1965b, p. 66, 82, 84, 86, 114-115, 119).
No respeito à questão institucional religiosa, quando da transferência para o morro do
Castelo, a cidade não contava nem mesmo com um único pároco, necessariamente presente
em uma vila. A primeira freguesia no Rio de Janeiro, a de São Sebastião, só veio a ser criada
em 1569 por provisão régia datada de 20 de fevereiro, sendo o padre Mateus Nunes seu
primeiro vigário. Em 1576, o Rio de Janeiro foi elevado à condição de prelazia, situação pré-
diocesana. Contudo, a segunda freguesia, a da Candelária, só veio a ser estabelecida no final
da União Ibérica, em 1634 (Santos, 1965, p. 7, 25).
Finalmente, a prelazia foi elevada a sé episcopal em 1676, ou seja, o Rio de Janeiro per-
maneceu mais de um século já com status de cidade sem nunca ter tido um bispo. Muito
provavelmente, caso único no universo do catolicismo no tempo moderno.

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Ainda em 1676, Francisco Luís Carneiro de Sousa, conde da ilha do Príncipe, ao enca-
minhar processo de reconhecimento de seus direitos donatários sobre São Vicente junto
ao Conselho Ultramarino, teve reconhecido estes direitos sobre a integridade territorial da
capitania herdada, incluindo, portanto, o Rio de Janeiro.
Lembrando que a capitania comprada pela Coroa, em 1709, para formar a capitania de
São Paulo e Minas era originalmente a capitania de Santo Amaro, esta questão veio se des-
dobrando em diversos outros processos em que, de um lado, são reconhecidos os direitos
donatários e, de outro, a Coroa usa do artifício de protelar as outorgas destes direitos. Em
1731 veio a falecer jovem, sem deixar herdeiro direto, Francisco Carneiro de Sousa, último
donatário da capitania de São Vicente e conde da ilha do Príncipe, possibilitando a Coroa
encerrar a questão. Para alguns, Carlos Carneiro de Sousa, tio do último donatário e seu
herdeiro, teria negociado em 1735 a renúncia dos direitos sobre a capitania de São Vicente
em favor da Coroa. Porém, constatamos que esta negociação se encerrou na troca do título
de conde da ilha do Príncipe para conde de Lumiares, não havendo qualquer referência à
capitania mãe da cidade do Rio de Janeiro e nem à capitania de mesmo nome dela derivada,
apesar de nominalmente referida nos documentos reivindicatórios encaminhados ao Conse-
lho Ultramarino (Brandão, 2011, p. 9).

discussões e considerações complementares

Vimos que, em obediência às normas então vigentes, para que fosse estabelecida uma
vila na baía da Guanabara, se fazia necessário que Estácio de Sá nela chegasse com poderes
concedidos por Martim Afonso de Sousa para tal. Somente após estabelecida a Câmara, e na
condição de capitão da nova vila, iniciaria as concessões de sesmarias, restritas ao espaço
do termo da vila. Estabelecida, consolidada e engrandecida, a sua passagem à categoria de
cidade deveria ser feita por uma ordem régia, nos moldes da expedida por d. João V para
São Paulo, em 1711, ou ainda indiretamente, quando elevada ao foro de bispado, conforme
ocorrido com Olinda, em 1676.
Desse modo, o núcleo estabelecido por Estácio de Sá no sopé do morro Cara de Cão não
poderia passar de um vilarejo. Contudo, apesar de não ter poderes para tal, fez ele, segundo
consta, nomeações de cargos camaristas e concessões de sesmarias. Mém de Sá, ao trans-
ferir a sede do núcleo para o morro do Castelo, prosseguiu nas nomeações e concessões, já
se referindo ao núcleo urbano como cidade, apesar de seu Regimento só fazer referência a
uma única cidade, a de Salvador. Finalmente, o rei d. Sebastião legitimou a categorização de
cidade para o Rio de Janeiro, não por concessão de foral, mas ao fazer nomeações de oficiais
régios. Pouco após, a incipiente cidade é elevada à condição de prelazia, apesar de haver
nela tão somente uma única paróquia. Contudo, somente na segunda metade do século
seguinte passou a abrigar uma sede diocesana.
Pouco antes das nomeações régias, quando o Rio de Janeiro era ainda um pequeno nú-
cleo encimado no morro do Castelo, o reitor do Colégio de Salvador da Companhia de Jesus
no Brasil, ao receber determinação de estabelecer um Colégio em São Vicente, toma a de-

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cisão de estabelecê-lo na distante e pobre “cidade” da Guanabara, na verdade ainda um pe-
queno povoado. A instalação deste Colégio se deu de forma concomitante ao estabelecido
na rica e próspera vila de Olinda.
Frente às questões expostas, e ainda em suspenso, não temos aqui a pretensão de trazer
respostas definitivas, que expliquem as razões de tamanhos atropelos às normas estabeleci-
das. Por outro lado, não significa desconsiderá-las, ou ocultá-las por explicações precipitadas
ou improcedentes, mas abordá-las de modo a procurar novas perspectivas interpretativas
no estudo da formação histórica do Rio de Janeiro.
Para tal, julgamos melhor olhar este histórico não exclusivamente pela perspectiva eco-
nomicista, que encontra inicialmente na exploração do pau-brasil e, após consolidado o nú-
cleo povoador, na concessão de sesmarias para a implantação de engenho como interesses
maiores que impulsionariam o processo de ocupação definitiva e adensamento populacio-
nal da baía da Guanabara.
Consideramos como razão maior para o surgimento desta furtiva cidade a importância
estratégica que a baía da Guanabara tinha, não somente em relação ao domínio da costa
brasileira, mas, e principalmente, em relação à manutenção da rede asiática do império ul-
tramarino português.
Para este entendimento, é necessário destacar um aspecto desse processo de expansão
pouco conhecido. Para a estruturação desta rede, não era suficiente “descobrir o caminho
para as Índias”, mas ainda impedir a conexão do complexo mercantil mediterrâneo com o
fluxo mercantil oriental pelo bloqueio dos acessos do golfo Pérsico e mar Vermelho (Bran-
dão, 1993, p. 716).
Um dos poucos estudiosos a dar relevo ao assunto, diz que a ideia do bloqueio ao Egito
pela tomada de Ádem e Socotorá, como feito pelos portugueses, já antecedia em dois sé-
culos a d. Manuel (Thomaz, 2008, p. 58). Contudo, ao rei de Portugal, já na Renascença eu-
ropeia, não cabia somente atingir militarmente o poderio islâmico, mas também, em decor-
rência, substituir Veneza no abastecimento do mercado europeu de especiarias. Portanto,
para viabilizar a rota do Cabo seria necessário compensar o expressivo aumento na distância
marítima a ser percorrida com o aumento do volume transportado. Para tal, se fez necessário
desenvolver a tecnologia de construção naval de modo a permitir a construção de embar-
cações vélicas com grande capacidade de carga e estabilidade necessária para navegar nas
extensões oceânicas do Atlântico Sul. Este feito foi conseguido pelos portugueses somente
no final do século XV, com o advento das naus. Por outro lado, em consequência do grande
calado e peso, para serem impulsionadas, dependiam não somente dos regimes de vento,
mas, e principalmente, do empuxo das corretes marinhas (Brandão, 2012, p. 61-65).
Como a navegação das naus no Atlântico Sul se dava, na maior parte, no bojo da corren-
te do Brasil, as naus se viam obrigadas a navegar próximo à costa brasileira, do cabo de Santo
Agostinho ao cabo Frio. Nesse contexto, a baía da Guanabara representava um ancoradouro
natural que poderia abrigar uma esquadra capaz de interceptar o fluxo naval para o Oriente,
via Atlântico Sul. Consideramos que a tomada desta estratégica baía, fundamental para o
controle naval do Atlântico Sul, foi a motivação principal que teria levado o frei da Ordem

acervo , rio de janeiro , v . 28 , n . 1 , p . 159 - 172 , jan . / jun . 2015 – p . 169


de Malta, Villegaignon, a se colocar à frente da missão conquistadora (Brandão, 2005, p. 3;
2006, p. 22-23).
Como o capitão-mor de São Vicente não tinha como fazer frente ao vulto do empreen-
dimento francês, este contexto nos permite entender a necessidade da Coroa de se colocar
à frente do embate militar e promover a ocupação permanente da baía da Guanabara. Por
outro lado, a ocupação por implantação de um núcleo urbano exigiria transgredir às normas
estabelecidas pela própria Coroa, o que foi feito, não de forma expressa e frontal, mas sub-
repticiamente.
Por outro lado, por ter o donatário de São Vicente, Martim Afonso de Sousa, seus interes-
ses maiores na Índia, onde chegou a vice-rei, certamente não criaria nenhum obstáculo em
abrir mão da região da baía da Guanabara, para que a Coroa pudesse garantir o fluxo mer-
cantil com o Oriente. Restou a seus sucessores questionar a validade desta não legitimada
concessão.
Quanto aos jesuítas, antes mesmo de fundarem o primeiro colégio no Brasil, o de Salva-
dor, tinham já estabelecido na Índia, em 1548, o Colégio São Paulo de Goa, que foi um dos
principais centros de divulgação da cultura europeia na Ásia. Instalados e com grandes in-
teresses no Oriente, cremos que os jesuítas perceberam a importância que necessariamente
viria ganhar o núcleo populacional situado em um ponto vital para a manutenção da rede
ultramarina oriental. Sabedores da não oficialização do desmembramento do Rio de Janeiro
da capitania de São Vicente, os jesuítas optaram por investir na instalação de um novo Co-
légio, não no isolado planalto vicentino, mas na Guanabara, onde ficaria conectado à rede
ultramarina.
Não possuindo as terras fluminenses fertilidade próxima às ubérrimas zonas canaviei-
ras de Pernambuco e Bahia, de modo a fazer a mera distribuição de sesmarias seu atrativo
maior, a possibilidade de ser agraciado pela Coroa por nomeação para cargos régios, por
trazer projeção social e retorno monetário, representava grande atrativo para os reinóis que
estavam a se instalar na América portuguesa. Tanto para aqueles que visavam à ocupação
dos cargos régios, no caso dos mais afortunados, como para servir e suprir este privilegiado
segmento social.
O processo de instalação de um Colégio da Companhia de Jesus no ainda incipiente
povoado certamente também representou um importante atrativo, não só por exigir um
conjunto de mão de obra especializada na construção e decoração do imponente prédio e
igreja, infelizmente demolidos, como também por movimentar atividades econômicas para-
lelas. Tendo o Colégio como centro administrativo, a Companhia de Jesus participou ativa-
mente no segmento produtor e mercantil açucareiro.
Surgida em função de uma rota mercantil, o Rio de Janeiro incorporou a prática comer-
cial como esteio econômico. Não sem razão, a diocese do Rio de Janeiro, quando criada,
abrangia o território meridional até o rio da Prata, em consonância com já ativas práticas
mercantis com a América hispânica.
Consideramos, assim, que o contexto geopolítico de implantação da rede ultramarina,
associado às condicionantes ambientais, forjou uma anômala cidade, onde foi moldada uma

p. 170 – jan . / jun . 2015


conjuntura sociocultural de influências diversas. Não negamos neste processo a importância
da influência da “nobreza da terra” agrária, mas destacamos que a esta foi sobreposta outras
fortes influências. Dentre estas, a de caráter mercantil universalista, dada a inserção na rede
ultramarina que, ultrapassando os limites da relação triangular Portugal-Brasil-África, se es-
tendia às vertentes asiáticas e platinas. Destaca-se também a importância da instalação nes-
te, ainda pequeno, núcleo urbano de um corpo de oficiais administrativos da Coroa, assim
como de um centro de formação intelectual de reconhecido mérito, o Colégio da Companhia
de Jesus. Consideramos estes como suportes essenciais para que o Rio de Janeiro pudesse
vir a centralizar administrativamente não somente a América portuguesa, mas também o
próprio Império Ultramarino, permanecendo como capital do Brasil Império e da maior parte
do tempo da República.

Uma versão resumida deste artigo foi apresentada sob o título A enigmática fundação do Rio de
Janeiro: de arraial vicentino à cidade desprovida de foral e poder episcopal, no XVI Simpósio
Regional de História ANPUH/RJ, em julho de 2014.

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Recebido em 30/11/2014
Aprovado em 14/1/2015

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o cotidiano de escravos e de trabalhadores livres na ilha do
governador oitocentista
the daily life of slaves and free workers in ilha do governador in
the nineteenth century

Judite Paiva Souto | Mestranda em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universida-
de Federal Fluminense.

resumo

Criada em 1755, a freguesia de Nossa Senhora da Ajuda da Ilha do Governador integrava, du-
rante o século XIX, as “freguesias de fora” ou “suburbanas” da cidade e as principais atividades
desenvolvidas eram a pesca e a produção de cal. Neste artigo, buscaremos abordar aspectos do
cotidiano de escravos e de trabalhadores livres da Ilha do Governador no contexto do Rio de
Janeiro oitocentista.

Palavras-chave: Ilha do Governador; século XIX; trabalhadores livres; escravidão.

abstract

Created in 1755, the parish of Nossa Senhora da Ajuda da Ilha do Governador integrated, during
the nineteenth century, the “freguesias de fora” [outside parishes] or “suburbanas” [suburbans
parishes] of the city, and the main economic activities were fishing and lime production. In this
article, we address everyday aspects of the life of slaves and free workers of Ilha do Governador
in the context of Rio de Janeiro in the nineteenth century.

Keywords: Ilha do Governador, nineteenth century, free workers, slavery.

resumen

Creada en 1755, la parroquia de Nossa Senhora da Ajuda da Ilha do Governador integraba en


el siglo XIX a las “freguesias de fora” [parroquias de fuera] o “suburbanas” de la ciudad. Las prin-
cipales actividades eran la pesca y la producción de cal. En este artículo, abordamos aspectos
cotidianos de la vida de los esclavos y trabajadores libres de Ilha do Governador en el contexto
de Rio de Janeiro del siglo XIX.

Palabras clave: Ilha do Governador; siglo XIX; trabajadores libres; esclavitud.

acervo , rio de janeiro , v . 28 , n . 1 , p . 173 - 185 , jan . / jun . 2015 – p . 173


introdução

Durante o século XIX o Rio de Janeiro passou por significativas transformações, a come-
çar por aquelas decorrentes da vinda da família real portuguesa ao Brasil, em 1808. Nesse
período, a freguesia de Nossa Senhora da Ajuda da Ilha do Governador (1755) integrava as
“freguesias de fora” ou “suburbanas” da cidade (Santos, 1907, p. 192-194). Sua denominação
é uma referência ao sesmeiro Salvador Correia de Sá, proprietário do primeiro engenho de
açúcar no local e governador da cidade durante os anos de 1568-1572 e 1578-1599 (Abreu,
2010, p. 77). Vejamos alguns aspectos políticos, econômicos e culturais desta freguesia com
ênfase no cotidiano da Corte.
a freguesia de nossa senhora da ajuda da ilha do governador

Candelária, São José, Sacramento, Santa Rita e Santana constituíam as principais fregue-
sias urbanas do Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX. Enquanto aqueles com
mais recursos concentravam-se nas duas primeiras, a população menos abastada residia em
Santa Rita e Santana, originando o que hoje são os bairros da Saúde, Santo Cristo e Gamboa
(Benchimol, 1992, p. 26).
Quanto às freguesias rurais, as mais distantes mantiveram-se como fornecedoras de gê-
neros agrícolas. As mais próximas, inicialmente visitadas apenas nos fins de semana pelos
mais endinheirados, progressivamente passaram a local de residência permanente. Esse foi
o caso do atual bairro de Botafogo e dos bairros das Laranjeiras, Glória e Catete, integrantes
da freguesia da Glória em 1834 (Abreu, 2006, p. 37).
A freguesia de Nossa Senhora da Ajuda, segundo a memória manuscrita de 1870 do pro-
fessor Antônio Estevão da Costa e Cunha,1 estava divida em seis fazendas ou seções: Fregue-
sia, Fazenda de São Bento, Fazenda da Bica, Fazenda Amaral, Fazenda da Ribeira ou Juquiá e
Fazenda da Ponta do Tiro até Cocotá (Cunha, 1870).
A Freguesia incluía o atual bairro de mesmo nome, Bancários e parte do Tauá. Nela esta-
va situada a Matriz de Nossa Senhora da Ajuda, cuja data de construção antecede o ano de
1710.2 Seus principais proprietários eram João Coelho da Silva, Emília Guedes e os herdeiros
de Manoel José Rosa. A localidade possuía cerca de noventa fogos; mais de uma fonte de
água, uma delas nas terras de João Rodrigues Carrilho, conhecida como Carioca, e dois ce-
mitérios, um da paróquia e outro da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Igreja Matriz
de Nossa Senhora da Ajuda da Ilha do Governador. Das seis fábricas de cal, apenas uma não
estava em funcionamento em 1870.

1 Antônio Estevão da Costa e Cunha, natural da Bahia, foi autor de obras didáticas e atuou na Instrução Pública
da Ilha do Governador (Schueler, 2008; Almanak Laemmert, 1882-1889).
2 A paróquia foi criada em 1710, em capela sob a mesma invocação edificada por Jorge de Sousa (o Velho) e pos-
teriormente ampliada (1743) (Araújo, 1946, p. 79).

p. 174 – jan . / jun . 2015


A Fazenda São Bento, propriedade dos beneditinos, compreendia o atual bairro do Ga-
leão (Motta, 2007, p. 436). Possuía cerca de duzentas casas, lavoura de cana para produção
de aguardente, cultivo de mandioca para fabricação de farinha e pesca de camarão em Tu-
biacanga, uma fábrica de vinagre e vinho no Galeão, e desenvolvimento de pesca de cama-
rão em Itacolomi.
Sua origem está nas terras do capitão Manuel Fernandes Franco. Quando de sua morte,
em 1695, deixou à Ordem de São Bento o engenho de açúcar, com a obrigação perpétua de
três missas anuais. Foi nessa área que os beneditinos, no início do século XIX, mandaram
construir uma edificação para d. João VI (Mosteiro de São Bento, p. 23-24).
Neste local, foram inauguradas em 1890, duas colônias de alienados, espaços destinados
à assistência de doentes mentais. Uma delas, antigo palácio de d. João VI em suas visitas à
localidade, chamava-se Conde de Mesquita e estava situada à ponta do Galeão. A outra,
anterior convento da Ordem Beneditina durante o século XIX, distante cerca de três quilô-
metros da primeira, denominava-se São Bento e encontrava-se nas cercanias do morro de
mesmo nome.3
A Fazenda da Bica pertencia a José Antônio da Costa Gama e compreendia parte do atual
Jardim Guanabara. Seu nome se refere a uma bica, fonte de boas águas que permanece no
local até os dias de hoje. Na praia do Engenho Velho funcionava uma olaria.
A Fazenda Amaral situava-se no morro do Matoso, em península destacada pelo saco do
Jequiá, atual bairro do Cacuia. Em 1870, havia nesta parte um oratório, fonte de água própria
para consumo e cerca de onze casas, dentre elas a da proprietária Maria Isabel Ribeiro do
Amaral no alto do morro. Também conhecida como São Sebastião, em 1871, foi adquirida
pelo governo por quarenta contos de réis (40:000$000). Passou, então, a ser destinada ao
Hospital de Convalescentes e Asilo de Inválidos da Marinha. Em 1875, abrigava o quartel
da Companhia de Aprendizes Marinheiros e a residência do comandante e demais oficiais
(Santos, 1965, p. 71).
A Fazenda da Ribeira ou do Juquiá compreendia os atuais Zumbi e Ribeira e parte das Pi-
tangueiras. Antônio Estevão da Costa e Cunha comentou a dificuldade na obtenção de água
e o grande número de casas, pelo menos cem. Das nove fábricas de cal, duas não estariam
em funcionamento. Esclarece, ainda, que na ponta da Ribeira, estava situada capela sob a
invocação de Nossa Senhora do Carmo (Cunha, 1870).
A sexta seção, da ponta do Tiro até o Cocotá, compreendia parte dos atuais bairros da
Praia da Bandeira e Cocotá. A parte da ponta do Tiro, de propriedade de Antônio da Cunha
Pereira, abrigava somente a casa do mesmo e uma fábrica de cal. Já a Tapera, de proprie-
dade de Manoel Rodrigues Pereira Alves, possuía dez habitações arrendadas ou aforadas a
particulares. As terras no saco de Olaria pertenciam a diversos proprietários e possuíam pelo

3 O Suburbano, 15 de outubro de 1900. Segundo notícia do Jornal do Commercio, de 14 de julho de 1935, a Colô-
nia São Bento teria dado espaço à Escola João Luiz Alves, hoje administrada pelo Degase (Departamento Geral
de Ações Socioeducativas), órgão vinculado à Secretaria de Educação do Estado.

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menos onze habitações e pequena plantação de cana para produção de aguardente. A praia
do Cocotá abrigava seis casas pertencentes a variados particulares, perfazendo aproximada-
mente 28 habitações para esta seção (Cunha, 1870).
Ressalta o professor Costa e Cunha que, apesar da divisão em fazendas, a Ilha do Gover-
nador não possuía grandes extensões de terras produtoras de gêneros agrícolas. Havia uma
preferência pelo arrendamento dos terrenos, os quais variavam entre quinhentos e três mil
réis anuais, por braça. Quanto mais perto da praia, mais se pagava. Essa preferência provavel-
mente ocorria pela facilidade de transporte, conforme veremos a seguir.

transportes

A navegação marítima era a única forma de acesso para a Ilha do Governador durante
o oitocentos. Inicialmente, embarcações a vela e a remos faziam a ligação da área central
da cidade com a ponta do Galeão. Em 1838, os barcos da Companhia da Piedade passaram
a atender regularmente os passageiros do local (Los Rios Filho, 2000, p. 145). Desde pelo
menos 1844 esta companhia empregava barcos a vapor, viajando, na mesma embarcação,
passageiros, cargas e animais (Navegação...).
Em 1861, as embarcações particulares eram compostas principalmente de barcos (50)
e catraias (7). Embora apenas 58 embarcações possuíssem registro no Conselho da Inten-
dência nesse ano – 54 pertencentes a fabricantes de cal –, é provável que o número tenha
sido maior, uma vez que a atividade desenvolvida pela maioria da população era a pesca
(Embarcações...).
No mesmo ano, a Companhia Niterói e Inhomirim anunciava que as suas barcas para o
porto de Estrela (no atual território do município de Magé) tocariam a Ilha do Governador
(Diário do Rio de Janeiro, 1o de dezembro de 1861). As embarcações a vapor partiam diaria-
mente do cais da praia dos Mineiros às onze horas da manhã e retornavam às três horas da
tarde. Seus preços variavam para pessoas calçadas maiores (1$500 réis) e menores (500 réis)
de doze anos; pessoas descalças maiores (640 réis) e menores (320 réis) de doze anos e por
cabeça de gado. Cavalos, bois e burros custavam 3$000 a seus proprietários e ovelhas, por-
cos e cabras, 320 réis cada. Não havia abatimento de preços para passageiros que desciam
na Ilha do Governador.4
O transporte que ligava a Ilha do Governador diretamente às freguesias centrais da Cor-
te não parecia muito frequente ou regular. Em 1870, as catraias dos “Correios” partiam em
direção à cidade às cinco ou seis horas da manhã, dependendo da estação climática, e de lá
retornavam às treze horas (Cunha, 1870).
Em 1875, a Companhia Bonds Marítimos anunciava duas lanchas para as viagens da pon-
te Mauá até Paquetá e Ilha do Governador, apenas nos domingos e dias santos (O Globo, 20

4 Almanak Laemmert, 1861, p. 406. A praia dos Mineiros estava situada entre a alfândega e o Arsenal de Marinha,
na freguesia da Candelária (Moraes, 1872, p. 308).

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de janeiro de 1875). Em 1876, a referida Companhia estabeleceu linhas regulares para a Ilha
do Governador e para a Penha. A primeira possuía quatro estações: Freguesia, Zumbi, Ponta
da Ribeira e Tapera. A segunda fazia escalas pelo porto de Maria Angu (Ramos), Estrada da
Pedra (continente) e Ilha do Governador, nas Flecheiras e Galeão (Gazeta de Notícias, 4 de
abril de 1876).
Em dias de festa o panorama se modificava; barcas extras eram reservadas, chegando
a haver até mesmo concorrência entre empresas.5 Na festa de Nossa Senhora da Ajuda de
1881, a Companhia Bonds Marítimos colocou todas as suas embarcações a vapor para a
“pomposa festa” e, para melhor identificá-las, avisava que as mesmas tinham o sinal da em-
presa na proa (Gazeta de Notícias, 23 de outubro de 1881). A concorrência oferecia a barca
Izabel, à disposição no cais das Marinhas (Gazeta de Notícias, 22 e 23 de outubro de 1881).
Em 1898, o transporte da freguesia da Ilha para a Candelária passou por problemas. A
empresa Camuyrano e Cia., então encarregada do transporte de passageiros para a localida-
de, alegava que a subvenção de quinhentos mil réis mensais não lhe era suficiente e acabou
tendo suas atividades encerradas por ordem da Prefeitura (Navegações...).
O novo concessionário, José Soares Maciel, foi questionado quanto à qualidade do ser-
viço. Uma série de infrações no serviço de navegação foi constatada, como a duração de 45
a 50 minutos de viagem entre o Zumbi e o cais Pharoux (nas cercanias da atual praça XV),
quando o contrato previa tão somente 34 minutos; a capacidade de 46 passageiros em vez
de 70; a falta de disponibilidade de uma segunda lancha no caso de grande contingente de
passageiros e o desrespeito ao horário estipulado. José Soares Maciel foi intimado a retirar
as lanchas que não satisfaziam ao contrato de navegação (Navegação...). Posteriormente, em
março de 1899, foi inaugurado o serviço de barcas a vapor da Companhia Cantareira e Viação
Fluminense (O Paiz, 23 de março de 1899; Jornal do Brasil, 23 de março de 1899).
Quanto ao transporte no interior da Ilha, era feito a cavalo ou a pé. Em 1904, apenas 29
veículos eram registrados, dos quais três eram carroças particulares e 26 carroças de lavoura
(Santos, 1907, p. 293). Os bondes apenas começaram a circular em 1922, nas proximidades
das praias do Zumbi, do Canto, Pitangueiras, Bandeira, Cocotá, Paranapuan e Freguesia (Ar-
chitetura no Brasil, 1922).
Dessa forma, o comércio com outras freguesias só era possível através de embarcações,
panorama que se manteve até 1949, com a construção da primeira ponte de ligação com
o continente (Diário Carioca, 1o de fevereiro de 1949; Correio da Manhã, 1o de fevereiro de
1949).

5 Gazeta de Notícias, 13 de maio de 1876; 10 de julho de 1876; 14 de julho de 1876; 7 de junho de 1879; 8 de junho
de1879; 4 de fevereiro de 1882; 7 de dezembro de 1883.

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abastecimento de água e saneamento básico

Se na primeira metade do século XIX o abastecimento da cidade se deu principalmente


através de chafarizes e bicas públicas, nos anos seguintes uma parcela da população carioca
pôde experimentar mudanças. A partir de 1850, algumas casas passaram a contar com a
distribuição de água através de tubos de ferro e aparelhos hidráulicos vindos da Inglaterra.
Para o abastecimento de prédios foram instaladas penas d’água – encanamento sob pressão
–, as quais em 1860 já totalizavam 1.900 unidades (Benchimol, 1992, p. 66).
Diante das frequentes estiagens e da crescente demanda, em 1880 foi inaugurado um
novo sistema de abastecimento contratado pelo governo imperial. O projeto havia sido ela-
borado por engenheiros da Inspetoria Geral das Obras Públicas da Corte e incluía o aprovei-
tamento dos rios d’ Ouro, Santo Antônio e São Pedro, na serra do Tinguá, a cerca de 53 km da
cidade do Rio de Janeiro, bem como a ampliação de antigos mananciais (Benchimol, 1992,
p. 71-72)
A construção do novo sistema de abastecimento ficou a cargo de Antônio Gabrielli, en-
genheiro responsável pela construção do sistema de abastecimento de Viena, na Áustria
(Marques, 1985). Contudo, o abastecimento permanecia insuficiente, sobretudo nas fregue-
sias ocupadas majoritariamente por trabalhadores.
A freguesia de Nossa Senhora da Ajuda, em 1870, possuía fontes de água na Freguesia,
Fazenda da Bica, Fazenda Amaral e na ponta do Tiro. Contudo, a distância desses manan-
ciais levava muitos moradores a utilizarem a água insalubre de poços, contraindo doenças
(Cunha, 1870). Essa situação perdurou durante todo o século XIX,6 como sugere notícia de
1900:

Água
Caiu na 3ª discussão do orçamento da indústria, na Câmara dos Deputados, uma emen-
da apresentada pelo sr. dr. Sá Freire, autorizando o governo a abastecer de água potável
a Ilha do Governador [...] é com tristeza que declaramos aos moradores desta Ilha que
a Câmara dos senhores deputados entendeu ainda este ano não precisarmos de água
potável. 7

Se os mais rudimentares sistemas de abastecimento de água permaneciam distantes


da Ilha do Governador, mais ainda estava a realização de obras para saneamento e imple-
mentação de uma eficiente limpeza pública. Durante a primeira metade do oitocentos, a
coleta de dejetos e lixo não variou muito: na parte da noite, escravos, denominados tigres,

6 O Suburbano, 1o de abril de 1900; 15 de novembro de 1900; 1o de dezembro de 1900.


7 O Suburbano, 1o de dezembro de 1900.

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encarregavam-se do transporte da carga em barris até determinados pontos da cidade
depositando-a em valas e praias, lagoas, charcos, terrenos baldios, fossas e sumidouros
(Benchimol, 1992, p. 73).

Além da contaminação de lençóis freáticos, essas práticas levavam à disseminação de do-


enças, preocupando diversos segmentos da sociedade, em especial os médicos. Em 1854, a
Câmara discutiu um projeto que incluía as seguintes medidas: divisão da cidade em distritos e
quarteirões cuja fiscalização seria confiada a um residente; limpeza de logradouros públicos e
de focos de infecção em casas particulares e proibição de despejo de detritos nas praias e no
mar, passando a ter lugares fixos de depósito (Correio Mercantil, 22 de outubro de 1854; Diário
do Rio de Janeiro, 14 de novembro de 1854). Um dos pontos escolhidos estava situado na Ilha
do Governador, na ponta de Mãe Maria, em terras pertencentes aos monges beneditinos com
a devida concordância de seu abade (Boletim..., 1865). Em janeiro de 1855 o depósito já estava
em pleno funcionamento, trabalhando nele escravos africanos que auxiliavam a condução do
lixo através de batelões e saveiros (Correio Mercantil, 31 de janeiro de 1855).
Os transtornos causados pelo depósito de detritos nas proximidades de suas terras le-
varam Caetano José Cardoso, morador da Ilha do Governador, a protocolar requerimento
na Câmara Municipal pedindo providências quanto ao arrematante do lixo, encarregado de
levá-lo à Ilha, para que cessasse o depósito em seu terreno cultivado (Diário do Rio de Janeiro,
28 de fevereiro de 1866).
Houve forte campanha por melhorias no saneamento da cidade. A partir de 1862, o ser-
viço domiciliar de esgotos, um dos três primeiros a serem instalados no mundo, ficou a cargo
da Companhia The Rio de Janeiro City Improvements (Benchimol, 1992, p. 74). Dentre as
primeiras áreas alcançadas pelas melhorias estavam São Bento, Gamboa e Glória (1866) e
São Cristóvão, Engenho Velho, Rio Comprido e Tijuca. Quanto aos moradores da Ilha do Go-
vernador, só veriam obras de saneamento no século seguinte.

trabalhadores livres e cativos em uma freguesia rural

A sociedade brasileira oitocentista era profundamente hierarquizada. Seus atributos


fundamentais eram a propriedade e a liberdade (Mattos, 1994). Nesse sentido, homens
livres e pobres e escravos integravam os estratos inferiores. Os homens livres podiam ser
pescadores, ferreiros, alfaiates, sapateiros, pequenos lavradores, tropeiros, entre outros.
O apoio e deferência desses indivíduos era sinal de prestígio social, de modo que os pro-
prietários buscavam incluí-los em suas redes clientelísticas, numa demonstração de poder.
Essas relações, contudo, podiam se tornar conflituosas, considerando-se tanto as imposi-
ções de condutas por autoridades públicas (Graham, 1997, p. 41-60) como a disputa pela
terra (Motta, 2008).
Segundo os relatórios do Ministério dos Negócios do Império, no que diz respeito aos
homens livres, em 1870, a freguesia da Ilha do Governador abrigava majoritariamente pes-
cadores (406) (ver quadro a seguir). Ao compararmos o número desses trabalhadores com

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os de outras freguesias podemos ter uma dimensão da importância desta atividade para a
população local. Em 1872, de um total de 1.216 pescadores no município do Rio de Janeiro,
mais de um terço (437) atuava na Ilha do Governador (Soares, 2007, p. 418).
Em 1900, o jornal O suburbano, periódico voltado para assuntos da freguesia da Ilha
do Governador, dedicou várias de suas colunas para tratar de temas ligados àquela “pobre
classe”. As páginas do jornal debatiam sobre impostos, dificuldades, condições de trabalho e
cercadas de peixe.8 Segundo o redator “a maior parte dos filhos da Ilha do Governador pela
natureza propriamente do meio em que vive, se vê na contingência de, entregando-se à
pescaria, dela tirar os meios de subsistência”.9

Profissões na paróquia da Ilha do Governador (1870-1871)10

homens mulheres homens mulheres total


profissões total total
livres livres cativos cativas geral

Eclesiásticos 1 - 1 - - - 1

Militares - - - - - - -

Empregados públicos 6 1 7 - - - 7

Profissão literária 1 - 1 - - - 1

Comerciantes 59 - 59 - - - 59

Capitalistas 0 - - - - - -

Proprietários 4 4 8 - - - 8

Lavradores 55 4 59 23 34 57 116

Pescadores 406 0 406 94 - 94 500

Marítimos 7 - 7 136 - 136 143

Manufaturas, artes e ofícios 56 - 56 13 15 28 84

Agências 1 - 1 15 - 15 16

Serviço doméstico 26 589 615 67 171 238 853

Sem profissão conhecida 362 335 697 64 45 109 806

8 O Suburbano, 1o de março de 1900, 15 de março de 1900, 15 de abril de 1900, 1o de maio de 1900, 15 de maio de
1900, 1o de julho de 1900, 15 de julho de 1900.
9 O Suburbano, 15 de março de 1900.
10 Brasil. Ministério dos Negócios do Império. Relatórios do Ministério dos Negócios do Império, apresentados à 2ª
e 3ª Sessão da 14ª Legislatura pelo ministro e secretário de Estado dos Negócios do Império. Rio de Janeiro: Imp.
Nacional, 1870-1871. Levantamento de M. B. Levy (Lobo, 1978, p. 430-431).

