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Autores diversos

Escavando a História de
São Raimundo Nonato - PI

São Raimundo Nonato - PI


UNIVASF
2013
Autores

Ana Stela de Negreiros Oliveira


Celito Kestering
Claudio Marcio Barbosa de Siqueira
Déborah Gonsalves Silva
Estelita dos Santos Braga
Felipe Silva Sales
Gabriel Frechiani de Oliveira
Ianthe Santos Silva
Ingrid Lopes de Oliveira
Jaime de Santana Oliveira
Jéssica Rafaella de Oliveira
José Nicodemos Chagas Júnior
Jucinéa dos Santos Mota
Juliana Ferreira Sorgine
Leonardo Tomé de Souza
Lucas Braga da Silva
Maria de Fátima Paes de Almeida Neta
Marian Helen da Silva Gomes Rodrigues
Mauro Alexandre Farias Fontes
Ney Clemente Dias Brito
Pávula Maria Sales Nascimento
Rianne Maria Oliveira Paes
Rodrigo Bernardo da Silva
Silvyo Bruno Guerra Correia
Taiguara Francisco Alexo da Rocha Silva
Tamara Grazielle Cavalcante Moraes
Tânia Maria de Castro Santana
Vivian Karla de Sena
Waldimir Maia Leite Neto
E74 Escavando a História de São Raimundo Nonato [recurso
eletrônico] / organizado por Celito Kestering. – Petrolina, PE:
UNIVASF, 2013.
1 CD-ROM : il.

ISBN 978-85-60382-27-9
Vários autores

1. Piauí - História. 2. São Raimundo (PI) - História. 3. Piauí


- Arqueologia. 4. Piauí – Economia – Maniçoba. I. Kestering,
Celito, org. II. Título. III. Universidade Federal do Vale do São
Francisco.

CDD 981.22
Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema Integrado de Biblioteca
SIBI/UNIVASF
Bibliotecário: Lucídio Lopes de Alencar
AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Julianeli Tolentino, Reitor da Universidade Federal do Vale do


São Francisco – UNIVASF.

Ao Prof. Dr. Télio Nobre Leite, Vice-Reitor da Universidade Federal do Vale


do São Francisco – UNIVASF.

Ao Prof. Dr. Leonardo Rodrigues Sampaio, Pró-Reitor de Ensino da


Universidade Federal do Vale do São Francisco – UNIVASF.

À Prof. Dra. Lúcia Marisy Souza Ribeiro de Oliveira, Pró-Reitora de Integração


da Universidade Federal do Vale do São Francisco – UNIVASF.

Ao Prof. Dr. Fabrício Souza Silva, Diretor de Projetos Especiais de Graduação


e Presidente do Comitê Local de Acompanhamento – CLA.

Aos professores Dra. Janaína Carla dos Santos, Dra. Gisele Daltrini Felice,
Dr. Leandro Surya Carvalho de Oliveira Silva, Msc. Mauro Alexandre Farias Fontes,
Msc. Vivian Karla de Sena, Msc. Waldimir Maia Leite Neto e Esp. Nívia Paula Dias
de Assis, membros da equipe de execução do Projeto PET/Arqueologia/UNIVASF.

Aos Srs. Angélica Maria de Vasconcelos Azevedo, José Hermes Carvalho


Paes, Lívia de Oliveira e Lucas, Paulo Oliveira Silva e Sandro Ribeiro de Castro,
técnicos administrativos da UNIVASF, Campus Serra da Capivara.

Aos Srs. Alix Pereira Galvão, Dra. Ana Stela de Negreiros Oliveira, Sra.
Déborah Gonsalves Silva e Dra. Niède Guidon membros externos e parceiros na
execução do Projeto PET/Arqueologia/UNIVASF.

Aos estudantes Claudio Barbosa de Siqueira, Felipe Silva Sales, Ianthe


Santos Silva, Ingrid Lopes de Oliveira, Jéssica Rafaela de Oliveira, José Nicodemos
Chagas Júnior, Leonardo Tomé de Souza, Lucas Braga da Silva, Rodrigo Bernardo
da Silva, Silvyo Bruno Guerra Correia, Taiguara Francisco Alexo da Rocha Silva
Tâmara Grazielle Cavalcante Moraes, bolsistas do PET/Arqueologia/UNIVASF.

Ao Ministério da Educação e Cultura que financiou os bolsistas do Grupo


PET/Arqueologia/UNIVASF.
SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS

APRESENTAÇÃO ..................................................................................................... 5

I OLHAR DOS BOLSISTAS DO PET SOBRE A COLONIZAÇÃO DO PIAUÍ


Claudio Barbosa de Siqueira
Felipe Silva Sales
Ianthe Santos Silva
Ingrid Lopes de Oliveira
Jéssica Rafaela de Oliveira
José Nicodemos Chagas Júnior
Leonardo Tomé de Souza
Lucas Braga da Silva
Rodrigo Bernardo da Silva
Silvyo Bruno Guerra Correia
Taiguara Francisco Alexo da Rocha Silva
Tâmara Grazielle Cavalcante Moraes ............................................................. 6

HISTÓRIA ............................................................................................................17
II SÃO RAIMUNDO NONATO, UM PROJETO DE EMANCIPAÇÃO
POLÍTICA
Jaime de Santana Oliveira
Gabriel Frechiani de Oliveira ......................................................................... 18

III SERTANEJOS DA BORRACHA: O COMÉRCIO DA MANIÇOBA NO


MUNICIPIO DE SÃO RAIMUNDO NONATO (1890-1960).
Ney Clemente Dias Brito
Déborah Gonsalves Silva
Gabriel Frechiani de Oliveira ......................................................................... 86

ARQUEOLOGIA ........................................................................................... 123


IV VISITAS DIDÁTICAS À CASA DE NECO COELHO
Vivian Karla de Sena
Waldimir Maia Leite Neto ............................................................................. 124
V MODO DE VIDA DOS MANIÇOBEIROS NOS ARTEFATOS
DOMÉSTICOS DA CASA DO ALEXANDRE
Felipe Silva Sales
Vívian Karla de Sena ................................................................................... 132

MEMÓRIA, HISTÓRIA, ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO ... 194


VI GUERRA DA TELHA: MEMÓRIA, HISTÓRIA, ARQUEOLOGIA E
PATRIMÔNIO
Tânia Maria de Castro Santana
Pávula Maria Sales Nascimento .................................................................. 195

PATRIMÔNIO ................................................................................................. 256


VII OS RITUAIS DO MORRO DO CRUZEIRO: ATRIBUTOS DA
IDENTIDADE SANRAIMUNDENSE
Maria de Fátima Paes de Almeida Neta
Celito Kestering ............................................................................................ 257

VIII QUEIMADAS DO SENHOR DO BONFIM: ENTRE O CÉU E O INFERNO


Jucinéa dos Santos Mota
Déborah Gonçalves Silva ............................................................................ 287

IX O PATRIMÔNIO EDIFICADO DA CIDADE DE CORONEL JOSÉ DIAS


- PIAUÍ
Rianne Maria Oliveira Paes
Mauro Alexandre Farias Fontes ................................................................... 320

X A TEMÁTICA DO PATRIMÔNIO CULTURAL NO CURRÍCULO


ESCOLAR
Marian Helen da Silva Gomes Rodrigues
Juliana Sorgine
Ana Stela de Negreiros Oliveira ................................................................... 354

SOCIEDADE ................................................................................................... 398


XI O PAPEL DA MULHER NO DESENVOLVIMENTO SOCIO-ECONOMICO
DE SÃO RAIMUNDO NONATO: UM ESTUDO DE GÊNERO (1912-1970)
Estelita dos Santos Braga
Déborah Gonsalves Silva ............................................................................ 399

DADOS BIOGRÁFICOS ........................................................................................ 431


APRESENTAÇÃO

A Universidade Federal do Vale do São Francisco - UNIVASF surgiu como


uma proposta de interiorização do acesso à população do Semiárido nordestino ao
ensino universitário gratuito e de qualidade. O curso de graduação em Arqueologia e
Preservação Patrimonial, em instituição pública federal, foi o primeiro do Brasil. Sua
inserção no Sudeste do Piauí foi motivada pela importância nacional e internacional
do Parque Nacional Serra da Capivara com abundância de sítios e vestígios
arqueológicos.

Em alguns cursos da UNIVASF implantaram-se grupos do Programa de


Educação Tutorial – PET. Um deles, o grupo PET – Arqueologia, do Campus Serra
da Capivara, contempla o fortalecimento da memória e da história regional. Além de
fomentar novas descobertas no âmbito da pesquisa científica, proporciona aos
estudantes da graduação um aprofundamento sobre seu objeto de estudo e a
possibilidade de uma formação profissional atenta às demandas sociais. Isto ocorre
no contexto de São Raimundo Nonato que, no limiar das comemorações de seu
centenário expressa a necessidade de registro de sua história. Boa parte dela ainda
está por ser escrita. Com a utilização de fontes históricas, da tradição oral e de
vestígios arqueológicos, o grupo PET - Arqueologia enfatiza, por isso, atores com
histórias não cotadas pela historiografia oficial.

O grupo PET – Arqueologia/UNIVASF, com apoio financeiro do Ministério da


Educação e Cultura – MEC, executa o projeto Escavando História: São Raimundo
Nonato além dos 100 anos. Nele o envolvimento da comunidade é primordial. A
valorização dos seus membros como atores históricos na formação da sociedade
sanraimundense contribui para a reconstrução da história do Nordeste brasileiro.

Docentes e discentes do Curso de Arqueologia e Preservação Patrimonial da


Universidade Federal do Vale do São Francisco - UNIVASF e do Curso de História
da Universidade Estadual do Piauí – UESPI escavam a história da região que, no
passado compunha o território do município de São Raimundo Nonato. Nessa
empreitada não estão sós. Contam com o apoio de parceiros como a Fundação do
Homem Americano – FUMDHAM e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional – IPHAN. Apresenta-se, neste livro, uma parte dos resultados da pesquisa.
I OLHAR DOS BOLSISTAS DO PET SOBRE A COLONIZAÇÃO DO PIAUÍ

Claudio Barbosa de Siqueira


Felipe Silva Sales
Ianthe Santos Silva
Ingrid Lopes de Oliveira
Jéssica Rafaela de Oliveira
José Nicodemos Chagas Júnior
Leonardo Tomé de Souza
Lucas Braga da Silva
Rodrigo Bernardo da Silva
Silvyo Bruno Guerra Correia
Taiguara Francisco Alexo da Rocha Silva
Tâmara Grazielle Cavalcante Moraes

INTRODUÇÃO

A invasão dos Piauí foi muito anterior ao descobrimento de Cabral. Quando


se deu início à obra de colonização portuguesa, nações de índios disputavam entre
si o litoral e as matas. Em meados do século XVII, começaram as penetrações
colonizadoras feitas por bandeirantes e religiosos no Sudeste do Piauí. A partir de
então, até o início do século XIX, organizaram-se muitas expedições para expulsar
os nativos de suas terras, escravizá-los nas fazendas de gado ou reduzi-los a
aldeamentos (OLIVEIRA, 2007). Em 1695, foram abertas estradas no Piauí. Por
elas deslocavam-se os seus moradores e os padres da Companhia de Jesus.

Aos donos das terras agradavam as missões, quando elas se prestavam a ser
instrumento da submissão desses índios aos seus interesses pecuários. Quando,
porém, as missões tratavam os índios como pessoas humanas, instruindo-os,
educando-os e ensinando-os a se defender contra uma escravização, positiva ou
disfarçada, os curraleiros insurgiam-se contra os missionários. Recusavam-lhes os
meios, intrigavam os índios entre si e influíam com os governadores para impedir as
missões. Na maioria das vezes, os religiosos eram partidários da catequese para a
pacífica expansão colonizadora enquanto que os criadores optavam pelo
esmagamento completo do indígena, para expansão tranquila de seus rebanhos.

Em 1715, o imenso território do atual estado do Piauí era ainda uma simples
comarca do Maranhão. Tudo o que sabiam as autoridades a respeito do Piauí era da
7

existência de uma imensidão quase desconhecida, imprecisa, sem limites definidos,


povoada por tapuias bravos, lutando uns contra os outros e contra o branco
usurpador.

O Piauí, como uma conjunção de regiões bem distintas do Brasil, situa-se


entre as terras castigadas do Nordeste e as terras frescas do Maranhão. Ao
Sudeste, predomina o clima da região do Médio São Francisco. As noites são frias,
de maio a agosto, para logo depois aparecer o calor rigoroso da estação das águas
do interior. Pouco além da barra do Gurguéia surgem as primeiras manifestações da
exuberância da Bacia Amazônica, ao passo que, para baixo, depara-se com o
desolador quadro da região seca do Nordeste.

1 INVASÕES DO PIAUÍ

A configuração do espaço que é hoje o estado do Piauí definiu-se pela


utilização deste vasto território num corredor de migração para as tribos indígenas,
que se deslocavam da Bacia do São Francisco e do litoral nordestino para a Bacia
Amazônica e vice-versa. Tupis, Tapuias e Caraíbas, em contínuas guerras e
migrações, pisavam o solo piauiense, cruzando-o nos dois sentidos. No tempo da
conquista, só não foram encontrados representantes do grupo Aruaque.

Não existe registro completo que tenha resistido ao tempo e à queima de


informação das nações indígenas formadas de muitos grupos étnicos. Algumas
obras explicam o deslocamento dos grupos, porém é audacioso afirmar quem ficou e
que direção tomou quem saiu. Trata-se de um período colonial em que o gentio era
perseguido, condenado a escravidão e assassinado por não concordar com as leis
impostas pelos brancos europeus que invadiam os sertões.

Guidon e Lage afirmam que por volta de 3.500 anos atrás,


aparecem os primeiros vestígios deixados por povos ceramistas e
agricultores. Esses povos moravam em aldeias circulares não muito
grandes, com habitações também elípticas dispostas em torno de
um pátio central. (...) As plantas cultivadas eram o milho, o feijão, a
cabaça e o amendoim. Tinham costumes funerários muito
elaborados, praticavam enterramentos primários em covas na terra,
mas também os secundários em urnas funerárias feitas em
cerâmicas. (...) Esses grupos permaneceram na região até a
chegada dos colonizadores, criadores de gado, que avançaram
sobre as terras indígenas provocando seu deslocamento para outras
8

regiões e iniciando assim o extermínio de grupos indígenas no Piauí.


Os colonizadores atingiram essa região em torno de 1830 e, desde
então, as agressões ao meio ambiente são intensas e aceleram a
cada dia o processo de aridez que caracteriza o Estado. Os rios são
assoreados e secam. A região, que tinha uma riqueza muito grande
de fauna e flora, passa a ser semidesértica. A grande civilização
formada pelas populações pré-históricas cedeu lugar a comunidades
aculturadas, vivendo em situação de miséria e com um futuro nada
promissor. De uma região de primeiro mundo, com alta qualidade de
vida, passamos ao quinto mundo no curto espaço de quinhentos
anos (SANTANA, 2003).

De fato, as palavras das pesquisadoras Guidon e Lages são de indignação e


reconhecimento da falta de escrúpulo dos colonizadores. Nunes (1971) afirma que
“no passado mais remoto, compelidas por essas circunstâncias, palmilharam os
vales de seus rios tribos dos principais grupos indígenas que povoaram o Brasil:
Tupis, Caraíbas, Tapuias e, entre eles, os Cariris”. Chaves (1998) afirma que "o
Piauí seria uma imensidão quase desconhecida, imprecisa, sem limites definidos,
povoada de Tapuias bravos, lutando uns contra os outros, e contra o branco
usurpador”. Deixa entender que, antes mesmo do colonizador branco propor guerra
ofensiva, a disputa pelas terras já existia.

Nunes (1972) propõe que “a invasão dos Tupis foi muito anterior ao
descobrimento de Cabral e, todavia, quando se deu início à obra de colonização, as
duas nações de gentios invasores ainda disputavam entre si o litoral e as matas de
rica fauna”. Em meio a uma época em que havia grande turbulência migratória
indígena, não se sabe se foram os tupis os primeiros a chegarem, de onde eles
vieram e que ligação eles tinham com os outros grupos. O historiador Nunes (1972)
prossegue afirmando que:

Os mais antigos documentos que se referem ao Piauí nos fazem


conhecer os Tremembés, os Aroás, Cupinharões, Tabajaras e
Amoipiras, como povoadores da bacia do Parnaíba. Os Amoipiras
ocupavam a margem esquerda do velho Chico. Junto com os
Tabajaras atravessaram o grande sertão em direção ao Parnaíba,
ocupando o Sul do Piauí. Juntaram-se a eles as tribos dos
Termiminós.

Nômades por natureza, sempre em busca de alimento nos rios, nas matas e
nos campos, imigrando constantemente por causa das guerras contínuas, é difícil e
quase impossível situar, com precisão rigorosa, os indígenas do solo piauiense.
Costuma-se situar as tribos pela análise do testemunho dos exploradores. Afirma-se
9

que os Araiés e Acumês ocupavam as cabeceiras do Rio Piauí. Os Coaratizes e os


Jaicós, o Vale do Gurguéia. Os Pimenteiras, os limites de Pernambuco.

Têm-se informações de que os Amoipirás teriam vindo do litoral baiano.


Estabeleceram-se na margem oriental do Rio São Francisco e povoaram também o
lado norte deste rio. Os homens desta tribo traziam o cabelo da cabeça copado e
aparado ao longo das orelhas. As mulheres usavam o cabelo comprido. Pescavam
com espinhos e de arco. Tinham os beiços furados e pintavam-se com jenipapo. Os
Amoipirás combateram os Ubirajaras.

Os Pimenteiras constituíam a avançada mais oriental da migração Caraíba.


Os Tremembés pertenciam à etnia dos Cataguás. As demais tribos eram Tapuias
legítimos, isto é, indígenas de ‘línguas travadas’ bons cantores, hábeis flecheiros,
destros corredores e valentes na guerra. O conhecimento que se tem da cultura
desses povos, foi construído por religiosos, funcionários da administração colonial,
viajantes, aventureiros e senhores de engenho. São visões geralmente distorcidas,
advindas do ponto de vista do outro, feito por cronistas estranhos à cultura local.
Antropólogos e sociólogos preocupavam-se em estudar as camadas populares
brasileiras. Prevalecia, entre eles, a concepção deque essas camadas deviam ser
pesquisadas porque eram sociedades exóticas, com cultura e costumes diferentes,
condenadas (OLIVEIRA, 2007, p. 13).

As novas abordagens da História foram essenciais para o


desenvolvimento desta pesquisa porque permitiram repensar a
dinâmica da colonização e a própria percepção de que os povos
indígenas eram agentes passivos. Hoje, busca-se mostrar que, no
processo colonial, eles foram sujeitos ativos da sua história, apesar
de a documentação identificá-los como selvagens, gentios, silvícolas
ou apenas como empecilhos à colonização (OLIVEIRA, 2007, p. 14).

Nos primeiros contatos, os conquistadores do território da região Sudeste do


Piauí não tinham interesse em adquirir terras para a implantação de fazendas para a
criação de gado. Eles queriam, apenas, conquistar povos indígenas para os
utilizarem como mão-de-obra escrava nas tropas militares e nos engenhos de cana
de açúcar que se instalavam nas terras litorâneas. Nesse período, muitas etnias
indígenas desapareceram (OLIVEIRA, 2007, p. 28).

Em 1674, Domingos Afonso Mafrense e Julião Afonso Serra entraram pelas


cabeceiras do rio Piauí. A partir de 1676, ocorreram as concessões das primeiras
10

sesmarias de terras que beneficiaram, além destes dois fazendeiros, Francisco Dias
D’Ávila e Bernardo Pereira Gago. Essas terras foram doadas pelo governador de
Pernambuco, Dom Pedro de Almeida. As terras conquistadas por Domingos Afonso
Mafrense foram repassadas para a Companhia de Jesus. No Piauí, a ação da
Companhia de Jesus parece ter sido mais voltada para a atividade econômica do
que para a evangelização.

Em 1774, os bandeirantes da Casa da Torre, perseguindo os Galaches e os


Guesguês, passaram a região do Rio São Francisco e chegaram até a região do
Piauí. Também no século XVIII, os Dias d’Ávila da Casa da Torre devastaram toda
aquela região. Garcia D’Ávila foi o fundador da Casa da Torre. Coube, porém, ao
segundo Garcia D’Ávila dar início à penetração para o Oeste.

Esta (sic) entrada foi continuada pelo seu sucessor, Francisco Dias
D’Ávila e o neto deste, o segundo Francisco Dias D’Ávila, os quais
completaram a invasão e a ocupação. A família tornou-se assim
grande proprietária de terra e muito poderosa devido aos acordos e
acertos firmados com o governo (OLIVEIRA, 2007, p. 28).

A bandeira de Domingos Jorge Velho, provavelmente saiu do Paraná, chegou


a Minas Gerais e subiu em direção ao norte, seguindo o curso do rio São Francisco.
Perseguindo alguma tribo, transpôs a serra por caminhos que só os índios
conheciam. Seguiu, depois, o curso do rio, sempre na sua luta contra o gentio bravo,
comedor de carne humana, como ele próprio o declarava.

O projeto colonial para a região Sudeste do Piauí pode ser dividido


em duas etapas. Inicialmente, durante o final do século XVII e início
do XVIII, aconteceu a ocupação daquela área, com a chegada dos
sertanistas provenientes do São Francisco, dispersando a sua
população nativa que, provavelmente, era remanescente dos
agricultores ceramistas. Para as etnias que sobreviveram, restou
somente buscar áreas de refúgio para serem incomodadas
novamente pelo processo de ampliação da área das fazendas de
gado no século XVIII ou integrar-se ao processo colonial (OLIVEIRA,
2007, p. 26).

A segunda fase ocorreu quando, pelo decreto pombalino, os jesuítas foram


expulsos do território brasileiro. Houve, então, a expansão da área ocupada pelas
fazendas e o início do conflito com os Pimenteiras. Foi também nesse período, no
início do século XIX, que ocorreu a total dispersão dos povos indígenas. A pecuária
tornou-se a principal riqueza do Piauí e a única atividade econômica do povoador
(OLIVEIRA, 2007, p. 26).
11

2 A COLONIZAÇÃO DO PIAUÍ

Sob a lógica de ocupação exploratória, constituiu-se o estado do Piauí. A


Coroa portuguesa interessava-se pelas fontes de riqueza da região Nordeste. Essa
ocupação representava uma ameaça ao patrimônio natural e dos grupos nativos que
ocupavam o sertão. Tal ameaça advinha também da contínua entrada de
holandeses no interior do país. Estes faziam pesquisas referentes aos mamíferos e
realizavam trocas de diversos materiais com os índios do Piauí e do Ceará.

Com o intuito de impulsionar o povoamento e acelerar as exportações


econômicas de todo o sertão nordestino, a Coroa Portuguesa doou grandes
extensões de terras, divididas em sesmarias, aos interessados em contribuir com
esses objetivos. Durante o século XVII e o século XVIII, teve início o processo de
colonização do Piauí, com as expedições de bandeirantes e sertanistas.
Desencadeou-se, então, a expansão pastoril, com a criação e implantação de muitas
fazendas de gado em toda a região1.

Entre os sertanistas que chegaram até o território hoje correspondente ao


estado do Piauí, destacaram-se os bandeirantes da Casa da Torre que, perseguindo
alguns povos nativos, atingiram a região, na medida em que ultrapassaram o Rio
São Francisco (OLIVEIRA, 2007). A família D’Ávila, da Casa da Torre, era uma das
maiores proprietárias de terras na região e considerada também muito poderosa.

Outro nome que merece destaque no contexto colonizador do Piauí é


Domingos Afonso Mafrense. Tido como o povoador da região Sudeste do Piauí, é
apontado como o homem que deixou a obra colonizadora mais durável (LEITE, 1945
apud OLIVEIRA, 2007).

Dentre os territórios piauienses “conquistados” pela Coroa, está a região


Sudeste que teve uma colonização tardia. Esta se dividiu em duas fases e foi

1 A fazenda de gado piauiense é caracterizada pela vasta porção de terra que ocupava, utilizadas
para a pecuária extensiva. Embora chegassem a existir fazendas com mais de 11 léguas, a sua
ocupação geralmente se resumia a um ou poucos fogos (residências) e seus habitantes muitas
vezes não chegavam nem a uma dúzia de pessoas (MOTT, 1985).
12

marcada por extrema violência em uma guerra contínua que acabou por dispersar a
população nativa. Segundo Oliveira (2007, p. 26)

Inicialmente aconteceu a ocupação daquela área, com a chegada


dos sertanistas provenientes do São Francisco, durante o final do
século XVII e início do XVIII, dispersando a sua população nativa;
provavelmente os remanescentes dos agricultores-ceramistas. Para
as etnias que sobreviveram, restou somente buscar áreas de refúgio
para serem incomodadas novamente pelo processo de ampliação da
área das fazendas de gado no século XVIII ou integrar-se ao
processo colonial. A segunda fase deu-se a partir da segunda
metade do século XVIII, após a expulsão dos jesuítas, com a
expansão da área ocupada pelas fazendas de gado, período em que
tiveram início os conflitos com os Pimenteiras, últimos povos
indígenas em guerra com o colonizador na Capitania do Piauí.
Durante essa fase, ocorreu o abandono de diversas fazendas pelos
moradores locais e, depois, o despovoamento da região, com a
dispersão dos povos indígenas para que ocorresse um
repovoamento colonial e a construção geográfico-social daquela
área. Esta fase se prolonga até o início do século XIX, com o controle
da região pelos colonizadores e a total dispersão dos povos
indígenas.

Durante muito tempo, a economia do Estado piauiense orbitou entre a venda


de gado e índios capturados nas missões. Este contexto desenvolveu marcadores
sociais permanentes, sofrendo pequenas alterações somente um século depois do
início da colonização. Em 1762 ainda não havia área urbana no estado. A existência
precária de uma vila, denominada Mocha, era a única aglomeração urbana. Anos
depois, a vila passou a se chamar Oeiras, tornando-se capital da capitania e
apresentando marcadores sociais provenientes desta lógica exploratória. Nela havia
1.200 habitantes, porém 655 destes eram livres.

As cidades do litoral nordestino tiveram sua economia baseada no cultivo de


cana-de-açúcar. A região Sudeste do Piauí, marcada pelas chuvas escassas e pelo
solo pobre, voltou-se para o desenvolvimento da pecuária extensiva. A pecuária
alavancou o desenvolvimento socioeconômico do Sudeste e de todo o estado do
Piauí. O ciclo do gado alcançou sua maior expressão durante os séculos XVII e
XVIII, com a criação de muitas e importantes fazendas de gado.

Em uma dessas fazendas, distribuídas por todo o Sudeste piauiense,


desenvolver-se-ia a sede do distrito de São Raimundo Nonato. Tal fazenda
localizava-se na confluência do Baixão Vereda com a margem esquerda do Rio
Piauí (DIAS, 2003).
13

3 SÃO RAIMUNDO NONATO

Foi no dia 06 de julho do ano 1832 que o nome do santo português Raimundo
Nonato teve a função de delimitar território, por força do Decreto regional 8.832.
Criou-se, assim, a Freguesia Eclesiástica de São Raimundo Nonato. Esta freguesia
estava antes dividida, em maior parte, no município de Jaicós, e em menor parte, no
município de Jerumenha que, devido à distância e à falta de comunicação entre
estes, não tinham como fazer prevalecer seus alegados domínios nem manter a
hegemonia territorial pretendida. Assim que foi criada, a Freguesia de São Raimundo
Nonato tinha sua sede no lugar chamado Confusões que se localizava no extremo
poente de seu território. Permaneceu neste local por cerca de quatro anos, até que,
por efeito da Lei provincial número 35, de 27 de agosto de 1836, transferiu-se para a
Fazenda Jenipapo cuja população dedicava-se à lavoura e à pecuária.

Em 1850, a Lei provincial número 257, de 12 de agosto elevou a freguesia à


categoria de vila, mantendo a mesma denominação e sede. No entanto, sua
instalação deu-se apenas em 04 de março de 1851, quando Inácio Francisco da
Mota era governador da província. O referente distrito judiciário ficou subordinado a
Oeiras até 1859 e, posteriormente, a Jaicós, quando foi elevada à categoria de
Comarca, por efeito da Lei Provincial número 468, de 12 de agosto do mesmo ano.
Seu território permaneceu inalterado até o ano de 1972, quando foi instalada a Vila
de São João do Piauí, ficando desmembrada toda zona que compreende os
municípios de São João do Piauí, Canto do Buriti, Socorro do Piauí, Paes Landim,
Lagoa do Barro do Piauí, Brejo do Piauí, Campo Alegre do Fidalgo, Capitão
Gervásio de Oliveira, João Costa, Nova Santa Rita, Pajeú do Piauí, Pedro
Laurentino, Ribeira do Piauí e Tamboril do Piauí.