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Estes dados nos permitem inferir que a pesca era a principal atividade dos homens livres.
Ainda assim, a principal força motriz do Rio de Janeiro oitocentista foi o braço escravo. Eram
eles que faziam a maior parte dos serviços. Na Ilha do Governador, em 1872, o número de
cativos (603) não chegava a ¼ da população livre (2.856), o que pode ser compreendido a
partir da proibição do tráfico de escravos em 1850 (Soares, 2007, p. 363-380).
No que concerne à profissão, conforme o quadro anterior, os cativos ligados à pesca
eram muitos (94), mas a maioria era formada por marítimos (136). As mulheres predomina-
vam no serviço doméstico, porém a presença de cativas na lavoura (34), diferentemente dos
números referentes a trabalhadores livres, superava o de homens (23) (Lobo, 1978, p. 228).
Embora não estivesse incluído no referido relatório do Ministério dos Negócios do Im-
pério, havia, ainda, a profissão de caieiro entre os escravos. No inventário do fabricante de
cal Francisco Antônio Leite, dos 27 escravos relacionados, nove eram caieiros, cinco eram
empregados no serviço doméstico e os demais não tiveram o ofício identificado (Inventário
de 1875...).
Outra referência à profissão foi encontrada na notícia do inventário de Constâncio José Rosa,
caieiro na freguesia da Ilha do Governador, em seção referente a arrematações judiciárias:

No dia 24 do mês corrente, terá lugar a última praça em audiência do Exmo. Sr. Dr. juiz de
órfãos, dos seguintes bens, pertencentes ao inventário de Constâncio José Rosa, a saber:
10 escravos, alguns dos quais são perfeitos trabalhadores no fabrico da cal, calafates,
1 cozinheiro e mais móveis, e 5 barcos: as avaliações acham-se no cartório do escrivão
Pires Ferrão, cujos bens podem ser vistos na Ilha do Governador, na praia do Bananal
(Correio Mercantil, 22 de novembro de 1862).

Joaquim Pereira Alves de Magalhães, fiscal da freguesia, em ofício à Câmara Municipal,


ao informar acerca das casas comerciais da freguesia, incluiu os trabalhadores voltados para
a produção de cal (Casas de comércio da Ilha do Governador...). Segundo ele, em 1865, havia
14 fabricantes de cal, dos quais nove eram brasileiros e cinco eram portugueses. Trabalha-
vam nesta produção 231 empregados: 15 eram livres e 216 eram escravos, o que quer dizer
que cada caieira contava com uma média de 15 escravos. Considerando-se que a freguesia
possuía cerca de 753 cativos,11 podemos estimar que mais de ¼ da mão de obra escrava da
Ilha do Governador estava voltada para a produção de cal.
Em que pese os produtores de cal da Ilha do Governador não terem sido, em geral, gran-
des proprietários de escravos, encontramos o registro de alguns que reuniram sob seu co-
mando considerável quantitativo. O primeiro foi um fabricante de cal da Ilha do Governador,
cujo nome não foi divulgado, que teve 45 cativos mortos na epidemia de cólera de 1855.12

11 Falamos em aproximação, uma vez que o número é baseado em documento de 1870 (Cunha, 1870).
12 A referência foi dada pelo conselheiro dr. Tavares em sessão da Academia Imperial de Medicina, de 1º de setem-
bro de 1862 (Annaes Brasilienses de Medicina).

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Do mesmo modo, o caieiro Zeferino José Serrão teve quarenta escravos inventariados em
1857 (Inventário de 1857...).
Esses escravos reagiam ao cativeiro de diversas formas, dentre elas a fuga. Alguns conse-
guiam ficar longo período sem serem capturados a exemplo de Manoel, caracterizado como
crioulo. Encontrado em Valença, em 1871, declarou estar fugido havia mais de dez anos e
pertencer aos herdeiros do finado Geraldo, que fora negociante de escravos e morador na
Ilha do Governador (Jornal da Tarde, 26 de abril de 1871).
Nas proximidades da baía de Guanabara, não surpreende que um dos recursos utilizados
para fuga tenha sido o uso de embarcações. Uma barca de casca, utilizada para extração de
conchas que seriam transformadas em cal, foi o veículo de fuga de cinco escravos do major e
caieiro da freguesia de São Gonçalo, João Manoel da Silva, em 1859 (Diário do Rio de Janeiro,
22 de outubro de 1857).
Assim como nas outras freguesias da Corte, não faltavam anúncios de proprietários da
Ilha do Governador em busca de seus escravos:

50$000

Fugiu no dia 1º de abril de 1878 o escravo Joaquim Magina, cor preta, africano, idade 50
anos, altura regular, tem alguns cabelos brancos, mas ainda está forte, foi escravo da vi-
úva Guedes, com caieira na Ilha do Governador, e andava nos barcos de cal: desconfia-se
que esteja para os lados de Icaraí, Praia Grande; onde tem uma preta que lha dá couto ou
cozinhando oculto em alguma casa visto entender de cozinha, quem der notícias dele
à rua do Propósito n. 1, receberá a quantia acima (Gazeta de Notícias, 14 de novembro
de 1879).

Escravos fugidos buscavam refúgio com protetores que lhes eram solidários ou que
precisavam muito de seus serviços. A suspeita de que uma “preta” dava abrigo a Joaquim
Magina pode estar relacionada ao frequente auxílio ofertado a escravos fugidos por seus
amigos, parentes e amantes (Soares, 2007, p. 241). A necessidade também levava muitos
patrões a esconder fugitivos entre seus próprios escravos, correndo o risco de serem presos.
Assim se justifica a suspeita refletida no anúncio de que Joaquim poderia estar oculto em
alguma casa prestando serviços de cozinheiro (Karasch, 2000, p. 407). A fuga de Magina aos
cinquenta anos tampouco constitui novidade, pois mesmo que predominasse a escapada
de indivíduos com vinte a quarenta anos, não era difícil encontrar entre os fugitivos, idosos
e crianças (Soares, 2007, p. 238).
Ao longo do século, as formas de resistência dos escravos foram as mais diversas, a
exemplo das fugas, agressões a senhores, ações judiciais e interferência na venda de sua
força de trabalho. Buscavam a liberdade ou apenas melhorar o cotidiano, procurando estar
perto de familiares (Chalhoub, 2009, p. 175-233). Embora resquícios da escravidão tenham
permanecido na sociedade, a abolição do trabalho cativo em 1888 colocou em outro pata-
mar a relação entre trabalhador e proprietário de terras, possibilitando ao primeiro buscar
com mais ferramentas o exercício de seus direitos civis.

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considerações finais

Em suma, a abordagem de diversos aspectos que envolviam o cotidiano de cativos e


trabalhadores livres no Rio de Janeiro oitocentista nos fornece subsídios para melhor situar
a freguesia da Ilha do Governador no espaço da Corte, considerando seus costumes, limita-
ções e possibilidades. Tratava-se, portanto, de uma freguesia que tinha acesso diário ao cen-
tro do império e cujas principais atividades econômicas eram a pesca e a fabricação de cal.
Enquanto a atividade pesqueira ocupava majoritariamente homens livres, a produção de
cal empregava mão de obra escrava. Ressalvadas as diferenças, ambos os grupos integravam
os estratos inferiores da freguesia da Ilha do Governador, em posição subalterna aos proprie-
tários de fábricas de cal.

Referências bibliográficas

Fo n t e s

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de 1876; 7 de junho de 1879; 8 de junho de 1879; 14 de novembro de 1879; 22 de outubro de
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Recebido em 29/11/2014
Aprovado em 22/1/2015

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a cidade do rio de janeiro
cultura urbana e imagem turística
the city of rio de janeiro
urban culture anda touristic image

Amanda Danelli Costa | Professora adjunta do Departamento de Turismo do Instituto de Geografia da Univer-
sidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Graduada em História pela Uerj. Mestre e doutora em História Social da
Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

resumo

A principal imagem turística do Rio de Janeiro está relacionada à sua paisagem urbana e, desde
os anos 1920, é conhecida como cidade maravilhosa. A pesquisa em guias e mapas turísticos do
início do século XX contribuiu para a análise da formação e transformação da imagem turística
da cidade.

Palavras-chave: Rio de Janeiro; cultura urbana; imagem turística; guias turísticos.

abstract

The main touristic image of Rio de Janeiro is related to its urban landscape and, since 1920s,
the city has been known as the wonderful city. Research in the travel guides and maps of Rio
de Janeiro of the beginning of the 20th century has contributed to the analysis of the formation
and transformation of the city’s touristic image.

Keywords: Rio de Janeiro; urban culture; touristic image; travel guides.

resumen

La principal imagen turística de Rio de Janeiro está basada en su paisaje urbana, y desde los
años 1920, es conocida cómo la ciudad maravillosa. La investigación en las guías y mapas de
viaje de los primeros años del siglo XX contribuye para una análisis de la formación y transfor-
mación de la imagen turística de Rio de Janeiro.

Palabras clave: Rio de Janeiro; cultura urbana; imagen turística; guias de viaje.

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A cidade do Rio de Janeiro possui o traço singular de, ao mesmo tempo, expressar um
espírito tipicamente carioca e preservar algumas qualidades plurais que resultam do seu
cosmopolitismo. Justamente por ter se caracterizado por uma forte autonomia no período
colonial e também ter representado o país desde fins do século XVIII até 1960, sendo capi-
tal por muitos anos, a cidade atualmente permite que o carioca ou um visitante encontre
nela vários elementos dos regionalismos brasileiros e também dos estrangeirismos. O Rio
de Janeiro correu o risco, com isso, de se despersonalizar e acabar se parecendo com lugar
nenhum. Pela via inversa, o que se observou foi o desenvolvimento de uma qualidade muito
marcante do espírito carioca que é a de se apropriar das diversidades, produzindo releituras
de tudo o que alimenta e inspira a cidade. Esse caráter conferiu à cidade e ao carioca a par-
ticularidade de se adornarem com suficiente autenticidade de tudo aquilo com que travam
contato.
A partir do momento em que a cidade não manteve mais o seu caráter exclusivamente
municipal e passou a exercer as funções de uma capital, foi necessário que os cariocas en-
contrassem meios de preservar sua singularidade, que pressupunha os necessários reajustes
de caráter levando-se em conta a diversidade de encontros. Desde o século XIX, foi na esfera
intelectual e especialmente na literatura que se desenhou um fértil território que permitia
a produção de uma reflexão sobre a cidade e a observação de que, no mesmo espaço da
cidade-capital, conviviam vários lugares simbólicos, que ora diziam respeito exclusivamente
à cidade e ora refletiam a força da centralidade da capital. Essa e outras tensões foram re-
gistradas por cronistas que acompanharam os processos de modernização urbana do Rio de
Janeiro no início do século XX.
Foi também ao longo do século XX que a cidade passou a receber cada vez mais turistas,
que vinham com expresso desejo de lazer e, portanto, não visavam a se dedicar a outras ati-
vidades, fossem elas exploratórias, científicas ou artísticas. Desse modo, foram construídas e
reconstruídas pouco a pouco as imagens turísticas do Rio de Janeiro, que eram responsáveis
por atrair os turistas e pelas quais os estrangeiros e os visitantes de outros estados brasi-
leiros reconheciam a cidade. A imagem turística de um lugar é, portanto, uma construção
subjetiva que coloca em diálogo os imaginários do lugar a ser visitado e dos seus visitantes.
Na medida em que o fluxo turístico ou a cidade passa por transformações, também enfrenta
mudanças em sua imagem turística. Partimos do pressuposto de que ainda hoje a imagem
que mais atrai o olhar dos visitantes para o Rio de Janeiro é a sua paisagem urbana, especial-
mente aquela espraiada entre o mar e as montanhas. Veremos adiante que os laços com essa
paisagem estiveram presentes ao longo de todo o século XX, mas também observaremos
que as relações de apreciação e fruição dessa paisagem urbana mudaram com as transfor-
mações que se passaram na cultura urbana carioca.

rio de janeiro: de cidade das letras à cidade maravilhosa

A centralidade da cidade capital, na virada do século XIX para o XX, ao mesmo tempo
em que possibilitava a concentração de tantos literatos também estimulava que a própria

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cidade se tornasse o motivo de seus escritos, o que acabou oferecendo ao Rio de Janeiro uma
experiência literária bastante fecunda, associada a uma vida cultural efervescente. Desde a
geração de 18701 até o início dos anos 1920, a cidade do Rio de Janeiro foi o lugar onde se
concentrou o maior número de literatos, que constituíram os clássicos da literatura brasileira.
O momento em que a literatura brasileira se questionava a respeito das suas cores locais, sua
brasilidade, suas relações com a conformação de um caráter nacional e ainda com a universa-
lidade dos seus traços, foi também o momento de decisivo desenvolvimento da imprensa bra-
sileira, especialmente a da capital federal. Muitos dos literatos brasileiros mais citados desde
então – José de Alencar, Machado de Assis, Olavo Bilac – estiveram envolvidos como editores,
redatores, colunistas de muitos dos periódicos que circularam no Rio de Janeiro entre 1870 e
1920. Muitos clássicos posteriormente publicados pelas editoras chegaram primeiro ao pú-
blico através dos folhetins. De algum modo, os debates e as querelas políticas e intelectuais
fizeram da literatura o seu ambiente principal e da imprensa o lugar de fala com alcance ainda
mais amplo, envolvendo os literatos com a vida pública carioca.
De um modo geral, os literatos faziam do envolvimento com o jornalismo a oportuni-
dade de um ganho mais estável da vida, tendo em vista que as publicações pelas editoras
estavam submetidas a uma sazonalidade e incerteza muito grandes. O trabalho em jornais
e o serviço público foram os principais aliados para que muitos deles pudessem ganhar um
soldo e, então, investir na literatura. Assim, era bastante comum que os temas mais atuais
e relevantes no âmbito da política, da filosofia e da cultura estivessem presentes nas co-
lunas dos periódicos por meio da pena dos grandes nomes da literatura brasileira. Por um
lado, a imprensa acabou popularizando as letras entre os mais variados leitores; por outro
lado, a literatura teve muitas vezes de se adaptar às características específicas do suporte
jornalístico. As crônicas, por exemplo, ganham a cena como um dos gêneros literários mais
recorrentes entre os literatos brasileiros nesse período, por se tratar de um gênero muito
associado à condição transitória do tempo e, portanto, servir como um excelente registro da
modernidade carioca (Costa, 2011). A partir do momento em que transformaram a crônica
no seu modo particular de comunicar, os cronistas refiguraram a cidade, que tematizavam
em suas linhas, em uma cidade de letras.2 É importante sublinhar que as primeiras décadas
do século XX foram um momento bastante expressivo de uma cultura urbana carioca que
estava fortemente vinculada à experiência literária que a cidade experimentava. Era preci-
samente através das letras, das crônicas e da divulgação dessas matérias via imprensa que
os literatos contribuíam para que a cidade se observasse e se pensasse, produzindo uma

1 A geração de 1870 compreendeu intelectuais que contribuíram, através literatura, tanto para a criação de novas
formas de ação política como para o desenvolvimento de uma compreensão da nação brasileira e suas práticas
sociais e culturais, em meio à crise do império brasileiro. Ver Alonso, 2002, p. 392.
2 A expressão “cidade das letras” se inspira nos argumentos do historiador uruguaio Angel Rama, e em seu livro
“A cidade das letras”, na medida em que ele observa que os grupos intelectuais – por vezes coincidentes com os
grupos dirigentes – são capazes de construir uma cidade que coexiste em relação à cidade real, visto que é esse
grupo o responsável por produzir a esfera simbólica da cidade.

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ideia de si própria e que tinha como o seu centro gravitacional o Centro da cidade do Rio de
Janeiro e as sociabilidades que ali eram possíveis.
Um dos momentos históricos mais pesquisados sobre o Rio de Janeiro é precisamente
o início do século XX e as transformações urbanas que a cidade viveu naquele momento.
A aliança entre governo federal e Prefeitura permitiu que o projeto de reformas saísse do
papel e alcançasse seus objetivos mais importantes em um intervalo de apenas quatro anos.
O nome do prefeito Pereira Passos é ainda hoje lembrado porque as condições dadas pela
direção federal permitiram que as obras fossem levadas a cabo, tendo como resultado uma
realização de sucesso, inédita até então na história da cidade. Tais transformações urbanas,
entretanto, não se restringiram às reformas do porto, às demolições, às construções de no-
vas ruas e avenidas ou à modernização arquitetônica da cidade. Elas abarcam todas as mu-
danças afetadas por processos de modernização, que ora estão relacionados ao progresso
material e à presença da tecnologia e ora se vinculam ao desenvolvimento do espírito e, por
conseguinte, à maneira como a sociedade carioca passou a se perceber. A imprensa, por
exemplo, estava associada aos dois âmbitos, uma vez que sofreu uma revolução com a che-
gada de novas técnicas de impressão, mas também porque se tornou o ambiente frequen-
tado pelos intelectuais que pensavam a cidade, lançavam modismos, lapidavam o gosto ca-
rioca entre as muitas influências nacionais e estrangeiras e opinavam sobre cada momento
vivido pela cidade. A cidade das letras era propriamente aquela que escolheu explorar como
objeto de observação e interpretação a própria cidade do Rio de Janeiro. Desde a realização
de saraus, tertúlias, enquetes, conferências até a publicação de matérias, colunas, revistas,
livros inteiramente dedicados à cidade, o que se via era que os literatos recriavam a cidade
real através da literatura.
A efervescência cultural da cidade do Rio de Janeiro em sua belle époque, em muito
estimulada a partir das experiências estrangeiras, transformou o Centro da cidade, refor-
mado, em um espaço de fruição e lazer dos próprios cariocas. As confeitarias, cafés, bares,
cabarés, cervejarias, restaurantes, sorveterias, livrarias, teatros e cinemas reanimaram o
espírito da cidade, fazendo da rua o lugar de encontros, trocas, flertes, conversas, socia-
bilidades que não estavam confinadas às paredes dos espaços privados, mas que, pelo
contrário, contaminavam a ambiência e envolvia os cariocas em uma rede simbólica que
costurava o imaginário urbano a partir das vivências culturais e dos eventos sociais coti-
dianos na cidade.
Durante os primeiros anos republicanos, o espírito da cidade era comumente traduzido
pelas letras que pensavam e contavam a vida no Rio de Janeiro. Embora a expressão cidade
das letras nunca tenha se tornado um epíteto para a cidade do Rio de Janeiro, foi através
da literatura que o escritor Coelho Netto adjetivou-a como cidade maravilhosa. Os contos
reunidos em “A cidade maravilhosa”, livro publicado em 1928, confirmam a estreita relação
entre o universo da cultura e das letras na cidade. A expressão cidade maravilhosa, presente
depois em nome de programa radialístico e consagrada em marchinha de carnaval, é até
hoje o epíteto mais popular da cidade do Rio de Janeiro. A expressão, surgida em uma ambi-
ência carioca que valorizava sobremaneira as diversões, lazeres e sociabilidades associadas

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a uma cultura urbana sediada no Centro da cidade, hoje representa, para o senso comum, as
belezas das paisagens naturais que a cidade possui e que são identificadas especialmente
pelas praias da Zona Sul carioca.
Ainda no século XIX, bairros como Flamengo e Botafogo foram ocupados pela gente
abastada que desejava usufruir da amplidão dos terrenos, das brisas marítimas e dos banhos
medicinais na baía de Guanabara. Um dos exemplos mais importantes desse fenômeno é o
de que Carlota Joaquina manteve uma casa em Botafogo, de frente para a baía de Guana-
bara. Antes da chegada da Corte, a cidade do Rio de Janeiro se via concentrada e limitada
por quatro morros: morro de Santo Antônio, morro do Castelo, morro de São Bento e morro
da Conceição, todos na região do Centro da cidade, margeados pela baía de Guanabara. A
partir de 1808, muitos incentivos foram dados para estimular a ocupação de outras áreas da
cidade, entre elas os bairros da Zona Sul banhados pela baía: Glória, Flamengo, Botafogo.
Mais uma vez a expansão e a ocupação da cidade dependiam das relações tensas entre os
projetos de cidade ideal civilizada e a natureza primitiva e selvagem. Assim, ainda sem ven-
cer os morros da cidade, o desenvolvimento seguiu o rumo da orla na estreita faixa entre os
morros e a baía de Guanabara. Não tardou que o desmonte dos morros e a criação de túneis
se tornassem uma questão central para os engenheiros e higienistas que estiveram à frente
da cidade a partir do início do século XX. Enquanto isso, as famílias enriquecidas investiam
nos bairros próximos à orla, enquanto o interior da cidade – a Tijuca, por exemplo – fazia as
vezes de sítio afastado e bucólico.
Já na década de 1920, não era mais exclusivamente o Centro da cidade, reformado du-
rante os anos Pereira Passos, seus bulevares abertos, edifícios neoclássicos erguidos e a ci-
vilidade burguesa parisiense que impressionavam em uma visita ao Rio de Janeiro. Desde o
final do século XIX, com a abertura de túneis e a instalação de novas linhas de bondes, os
bairros atlânticos vinham se tornando crescentemente a menina dos olhos dos prefeitos,
das construtoras e dos especuladores imobiliários. O discurso higienista e civilizatório en-
contrava respaldo nos usos e projetos destinados àquela região da cidade, que tal como um
grau zero, era vista como um lugar fértil para o desenvolvimento dos projetos de progresso
e civilidade (O’Donnell, 2013, p. 32).
Os parâmetros de vanguarda associados à fruição da cultura em espaços fechados –
como se via em metrópoles mundo afora – aportaram na cidade do Rio de Janeiro durante o
século XIX e construíram um importante terreno de contraste quando então, em princípios
do século XX, aportaram os novos parâmetros de valorização, não menos civilizados, dos
usos de espaços ao ar livre para a saúde do corpo e da mente, como eram as praias quase
selvagens dos bairros atlânticos – Leme, Copacabana, Ipanema e Leblon. Enquanto em 1900
a vida burguesa estava associada aos hábitos notívagos e boêmios vividos especialmente
em lugares fechados, como os cafés, bares, cabarés, os anos 1930 apresentaram um novo
padrão de vida burguesa representada por hábitos diurnos, de dedicação à saúde, preferen-
cialmente em espaços amplos e ao ar livre. Exemplo disso é que um dos caminhos abertos
para Copacabana foi iniciativa de um empreendedor que possuía um hotel destinado ao
curismo, muito próximo à atual ladeira dos Tabajaras.

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O fenômeno do turismo destinado à cura cresceu na segunda metade do século XIX impul-
sionado pelos avanços na medicina, que apontavam os ares serranos mais puros e os banhos
em águas gélidas como parceiros no tratamento de diversos males, inclusive psiquiátricos
(Urry, 2001, p. 35). A postura em relação aos banhos não era livre como hoje, pelo contrário,
obedecia a uma prescrição rigorosa dos médicos, que apontavam o melhor horário para o
banho, quantos minutos de imersão deveriam transcorrer e em que situações ele deveria ser
interrompido. Tantos cuidados exigiam o acompanhamento médico, cada vez mais comum,
nas estações de banho que se espalharam pela Inglaterra e França no século XIX. Assim, os
impulsos para o crescimento de estações de banho e balneários encontravam motivação na
tentativa de associar um processo de aburguesamento aos zelos com a saúde.
No Rio de Janeiro essa flutuação dos hábitos da vida é bastante visível na maneira como
se desenvolveu o bairro de Copacabana. Nos anos 1910, era muito bem visto que os morado-
res do bairro circulassem pela cidade durante os fins de semana, aproveitando os aspectos
positivos de morar em um bairro atlântico e de estar a menos de meia hora do Centro, onde
se poderia usufruir de outra sorte de lazeres. O traço cosmopolita do crescimento da cida-
de estava presente justamente na abertura para a circulação, na diversidade de usos que a
cidade possuía. O mar, fosse o Atlântico ou o porto na baía de Guanabara, representava o
cosmopolitismo, porque era através dele que as trocas culturais se estabeleciam.
Em meados dos anos 1920 a postura dos moradores de Copacabana – bem como Ipa-
nema e Leblon – já era a de demandar uma distinção daquele antigo arrabalde dos demais
bairros da cidade, sobretudo os mais populares, valorizando cada vez mais o exercício de
afazeres e costumes praianos como dado elementar de status social. A circulação se tornou
cada vez mais um atributo dos moradores dos bairros da Zona Sul, respeitados os limites do
Centro da cidade e a “excentricidade”3 dos bairros mais populares da Zona Norte (O’Donnell,
2013, p. 141).
A cidade maravilhosa, de sol e mar, é nos dias de hoje uma imagem vinculada e veiculada
exclusivamente aos aspectos positivos da vida – ativa e, sobretudo, contemplativa – que se
observa pela orla desde a Barra da Tijuca até o Centro da cidade. Entre os anos 1900 e 1930,
entretanto, ela foi fruto da intervenção da cidade das letras. Não apenas porque o epíteto
tenha surgido nos contos de Coelho Netto, literato muito presente na imprensa carioca, mas
porque o estilo de vida corrente nos bairros atlânticos não era – como o mar, a praia, os
morros – uma natureza. O que se tornou a forma corrente de frequentar as praias foi ensi-
nado ao carioca através da coluna Iracema na Revista da Semana, entre os anos 1914 e 1917
(O’Donnell, 2013, p. 103). O aprendizado das sociabilidades na praia foi feito a exemplo das
experiências de sucesso dos balneários europeus, visando à associação entre a valorização
dos atributos naturais dos bairros atlânticos cariocas a uma ocupação suntuosa e elegante.

3 Aqui, compreendemos “excentricidade” como uma característica dos bairros afastados do Centro e da Zona
Sul, que, pouco a pouco, se tornavam o centro das atenções da abastada burguesia carioca e dos visitantes da
cidade do Rio de Janeiro.

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Se nas primeiras duas décadas do século XX o Rio de Janeiro, culturalmente efervescen-
te, em especial no Centro da cidade, era simbolizado pela cidade das letras, a partir dos anos
1920 a ocupação dos bairros atlânticos fez com que pouco a pouco a imagem da cidade se
dissociasse do passado vinculado às sociabilidades do Centro – cafés, bares, confeitarias,
teatros, cinemas – e se deslocasse paulatinamente em direção à Zona Sul e à cultura da vida
praiana em meio à paisagem do mar, emoldurada pelas montanhas. Na cidade maravilhosa
vislumbrada por Coelho Netto, a paisagem urbana estava presente sim, mas como uma be-
leza que emoldura a vida na cidade que tinha como palco primeiro o Centro e as suas socia-
bilidades. A partir do momento em que os antigos usos sociais foram dando lugar a outros
usos, vinculados aos bairros atlânticos, e que a vida literária acompanhou esse processo de
aburguesamento, a imagem de cidade maravilhosa se transformou, deixando pouco a pou-
co de representar a efervescente vida cultural do Centro carioca para passar a se identificar
especialmente com as belezas naturais da cidade espraiada entre o Atlântico e o Maciço da
Tijuca.

a imagem turística do rio de janeiro nas primeiras décadas do século xx

A imagem que se fixou do Rio de Janeiro, findo o século XX, é a da cidade que se destaca
em razão da beleza da sua paisagem urbana. Freire-Medeiros e Castro (2013, p. 34) são con-
clusivos ao afirmarem que “o que hoje é percebido como uma ‘natureza turística’ da cidade
é, portanto, apenas um momento de um longo processo de construção cultural, sempre ina-
cabado”. Antes, no início do século XX, a imagem de divulgação mais comum da cidade era
justamente a visão que se tem a partir da entrada da baía de Guanabara, de onde se avistava
o desenho das montanhas que limitavam a área urbana central, onde o visitante iria aportar
e de onde partiria para conhecer a cidade. Naquele momento, os turistas chegavam ao Rio
por mar e a primeira vista que tinham da cidade era precisamente essa. Ao longo dos anos,
com a expansão urbana em direção aos bairros atlânticos, bem como a evolução tecnológica
que passou a introduzir as viagens aéreas, o ponto de vista pelo qual se toma o panorama da
cidade do Rio de Janeiro se desloca paulatinamente da baía de Guanabara para o Atlântico,
o que se pode observar a partir de uma análise de alguns dos guias e mapas turísticos da
cidade, que circulavam nas primeiras décadas do século XX.
A publicação de guias turísticos sobre a cidade do Rio de Janeiro nos ajuda a acompa-
nhar a transformação do modo como a cidade foi vista e apresentada aos visitantes ao longo
do último século. Charles Morel e Henrique Morel, por meio do Guide de L’Etoile du Sud: La
ville de Rio de Janeiro, queriam tornar a cidade conhecida dos europeus. Escrito em portu-
guês e francês, a primeira edição do guia é de 1897, feita pelo pai, Charles Morel, e a segunda
edição, de 1905, contou com a colaboração do filho, Henrique Morel. Como era costume, o
guia traz uma breve história da cidade e fotografias de alguns políticos da época, como as do
prefeito Pereira Passos e do presidente Rodrigues Alves.
Chamam a atenção alguns aspectos muito particulares: a presença de aconselhamento
sobre cuidados com a higiene e saúde, como, por exemplo, evitar a exposição ao sol, tomar

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banho frio apenas de manhã ou à noite, não adicionar gelo às bebidas, evitar o sereno, sair o
mínimo possível à noite, evitar excessos – alcoólicos ou de qualquer ordem; e também as deta-
lhadas informações sobre os sintomas da febre amarela. Convém sublinhar que, naquele mo-
mento, a cidade ainda era considerada pestilenta e, apenas um ano antes da segunda edição
do guia, havia sido palco da Revolta da Vacina. Reescrito no calor das reformas urbanas, critica
as ruas estreitas e mal pavimentadas do Centro da cidade e já previa a mudança do comércio
de luxo da rua do Ouvidor para a avenida Central, tão logo fosse inaugurada.
De acordo com os argumentos higienistas, o guia maldiz a abundância de morros na
cidade porque eles contribuem para a demora no deslocamento de um ponto a outro, ten-
do em vista que tinham de ser contornados, uma vez que ainda não havia tantos túneis
como hoje em dia. Como foi escrito durante as reformas, alerta que muitas indicações sobre
as ruas, especialmente as do Centro, poderiam não estar mais de acordo com a realidade
quando fossem finalizadas as obras. Como em vários outros guias, livros e catálogos sobre a
cidade do Rio de Janeiro, a imagem da baía de Guanabara e do Pão de Açúcar era a primeira
a figurar no Guide de Charles e Henrique Morel. A recorrência a imagens da baía de Guana-
bara nessas publicações estava relacionada ao fato de ser aquele local o ponto de entrada
na cidade do Rio de Janeiro, quando a maioria dos visitantes ainda chegava por mar (Castro,
1999, p. 83). Era necessário, portanto, ambientar os turistas com aquilo que primeiro causaria
impacto na chegada à cidade e que se faz presente no imaginário dos visitantes e cariocas
como uma das mais importantes paisagens que simboliza o Rio de Janeiro: a vista da cidade
espraiada entre o mar e as montanhas.
Se comparado aos guias atuais, há dois aspectos presentes no Guide de Charles e Hen-
rique Morel que já não estariam presentes da mesma forma nos guias mais modernos. Nas
primeiras décadas do século XX, o primeiro passeio indicado ao turista deveria ser feito de
bonde e à pé, visitando ruas, monumentos e edifícios do Centro da cidade. Algumas vezes o
passeio ficava limitado ao Centro e outras vezes se estendia aos bairros banhados pela baía
de Guanabara. Hoje, os primeiros passeios indicados aos visitantes são os mirantes do Pão
de Açúcar e do Corcovado e as praias dos bairros atlânticos: Copacabana, Ipanema e Leblon.
O segundo aspecto diz respeito à organização do mapa turístico da cidade. Hoje em dia,
a parte inferior do mapa, de onde começamos a lê-lo, está ocupada pela orla da zona sul,
enquanto naquela época era ocupada pelo Centro da cidade. Vale sublinhar que os bairros
atlânticos sequer apareciam no mapa turístico da cidade anexado ao Guide dos Morel.
Na ocasião da Exposição Internacional de 1922, que comemorava o centenário da Inde-
pendência do Brasil, foi publicado o “Guia Oficial da Exposição” que, além de dados sobre
os pavilhões e um mapa de toda a região que a exposição abrangia, servia também de guia
turístico, introduzindo o visitante à cidade do Rio de Janeiro. Após a gestão do prefeito Pe-
reira Passos, outros prefeitos deram prosseguimento às obras iniciadas na primeira década
do século XX, observando os paradigmas higienistas e urbanistas da época. O prefeito Carlos
Sampaio foi exemplo disso, sendo conhecido especialmente pelo desmonte do morro do
Castelo – local de fundação da cidade do Rio de Janeiro, fortemente associado ao passado
colonial carioca – e pela realização da Exposição Internacional.