Naquele período, todos esses municípios configuravam-se em apenas um, a


saber, São João do Piauí, que permaneceu como distrito judiciário de São Raimundo
Nonato até 1874, quando se desligou judicialmente deste município, passando a
comarca. Esse desmembramento permaneceu até o ano de 1896, quando, por efeito
de Lei estadual, extinguiram-se os foros de vila, comarca e termo judiciário, fazendo
com que São João do Piauí fosse reincorporado a São Raimundo Nonato, que
acabou por recuperar os limites de 1871.
14

Tal situação só durou um ano, porque se restabeleceu a autonomia


administrativa de São João do Piauí, com os mesmos limites anteriores,
permanecendo, porém, o seu termo em São Raimundo Nonato, até 09 de julho de
1898, quando foi desmembrado deste município e anexado a Oeiras. Esse ciclo de
transferências não parou por aí. Verificou-se ainda, outras duas vezes, o anexo e
desmembramento do termo a São Raimundo Nonato.

No ano de 1912, a Lei estadual número 686 desmembrou o trecho poente do


município e criou o de Caracol. No mesmo ano, a vila de São Raimundo Nonato foi
elevada à categoria de Cidade, por efeito da Lei estadual 669, de 26 de junho,
ficando a comarca constituída dos termos judiciários de Caracol.

Em 1915 foi criada a Vila de Canto do Buriti, ficando a comarca nos termos
judiciários de São João do Piauí até o ano de 1917, transferida para Caracol. Assim,
os termos judiciários de São Raimundo Nonato e Canto do Buriti permaneceram em
Caracol, até o ano de 1938, quando Canto do Buriti foi elevada à categoria de
Cidade e seu termo foi transferido para São João do Piauí. São Raimundo Nonato
aparece como comarca na divisão territorial do Estado, constituída de um único
termo, o da sede, até que, em 1947, Caracol passa a ser distrito judiciário da
comarca de São Raimundo Nonato. Tais situações permanecem até hoje.

A partir de 1962, novos desmembramentos começam a ocorrer em São


Raimundo Nonato (Qd. 1).

Quadro 1 – Municípios desmembrados do antigo território de São Raimundo Nonato


Município Desmembramento (ano: local)
Anísio de Abreu 1962: São Raimundo Nonato
Dirceu Arcoverde 1983: São Raimundo Nonato
Dom Inocêncio 1989: São Raimundo Nonato
Bonfim do Piauí 1993: São Raimundo Nonato
Coronel José Dias 1993: São Raimundo Nonato
São Braz do Piauí 1993: São Raimundo Nonato e Anísio de Abreu
São Lourenço 1993: São Raimundo Nonato
Várzea Branca 1997: São Raimundo Nonato

Para se compreender a área de abrangência da pesquisa, deve-se


considerar os desmembramentos que ocorreram a partir de São Raimundo Nonato e
os decorrentes de São João do Piauí e Caracol. Neste sentido, pode-se verificar
que, no período de 1832 a 1871, ou seja, antes de qualquer divisão territorial, 33
municípios de hoje compreendiam a área de São Raimundo Nonato (Qd. 2).
15

Quadro 2 – Municípios cujos territórios pertenceram a São Raimundo Nonato


Município Desmembramento (ano: local)
São Raimundo Nonato 1851: Jaicós e Jerumenha
São João do Piauí 1872: São Raimundo Nonato
Simplício Mendes 1905: Oeiras e São João do Piauí
Caracol 1912: São Raimundo Nonato
Canto do Buriti 1915: São João do Piauí
São José do Peixe 1958: Oeiras e São João do Piauí
Anísio de Abreu 1962: Caracol
Socorro do Piauí 1962: São João do Piauí
Paes Landim 1962: São João do Piauí
Santo Inácio do Piauí 1964: Simplício Mendes
Campinas do Piauí 1964: Simplício Mendes
Isaías Coelho 1964: Simplício Mendes
Dirceu Arcoverde 1983: São Raimundo Nonato
Dom Inocêncio 1989: São Raimundo Nonato
Bonfim do Piauí 1993: São Raimundo Nonato
Coronel José Dias 1993: São Raimundo Nonato
Fartura do Piauí 1993: Dirceu Arcoverde
Lagoa do Barro do Piauí 1993: São João do Piauí
São Braz do Piauí 1993: São Raimundo Nonato e Anísio de Abreu
São Lourenço 1993: São Raimundo Nonato
Várzea Branca 1997: São Raimundo Nonato
Bela Vista do Piauí 1997: Paulistana e Simplício Mendes
Brejo do Piauí 1997: Canto do Buriti
Campo Alegre do Fidalgo 1997: São João do Piauí e Lagoa do Barro do Piauí
Capitão Gervásio Oliveira 1997: São João do Piauí
Floresta do Piauí 1997: Santo Inácio do Piauí
Guaribas 1997: Caracol
João Costa 1997: São João do Piauí
Jurema 1997: Anísio de Abreu
Nova Santa Rita 1997: São João do Piauí
Pajeú do Piauí 1997: Canto do Buriti
Pedro Laurentino 1997: São João do Piauí e Socorro do Piauí
Ribeira do Piauí 1997: São João do Piauí, Socorro do Piauí e Canto do Buriti
Tamboril do Piauí 1997: Canto do Buriti e Brejo do Piauí

4 CONSIDERAÇÕES

É notável que a colonização do Piauí tenha ocorrido de maneira inversa em


relação aos outros estados, pois foi de dentro para fora no sentido sul - norte e ou
litoral do estado. Movidos por interesses políticos e financeiros, pela exploração das
terras para a criação de gado, os colonizadores geraram uma forte e emergente
economia, marcada por guerras contra os nativos daquela época, promovendo, mais
tarde, a exterminação e expulsão dos mesmos para outros estados. Formaram
muitas fazendas de criação de gado. Estas, mais tarde, viriam a ser cidades, entre
elas, São Raimundo Nonato, todas dentro de um mesmo contexto político, social e
16

econômico. Anos depois, essa economia, baseada na criação de gado, sofreu


mudanças significativas, quando o país viveu uma nova fase. O período da borracha
também marcou essa região com o cultivo da maniçoba.

Para a realização desse trabalho, foi essencial o estudo bibliográfico. Esse


estudo permitiu uma melhor compreensão e entendimento de como ocorreu a
colonização do estado e o desenvolvimento regional até a emancipação da cidade
de São Raimundo Nonato. Não se teria conseguido chegar aos resultados sem os
aprofundamentos em temas específicos.

REFERÊNCIAS

CHAVES, Joaquim. Apontamentos biográficos e outros. Teresina: Fundação


Cultural Monsenhor Chaves, 1994.

DIAS, William Palha. Caracol na História do Piauí. Teresina: Expansão, 2003.

MOTT, Luiz R. B. Piauí colonial - População, Economia e Sociedade. Teresina:


Projeto Petrônio Portella, 1985.

NUNES, Odilon. Devassamento e Conquista do Piauí. Teresina: COMEPI, 1972.

OLIVEIRA, Ana Stela de Negreiros. O Povoamento Colonial do Sudeste do Piauí:


indígenas e colonizadores, conflitos e resistências. Tese para doutoramento.
Recife: UFPE, 2007.

SANTANA, R. N. Monteiro de. Apontamentos para a história cultural do Piauí.


Teresina: FUNDAPI, 2003.
HISTÓRIA

Autores:
Déborah Gonsalves Silva
Gabriel Frechiani de Oliveira
Jaime de Santana Oliveira
Ney Clemente Dias Brito
I SÃO RAIMUNDO NONATO, UM PROJETO DE EMANCIPAÇÃO POLÍTICA

Jaime de Santana Oliveira


Gabriel Frechiani de Oliveira

INTRODUÇÃO

A História Social é uma subespecialidade que tem seus primórdios na


proposta dos Annales. Nela destacam-se os objetos mais evidentes, os modos e os
mecanismos de organização social, as classes sociais e outros tipos de
agrupamentos, as relações sociais (entre esses grupos e dos indivíduos no seu
interior) e os processos de transformações da sociedade (BARROS, 2004).

Ao estudar a história de São Raimundo Nonato, constatou-se uma grande


lacuna. Nessa região as pesquisas concentraram-se na pré-história em função da
grande concentração de sítios arqueológicos. Há poucos trabalhos referentes ao
contexto do povoamento e da implantação do Distrito e da Freguesia. Pouco se
escreveu, também, sobre a sua elevação à condição de vila, em 1850.

A pesquisa voltada para história e a memória dos maniçobeiros preenche um


pouco da lacuna. O trabalho de Ana Stela de Negreiros Oliveira consegue dar boas
respostas sobre o contexto histórico do final do XIX e início do século XX. Sua
pesquisa contempla itens, históricos, econômicos e cotidianos dos maniçobeiros. Ela
faz, também, menções furtivas sobre a elevação de São Raimundo Nonato à
condição de cidade, em 1912.

Com a presente pesquisa buscam–se respostas para alguns


questionamentos. Quer-se saber que elementos levaram São Raimundo Nonato a
condição de Cidade? Como era a vida da população? Como foi sua participação no
evento? O que projetou para a vila que virou cidade? É um trabalho de investigação
que não busca respostas conclusivas. Às vésperas do centenário, quer-se
disponibilizar ao povo de São Raimundo Nonato uma pouco de sua história.

A pesquisa objetiva conhecer o processo de emancipação política da Cidade


de São Raimundo Nonato, identificando as mudanças que desencadearam esse
evento e analisar as relações sociais e políticas entre os distintos grupos.
19

Como objetivos específicos, buscam-se:

1. Apresentar uma revisão bibliográfica da formação e desenvolvimento das


cidades no mundo ocidental e das cidades brasileiras.
2. Contribuir para uma discussão acerca do processo que levou São Raimundo
Nonato a conquistar sua emancipação política.
3. Diagnosticar mudanças ocorridas no final do século XIX e início do século XX
que contribuíram para a emancipação política.
4. Identificar os agentes financeiros que influenciaram o desencadear de tal
processo.
5. Contextualizar o início do século XX, buscando entender as relações políticas
e sociais.

Na tentativa de chegar às respostas dos questionamentos propostos,


adotaram-se, como procedimentos metodológicos, a leitura, a seleção e o registro
das informações. Produziram-se fichas e sínteses. Recorreu-se, também, ao registro
fotográfico, o que possibilitou a visualização de imagens marcantes da história desta
cidade.

A visita aos documentos do cartório foi importante, por ter possibilitado


visualizar documentos oficiais produzidos no final do século XIX e início do século
XX. Essa visita permitiu levantar novos questionamentos e ter contatos com
documentos que mostram a face da vila de São Raimundo Nonato que não aparece
nos livros estudados. Permitiu observar também alguns documentos referentes à
escravidão. Como técnica de registro, fez-se a digitalização de fotografias porque os
papéis eram muito frágeis.

Os relatos orais também foram importantes porque mostraram a ausência de


documentos que tratassem dos eventos políticos e das decisões tomadas. Por se
tratar de um período distante utilizou-se de algumas entrevistas feitas em períodos
anteriores à atual pesquisa. Buscaram-se relatos de pessoas idosas. Nessas
entrevistas procurou-se entender como eram o cotidiano e as preocupações das
pessoas que habitavam esta vila. Feito este trabalho, espera-se contribuir para
entender como estava organizada a cidade de São Raimundo Nonato e o contexto
social em que ocorreu a emancipação política.
20

1 HISTÓRIA DA CONCEPÇÃO E DA FORMAÇÃO DAS CIDADES

1.1 A FORMAÇÃO DAS CIDADES ANTIGAS

[...] As origens das cidades são obscuras, enterrada ou


irrecuperavelmente apagada uma grande parte do passado, e são
difíceis de pensar suas perspectivas futuras.
Lewis Mumford

O conceito de cidade é algo que se modifica ao longo do tempo. O termo é


definido, em sua maior parte, pela cultura em que está inserido. A cultura é mutável
na variável de tempo e de espaço. Faz-se, aqui, uma discussão a respeito da
criação das cidades e suas definições ao longo da história.

O primeiro tópico abrange a gênese das cidades antigas. Esta é a parte mais
desafiadora porque se refere a um período longínquo sobre o qual não se dispõe de
fontes que possibilitem analogias com dias atuais.

Para Coulanges (2004), o estudo das antigas regras de direito privado permite
entrever além do tempo chamado histórico, no período em que a família era a única
forma de sociedade existente. Coulanges (2004) coloca a família como gênesis da
formação das cidades. Como primeiro núcleo da sociedade, ela tem regras e direitos
pré-estabelecidos. Logo, para conhecer as regras da formação de cidades de um
período longínquo tem-se que conhecer o princípio da organização das famílias.

Coulanges (2004), ao descrever a formação familiar na antiguidade, discorre


que a estreiteza da sociedade primitiva correspondia à ideia pequena que se fazia
das divindades. A religião definia as primeiras formas de organização da família.
Cada família tinha que obedecer a um deus cujo conceito era produzido pelo grupo
social. É válido, por isso, mencionar que o aparecimento das tribos e das cidades
estava estreitamente ligado a este elemento intelectual concebido pelas antigas
populações.

Para Coulanges (2004), várias famílias formavam a fratria, várias fratrias, uma
tribo, diversas tribos, uma cidade. As sociedades são, por conseguinte,
perfeitamente análogas e nascidas umas das outras por uma série de federações. O
termo fratria vem do grego e significa a junção de duas famílias que se misturam
21

sem abrir mão de sua religião particular pelo menos para celebrar outro culto que lhe
fosse incomum.

Coulanges (2004, p.138), ao descrever a formação das tribos e cidades a


partir da junção de família, discorre que duas tribos de modo algum podiam fundir -
se em uma, pois a religião a isso se opõe. Entretanto, várias fratrias podem reunir-se
sob a condição de o culto de cada uma ser respeitada. No dia que se firma essa
aliança nasce uma cidade.

Coulanges (2004, p.139) define a cidade como:

[...] Uma confederação que para isso viu-se obrigada, pelo menos
durante alguns séculos, a respeitar a independência religiosa, e civil
das tribos, das cúrias e da família, não tinha no principio de intervir
nos negócios particulares de cada um desses pequenos corpos. [...]
assim a cidade não é um agregado de individuo, mas uma
confederação de vários grupos previamente constituídos e que ela
deixa subsistir [...].

Na Antiguidade, cidade e urbis não eram sinônimas. Cidade era uma


associação religiosa e política de famílias e de tribos. Urbis era o lugar de reunião o
domicílio e, sobretudo, o santuário da sociedade. Vale ressaltar que ao imaginar as
cidades antigas não se pode ter ideia similar a que se tem para as cidades dos dias
atuais. De acordo Coulanges (2004), construíam-se algumas casas. Dessas, pouco
a pouco, nasciam as aldeias. O numero de casas aumentava. Surgia, assim, a urbis
que, às vezes, era cercada de fossos e de muralhas, para protegê-la de invasores.

Partindo da leitura da obra A Cidade Antiga, pode - se propor que, na origem,


as cidades estavam ligadas à religião que cada família detinha. Com um sentimento
religioso comum, formavam-se as tribos que, juntas, davam origem às cidades.

Aristóteles (2008), contudo, em sua obra Política, apresenta uma visão que
aproxima a cidade da comunidade política. Segundo ele, a cidade visa o bem maior
porque abrange outras comunidades menores e por que possui uma auto-suficiência
que a comunidade maior não alcança. Em seu discurso, Aristóteles aproxima o
cidadão da participação política dentro da cidade. Defende que o cidadão é quem
participa na vida política em funções deliberativas ou judiciais. Designa cidade como
a multidão de cidadãos em número suficiente para ser autarquia.

Para definir cidade Aristóteles (2008, p. 35) propõe que:


22

[...] Cidade é a forma mais elevada de comunidade e tem como


objeto mais elevado. A diferença entre cidade e outros tipos de
comunidade surge quando examinamos as partes pelas quais ela é
composta [...] a cidade é constituída de aldeias que, por sua vez, são
constituídas de famílias [...].

Aristóteles (2008, p.14) afirma que toda cidade é um tipo de associação, e


toda associação é estabelecida em vista algum bem. Por conseguinte, “[...] a melhor
cidade será aquela em que é possível a felicidade obtida pela criatividade da razão.
A felicidade individual deve corresponder à da cidade feliz”.

Conforme Resende Filho (2000), que raciocina conforme a lógica ocidental2,


as primeiras civilizações que surgiram na Idade Antiga foram as comunidades
hidráulicas que nasceram ao entorno do rio Tigre e Eufrates, na Mesopotâmia, no
Nilo, na Índia e na China. Com base nas suas características básicas, pode-se
afirmar que as primeiras civilizações hidráulicas adotavam a monarquia-teocrática.

Resende Filho (2000) afirma que as civilizações das cidades Mesopotâmicas


eram densamente habitadas e de alta produtividade agrícola. Desde quatro milênios
A. C., as mesmas possuíam uma urbanização crescente com desenvolvimento
próspero de cidades-estados, mesmo com constantes ataques de povos nômades.

De acordo com Resende Filho (2000), as populações da Mesopotâmia


formavam enormes e estáveis sistemas econômicos em torno do Palácio Real e dos
templos. Englobavam terras, rebanhos, barcos, oficinas e trabalhadores que
cumpriam quotas de trabalho compulsório ou eram escravos.

Quanto ao seu comércio interno, centrado nas cidades, ele sempre


foi ativo e diversificado, oferecendo desde produtos alimentícios até
ferramentas e demais utensílios de uso cotidiano, como reflexo
natural de um sistema econômico composto por homens livres e
bastante monitorado (RESENDE FILHO, 2000, p.16).

Os grupos humanos que habitaram essa região sempre procuraram os


melhores lugares que atendessem suas necessidades e favorecessem o
florescimento de suas vilas e cidades. Com as riquezas naturais de suas terras
férteis logo alcançavam o desenvolvimento cultural que influenciava seu entorno
com leis, organizações sociais e religiosas (RESENDE FILHO, 2000).

2
Conjunto de estudos, originados no hegelianismo, que tem por fim determinar categorias racionais
válidas para apreensão da realidade concebida como uma totalidade em permanente
transformação; lógica dialética.
23

Cidades como Lagash, Umma, Kish, Ur, Uruk, Akad desenvolveram


características peculiares, sob a representação de um rei que se dizia representante
dos deuses. Os reis, segundo Pinsky (1994), recebiam a maior parte das terras do
clã, além de impostos. Em caso de guerra, cabiam-lhe os saques que favoreciam o
aumento de sua riqueza.

Na leitura de Pinsky (1994), as cidades Mesopotâmicas eram independentes


sob o ponto de vista político, embora interdependentes economicamente e
extremamente homogêneas sob o ponto de vista cultural. A cultura vivia em plena
ebulição. Administrar uma cidade exigia mais que disposição e procuração divina.
Exigia instrumentos adequados, que se desenvolveram de forma notável na
Mesopotâmia (PINSKY, 1994, p. 55).

Outra civilização que teve êxito em seu desenvolvimento foi à civilização


egípcia que se desenvolveu ao longo do vale do rio Nilo. Para Resende Filho (2000),
a civilização do Egito, embora baseada na irrigação, é bastante diferente da
Mesopotâmica. Conforme Resende Filho (2000), o que diferenciava uma da outra
eram as cheias e o deserto. No rio Nilo elas eram regulares e menos destruidoras
que as dos rios Tigre e Eufrates. Ali também, o deserto protegia as regiões de
ameaças externas, o que produzia uma sociedade isolada e conservadora. O Egito
não dependia do mercado externo para obtenção de matéria-prima. Por último, o
Egito não se desenvolveu a partir de cidades-estados independente, mas sim de um
Estado precocemente unificado, o que fez com que o sistema econômico fosse
extremamente centralizado, concentrando-se na corte real, notadamente na pessoa
do rei-deus, o faraó.

Ao se estudar a Grécia Antiga, nota-se que os gregos tiveram grande


influência no pensamento ocidental, ao longo da história, principalmente no campo
da política, assim como de um sistema democrático com “governo do povo”.

Finley (1988) afirma que na Grécia antiga prosperou as polis que, em seu
sentido clássico, significa um estado que governa a si mesmo. As polis eram sempre
pequenas em área e população.

Finley (1988, p. 47), ao descrever as principais polis propõe que:

A maior de todas, Atenas, era de fato um estado muito pequeno,


segundo os padrões modernos – cerca de 500 quilômetros
quadrados, mais ou menos, a Dorset, Derbyshire ou ao Grão Ducado
24

de Luxemburgo – e chama-lhe cidade-estado, confere-lhe um realce


duplamente errôneo: ignora a população rural, que constituía a
maioria dos cidadãos, e sugere que a cidade governava o campo o
que não é exato.

As principais cidades da Grécia Antiga eram Atenas, Esparta e Tebas que,


durante muito tempo, lutaram contra os persas, nas conhecidas Guerras Médicas
século VI. Logo após estabeleceram conflitos no Peloponeso entre Atenas e
Esparta. Conforme Jones (1977)3 dificilmente duas cidades apresentavam tantas
diferenças. Atenas estava num ponto de convergência estabelecendo-se em um
movimentado ponto comercial e de grande força naval. Dispunha da produção do
espaço com gramas. Embelezava-se com o esplendor dos templos, a soberba das
estátuas e, acima de tudo, o progresso das novas idéias que fervilhavam. Ficou para
Atenas o brilho de grandes intelectuais como o historiador Tucídides e o filosofo
Platão. Esparta caracterizava-se pelo isolamento. Era um estado que gozava de
auto-suficiência agrícola. Parecia uma aldeia que crescera demais. Não tinha
destaque no campo da arte e da literatura.

A esterilidade cultural de Esparta era o resultado inevitável de sua


estrutura social e política. Seus cidadãos eram treinados
rigorosamente desde a infância apenas para uma coisa - ser bom
soldado, e esses cidadãos, os espartanos, eram uma pequena elite,
apoiada pelo trabalho de um número conformavam-se com a
situação, particularmente os que eram originários do território original
espartano, a Lacônia (JONES, 1977, p. 66).

Segundo Jones (1977), os espartanos eram admirados pelos atenienses pela


sua coragem e dedicação ao dever. Os gregos impressionavam-se com o seu poder
militar. Esparta passou séculos como referência na organização do exército cujos
soldados eram educados desde a infância. Triunfante em suas batalhas, Esparta
desfrutava de uma estabilidade política excepcional no mundo grego.

A principal atração de Esparta, porém, era a sua aristocracia perfeita.


Seus admiradores atenienses eram, quase exclusivamente, cidadãos
das classes superiores, homens de nascimento, riqueza e educação
que lamentavam o fato de terem de aceitar camponeses e
trabalhadores como seus iguais (JONES, 1977, p.67).

A organização dessas duas cidades que influenciou o pensamento


ocidental. Atenas era uma cidade cosmopolita. Ela promoveu uma ruptura com a

3
A. H. M. Jones, Professor de História Antiga da Universidade Cambridge.
25

aversão ao estrangeiro. Foi capaz de discutir seus problemas em um diálogo que


incluía outros setores da sociedade, além da elite. Esparta, por mais que tivesse
um sistema político organizado e estável, não estava aberta a criar novas formas
de convívio que beneficiasse os hilotas4 e periecos5.

As cidades do mundo romano constituíram um incontentável legado para o


Ocidente. Marcadas pelo seu domínio duradouro, cidades fantasmas como
Pompéia ou Trimgad (na Argélia) ou Verulâmio (St. Albans) deram importantes
informações sobre sua vida social. Frederiksen (1968) destaca que as cidades
eram centro da vida civil e foco da ambição. Embora criadas pela mão de
conquistadores, orgulhavam-se de administrar a si mesmas, e chegavam a resistir
às interferências.

A cidade planejada dos romanos, com o seu xadrez de rua, tinha


uma longa história, mas poder-se-ão perceber alguns progressos.
(...) eram elas pequenas guarnições de cerca de trezentas famílias
guardiões de uma estrada ou litoral mais exposto, pequenas demais
para serem propriamente cidades (FREDERIKSEN, 1968, p.151).

As cidades de estilo hipodomiano6, com design de xadrez, possibilitavam


uma movimentação dentro de ruas retangulares. Ao longo tempo, elas construíram a
imagem da cidade ideal. Pelo seu planejamento e sua configuração, influenciavam
todo o seu entorno. Em detrimento de suas pequenas cidades vizinhas, Roma
emergiu em contexto diferente. Frederiksen (1968)7 argumenta que seu
florescimento bem cedo não compartilhou de nenhum planejamento complexo e teve
seus problemas agravados pelo crescimento da população. Evidencia Frederiksen
(1968) que a maior parte da capital romana era um verdadeiro caos de casas altas e
raquíticas, bem como de ruas tortuosas e estreitas. Frederiksen (1968) destaca
ainda que uma planificação esquemática das cidades de seus domínios seja
derivada, em parte, de um desejo de evitar que os mesmos problemas irrompessem
em outras regiões.

4
Hilotas: servos de propriedades do estado que descendiam dos primitivos habitantes de Lacônia
dominadas pelos Dórios. Sem direitos políticos tinha seu trabalho explorado pelos espartanos.
5
Periecos; habitantes da periferia das pólis, Eram pequenos proprietários que se dedicavam às
atividades rejeitadas pelos espartanos, como o artesanato e o comercio em pequena escala.
6
Hipodomiano: Assim chamado em razão do nome do arquiteto grego que o projetou (Frederiksen,
1968 p.151).
7
M. W. Frederiksen: educado na universidade de Sydney e na de Oxford, é membro do Worcester
Collge, Oxford, desde 1959. Foi, anteriormente, Junior Research Fellow, do Corpus Christi
College, Oxford. Escreveu artigos sobre a topografia romana para Pauly-Wissowa, Real-
Encyclopaedie der classischen Altertumswissenschaft.
26

Contudo as proposições a respeito deste tema tornam-se, às vezes,


divergentes em alguns pontos do que vem a resultar essa simetria e organização.
Frederiksen (1968, p.153) afirma que: “Acima de tudo, uma cidade independente
necessitava de uma boa localização para seus templos, uma delimitação da
propriedade, drenagem e abastecimento de água”.

[...] Dificilmente se vê um lugar que não tenha sido alvo das


preocupações de Roma. Pompéia, Óstia e mesmo Volubilis
Mauritânia denotam o cuidado prodigamente dispensado; de fato o
planejamento das ruas desaparecido da Cartago de Augusto foi
totalmente recuperado através de seu sistema de esgotos
subterrâneos, tão intimamente ligado eram os traçados de ruas e
esgoto. Além do mais, os romanos orgulhavam-se muito de seus
santuários públicos [...]. (FREDERIKSEN, 1968, p. 155).

Ressalta-se que as casas romanas obedeciam a muitas características


diversas. Variavam segundo o clima e o gosto ou posição social de seus
proprietários. Dentre as peculiaridades nota-se que as cidades sob o domínio
romano destacavam-se pelos jardins nos arrabaldes montanhosos, com árvores e
chafarizes, que se tornavam possíveis graças aos aquedutos que traziam água em
abundancia.

Essas características na produção das cidades com forma linear, dominadas


por Roma, influenciou na formação das cidades do mundo ocidental. Mesmo
ocorrendo esse problema em Roma, o crescimento de cidades com forma ordenada
foi algo desafiador para as sociedades posteriores.

1.2 AS CIDADES NA IDADE MÉDIA

A tentativa de se desenvolver um enredo lógico e transparente, acerca do


legado do Ocidente para a formação das cidades contemporâneas, transparece uma
visão cronológica divide a história em Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna e
Contemporânea.

A Idade Média é uma periodização eurocêntrica, estabelecida no século XVIII,


entre a Idade Antiga e Idade Moderna. É um período de aproximadamente mil anos.
Convencionalmente, vai da queda do império Romano, após sua ocupação pelos
hérulos em 476, até a tomada de Constantinopla, pelos turcos otomanos em 1453.
27

Segundo Franco Junior (2006, p. 11) a Idade Média durante muito tempo foi
vista com certo preconceito:

[...] Se, numa conversa com homens medievais, utilizássemos a


expressão ‘idade Media’, eles não teriam idéia do que estaríamos
falando. Como todos os homens de todos os períodos históricos, eles
viam-se na época contemporânea. De fato, falarmos em Idade antiga
ou Média representa uma rotulação a posteriori, uma satisfação da
necessidade de se dar nome aos momentos passados. No caso, o
que chamamos de Idade Média, foi o século XVI que elaborou tal
conceito [...].

Descreve Franco Junior (2006) que, neste conceito havia certo desprezo
indisfarçado aos homens que viveram naquele período. O admirador do clássico, o
italiano Francesco Petrarca (1304-1374) referia-se ao período como idade das
trevas. No entanto, Le Goff (1998) destacava que a Idade Media não foi um período
de imundice. A higiene corporal, em particular era objeto de cuidado, seja no âmbito
privado, seja, mais tarde, em estabelecimentos especiais.