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O guia, escrito em português, francês e inglês, traz toda sorte de informações turísticas
importantes: sugestões de meios de hospedagem – a maioria delas no Centro da cidade –,
meios de transporte da cidade, agências de viagem especialmente dedicadas a cruzeiros
marítimos, endereços de embaixadas e consulados, além de indicações de bares e restau-
rantes, o que segue sendo comum aos guias contemporâneos. O guia informa ainda que o
Palácio Monroe – construído para ser o pavilhão do Brasil na Exposição Universal de Saint
Louis, sendo desmontado e transportado para o Rio de Janeiro para ali ser remontado em
1906 – seria usado como uma espécie de centro de atendimento ao turista, oferecendo ser-
viços de informações, câmbio, agenciamento, bem como material de propaganda e venda
de bilhetes para teatro e afins.
Tal como o Guide de Charles e Henrique Morel, a primeira imagem que consta no Guia
da Exposição de 1922 é uma tomada da baía de Guanabara com o Pão de Açúcar. Por outro
lado, os primeiros passeios pitorescos indicados em 1922 são a subida ao Pão de Açúcar,
onde já estava instalado há dez anos o bondinho, e a ida de trem elétrico ao Corcovado.
A essa altura, o Corcovado oferecia apenas um panorama da cidade, tendo em vista que o
Cristo Redentor seria inaugurado anos depois. De todo modo, os bairros atlânticos ainda não
constavam entre os passeios sugeridos, e o Centro da cidade figurava como a “menina dos
olhos” do carioca:

Nestes últimos vinte anos desde a administração do prefeito Pereira Passos à adminis-
tração atual do prefeito Carlos Sampaio, as grandes obras de higiene e embelezamento
converteram a antiga cidade colonial, de ruas estreitas, iluminação deficiente e cons-
truções antiquadas, numa metrópole moderna, profusamente iluminada, excelente cal-
çamento de asfalto, construções magníficas e largas avenidas arborizadas e formosos
jardins públicos (Guia Oficial da Exposição Internacional do Rio de Janeiro, 1922, p. 285).

Com esses exemplos conseguimos observar como a imagem da cidade mudou em de-
corrência de todo tipo de transformações que ela viveu. A mudança da imagem da cidade
para os próprios cariocas e para os estrangeiros alterou também a experiência turística que
se experimentou no Rio de Janeiro ao longo do século XX. Enquanto nas primeiras décadas
do século XX os guias destacam a vista da baía de Guanabara e a visita ao Centro e seus mo-
numentos e edifícios, nas últimas décadas desse século se observa que o destaque passa a
ser as praias da Zona Sul e os mirantes do Pão de Açúcar e do Corcovado. Os indícios que a
pesquisa nos guias e mapas turísticos da cidade nos dão são de que essa mudança na ima-
gem turística, que resulta de uma mudança na concepção de cidade maravilhosa, se inten-
sificou e consolidou entre os anos 1930 e 1970. Celso Castro (1999, p. 84) pondera que “não
se trata de uma relação de determinação direta, e sim de interação: às vezes muda a cidade,
muda o turismo; outras vezes, a partir de modificações no mundo do turismo, introduzem-
se alterações urbanísticas na cidade.” A imagem turística da cidade do Rio de Janeiro se viu
transformada na medida em que a cidade das letras de princípios do século XX, sediada no
Centro da cidade, passou a concorrer com a expansão da área urbana e o desenvolvimento

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dos bairros atlânticos, que figuram nos cartões-postais e demais souvenirs, e hoje simboli-
zam a principal paisagem da cidade maravilhosa.
A imagem da cidade que se construía na literatura ganhou forma e vigorou como cidade
das letras justamente porque efervesciam os encontros culturais e as experiências intelectu-
ais nos mais diversos ambientes no Centro da cidade, dos cafés aos teatros. Assim, a cidade
maravilhosa era a cidade das letras, a cidade onde o Centro, as suas sociabilidades e a paisa-
gem da Guanabara – e não os bairros atlânticos e o lazer ao ar livre – eram o destaque entre
cariocas e estrangeiros. Na medida em que a literatura foi deixando de ser o terreno em que
se construíam as imagens da cidade e o Rio de Janeiro passou a se expandir e se desenvol-
ver no sentido da Zona Sul, a expressão cidade maravilhosa ganhou novo significado, que
expressa antes as belezas naturais relacionadas à paisagem da cidade que cresceu entre as
montanhas e o Atlântico. A imagem turística da cidade acompanhou essas mudanças e con-
tinua a confirmar essa nova visão da cidade maravilhosa, que as últimas décadas do século
XX e os primeiros anos do século XXI seguem ratificando.

Referências bibliográficas

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Recebido em 27/11/2014
Aprovado em 15/1/2015

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diplomática: novos usos para uma antiga ciência (parte v)
diplomatics: new uses for an old science (part v)

Luciana Duranti | Diretora do Master on Archival Studies da Universidade de British Columbia, Vancouver, Canadá.
Diretora do Projeto InterPARES, pesquisa internacional multidisciplinar sobre preservação de documentos digitais
autênticos.

resumo

Este artigo constitui o quinto de uma série de seis publicados na revista Archivaria, da Asso-
ciação dos Arquivistas Canadenses, em 1991, sob o título: “Diplomática: novos usos para uma
antiga ciência”. Nessa quinta parte, a autora aborda a questão da análise diplomática aplicada à
forma documental. Entendida pelos diplomatistas como um meio de compreender os atos que
geram os documentos, a forma em que se apresentam torna-se objeto de análise desses estu-
diosos, que estabelecem uma metodologia: a decomposição dessa forma nos seus elementos
intrínsecos e extrínsecos.

Palavras-chave: diplomática; forma documental; elementos intrínsecos; elementos extrínsecos.

abstract

This is the fifth in a series of six articles published in Archivaria, the journal of the Association of
Canadian Archivists, in 1991, under the title “Diplomatics: new uses for an old science”. In this fif-
th part, the author addresses the issue of diplomatic analysis applied to the documentary form.
Since diplomatists see documentary form as a means to understand the actions that generate
documents, their form becomes the object of analysis of these scholars, who establish a me-
thodology that includes the decomposition of this form in its intrinsic and extrinsic elements.

Keywords: diplomatics; documentary form; intrinsic elements; extrinsic elements.

resumen

Este artículo es el quinto de una serie de seis, publicado en la revista Archivaria, de la Asociaci-
ón de Archiveros de Canadá, en 1991, bajo el título: “Diplomática: nuevos usos para una vieja
ciencia”. En él, el autor aborda el análisis diplomático aplicado a la forma documental. Los diplo-
matistas ven la forma documental como un medio para comprender las acciones que generan
documentos, la forma se ha convertido en el objeto de análisis de estos estudiosos, los cuales
establecen una metodología: la descomposición de esa forma en sus elementos intrínsecos y
extrínsecos.

Palabras clave: diplomática; forma documental; elementos intrínsecos; elementos extrínsecos.

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A quietude desliza pelo riacho, e para sempre deslizará
A forma permanece, a função jamais morrerá

Wordsworth, The River Duddon, 34,


“Afterthought”

A forma de um documento revela e perpetua a função a que serve. Com base nessa
observação, diplomatistas antigos estabeleceram uma metodologia para analisar formas
documentais que permitiram a compreensão de ações administrativas e as funções que as
geraram. Essa metodologia baseou-se no entendimento de que, apesar das diferenças quan-
to à origem, procedência ou data, todos os documentos apresentam formas bastante seme-
lhantes para possibilitar a concepção de uma forma documental típica, ideal, mais regular e
completa, com o propósito de examinar todos os seus elementos.1 Uma vez identificados os
elementos dessa forma ideal e suas funções específicas, as variações e presença ou ausência
nas formas documentais existentes irão revelar a função administrativa dos documentos que
manifestam aquelas formas.
A diplomática define forma como o conjunto das regras de representação utilizadas para
enviar uma mensagem, isto é, como as características de um documento que podem ser se-
paradas da determinação dos assuntos, pessoas ou lugares específicos aos quais se referem.
A forma documental é tanto física quanto intelectual. A expressão forma física refere-se ao
layout externo do documento, enquanto o termo forma intelectual refere-se à sua articula-
ção interna (Duranti, Summer 1989, p. 15). Assim os elementos da primeira são definidos
por diplomatistas como externos ou extrínsecos, enquanto os elementos da segunda são
definidos como internos ou intrínsecos (Giry, 1893, p. 493; Pratesi, s.d., p. 52; Carucci, 1987, p.
98). Do ponto de vista conceitual, pode-se dizer que os elementos intrínsecos da forma são
os que fazem um documento ser completo, e os elementos extrínsecos são os que o fazem
perfeito, isto é, capazes de atingir seu objetivo.2
Este artigo vai apresentar e discutir os elementos extrínsecos e intrínsecos da forma do-
cumental, e mostrar sua relação com ações e funções administrativas.

os elementos extrínsecos da forma documental

Os elementos extrínsecos da forma documental são considerados aqueles que consti-


tuem o aspecto do documento e sua aparência externa. Podem ser examinados sem a lei-

1 Boüard escreve que a composição análoga e as características comuns de diferentes documentos devem-se ao
fato de que a maior parte das formas documentais tem sua origem na epístola romana (Boüard, 1929, p. 255).
Giry escreve: “en dépit des différences du droit, des coûtumes et des usages, en dépit de nombreuses modi-
fications dues aux circonstances particulières, aux influences locales, aux temps, ou même au caprice et à la
fantaisie, il y a dans lês chartes de toutes lês époques et de tous lês pays suffisamment de caracteres communs
pous qu’il soit possible d’en faire un étude méthodique” (Giry, 1893, p. 481).
2 Comparar com o conceito de originalidade explicado em Duranti, Summer 1989, p. 19.

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tura do documento e estão presentes de forma integral somente no original (Pratesi, s.d.,
p. 53). Eles são o suporte, o texto, a linguagem, os sinais especiais, os selos e as anotações.
O estudo desses elementos é o objeto da paleografia propriamente dito, pelo menos desde
que a separação desta disciplina da diplomática ocorreu formalmente no século XIX. 3 En-
tretanto, a diplomática mantém seu interesse neles porque o propósito de sua análise dos
elementos, principalmente a compreensão dos processos e atividades administrativos,
não está diretamente coberto pela paleografia, que tem maiores interesses em adquirir
e compreender a evolução social, e os progressos culturais, intelectuais, ideológicos, eco-
nômicos e técnicos. É claro que a diplomática usa os instrumentos intelectuais oferecidos
pela paleografia e outras disciplinas (por exemplo, a sigilografia) para analisar alguns dos
elementos extrínsecos e seus componentes, tais como tintas, iluminuras, caracteres grá-
ficos e selos, mas só observa seus aspectos específicos e por razões também específicas.
Na verdade, somente determinadas partes dos elementos extrínsecos são especialmente
relevantes para a diplomática.
O primeiro elemento extrínseco a ser considerado é o suporte, o material que comuni-
ca a mensagem. Tradicionalmente, tem sido essencial para os diplomatas identificá-lo (seja
papiro, pergaminho, papel, tábua de madeira etc.), para descobrir como foi preparado (por
exemplo, a pasta do papel, as marcas d’água) e perceber tanto sua forma quanto seu tama-
nho (ou formato) e as técnicas utilizadas para prepará-lo a receber a mensagem (por exem-
plo, margem, alinhamento). Esse tipo de análise foi muito importante para os documentos
medievais, porque tornou possível datá-los, estabelecer sua procedência e testar sua auten-
ticidade. Posteriormente, muito de sua relevância perdeu-se porque as instituições passa-
ram a utilizar materiais de escrita produzidos industrialmente e que atendiam a um grande
número de clientes, e muitas instituições adotaram os mesmos tipos de materiais. Hoje, com
um número crescente de diferentes tipos de suportes físicos (i. e., fitas magnéticas, discos
óticos), a atenção ao suporte escolhido para transmitir um tipo de informação pode ser bas-
tante reveladora do propósito final daquela informação – como deve ser utilizada.
Outro elemento extrínseco que foi bastante importante para os diplomatistas, mas que
aos poucos perdeu importância, é o texto. Enquanto a função da paleografia é determinar
que tipo de texto é próprio de uma era e de um ambiente, a função da diplomática é exa-
minar outras características do texto, tais como os tipos de escrita, a presença de diferentes
caligrafias ou tipos de escrita no mesmo documento, a correspondência entre parágrafos e
assuntos do texto, pontuação, abreviaturas, iniciais, tinta, rasuras, correções etc. Com a in-
venção da imprensa e, mais tarde, da máquina de escrever, algumas dessas características
tornaram-se irrelevantes ao propósito da crítica diplomática. A necessidade de um exame
cuidadoso dessas características volta a surgir, no entanto, graças ao advento de novas
tecnologias. O software de computador, por exemplo, pode ser considerado parte do ele-
mento extrínseco do texto, porque determina o layout e a articulação do discurso, e ofere-

3 Este aspecto é especialmente tratado por Boüard, 1929, p. 224 e Giry, 1893, p. 493.

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ce informação sobre procedência, procedimentos, processos, usos, modos de transmissão
e, por último, mas não menos importante, autenticidade. Além disso, a verificação, edição
e observações à documentação referentes a um sistema eletrônico de informação, realiza-
das pelo arquivista que adquire os arquivos de dados eletrônicos, são uma forma moderna
de análise diplomática do texto. Outro exemplo desse tipo de análise é o estudo que leva
à definição da norma do ODA (Office Document Architecture). A principal característica do
ODA é que ele separa a “estrutura lógica” de um documento (parágrafos, seções e a relação
entre eles) de sua “estrutura física” (paginação, formatação), de seu “conteúdo” (no jargão
técnico dos especialistas, a forma de representação da mensagem: por exemplo, texto e
gráficos), e de seu “perfil” (que corresponde aos “elementos intrínsecos” diplomáticos). Os
três primeiros elementos dentre os quatro acima citados constituem as partes do texto
que são objeto de estudo da diplomática.
A linguagem utilizada no documento é um elemento extrínseco cuja importância é pou-
co percebida hoje, mas que no passado foi o centro da atenção de muitos diplomatistas.
Arthur Giry afirma que os documentos criados no decorrer de uma atividade administrativa
destinam-se a regulá-la, pois

as ideias expressas neles e as categorias de fatos com os quais se relacionam são necessa-
riamente limitadas em número, e reaparecem com muita frequência nos documentos do
mesmo tipo. Além do mais, e porque é importante discernir com facilidade a mensagem
essencial num documento, ideias e fatos são arrumados numa determinada ordem que
promove uma fácil compreensão. Finalmente, porque a expressão e a organização (da-
quelas ideias e fatos) devem acontecer de tal modo que não possam ocorrer equívocos e
mal entendidos, nem qualquer necessidade de se voltar ao assunto, expressões específi-
cas e frases inteiras são escolhidas e transformadas em fórmulas (Giry, 1893, p. 480).

Desde o início da Idade Média, a arte da composição e estilo foi matéria de ensino re-
gular, que determinou o desenvolvimento de um tipo de retórica documental, chamado ars
dictaminis ou dictamen. Teóricos estabeleceram suas regras, que se destinavam a direcionar
a composição, estilo e ritmo de todo tipo de documento público, contrato privado e corres-
pondência de família ou institucional. Os vários tratados resultantes costumavam ser acom-
panhados de conjuntos de modelos e exemplos, ou de cópias de documentos, reunidos com
o propósito de mostrar a aplicação da doutrina. Esses volumes, normalmente utilizados pe-
las autoridades públicas, tabeliães e todos os que precisavam se comunicar pela escrita eram
chamados de formularia.4 Sua produção diminuía gradualmente com o desenvolvimento da
educação elementar, mas ainda são criados hoje para uso de alguns profissionais envolvidos
na criação de tipos de documentos, cuja linguagem é altamente padronizada e controlada,

4 Para uma ampla discussão sobre o dictamen e a formularia, ver Boüard, 1929, p. 241-252 e Giry, 1893, p. 479-492.

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tais como advogados.5 Com relação aos documentos eletrônicos, o codebook pode ser con-
siderado um formularium moderno devido a seu caráter instrutivo.
O elemento da linguagem também é estudado, particularmente por diplomatistas de
documentos contemporâneos, a partir de um ponto de vista social. Diversos grupos sociais
usam formas de discurso e vocabulários também diferentes, e em cada um deles são adota-
dos estilos formais ou informais, dependendo do objetivo e função dos documentos criados.
Não existe dúvida sobre a existência de um estilo curial, jornalístico, político, empresarial,
científico e coloquial. É importante salientar que não só o estilo, mas também o fraseado e
a composição dos documentos criados, por exemplo, por um repórter, são radicalmente di-
ferentes daqueles criados por um advogado, enquanto os de um documento criado por um
advogado ao desempenhar sua função notarial são diferentes daqueles encontrados numa
carta escrita por um advogado a um colega.6
Entre os elementos extrínsecos, os diplomatistas de documentos medievais costuma-
vam incluir os sinais especiais, que deveriam ser observados como elementos intrínsecos
devido à sua função de identificar as pessoas envolvidas na atividade de documentação. Os
sinais especiais podem ser divididos em duas categorias: os sinais do escritor e dos signatá-
rios e os sinais da chancelaria ou do arquivo. A primeira categoria inclui os símbolos usados
pelos tabeliães como marcas pessoais no período medieval, correspondendo ao selo nota-
rial moderno, e as cruzes usadas por alguns signatários no lugar de seus nomes. A segunda
categoria inclui a rota e bene valete usadas pela chancelaria papal; o monograma do nome
pessoal do soberano utilizado nas chancelarias reais e imperiais; as iniciais m.p.r. no lugar de
manu próprio; o s duplo para s(ub)s(cripsi); e todos os diferentes selos oficiais.7
O elemento extrínseco mais importante dos documentos medievais, e o menos comum
e relevante nos documentos contemporâneos, é o selo. Ao examinar o selo, diplomatistas
concentram sua atenção no material de que são feitos, sua forma, tamanho, tipologia (como
se relaciona com a figura na impressão: tipo heráldico, equestre, monumental, hagiográfico,
nobre etc.), legenda ou inscrição (a invocação, título e nome do autor, que se lê no sentido
horário em volta da figura central ao longo da borda do selo, começando do alto), e o mé-
todo de afixá-los (selos podem ser pendurados ou colados). A análise desses componentes
possibilita a determinação do grau de autoridade e solenidade de um documento, sua pro-
cedência e função, e sua autenticidade.8

5 Algumas coleções de cópias de documentos foram reunidas por diplomatistas que, preocupados com a ausên-
cia ou perda de formularia durante alguns períodos históricos, sentiram a necessidade de possuir modelos que
pudessem ser comparados aos vários documentos a serem analisados e identificados quanto à forma e função.
Hubert Hall oferece um exemplo em Hall, 1969a.
6 Para uma discussão sobre esse tema ver Carucci, 1987, p. 14-16.
7 Pratesi, s.d., p. 56-58. Giry considera os sinais especiais como parte integral da validação de um documento, e
portanto discute-os associados às subscrições e assinaturas, isto é, no contexto de “atestação”, que é um ele-
mento intrínseco da forma (Giry, 1893, p. 591).
8 Para amplas discussões sobre selos sob o ponto de vista diplomático, ver Giry, 1893, p. 622-660 e Boüard, 1929,
p. 333-365.

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O último elemento extrínseco a ser considerado, e o mais relevante para documentos
contemporâneos, são as anotações. Elas podem ser agrupadas em três categorias: 1) ano-
tações incluídas num documento após sua compilação, como parte da fase de execução
de um procedimento administrativo;9 2) anotações incluídas num documento completo no
decorrer da transação da qual o documento participa; e 3) anotações acrescentadas a um
documento pelo serviço de arquivo, corrente e/ou permanente, responsável por sua identi-
ficação como parte de um grupo de documentos (arquivos, séries) e por sua manutenção e
recuperação.
Os principais componentes da primeira categoria de anotações incluem autenticação e
registro. A autenticação pode se referir a uma ou mais assinaturas, a um documento inteiro,
ou a uma cópia de documento. O que determina que um documento é o que diz ser ou que a
cópia está de acordo com o original é o reconhecimento legal de que a assinatura nele afixa-
da expressa o nome da pessoa que o assina e a ela pertence.10 Registrar é a ação de inscrever
um documento num registro, realizada por um funcionário diferente daquele que o emitiu
e designado para aquela função. Quando o registro acontece, o número atribuído ao docu-
mento no registro é anotado nele com uma fórmula que atesta aquela ação. Esta fórmula e
o número de registro podem ser acrescentados ao documento, não pelo setor de registro,
mas pelo tabelião ou advogado responsável pela compilação do documento, obedecendo à
autorização do setor de registro.11
A segunda categoria de anotações engloba componentes como pontos de interrogação,
iniciais, e outros sinais semelhantes junto ao texto; indicação de ações prévias e/ou futuras;
datas de depoimentos ou de leitura; notas de transferência para outra instituição; indicação
de distribuição futura; menção sobre o assunto do documento; ou palavras como “urgente”,
“chamar a atenção para”, “aguardar”, e sucessivamente.
A terceira categoria de anotações inclui componentes como o número de registro, isto
é, o número consecutivo atribuído à entrada e saída de correspondência nas instituições
que usam o sistema de registro; o número de classificação, que identifica um documento e o
relaciona com aqueles de transação idêntica, dossiê/processo e séries; referências cruzadas
para documentos em outros dossiês/processos e/ou séries; data e setor de recebimento; e
identificadores arquivísticos, tais como os números consecutivos de páginas atribuídos pelo
serviço de arquivo, códigos de localização etc.

9 A fase de execução de um procedimento administrativo “é constituída por todas as ações que dão caráter for-
mal à transação” (Duranti, Winter 1990-1991).
10 Quando a data de autenticação é diferente da data em que o documento foi compilado e aparece entre os
elementos intrínsecos da forma documental, a primeira é considerada a data efetiva do documento, para os
propósitos legais de evitar fraude.
11 O registro não é um requisito “formal” para qualquer documento. Para documentos privados, o registro só é
exigido para fins fiscais, ou para tornar o documento público. Portanto, os documentos estão “formalmente”
completos e efetivos sem o registro.

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As anotações constituem o elemento extrínseco que mais claramente revela o processo
de formação de um documento, a maneira como participa de uma transação ou procedi-
mento, e sua história custodial.
Para resumir, os elementos extrínsecos da forma documental conforme identificados
pela diplomática são os seguintes:

material
formato
preparo para receber a mensagem
layout, paginação, formatação
Suporte: tipos de texto
diferentes tipos de caligrafias, datilografias
ou tintas
parágrafos

pontuação
abreviaturas e iniciais
emendas e correções
Texto: software de computador
fórmulas

vocabulário
dissertação
Linguagem: estilo

sinais dos escritores e subscritores


sinais de chancelarias
Sinais especiais: forma e tamanho

tipologia
legenda ou inscrição
Selos: método de afixação

autenticação
registro
Anotações incluídas na fase de execução: sinais ao lado do texto
ações anteriores ou futuras
datas de depoimentos ou leituras

notas de transmissão
destinação
assunto
incluídas na fase de manuseio: “urgente”
“chamar a atenção”
número de registro
número de classificação

referências cruzadas
incluídas na fase administrativa: data e setor de recebimento
identificadores arquivísticos

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os elementos intrínsecos da forma documental

Os elementos intrínsecos da forma documental são considerados como componen-


tes integrais de sua articulação intelectual: o modo de apresentação do conteúdo do do-
cumento ou as partes que determinam o teor do todo. O estudo de um grande número
de documentos mostrou que “os elementos que compõem sua forma intelectual não são
simplesmente justapostos, mas tendem a se agrupar, a ter alguma relação de subordinação
entre eles, e por isso formar seções que incluem vários deles” (Giry, 1893, p. 527). Portan-
to, é possível afirmar que todos os documentos “apresentam uma estrutura típica óbvia” e
“uma subestrutura analítica ideal” (Pratesi, s.d., p. 62). Esta subestrutura ideal compreende
três seções, cada uma apresentando um objetivo específico. A primeira, chamada protocolo,
contém o contexto administrativo da ação (i.e., indicação das pessoas envolvidas, hora e
local, e assunto) e formulae iniciais; a segunda, chamada texto, contém a ação, incluindo as
considerações e circunstâncias que deram origem a ela, e as condições relacionadas ao seu
cumprimento; a terceira, chamada escatocolo, contém o contexto documental da ação (i.e.,
indicação dos meios de validação, indicação das responsabilidades para documentação do
ato) e formulae finais.12 As três seções tendem a ser fisicamente distintas e reconhecíveis,
mesmo em documentos medievais e do início da era moderna, quando não estão divididos
em parágrafos: geralmente, as três partes eram identificadas pela primeira palavra e às vezes
também a última, escritas de maneira, estilo ou tamanhos diferentes.
Os elementos intrínsecos da forma que geralmente aparecem no início do documento, isto
é, em seu protocolo, são numerosos.13 Alguns são típicos de documentos medievais, outros de
documentos contemporâneos; alguns característicos de documentos de autoridades públicas,
outros de pessoas jurídicas privadas; alguns pertencem a documentos solenes, outros a docu-
mentos comerciais; finalmente, alguns são mutuamente exclusivos enquanto outros tendem a
coexistir. Estão descritos aqui na ordem em que aparecem quando estão presentes.
Em documentos modernos, bem no alto, pode aparecer a titulação, que hoje correspon-
de ao cabeçalho. Inclui nome, título, credenciais e endereço da pessoa física ou jurídica que
produziu o documento, ou da qual o autor do documento é um agente. Abaixo da titulação
ou em seu lugar pode-se ter o título do documento (p. ex., “Acordo selado”, “Acordo”, “Minu-
tas”, “Esta é a última vontade ou testamento”).

12 Diplomatistas franceses e alemães usam os termos “protocolo inicial” e “protocolo final” para a primeira e ter-
ceira seções do documento. A palavra protocolo deriva do grego protokollon, que significa “o primeiro a ser
colado,” e se refere ao primeiro plagula ou tira do rolo de papiro. Portanto, diplomatistas italianos consideraram
a expressão “protocolo inicial” um pleonasmo, e a expressão “protocolo final” uma contradição em termos, en-
tão resolveram chamar a primeira seção simplesmente de “protocolo”, e a terceira, por analogia, “escatocolo,” do
grego eschatokollon, que significa “o último a ser colado” (Pratesi, s.d., p. 63).
13 É interessante notar que o registro italiano, onde os dados essenciais dos documentos recebidos e expedidos
são transcritos, é chamado de “protocolo”. Esta é provavelmente uma consequência do fato de que os dados
extraídos dos documentos para registro são os contidos em seu protocolo.

acervo , rio de janeiro , v . 28 , n . 1 , p . 196 - 215 , jan . / jun . 2015 – p . 203


Em documentos contemporâneos, o cabeçalho é geralmente seguido pela data, que
indica o local e/ou a data da compilação do documento e/ou a ação a qual o documento
se refere. Em documentos medievais e do início da modernidade a data fica no escatoco-
lo. 14 Em documentos muito solenes a data está presente tanto no protocolo quanto no
escatocolo.
A invocação, isto é, a menção a Deus, em nome de quem cada ação tinha que ser reali-
zada, estava presente tanto em documentos públicos quanto privados no período medieval.
Ainda pode ser encontrada em documentos emitidos por instituições religiosas, mas é cada
vez mais raro. Quando aparece, toma uma forma verbal (começando com as palavras “em
nome de”) ou uma forma simbólica (expressa pela cruz, o monograma constantiniano para
Christos, ou o ‘I’ e ‘C’, para Jesus e Christus). A menção a Deus está no escatocolo quando ele é
chamado para testemunhar um ato (p. ex., um juramento). É possível dizer que documentos
modernos e contemporâneos contêm uma invocação sempre que apresentam uma reivin-
dicação de que a ação está sendo realizada em nome do povo, do rei, da república, da lei ou
de outras entidades semelhantes.
Um elemento típico do protocolo costumava ser o sobrescrito, i.e., a menção do nome
do autor do documento e/ou a ação. Hoje, o sobrescrito tende a tomar a forma de uma ti-
tulação; às vezes, no entanto, coexiste com a titulação. Ainda aparece sozinho em todos os
documentos contratuais (o sobrescrito inclui a menção à primeira parte),15 em declarações
(aquelas que começam com o pronome “Eu”, seguido do nome do subscritor) e em docu-
mentos holográficos, tais como testamentos (p. ex., “Esta é a última vontade e último testa-
mento [título] de John Smith de Vancouver [subscrição]” ).
Documentos em forma epistolar geralmente apresentam em seu protocolo o nome, tí-
tulo e endereço do destinatário do documento e/ou da ação. Este elemento chama-se ins-
crição [n. t.: inscrição é o nome do destinatário]. Pode ser uma inscrição nominal ou geral. A
primeira se refere a uma ou mais pessoas específicas, enquanto a última se refere a uma en-
tidade maior, indeterminada, tal como cidadãos, o povo, os crentes, os estudantes, todos os
envolvidos, ou “a quem interessar possa”. Em documentos contratuais, entendendo-se que
a primeira parte é o autor, qualquer outra parte é o destinatário e a menção ao nome dele,
dela ou deles constitui a inscrição do documento. A inscrição está regularmente presente
em documentos dispositivos, geralmente em documentos narrativos e de apoio, mas muito

14 É fato que, com o tempo, todos os elementos conectados ao contexto tendem a se transferir para o protocolo,
e os únicos elementos restantes no escatocolo são a validação e algumas cláusulas finais. Com a evolução
tecnológica, a validação algumas vezes se transferiu para o protocolo, e a subscrição no escatocolo parece ser
mais uma formalidade do que uma atestação real; considere, por exemplo, o telegrama e o correio eletrônico.
Independentemente da tecnologia, algumas formas documentais tendem a apresentar um escatocolo vazio ou
quase vazio; considere, por exemplo, o memorando.
15 Ao se analisar documentos que atestam ações de obrigações recíprocas, em que cada parte é tanto autor quan-
to destinatário, os diplomatistas convencionaram que a primeira parte é o autor e qualquer outra é o desti-
natário. Portanto, o nome, título e endereço da primeira parte constituem o sobrescrito de todo documento
contratual. Ver Duranti, Summer 1990, p. I7.

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raramente em documentos probatórios, porque geralmente estes últimos não são dirigidos
à pessoa a quem se destinam (p. ex., certificados).
A inscrição é quase sempre seguida pela saudação, uma forma de cumprimento que
aparece somente em cartas. Em documentos modernos e contemporâneos a saudação está
geralmente no escatocolo; às vezes tanto no protocolo quanto no escatocolo.
Hoje, a inscrição pode ser seguida pelo assunto, em vez da saudação, isto é, por uma
declaração que indica o assunto do documento. O assunto tem aparecido em alguns docu-
mentos judiciais desde o último século, mas é geralmente inserido em documentos de ins-
tituições governamentais e, por extensão, em documentos comerciais durante este século.
Típico de documentos medievais e do início da era moderna que conferem títulos ou privi-
légios é um elemento chamado formula perpetuitatis. É uma sentença que declara que os direi-
tos instituídos pelo documento não estão circunscritos ao tempo: in perpetuum (para sempre),
ad perpetuam rei memoriam (para sempre na memória) ou pp. (abreviatura para perpetuum).
Outra fórmula medieval é a apreciação, isto é, uma curta oração para a concepção do con-
teúdo do documento: feliciter (felicidades), ou amem (assim seja). Aparece no protocolo em
documentos particulares, e no escatocolo em documentos públicos após a data. Uma forma
moderna de apreciação é a expressão que sempre encerra os documentos contemporâneos, e
que é introduzida pelas palavras “atenciosamente”, “eu agradeceria”, “cordialmente” etc.
O texto é a parte central do documento, onde se encontra a manifestação da vontade
do autor, a evidência da ação, ou a sua memória. Sob pontos de vista histórico, legal e ad-
ministrativo esta é geralmente a parte mais importante do documento, porque representa a
substância, a razão de sua existência. No entanto, para o diplomatistas, o texto não oferece
mais material para a crítica do documento do que as outras duas seções.
O texto quase sempre começa com um preâmbulo que expressa o motivo ideal da ação.
Não oferece a razão concreta e imediata para a criação do documento, ou a ação atingida,
mas sim o princípio ético ou jurídico. Consiste em considerações gerais, que não estão dire-
tamente ligadas ao assunto do documento, mas expressam as ideias que inspiraram o autor.
O preâmbulo tem o objetivo de atrair o interesse do destinatário e ornamentar o discurso, e
é, portanto, composto de expressões morais ou devotas, frases que expressam concepções
políticas, políticas administrativas, princípios legais, sentimentos de amizade, cooperação,
interesse, segurança, e assim por diante. O preâmbulo nunca foi parte essencial do texto,
por isso sua presença indica solenidade ou formalidade. Em documentos legais modernos,
o preâmbulo contém uma citação de leis, regulamentações, decretos, ou opiniões nas quais
a ação se apóia. Hoje, como no passado, é possível perceber que alguns tipos de formas
documentais têm seus preâmbulos próprios e específicos, e quase sempre estereotipados.
“Quando esta parte do texto não é copiada de formulários antigos ou ações anteriores, re-
conhece-se nele, melhor do que em qualquer outra parte, a marca de uma época, as carac-
terísticas típicas de certas categorias de ações ou de certas chancelarias, e também a marca
da personalidade do autor” (Giry, 1893, p. 543). Por exemplo, em cartas reais de nomeação, o
preâmbulo diz: “Levamos em Nossa Consideração Real a Lealdade, Integridade e Habilidade
de Nosso Caro e Mui Querido...”.

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Em alguns documentos oficiais dispositivos o preâmbulo é seguido pela notificação, isto
é, pela apresentação do significado do documento. O seu objetivo é expressar que a ação
consignada ao documento é comunicada a todos que têm interesse nela e, também, que to-
das as pessoas envolvidas devem ser alertadas sobre o conteúdo dispositivo do documento.
A notificação consiste de uma expressão, tal como “notum sit”, “faça-se saber”, “saiba você”, e
às vezes inicia o texto e é seguida do preâmbulo, ou existe sem ele.
A substância do texto é geralmente introduzida pela exposição, isto é, a narrativa das
circunstâncias concretas e imediatas que deram origem à ação e/ou ao documento. Em do-
cumentos resultantes de procedimentos, públicos ou privados, a exposição pode incluir a
memória de várias fases dos procedimentos, ou ser inteiramente constituída pela menção
a uma ou mais delas. Portanto, em documentos que concedem alguma coisa, há menção à
petição, às razões para a petição e para sua aceitação, e ao consenso e conselho das partes
interessadas; em mandados, encontramos uma série de fatos, circunstâncias, razões que de-
terminam a decisão, e assim por diante.16 Às vezes a exposição inclui nomes de pessoas que
participaram no processo de tomada de decisão, como intermediários, conselheiros, amigos
ou parentes. Acontece que muitos documentos, tanto públicos quanto privados, têm origem
em situações análogas. Nesses casos, a narrativa passa a ser uma fórmula estereotipada que,
em documentos legais, especialmente naqueles de natureza contratual, é prescrita por lei.
Em documentos contemporâneos, esta fórmula é geralmente pré-impressa formalmente, e
começa com “considerando que”.
O núcleo do texto é a disposição, isto é, a expressão da vontade ou julgamento do autor.
Aqui, o fato ou ação é enunciado expressamente, geralmente por meio de um verbo capaz
de comunicar a natureza da ação e a função do documento, tal como “autorizar”, “promul-
gar”, “decretar”, “certificar”, “concordar”, “solicitar” etc. O verbo pode ser precedido por uma
palavra ou locução que coloca a disposição em direta relação com a exposição anterior ou
preâmbulo, tal como “portanto”, “pelo presente” etc. Há fórmulas específicas usadas rotinei-
ramente para certos tipos de transação, mas geralmente a disposição varia de um documen-
to para outro porque não há duas ações idênticas.
Em muitos documentos o texto termina com a disposição, isto é, assim que a substância
da ação é expressa. O texto da maioria dos documentos, no entanto, contém depois ou na
própria disposição algumas formulae, cujo objetivo é o de assegurar a execução da ação, evi-
tar sua violação, garantir sua validade, preservar os direitos de terceiros, atestar a execução
de formalidades exigidas, e indicar os meios empregados para atribuir ao documento valor
probatório. Estas formulae constituem as cláusulas finais que podem ser divididas em grupos
como os seguintes:
Cláusulas de injunção: aquelas que expressam a obrigação de todos envolvidos em cum-
prir a vontade da autoridade.
Cláusulas de proibição: aquelas que expressam a proibição de violar a ordem ou se opor a ela.

16 Para discussão sobre as fases de um procedimento, ver Duranti, Winter 1990-1991, p. 14.

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Cláusulas de derrogação: aquelas que expressam a obrigação de respeitar a ordem, a
despeito de outras ordens ou decisões contrárias a ela, oposição, apelos ou disposições an-
teriores.
Cláusulas de exceção: aquelas que expressam situações, condições ou pessoas que cons-
tituiriam uma exceção à ordem.
Cláusulas de obrigação: aquelas que expressam a obrigação das partes de respeitar o ato,
em benefício delas mesmas e no de seus sucessores ou descendentes.
Cláusulas de renúncia: aquelas que expressam consentimento em desistir de um direito
ou petição.
Cláusulas de advertência: aquelas que expressam uma ameaça de punição no caso da
ordem ser violada. Compreendem duas categorias: sanções espirituais, incluindo ameaças
de maldição ou anátema; sanções penais, incluindo a menção de consequências penais es-
pecíficas.
Cláusulas promissórias: aquelas que expressam a promessa de um prêmio, geralmente de
natureza espiritual, para os que respeitam a ordem.17
Cláusulas de corroboração: as que informam os meios utilizados para validar o documen-
to e garantir sua autenticidade. A redação varia de acordo com a hora e lugar, mas estas cláu-
sulas são geralmente consagradas e fixas. Como exemplos: “Assinado e selado”, “Testemunho
de nosso amado...” etc.18
Cada vez com maior frequência, especialmente em documentos solenes, oficiais e jurídi-
cos, a cláusula de corroboração inicia o escatocolo, seguida imediatamente pelo local e data,
ou uma referência à data expressa no protocolo (por exemplo: “Como testemunho assino e
dato em Johnstown no quarto dia de julho do ano do Nosso Senhor de mil e oitocentos e
oito”). Em documentos não oficiais, e em documentos de origem privada, o escatocolo pode
começar com uma frase de apreciação, seguida pela saudação, e pela cláusula cortês, que
consiste de uma breve fórmula expressando respeito, tal como “sinceramente”, “cordialmen-
te” etc. Seja qual for o caso, a essência e o núcleo do escatocolo é a atestação, i. e., a subscri-
ção daqueles que participaram da produção do documento (autor, escritor, contra-assinatu-
ra) e das testemunhas à ordem ou à subscrição. Geralmente, a subscrição toma a forma de
uma assinatura, mas nem sempre é assim; por exemplo, telegramas e mensagens eletrônicas
apresentam subscrições que não são assinaturas. A atestação é o meio geralmente utilizado
para validar um documento, mas não está presente em todo tipo de documento. Por exem-
plo, livros de contabilidade, diários e faturas não precisam de subscrição para serem válidos
porque o processo de criação já os valida. Outros documentos apresentam sua validação no
protocolo. Isto é típico de documentos eletrônicos, mas exemplos também podem ser en-
contrados em documentos tradicionais: registros podem ser validados na primeira página,

17 As cláusulas de advertência e as cláusulas promissórias são chamadas por alguns diplomatistas, respectivamen-
te, de sanções negativas e sanções positivas.
18 Para uma discussão mais profunda das cláusulas finais, ver Giry, 1893, p. 553-572 e Boüard, 1929, p. 277-292.

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memorandos podem ser assinados ou carregar as iniciais ao lado do sobrescrito, e os docu-
mentos emitidos pelos monarcas ingleses mostram o signum manus no alto à esquerda. Uma
discussão sobre os vários tipos de atestação, seu significado e sua função, não está entre os
objetivos deste artigo e exigiria o espaço de um artigo inteiro.19
Quando as atestações são assinaturas, aparecem geralmente acompanhadas pela qua-
lificação da assinatura, isto é, pela menção do título e créditos do assinante. A qualificação
da assinatura pode ser seguida pelas notas (iniciais do datilógrafo, menção de anexos, indi-
cação de que o documento tem cópia para outras pessoas etc.), mas geralmente constitui o
último elemento intrínseco da forma documental.

Para resumir, os elementos intrínsecos da forma documental são:

titulação
título
data
invocação

Protocolo: subscrição; inscrição; saudação; assunto; fórmula de perpetuidade; apreciação


Texto: preâmbulo; notificação; exposição; disposição; cláusulas finais
Escatocolo: corroboração; [data]; [apreciação]; [saudação]; cláusula cortês; atestação;
qualificação da assinatura; notas

Os elementos intrínsecos listados acima não aparecem todos ao mesmo tempo na mes-
ma forma documental, e alguns deles são mutuamente exclusivos. De acordo com Hubert
Hall, um documento oficial inglês típico do período medieval inclui o seguinte:

Protocolo: invocação; sobrescrito


Texto: preâmbulo; exposição; disposição; cláusula final de advertência
Escatocolo: data; atestação (Hall, 1969b, p. 190-192)

Entretanto, é a combinação específica daqueles elementos que determina o aspecto das


formas documentais e nos permite distinguir, rapidamente, uma forma da outra.

a estrutura da crítica diplomática

Os elementos extrínsecos e intrínsecos da forma documental foram identificados por di-


plomatistas através do exame de um grande número de documentos produzidos em tempos
e jurisdições diferentes, por vários tipos de criadores de documentos para fins diversos. O

19 Para uma discussão sobre os vários sinais de validação de um documento, ver Giry, 1893, p. 591-621 e Boüard,
1929, p. 321-333. Para a identificação de pessoas que assinam um documento, ver Duranti, Summer 1990, p.
5-12.

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objetivo imediato de tal identificação era colocar em relação direta os componentes simples
da forma documental com os componentes específicos da transação administrativa, e as
várias combinações daqueles componentes com determinados tipos de transação. O obje-
tivo maior era alcançar a habilidade para verificar a função dos documentos através de suas
formas, aprender sobre as funções na medida em que eram realizadas por cada produtor de
documentos, e assim adquirir o conhecimento necessário para verificar a autenticidade dos
documentos que pareciam ter sido criados por uma determinada pessoa jurídica enquanto
desempenhava uma função específica.
A crítica diplomática, portanto, parte da forma do documento em direção à ação iniciada
ou à qual o documento se refere. Esta análise visa compreender o contexto jurídico, adminis-
trativo e processual em que os documentos sob análise foram criados.
A estrutura da análise diplomática é bastante rígida e reflete uma progressão sistemática
do específico para o genérico. Esta é a única direção que pode ser tomada quando o con-
texto do documento sob análise não é conhecido. Assim, a crítica diplomática evolui como
a seguir:

Elementos extrínsecos: suporte; texto; linguagem; sinais especiais; selos; anotaçõesEle-


mentos intrínsecos: protocolo (subseções); texto (subseções); escatocolo (subseções)
Pessoas: autor da ação; autor do documento; destinatário da ação; destinatário do docu-
mento; redator; contra-assinatura (s); testemunha(s)
Qualificação da assinatura: títulos e créditos das pessoas envolvidas
Tipo de ação: simples, contratual, coletiva, múltipla, contínua, complexa, ou de procedi-
mento
Nome da ação: p. ex., venda, autorização, solicitação
Relação entre documento e procedimento: especificação da fase do procedimento geral
ao qual os documentos se relacionam e, se o documento resultar de uma “norma de proce-
dimento”, da fase do procedimento específico
Tipo de documento: nome (p. ex.: letra, recuo de margem); natureza (pública ou privada);
função (dispositiva, probatória); status (original, rascunho, ou cópia)
Descrição diplomática: contexto (ano, mês, dia, local); ação (pessoas, ato); documento
(nome da forma, natureza, função, status, suporte, quantidade)
Comentários conclusivos: qualquer comentário que se refira ao documento como um todo em
vez de a um elemento específico da forma documental ou componente da análise diplomática20
Para demonstração de como a crítica diplomática de formas documentais é conduzida,
vamos analisar dois documentos de acordo com o padrão descrito acima. Esta análise

20 Neste modelo rígido, os comentários que se referem a elementos únicos da forma documental sob análise ou a
componentes únicos da análise diplomática aparecem em notas de rodapé. São identificados por letras se os comen-
tários que contêm forem de natureza diplomática, e por números se os comentários forem de natureza histórico-
jurídica.

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não está completa porque os elementos extrínsecos da forma documental só podem ser
criticados com base no documento original.21 No entanto, os elementos extrínsecos que
são essenciais à compreensão das ações nas quais aqueles documentos participaram são
mencionados no contexto da análise daquelas ações. Nenhuma indicação é oferecida sobre
a procedência dos dois documentos, a fim de mostrar com mais clareza a perspectiva dos
diplomatas que planejaram este método de análise.

21 Mesmo que os originais dos documentos criticados acima estivessem disponíveis para o autor, eles não o se-
riam para os leitores, então parece um exercício inútil comentar algo que não pode ser visualizado.

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crítica diplomática do documento na figura 3

Elementos intrínsecos:

Protocolo: “Piscataway... concern”


titulação: “Piscataway... nation” e insígnia
data cronológica: “June... 1980”
inscrição: “Archivio... concern”

Texto: “The Piscataway... hearing from you”


preâmbulo: “The Piscataway… identity”
exposição: “According… devout”
disposição: “What… dictionary” e “We… other archives in
Rome”
apreciação: “We appreciate… from you”

Escatocolo: “May… nation”


apreciação: “May… suffering”22
atestação: “Billy Redwing Tayac”
qualificação da assinatura: “Chief… Nation”

Pessoas: autor da ação: Piscataway Indian Nation


autor do documento: Piscataway Indian Nation
destinatário da ação: Archivio Centrale dello Stato (Rome)
destinatário do documento: Archivio Centrale dello Stato
redator: Chefe Billy Redwing Tayac23

Qualificação da assinatura: chefe da nação indígena Piscataway


Tipo de ação: ação simples

Nome da ação: pedido de informação

Relação entre documento


e procedimento: documento participando da fase inicial de um ato com-
posto sobre o procedimento24

22 A apreciação é definida como um desejo ou oração para a realização da intenção do documento. Este documento
apresenta duas apreciações, uma das quais é expressa no final do texto em estilo moderno, e a outra no início do
escatocolo na forma tradicional da invocação. Na crítica diplomática formal, este comentário, sendo de natureza
diplomática, seria introduzido por uma letra. No presente contexto, isto é evitado, a fim de não criar confusão.
23 A argumentação por trás da identificação das pessoas é ilustrada em Duranti, Summer 1990, p. 8-9.
24 Para as definições de ação simples e norma de procedimento composta ver Duranti, Summer 1990, p. 75-76. Para a de-
finição de fase inicial ver p. 115. Tanto a simples ação de pedir informação quanto o processo de oferecer serviço de
referência são ações jurídicas, porque suas consequências são levadas em consideração pelo sistema jurídico no qual
acontecem. Se o destinatário da solicitação não agisse sobre ela, teria incorrido em “negligência de um dever oficial”.

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Tipo de documento: carta; público; dispositivo; cópia25
Descrição diplomática: 1980, June 18 (Maryland, USA); A nação indígena Piscata-
way solicita ao Archivio Centrale dello Stato em Roma, có-
pias de um catecismo, gramática e dicionário em seu
dialeto nativo
1 carta, pública, dispositiva, cópia, (A.D. 1980, June 26.
Rome, Italy)26

25 As anotações no documento mostram que foi recebido pelo destinatário, registrado, classificado, e depois en-
viado à pessoa responsável pela ação. O assunto do documento é escrito à mão em italiano, e o autor do
documento é apontado por uma seta, provavelmente para enfatizar os dois elementos essenciais ao acompa-
nhamento do serviço. Este documento é uma carta porque o teor do discurso é moldado na epístola clássica,
apresenta expressões subjetivas (o autor está na primeira pessoa) e o destinatário é identificado. É pública
porque participa de um processo público (o Archivio Centrale dello Stato é uma instituição pública onde o ser-
viço de referência é obrigatório por lei). Também se pode dizer que seu autor é uma instituição pública dentro
do sistema jurídico indígena, ver Duranti, Summer 1990, p. 102-105. Este é um documento dispositivo porque
coloca em vigor o ato de petição (e claro, é dispositivo somente em seu status original).
26 Quando a data de recebimento é desconhecida, geralmente é acrescentada à “área do documento” da descrição
diplomática, precedida pelas iniciais d.a. (data do arquivo).

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crítica diplomática do documento na figura 4

Elementos intrínsecos:

Protocolo: “The United States of America... come”


titulação: “The United States of America”
title: “N. … 600.453 (número de patente)
inscrição: “To all… come”

Texto: “Whereas ...thereof”


exposição: “Whereas ... law”
disposição: “Now therefore ... thereof”

Escatocolo: “In testimony ... Commissioner of Patents”


corroboração: “In testimony … affixed”
data tópica: “at the city of Washington”
data cronológica: “this fifteenth second”
atestações: 2 assinaturas
qualificações da assinatura: “Assistant Secretary of
The Interior”, “Commissioner of Patents”

Pessoas: autor da ação: Estados Unidos da América


autor do documento: Estados Unidos da América
destinatário da ação: Reinhard Hoffmeister of Vancouver
destinatário do documento: “To all to whom these presents
shall come”
redator: o Secretário Assistente do Interior
contra-assinatura: o Comissário de Patentes, Duell

Qualificação
das assinaturas: Subsecretário de Interior, Comissário de Patentes, Duell27

Tipo de ação: ação simples

Nome da ação: concessão de patente a uma invenção

27 Esta contra-assinatura tem a função de atestar a regularidade do processo de formação e das formas do docu-
mento, enquanto a assinatura do escritor atesta que a ação no documento está de acordo com a vontade da
autoridade.

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Relação entre documento
e procedimento: documento concluindo a fase de execução de um ato
composto sobre o procedimento28

Tipo de documento: cartas-patente, público, dispositivo, cópia29

Descrição diplomática: 1898, March 15, Washington, D. C.


The United States of America grants Reinhard Hoffmeister
of Vancouver, Canada, a patent for an invention.
1 carta patente, pública, dispositiva, cópia

A crítica diplomática conduzida acima pode parecer um exercício estéril de identificação


e “rotulação”.30 Entretanto, o exercício em si é a chave para a compreensão da ação na qual o
documento participa, e do próprio documento. Os nomes sobre os rótulos são indicadores
que direcionam a atenção para as entidades que são relevantes para o processo contínuo
de extrapolação pelo arquivista. O esforço de incluir os elementos dos documentos reais
para a estrutura da análise diplomática é um prelúdio necessário para a descoberta e o co-
nhecimento. Pode-se argumentar que arquivistas não descrevem itens isolados. O que não
é necessariamente o caso. Quando não o fazem, é porque já estão familiarizados com eles –
culturalmente familiarizados – e o processo de extrapolação ocorre espontaneamente.
Diplomática é uma atitude mental, uma abordagem, uma perspectiva, uma maneira sis-
temática de pensar sobre os documentos arquivísticos. Como fazer o melhor uso de seus
conceitos e metodologia no trabalho de descrição arquivística será o tema do próximo arti-
go, o sexto e último desta série.

Este artigo foi publicado na revista Archivaria, n. 32, Summer 1991. Tradução de Jerusa Gonçalves
de Araújo e revisão da tradução de Rosely Curi Rondinelli e Jorge Phelipe Lira de Abreu.

Referências bibliográficas

BOÜARD, Alain de. Manuel de Diplomatique Française et Pontificale: diplomatique générale. Pa-
ris, 1929.
CARUCCI, Paola. Il Documento Contemporaneo: diplomatica e criteri di edizione. Roma, 1987.

28 Para a definição da fase de execução ver Duranti, Winter 1990-1991, p. 15.


29 Uma carta-patente é uma carta de nomeação pessoal para conhecimento público e atribui um direito, uma
autoridade ou uma concessão a uma pessoa. Apresenta-se sob a forma de uma carta aberta. Na verdade, o
conteúdo de uma carta-patente deve ser de conhecimento de todos os interessados.
30 Esse termo é usado por Janet Turner (Summer 1990, p. 99) nos comentários que se seguem à sua análise di-
plomática de três documentos da United Church of Canada. O artigo de Turner é uma leitura útil para todos
aqueles interessados no uso da crítica diplomática.

p. 214 – jan . / jun . 2015


DURANTI, Luciana, Diplomatics: New Uses for an Old Science (Part I). Archivaria, n. 28, Summer
1989.
______. Diplomatics: New Uses for an Old Science (Part III). Archivaria, n. 30, Summer 1990.
______. Diplomatics: New Uses for an Old Science (Part IV). Archivaria, n. 31, Winter 1990-1991.
GIRY, Arthur. Manuel de Diplomatique. 1893. Reimpressão (Nova Iorque, s.d.).
HALL, Hubert. A Formula Book of English Official Historical Documents. 2 vols., 1908-1909. Reim-
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______. Studies in English Official Historical Documents. 1908. Reimpressão (Nova Iorque, 1969b).
PRATESI, Alessandro. Elementi di diplomatica generale. Bari, s.d.
TURNER, Janet. Experimenting with New Tools: Special Diplomatics and the Study of Authority
in the United Church of Canada. Archivaria, n. 30, Summer 1990.

Recebido em 27/11/2014
Aprovado em 8/12/2014

acervo , rio de janeiro , v . 28 , n . 1 , p . 196 - 215 , jan . / jun . 2015 – p . 215


história, arquitetura e links
registros digitais e fontes de arquitetura na cidade do rio de janeiro
history, architecture and links
digital records and architecture sources in the city of rio de janeiro

Maria Cristina Nascentes Cabral | Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade Federal
do Rio de Janeiro e coordenadora adjunta do mestrado acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo
da UFRJ. Graduada em Arquitetura pela FAU/UFRJ, mestre e doutora em História pela PUC-Rio.

Rodrigo Cury Paraízo | Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em


Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Graduado em Arquitetura pela FAU/UFRJ, mestre e doutor
em Urbanismo pelo Prourb/UFRJ.

resumo

Este artigo trata da construção de bancos de dados de ciências sociais em sua relação com os
objetos culturais, através da narrativa construída pelo historiador. O banco em questão é cons-
tituído de obras construídas por arquitetos estrangeiros na cidade do Rio de Janeiro na primeira
metade do século XX. A abordagem do tema procura correlacionar história da arquitetura e
história urbana.

Palavras-chave: banco de dados; história urbana; modernidade.

abstract

This article analyses the construction of databases of social sciences in their relation to cultural
objects, through the narrative constructed by the historian. This database is made up of works
built by foreign architects in the city of Rio de Janeiro in the first half of the twentieth century.
The theme approach seeks to correlate history of architecture and urban history.

Keywords: database; urban history; modernity.

resumen

Este artículo se ocupa de la construcción de las bases de datos de las ciencias sociales y su re-
lación con los objetos culturales, a través de la narrativa construida por el historiador. La base
de datos se compone de obras construidas por arquitectos extranjeros en Río de Janeiro en la
primera mitad del siglo XX. El enfoque temático pretende correlacionar la historia de la arqui-
tectura y la historia urbana.

Palabras clave: base de datos; historia urbana; modernidad.

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história e arquitetura

O Rio de Janeiro, capital do Brasil colônia a partir de 1763, capital do Império e capital
da República até 1960, durante esses três séculos reuniu vestígios materializados da história
do país e da própria cidade. No entanto, a forma urbana, os processos sociais, históricos e
econômicos, as edificações e os planos para a construção urbana são ainda atualmente estu-
dados como manifestações distintas.
Segundo Pereira (1992), a historiografia de viés marxista que trata das grandes transfor-
mações urbanas concentrou-se nos aspectos macroeconômicos, políticos e ideológicos. Por
outro lado, observamos que a opção dos historiadores da arquitetura pela história dos esti-
los, concentrada apenas nos aspectos formais simbólicos, excluiu considerações de caráter
urbano, social e econômico e, sobretudo, cultural. Como resultado, produziram-se, ao longo
do século passado, estudos de história urbana e da arquitetura completamente distintos e
distanciados entre si, o que vem sendo alterado nas duas últimas décadas. Esses trabalhos
estão sofrendo releituras e são objeto de ampla revisão historiográfica operada na subárea
de fundamentos da arquitetura e do urbanismo.1
Os Guias da Arquitetura do Rio de Janeiro (Czakowski, 2000a, b, c), organizados por esti-
los, configuram o estudo ainda mais atual e abrangente, não monográfico, de obras arquite-
tônicas significativas da cidade, de diferentes períodos. Essas publicações carecem ainda de
atualização dos dados, tendo-se em vista o fato de hoje conhecermos mais. As edições estão
esgotadas e não há confirmação de atualização ou de reedição. Por meio delas, é possível
identificar notória presença de estrangeiros na autoria das edificações. No entanto, como as
obras são apresentadas em verbetes curtos com pouca informação, sendo em muitos casos
de primeiro registro, elas ensejam a continuidade do estudo.
As três primeiras décadas do século XX foram de intensas transformações urbanas por
conta da expansão do tecido urbano, da industrialização da construção, do adensamento e
do início da verticalização. Na Proclamação da República (1889), a cidade do Rio de Janeiro
contava com cerca de quinhentos mil habitantes. Em 1920, chegaria a um milhão e cem
mil. Durante a Primeira República (1889-1930), constituíram-se as bases da modernidade.
Muitos profissionais estrangeiros, sobretudo europeus ilustres ou anônimos, fizeram parte
da construção da cidade que carecia de mão de obra especializada e de diplomados capazes
de atenderem à demanda do mercado. Projetistas, técnicos, construtores e artífices de várias
nacionalidades e especialidades empregaram seus conhecimentos na construção civil. Esses
profissionais eram vinculados a grupos de interesses econômicos e políticos que atuaram
em diversos ciclos de urbanização e sua constante presença está diretamente atrelada a
diversas nuances das alterações da política urbana.

1 Ver o debate sobre historiografia promovido no I ENANPARQ – I Encontro Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa
em Arquitetura e Urbanismo: Arquitetura, cidade, paisagem e território: percursos e prospectivas (2010).

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No campo da arquitetura e do urbanismo, a presença estrangeira outrora também foi
definidora. Desde o período colonial, os portugueses introduziram os ofícios voltados para
a construção civil e militar, gerando um sistema de produção que perdurou até o início do
século XX. A primeira escola do país formadora de arquitetos, a Academia Imperial de Belas
Artes, foi fundada a partir da vinda da chamada missão artística francesa, no século XIX, se-
guindo o modelo da École des Beaux Arts de Paris. O ensino de arquitetura na escola ficou a
cargo do arquiteto da missão, Grandjean de Montigny, cujos ideais marcaram fortemente o
neoclassicismo aqui produzido.
A presença francesa permaneceu, durante as primeiras décadas do século XX, como refe-
rencial de bom gosto e de práticas sociais e de costumes das classes sociais mais abastadas.
Novos modelos arquitetônicos foram adotados e revistos. No campo do urbanismo, a pre-
sença francesa foi determinante, como na reforma promovida por Pereira Passos no início
do século XX, baseada nas transformações promovidas por Haussmann em Paris, algumas
décadas antes. Na década de 1920, a cidade do Rio de Janeiro teve outro plano, desenvol-
vido pelo francês Alfred Agache, não implementado integralmente, mas de forte impacto,
constituindo-se referência na legislação da área central. Na década de 1930, a vinda de Le
Corbusier, a convite de Lúcio Costa, rendeu-nos a interpretação da historiografia moderna
estrangeira, do nascimento de uma arquitetura moderna brasileira devedora à presença do
mestre franco-suíço.
Apesar da forte correlação entre a arquitetura erudita produzida na cidade do Rio de
Janeiro com os modelos franceses, a presença e a influência francesa foram estudadas pon-
tualmente. Verificamos que arquitetos de menor prestígio desenvolveram aqui obra de vulto
quantitativo e qualitativo. É o caso do arquiteto francês Joseph Gire, autor de dois edifícios
que modificaram o perfil urbano do Rio de Janeiro: o Hotel Copacabana Palace (1923) e o
edifício A Noite (1929), primeiro arranha-céu da cidade, com inovadora estrutura em con-
creto armado. Joseph Gire é autor também de uma dezena de obras de autoria reconhecida
(sede da Sul América Seguros, residência de veraneio na Ilha de Brocoió, edifício Paraobepa,
Palácio Laranjeiras, Hotel Glória etc.) e outra dezena de suposta autoria, além de muitos
projetos não executados. Joseph Gire era arquiteto de duas famílias ilustres que nos legaram
boa arquitetura: os Guinle e os Rocha Miranda. Também projetou para cidades da Argentina,
do Chile, da França e da Alemanha, manifestações ainda não estudadas.
Na bibliografia corrente da história da arquitetura no Rio de Janeiro, verifica-se maior
presença de arquitetos estrangeiros no início do século XX, até a década de 1930. Duas justi-
ficativas parecem evidentes: o reduzido número de três diplomados, entre 1890 e 1900, pela
Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), e a ausência da regulamentação da profissão, que só
foi estabelecida em 1929 (Santos, 1981).
Apesar da forte presença de profissionais estrangeiros na cidade, observamos notável
escassez e dispersão de informações. Empreendemos um inventário que dá seguimento e
aprofunda aquele dos guias referidos.
A metodologia de pesquisa operou no âmbito da história da cultura, procurando com-
preender os processos de interlocuções destes estrangeiros com a cidade do Rio de Janeiro,

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contribuindo com o desenvolvimento de uma estratégia de análise e apresentação das obras
em questão.
Não partimos do pressuposto da influência da arquitetura estrangeira, ou da importa-
ção de ideias predominantemente europeias, sobre a produção local. Partimos da noção de
interlocução, de trocas culturais, da circulação de ideias e de transculturação como processo
transitivo de uma cultura à outra.
A análise não se restringe à definição das obras e dos arquitetos por estilos arquitetô-
nicos. Buscamos estudar a presença de arquitetos estrangeiros na cidade do Rio de Janeiro
visando, sobretudo, compreender as transformações operadas no espaço construído e na
morfologia urbana. Perscrutamos, a partir dos vestígios materiais das obras construídas, o
caminho das redes sociais, das trocas econômicas e os processos de aculturação advindos
da presença estrangeira.
O enfoque nas inter-relações entre os profissionais, entre eles e sua clientela e nos as-
pectos semelhantes e divergentes de suas obras visa compreender as diversas redes sociais,
técnicas, profissionais e culturais que atuaram na cidade, nesse importante período de ex-
pansão e crescimento urbano. A localização de suas obras está diretamente associada ao
crescimento da cidade e revela os interesses políticos e econômicos então atuantes. Ao enfo-
car essa produção, não abordada até então pela historiografia da arquitetura como digna de
qualidade ou por ignorar seus autores como expoentes, este trabalho pretende demonstrar
a importância da presença estrangeira na configuração da modernidade urbana, na primeira
metade do século XX.
Para a correlação dos dados levantados e para a formação das redes técnicas, econômi-
cas e profissionais envolvidas, recorreu-se a uma estrutura de bancos de dados em ciências
sociais, que passam a constituir uma nova espécie de acervo online. Dispôs-se essa fonte
para consulta na internet, com o inventário de obras arquitetônicas, imagens e dados, pro-
duzidos e recolhidos nas fontes consultadas.2 A construção de um banco de dados de objetos
culturais (no caso, obras arquitetônicas e biografias profissionais com suas possíveis correla-
ções) exigiu um diálogo constante entre as questões técnicas da informática, apresentadas a
seguir, e as características das informações e as correlações pretendidas entre elas.

construindo as relações e os links

Manovich (2001) apresenta a noção de bancos de dados como uma das formas expres-
sivas típicas da computação: não é exclusiva do mundo digital, mas as possibilidades de
experimentação e manipulação do computador, aliadas à sua marcante presença nas obras
digitais, provocam um salto qualitativo que a diferenciam bastante do que a antecede. Cox
(2013), por sua vez, argumenta a favor das qualidades estéticas das linguagens de progra-
mação, e, portanto, de suas propriedades expressivas. Uma vez que essas linguagens são

2 Ver <http://www.prourb.fau.ufrj.br/laurd/trabalhos/arqestr/>.

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expressas como códigos, e cabe ao computador interpretá-los para executar as ações neles
descritas, nos permitimos extrapolar essa noção para o processo de codificação inerente ao
preenchimento de um banco de dados, interpretando o objeto para codificá-lo nos campos
de um registro.