Conforme Le Goff (1998), na Idade Média, o castelo, lugar de influência e


poder econômico e político domina a sociedade camponesa. Era contra o poder
senhorial que a cidade, muitas vezes, afirmava sua independência e, depois sua
influência sobre o campo ao redor. Le Goff (1998), ao usar um estudo etimológico,
disserta que a palavra ville somente tardiamente veio designar cidade. Durante os
séculos XI e XII, escrevia-se civitas ou cite. Vila era um domínio com um prédio
principal que pertencia a um senhor. Era um centro de poder, não apenas
econômico, mas de poder em geral sobre todas as pessoas que viviam ao redor da
terra.

O termo villa passou a se aplicar a aldeia nascente, a partir dos séculos IX e


X. Le Goff (1998) disserta que não há uma continuidade entre Idade Média e
Antiguidade. A fusão entre populações romanas e bárbaras deu origem aos
germânicos que se denominava o direito de banalidade. Direito de banalidade tinha
um comando bastante geral que incluía a justiça e, sobretudo, a economia como a
obrigação de moer a farinha no moinho do senhor e de pagar para vender sua
colheita nos mercados etc. A partir do século XI, aproximadamente, esse direito
espalhou-se essencialmente no campo. Formou-se, assim, uma estrutura típica da
feudalidade. Para Le Goff (1998), a banalidade diz respeito também ao território
urbano e, sobretudo suburbano. Essa urbanização foi a característica principal do
28

século XI. Ao descrever a formação das cidades antigas e medievais, Le Goff (1998,
p. 17) afirma que:

[...] Desde o século XII, a evolução das cidades medievais consiste


na reunião, lenta e numa única instituição, do núcleo primitivo da
cidade e de um ou dois burgos importantes. A cidade vai lançar seu
poder sobre certa extensão em volta, na qual exercerá direito
mediante coletas de taxas: é isso que se chamará de subúrbio [...].

Le Goff (1998, p. 26) descreve três espaços preponderantes na formação da


Paris medieval: o econômico, o político e o universitário. O primeiro girava em
torno dos mercados construídos onde se situava também o mercado da mão-de-
obra. O segundo, a partir do fim do século XIII, era o poder político e eclesiástico, o
rei, o bispo, o parlamento. Por último, o poder concentrava-se nas cidades
escolares, universitárias e intelectuais.

A cidade da Idade Media é uma sociedade abundante, concentrada


em um pequeno espaço, um lugar de produção e de troca em que se
mesclam o artesanato e o comércio alimentados por uma economia
monetária. É também o cadinho de um novo sistema de valores
nascidos da prática e criadora do trabalho do gosto pelo negócio e
pelo dinheiro [...] (LE GOFF, 1998, p. 25).

Segundo Le Goff (1997, p. 25), a cidade é um reino de construções de casas.


Os poderosos e ricos dão provas disso nos monumentos urbanos. “As cidades
contemporâneas, apesar de grandes transformações, estão mais próximas das
cidades medievais do que as últimas das cidades Antigas” (Fig. 1).

Nas cidades contemporâneas, exagera-se na verticalidade. As técnicas de


construção sofreram uma revolução. O homem trabalhador esta sempre ali, correndo
risco de vida (Fig. 2).

Raminelli8 (1977, apud Pirrenne, 1996) em sua obra As cidades na idade


Media de 1927, define cidade como uma concentração humana portadora de
personalidade jurídica, vivendo do comércio e da indústria.

8
Ronald Raminelle: Ex-professor do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná e
atualmente na UFF. Autor de vários artigos sobre historiografia e história colonial. Mestre e doutor
pela USP é autor do livro Imagens da Colonização (Jorge Zarar editor, 1996).
29

Figura 1 – Construção de um palácio público medieval (Fonte: Ambrogio Larenzetti Effets Du


bom gouvernerment dans La ville, 1337-1339)

Outro autor que descreve bem a Idade Média é Leo Hubermam (1986). Este
apresenta uma visão tripartite da sociedade feudal. Ele divide-a em sacerdotes,
guerreiros e trabalhadores. Esses grupos formavam uma sociedade de hábitos
diferentes dos de hoje. Os trabalhadores desempenhavam papel fundamental. Eram
eles que sustentavam o clero que pregava e os guerreiros que lutavam.
30

Figura 2 – Fotografia de uma construção nos Estados Unidos, em 1934


31

Um fator que favoreceu o desenvolvimento das cidades na Idade Média foi o


comércio. Este comércio sofreu alguns obstáculos dentre eles o dinheiro que era
muito escasso e a moeda que variava conforme o lugar. Além disso, o transporte era
penoso e perigoso, difícil e extremamente caro. Hubermam (1986, p. 18) é claro ao
falar do desenvolvimento do comércio na Idade Média.

Mas não permaneceu pequeno. Chegou um dia em que o comércio


cresceu, e cresceu tanto que afetou profundamente toda a vida da
Idade Média. Todo século XI viu o comércio evoluir a passos largos;
o século XII viu a Europa ocidental transformar-se em conseqüência
disso [...].

Isto não significa que antes houvesse ausência de cidades. Estas


prosperaram como resultado do desenvolvimento do comércio. Hubermam (1986)
afirma que existiam cidades rurais sem privilégios especiais ou governos que as
diferenciassem. Sob tal estímulo as novas cidades devolveram-se e as antigas
adotaram uma vida nova, adquirindo aspectos diferentes.

Se é fato que as cidades crescem em regiões onde o comércio tem


uma expansão rápida, na Idade Média, temos de procurar as cidades
em crescimento na Itália e Holanda. E é exatamente onde elas
surgiram primeiro. À medida que o comércio continuava a se
expandir, surgiam cidades nos locais em que duas estradas se
encontravam, na embocadura de um rio, ou ainda onde a terra
apresentava um declive adequado. Tais eram os lugares que os
mercadores procuravam. Neles, além disso, havia geralmente uma
igreja, ou uma zona fortificada chamada ‘burgo’ que assegurava
proteção em caso de ataque (HUBERMAM 1986, p.26).

Hubermam (1986) afirma que a cidade trazia um ar de liberdade para o


homem da Idade Média já que os senhores feudais tinham o domínio das terras. As
populações desejavam algo mais que as terras. O hábito feudal de arrendar a terra
de fulano que por sua vez arrendava a de beltrano, não os agradava. O homem da
cidade via as terras e a habitação sob ótica diferente do senhor feudal. As terras por
si só constituíam um fonte de riqueza.

1.3 AS CIDADES DO MUNDO MODERNO E CONTEMPORÂNEO

Como pensar o Mundo Moderno, a modernidade ou até mesmo o mundo


contemporâneo inseridos nas transformações ao longo da história? Este é um bom
32

questionamento para se compreender a constituição das cidades contemporâneas.


Hobsbawm (2007, p. 16) inclui novas palavras, ao falar das cidades do Mundo
Moderno:

[...] Imaginar o mundo moderno sem estas palavras (isto é, sem as


coisas e conceitos que dão nome) e medir a profundidade da relação
que constitui a maior transformação da história humana desde os
tempos remotos quando o homem inventou a agricultura e a
metalúrgica, a escrita, a cidade e o estado [...]

A partir da construção do Mundo Moderno percebe-se a expansão das


fronteiras. Na Antiguidade e na Idade Média o discurso era centrado somente no
ocidente europeu. A partir da expansão marítima incluíram-se novos povos.
Hobsbawm (2007, p. 25) descreve a construção do Mundo Moderno com a
dificuldade e as incertezas das comunicações com um mundo muito maior. Afirma:

[...] não tenho a intenção de exagerar estas dificuldades. O final do


século XVIII era pelos padrões medievais ou do século XVI, uma era
de comunicações rápidas e abundantes e mesmo antes da revolução
das ferrovias, eram notáveis os aperfeiçoamentos nas estradas, nos
veículos puxados e no serviço postal.

Afirma o autor, é mais fácil ligar capitais distantes por mares do que ligar os
campos às cidades.

O mundo em 1789 era, portanto, para a maioria dos seus habitantes,


incalculavelmente grande. A maioria deles, a não ser que fossem
arrancados de suas terrinhas por algum terrível acontecimento, como
o recrutamento militar, viviam e morriam no distrito ou mesmo na
paróquia onde nasceram [...] (HOBSBAWM 2007, p. 27).

Do século XVIII, para o século XIX, houve a estruturação dos estados


monárquicos como França, Espanha, Inglaterra e Itália, que vieram a constituir a
formação dos estados nações. Contudo, foi na Idade Moderna que aconteceu a
estruturação de grandes cidades como resultado dos processos de industrialização
que contribuíram na formação das grandes cidades no início do século XX. A
respeito das condições das cidades Raminelli (1977, p. 190) destaca:

Os estudos demográficos permitem afirmar que, nas cidades


tradicionais, as taxas de mortalidade eram altíssimas, devido às
condições de insalubridade e a grande concentração de pessoas
pobres em espaços pequenos. A cidade era o principal campo de
atuação de epidemia, que acometia uma grande parte da população
urbana. A situação de precariedade caracterizou as cidades
europeias até meados do século XIX, quando proliferam os planos de
modernização do espaço urbano.
33

Hobsbawm (2007) destaca bem o período de 1789. Diz que este foi um
período marcante para a história do Ocidente. Afirma que o mundo de 1789 era
essencialmente rural. Continua afirmando que é impossível entendê-lo sem assimilar
este ponto fundamental. Exemplifica, dizendo que, em países como a Rússia, a
Escandinávia e os Bálcãs, as cidades jamais se desenvolveram de forma acentuada.
Cerca de 90% a 97% da população era essencialmente rural. Somente em 1851, a
população urbana da Inglaterra ultrapassou a rural, pela primeira vez.

A palavra urbana é certamente ambígua. Ela inclui as duas cidades


europeias que, por volta 1789, podem ser chamadas de
genuinamente grandes segundo os nossos padrões – Londres, com
cerca de um milhão de habitantes, e Paris, com cerca de meio milhão
– é uma 20 outras com cerca de 100 mil ou mais: duas na França,
duas na Alemanha, talvez cinco na Itália (o mediterrâneo era
tradicionalmente o berço das cidades), duas na Rússia, e uma em
Portugal, na Polônia, na Holanda, na Áustria, na Irlanda na Escócia e
na Turquia europeia (HOBSBAWM 2007, p. 28).

Conforme Hobsbawm (2007), no Mundo Moderno a cidades europeias


tiveram seu desenvolvimento fortemente influenciado pela navegação. São
exemplos as cidades de Veneza e de Gênova, na Itália. Essas foram favorecidas
pelo transporte que impulsionava o comércio e o crescimento urbano. Outras
cidades como Londres tiveram seu desenvolvimento atrelado à produção industrial
que aconteceu na Inglaterra, favorecida pelo seu posicionamento geográfico.

Raminelli (1977), ao escrever sobre a História urbana, propõe que hoje as


cidades que crescem com mais rapidez não se encontram em regiões
industrializadas, mas em países de terceiro mundo, onde a proliferação do espaço
urbano não é acompanhada de industrialização.

Após uma leitura de vários autores sobre as formações das cidades, em


tempos diferentes, levanta-se o questionamento sobre o que define a cidade hoje.
Conclui-se que cidade é uma determinada região ou localidade que dispõe de um ou
mais povoados compartilhando entre si redes comerciais e relações políticas e
culturais, chegando a um número populacional relevante a uma organização
administrativa para melhor funcionamento.
34

1.4 A CIDADE NA HISTÓRIA DO CONTEXTO BRASILEIRO

A colonização da América Latina deu-se a partir do século XV, com os países


ibéricos impulsionados pelas navegações e os projetos mercantilistas com o Oriente.
As caravelas portuguesas chegaram às terras hoje denominadas Brasil e, a exemplo
da Espanha, iniciaram período de novas riquezas.

Foi a partir dos grandes descobrimentos marítimos que os dois


países entraram mais decididamente no coro europeu. Esse ingresso
tardio deveria repercutir intensamente em seus destinos,
determinando muitos aspectos peculiares de sua história e de sua
formação espiritual. Surgiu, assim, um tipo de sociedade que se
desenvolveria, em alguns sentidos, quase à margem das congêneres
européias, e sem delas receber qualquer incitamento que já não
trouxesse em germes (HOLANDA, 1995, p. 31).

Para tentar compreender a constituição da nação brasileira, Holanda (1995)


faz um estudo da própria formação de Portugal. Em sua obra Raízes do Brasil
estabelece comparações, buscando semelhanças e diferenças entre a América
espanhola e a portuguesa. Identifica peculiaridades na estruturação e organização
de cada uma das colônias.

[...] À frouxidão da estrutura social e à falta de hierarquia organizada


devem-se alguns dos episódios mais singulares da história das
nações hispânicas, incluindo-se nelas Portugal e o Brasil. Os
elementos anárquicos sempre frutificaram aqui facilmente com a
cumplicidade ou indolência displicente das instituições e costumes
[...] (HOLANDA, 1995, p. 33).

Antes de entrar na formação das cidades brasileiras, faz-se importante


compreender a formação do povo brasileiro, pois partindo desse eixo tem-se uma
melhor compreensão da formação do Brasil nação. O que se observa, a partir de
Holanda (1995), é que a sociedade brasileira não nasce em uma perspectiva
organizada, mas sim, como fruto do acúmulo de fatores.

Pioneiro da conquista do trópico para a civilização, tiveram os


portugueses, nessa proeza, sua maior missão, histórica. E sem
embargo de tudo quando se possa alegar contra sua obra, forçoso é
reconhecer que foram não somente os portadores efetivos como os
portadores naturais dessa missão, nenhum outro povo do velho
mundo achou-se tão bem armado para se aventurar á exploração
regular e intensa das terras próximas à linha equinocial, onde os
homens depressa degeneram, segundo o conceito generalizado na
era quinhentista [...] (HOLANDA, 1995, p. 43).
35

Holanda (1995) discorre que a exploração do trópico não se processou por


empreendimento metódico e racional, não emanou de uma vontade construtivista,
mas, no desleixo ou abandono. O estilo de colonização de Portugal, diferente da
Espanha, exerceu sua dominação pela vida rural. Os portugueses preocuparam-se
menos em construir, planejar alicerce e mais na implantação de feitorias para a
obtenção de riqueza fácil.

Destaca Holanda (1995) que, desde a construção do mundo helenístico, os


centros urbanos eram elemento de dominação. Os espanhóis, diferentemente dos
portugueses que estabeleceram bases ruralistas, tiveram a preocupação em fixar
organizações urbanas na colônia.