Figura 1. Estrutura do banco e da tabela de arquitetos

Estão cadastrados no banco 86 arquitetos e 113 edificações. O escopo da pesquisa não


pretende abarcar a totalidade de arquitetos estrangeiros ou de suas obras no Rio de Janeiro,
no período pesquisado. Pretende-se pela amostragem dada pelos registros disponíveis, am-
pliar a biografia profissional e a produção dos arquitetos estudados. A questão biográfica,
aqui, assume um papel importante, no sentido de que é a possibilidade de cruzamento das
biografias que deve permitir melhor compreensão das trocas culturais realizadas – incluin-
do-se obras, clientela, construtoras, e demais profissionais envolvidos.
Portanto, foi descartada logo de início a retórica mais comum associada ao banco de da-
dos, que é baseada na estatística. A quantidade de dados tornaria esse tipo de leitura pouco
relevante, dada a amostragem. A localização de um registro específico também não é a tôni-
ca; apesar de prever mecanismos de busca, a quantidade de registros frente à quantidade de
informações por registro faz com que os resultados sejam úteis, mas não surpreendentes. A
leitura buscada está fundamentada em duas outras possibilidades expressivas importantes
dos bancos de dados e por elas se justifica: a própria estrutura dos dados e o inter-relaciona-
mento entre os registros. Fica mantida também a premissa básica de que os objetos a serem
estudados são registráveis em termos de linhas e de colunas de uma tabela e, além disso, são
redutíveis a categorias comuns, ou seja, são comparáveis e agrupáveis.

p. 220 – jan . / jun . 2015


Figura 2. Página do arquiteto Henri Sajous

No que se refere às estruturas de dados, os objetos culturais – as obras de arquitetura e


as próprias biografias dos arquitetos – são de difícil categorização, no sentido de que as cate-
gorias mais úteis para identificar e definir uma obra são, em geral, muito específicas, ou seja,
dificilmente relevantes para outras obras. O registro da individualidade do objeto represen-
tado estará sempre sujeito à tensão entre a estrutura geral de dados e suas características
individuais. No caso de um banco de dados de objetos culturais, cujos dados não são por
vezes objetivos, corre-se o risco de perder justamente seus elementos mais característicos.
Além disso, o preenchimento dos dados pode ser subjetivo, por se tratarem de interpretação
de características da obra. Ao invés da interdição ou desestímulo ao uso de uma estrutura de
dados, percebemos que se trata de um ponto limite do desenvolvimento da própria lingua-
gem de banco de dados, uma expansão que permite acomodar usos e leituras mais criativos.

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A estrutura, nesses casos, deve ser elaborada em conjunto com o material de pesquisa e
ser maleável o suficiente para acomodar mudanças mais significativas no início, diminuindo
de quantidade e intensidade ao longo do tempo. Essas variações, longe de constituírem uma
anomalia ou mesmo um mal necessário, são essenciais para aprofundar a compreensão de
temas dessa natureza. São elaborações progressivas a partir dos dados e das intenções de
pesquisa e não definidas inflexivelmente de antemão.
Os bancos de dados, na tradição das listas descritas por Eco (2010), são uma ação de
ordenação sobre o mundo. Diante do registro de objetos culturais, a modelagem do banco
de dados deve espelhar a compreensão inicial das categorias de informações necessárias às
listagens, agrupamentos e buscas pretendidos, ao mesmo tempo prevendo o refinamento
e até a remodelagem da estrutura de dados, à medida que a pesquisa e a coleta de dados
avançam. Como exemplo, a construção de cronologia de obras arquitetônicas é alvo de am-
plas discussões, ainda mais sujeitas à rigidez da computação e da estrutura de dados, e a
referência pode ser ao ano do projeto, da construção (início ou fim) ou da inauguração, por
exemplo – isso, claro, considerando que o mesmo tipo de informação estará disponível para
todas as edificações. Ao percebermos essas dificuldades, acrescentamos aos demais (cons-
trução, projeto, inauguração) um campo “ano” especificamente para a construção da linha
do tempo, arbitrário e subjetivo, mas construído a partir dos dados disponíveis.
Para os objetos culturais, após a estabilização dos campos já sujeitos a altas doses de
subjetividade, resta o seu preenchimento, ainda mais expostos a julgamentos individuais.
O próprio nome da edificação surpreende pela fluidez. Por um lado, edificações conhecidas
por determinados nomes consagrados pela história possuem denominação oficial distinta
na atualidade; por outro, edificações já registradas tiveram seu nome oficial alterado no de-
correr do levantamento, como a própria demonstração da transformação da cidade e da cul-
tura material. Os exemplos sugerem que o fichamento dos objetos culturais deve seguir uma
lógica capaz de dar suporte a esse tipo de imprecisão e ambiguidade. Por outro lado, ajudam
a perceber que nem todo banco de dados será composto por registros imutáveis e derivados
de uma taxonomia cristalizada – há lugar para conjuntos de dados provisórios, em mutação,
e subjetivos, mas ainda assim capazes de contribuir para o avanço do conhecimento.

estruturas inter-relacionais

O conjunto de dados disponível é favorável ao estabelecimento e visualização de rela-


ções entre registros específicos, e que muitas vezes não estão sequer contidos diretamente
nas tabelas que descrevem os objetos, constituindo um conjunto de registros à parte. Estes
registros hipertextuais são da ordem dos rizomas (Deleuze; Guattari, 1995), mas possibili-
dades computacionais de recombinação de dados remontam ao Memex de Vannevar Bush
(2003), e encontram eco na capacidade recombinatória entre as obras no “museu imaginário”
de André Malraux (1965). Rocha-Peixoto (2010) descreve a constituição de coleções de ob-
jetos arquitetônicos, constantemente recriando as relações entre os objetos constituintes,
como essencial ao trabalho do historiador.

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A criação e a visualização destas redes de relações remetem aos aplicativos de autoria hi-
pertextual e aos programas de mind mapping. No entanto, notamos que as soluções que dão
conta da representação desse tipo de estrutura se baseiam em formatos proprietários, que
dificultam o reaproveitamento do conteúdo dos nós em outros contextos, como produção
de listas ordenadas ou agrupadas, por exemplo, ainda que contribuam para a percepção de
padrões do conteúdo representado. Além disso, não apresentam facilidade para a conexão
dinâmica com bases de dados externos, criando uma ruptura no processo de coleta e refina-
mento da estrutura de dados.

Figura 3. Esquema das camadas de interface do site

O sistema é composto por três camadas de visualização e manipulação da informação. A


camada mais interna (estruturação), ou mais próxima das tabelas, é o próprio mySQL, aces-
sível basicamente aos administradores e que permite grande liberdade na construção de
consultas, mas traz o ônus da necessidade de dominar a linguagem de programação corres-
pondente. A camada intermediária (manipulação) é composta pelos formulários de preen-
chimento e pesquisa interna de dados, em que todo o conteúdo das fichas, incluindo upload
de imagens, está disponível para os pesquisadores participantes do projeto. Inicialmente
desenvolvida em vFront, foi posteriormente reformulada em jQuery e HTML 5, para permitir
a construção de uma interface mais amigável e que desse conta da complexidade dos for-
mulários, por conta das várias tabelas associadas para assegurar a integridade dos dados.
Finalmente, temos a interface pública do site (camada de visualização), com múltiplas
consultas pré-programadas e a busca simples. Inicialmente baseada em listas, desenvolveu-
se posteriormente de modo a tirar partido dos ensaios fotográficos de cada edificação pro-
duzidos na pesquisa. A versão inicial, de desenvolvimento mais rápido, serviu para experi-
mentações com a organização e visualização dos dados – exibindo a quantidade de registros
em cada categoria e dotada de mecanismos para assegurar a consistência do preenchimento

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dos dados, entre outros testes, que ajudaram a aprimorar a estrutura de dados e a interface
de alimentação.
Bogost (2007) expõe a questão da retórica procedural das interfaces interativas. Em
outras palavras, aquilo que um jogo ou aplicativo permite ou interdita ao usuário é parte
essencial da mensagem que ele transmite. Manovich (2013) estende esse raciocínio aos co-
mandos e menus dos programas de produção de conteúdo, demonstrando como a lógica
dos softwares e de suas interfaces interfere na produção cultural e na própria cultura, apro-
fundando questões levantadas anteriormente por Johnson (2001).
O problema da interface se desdobra para além das questões primeiras de usabilidade e
de acessibilidade, mas constitui-se em estratégia de distribuição da informação e dispositivo
de um discurso que tem como base as possibilidades de ação do usuário.
O desafio que se impõe é a construção de interfaces capazes de evidenciar para o usu-
ário as relações entre os registros e facilitar ao pesquisador a construção e registro dessas
relações. Ainda que seja possível encontrar bons exemplos de interface para o primeiro caso,
o segundo ainda carece de maiores explorações. Soluções mais arrojadas ainda pertencem
principalmente à esfera dos softwares comerciais off line, o que muitas vezes implica que a
classificação, no todo ou em parte, fica codificada em um sistema proprietário e eventual-
mente pouco flexível. Se, como defende Manovich (2013), a interface interfere na capacida-
de expressiva, as possibilidades de interpretação dos dados ainda são incipientes, e deve
haver um esforço para criar estruturas de manipulação desses registros que permitam exer-
cer maior criatividade sem comprometer as utilizações posteriores do conjunto de dados.
Como primeira estratégia, a estrutura de consultas desenvolvida busca evidenciar para o
usuário as conexões que podem escapar à primeira vista. Assim, na página da obra, além de
exibir a sua construtora, a consulta lista também outras obras feitas pela mesma empresa. O
mesmo ocorre com arquitetos associados (estrangeiros ou não) e clientes, ajudando a perce-
ber as redes de relacionamento existentes.
Em um segundo momento, abordamos a construção dessas interfaces a partir do esta-
belecimento de tipos, ou meta-categorias, de relacionamento e classificação de dados: links,
tags, grupos e polos. Apesar de não esgotarem, a princípio, as possibilidades de relaciona-
mento entre registros, estas meta-categorias foram consideradas as mais relevantes para o
conjunto de dados disponível. Mesmo para os tipos a princípio mais consolidados, como os
links, é útil rever – e reelaborar – os conceitos que os embasam, tendo em vista que sua im-
plementação se dá a partir da programação em HTML e jQuery e que isso permite, portanto,
que um dado tipo possa ter comportamento distinto do usual, ampliando as possibilidades
expressivas da interface.
Links são ligações objeto a objeto. Apesar de serem descritos desde a implementação da
internet, é curioso que tenham se limitado a uma versão singular – cada link leva a apenas
um destino – e de mão única – um link conduz a um destino, mas não há registro neste des-
tino do link que conduziu a ele (Johnson, 2001; Nelson, 2003). Implementado a partir de um
banco de dados, é mais fácil ter um link de mão dupla ou múltiplo. A adoção de uma tabela
para links permite criar ligações específicas entre os objetos culturais, independentemente

p. 224 – jan . / jun . 2015


de mecanismos automáticos baseados em semelhanças de texto ou categorias. Além disso,
é possível registrar anotações sobre o link, esclarecendo sua singularidade, o que é impor-
tante, justamente por não se tratar de um processo autônomo.
Tags são classificações dos objetos segundo categorias que podem ser mutuamente
excludentes ou não, livremente organizadas ou hierarquizadas. Podem ser implementadas
pela criação de tabelas de tags e de relações tag-objeto (incluindo a informação se o objeto
é obra ou arquiteto). Uma das possíveis funções das tags é a criação de subgrupos de regis-
tros, associações independentes da estrutura principal do banco de dados. Um dos cuidados
a tomar é permitir ao usuário o controle e refinamento do vocabulário utilizado, evitando
erros de grafia, facilitando a localização de termos sinônimos e alterações de nomenclatura
consistentes (ou seja, com atualização automática) e, finalmente, o tratamento hierárquico
das tags, para favorecer a formação de ontologias estruturadas.
Os grupos, portanto, poderiam ser vistos como uma especialização das tags, e, de fato,
em termos da implementação da estrutura de dados de suporte, teriam muito em comum.
No entanto, do ponto de vista da ação e da lógica do usuário – e, por extensão, da programa-
ção da interface –, há uma diferença significativa, derivada do raciocínio por trás de cada um.
No caso das tags, o que está em evidência é a caracterização do objeto individual, ou seja, a
busca de uma individualização – daí a preocupação com vocabulários controlados, evitando
o efeito de multiplicação de tags de uso exclusivo, que apontem para apenas um objeto e
não ajudem a elucidar as semelhanças entre eles. Quando se pensa em grupos, contudo, o
conjunto unitário é a exceção, não a regra: imediatamente pensamos em dois ou mais obje-
tos que compartilhem características comuns.
Os polos são um tipo especial de tags, porque fazem a gradação de pertencimento a
uma categoria, o que permitirá, posteriormente, aplicar técnicas da lógica fuzzy para visua-
lização dos dados. A implementação é razoavelmente simples do ponto de vista da tabela,
registrando um valor entre 0 e 1 para determinada categoria, embora a construção do for-
mulário seja mais complexa, para dar conta da fluidez que esse tipo de dado tenta registrar.
Chegou-se também a especular sobre uma versão multipolar, mas as implementações tanto
em termos de estrutura quanto de interface ainda não são satisfatórias. Cada um desses re-
cursos reforça a riqueza advinda de examinar os objetos não apenas a partir de suas próprias
características, mas sim em relação a outros objetos.3

conclusões e perspectivas

O trabalho se encontra em fase final de experimentações para a criação e manipulação


das relações entre objetos. As primeiras experimentações ajudam a revelar um conjunto de
tipologias de relações entre os dados que amplia bastante a experiência cotidiana da nave-

3 Um dos resultados obtidos é a possibilidade de disponibilizar essa versão digital como ferramenta de testes e
prototipagem para outras pesquisas em ciências sociais ou história que trabalhem com objetos culturais.

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gação em sites, no que se refere aos modos de rearranjo expressivo da informação, permi-
tindo inferir – e interpretar – novos significados a partir de um mesmo conjunto de objetos.
Longe de ser uma tarefa automática, baseada em um paradigma inquebrantável de aces-
sibilidade, trata-se de uma atividade que influencia a maneira pela qual o usuário vai inter-
pretar os dados, estabelecendo uma retórica para o aplicativo, pelo que interface e estrutura
induzem, permitem ou, ainda, interditam aos usuários. Ao facilitar a elaboração dos subcon-
juntos e das relações entre registros, essas implementações pretendem estender o papel do
computador como aparato de manipulação simbólica e potencial auxiliar na construção do
discurso histórico.
Proporciona-se ao pesquisador e ao interessado em arquitetura e na cidade do Rio de
Janeiro, uma ferramenta para consulta individualizada que reúne dados de diversos arquivos
da cidade e de publicações diversas. O consulente pode buscar o grupo de empreendimen-
tos de uma mesma construtora, ou edificações que fizeram uso de determinado material, ou
sobrepor datas de inauguração das obras, ou verificar as edificações multifamiliares cons-
truídas, ou buscar as verticalizadas, entre outras. Enfim, torna-se possível indagar questões
diferentes para o mesmo recorte de objetos e dessa forma correlacioná-los sob diferentes as-
pectos. Assim, apesar dos amplos recursos disponibilizados pela tecnologia da informação,
cabe ao historiador a construção das possibilidades narrativas que interpelam os objetos e
as fontes.

Este trabalho foi desenvolvido com o suporte financeiro da Faperj.

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Recebido em 30/11/2014
Aprovado em 22/1/2015

acervo , rio de janeiro , v . 28 , n . 1 , p . 216 - 227 , jan . / jun . 2015 – p . 227


serviço geográfico do exército
a organização do acervo da biblioteca da 5ª divisão de levantamento
geographical service of the brazilian army
the organization of the library of the 5ª divisão de levantamento

Maria Gabriela Bernardino | Mestre em História das Ciências e da Saúde. Pesquisadora do Programa de Capa-
citação Institucional CNPq/Museu de Astronomia e Ciências Afins.

Mariana Acorse Lins de Andrade | Bibliotecária e discente da Especialização em Informação Científica e Tec-
nológica em Saúde da Fiocruz.

Moema Rezende Vergara | Doutora em História da Cultura e pesquisadora titular do Museu de Astronomia e
Ciências Afins.

resumo

O artigo aborda a história da 5ª Divisão de Levantamento do Serviço Geográfico do Exército (5ª


DL), localizado no Rio de Janeiro. Versa sobre a parceria entre esta instituição e o Museu de As-
tronomia e Ciências Afins, cujo principal objetivo é a organização do acervo pertencente a 5ª DL,
para que este se torne acessível ao público. Explica como são realizados a seleção, higienização,
catalogação, classificação e o acondicionamento do acervo. Apresenta a forma pela qual este tra-
balho é realizado, por meio do diálogo interdisciplinar entre a história e a biblioteconomia.

Palavras-chave: Serviço Geográfico do Exército; acervo bibliográfico; cartografia – história.

abstract

The article discusses the history of the 5ª Divisão de Levantamento do Serviço Geográfico do Exér-
cito (5ª DL), located in Rio de Janeiro. It sheds light on the partnership with Museu de Astronomia e
Ciências Afins, whose main goal is the organization of the collection belonging to the 5ª DL, so that
it becomes accessible to the general public. It explains how the selection, cleaning, cataloging, sort-
ing and packaging of the holdings is carried out. The article also presents the way in which this work
is done through the interdisciplinary dialogue between history and library science.

Keywords: Serviço Geográfico do Exército; bibliographic collection; cartography – history.

resumen

El artículo aborda la historia de la 5ª Divisão de Levantamento do Serviço Geográfico do Exér-


cito (5ª DL), situada en Río de Janeiro. Se ocupa de la asociación entre la 5ª DL y el Museu de
Astronomia e Ciências Afins, cuyo objetivo es la organización de la colección perteneciente a 5ª
DL para que sea accesible al público en general. Explica cómo se hizo la selección, limpieza, ca-
talogación, clasificación y embalaje del acervo. Muestra la forma en que este trabajo se realiza
a través del diálogo interdisciplinario entre la historia y la biblioteconomía.

Palabras clave: Serviço Geográfico do Exército; colección bibliográfica; cartografía – historia.

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introdução

Muitos conhecem ou já ouviram falar do morro da Conceição, situado no município


do Rio de Janeiro. Em meio ao processo de revitalização da zona portuária da cidade, o
local pode ser considerado privilegiado, pois abriga inúmeros marcos emblemáticos para
a história da cidade e, até mesmo, do Brasil: o Observatório do Valongo, instalado no mor-
ro desde a década de 1920, erguido em um terreno conhecido anteriormente por ser um
mercado de escravos; a Pedra do Sal, onde encontramos a Comunidade Remanescente
de Quilombos da Pedra do Sal, um dos pontos de referência da cultura negra; o Palácio
Episcopal da Conceição construído em 1634, abrigo, entre 1702 e 1905, da residência do
bispo do Rio de Janeiro e por isso recebeu este nome; e a Fortaleza da Conceição erguida
para ser um dos pontos estratégicos de defesa da cidade após a invasão da região por
corsários franceses ocorrida em 1711. Os dois últimos locais citados, atualmente, abrigam
a 5ª Divisão de Levantamento (5ª DL) do Serviço Geográfico do Exército, espaço que será
analisado a partir de agora.

Fachada do prédio principal da 5ª Divisão de Levantamento do Serviço Geográfico do Exército. Foto: Alexandre Macieira | Riotur

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um pouco de história...

Em 1932, segundo constam das biografias e memórias militares, a Comissão da Carta


Geral do Brasil1 (CCGB) fundiu-se com o Serviço Geográfico Militar (SGM), dando origem a
uma nova instituição: o Serviço Geográfico do Exército (SGE).
No entanto, após consultar os periódicos A Defesa Nacional e a Revista dos Militares, bem
como os documentos referentes à própria história do SGM, constatamos que esta junção de
instituições cartográficas militares não foi tão simples quanto nos revelam as memórias do
Exército. Faz-se necessário uma maior problematização desta “unificação” das duas agências
militares, cuja filiação comum está longe de significar semelhança de origem e composição.
Embora a Comissão da Carta Geral do Brasil contasse com geodesistas de alta compe-
tência, esses profissionais não possuíam conhecimentos sobre o uso da fotografia aérea nos
levantamentos topográficos, a chamada aerofotogrametria, e tampouco da estereofotogra-
metria, procedimento técnico de campo que une a cartografia à fotografia. Porém, no Rio de
Janeiro, um personagem até então fora de cena revela-se um entusiasta dos novos métodos.
Era o major Alfredo Vidal. Dizia ele em 1915:

Influenciado pelas interessantes publicações que apareceram a partir de 1903, nos anu-
ários de José M. Eder e em outras revistas técnicas que me davam a conhecer o trabalho
do dr. Pulfrich (colaborador científico da Casa Zeiss de Viena) sobre estereofotograme-
tria, procurei em 1907, relacionar-me com essa firma e obtive com regularidade todos
os dados que me permitiam acompanhar a rápida evolução desse novo método foto-
gramétrico.

Em 1910, o major Vidal propôs ao general José Caetano de Faria, então ministro da Guer-
ra, a aquisição para o Exército de um fototeodolito, um estereocomparador e de um este-
reoautógrafo, aparelhagem construída exclusivamente na Casa Zeiss2 (Moura, 1982, p. 246).
Sem êxito na ocasião, o major repetiu a proposta ao novo ministro, general Vespasiano de
Albuquerque. Desta vez, Vidal obteve a autorização de compra pelo ministro, entretanto a
aquisição dos instrumentos não saiu do papel.
Nova tentativa seria feita em 1913, agora ao então prefeito do Distrito Federal, general
Bento Ribeiro, com quem Vidal mantinha boas relações. Com base nelas, o major finalmente
conseguiu que se fizesse a compra dos instrumentos, comprometendo-se a usá-los na pro-
dução da Carta Cadastral da Capital da República, de interesse da prefeitura. Obteve, ainda,

1 A Comissão da Carta Geral do Brasil (1903-1932) pode ser caracterizada como o primeiro esforço republicano
em produzir um mapa para o território nacional. A tentativa cartográfica partiu da Terceira Seção do Estado
Maior do Exército, subordinada ao Ministério da Guerra.
2 No início do século XX, a companhia Carl Zeiss (ou Casa Zeiss), estabelecida em Jena, Alemanha, era uma das
empresas líderes em ótica e mecânica de precisão. Notabilizava-se pela produção de instrumentos científicos,
tais como microscópios, telescópios, teodolitos etc.

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permissão para organizar uma seção de estereofotogrametria e instalá-la na Fortaleza da
Conceição. No entanto, até então não existiam no Brasil profissionais especializados em es-
tereofotogrametria para a execução dos trabalhos de campo e de gabinete, bem como espe-
cialistas capazes de preparar novos técnicos em aerofotogrametria (Peregrino, 1967, p. 149).
A conquista de Alfredo Vidal não ficaria restrita à colaboração com a prefeitura. Transfe-
riu-se ao Exército, pois motivou jovens oficiais que dirigiam a revista A Defesa Nacional, da
qual logo falaremos mais detalhadamente, a publicar uma nota em favor das diligências do
major:

Por uma louvável iniciativa do Excelentíssimo Sr. Prefeito do Distrito Federal e as ins-
tâncias do hábil engenheiro, operoso e dedicado oficial, o Sr. Major Alfredo Vidal vai
brevemente ser introduzida no Brasil a genial aplicação da fotografia na cartografia [...].
As vantagens deste método são: o tempo a passar no terreno é relativamente curto, não
é necessário percorrer as partes a levantar, as medidas são feitas tranquilamente no ga-
binete [...]. Cada uma dessas vantagens por si só, representa na prática uma enorme eco-
nomia de trabalho, de tempo e de dinheiro assegurando pois um sucesso permanente
ao novo método, não só nos casos de inaplicabilidade de outros devido a ser o terreno
inacessível, mas ainda onde estes eram usados até aqui [...] (A Defesa Nacional, 1913).

Como percebemos, logo em sua primeira edição, A Defesa Nacional apoiou as iniciativas
de Alfredo Vidal. O periódico militar de opinião independente do Estado Maior foi fundado
em outubro de 1913. Sua origem é bem peculiar: um estágio foi concedido a jovens militares
do Exército brasileiro na Alemanha; quando esses oficiais retornaram ao Brasil, fortemente
impressionados com os métodos e a organização militar germânica, dedicaram-se a lutar
por transformações na corporação (Carvalho, 2005), no sentido de maior profissionalismo e
eficiência técnica.
Convencer o Alto Comando de que as lições aprendidas na Alemanha eram o melhor
caminho a seguir para o Exército brasileiro, não se mostraria uma missão fácil para os ex-
estagiários, que, a partir do contato com o Exército germânico, vislumbraram um novo papel
para as Forças Armadas no Brasil. É importante destacar que, desde 1898, o Exército brasilei-
ro buscava realizar reformas na corporação, tendo adentrado no século XX com a orientação
de desenvolver o sentido prático da instrução, marcada até então pela excessiva orientação
teórica na formação dos oficiais.
Apesar dos ideais e da sede de transformações, os oficiais germanófilos foram recebidos
na volta do estágio com desdém e logo deduziram que, no que dependesse da estrutura
burocrática do Exército brasileiro, as lições aprendidas no Exército alemão seriam perdidas.
A saída encontrada para a divulgação de suas ideias foi a criação de uma revista, assunto que
já viera à tona no próprio navio que trouxera os oficiais de volta ao Brasil. O tom conferido
pelos ex-estagiários à sua revista era bem específico. A publicação A Defesa Nacional adotou
o mesmo nome utilizado como bandeira por jovens reformadores do Exército turco, que
conseguiram promover grandes reformas na estrutura militar de seu país. Rapidamente, os

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opositores aos métodos alemães passaram a denominar o grupo de “jovens turcos”, expres-
são de caráter pejorativo. Logo em seguida, no entanto, o apelido reverteu seu significado,
sendo interpretado como sinônimo de envolvimento profissional com o Exército brasileiro
(Trevisan, 2011, p. 118).
Nesse contexto, o principal objetivo de A Defesa Nacional consistia na defesa do mo-
delo militar alemão como exemplo a ser seguido pelo Exército brasileiro. A questão que
nos interessa é a relação de A Defesa Nacional com o Serviço Geográfico Militar. O periódi-
co percebeu na cartografia desenvolvida por Vidal um reflexo perfeito das mudanças que
pretendia implementar na instituição. Uma vez que ambos tinham como modelo a cultura
militar germânica e eram favoráveis à reformulação da mentalidade vigente, a convergência
de interesses foi intensa.
A partir de seu envolvimento com a produção da carta cadastral, o major Vidal achou
necessário enviar à Europa alguém de sua extrema confiança, com a finalidade de aprimo-
ramento técnico e maior contato com os fabricantes dos aparelhos, na Alemanha, e com
os principais responsáveis pelo desenvolvimento da estereofotogrametria, o tenente E. Von
Orel e o dr. Pulfrich, do Instituto Militar de Viena. O escolhido para fazer a viagem foi o capi-
tão Alípio di Primo, que fez parte da Comissão da Carta Geral do Brasil em seus primórdios.
Assim esclarece Vidal:

Com o consentimento do Ministério da Guerra dei caráter oficial ao convite que eu par-
ticularmente já fizera nesse sentido em 1910 ao Sr. Capitão Alípio di Primo e ele pron-
tamente aceitou os encargos dessa missão, a despeito das exigências de tratamento de
sua saúde comprometida por grave moléstia contraída nos extenuantes trabalhos de
exploração geodésica em regiões difíceis do Rio Grande do Sul (Vidal, 1915, p. 22).

Dando seguimento aos planos do major Alfredo Vidal, Alípio di Primo foi para Viena, en-
quanto o major ficou no Rio de Janeiro tratando de assuntos referentes à carta cadastral da
capital. Quando Alípio di Primo chegou à cidade foi apresentado ao dr. Pulfrich e posterior-
mente recebido no Instituto Geográfico Militar de Viena, onde iria adquirir o conhecimento
necessário para o manejo das técnicas ali desenvolvidas. Além dessas incumbências, o capi-
tão também tinha outra missão: escolher um engenheiro austríaco especializado na técnica
fotogramétrica para a direção dos trabalhos da Carta Cadastral do Distrito Federal. Como já
mencionamos, Vidal entendia ser de extrema relevância a presença de um especialista. O
escolhido foi Emílio Wolf, colaborador da Casa Zeiss. Este chegou ao Brasil em 31 de julho de
1914, no entanto logo regressou à Europa, devido aos seus deveres militares relacionados à
eclosão da Grande Guerra.
Em 1915, após gestões de Vidal, Wolf regressa e ministra o primeiro curso teórico e práti-
co no Brasil sobre estereofotogrametria. Para essas aulas se inscreveram o então coronel Au-
gusto Tasso Fragoso, o major Alfredo Malan e o próprio capitão Alípio di Primo, entre outros.
Nesse mesmo ano, Vidal apresenta ao Estado Maior do Exército suas propostas para re-
novação dos métodos cartográficos no Brasil. O major defendia a criação de uma instituição

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cartográfica militar inteiramente nova, inspirada em modelos europeus – notadamente o
Instituto Geográfico Militar de Viena. Como mencionado, sempre com o apoio dos editores
de A Defesa Nacional, publica nas páginas da revista parte do livro Introdução à estereofoto-
grametria no Brasil, síntese das suas propostas.
Entre outros projetos, o major visava unificar a cartografia militar realizada no Brasil em
uma única instituição – evidentemente, o SGM que dirigia –, absorvendo a Comissão da
Carta Geral do Brasil e os escritórios cartográficos do Estado Maior e da Comissão das Linhas
Telegráficas e Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas (a Comissão Rondon, que, naquele
momento, possuía uma seção cartográfica).
Como vimos anteriormente, as gestões de Vidal junto às instâncias militares superio-
res deram resultado. O Serviço Geográfico Militar foi finalmente instalado em uma velha
fortaleza no morro da Conceição, Centro do Rio de Janeiro, em 1917. Apoiado pelo general
Bento Ribeiro, a esta altura chefe do Estado Maior do Exército, Alfredo Vidal, como pudemos
acompanhar, conseguiu implantar a estereofotogrametria na cartografia brasileira (Veríssi-
mo, 1959, p. 57).
A nova instituição ganhou mais notoriedade quando conseguiu, após seguidos es-
forços, trazer ao Brasil um grupo de engenheiros-geógrafos e técnicos em cartografia do
Instituto Geográfico Militar de Viena, depois da derrota do Império Austro-Húngaro na
Primeira Grande Guerra. A chamada “Missão Austríaca”, chefiada pelo barão Arthur Von
Hubl e composta por mais dez profissionais (Castelo Branco, 1970), chegou ao Brasil em
14 de outubro de 1920. O objetivo da missão era especializar os engenheiros-geógrafos
brasileiros nas técnicas estereofotogramétricas então em voga, ministradas pelos técnicos
austríacos.
Em suma, podemos entender que a inovação cartográfica trazida ao Brasil por Alfredo
Vidal e Alípio di Primo foi bastante prestigiada em sua recepção no país. Prova disso foi a
exibição da Carta Cadastral da Capital da República na Exposição Comemorativa do Cen-
tenário, em 1922. A carta, resultado do primeiro experimento fotogramétrico no Brasil, foi
merecedora de muitos elogios.
Enquanto isso, A Defesa Nacional continuava a divulgar matérias visivelmente favoráveis
ao SGM e, por extensão, contrária à permanência da Comissão. Fazendo coro ao major Vidal,
a revista postulava:

Apesar de todos os esforços, até hoje dispendidos, quem meditar um pouco sobre a
marcha dos serviços pertinentes ao Serviço da Carta não poderá fugir à conclusão que
eles não correspondem de modo algum, ao decisivo propósito de atingirmos, dentro de
um prazo razoável, o objetivo por eles visado. Eles apenas vivem porque os orçamentos
anuais lhe proporcionam, à guisa de injeção periódica, verbas suficientes para não mor-
rerem (A Defesa Nacional, 1924).

O pano de fundo em que transcorre toda a controvérsia entre o SGM e a CCGB foi o pró-
prio contexto republicano, favorável, em si, às metodologias “modernas”. Em contrapartida, a

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Carta Cadastral do Distrito Federal, 1922. Fonte: 5ª Divisão de Levantamento do Serviço Geográfico do Exército.

triangulação geodésica, utilizada pelos integrantes da CCGB, parecia obsoleta. Vale conferir,
nas páginas de A Defesa Nacional (1927):

[...] O Serviço Geográfico Militar representa o que há de mais perfeito e de mais homo-
gêneo no assunto. É obra de alguns brasileiros inteligentes e patriotas e da sábia missão
de profissionais austríacos. A Comissão da Carta Geral do Brasil é a primeira tentativa
de organização de tal serviço no Exército. O que ela tem feito representa bastante, mas,
não que mereça substituir e quiçá absorver o SGM. A Carta não aceita o Serviço, refuta-
lhe qualquer cooperação, qualquer contato, qualquer orientação. Como exemplo mais
tangível disso aí estão as convenções cartográficas, adotadas oficialmente no Exército
e, no entanto não aceitas na Carta Geral. Dar ao SGM a direção suprema dos problemas
geográficos do Exército levando a sua autoridade até a Carta Geral, integrando-a de-
finitivamente nele, não é só uma medida de comezinha inteligência, mas de honesta
compreensão dos limites até onde se deverão sobrepor as suscetibilidades pessoais aos
interesses da Nação. E além disso é preparar para o Exército a grande honra de enfeixar
através do SGM a direção futura dos problemas de geografia nacionais [...].