À primeira vista, o próprio traçado dos centros urbanísticos na


América espanhola denuncia o esforço determinado de vencer e
ratificar a fantasia caprichosa da paisagem agreste: é um ato definido
da vontade humana. As ruas não se deixam modelar pela
sinuosidade e pela aspereza do solo; impõem-lhe antes o acento
voluntario da linha reta. O plano regular não nasce, aqui, nem ao
menos de uma idéia religiosa, como a que inspirou a construção das
cidades do Lácio e mais tarde a das colônias romanas, de acordo
com o rito etrusco; foi simplesmente um triunfo da aspiração de
ordenar e dominar o mundo conquistado. O traço retilíneo, em que se
exprime a direção da vontade a fim previsto e eleito, manifesta bem
essas duas cidades espanholas, as primeiras cidades “abstratas” que
edificaram europeus em nosso continente (HOLANDA, 1995, p. 96).

Para Holanda (1995), a escolha de um lugar para povoar pelos espanhóis era
verificada com cuidado. Escolhia-se um lugar de boa compleição sem enfermidades,
onde não houvesse coisas peçonhentas e nocivas, de boa e feliz construção, de céu
claro e ar puro.

Freyre (2004), talvez pelo seu lugar social, apresenta uma leitura diferente
quanto à ocupação e determinação do território do Brasil Colonial. Diz que é
plausível, no conhecimento histórico, levantarem-se novas abordagens e
interpretações, em vista de que não se pode ser imparcial no desenvolvimento da
pesquisa. Descreve que a ocupação do espaço dá-se por uma ordem a partir do
eixo de um triangulo. A partir do engenho, da casa grande com senzala e da capela
são introduzidos nesta paisagem desordenada, aqueles traços novos de ordem e de
regularidade dentro de uma geometria da colonização agrária.

Embora o colonizador português não tivesse a mística da ordem


como o espanhol nem como o inglês ou o holandês – que neste
mesmo Nordeste seria o primeiro a cuidar de construir bairros e até
36

uma cidade inteira (o Recife) dentro de um plano geométrico de


urbanização -, foi ele que deu à paisagem desta parte da América
seus elementos característicos de ordem: blocos de construção que
representaram um método ou um sistema de conquista, de
economia, de colonização de domínio sobre a água e sobre as
matas. E não uma série de aventuras a esmo, cada qual a seu jeito.
(FREYRE, 2004, p. 59).

Quanto essa dualidade no planejamento e na forma como o português se


estabeleceu no território brasileiro, levantada por Freyre (2004) e Holanda (1995),
destaca-se que o colonizador visava a busca de recursos. A criação de vilas e
cidades foi proveniente da necessidade. Devido a isso, têm-se algumas cidades que
não dispõem de planejamento urbanístico. O seu surgimento foi resultado de
empreendimento econômico a exemplo das fazendas gado e da extração mineral.

O triangulo rural – engenho, casa, capela – se impôs à paisagem do


Nordeste de massapé, como a sua primeira nota de ordem européia.
A água dos rios e dos riachos da região se subordinou ao novo
sistema de relações entre o homem e a paisagem, embora
conservando-se cheia de curvas e até de vontades, sem se
militarizar em canais rígidos à holandesa (FREYRE, 2004, p. 59).

Conforme Holanda (1995, p. 97), a cidade começava sempre pela chamada


praça maior. Quando em costa de mar, essa ficaria no lugar de desembarque do
porto, em zona mediterrânea, ao centro da povoação. Destaca que:

[...] A forma da praça seria a de um quadrilátero, cuja largura


correspondesse a dois terço do comprimento, de modo que, em dias
de festa nela pudessem correr cavalos. [...] a praça servia de base
para o traçado das ruas: as quatro principais sairiam do centro de
cada face da praça. De cada ângulo sairiam mais duas, havendo o
cuidado de que os quatro ângulos olhassem para os quatro ventos.
Nos lugares frios, as ruas deveriam ser largas; estreitas nos lugares
quentes. No entanto, onde houvesse cavalos, o melhor seria que
fossem largas (HOLANDA, 1995, p. 97).

Holanda (1995) disserta que os empreendimentos portugueses parecem


tímidos e mal aparelhados para vencer. Os empreendimentos portugueses
caracterizavam-se pela exploração comercial. Não se quer dizer que essa vontade
criadora distinguisse sempre o esforço castelhano e nele as boas intenções tivessem
triunfado persistentemente sobre todos os esforços e prevalecido sobre a inércia dos
homens.

[...] Ao contrário da colonização portuguesa, que foi antes de tudo


litorânea e tropical, a castelhana parece fugir deliberadamente da
marinha, preferindo as terras do interior e os planaltos. Existem,
37

aliás, nas ordenanças para descobrimento e povoações,


recomendações explícitas nesse sentido [...] (HOLANDA, 1995, p.
97).

Holanda (1995) propõe que os portugueses criavam dificuldades à entrada de


terra adentro, receosos de que se povoasse a marinha. Afirma que outra medida
adotada para conter a povoação no litoral foi a autorização contida nas cartas de
doação das capitanias segundo a qual os donatários poderiam edificar junto dos
mares quantas ilhas interessa, porém, nas terras adentro somente seis léguas. Ao
falar do surgimento das cidades brasileiras, Ribeiro (2006, p. 177) afirma:

Nossa primeira cidade, de fato, foi a Bahia, já no primeiro século,


quando surgiram também Rio de Janeiro e João Pessoa. No
segundo século, surgem mais quatro: São Luis, Cabo Frio, Belém e
Olinda. No terceiro século, interioriza-se a vida urbana com São
Paulo; Mariana, em Minas; e Oeiras, no Piauí.

A exemplo de outros autores, Ribeiro (2006) evidencia a preocupação da


coroa portuguesa em proteger o litoral brasileiro. Diz que, em virtude desse ato, a
rede colonial das cidades e vilas tem seu principal centro de dominação em
Salvador, Rio de Janeiro, São Luis, Belém e Florianópolis.

Conforme Ribeiro (2006, p. 179) “suas principais edificações eram as igrejas,


o conventos e as fortalezas, que constituíam, também, seu principal atrativo. Por
ocasião das festas religiosas, a aristocracia rural deixava as suas terras para viver ali
um breve período de convívio urbano festivo”.

Ressalta-se que, estabelecendo uma relação de aventureiro, como afirma


Holanda (1995), a decisão de proteger o litoral foi sábia e eficaz. Ela fez com que o
território brasileiro mantivesse uma só unidade, rica em recursos naturais, além de
compartilhar de vários traços culturais a partir de uma miscigenação (Tab. 1).

Tabela 1 – Rede urbana do Brasil no final dos séculos XVI, XVII e XVIII9
Cidades 03 07 10
Vilas 14 51 60
População das Salvador 15.000 Salvador 30.000 Salvador - 40.00O
principais cidades e Olinda/Recife 5000 Recife 20.000 Recife - 25.000
vilas. São Paulo 1500 São Paulo 4000 Rio de Janeiro- 43.000
Rio de Janeiro 1000 Rio de Janeiro 3000 Ouro Preto - 30.000
São Luís - 20.000
São Paulo - 15.000
População do Brasil 60.000 300.000 3000000

9
Estimativa baseadas em cronistas contemporâneas, apud Darcy Ribeiro (2006).
38

Segundo Ribeiro (2006, p.180), “[...] aglomerados menores surgiram no


interior de cada área produtiva para exercer funções especiais, à medida que a
população aumentava e se concentrava”. As feiras de gado alcançaram grandes
expansões por todo mediterrâneo interior como Sorocaba, Campina Grande, Feira
de Santana. A produção de algodão era vendida nas feiras de Itapicuru-mirim,
Caxias, Oeiras, Crato, etc.

Os portugueses penetraram pelo litoral e implantaram as capitanias


hereditárias e fundaram às primeiras vilas. Prosperaram as capitanias de São
Vicente e Pernambuco que deram origem às primeiras cidades brasileiras.

Com a criação da Borda da campo de vila de santo André e depois


com a fundação de São Paulo, decaiu São Vicente e mesmo Santos
fez menores progressos do que seria de esperar a principio, assim
como continuaram sem morador algum as terras de beira-mar que
ficaram ao norte da Bertioga e ao Sul de Itanhaém; não trabalhavam
mais os engenhos da costa e, por falta de gênero que se
transportasse, cessou a navegação da capitania tanto para Angola
como para Portugal. . (HOLANDA, 1995 p. 101).

Na capitania de Pernambuco, tiveram melhor desenvolvimento a vila de


Olinda e o povoado de Recife. Em Olinda moravam os senhores de engenhos.
Conforme Silva (2003), Olinda foi fundada em 1537 pelo português Duarte Coelho e
teve seu rápido desenvolvimento pela cana-de-açúcar na região nordestina.

Apesar de números ataques estrangeiros nos séculos XVI e XVII,


que provocaram saques e destruição da cidade, subsiste um
conjunto das mais antigas casas e igrejas da América. A cidade
ainda conserva em suas colinas construções que testemunham os
períodos coloniais e imperiais do Brasil (SILVA, 2003, p.101).

Segundo Holanda (1995), no terceiro século de domínio português houve uma


maior migração para além das faixas litorâneas, com o descobrimento do ouro das
gerais. De acordo com Silva (2003), este foi o período marcado por uma forte
influência do estilo Barroco no Brasil. A descoberta e a exploração do ouro, no
período denominado Idade do Ouro, no século XVIII, foram fundadas: Vila Rica,
hoje Ouro Preto, Congonhas e Diamantina no estado de Minas Gerais.

A antiga Vila Rica, Fundada em 1738, teve seu ápice durante o


século XVIII e desenvolveu um estilo barroco peculiar em relação às
outras áreas do Brasil. Atualmente, é um testemunho do importante
ciclo histórico da mineração de ouro e de outros metais preciosos
(SILVA, 2003, p.100).
39

Holanda (1995) é bastante claro quando descreve as cidades brasileiras


diferentes da América espanhola. Afirma que, as brasileiras edificaram-se ao reflexo
das circunstâncias.

[...] Na própria Bahia, o maior centro urbano da colônia, um viajante


do século XVIII, notava que as coisas se achavam dispostas
segundo os caprichos dos moradores. Tudo ali era irregular, de modo
que a praça principal, onde se erguia o Palácio dos Vice-Reis,
parecia estar só por acaso no seu lugar. Ainda no primeiro século da
colonização, São Vicente e Santos, ficavam as casas em tal
desalinho, que o primeiro governador-geral do Brasil se queixava de
não poder murar as duas vilas, pois isso acarretaria grandes
trabalhos e muito dano aos moradores.

Silva (2003) destaca que Salvador foi um importante centro administrativo e


econômico dos mais notáveis do Brasil entre a metade do século XVI e a metade do
século XVIII. Era privilegiado pela posição estratégia do seu porto considerado um
dos mais importantes do mundo português e durante o Brasil colonial devido o ponto
convergente entre o comércio português e os países ultramarinos.

Holanda (1995) evidencia que os portugueses construíram no Brasil cidades


que não resultaram de planejamento preliminar. Construídas sem nenhum rigor, as
cidades cresceram ao abandono e ao desleixo.

Com a ocupação do interior do Brasil edificou-se a cidade de Goiás. Silva


(2003) diz que ela representa o testemunho do interior do país. Goiás destaca-se
pela sua concepção urbanística, um exemplo de colônia adaptada às
particularidades do meio ambiente com a utilização de materiais típicos da região
formando um conjunto único e notável.

Prado Junior (2006) afirma que ocupação do interior nordestino processou-se


com a pecuária que teve início na região da Bahia e Pernambuco, expandindo-se
para o norte. “A outra direção que toma a progressão das fazendas de gado depois
de atingir o São Francisco, é para o norte. O rio é transposto, e em fins do século
XVIII, começa a ser povoado o interior do estado do Piauí” (PRADO JUNIOR, 2006,
p. 66).

Os currais de gado expandiram-se para além do estado do Piauí, chegando


ao Maranhão e, para o leste, também chegaram ao Ceará. A expansão aconteceu
de forma irregular, no período em que as populações eram pouco numerosas. Esse
40

povoamento em pequenos estabelecimentos agropecuários, mesmo que com pouca


densidade demográfica foi o pontapé para a formação das primeiras vilas e cidades.

[...] Em meados do século XVII o sertão do nordeste alcança o


apogeu do seu desenvolvimento. O gado nele produzido abastece,
sem concorrência, todos os centros populosos do litoral desde do
Maranhão até a Bahia. O gado é conduzido através destas grandes
distancias em manadas de centenas de animais (PRADO JUNIOR,
2006, p. 68).

A realidade descrita por Prado Junior (2006) é bastante pertinente para o


território piauiense. Seu povoamento ocorreu a partir da exploração das terras que,
então, eram quase desconhecidas pelo governo de Portugal. A ocupação do espaço
e o surgimento das cidades aconteceram por influência de fatores econômicos.

1.5 O CONTEXTO DAS CIDADES PIAUIENSES

A ocupação do território piauiense pelo colonizador deu-se por meio de


doação de grandes lotes de terras a fazendeiros que estabeleceram currais de gado.
As fazendas conduziram a ocupação desse espaço de forma lenta. O gado, criado
de forma extensiva, tinha necessidade de pouca mão-de-obra e de pouco
investimento que sempre foi escasso por parte da Coroa portuguesa.

De acordo com Costa Filho (2002), o atual território do Piauí, antes do


processo de colonização, era habitado por sete nações nativas: Acroá, Tremembé,
Guesguê, Timbira, Jaicó, Tabajara e Pimenteiras. Destaca-se a última que se
estabelecia nas margens do rio Piauí, na atual microrregião de São Raimundo
Nonato-PI.

O povoamento do Piauí inicia-se com atraso e prossegue


vagarosamente. Não obedece quaisquer diretrizes, nem controle.
Faz-se, assim, por obra do tempo. Seu curso normal é esse. O
ambiente tumultuário da conquista e da ocupação da terra, agravado
pela insídia e agressividade do gentio, tira o sossego e a segurança
do “branco”. Nessas condições, o homem não leva consigo nem
mulher nem filhos [...] (BRANDÃO, 1995, p. 18).
41

De certa forma, a descrição de Brandão10 (1995) corrobora a afirmação de


Holanda (1995). Mesmo em tempos bem mais avançados, tem-se uma distribuição
da colônia caracterizada mais pela exploração do que pelo povoamento. Como as
primeiras vilas do país, as vilas piauienses nasceram de forma irregular e sem
planejamento.