Em 1932, a Comissão da Carta Geral do Brasil foi enfim absorvida pelo SGM, conforme
os planos traçados pelo major Vidal, amplamente difundidos na revista dos “jovens turcos”.
Formou-se, assim, o Serviço Geográfico do Exército, com sede no morro da Conceição, Rio de
Janeiro, e um “braço” em Porto Alegre, com o nome de 1ª Divisão de Levantamento.
Na mesma década, ocorreu a criação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE). Tal instituição se tornou a principal responsável pelo mapeamento nacional, no en-

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tanto, ainda assim, dependia dos serviços de fotogrametria prestados pelo Serviço Geográ-
fico do Exército, uma vez que o IBGE não tinha domínio de tal técnica. Desta forma se suce-
deram os trabalhos de mapeamento do Brasil nas décadas seguintes: o SGE atuava de forma
colaborativa com o IBGE.
Na década de 1970, a diretoria do SGE foi deslocada para Brasília e a base do Rio de
Janeiro passou a ser responsável pelo mapeamento militar da região sudeste do Brasil sob
a denominação de Divisão de Levantamento General Alfredo Vidal, ou simplesmente 5ª DL.

o acervo da 5ª divisão de levantamento do serviço geográfico do exército

Após conhecermos um pouco do histórico desta instituição, parece-nos bastante claro


que ela é parte fundamental da história da cartografia no Brasil. Além disso, desde o início do
século XX, foi acumulado um número considerável de documentos e livros sobre cartografia,
fotogrametria, geodésia, astronomia, geografia, história do Brasil e do Rio de Janeiro que se
encontram sob a guarda da 5ª DL do Serviço Geográfico Militar.
Embora o acervo seja rico, ele é praticamente inexplorado e como o SGE é considerado
um local que tem como missão o mapeamento do Brasil, não existe a presença de profissio-
nais habilitados para a organização deste material de valor histórico.
A parceria com o Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast) data de 2010, quando
o grupo de pesquisa Território, Ciência e Nação (1870-1930), preocupado com o estudo da
cartografia histórica no Brasil, iniciou pesquisas no acervo documental da instituição. A afini-
dade das duas instituições ficou evidente, uma vez que além de documentos, a 5ª DL possuía
um rico acervo de instrumentos científicos de valor histórico. Tendo em vista que a missão
do Mast é auxiliar a preservação do patrimônio científico brasileiro, foi aberto na ocasião um
diálogo visando à cooperação técnica entre ambas as instituições. Contudo, apesar da boa
vontade institucional, por razões conjunturais, o acordo não foi à frente.
Em 2013, o então Comando da 5ª DL, cel. Vidal, por intermédio do antigo chefe, cel. Hélio
Gouvêa Prado, agora chefe da Segunda Comissão Brasileira Demarcadora de Limites/MRE,
entrou em contato com a pesquisadora Moema Vergara do Mast para relatar o problema que
estava ocorrendo com a biblioteca da 5ª DL. Por absoluta falta de pessoal técnico e necessi-
dade de espaço, seus livros estavam sendo descartados e o comandante gostaria de saber
do interesse do Mast em recolher aquele material para o seu acervo.
Tendo em vista que uma das preocupações principais na questão de conservação de
coleções é a preservação de seu entorno, não havia sentido a simples anexação de uma
biblioteca a outra. Assim, a pesquisadora se ofereceu para contratar, com recursos do Mast,
uma historiadora especialista em cartografia militar, a professora Maria Gabriela Bernardino,
junto com o então bolsista do Programa de Capacitação Institucional do Mast, professor
Bruno Capilé, para fazerem uma triagem do material.
O critério utilizado para salvaguardar os livros foi a sua relevância histórica para o Rio de
Janeiro, para o Brasil e para o estudo da cartografia e da geodésia. Nesta primeira reunião da
pesquisadora com o comando da 5ª DL, também foi informado que naquela biblioteca havia

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filmes em película que datam do início do século XX, possivelmente algum com a presença
do marechal Rondon. Uma vez que a questão audiovisual era uma preocupação da pesquisa
do grupo Território, Ciência e Nação, que estava desenvolvendo um site para divulgação
para o grande público, a parceria, mesmo que informal, se estabeleceu, e ficou acordado um
franco acesso aos documentos históricos para o grupo de pesquisa do Mast.
É importante salientar que no trabalho de triagem, cerca de seiscentos livros foram res-
gatados. Tais obras estão diretamente relacionadas à história da ciência, em especial às áreas
de astronomia e cartografia. Três filmes de importância histórica foram localizados, princi-
palmente por mostrar as dependências e o trabalho do Serviço Geográfico em diferentes
períodos: há um filme mudo de 16mm dos anos de 1920 e outro preto e branco, com locução
de Luiz Jatobá, de 35mm, provavelmente da década de 1960.3 O terceiro é colorido e sono-
rizado, de origem desconhecida, possui fortes indícios didáticos e deve ter sido usado para
o treinamento do corpo técnico. Todo este material foi digitalizado com recursos do Mast.
Também foi interessante o uso desses filmes digitalizados pela 5ª DL que, com o aumento de
visitação durante a Copa do Mundo no Rio de Janeiro, em 2014, providenciou uma televisão
na biblioteca e lá projetava os filmes.
Após este primeiro momento de organização e triagem da biblioteca, que durou três
meses, foi redigido um acordo formal entre as duas instituições que se encontra atualmente
no jurídico do Exército brasileiro.
Em 2014, iniciou-se a fase de cooperação mais sistemática do Mast na 5ª DL com o traba-
lho de uma bolsista PCI/Mast e uma bolsista de iniciação científica CNPq/Mast da área de ar-
quivologia, com supervisão da bibliotecária Mariana Acorse Lins de Andrade. Cabe também

Documentação localizada na 5ª Divisão de


Levantamento do Serviço Geográfico do
Exército. Fonte: acervo pessoal de Maria Ga-
briela de Almeida Bernardino

3 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=XFsEMp4AVdM>; <https://www.youtube.com/


watch?v=WWQQo3HEubQ>; <https://www.youtube.com/watch?v=wrj7I3z1vfY>. Acesso em: 25 nov. 2014.

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registrar que este trabalho conta com o apoio da Faperj, uma vez que este grupo de pesquisa
foi contemplado pelo edital de Grupos Emergentes de Pesquisa, edição 2013.

organização do acervo

O trabalho que está em desenvolvimento na Biblioteca da 5ª Divisão de Levantamento


do Serviço Geográfico do Exército tem como objetivo organizar e tornar a biblioteca aces-
sível aos interessados na consulta do acervo disponível na instituição, conforme orienta a
primeira lei da biblioteconomia: “os livros são para usar”.
No início do trabalho, encontramos a biblioteca desativada e os livros e fotografias ar-
mazenados em caixas de papelão de modo inadequado para a conservação do material. O
acervo não estava organizado de forma que fosse possível recuperar qualquer informação e
havia muita poeira no material e no ambiente. Contudo, a biblioteca é ampla e bem arejada,
dificultando o aparecimento de fungos. Até o momento, não foram encontrados insetos nas
estantes ou no acervo.
Como já mencionado, o objetivo geral é organizar o acervo da biblioteca, a fim de con-
servar e disponibilizá-lo para consulta. E, para isso, dividimos o trabalho em quatro fases:
na primeira fizemos a seleção do acervo; na segunda fase, ainda em andamento, fazemos a
higienização; na terceira fase, faremos a classificação e a catalogação do acervo; e, por fim,
na quarta fase, faremos o acondicionamento dos materiais.
Na seleção, avaliamos a pertinência do assunto dos materiais em relação à cobertura de
assunto da biblioteca. De acordo com Vergueiro (2010, p. 13), uma das primeiras conside-
rações a serem feitas na seleção de materiais em bibliotecas diz respeito à problemática do
assunto, a fim de verificar se os materiais passíveis de incorporação ao acervo estão ou não
incluídos nos parâmetros gerais de assunto ou áreas de cobertura da coleção.
A higienização é a “retirada de poeira e outros resíduos estranhos aos documentos, usan-
do instrumental indicado e técnicas apropriadas para não produzir estragos” (DICT, p. 45
apud Cunha; Cavalcanti, 2008). Esta fase contribui para a permanência estética e estrutural
dos documentos, além de atuar como elemento de prevenção à saúde das pessoas envolvi-
das com estes acervos (Spinelli, 2010).
É feita a higienização tanto da área quanto do acervo. As estantes são limpas com
pano seco, pois são de madeira. Não podemos utilizar nas estantes produtos como lus-
tra-móveis, visto que danificam os livros. Esta é uma atividade que exige tempo, já que
os livros e fotografias são higienizados um a um, manualmente, e deve ser realizada com
o equipamento de segurança necessário para os operadores, como jaleco, luva, máscara,
touca e óculos. Com uma trincha de cerdas macias (pincel largo) retiramos a poeira dos
cortes do livro (laterais do livro) e do interior das capas, fazendo a varredura; com um
pano macio e seco retiramos a poeira da capa e da contracapa do livro. Por fim, oxige-
namos o livro folheando-o. Nas fotografias fazemos delicadamente a varredura com a
trincha. É importante observar se há pó produzido por broca ou cupim e se o material foi
danificado por insetos.

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Na terceira fase, faremos a classificação de cada material, quanto ao assunto que é trata-
do, e a catalogação, que é a representação descritiva do material, especificando dados como
autor, título, local de publicação, editora, ano, dentre outros.
Cunha e Cavalcanti (2008, p. 84) definem classificação como o agrupamento real, ou
ideal, daquilo que é semelhante e a separação do que é diferente. Os autores afirmam ainda
que, geralmente, a classificação é o ato da divisão, em várias classes, de um conjunto de
objetos. A classificação bibliográfica é a combinação dos documentos de acordo com os
assuntos de que tratam (Cunha; Cavalcanti, 2008, p. 84). A classificação documentária a ser
utilizada será escolhida entre a Classificação Decimal de Dewey (CDD) e a Classificação De-
cimal Universal (CDU).
De acordo com Mey e Silveira (2009, p. 7), a catalogação é o estudo, a preparação e a
organização de mensagens, com base em registros do conhecimento, de forma a permitir a
interseção entre as mensagens contidas nestes registros do conhecimento e as mensagens
internas dos usuários.
A classificação e a catalogação são importantes para que seja possível recuperar a infor-
mação. Mey e Silveira (2009, p. 2) afirmam que seria impossível aos usuários das bibliotecas,
para escolha do material mais conveniente, folhear todos os livros, ouvir todos os discos,
manusear ou acessar todas as outras formas de registro disponíveis nos acervos reais ou ci-
berespaciais, mesmo que os materiais estivessem ampla e corretamente “arrumados”. Então,
os bibliotecários elaboraram representações desses registros, de forma a simplificar a busca,
ou seja, os bibliotecários elaboraram conjuntos de informações codificadas para representar
cada um dos registros de conhecimento existentes em acervos.
Para a realização da catalogação utilizaremos um software gratuito específico para ad-
ministração de bibliotecas, ainda a ser definido, além das tradicionais fichas catalográficas
de papel. Assim, será possível realizar a busca pelo material no computador ou nas fichas.
E, por fim, o material será acondicionado nas estantes e nos armários disponíveis na
biblioteca, de acordo com a classificação. A função do acondicionamento de acervos biblio-
gráficos é proteger as obras, preservando a integridade física, química e estética dos docu-
mentos (Oliveira, 2008, p. 63).
Os documentos soltos devem ser acondicionados em pastas e estas guardadas em cai-
xas, que podem ser dispostas vertical ou horizontalmente nas estantes. Além disso, os docu-
mentos não devem ficar demasiadamente apertados para que não sofram danos ao serem
retirados (Oliveira, 2008, p. 67).
As fotografias, que são materiais mais frágeis, serão armazenadas em envelopes para que o
material seja conservado e protegido das sujidades. E os livros serão armazenados nas estantes.

considerações finais

Atualmente, muito se caminhou com as reflexões de Roger Chartier, Robert Darton e


Peter Burke sobre a história da leitura e dos livros em seus diversos aspectos materiais. Ao
falar de livros imediatamente nos remetemos às bibliotecas e, mais especificamente, ao que

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Christian Jacob chamou de “o poder das bibliotecas”. Para este autor, ler numa biblioteca
é “instaurar uma dialética criadora entre a totalidade e as partes” (Jacob, 2008, p. 10). É a
tensão permanente entre a universalidade e a seleção que conduz o estar presente em uma
biblioteca. Jacob (2008, p. 11) sintetiza perfeitamente o que o grupo de pesquisa Território,
Ciência e Nação pensa ao afirmar que “uma biblioteca, em última instância, só adquire senti-
do pelo trabalho de seus leitores”. Assim, estamos empenhados em preservar o conteúdo e
o entorno de uma biblioteca fundamental para o patrimônio científico-cultural brasileiro, na
esperança de que outros pesquisadores lá trabalhem, agregando valor a uma coleção que
fechada estará fadada ao esquecimento e à dispersão.
Embora o nosso principal objetivo seja realizar o levantamento e a organização do acer-
vo pertencente ao Serviço Geográfico do Exército, a fim de que todos possam aproveitá-lo
da melhor forma possível, também destacamos a importância deste espaço para a história
do Rio de Janeiro. Muitos desconhecem o local ou, até mesmo, acreditam que a entrada seja
restrita a militares.
Além da biblioteca, e dos prédios e jardins históricos (tombados pelo Instituto do Patri-
mônio Histórico Artístico e Nacional), também podemos ter acesso ao Museu Cartográfico,
que conta com instrumentos científicos, mapas raros e raríssimas fotografias do Rio de Ja-
neiro da década de 1920.
O trabalho cujo resultado agora apresentamos procura desenvolver um diálogo interdis-
ciplinar entre a história e a biblioteconomia, pois apesar do apreço dos historiadores pelas
bibliotecas é necessário a presença do especialista na organização e conservação das mesmas.

Referências bibliográficas

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Recebido em 30/11/2014
Aprovado em 29/1/2015

p. 240 – jan . / jun . 2015


preservação de documentos arquivísticos digitais autênticos
reflexões e perspectivas
preservation of authentic digital arquival records
reflections and perspectives

Henrique Machado dos Santos | Bacharel em Arquivologia pela Universidade Federal de Santa Maria. Membro
do grupo de pesquisa CNPq: GED/A.

Daniel Flores | Doutor em Ciência da Informação pela UFRJ/Ibict. Professor adjunto do Departamento de Docu-
mentação da Universidade Federal de Santa Maria.

resumo

O aumento da produção de documentos arquivísticos digitais impulsionou os estudos sobre


as estratégias para sua preservação, de tal forma que muito se conhece de suas vantagens e
desvantagens. Atualmente é preciso analisar os prós e os contras das estratégias e definir um
ambiente confiável para a preservação de documentos digitais autênticos, garantindo o acesso
contínuo em longo prazo.

Palavras-chave: documentos arquivísticos digitais; preservação digital; autenticidade; acesso em


longo prazo.

abstract

The increased generation of digital archival records resulted in the production of studies on
strategies for their preservation. Hence, much is known about their advantages and disadvanta-
ges. Currently it is important to analyze the pros and cons of the strategies and define a trusted
environment for the preservation of authentic digital records, ensuring continued access in the
long-term.

Keywords: archival digital records; digital preservation; authenticity; long-term access.

resumen

El aumento de la producción de documentos de archivo digitales impulsó los estudios sobre


las estrategias para su conservación, por lo que se sabe mucho acerca de sus ventajas y des-
ventajas. Actualmente se necesita analizar los pros y los contras de las estrategias y definir un
entorno fiable para la conservación de los documentos digitales auténticos que garanticen el
acceso continuo a largo plazo.

Palabras clave: documentos de archivo digitales; preservación digital; autenticidad; acceso a largo
plazo.

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introdução

Os avanços no campo da tecnologia da informação ocasionaram transformações na so-


ciedade atual que vive um momento da busca constante por conhecimento. As inovações
tecnológicas se refletem na arquivística, pois os documentos antes produzidos somente em
meio analógico agora também são produzidos em meio digital.
Os documentos digitais tiveram rápida aceitação pela sociedade devido à praticidade
proporcionada, por exemplo, para a criação, o acesso e a difusão, realizados de forma mais
simples quando comparados com os documentos em suporte convencional. Luís Sayão co-
menta essa mudança de padrões:

Os pesquisadores, professores, estudantes e outros leitores demandam formatos eletrô-


nicos porque eles oferecem um mundo de vantagens em relação às formas impressas,
especialmente no que diz respeito à busca, à recuperação, à navegação, à apresentação
das informações e à capacidade de interoperarem com outras publicações eletrônicas
que estão em rede (Sayão, 2010, p. 70).

A simplicidade para criação e disseminação em rede, juntamente com a qualidade dos


resultados foram fatores que impulsionaram a adoção de documentos digitais (Ferreira,
2006). Logo, os documentos digitais ganham relevância e devido ao seu valor histórico, so-
cial e informativo começam a integrar o patrimônio documental das comunidades.
Ao se adquirir as facilidades proporcionadas pelo documento digital herda-se as suas
complexidades e especificidades, referentes ao seu contexto tecnológico. Nesse aspecto,
a arquivologia teve de se atualizar criando teorias contemporâneas capazes de satisfazer a
abordagem dos documentos arquivísticos digitais.

a manutenção da autenticidade em ciclos de obsolescência

A preocupação com a preservação da integridade e da autenticidade dos documentos


digitais deve-se à necessidade de se garantir que o patrimônio documental de custódia seja
autêntico e permaneça íntegro no decorrer do tempo (Corrêa, 2010). Essa preocupação é
manifestada pelo Conselho Nacional de Arquivos que destaca as especificidades e as com-
plexidades do meio digital:

Os documentos arquivísticos digitais apresentam dificuldades adicionais para presun-


ção de autenticidade em razão de serem facilmente duplicados, distribuídos, renomea-
dos, reformatados ou convertidos, além de poderem ser alterados e falsificados com
facilidade, sem deixar rastros aparentes (Conarq, 2012, p. 1).

A questão da autenticidade está diretamente relacionada ao processo de criação, ma-


nutenção e custódia dos documentos arquivísticos (Rondinelli, 2005), e é ameaçada sempre

p. 242 – jan . / jun . 2015


que os documentos arquivísticos são transmitidos através do espaço ou do tempo e por
efeitos da obsolescência tecnológica (Conarq, 2012).
Um documento digital pode ser alterado com facilidade sem deixar evidências visuais;
dessa forma, quaisquer alterações efetuadas em seu conteúdo serão comprometedoras.
Logo, a implementação de estratégias de preservação digital deverá considerar procedimen-
tos que garantam a manutenção da autenticidade. Paralelamente a isso, hardware, software
e suporte estão em constante mudança, ocasionando problemas de obsolescência tecno-
lógica, que são empecilhos para manutenção da autenticidade dos documentos digitais.
Miguel Ferreira comenta sobre os aspectos da obsolescência em nível de software:

A obsolescência tecnológica não se manifesta somente ao nível dos suportes físicos. No


domínio digital, todo o tipo de material tem obrigatoriamente de respeitar as regras de
um determinado formato. Isto permite que as aplicações de software sejam capazes de
abrir e interpretar adequadamente a informação armazenada. À medida que o software
vai evoluindo, também os formatos por ele produzidos vão sofrendo alterações (Ferrei-
ra, 2006, p. 19).

Os objetos digitais precisam ser atualizados na medida em que as versões dos softwares
e os formatos de arquivo por eles produzidos vão sofrendo mudanças, caso contrário po-
dem se tornar inacessíveis ao longo do tempo. Os acelerados ciclos de obsolescência das
tecnologias poderão comprometer a autenticidade dos documentos digitais, logo é preciso
determinar políticas e estratégias de preservação digital.

preservação digital: reflexões e perspectivas

A preservação digital consiste na atividade de garantir o acesso à informação em meio


digital, mantendo a sua integridade e autenticidade. Essa informação contida no documen-
to deverá ser interpretada no futuro por uma plataforma tecnológica que será diferente da
que foi utilizada no momento de sua criação (Conarq, 2004; Ferreira, 2006). Com relação às
questões de planejamento e respectivas mudanças das tecnologias, pode-se dizer que a pre-
servação digital dependerá da solução tecnológica proposta e dos seus respectivos custos
(Márdero Arellano, 2004), devendo-se considerar o acesso às mesmas funcionalidades e ao
conteúdo do documento digital (Conarq, 2004).
O estudo da preservação digital deverá ser abordado de forma interdisciplinar (Innarelli,
2011), contemplando políticas de preservação que irão descrever claramente, por exemplo,
as estratégias de preservação digital a serem aplicadas (Ferreira, 2006). Assim, a implemen-
tação de políticas de preservação será considerada a iniciativa mais eficaz para preservar e
garantir o acesso em longo prazo (Márdero Arellano, 2004).
Em linhas gerais, a preservação digital configura uma série de procedimentos sistemati-
zados, sincronizados a fim de garantir o acesso contínuo em longo prazo aos documentos.
Para isso, procede-se à implementação das estratégias de preservação digital.

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Estratégias de preservação digital

A preservação digital é composta por procedimentos de ordem estrutural e operacional.


Os procedimentos estruturais são os investimentos iniciais como, por exemplo, definições de
normas, adoção de padrões e a infraestrutura. Já os de ordem operacional são as atividades
aplicadas para a preservação física, lógica e intelectual dos documentos digitais (Márdero
Arellano, 2004; Thomaz, 2004). Os procedimentos estruturais podem ser definidos como sen-
do as políticas de preservação e os procedimentos operacionais as estratégias de aplicação
técnica propriamente ditas.

Estratégias operacionais de preservação digital

Cada estratégia irá focar com maior ênfase a preservação de um determinado nível do
objeto digital. Por isso, objetivando a aplicação dentro da arquivística, este trabalho aborda
as seguintes estratégias de preservação digital: no nível físico, o refrescamento; no nível ló-
gico, a emulação, a preservação da tecnologia e o encapsulamento; e no nível conceitual, a
pedra de Rosetta digital e a migração/conversão.

Preservação de tecnologia

Elimina os problemas de incompatibilidade e de leitura, embora seja necessária a manu-


tenção periódica da tecnologia. Na sua aplicação, se fazem necessários mecanismos que ga-
rantam sua integridade e autenticidade. Os objetos digitais não podem ficar “abandonados”
no sistema, pois necessitam de um monitoramento para verificar sua confiabilidade.
Em contrapartida, esta estratégia possui pontos negativos como, por exemplo, o alto
custo operacional, tornando-se inviável em longo prazo. Além disso, o acesso para o pú-
blico externo ao acervo será muito restrito, e até mesmo impossibilitado devido à necessi-
dade de hardware e software específicos para a leitura e interpretação dos objetos digitais.
Os ciclos de obsolescência cada vez mais acelerados tornarão as peças de reposição e os
profissionais qualificados para a manutenção mais caros e escassos. Dessa forma, o acervo
se tornará extremamente vulnerável, sujeito ao risco da impossibilidade de se efetuar manu-
tenção aos equipamentos. Consequentemente, o acesso aos objetos digitais no âmbito do
próprio acervo se tornará impossível, resultando em perda de documentos digitais por culpa
dos “museus tecnológicos obsoletos”.
De maneira geral, a preservação da tecnologia não deve ser excluída do plano de preser-
vação. Sua implementação poderá ser de grande valia em períodos de curto prazo ou onde
não seja possível aplicar outra estratégia, sendo usada como uma estratégia de transição,
para minimizar os seus próprios custos e o risco eminente de obsolescência.

A pedra de Rosetta digital

Deve ser implementada em situações em que todas as demais estratégias de preserva-


ção falharam. Ela consiste em uma ferramenta de arqueologia digital e não em uma estraté-
gia para preservação de objetos digitais (Heminger; Robertson, 2000).

p. 244 – jan . / jun . 2015


De qualquer forma, a reprodução em suporte analógico ainda é a estratégia de preser-
vação mais viável para ambientes em que complexos processos de preservação digital
são inviáveis. Devemos lembrar também que quando o guardião tiver sob sua custódia
um mesmo documento tanto na forma analógica quanto na digital ambas devem ser
devidamente preservadas (Corrêa, 2010, p. 28).

De maneira geral, os objetos digitais ao passarem por esse procedimento, deixam de ser
digitais, pois este é um fator que descaracteriza o documento digital. Essa “migração para
o suporte analógico”, proporcionada pela pedra de Rosetta digital, não implica descarte do
digital, visto que essa estratégia pode ser usada em situações que se dispõe de poucos recur-
sos financeiros. Com ela pode-se aplicar procedimentos como, por exemplo, a impressão de
um documento em papel A4 e anexar a sua respectiva representação binária. Mesmo assim
deverá ser usada em último caso, pois existem outras estratégias de baixo custo que podem
facilmente apresentar eficiência e eficácia superiores a esta.
Em linhas gerais, esta estratégia é tida como um procedimento emergencial, ou seja,
em um contexto onde não é possível emular, converter, migrar, encapsular, refrescar e nem
realizar a preservação de tecnologia. Sua aplicabilidade é contestável, mas ainda não é des-
cartável.

Emulação

É a forma mais estável de manter as funções do objeto digital quando o hardware torna-
se obsoleto (Interpares, 2007b). Considerando que as estratégias de emulação não sofrem
envelhecimento do hardware (Ferreira, 2006), estas poderão ser utilizadas para substituir
as estratégias de preservação da tecnologia. O amparo tecnológico virtual, proporcionado
pelas estratégias de emulação, possibilita representar os objetos digitais com alto grau de
fidedignidade devido à preservação do objeto lógico original. Além disso, a emulação irá
minimizar os riscos de obsolescência com relação ao uso de hardware específico.
Para Márdero Arellano (2004, p. 21), no que diz respeito à relação de custo/benefício,
a emulação é vista como “uma estratégia importante que possui aplicações úteis quando
a aparência do recurso digital original é importante, mas onde não seja aconselhável in-
vestir em uma tecnologia da informação de alto custo”. As estratégias de emulação pos-
sibilitam a representação dos documentos digitais com alto grau de fidelidade, porém
sua aplicação em longo prazo demanda custos elevados e incertezas com relação à sua
manutenção futura.
Vanderlei Santos apresenta algumas especificidades da emulação, no que se refere ao
seu planejamento:

Um dos problemas reside no fato de que a emulação é uma política pensada a priori. Só
é possível elaborar um emulador a partir do conhecimento integral do funcionamento
do sistema ou programa que se deseja emular. Desta forma, a preservação deve ser pla-
nejada para antecipar as necessidades futuras (Santos, 2005, p. 65).

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A prática da emulação pode levar à dependência de uma tecnologia de software espe-
cífica. É importante salientar que com o passar do tempo, o próprio emulador irá sofrer de
obsolescência, havendo então a necessidade de migrar/converter este para uma nova pla-
taforma ou desenvolver um novo emulador capaz de emular o primeiro (Thibodeau, 2002).

Encapsulamento

Durante o encapsulamento os objetos digitais deverão ser descritos, pois assim se pode-
rá saber, por exemplo, os requisitos necessários aos emuladores, a fim de gerar compatibili-
dade de hardware e software, suficientes para que a plataforma emulada consiga interpretar
corretamente os objetos digitais. O mesmo procedimento estabelecido para as estratégias
de emulação e o encapsulamento pode ser aplicado frente à conversão, e neste caso os ob-
jetos digitais são encapsulados junto com seus metadados para futuro desenvolvimento de
conversores. Assim o software responsável pela conversão, com o auxílio da informação for-
necida pelos metadados, terá capacidade de converter corretamente os formatos obsoletos,
os quais foram anteriormente encapsulados, para formatos de arquivos atuais.
Não há como determinar o valor de determinados objetos digitais. Vários anos podem se
passar até que se desperte o interesse por uma determinada coleção de objetos (Heminger;
Robertson, 2000). Logo, a instituição que conciliar as estratégias de encapsulamento com
outras estratégias, garante uma economia de recursos considerável.
Com relação aos documentos de natureza textual, o uso do PDA/A1 surge como uma
nova tendência. A possibilidade de reunir as fontes necessárias para a apresentação de um
determinado documento textual possibilita um alto grau de fixidez,1 agregando os compo-
nentes de forma fixa2 e conteúdo estável,3 que são princípios preconizados pela diplomática
contemporânea. Embora muito eficientes para documentos textuais, as estratégias de en-
capsulamento usando PDF/A1 não poderão ser aplicadas para outros objetos digitais, como
softwares e objetos dinâmico-interativos.
O encapsulamento tem como fundamento a preservação do objeto original juntamente
com todas as informações necessárias para sua reconstrução no futuro através da aplicação
de outra estratégia. Essa é uma de suas grandes vantagens: documentar a descrição do seu
contexto tecnológico ou mesmo incorporar outros objetos digitais que auxiliem na correta
interpretação do documento. Poderá demandar maior espaço para armazenamento, o que
pode inviabilizar as estratégias de encapsulamento de modo geral, pois além dos metada-
dos poderão estar inclusos o sistema operacional e o software necessário para acesso e re-
cuperação da informação.

1 Documento arquivístico que assegura a forma fixa e o conteúdo estável (Interpares, 2007b).
2 Documento arquivístico que assegura a mesma aparência ou apresentação documental cada vez que o docu-
mento é recuperado (Interpares, 2007b).
3 Documento arquivístico que torna a informação e os dados nele contidos imutáveis e exige que eventuais mu-
danças sejam feitas por meio do acréscimo de atualizações ou nova versão (Interpares, 2007b).

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Em linhas gerais, o encapsulamento é uma estratégia capaz de potencializar a eficácia
das estratégias de emulação e migração/conversão, a fim de auxiliar o plano de preservação.
O encapsulamento ainda pode ser aplicado a todos os tipos de documentos, e os procedi-
mentos utilizando PDF/A1 são ideais para documentos textuais.

Refrescamento

O ato de recopiar dados de um suporte físico para outro será uma atividade necessária
sempre que o formato selecionado se tornar obsoleto (Interpares, 2007a). É preciso monito-
rar o estado de conservação da mídia e os ciclos de obsolescência, pois se o suporte físico
se deteriorar ou se tornar obsoleto a ponto de deixarem de existir periféricos capazes de
acessar e recuperar a informação nele armazenada, corre-se o sério risco da informação se
perder para sempre (Hendley, 1998 apud Ferreira, 2006). O refrescamento/rejuvenescimento
periódico proposto pelo InterPARES 2 Project e por Hendley é considerado uma atividade
vital no contexto da preservação digital, assim como também é vital a verificação da integri-
dade dos suportes físicos (Ferreira, 2006).
Em contrapartida, o refrescamento/rejuvenescimento de suporte realizado em tempo
hábil não constitui uma estratégia de preservação por si só. Deverá ser entendido como
um pré-requisito para o sucesso de qualquer estratégia de preservação (Besser, 2001 apud
Ferreira, 2006). Ou seja, o refrescamento/rejuvenescimento de mídia não deverá ser adotado
como única estratégia de preservação digital, pois esta abordagem restringe-se ao objeto
físico, isto é, este processo engloba somente a atualização de suporte. Por isso, deverá servir
de complemento para outras estratégias como a migração/conversão, tornando-se, assim,
um procedimento de preservação digital válido.
Em complemento às estratégias de refrescamento, é possível otimizar os procedimentos,
por exemplo, realizando estudos sobre confiabilidade, durabilidade, acondicionamento e
outras especificidades das mídias. A partir desse levantamento, é possível refrescar mídias
de maneira mais eficiente e eficaz.

As mídias digitais são afetadas por diversas variáveis as quais influenciam diretamente
em sua durabilidade e confiabilidade, algumas destas são, por exemplo, a temperatura,
a umidade relativa do ar, tempo de uso, qualidade da mídia, campos magnéticos, mani-
pulação e poluição (Innarelli 2012, p. 37).

As mídias de armazenamento são extremamente sensíveis, necessitam de monitoramen-


to especializado e estudos sobre a escolha dos tipos a serem utilizados nos acervos. Há de se
tomar outros cuidados com furtos, adulterações e danos, que podem ser evitados através do
controle de monitoramento interno.
De maneira geral, o refrescamento deve ser realizado munido de conhecimentos sobre
a durabilidade/obsolescência das mídias e monitoramento dos formatos, a fim de se verifi-
car a necessidade de proceder a alguma estratégia de preservação digital, normalmente a
migração/conversão.

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Migração/Conversão

Possibilita uma readaptação dos objetos digitais, de modo que esses possam ser correta-
mente interpretados e consequentemente representados com fidedignidade.
Essas estratégias são utilizadas principalmente nos contextos em que não existam ob-
jetos digitais interativos, apenas objetos estáticos como imagens, bases de dados e docu-
mentos de texto. Nessa estratégia tanto a estrutura interna quanto o conteúdo do material
devem ser preservados e transferidos igualmente, assim o objeto migrado/convertido será
uma representação fiel do original (Márdero Arellano, 2008). Dessa forma, é possível manter
os objetos digitais compatíveis e interpretáveis pelas tecnologias atuais sem a necessidade
de usar recursos complexos, como é o caso dos emuladores (Ferreira, 2006).
Entretanto, durante as migrações poderão ocorrer corrupções na estrutura interna do
objeto digital, pois a migração é muito mais complexa do que apenas transferir a sequência
de bits de uma mídia para outra (Márdero Arellano, 2008). Uma série de migrações/conver-
sões poderá causar a inconsistência e afetará profundamente os objetos digitais, sobretu-
do se forem objetos dinâmicos. Isto porque a migração preocupa-se em preservar o objeto
conceitual e o seu respectivo conteúdo intelectual, já que as alterações realizadas em sua
estrutura de bits não são visíveis.
A migração implica mudanças na configuração que afeta o documento por inteiro. Após
migrados, os documentos podem parecer ser os mesmos, mas não o são. Sua forma física é
profundamente alterada, com perda de algum dado e acréscimo de outro (Rondinelli, 2005),
pois qualquer migração/conversão produzirá alterações na estrutura interna do documento
(Santos, 2005). Por isso, conforme o InterPARES 2 Project, em longos períodos de custódia
de documentos arquivísticos, a experiência do preservador pode mostrar que outras estra-
tégias de preservação são mais estáveis ou podem ser transmitidas com mais facilidade em
longo prazo. Novos métodos de preservação poderão ser desenvolvidos após o recebimento
e o processamento inicial dos documentos. Além disso, caso uma migração/conversão espe-
cífica venha a falhar com o tempo, a guarda do formato lógico inicial irá permitir ao preser-
vador reiniciar o processo de preservação (Interpares, 2007a).
As estratégias de migração, embora não possam ser aplicadas para todos os objetos
digitais, configuram-se como a melhor alternativa para a preservação digital. Isso porque
possibilitam que os objetos digitais oriundos de plataformas antigas possam ser migrados e
interpretados em plataformas atuais. Mesmo que apresente perdas, a migração/conversão
possui vantagens relevantes, como é o caso da possibilidade de transposição de um objeto
criado em um contexto do passado para a atualidade. Além disso, um sistema que imple-
mente padrões de metadados, para documentar a sua custódia, e ainda possibilite retro-
ceder ao objeto digital original, aumentará significativamente os níveis de confiança nesta
estratégia, sendo possível a sua implementação em longo prazo.

p. 248 – jan . / jun . 2015


a implementação de repositórios digitais

Tendo em vista o conhecimento das estratégias de preservação digital, deve-se proceder


à escolha do local onde os documentos digitais serão armazenados e consequentemente
preservados. Considerando a complexidade e a especificidade que o documento arquivís-
tico digital possuiu, é necessário um ambiente de preservação confiável, que garanta a in-
tegridade e a autenticidade dos objetos digitais a fim de possibilitar o acesso contínuo em
longo prazo.
A definição de uma política de preservação e o estabelecimento de estratégias de pre-
servação adequadas são ações fundamentais. É preciso adotar um repositório capaz de pre-
servar os objetos digitais, bem como facilitar a implementação das políticas e das estratégias
de preservação (Ferreira, 2006). O repositório digital deve ser um ambiente de preservação
autêntico, dispondo de ferramentas para a implementação das estratégias de preservação,
definição dos padrões de metadados, escolha dos formatos de arquivo para preservação etc.
Nesse ambiente, todas as ações devem ser registradas, a fim de garantir a sua autenticidade.
Assim, cria-se um histórico de cada objeto digital armazenado, aumentando a confiabilidade
de seus conteúdos.
Modelo Open Archival Information System (OAIS)
A implementação de um repositório digital em concordância com os modelos de funcio-
nalidade e estrutura da informação do OAIS é um pré-requisito para se estabelecer o grau
de confiabilidade, garantindo a preservação em longo prazo (Márdero Arellano, 2008). Dessa
forma, as instituições arquivísticas passarão a entender com maior clareza os requisitos ar-
quivísticos necessários para a preservação (Thomaz, 2006). A conformidade dos repositórios
arquivísticos digitais com o modelo OAIS adicionará confiança às ações de preservação. O
fato de o OAIS ser apenas um modelo conceitual, possibilita a sua implementação utilizando
uma variabilidade de repositórios, bem como é possível escolher um padrão entre diversos
padrões de metadados. Nesse ambiente, escolhem-se os softwares responsáveis pelas estra-
tégias de preservação, por exemplo, conversores e emuladores.
Seguir padrões facilita o entendimento e a troca de conhecimentos entre as comunida-
des científicas. Considerando que o modelo OAIS é uma referência em preservação digital
em nível mundial, o seu estudo torna-se fundamental para a comunidade arquivística. Além
disso, devem-se procurar métodos para realizar auditoria e certificação dos repositórios di-
gitais, verificando a sua confiabilidade e o cumprimento com o proposto pelo modelo de
referências OAIS.
Recomendações Trustworthy Repository Audit & Certification (TRAC)
Um repositório digital confiável deve oferecer estratégias de segurança para os docu-
mentos armazenados, e garantir a sua fidedignidade e a sua segurança em longo prazo (RLG/
OCLC, 2002). Para adicionar confiabilidade aos repositórios digitais podem-se utilizar as re-
comendações do Trustworthy Repository Audit & Certification: criteria and checklist (TRAC).

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Conforme o documento, essas são as principais características que devem estar presentes
no repositório digital para que este seja considerado confiável. A comprovação da existên-
cia dessas características pode ocorrer pelas ações de certificação, que nos dias de hoje se
“tornam um componente-chave para os repositórios digitais contemporâneos” (Thomaz,
2007, p. 84).
O TRAC apresenta um conjunto de critérios usados como referência para a certificação
de repositórios digitais, oferecendo ferramentas para auditoria, avaliação e certificação
potencial de repositórios, além de estabelecer a documentação exigida para a auditoria.
Através do TRAC pode-se esquematizar um processo de certificação e estabelecer meto-
dologias adequadas para determinar a base e a sustentabilidade dos repositórios digitais
(Sayão, 2010). O TRAC tem por objetivos desenvolver critérios para identificar os reposi-
tórios digitais capazes de realizar o armazenamento, a migração e promover o acesso aos
documentos digitais de forma confiável. O desafio tem sido produzir critérios de certifica-
ção e delinear um processo de certificação aplicável a uma gama de repositórios digitais
(RLG/NARA, 2007).
Repositório digital confiável: uma possível convergência entre OAIS e TRAC
Um repositório digital confiável deverá atender aos procedimentos arquivísticos e aos
requisitos de confiabilidade (Conarq, 2014). A confiança se desenvolve em diversos níveis,
que são no mínimo três: produtores, consumidores e fornecedores. Deve-se verificar se os
produtores estão enviando as informações corretas, os consumidores estão recebendo as in-
formações corretas e os fornecedores estão prestando serviços adequados (Thomaz, 2007).
Desse modo, a confiabilidade deve ser considerada nas medidas de segurança, desde a cons-
trução dos repositórios digitais, a fim de se garantir autenticidade em logo prazo (Márdero
Arellano, 2008).
Entende-se que um repositório digital deve estar em conformidade com as normas e pa-
drões estabelecidos, e trabalhar de forma colaborativa com outros serviços de preservação
digital, de forma a possibilitar níveis de interoperabilidade com outros repositórios digitais
e sistemas informatizados que tratam de documentos arquivísticos digitais (Conarq, 2014;
Mardero Arellano, 2008). A interoperabilidade entre as ferramentas de gestão e preservação
é um componente-chave para as ações em longo prazo. Isso realça a necessidade de se usar
tecnologias livres, para que se possa ter acesso ao código fonte para compreender o seu
funcionamento interno.
Em linhas gerais, a definição de um repositório digital confiável deverá considerar as
especificações do modelo OAIS. Além disso, os procedimentos de auditoria e certificação
podem ser avaliados através dos requisitos recomendados pelo TRAC. A sincronia entre estas
definições proporcionará um ambiente confiável para a preservação em longo prazo. Logo,
esses conceitos tornam-se as bases para a recomendação de qualquer repositório digital.
Dessa forma, os critérios do TRAC vêm como um complemento ao repositório digital, e a sua
conformidade resulta em confiabilidade: o repositório arquivístico digital confiável.

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conclusão

A partir da análise das vantagens e desvantagens das estratégias de preservação digital,


pode-se apontar a emulação, o encapsulamento, o refrescamento e a migração/conversão,
como estratégias mais viáveis em longo prazo. A combinação dessas estratégias deverá ser
realizada conforme os requisitos de integridade e autenticidade, a fim de garantir o acesso
contínuo.
Deve-se também ressaltar que as estratégias de preservação precisam ser implemen-
tadas em um ambiente confiável, que possua mecanismos para registrar toda e qualquer
alteração ocorrida aos objetos digitais. Para atingir a confiabilidade desejada pelos produ-
tores, administradores e consumidores, é preciso implementar um repositório digital em
conformidade com o modelo de referência OAIS. Além disso, as atividades de auditoria e
certificação definidas nas recomendações do TRAC determinarão o nível de confiabilidade
do repositório. A auditoria é um procedimento indispensável para determinar se os objetos
digitais preservados estão sendo gerenciados de forma responsável.
O repositório digital confiável é o ambiente autêntico para a preservação de objetos
digitais, garantindo o acesso contínuo em longo prazo. A complexidade e a especificidade
dos documentos digitais mostraram que é preciso um sistema que gerencie as tendências
dos padrões, seja de formatos, de metadados etc. Considerando a vulnerabilidade dos do-
cumentos digitais, criar ambientes de armazenamento seguros é fundamental para a sua
preservação.
Por fim, a preservação de documentos digitais autênticos implica a gestão destes com
caráter autêntico. Logo, a implementação de repositórios digitais em fases corrente e inter-
mediária são premissas fundamentais para a preservação em longo prazo, tanto de sua inte-
gridade quanto de sua autenticidade. Os critérios do TRAC são uma das opções de auditoria
e certificação, mas podem ser adotados outros modelos de requisitos ou usá-los em paralelo.

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Recebido em 16/11/2014
Aprovado em 21/1/2015

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o sistema de consulta prosopográfica colonial e a divulgação de
informação documental
perfil social e trajetórias em pernambuco, 1640-1822
the prosopography database and the dissemination of documental
information
social profile and trajectories in pernambuco, 1640-1822

Kalina Vanderlei Silva | Professora da Universidade de Pernambuco (UPE). Doutora em História pela Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE). Coordenadora do Grupo de Estudos em História Sociocultural da América Latina/UPE.

Welber Carlos Andrade da Silva | Doutorando em História pela Universidade de Évora, Portugal. Bolsista da
Capes. Pesquisador do Grupo de Estudos em História Sociocultural da América Latina/UPE.

Carlos Bittencourt Leite Marques | Professor da UPE. Mestre em História pela Universidade Federal Rural de
Pernambuco (UFRPE). Pesquisador do Grupo de Estudos em História Sociocultural da América Latina/UPE.

resumo

O presente trabalho busca apresentar o Sistema de Consulta Prosopográfica Colonial – Siconp


(financiado por CNPq/UPE), enquanto ferramenta de disponibilização de informação histórica
sobre a América colonial portuguesa pela web, e discute as potencialidades da divulgação digi-
tal de fontes históricas e dados documentais.

Palavras-chave: prosopografia; inventários; repositórios digitais.

abstract

This paper presents the Sistema de Consulta Prosopográfica Colonial – Siconp, a prosopography
database (sponsored by CNPq/UPE), aimed at disseminating historical information about the
colonial history of the Portuguese America through the web. It also discusses the potential of
initiatives related to digital dissemination of historical sources and documental data.

Keywords: prosopography; inventories; digital repositories.

resumen

Este artículo tiene como objetivo presentar el Sistema de Consulta Prosopográfica Colonial –
Siconp (patrocinado por CNPq/UPE), que desea ayudar a los estudios sobre la historia de la
América colonial portuguesa por medio de la web, y analiza el potencial de difusión digital de
las fuentes históricas y datos documentales.

Palabras clave: prosopografia; inventarios; repositorios digitales.

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o sistema de consulta prosopográfica

O Sistema de Consulta Prosopográfica Colonial – Siconp (CNPq/UPE) é um sistema digi-


tal de consulta de dados biográficos de personagens históricos – especificamente aqueles
oriundos da capitania de Pernambuco – cujo objetivo primeiro é construir uma base de re-
ferências prosopográficas – ou seja, de referências biográficas em série – que possa servir de
suporte à pesquisa em história social, moderna e colonial, disponibilizando tal base através
da world wide web (web). Voltado para a comunidade de historiadores, esse sistema busca
facilitar a pesquisa histórica, catalogando e disponibilizando referências relativas à docu-
mentação colonial concernente a esta região, espalhada em diferentes acervos nacionais e
estrangeiros. Mas, ao disponibilizar também as transcrições documentais – e não apenas os
documentos digitalizados, de difícil leitura – ele permite ainda que tais fontes sejam lidas
e consultadas por um público não especializado, o que inclui professores de ensino funda-
mental e médio.
Os dados que compõem o acervo do Siconp são relativos à capitania de Pernambuco en-
tre 1640 e 1822: um período de consolidação das estruturas da colonização portuguesa nas
Américas, e no qual as elites da referida capitania desempenharam um papel ativo e influente
por todo o Estado do Brasil. De fato, esse é um período clássico e um dos marcos fundadores
e fundamentais da historiografia brasileira, e, como tal, constantemente revisitado pelos his-
toriadores brasileiros e brasilianistas. Apesar disso, a construção/reconstrução desse recorte
crono-espacial, a América açucareira colonial, é dificultada pelas próprias fontes: em sua maior
parte, tais fontes eram originalmente documentos oficiais da administração colonial, e apesar
de consideravelmente numerosos, tais registros estão hoje espalhados em diferentes arquivos,
e não apenas no Brasil e em Portugal, mas também na Espanha e Países Baixos, por exemplo.
E se não é raro que muitos deles se encontrem em precário estado de conservação, todos eles
exigem do estudioso o domínio das técnicas paleográficas para sua leitura.
Essa coleção de fatores torna complicada a síntese analítica que deve constituir o traba-
lho historiográfico. Mas a gradual disponibilização de dados documentais e de fontes histó-
ricas na web é um ideal almejado por muitos no intuito de tornar a construção dessa síntese
não apenas mais fácil, porém também mais completa.
E é nesse contexto que o Siconp se insere, apresentando-se como uma nova ferramenta
na construção de uma historiografia colonialista mais completa, integrando essa tendência
que tem instigado importantes iniciativas como o Projeto Resgate de Documentação Histó-
rica Barão do Rio Branco, do Ministério da Cultura, e o Projeto Ultramar – Resgate da Docu-
mentação Histórica, da UFPE. Nascido a partir do projeto Sistema de Consulta Prosopográfi-
ca: Perfil Social, Trajetória e Documentação de Pernambuco Colonial (1640-1822), financiado
pelo Edital Universal/CNPq-2011 e desenvolvido pelos pesquisadores do GEHSCAL (Grupo
de Estudos em História Sociocultural da América Latina, da UPE), o Siconp funciona como
um banco de dados de livre acesso, no qual os pesquisadores podem consultar informações,
referências documentais e ter acesso a transcrições integrais e parciais de documentos alu-
sivos a personagens históricos atuantes no espaço estendido da capitania de Pernambuco,

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entre a segunda metade do século XVII e as primeiras décadas do século XIX. O banco de
dados é constantemente alimentado por historiadores e pode ser consultado em <http://
www.projetosiconp.org/index.php>.
Seu foco na capitania de Pernambuco se justifica por ter sido esta, por séculos, um cen-
tro político e econômico de grande influência sobre a América portuguesa como um todo, e
sobre as capitanias do Norte do Estado do Brasil em particular. Por sua vez, e sem esquecer
a dinâmica e diversificada estrutura social intrínseca a essa capitania, a ênfase desta base de
dados recai sobre a elite açucareira colonial estabelecida nos centros políticos da província
em questão: isso se explica pela relevância histórica que essa elite – em geral composta por
senhores de engenho e lavradores de cana de açúcar, mas a partir do século XVIII integrada
também por grandes mercadores – assumiu no processo de conquista territorial e na im-
plantação das estruturas coloniais na América portuguesa (Silva, 2010). Além disso, a pró-
pria configuração mestiça desses grupos sociais garante que, ao estudar a elite açucareira,
o historiador vá descortinando todo um complexo cenário que vai bem além dos senhores
de engenho.
O Siconp foca tanto a disponibilização de informações documentais quanto de transcri-
ções integrais dos documentos pesquisados. No caso das informações que compõem a base
de dados prosopográficos, e estão postas em fichas, elas fazem referência a questões como
as propriedades possuídas, os laços familiares, a etnia, os cargos e postos militares dos per-
sonagens biografados, indicando sempre as referências documentais onde tais informações
podem ser encontradas. Por outro lado, uma parte importante do banco de dados é aquela
que traz as transcrições integrais dos documentos mencionados nas fichas, tão mais relevan-
tes quando consideramos que a habilidade técnica exigida para a leitura da documentação
colonial, a habilidade paleográfica, normalmente restringe o acesso às informações contidas
nesses registros, tornando-os acessíveis apenas aos especialistas.
Com relação às ferramentas computacionais usadas, o Siconp foi desenvolvido a partir
do software Scriptcase PHP Generator, de edição e criação de sistemas para a internet,
que suporta a maior parte dos bancos de dados. Tal software é executado diretamente
no navegador que permite gerenciamento de aplicações web colaborativa. A partir daí, a
arquitetura do site permite que os pesquisadores insiram os dados, incluindo transcrições,
acessando a página com senhas específicas, fornecidas pelos coordenadores. Esses dados,
por sua vez, ao serem salvos no sistema, podem ser acessados a partir de qualquer com-
putador interconectado à base de dados central, usando o ambiente da internet, sem ne-
cessidade de senhas ou de instalação de softwares específicos, permitindo, assim, a maior
divulgação possível da coleção de referências documentais e de transcrições. A interface
do site possibilita ainda que o mesmo possa ser acessado através de dispositivos móveis
com tecnologia Android.
As informações documentais, no formato de fichas prosopográficas, estão acessíveis a
partir de uma pesquisa nominal ou simplesmente alfabética na interface “pesquisa” do site.
Cada ficha disponibiliza, além das informações biográficas, as referências documentais e
arquivísticas pertinentes e, se possível, as transcrições. Em alguns casos, várias fichas são

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disponibilizadas para um mesmo personagem, em virtude da riqueza documental relativa
ao mesmo (consultar Antonio Gonçalves Caldeira, por exemplo, em <http://www.projetosi-
conp.org/pesquisa.php>).
Por sua vez, no que diz respeito à documentação que fornece as informações que alimen-
tam o sistema, a pesquisa original foi realizada pela equipe de pesquisadores em diferentes
repositórios. Foram consultados acervos em Recife, Rio de Janeiro e Lisboa, destacando-se
o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa; a Fundação Biblioteca Nacional, no Rio
de Janeiro; o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), também no Rio de Janeiro; o
Memorial da Justiça do Estado de Pernambuco, no Recife; além do Arquivo Histórico Ultra-
marino, através do Projeto Resgate Barão do Rio Branco e do Projeto Ultramar (UFPE), e da
documentação digitalizada pertencente ao acervo digital do GEHSCAL e originária dos se-
guintes acervos: a 5ª Superintendência Regional do Iphan, o Acervo da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos do Recife, o Arquivo Público Jordão Emerenciano do Estado
de Pernambuco e o Arquivo da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Igreja de Santo
Antônio, todos no Recife.
Contudo, essa etapa está bem longe de terminar, tanto porque o site se encontra em
franco processo de alimentação, um processo lento devido ao próprio volume de informa-
ções coletadas, quanto pelo fato de que a própria natureza do banco de dados está fundada
na constante busca por informações, o que significa que essa alimentação não deverá cessar.
Tudo isso, é importante frisar, tem como objetivo principal a democratização de infor-
mação e a difusão de conhecimento. A propagação de acesso à documentação histórica tem
sido uma tendência crescente no mundo: os arquivos estão, cada vez mais, se dedicando à
digitalização de seus acervos, em uma tentativa tanto de preservação quanto de divulgação.
De fato, tal tendência é tão forte que deu origem a toda uma normatização internacional
com vistas à regulamentação dos registros arquivísticos através das novas tecnologias da
informação (Rodríguez Bravo, 2007, p. 361).
Seguindo essa tendência, vários acervos internacionais como o Arquivo Nacional da
Torre do Tombo (<http://digitarq.dgarq.gov.pt/>), em Lisboa, e o Portal de Archivos Españo-
les – Pares (<http://pares.mcu.es/>) disponibilizam acesso à sua documentação digitaliza-
da através da web. No entanto, o Siconp, não sendo um arquivo ou repositório documen-
tal, sustenta uma proposta diferenciada uma vez que não é seu objetivo disponibilizar a
documentação fotografada, mas os dados documentais relativos a um tema específico (a
prosopografia das elites açucareiras coloniais) e as transcrições documentais. Sua inovação
está especificamente na disponibilização de tais transcrições, visto que a elaboração desse
produto, em um processo lento e difícil, mas fundamental para o trabalho historiográfico,
depende de um conjunto de técnicas e competências nem sempre possuído pela maioria
dos historiadores. E ao disponibilizar essas informações na rede, é possível também alcançar
um público amplo de professores não especialistas, contribuindo assim para a melhoria da
qualidade do ensino de história no Brasil.
Considerando outro aspecto do sistema, é relevante notar que a opção pela prosopogra-
fia da elite açucareira como tema para as informações armazenadas no banco de dados, res-

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ponde a uma historiografia em desenvolvimento, aquela que está interessada na formação
das elites coloniais (Bicalho; Fragoso; Gouvea, 2010). De fato, apesar desse interesse crescen-
te por todo Brasil pela história de um dos grupos sociais mais atuantes em termos de política
colonial, muitas lacunas se apresentam e uma vastidão documental permanece intocada. A
metodologia prosopográfica, por seu turno, associada à clássica história social, ainda é ino-
vadora no que respeita às elites açucareiras, com poucos historiadores se dedicando a ela,
até agora.1 E na verdade, longe dos estudos sobre as elites, e no que tange às capitanias do
norte do Estado do Brasil colonial como um todo, tal metodologia é ainda menos utilizada,
devido à dificuldade de sistematização de grandes volumes de informação documental, uma
exigência da prosopografia, ou seja, pelo fato de que o interesse historiográfico tem sido
depositado em outras abordagens teóricas.
O objetivo maior da metodologia prosopográfica é transformar o grupo biografado em
um ‘tipo ideal’ que pode ser examinado enquanto caso exemplar sociológico, e para atingir
esse objetivo se faz necessário uma grande quantidade de dados (Montagner, 2007). Ou seja,
é uma metodologia firmada na história serial, e apenas possível a partir da constituição de
um banco de dados. Segundo Lawrence Stone, em texto clássico e definitivo sobre essa me-
todologia, a mesma pode ser usada para responder a dois grandes problemas historiográ-
ficos: a origem das ações políticas, e as mobilidades sociais: “o propósito da prosopografia
é dar sentido à ação política, ajudar a explicar a mudança ideológica ou cultural, identificar
a realidade social e descrever e analisar com precisão a estrutura da sociedade e o grau e a
natureza dos movimentos em seu interior” (Stone, 2011, p. 116). Ou seja, ao traçar uma radio-
grafia de um determinado grupo social, por meio de sua biografia coletiva e da construção
de seu perfil, seria possível entender as mudanças ocorridas dentro dele ao longo de um
determinado período, assim como as raízes sociais de suas ações.
Nesse sentido, deve-se considerar que não é função do Siconp realizar a síntese analíti-
ca dos dados coletados e compor análises historiográficas. Essa tarefa, a de transformar os
dados em conclusões, é deixada para os historiadores que venham a usar o banco de dados,
sendo a função primeira do sistema a de constituir a série de informações tão vital para a
história social, servindo, assim, de ferramenta para a mesma.
Dentro desse contexto, um dos acervos mais significativos para a construção desse ban-
co de dados é o Memorial de Justiça de Pernambuco. Arquivo permanente do Tribunal de
Justiça de Pernambuco, a documentação sob sua guarda é aquela que, tendo perdido seu
valor administrativo, já não serve mais à atividade fim desta instituição, mas é preservada
por sua importância histórico-cultural. E ao separar em um repositório próprio esses docu-
mentos não mais pertinentes às atividades da Justiça atual, o Memorial terminou por criar
um dos acervos mais relevantes de Pernambuco, ainda mais importante pelo ineditismo his-
toriográfico de sua documentação.

1 Importante ressaltar, todavia, o trabalho de George Felix Cabral de Souza, pioneiro na prosopografia das elites
coloniais de Pernambuco: Souza, 2007.

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Nele é possível encontrar, além da documentação produzida pela administração judi-
ciária ao longo de séculos, também mapas, fotografias e livros escritos por magistrados de
todo o país. Mas são mesmo os processos judiciais que compõem sua massa documental,
organizados em processos de primeira e segunda instância, e documentação do segundo
grau, de alguns órgãos que antecederam o Tribunal de Justiça, como, por exemplo, os extin-
tos Tribunal da Relação, Corte de Apelação e Tribunal de Apelação (Valle, 2005). Em números
quase absolutos, os processos de primeiro grau compreendem um período cronológico que
vai de meados dos setecentos até o ano de 1959.
Essa enorme massa documental está dividida por fundos, ou seja, conjuntos de documentos
de uma mesma proveniência, que no caso desses processos se referem às comarcas nas quais
foram produzidos e/ou recebidos (Arquivo Nacional, 2005). E hoje se encontram disponíveis
para consulta fundos relativos às comarcas de Afogados da Ingazeira, Águas Belas, Bonito, Bo-
docó, Bom Conselho, Cabo, Cabrobó Correntes, Escada, Exu, Flores, Floresta, Gameleira, Glória
de Goitá, Goiana, Justiça Federal (Superior Tribunal de Justiça), Nazaré da Mata, Ipojuca, Ouri-
curi, Paudalho, Recife, São Bento do Una, Serra Talhada, São Lourenço da Mata e Triunfo.
Dessa ampla coleção documental, são os inventários que mais têm contribuído para a
construção do Siconp. De fato, a subsérie Inventário é uma das mais ricas peças constituinte
desse acervo. Ela permite observar o cotidiano, propiciando ao historiador a percepção de
fragmentos das condições materiais e não materiais da região em que o mesmo foi produzi-
do. E é sobre ela que o interesse do Siconp tem se dedicado.
Se os inventários dificilmente podem ser considerados uma fonte nova ou pouco usual
na historiografia, até hoje foram pouco explorados no que tange à sociedade urbana das
vilas açucareiras da capitania de Pernambuco colonial, e menos ainda no que se trata do
sertão colonial. Isso se explica pela difícil localização de inventários anteriores ao século XIX,
situação que está gradualmente sendo alterada com a divulgação do acervo do Memorial de
Justiça de Pernambuco e sua rica coleção de inventários setecentistas, pertencentes a uma
diversidade de personagens, homens e mulheres, das vilas açucareiras e sertanejas.
De forma geral, a historiografia vem se debruçando cada vez mais sobre os inventários
enquanto fonte para o cotidiano na América portuguesa, principalmente no século XVIII,
quando tais documentos podem ser encontrados em diversas regiões. Produzidos em gran-
de quantidade devido à necessidade da Coroa de controlar as heranças e transmissões de
propriedades dentro das famílias, eles se tornaram vitais para diferentes abordagens his-
toriográficas, desde os estudos de demografia histórica (Faria, 2011) até os de história do
cotidiano (Pereira, 2011). Isso porque as diversas peças judiciais que compõem o inventário,
como a petição inicial, a lista de herdeiros, os arrolamento de bens, partilha, arrolamento das
dívidas e em alguns casos os testamentos, propiciam uma série de informações de natureza
genealógica, sociológica, religiosa, cultural e econômica que pode ser analisada a partir de
diferentes perspectivas teóricas.
Assim, do ponto de vista da historiografia, os inventários são fontes incontestáveis. Por
outro lado, da perspectiva da prosopografia das elites da capitania de Pernambuco no sécu-
lo XVIII, eles apenas começaram a demonstrar seu potencial.

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Em primeiro lugar é preciso considerar que o esforço burocrático régio em resguardar os
impostos relativos à transmissão de heranças fez com que a prática de inventariar se disper-
sasse através do império português, criando toda uma burocracia que podia ser encontrada
mesmo em áreas onde a presença do Estado era escassa, como o sertão das capitanias do
norte do Estado do Brasil no século XVIII. Dessa forma, ao registrar a ação de tabeliães e es-
crivães em comarcas sertanejas, produzindo longos processos de inventários muitas vezes
relativos a distantes propriedades fundiárias, esse tipo de registro colonial permite um vis-
lumbre da presença do Estado português no interior das capitanias do norte no século XVIII.
Uma presença ainda cercada de lacunas.
Em segundo lugar, os inventários de comarcas como Flores, Paudalho, Bonito, ao regis-
trarem longas listas de bens possuídos pelo inventariante e deixados para seus herdeiros,
bens que incluem desde mobiliário até escravos, permitem a reconstrução de uma elite co-
lonial também muito cercada de lacunas, a elite colonial sertaneja.

considerações finais

Nesse contexto em construção, e considerando a carência de análises profundas sofrida


por parte tão considerável da história das capitanias do norte do Estado do Brasil – uma
grande parte das quais tendo estado por vários séculos sob controle direto ou indireto da ca-
pitania de Pernambuco –, é que o Siconp encontra sua função principal de facilitar a relação
do historiador com as fontes primárias. Seu amplo repertório de informações documentais
tanto se define como a tão necessária série de dados para a construção de uma radiografia
das elites coloniais, quanto, ao democratizar transcrições de documentos os mais diversos,
pode também facilitar pesquisas sobre história cultural e social, com informações sobre cul-
tura material, relações sociais, crenças e valores.
E de todos os repositórios documentais pesquisados e almejados por esse sistema, talvez o
mais inovador seja mesmo o acervo do Memorial de Justiça de Pernambuco, com sua vastidão
de documentos, sobretudo inventários setecentistas, ainda tão pouco explorados pela histo-
riografia colonialista. Sem dúvida, serão os inventários e testamentos referentes aos morado-
res das comarcas sertanejas aqueles a trazerem as informações mais valiosas, tanto mais pelo
ineditismo dos estudos sobre a região. Tais registros já estão se apresentando como impres-
cindíveis ao descortinar a vida material e cultural nos sertões, demonstrando grande potencial
também para a construção de uma história que conecte os distintos recantos do império por-
tuguês, observados a partir da circulação de pessoas, produtos e culturas.