Costa Filho (2002) propõe que os territórios ocupados pelos colonizadores


tiveram a água como elemento norteador do processo de fixação, vez que não havia
recursos técnicos para extraí-la, com eficiência, do subsolo. O povoado da Mocha,
primeiro do Piauí, teve como marco a fazenda de Cabrobó, instalada próximo aos
riachos da Mocha e da Pouca Vergonha. Em 1712, por Decreto Real, o lugarejo foi
elevado à condição de vila, com o mesmo nome (COSTA FILHO, 2002, p. 16).

Costa Filho (2002) lembra que, desde 1696, a povoação da Mocha era
freguesia de Nossa Senha da Vitória, subordinada ao governo eclesiástico de
Pernambuco. Evidência o autor que a existência de uma igreja era requisito
necessário para que o governo civil reconhecesse o lugarejo e incluísse-o na
hierarquia urbana.

Brandão (1995) afirma que o povoamento do Piauí fez-se sem apoio


financeiro de Portugal. Por essa e outras circunstância, ao término do século XVII a
população piauiense era de 605 habitantes, sendo a pecuária a única atividade da
Freguesia de Nossa Senhora da Vitória.

Mott (1985, p. 9) destaca que, em se tratando de uma região onde a unidade


de conquista e de povoamento foi à fazenda de gado, cristalizando toda a vida
sócio-econômica em derredor da pecuária intensiva, “o estudo sobre a história do
Piauí tem a necessidade de iniciar com os currais de criatório”.

Conforme Brandão (1995, p.1995), pouco a pouco aumentou os contingentes


da capitania piauiense, “[...] acontecimento auspicioso ocorre no século: o
surgimento das povoações”.

São as mais populosas e com melhores condições de


desenvolvimento: Valença, Marvão (hoje, cidade de Castelo do
Piauí), Campo Maior, São João da Parnaíba (hoje, cidade de

10
Wilson Andrade Brandão: Advogado, professor de Direito Civil da UFPI, ex-Deputado Estadual, Ex-
Secretario da Cultura do Governo do Estado do Piauí, membro da Academia Piauiense de Letras
e do Instituto Histórico Geográfico do Piauí, pesquisador, historiador, jurista e ensaísta, com livros
publicados em todas estas áreas.
42

Parnaíba), Jerumenha e Parnaguá. Pobres casas, muito modestas,


sem ruas, somente pedaços de ruas, sem outros logradouros
públicos, perdidos nos sertões imensuráveis, esses núcleos ignoram-
se completamente. Falta-lhe qualquer forma de intercâmbio. Nem
mesmo as regiões se comunicam [...] (BRANDÃO, 1995, p. 19).

Brandão (1995) discorre que, por alvará de 1718 cuja execução veio em
1758, João Pereira Caldas toma posse do governo da capitania do Piauí. O ato
solene realizou-se em 20 de setembro de 1759, na Vila da Mocha, posteriormente
denominada Oeiras. Logo após, em 19 de junho de 1761, por medida da Carta régia,
instalaram-se Vila de Jerumenha, Campo Maior, Malvão e São José da Parnaíba.

A Carta Regia de 19 de junho de 1761, que cria os primeiros espaços


urbanos piauienses, define as especificações sobre a sua estrutura
interna, determinando locais e tipos de construção. O setor
administrativo pode-se dizer, balizava todo o conjunto arquitetônico,
no qual se dava destaque aos prédios da administração em especial,
ao da Igreja Matriz, com seu amplo adro (NUNES & ABREU, 1995, p.
93).

Para Nunes e Abreu (1995)11 a igreja tinha um papel de referência desse


espaço como novo status de vila ou cidade. Ela foi um marco presente e destacado
na vila, até mesmo, mais do que o pelourinho que a legislação vigente da época
instituiu como símbolo municipal.

Na condição de capitania constituída com sua vida política já


instalada com sede em Oeiras, o Piauí prosseguiu no seu processo
de urbanização, lento, porém inexorável. Em toda a Capitania, de
norte a sul, surgiam vilas que se espalhavam por todo o sertão,
disseminando embora precariamente, as características da vida
urbana no Piauí. Novas vinte e sete vilas foram criadas no período
que abrange as ultimas décadas do século dezoito e até o final do
século dezenove, ampliando, assim a estrutura urbana piauiense
(NUNES e ABREU, 1995, p. 94).

Nunes e Abreu (1995), ao descreverem a estrutura espacial administrativa,


afirmam que, no Piauí, após sessenta anos da instalação de seu povoamento, o
espaço era essencialmente rural. Nele destacavam-se as fazendas de gado,
pontuadas por algumas vilas.

11
Célis Portela Nunes & Irlane Gonçalves de Abreu: a primeira cursou Licenciatura em História e
Geografia pela faculdade Católica de Filosofia do Piauí, professora de Teoria da História e de
História do Piauí, na UFPI, chefe do Departamento de Geografia e História do Piauí, pesquisador e
autora de diversos trabalhos sobre a história do Piauí. A última cursou de Licenciatura em
Geografia pela faculdade Católica de Filosofia do Piauí, Mestrado em Planejamento Urbano e
regional pela Universidade do Rio de Janeiro, Professora.
43

Oeiras era muito pobre. Tudo o que nela se consumia vinha de longe. Além
dela, as outras vilas também tinham dificuldade de prosperar (Fig. 3). Apenas a
povoação de Poti, as vilas de Campo Maior e de Parnaíba tinham uma incipiente
atividade industrial, a charqueada e o beneficiamento do couro porque se
localizavam em lugares estratégicos para escoamento de seus produtos pelo mar. O
êxito da vila de Poti, privilegiada pela agricultura e por outros fatores econômicos,
provocou uma mudança no setor administrativo do estado.

Figura 3 - Planta da cidade de Oeiras, de José Pedro César de Menezes, em 1809.


(Fonte: Arquivo histórico do Rio de Janeiro - RJ (apud: OLIVEIRA, 2007, p. 37).

Para Nunes e Abreu (1995), a transferência da capital para vila de Poti


permitiu-lhe exercer em plenitude de direito a função de uma cidade-sede de
província, promover um desenvolvimento e “mudar para progredir”.

O embate que culminou com a mudança da capital para Vila Nova do


Poti, nas terras da fazenda chapada do Corisco, foi eminentemente
político e envolveu as poderosas elites agrárias no norte piauiense,
representada, principalmente, pelos políticos de Campo Maior e
pelos notáveis de Oeiras (NUNES & ABREU, 1995, p. 95).
44

Com a transferência da capital, de Oeiras para Teresina, observou-se que


durante todo século XIX a base da economia piauiense era a pecuária que se
distribuía por todo o território. Ela alterou a economia e a demografia da região
centro-norte. Amarante, Floriano, Teresina, Parnaíba e União passaram da condição
de distrito para vila e, conseqüentemente, para cidade. Contudo os distritos e vilas
da região Sul-Sudeste do estado prosseguiram em passos lentos. Distantes da
capital e carentes de boas estradas, eles mantiveram, por muito tempo, relações
comerciais com cidades do norte da Bahia, como Remanso e Juazeiro.

2 A HISTÓRIA DE SÃO RAIMUNDO NONATO - PI

2.1 DO POVOAMENTO À VILA (1832-1880).

A colonização piauiense fez-se por meio da concessão de sesmarias e da


criação de currais de gado. Seu povoamento foi posterior ao de outras regiões, pois
os portugueses tinham uma preocupação maior em proteger o litoral brasileiro.

Segundo Odilon Nunes (1975), a partir das margens do Rio São Francisco
emergiram as primeiras bandeiras em busca de novas terras. Em 1658, o capitão
Mor Domingos Barbosa Calheiro veio, de São Paulo, com uma poderosa expedição.
Ao chegar à Bahia, partiu para Jacobina, com mais de duzentos homens. Sua
expedição foi completamente destruída pelos índios, retornando ao litoral. Para punir
os índios, em 1669, declarou-se uma guerra de extermínio a esses índios e
organizaram-se novas bandeiras punitivas.

Salienta-se que, desde 1666, os jesuítas, partidários da catequese para a


pacificação e expansão colonizadora, aldeavam os índios do sertão de Jacobina.
Neste período, Garcia D’Ávila, representante da Casa da Torre, entrou em atrito com
os jesuítas porque temia que os missionários viessem a pedir terras para suas
missões. Seus currais já haviam atingido o lado norte do Rio São Francisco. Em
meados do século XVII, tinham chegado aos vales dos rios Cabaça, Salitre e Pajeú,
como uma variante da expansão colonizadora (NUNES, 1975).
45

Sobre a presença dos bandeirantes na capitania de São José do Piauí,


ressalta Sebastião da Rocha Pita apud Nunes (1975)12:

[...] E quando se refere ao Piauí, acrescenta que Domingos Afonso


Sertão foi dos primeiros que penetrou no ano de 1671, e que nessa
ocasião encontrou com Domingos Jorge Velho que “chegara àquela
parte pouco tempo antes que o Capitão Domingos Afonso o
entrasse. O próprio Domingos Jorge Velho deixou documento que
confirma a data indicada pelo historiador, ou melhor, pelo cronista
seu contemporâneo (NUNES, 1975, p.49).

Este posicionamento corresponde a um processo de colonização proveniente


das margens do São Francisco direcionado do interior para litoral da capitania, pelo
Rio Gurguéia que deságua no Parnaíba.

[...] Na campanha, comandava Domingos Afonso Sertão um traço


dos combatentes da Casa da Torre. Nessa ocasião, talvez tinham
penetrado no Piauí, nos sertões do Parnaguá, os expedicionários dos
Ávila, pois os mananciais do Rio Grande que fluem para o rio que
viria a receber o nome de Gurguéia (NUNES, 1975, p. 51).

Conforme Nunes (1975), após o ano de 1676, o governador de Pernambuco


D. Pedro de Almeida concedeu as primeiras sesmarias em território piauiense a
Domingos Afonso Sertão, Júlio Afonso Serra, Francisco Dias D’Ávila e Bernardo
Perrura Congo. Em 1681 foi concedida nova sesmaria na região sul e na região do
Araripe. É provável que não se quisesse tocar nas terras dos vales do Rio Canindé e
do Rio Poti porque já pertenciam aos colonizadores baianos.

O povoamento do Piauí é um tema polêmico. A ausência de fontes escritas


deixa muitas perguntas a serem respondidas ou hipóteses a serem confirmadas. Pe.
Claudio Melo (1983) faz algumas abordagens a respeito do processo de
colonização. Ele propõe que a ocupação do território piauiense surgiu a partir de
porções distintas. Uma delas estaria ligada ao Maranhão e a outra ao Pernambuco e
à Bahia. Argumenta que é incorreto pensar uma colonização pelo Gurguéia subindo
o rio Parnaíba e Poti, tendo em vista a entrada bem cedo de homens brancos pelo
Maranhão na parte Norte.

[...] Ambas as porções surgiram para a história, uma como


continuidade dos sertões do São Francisco, outra como
prolongamento do Maranhão; uma estava sob jurisdição do estado
do Brasil, outra sob o estado do Maranhão, religiosamente uma

12
Nunes considera Sebastião da Rocha Pita um historiador contemporâneo do desbravamento do
Piauí.
46

pertencia à diocese de Pernambuco, outra à diocese do Maranhão


[...] (MELO, 1983, p. 21).

Pe. Claudio Melo (1983, p. 26) corrobora seu ponto de vista quando afirma:

[...] Os desbravadores do São Francisco, a quem a maioria ainda crê


dever a primazia na ocupação do Piauí, certamente que variam este
sertão quase de extremo a extremo. Em suma andanças, porém não
foram os primeiros desbravadores e tiveram missões diferentes no
sul e no norte do estado.

Pe. Claudio Melo (1983) descreve que a ocupação do norte, na serra da


Ibiapava, ocorreu de forma mais amistosa que a da região sul, onde guerreiros com
organização militar destroçaram os grupos indígenas.

Ana Stela de Negreiro Oliveira (2007) descreve o processo de colonização da


região Sudeste evidenciando que tal colonização deu-se de forma tardia, em apenas
dois séculos de contato entre colonizadores e povos indígenas. A violência extrema
de uma guerra contínua dispersou toda a população nativa. As terras foram
ocupadas para a implantação de uma economia baseada na criação de gado.

O Sudeste do Piauí encontrava-se na rota dos dois pontos de


irradiação da pecuária para o interior do Brasil, a corrente baiana e a
pernambucana, assim como dos caminhos do gado do sertão para
distribuição na Bahia e Minas Gerais (OLIVEIRA, 2007, p. 26).

São Raimundo Nonato e cidades vizinhas localizam-se na região que se


caracteriza pelo Bioma Caatinga, na fronteira geológica entre a planície pré-
cambriana da Depressão Periférica do São Francisco e a Bacia Sedimentar Piauí-
Maranhão.

Rica em biodiversidade muito cedo a região foi habitada por grupos nativos.
Os últimos grupos de gentios a habitá-la foram denominados de Pimenteiras. Estes
pertenciam aos Tapuias. Nesta região desenvolveram-se com habitações rústicas,
extraindo da natureza somente os recursos necessários para sua sobrevivência.

A exemplo de outras regiões, não tardou para os nativos serem surpreendidos


com ação dos colonizadores que traziam consigo um pensamento destrutivo. A
relação conflituosa entre os colonizadores e os nativos gerou perdas humanitárias
por parte dos nativos e desfalque no rebanho de gado dos fazendeiros.
47

“A perseguição feita aos gentios deve-se, segundo pensamos, ao fato de a


mesma haver dado cabo, entre outras, a cerca de trinta e cinco fazendas de gado
pertencentes ao ilustre Carlos César Burlamaque” (WILLIAM PALHA DIAS, 2003,
p.18).

Dias (2003) em sua obra “Caracol na História do Piauí” descreve a


colonização da região. Ela vê os bandeirantes como representantes do governo a
partir de uma visão romântica aonde os mesmos vão de protagonistas a heróis, nas
“bravas bandeiras” pelo Piauí. De acordo com a autora, o Coronel José Dias Soares
configura-se como moço forte, bravo, inteligente e simpático.