Referências bibliográficas

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<http://www.projetosiconp.org/index.php>

Recebido em 9/7/2014
Aprovado em 21/1/2015

acervo , rio de janeiro , v . 28 , n . 1 , p . 254 - 261 , jan . / jun . 2015 – p . 261


RESENHA

copacabana, uma história


copacabana, the history

O’DONNELL, Julia. A invenção de Copacabana: culturas urbanas e estilos de vida no Rio de


Janeiro (1890-1940). Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

Luciene P. Carris Cardoso | Pós-doutora e pesquisadora associada ao Laboratório de Geografia Política da Uni-
versidade de São Paulo. Mestre e doutora em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Originalmente tese de doutorado em antropologia social defendida no Museu Nacional,


em 2011, o livro da professora e pesquisadora Julia O’Donnell, publicado em 2013, resgata
a formação do bairro de Copacabana, a partir da reflexão sobre a representação da ideia de
Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. Nas primeiras décadas do século XX, o bairro, consi-
derado até então distante e isolado do Centro do Rio de Janeiro, basicamente um areal, iria
pouco a pouco sendo transformado, tornando-se um símbolo de sofisticação e de moderni-
dade, polo de atração de investimentos públicos e privados.
A partir de uma extensa pesquisa histórica que envolveu uma seleção minuciosa de do-
cumentos, periódicos e imagens, a autora desvendou o processo de construção material e
simbólica de Copacabana, bem como de outros bairros praianos que compõem a Zona Sul,
como Leme, Ipanema e Leblon. O livro foi organizado em seis capítulos, além da apresenta-
ção e do epílogo. O primeiro capítulo, intitulado “Caminho do mar”, examina o processo de
transformação do bairro, de um espaço vazio convergindo para um novo território incorpo-
rado à malha urbana da cidade, entre a segunda metade do século XIX e os primeiros anos
do século XX.
Desse modo, destaca-se a importância do desenvolvimento dos meios de transporte, em
especial dos bondes, que reconfiguraram o mapa da cidade, avançando para novas regiões,

p. 262 – jan . / jun . 2015


não se circunscrevendo aos limites da região central: aos morros do Castelo, de São Bento,
de Santo Antônio e da Conceição. Observa-se que por volta de 1870, dez bondes já se di-
rigiam à Zona Sul, já se percorria os bairros do Catete, Glória, Botafogo, Flamengo, Gávea e
Jardim Botânico. Em 1892, a abertura do túnel Real Grandeza, atual túnel Velho, possibilitou
o acesso ao bairro de Copacabana. Com isso, buscou-se associar o bairro a um novo modelo
de modernidade, calcado na dualidade urbanização/salubridade, e a um novo estilo de vida
das elites cariocas daquele período.
No capítulo “Os ocupantes do vazio e os habitantes do progresso”, constata-se como o
bairro foi paulatinamente sendo ocupado. Em 1904, inaugurava-se o túnel do Leme, atual-
mente túnel Novo. No ano seguinte, com a realização do III Congresso Científico Latino-Ame-
ricano, o bairro inseria-se no programa do evento como ponto turístico da cidade. Contudo,
os tradicionais pescadores que figuravam naquele cenário praiano, ao lado dos operários e
de “trabalhadores do comércio”, bem como o surgimento de diversas sociedades recreativas
e do morro da Babilônia, evidenciavam a complexidade sociocultural de seus habitantes,
muito embora determinados setores da sociedade, em especial os investidores de Copa-
cabana, pretendessem transformar o antigo areal em um lócus de civilidade. Tal projeto foi
repetidamente difundido nas páginas do periódico O Copacabana durante sua existência,
como bem demonstrou a análise da estudiosa.
Em “Uma civilização à beira-mar”, constata-se como os bairros atlânticos adquirem pres-
tígio e elegância na década de 1920. Neste capítulo, examina-se como os periódicos do
porte de Beira-Mar, que circulou a partir 1922, salientavam um projeto praiano-civilizatório
para o balneário carioca. Assim, difundia-se uma imagem de distinção e de elegância dos
bairros de Copacabana, Ipanema e Leme, como uma única unidade territorial, denominada
de CIL. Os chamados “cilenses”, incorporando posteriormente os moradores do Leblon, iriam
se constituir como um bloco social, que compartilhava determinados valores aristocráticos
daquele ambiente balneário. O cronista João do Rio, alcunha de Paulo Barreto, já apontava
algumas novidades que lembravam as famosas praias de Long Island ou Biarritz. Novos arte-
fatos como o “maillot”, as cabines de praia e os para-sóis retratavam um novo estilo de vida
a ser adotado por determinados grupos sociais. A inauguração do Copacabana Palace, em
1923, encerrava-se, assim, como uma parte natural da Zona Sul e marco do cosmopolitismo
e do lazer praiano então concebidos.
No capítulo seguinte, “Os aristocratas do Atlântico ocidental”, observa-se como a aris-
tocracia local copacabanense centrada na vida balneária reiterava uma identidade coletiva,
baseada no repertório simbólico de valores. Neste rol, idealizava-se um modelo de civilidade
e de modernidade, que associava, além do binômio urbano/praiano, determinados aspectos
como salubridade, elegância e bucolismo. Espaços como a igreja, a praia e os clubes sociais
constituíam os ambientes exclusivos da sociabilidade da aristocracia cilense, onde valores e
crenças eram compartilhados. A confraternização no espaço da praia era uma novidade para
a época. Para a elite local implicava uma diferenciação social e espacial que era reproduzida
nos periódicos daquele tempo, a exemplo da publicação de imagens fotográficas de grupos
elegantemente reunidos na areia. Mas outros grupos também eram identificados com aque-

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le estilo de vida. Ainda que não pertencessem ao seleto grupo aristocrático, os pescadores
figuravam como um elemento essencial legitimador do bucolismo e da salubridade da vida
à beira-mar. Contudo, outros segmentos não gozavam da mesma benevolência, tais como
os trabalhadores pobres e os moradores das favelas, considerados, pela aristocracia cilense,
como visitantes indesejáveis.
O projeto praiano-civilizatório idealizado pela aristocracia cilense envolvia um plano
normativo, a partir de determinados hábitos comuns compartilhados e revivificados, como
bem demonstra o texto seguinte: “Um estilo Copacabana”. Um estilo de vida praiano impli-
cou a criação de uma nova relação com o corpo, e com isso o surgimento de novas indu-
mentárias como o maiô, que escandalizou determinados setores tradicionais da sociedade,
incitando calorosos debates nos periódicos, muito embora, naquele mesmo período, tal tra-
je fosse já bem popularizado no mundo. Paralelamente, a difusão de práticas esportivas se
relacionava ao discurso higienista e a um movimento que englobava a estética corporal, a
moral e a terapêutica. Além do remo, do turfe e das regatas, surgia um repertório esportivo
diversificado com a inclusão da ginástica, da natação e do futebol.
Popularizavam-se, com isso, os banhos de sol. A pele bronzeada, anteriormente asso-
ciada aos segmentos pobres da sociedade, era a mais nova condição do corpo praiano. As
transformações se estendiam às construções das moradias praianas. Os antigos palacetes
seriam substituídos pelos modernos bangalôs (cottages ou chalets). Um novo tipo de pa-
drão de residência de dois pavimentos voltada para a vida ao ar livre. A consolidação do
estilo balneário-aristocrático implicou a difusão de cinemas e de bailes, com forte inspiração
norte-americana. Novos ritmos se disseminavam como o jazz e o charleston, bem como os
banhos de mar à fantasia e os bailes de máscara, buscando-se, assim, legitimar o Carnaval
de Copacabana.
Paulatinamente, os cilenses constataram a identificação da capital federal com o estilo
de vida praiano. No último texto, “Os castelos de areia”, verifica-se como o incremento do
turismo, a proliferação de edifícios de apartamentos e a vinda de visitantes de outras locali-
dades da cidade contribuíram para a transformação da fisionomia dos bairros atlânticos. Não
havia espaço para o dualismo entre localismo e cosmopolitismo, uma vez que determinadas
demandas necessitavam ser respondidas. Já no limiar da década de 1930, cerca de seis hotéis
se estendiam pelo trecho praiano entre Leblon e Copacabana. Não por acaso, houve inves-
timento na infraestrutura balneária visando o turismo internacional. Além disso, investiu-se
também em divertimentos para os turistas estrangeiros, em especial na reabertura e criação
de novas casas de jogos, os cassinos. Buscando reafirmar o potencial turístico dos bairros
atlânticos ressaltava-se uma similaridade com certos lugares europeus. Outra mudança na
fisionomia de Copacabana consistiu na verticalização crescente do bairro com a construção
de um novo tipo de moradia, os edifícios de apartamentos. Outrora símbolo de bucolismo,
Copacabana convergia para um novo paradigma, a metropolização. Os arranha-céus traziam,
consequentemente, o aumento do afluxo populacional para o bairro. Além disso, a difusão
de um novo estilo praiano atraía substancialmente uma população de banhistas vindos de
outras localidades, o que gerava diversos conflitos em torno da ocupação do espaço.

p. 264 – jan . / jun . 2015


Procurando solucionar os problemas decorrentes do aumento da densidade popula-
cional, diversas obras foram implementadas, como a reforma do sistema de iluminação, o
alargamento das avenidas Atlântica e Nossa Senhora de Copacabana, a duplicação do túnel
Novo e a implantação de linhas de ônibus para outras localidades da cidade. Com o cresci-
mento urbano e populacional, Copacabana perdia o exclusivismo idealizado pela aristocra-
cia cilense. Haveria de ser reapropriada sob uma “ideologia copacabanense”, que conjugava
modernidade, comércio, divertimento e acesso a recursos.
Retratada como “princesinha do mar” no samba-canção de grande popularidade in-
terpretado por Dick Farney, Copacabana sintetizava a modernidade brasileira, ao associar
cosmopolitismo e nacionalidade. O impacto de sua fama não era isento de contradições,
pois se refletia na cartografia carioca. Verifica-se a criação de um tratamento diferenciado no
universo do simbólico e geográfico entre a Zona Sul e Zona Norte, pautado no antagonismo
de estilos de vida, como bem observou a autora ao examinar os cronistas da época. Desse
modo, contrastava com o estilo da Zona Norte, marcado por uma sociabilidade então con-
siderada provinciana e conservadora. Na Zona Sul, Copacabana despontava, ainda, como o
maior centro noturno da vida carioca, marcada pelo cosmopolitismo, pelos hábitos esporti-
vos e pela vida praiana. Seja como for, o livro A invenção de Copacabana, ricamente ilustrado,
nos permite refletir sobre as contradições inerentes à história do bairro entre 1890 e 1940,
bem como sobre o legado de seus múltiplos significados no imaginário urbano carioca de
pertencimento em relação à cidade e à Zona Sul do Rio de Janeiro.

Recebido em 21/10/2014
Aprovado em 4/11/2014

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D O C U M E N TO

o álbum das obras do porto do rio de janeiro


uma narrativa visual
album of the works of contruction of the port of rio de janeiro
a visual narrative

Maria Teresa Villela Bandeira de Mello | Doutora em História pela Universidade Federal Fluminen-
se. Diretora do Departamento de Gestão de Acervo do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro.
Professora visitante da Uerj.

resumo

O objetivo do texto é apresentar o Álbum das obras do porto do Rio de Janeiro enquanto um
documento inserido no contexto de produção de registros visuais no âmbito institucional de
órgãos públicos no Rio de Janeiro no início do século XX. Nesse período, a linguagem fotográ-
fica estava se consolidando e a análise do Álbum permite a observação do processo de uma
narrativa visual através das imagens.

Palavras-chave: fotografia; Rio de Janeiro (cidade); cultura visual; porto do Rio de Janeiro.

abstract

This article aims to present the Álbum das obras do porto do Rio de Janeiro [Album of the works
of the port of Rio de Janeiro] as a document connected to the context of production of vi-
sual records within the institutional framework of public agencies in Rio de Janeiro in the early
twentieth century. The photographic language was being consolidated during that period, and
the analysis of the Álbum brings to light the process of elaboration of a visual narrative through
its images.

Keywords: photography; Rio de Janeiro (city); visual culture; port of Rio de Janeiro.

resumen

El propósito de este trabajo es presentar el Álbum das obras do porto do Rio de Janeiro como un
documento insertado en el contexto de la producción de registros visuales en el marco institu-
cional de los órganos públicos en Río de Janeiro a principios del siglo XX. Durante el período, el
lenguaje fotográfico estaba siendo consolidada y la análisis del Álbum permite la observación
del proceso de una narrativa visual por medio de imágenes.

Palabras clave: fotografía; Río de Janeiro(ciudad); cultura visual; puerto de Río de Janeiro.

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N o ano em que se comemoram os 450 anos do Rio de Janeiro e em tempos de refor-
mulações urbanas que apostam na revitalização da cidade, em especial, da região
portuária, o Álbum das obras do porto no Rio de Janeiro revela-se um documento emblemáti-
co de um período de transformações que imprimiu uma nova marca e novo ritmo à capital
do país, no início do século XX.
Pertencente ao fundo Presidência do Estado do Rio de Janeiro, depositado no Arquivo
Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj), o álbum produzido por encomenda da Inspeto-
ria Federal dos Portos, Rios e Canais é constituído por cem fotografias em preto e branco, em
sua maioria apresentando o formato de 24 x 30 cm, contendo registros das obras de moder-
nização da zona portuária do Rio de Janeiro no período compreendido entre 1904 e 1913.
Originalmente encadernado em couro, ao longo do tempo o álbum sofreu um intenso
processo de deterioração devido à ação de agentes físico-químicos e biológicos que atingi-
ram o suporte material no qual foi produzido (papel, encadernação e cola) e, como medida
preventiva, na década de 1990, procedeu-se à transferência das fotografias do suporte inicial
para um novo álbum, confeccionado – nas mesmas dimensões – com material adequado à
conservação de documentos fotográficos.
Nesse processo, as imagens foram dispostas de acordo com sua apresentação e sequência
originais e as legendas existentes no verso das fotografias foram transcritas para as respecti-
vas páginas do novo álbum. A transferência envolveu ainda a página com a dedicatória (da-
tada de 31 de outubro de 1913) de Adolpho José Del Vecchio, inspetor da Inspetoria Federal
de Portos, Rios e Canais responsável pelas obras de modernização do porto do Rio de Janei-
ro, ao ministro de Viação e Obras Públicas José Barbosa Gonçalves e o ex libris da Biblioteca
Pública do Estado do Rio de Janeiro, instituição que inicialmente abrigou o Álbum das obras
do porto do Rio de Janeiro e à qual o Arquivo Público esteve – temporariamente – anexado
durante a década de 1930.
Embora integre o fundo Presidência do Estado do Rio de Janeiro, não foram identificados
no acervo do Aperj, até o momento, outros documentos relacionados ao álbum. Por ocasião
da publicação do livro Um porto para o Rio: imagens e memórias de um álbum centenário
(Turazzi, 2012), pesquisas realizadas em outras instituições1 em busca de informações sobre
o contexto de produção das fotografias (contratos com fotógrafos ou estúdios, correspon-
dência, relatórios etc.) não surtiram resultados profícuos. Nesse sentido, permanece como
referência única e fundamental a dedicatória de Del Vecchio ao ministro José Barbosa Gon-
çalves que integra o próprio álbum.
Muito provavelmente, essa condição ‘avulsa’ do álbum se deva a certa tradição recorren-
te nas instituições arquivísticas de separar as fotografias – assim como documentos sono-
ros, filmográficos e iconográficos em geral – do restante do acervo, considerando-as como

1 Entre 2011 e 2012 foram consultados fundos e coleções do Arquivo Nacional, Arquivo Geral da Cidade do Rio
de Janeiro, Biblioteca Nacional, Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, Museu da República, Clube de Engen-
haria e Companhia Docas do Rio de Janeiro.

acervo , rio de janeiro , v . 28 , n . 1 , p . 266 - 277 , jan . / jul . 2015 – p . 267


Antigo dique da Saúde

‘documentação especial’, inicialmente para fins específicos de conservação, mas que acaba
trazendo consequências para a apreensão dos significados dessas imagens no contexto da
produção arquivística.
Em geral, esses documentos são considerados ‘especiais’ por necessitarem de condições
diferenciadas de acondicionamento e conservação e, em função disso, são separados do
restante da documentação. Nesse percurso, muitas vezes, as suas características enquanto
documentos arquivísticos, bem como seus vínculos com os demais documentos que inte-
gram o mesmo acervo, se rompem. A implicação direta desse procedimento é que os regis-
tros fotográficos são tomados, muitas vezes, tanto para fins de tratamento técnico quanto
de pesquisa, apenas pelo seu valor informativo e conteudístico, o que acaba ‘naturalizando’
sobremaneira esse tipo de fonte.
Com relação à autoria das imagens, observamos que nenhuma das fotografias existentes
no álbum do Aperj possui qualquer inscrição, carimbo ou assinatura do responsável pela
produção dos registros. Entretanto, foram localizadas cópias das imagens em diversas publi-
cações sobre as obras de construção do porto nas quais se verificava a inscrição “EMYGDIO
RIBEIRO – PHOTOGRAPHO”, realizada, muito provavelmente, no negativo fotográfico.
Além disso, um álbum semelhante foi localizado no acervo da Assessoria de Comunica-
ção da Companhia Docas do Rio de Janeiro. Apesar de parcialmente desmembrado, apresen-

p. 268 – jan . / jun . 2015


tando muitas folhas soltas, foi possível identificar um conjunto de cerca de 150 fotografias
como pertencentes a um álbum, com capa de couro marrom, na qual está gravado, com le-
tras douradas, o título Obras do porto do Rio de Janeiro. O álbum localizado em Docas contém
registros mais detalhados das etapas de construção do porto e nesse conjunto foram loca-
lizadas vinte cópias das fotografias do álbum depositado no Aperj sendo que sete imagens
apresentam a inscrição “EMYGDIO RIBEIRO – PHOTOGRAPHO”.
Em função das pesquisas e das características físicas e estéticas semelhantes das pró-
prias imagens (enquadramento, composição, tipo de câmera/lente), foi atribuída ao conjun-
to de fotografias do Álbum das obras do porto do Rio de Janeiro do Aperj a autoria única de
Emygdio Ribeiro, procedimento usual no tratamento de documentos fotográficos.
Sobre o fotógrafo Emygdio Ribeiro, localizamos informações relativas ao estabelecimen-
to de um estúdio fotográfico no centro de Niterói (RJ) e à sua atuação junto ao prefeito Feli-
ciano Pires de Abreu Sodré no registro das obras de urbanização dessa cidade, em 1914-1918
e 1922-1927. Também foram encontrados registros fotográficos de sua autoria da cerimônia
de casamento do político fluminense Luiz Palmier, em 1925.2
Além da autoria individual de cada uma das imagens que integram o álbum é possível
caracterizar ainda uma autoria institucional do conjunto de registros.
A autoria das imagens é um elemento fundamental a ser levado em consideração quando
lidamos com fotografias no universo dos arquivos. Mesmo quando não é possível identificar a
autoria exata de uma fotografia, a categoria social de seu autor – fotógrafo profissional, fotógrafo
amador, jornalista etc. – e, consequentemente, de seu grau de controle da técnica, das estéticas
fotográficas e de envolvimento com os objetivos da imagem são informações de grande impor-
tância para o trabalho de leitura e interpretação desses documentos (Mello, 2007, p. 21).
Na impossibilidade de se identificar o nome do fotógrafo responsável por todas as
imagens,3 quando as mesmas são produzidas num contexto institucional, a noção de autoria
pode ser ampliada. Nesses casos, o papel do fotógrafo que, em geral, é visto como o único
autor da imagem, na medida em que controla e executa todos os procedimentos técnicos
(composição; enquadramento; câmeras, lentes e filmes utilizados; tomada do clichê; tempo
de exposição; revelação; ampliação), deve ser relativizado.

2 As pesquisas sobre Emygdio Ribeiro nos levaram ao personagem centenário da vida cultural e intelectual de
Niterói, Luiz Antônio Pimentel, que seria sobrinho-neto do fotógrafo profissional – ao qual se refere como ‘Tio
Bilusca’. Em entrevista realizada em fevereiro de 2012, na Biblioteca Pública de Niterói, Pimentel relatou ter sido
introduzido na arte fotográfica pelo tio, que morou na rua Visconde de Itaboraí, no centro de Niterói, e que
teria ainda atuado como fotógrafo da polícia do Rio de Janeiro, durante a gestão de Filinto Müller. Sobre essa
última informação, não foi possível localizar registros ou mais referências. Para as demais informações sobre
o fotógrafo ver: <http://cecchettipr.wordpress.com/entrevista-com-luis-antonio-pimentel-25-03-2009/>; <http://
poetalbertoaraujo.blogspot.com.br/2012/03/luis-antonio-pimentel-100-anos-em-foco.html>; <http://www.
historiadesaogoncalo.pro.br/>; <http://poetalbertoaraujo.blogspot.com.br/2012/03/luis-antonio-pimentel-
100-anos-em-foco.html>.
3 Não sabemos, por exemplo, se Emygdio Ribeiro atuou durante todo o período (1904-1913) de produção das
fotografias e nem mesmo se foi o único – pouco provável – fotógrafo encarregado pela Inspetoria Federal do
registro das obras de construção do porto.

acervo , rio de janeiro , v . 28 , n . 1 , p . 266 - 277 , jan . / jul . 2015 – p . 269


Interior de um aparelho flutuante, vendo-se as campanas de ar comprimido

Nesse sentido, mesmo que se mantenha a marca autoral do fotógrafo, enquanto criador
das imagens, outros ‘atores’ estão inseridos no processo de produção, circulação e consumo
das fotografias. Desde a decisão de produção dos registros visando a uma determinada fina-
lidade até a sua divulgação e publicização – na forma de um álbum fotográfico, por exemplo
–, uma cadeia de agentes encontra-se envolvida e terá responsabilidade sobre as diversas
etapas de concepção e confecção das fotografias, interferindo até mesmo na elaboração do
produto final. No caso do Álbum das obras do porto do Rio de Janeiro, podemos mencionar
pelo menos dois desses agentes: o inspetor federal de Portos, Rios e Canais, Adolfo José Del
Vecchio, e o ministro da Viação e Obras Públicas, José Barbosa Gonçalves.
A noção de autoria institucional pode ser trabalhada enquanto categoria constitutiva
dos gêneros de discurso como um todo e assumir a responsabilidade por textos assinados
por empresas e instituições. Ela representa um alargamento da concepção tradicional de au-
toria, que acredita na quase identidade total entre autor e indivíduo e pressupõe a soberania
do autor diante do estilo (Alves Filho, 2006).
Dentro dessa perspectiva, a autoria é vista como uma categoria sociodiscursiva, que só
pode ser apreendida num estudo que enfoque as relações inextricáveis entre a dimensão
verbal e a dimensão social dos textos. “A autoria se situa a um só tempo na imanência dos
textos (pois nela deixa vestígios linguístico-textuais), mas também no mundo sociocultural

p. 270 – jan . / jun . 2015


(onde encontramos as instituições e as pessoas que assumem a responsabilidade pelos tex-
tos)” (Alves Filho, 2006, p. 78).
A ideia de autoria institucional nos permite ainda a aproximação com outra noção bas-
tante apropriada para o trabalho com fotografias no âmbito de arquivos institucionais que
é o conceito de fotografia pública. A fotografia pública é criada por agências de produção
de imagem que desempenham um papel importante na formação da opinião pública, tais
como os meios de comunicação, o Estado etc.

[...] é, portanto, o suporte de agenciamento de uma memória pública que registra, retém
e projeta no tempo histórico, uma versão dos acontecimentos. Essa versão é construída
por uma narrativa visual e verbal, ou seja, intertextual, mas também pluritemporal: o
tempo do acontecimento, o tempo da sua transcrição pelo modo narrativo, o tempo
de sua recepção no marco histórico da sua publicação, dimensionado pelas formas de
sua exibição – na imprensa, em museus, livros, projetos etc. A fotografia pública produz
visualmente um espaço público nas sociedades contemporâneas, em compasso com as
visões de mundo às quais se associa (Mauad, 2013, p. 13).

A fotografia pública associada à noção de documento fornece visibilidade à experiência


social de sujeitos históricos – por detrás e diante da câmera, e destaca-se tanto como fonte
quanto como objeto de estudo da história visual do poder e das culturas políticas. Por sua
vez, o fotógrafo pode ser visto como um mediador cultural ao traduzir em imagens técnicas
sua experiência subjetiva frente ao mundo social (Mauad, 2013).
Quando a prática fotográfica está atrelada a um engajamento ou projeto político, a pro-
dução fotográfica representa mais do que uma intenção pessoal ou marca autoral, uma vez
que esses projetos não são individuais, mas compartilhados por uma comunidade que pos-
sibilita a atuação do fotógrafo bem como o consumo e a circulação das imagens por ele pro-
duzidas. Outra característica fundamental da fotografia pública é o fato de se relacionar com
o espaço público: ela é pública não apenas por ser publicada e/ou publicizada, mas também
por se referir ao espaço público. Além disso, a fotografia pública pressupõe, para sua existên-
cia e disseminação, que ela seja publicada em revistas, jornais, cartões postais ou, ainda, em
álbuns e exposições oficiais, perfazendo assim todo um circuito social.4
Uma das principais vertentes da fotografia pública desde o século XIX é sua utilização
associada a projetos governamentais enquanto estratégia para dar visibilidade à ação do
Estado. Anunciada em 1839, a fotografia precedeu em alguns anos as modificações do con-
texto urbano moderno. Diversos fotógrafos do século XIX especializaram-se no domínio dos
trabalhos públicos, revelando o interesse existente pela representação sequencial de estru-
turas em construção. Esses registros têm ao mesmo tempo uma função documentária e de

4 O circuito social da fotografia é compreendido como os processos de produção, circulação, consumo e agen-
ciamento das imagens. A esse respeito ver Fabris (1991) e Meneses (2003).

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Antigos trapiches do Lloyd Brasileiro

propaganda, uma vez que as grandes obras de engenharia e arquitetura eram consideradas
como as provas mais tangíveis do progresso e, ao mesmo tempo, testemunhos do savoir-fai-
re, da ousadia industrial e da virtuosidade dos empreendimentos. Havia uma prática disse-
minada de distribuição de cópias e álbuns fotográficos a autoridades, empresários e clientes
eventuais, como à administração pública.
No caso do Brasil, cabe observar que a prática fotográfica foi introduzida na corte pelo
imperador d. Pedro II que, além de adepto da atividade, incentivou e patrocinou a produção
de fotografias que representariam o Império nas exposições universais.5 Pode-se mencionar
ainda, dentre vários, os exemplos mais conhecidos de contratação dos fotógrafos Marc Fer-
rez – tanto no período imperial quanto no republicano – e Augusto Malta, já no século XX,
para o registro e divulgação de obras públicas e transformações urbanas no país e no Rio de
Janeiro.

5 Sobre a produção, disseminação e utilização da fotografia no período imperial ver Turazzi (1995) e Vasquez
(1985).

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O Álbum das obras do porto do Rio de Janeiro integra o circuito social da fotografia pública
no Brasil, no século XX, no qual a produção de registros fotográficos estava amplamente dis-
seminada nas mais diversas instâncias e órgãos governamentais e inscreve-se na biografia
da cidade contribuindo para a escrita dessa história.
Além disso, essa prática conforma um novo padrão de visualidade relacionada ao es-
paço urbano e que teve seu ápice nas primeiras décadas do século XX: as chamadas vistas
urbanas. “Indutoras da formação de padrões visuais e receptáculo dos símbolos e vetores
do imaginário urbano, as vistas representam a sintonia entre o fotógrafo e sua época” (Lima,
1991, p. 67). O registro das mudanças ocorridas na zona portuária do Rio de Janeiro está afi-
nado com o projeto de intervenção urbanística ocorrido na cidade desde os primeiros anos
do século XX e aliado ao discurso fundamentado nos ideais de progresso constitutivos da
Belle Époque carioca.

a construção do porto do rio de janeiro: uma narrativa visual

A construção do porto do Rio de Janeiro realizada entre 1904 e 1911 promoveu, simul-
taneamente, uma transformação urbanística e grande mudança na infra-estrutura portuária,
representando um novo momento para a cidade e para o país.
Em fins do século XVIII, a capital federal já possuía o maior porto do país devido ao
tráfico de escravos, ao escoamento de ouro e diamantes provenientes de Minas Gerais e à
grande circulação de mercadorias. Ao longo do século XIX, o crescimento das atividades
portuárias cariocas intensificou-se em função do processo de modernização pela qual o
Rio de Janeiro passou a partir da vinda de d. João e da corte para o Brasil e que o trans-
formou no maior mercado consumidor urbano do país. Entretanto, todas as operações de
carga e descarga de mercadorias eram realizadas através de pequenos barcos, que atra-
cavam em pontes ou embarcadouros distantes e descarregavam nos antigos trapiches e
entrepostos, ocupantes de uma vasta área do litoral. Com o surgimento dos navios a vapor,
em meados do século XIX, o sistema de trapiches tornou-se insuficiente para dar conta do
movimento portuário.
A modernização do porto do Rio de Janeiro possibilitou que embarcações de grande
porte atracassem perto da cidade, aumentando assim a capacidade portuária, o que foi fun-
damental para o crescimento das exportações de produtos brasileiros. Inserida num projeto
mais amplo de transformação e saneamento da capital federal, a construção do porto do Rio
de Janeiro renovou a atividade portuária no país e promoveu uma grande transformação
urbanística na cidade. A partir da construção do porto, a região converteu-se

[...] numa zona definitivamente especializada no contexto urbano carioca, passando a


desempenhar, com exclusividade, a função portuária, num momento em que essa fun-
ção atingia um patamar técnico superior na escala da modernização capitalista. A re-
definição do espaço portuário implicou a redefinição da totalidade urbana. Com efeito,
a construção do novo porto foi o eixo, a base de uma ampla operação de renovação

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urbana, previamente concebida, que, incidindo fundamentalmente na sua área central,
promoveu uma completa reordenação da urbis, consolidando, ao mesmo tempo, um
processo de hierarquização/segregação já em curso (Lamarão, 1991, p. 13).

É importante observar o entrelaçamento da história do porto do Rio de Janeiro com o


processo de organização da administração do Estado. Isso envolveu uma estrutura complexa
que engendrou o conjunto de projetos, leis, concessões e demais medidas destinadas a mo-
dernizar o porto do Rio e que integravam o esforço de construção e visibilidade da máquina
do Estado nacional nos primeiros anos do século XX (Turazzi, 2012, p. 29).
Tendo em vista a existência de vasta historiografia sobre o Rio de Janeiro e o seu porto,
não é nosso objetivo discorrer sobre o tema ou propor uma nova leitura ou interpretação
sobre esse processo. As referências já mencionadas têm a função apenas de introduzir uma
breve descrição das imagens do Álbum das obras do porto do Rio de Janeiro. O álbum pode
ser analisado como um documento de época que, a partir da constituição de uma narrativa
visual, tecida através das imagens, registra quase “passo a passo” a ação do Estado na modi-
ficação da paisagem urbana da então capital federal
Ao o tomarmos como um documento, cabe tecer algumas considerações sobre certas
especificidades desse tipo de material. Um álbum fotográfico nunca é somente uma compi-
lação ou simples reunião aleatória de imagens. Ao selecionar, reunir e organizar, em sequência,
determinadas fotografias, o álbum remete à ideia de coleção e de narrativa, ambas ligadas à
produção de memória.6
Desde sua invenção, em meados do século XIX, a fotografia tornou-se objeto de colecio-
namento por parte de indivíduos, famílias e instituições. André Rouillé (2009) aponta para
o fato de que apesar da fotografia, em si, não ser um documento, está provida de um forte
valor documental baseado no seu dispositivo técnico, no âmbito de um regime documental
da sociedade industrial. Além disso, uma das grandes funções da fotografia enquanto regis-
tro documental foi de proceder a um vasto inventário do real, sob a forma de álbuns e, em
seguida, de arquivos. O álbum, enquanto mecanismo de reunir e ‘tesaurizar’ o mundo, orde-
nando e classificando as imagens, realiza um inventário fotográfico do real (Rouillé, 2009, p.
91). A união fotografia-álbum constituiu, desse modo, a primeira grande máquina moderna
a documentar o mundo e amealhar suas imagens. Antes do desenvolvimento das agências
e dos arquivos, o álbum e a fotografia-documento funcionaram em simbiose durante quase
um século. Em todos os casos, a fotografia-documento tem como horizonte o arquivamento,
levando a cabo, primeiramente por ampliação ou redução, uma mudança da escala das coi-
sas. Desde o início, todos esses procedimentos de inventário, de arquivamento e, finalmente,
de submissão simbólica obedecem a uma verdadeira compulsão de exaustividade, a uma
veleidade de registro total do real.

6 Para uma análise mais aprofundada do álbum fotográfico enquanto um documento visual ver Mello, 2012.

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O Astúrias atracado ao cais no dia 22 de junho de 1913, com as alvarengas de permeio recebendo cargas

O álbum não é um receptáculo passivo. Ele não agrupa, não acumula, não conserva,
nem arquiva sem classificar e redistribuir as imagens, sem produzir sentido, sem construir
coerências, sem propor uma visão, sem ordenar simbolicamente o real. Associada a essa
utopia de colocar sistematicamente em imagens o mundo inteiro, a fotografia-documento,
relacionada ao álbum e ao arquivo, é encarregada da tarefa de ordená-lo. Nessa vasta em-
preitada, a fotografia-documento e o álbum (ou o arquivo) desempenham papéis opostos e
complementares: a foto fragmenta, o álbum e o arquivo recompõem os conjuntos. Funda-
mentalmente, eles ordenam (Rouillé, 2009, p. 101).
Tendo essas questões como pressuposto é que gostaríamos de abordar o Álbum das
obras do porto do Rio de Janeiro. As fotografias do álbum acompanham todo o processo de
construção do porto, contendo imagens das várias etapas do projeto, aspectos das instala-
ções, canteiros de obras, máquinas e equipamentos e também dos trabalhadores. Registram
ainda paisagens e vistas urbanas – antes e depois – da região central e portuária da cidade.
A narrativa se inicia com a apresentação das antigas oficinas do Lloyd Brasileiro vistas de
longe, a partir do mar, numa perspectiva panorâmica, intercaladas com imagens do antigo
dique e do desmonte da pedreira do morro da Saúde. Nas fotografias iniciais, a presença do
elemento humano é quase imperceptível e, muitas vezes, surge apenas ao longe, num deta-
lhe ampliado da imagem. O foco ou ênfase inicial da narrativa é na magnitude da paisagem
litorânea da cidade – sua fotogenia – e do maquinismo industrial.

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A seguir alternam-se registros da construção da muralha do cais e do início do aterro da
baía de Guanabara com instalações do Moinho Inglês e do Moinho Fluminense, da Docas
D. Pedro II, dos trapiches da Saúde e da antiga estação marítima. Incluem-se fotografias de
trechos de avenidas e do cais concluídos.
Paulatinamente, o percurso vai ao mesmo tempo adentrando ambientes fechados (inte-
rior de armazéns) e aproximando o olhar, examinando mais de perto as máquinas e equipa-
mentos como se buscasse penetrar no ‘maquinismo’ daquela obra grandiosa. Encontram-se
imagens de detalhes de aparelhos flutuantes, ensecadeiras, bombas de sucção, betoneiras
etc. Nessa aproximação, o elemento humano desponta como integrante dessa obra monu-
mental. Em geral posando, olhando para a câmera, aparecem os trabalhadores dentro ou
ao lado das máquinas, estruturas e obras. A partir da metade final do álbum, as fotografias
voltam a ter uma perspectiva mais panorâmica, alternando aspectos das obras concluídas
(aterro, ruas e avenidas, armazéns) com vistas da baía de Guanabara a partir do cais.
Como epílogo dessa narrativa, apresenta-se a imagem-ícone da chegada, em 22 de junho
de 1913, do navio Astúrias ao porto do Rio de Janeiro, simbolizando a concretização de um
projeto simbólico de constituição de uma nova capital para o país. A presença de destaque do
famoso navio no Rio de Janeiro serve como medida para avaliar como a realização da grande
obra de engenharia redefiniu a relação da cidade com o seu porto (Mello, 2012, p. 17).
As fotografias apresentadas neste documento – com suas legendas originais – são exem-
plares da narrativa constituída por essas imagens. O registro cuidadoso das várias etapas da
modernização do porto do Rio de Janeiro aliado à qualidade técnica e estética das imagens
tornam o Álbum das obras do porto do Rio de Janeiro um documento emblemático da história
da fotografia no Brasil e revelam como a prática fotográfica contribui para a construção da
memória da engenharia brasileira, da memória política (a partir da perspectiva da fotografia
pública) e da memória urbana do Rio de Janeiro.

Referências bibliográficas

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VASQUEZ, Pedro. D. Pedro II e a fotografia no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Roberto Marinho,
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Recebido em 3/3/2015
Aprovado em 5/3/2015

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