As primeiras bandeiras dirigiram-se em direção ao Baixo Médio Piauí na


chapada de Bonsucesso, depois Formigas, atual Caracol. Conforme Dias (2003), em
1806, o governador recebeu da Capitania do Maranhão o aval para empreender as
primeiras guerras contra os nativos. Elas caracterizaram-se como conflito extremo.
Tinham uma missão de extermínio por parte dos colonizadores para com os nativos.
Informa Dias (2003, p.20) que:

[...] Ao se aproximar, a tropa da fortificação foi interceptada pela


agressividade dos Tapuias que, aguerridamente procuravam
defender a rústica cidadela. O comandante em conseqüência deu
ordem para a sorte final. Travou-se profunda luta somente cessada o
fogo após algumas horas. Determinou-se imediato ingresso no
interior da faxina e verificou-se ter o inimigo em quase sua totalidade
abandonando o local. Feito o balanço, tomou-se conhecimento da
morte de dez índios e de doze aprisionados, sem que dos soldados
ficasse um ferido [...].

Na descrição do fatídico extermínio, William Palha Dias (2001, p. 41), em


outra obra, São Raimundo Nonato Distrito - Freguesia a Vila, continua a descrever:

Na nação indígena morreram doze Tapuias e aprisionaram-se outros


doze, todos de guerra, e pegaram ainda nove índias adultas e três
curumins, dos quais dois morreram, imediatamente, enfezados.
Cessada a peleja, encontraram-se mais outras rancheiras, onde
fizeram a apreensão dos seguintes: oitenta arcos, trezentas e seis
fechas, quarenta redes, vinte e quatro machados de pedras, trinta e
dois cães, seis papagaios, dois periquitos, vários instrumentos de
caça e utensílios domésticos.

Os resultados do conflito demonstram a fragilidade dos nativos nos combates.


Mostram, também, que o objetivo dos bandeirantes era conquistar novas terras,
mesmo a custo de sangue. Para o nativo a opção muitas vezes foi afastar-se dos
48

domínios do colonizador a procura de lugares longe de combate. Relatos de fontes


orais demonstram que os conflitos entre os índios e os colonizados não se limitou a
um único momento. Ao longo da primeira metade do século XIX, houve situações de
confrontos e apreensões de índios Pimenteiras. Soares (2009) relata:

O primeiro morador foi Manuel Ribeiro Soares, aqui era situado de


índios ai eles brigaram e escorraçaram eles. Ficou sem morar
ninguém o primeiro morador foi Manuel Ribeiro Soares, História que
meu pai conta (...). Primeiramente foi ele, os outros, eu não sei,
foram chegando, foram chegando, aí... Mas o primeiro foi ele. Hei!
Quando ele chegou não sei se havia filho. Meu pai era neto. Quando
os outros moradores chegaram já tava desocupado. Nesse tempo
chamavam Tamanduá. E trabalhava de roça. Quando eu conheci,
meus avós trabalhavam de roça e criavam gado que era adquirido
com meus avós e assim vai (...) a primeira história era que aqui
morava só índios. Pegaram a brigar com eles e começaram. Meu
bisavô mesmo pegou quatro índios para amansar. Aí ficou
desocupado e meu bisavô veio morar13.

O Senhor Noé Ribeiro Soares, afirma que a família Ribeiro teve papel
importante na povoação na região sul do atual estado do Piauí. Refere-se às
bandeiras e ao processo de pacificação desta área, mais precisamente da fazenda
Tamanduá, localizada na rota dos tropeiros entre Caracol e São Raimundo Nonato,
nas margens do rio Piauí. Relata que o processo de contato entre índios e
colonizadores não foi resultado de um único conflito. Diz que a relação mais comum
era de conflito, mas havia nativos dispersos que mantinham contato amigável com
os fazendeiros. A mesma história repetia-se em várias outras fazendas que viraram
núcleos de povoação (Tab. 2).

Tabela 2 – Fazendas da região de São Raimundo Nonato e entorno, no Século XIX14

Fazenda Proprietários Data


Jenipapo Manoel Pereira dos Santos 1844
Tamanduá Manoel Ribeiro Soares 1845
Onça, Ponta da Serra, Cana
Brava, Pedregulho e Bom Manoel do Nascimento
Jardim 1851
Jenipapo, São Lourenço e
Ângela Liberato Café
Riacho Seco 1855
Fonte: Acervo FUMDHAM, com modificação pelo o autor

13
Noé Ribeiro Soares nascido em 1910, entrevista: Fevereiro 2009 Anísio de Abreu-PI.
14
Fonte: Acervo FUMDHAM. São Raimundo Nonato - PI. Inventários. Cartório do 1º Ofício. Ano1894-
1898.
49

Desde o início, a vila de São Raimundo Nonato foi povoada por famílias
tradicionais, de prestígio político no estado. O processo de colonização deu-se com
os Dias, nas bandeiras de Manuel Ribeiro Soares, sob o comando de Coronel Dias
Soares que, como os Ribeiros, instalaram-se nas proximidades do Rio Piauí.

Ao descrever a história da sua família Manoel Bonfim Dias Ribeiro, (1996),


disserta que, da Ilha de Madeira, muitos portugueses da família Ribeiro emigraram
para o Brasil, sempre pela rota marítima, único meio de comunicação da época. Os
Ribeiros constituíam uma família imensa que, desde os primeiros anos de
colonização, ajudou a povoar o Brasil. “Um pequeno ramo se adentrou nas terras do
Piauí, pelo delta do rio Parnaíba, único meio de penetração no Brasil colônia,
provavelmente na segunda metade do século XVIII” (RIBEIRO, 1996, p. 107. De
acordo com fontes orais, três irmãos da família Ribeiro resolveram migrar para o sul
do estado nos primórdios do século XIX. Nesta migração fizeram longa cavalgada
até São Raimundo Nonato, distante 85 léguas do Alto Longá. A rota deve ter sido via
Regeneração onde viviam outros parentes, alguns dos quais se incorporaram,
talvez, na viagem.

[...] Os irmãos Ribeiro vieram para o Sul do Piauí, em busca de terras


boas para a criação de gado, atividade predominante em todo o
Estado. Fixaram-se em lugares diferentes, mas relativamente
próximos. Queimadas, perto da divisa de São Lourenço. Queimadas
pertencem hoje, ao município de Dirceu Arco Verde, Antigo Bom
Jardim. Jurema, nas nascentes do rio Piauí, próximo a Caracol, hoje
cidade com o mesmo nome. Macacos, lugarejo próximo a São
Raimundo Nonato (RIBEIRO, 1996, p. 108).

A família Ribeiro foi um caso a parte. De origem fidalga, teve êxito em contar
a sua participação na história do povoamento desta região. Outro grupo familiar que
escreveu sua história é o dos Dias Soares que chega, às vezes, a confundir-se com
a história local. Sobre as famílias Macedo, Negreiros e Ferreira, com destaque
político na região, há pouca referência histórica (OLIVEIRA, 2009).

As três primeiras décadas do século XIX foram de apropriação,


desbravamento e conhecimento da região Sudeste da Capitania de São José do
Piauí. Ressalta-se, nesse período, a ocorrência de intensos combates aos índios
Pimenteiras que abrigavam esta região. Os Pimenteiras eram grupos de grande
locomoção tendo, os mesmos, assimilado costumes de outros grupos. Segundo
Oliveira (2007, p. 64):
50

Em quase todos os mapas do Piauí nos séculos XVIII e XIX, os


Pimenteiras aparecem localizados entre os rios Piauí e Gurguéia, o
que levou esta pesquisadora a trabalhar com a hipótese de que o
grupo foi formado no Sudeste do Piauí, não se constituindo apenas
de uma só etnia. Por meio da documentação pesquisada, há a
possibilidade de existirem duas etnias, Coripó e Prassaniú, ou mais
grupos que fugiram das frentes pastoris que atuavam no século XVII
no São Francisco. Aqueles grupos podem ter se juntado, dando
origem a uma nova etnia, que se formou no período pós-contato.

Na região Sudeste do Piauí, aconteceram intensos conflitos sob o comando


do Coronel José Dias Soares. Este intrépido comandante interessou-se em habitar a
região. Segundo Dias (2003), para isso, teve de organizar, às próprias custas, uma
pequena bandeira agregando a ela algumas pessoas de sua família. A partir daí
começou-se a povoar a região do Baixo Médio Piauí nas cercanias da lagoa
chamada de Bonsucesso cujo nome não agradava o comandante, passando a
chamá-la de Lagoa do Caracol.

O Decreto Regencial em 06 de julho de 1832 criou a Freguesia Eclesiástica,


de São Raimundo Nonato. Conforme Dias (2001), o Distrito Freguesia que se
instalou no lugar confusões não teve bom desempenho. Transferiu-se, por isso, em
1836, para um local com melhores condições para o seu desenvolvimento (Fig. 4).

A escolha recaiu no lugar Jenipapo, na confluência do Baixão Vereda


com a margem esquerda do rio Piauí. A escassez de água potável,
por certo, concorreu para que fosse escolhido aquele local tão sujeito
a constantes inundações, porém, mais fácil seria, então escapar-se a
uma repentina inundação que aos rigores de uma estiagem cuja
duração não se poderia prever (Dias, 2001, p. 32).

Ressalta Dias (2001) que a transferência que atendeu ao disposto na Lei


Provincial Nº 35, de agosto de 1836, possibilitou rápido florescimento da povoação.
Logo, o Rio Piauí começou a desempenhar um papel fundamental na gênese da
urbanização deste novo povoado, possibilitando o tráfego de tropeiros e o uso de
suas águas para fins domésticos, pecuários e agrícolas.

Conforme Ferreira (1959) o encontro do Baixão Vereda com rio Piauí, forma
um baixio de boas proporções, com excelentes terras para lavoura e pastagem e
abundantes lençóis de água potável subterrânea. Muito próximo destas águas
estavam as demais construções. Não se levou em conta que o solo muito úmido,
cercado de águas estagnadas durante o inverno, estavam sujeitos a inundações nas
grandes enchentes do rio Piauí.
51

Figura 4 - Região Sudeste do Piauí (Fonte: Oliveira, 2009, com destaque do autor)

Enquanto Distrito – Freguesia, São Raimundo Nonato não foi objeto de


nenhum recenseamento. Os primeiros trabalhos de pesquisa, sem dados
quantitativos, surgiram somente na primeira década do século XX. Na sua
colonização sobrepujou a presença de brancos em relação aos indígenas e aos
52

negros. Os negros fizeram-se presentes na instalação das fazendas de gado da


Capitania São José do Piauí.

Por esse tempo a escassa população era tão dispersa que só a


muito custo conseguiu-se formar a nova comuna. Os habitantes se
compunham de poucos brancos alguns mamelucos, negros, índios
aldeados e um que outro mulato desgarrado de outras freguesias
cujos limites confundiam-se com aqueles gerais (DIAS, 2001, p. 45).

Ressalta-se que o Distrito Eclesiástico de São Raimundo Nonato integrava a


região Alta do Piauí e pertencia aos domínios dos municípios de Jaicós e
Jerumenha. Sua ocupação fez-se sem investimento financeiro do governo. Muitas
vezes a sua história relaciona-se com a história destes municípios. O rio Piauí
favoreceu a rota de tropas nesta região.

Na condição de Distrito – Freguesia, São Raimundo Nonato floresceu, na


região Sudeste do Piauí. Por meio da Lei provincial número 257, de 12 de agosto de
1850, passou à categoria de Vila, conservando o mesmo nome de São Raimundo
Nonato, com território que compreende hoje muitos outros municípios dentre os
quais destacam-se Canto do Buriti, Caracol e São João do Piauí.

De acordo com Ferreira (1959), São Raimundo Nonato teve a instalação da


sua nova comuna, em 04 de março de 1851, quando Inácio Francisco da Mota era
governador da província. Seu distrito judiciário era subordinado a Oeiras até 1859 e,
posteriormente, a Jaicós. Somente no dia 12 de agosto de 1850, foi elevado à
categoria de comarca, por efeito da Lei Provincial 468. Segundo Ferreira (1959), em
17 de março de 1872, seu território desmembrou-se de toda a zona que corresponde
aos municípios de São João e Canto do Buriti.

Poucos anos depois uma Resolução provincial aumentou o território do


município de São João do Piauí, recortando, ao nascente de São Raimundo Nonato
uma boa extensão de terra. Até 1874, o distrito judiciário de São João do Piauí
pertencia a São Raimundo Nonato. Contudo, a parir desse ano passou a ser
comarca, desligando-se judicialmente deste município. São João do Piauí voltou a
pertencer a São Raimundo Nonato.

Em 1896, porém, em virtude de dissensões políticas, uma lei


estadual extinguiu-lhe os foros de vila, comarca e termo, voltando
novamente a incorporar-se ao município de São Raimundo Nonato,
que readquiriu os seus antigos limites de 1871. Todavia, no ano
seguinte, acalmadas [sic] as agitações em São João do Piauí, foi-lhe
53

restabelecida a autonomia administrativa, com os mesmos limites


anteriores, permanecendo, porém, em São Raimundo Nonato, o seu
termo judiciário (FERREIRA, 1959, p. 615).

O advento do Distrito - Freguesia de São Raimundo Nonato não foi diferente


de outras povoações do Piauí que surgiram na região do Jenipapo. Teve-se a igreja,
construída em 1876, como marca o símbolo da comunidade (Fig. 5). Ressalta–se
que tratando de tempos remotos, a vila apresentava crescimento lento, com
dificuldades no sistema de comunicação e de transporte.

Notícias eclesiásticas dão como párocos residentes os seguintes: Pe.


Henrique José Cavalcante, que foi substituído pelo Pe. Sebastião
Ribeiros Lima (1878); Pe. Pedro Álvares de Araujo (1899), segundo
do cônego Marcos Francisco de Carvalho, que ficou com visitador
até 1922, quando da presença mercedária, [sic] até o presente, como
se depreende a resenha que ao texto se insere (DIAS, 2001, p. 49).

Figura 5 - Igreja matriz de São Raimundo Nonato (Fonte: Acervo da FUMDHAM)

As ordens religiosas constituíram-se como referências na formação das vilas


e das cidades piauienses. As igrejas encontravam-se no centro das vilas e das
cidades em construção. Elas tinham maior representatividade do que os prédios de
domínio do governo.
54

São Raimundo Nonato, uma vila distante 517 km de Teresina, capital do


Estado, tinha uma economia agrária, baseada na lavoura de milho, feijão e arroz e
na atividade da pecuária. Não participava ativamente das decisões do governo, que
vivia o período imperial. A ausência efetiva do domínio público fazia com que os
aparelhos religiosos predominassem. Conforme Ferreira (1959), o templo que servia
de igreja matriz, tornava-se um dos melhores do Sul do estado. Havia um cemitério
de regulares proporções, a que se deu o nome de Cemitério de Nossa Senhora de
Lourdes.

[...] alinharam-se ruas, abriram um praça, construíram-se casas


elegantes e foi criada uma feira semanal, aos sábados onde os
lavradores expunham os seus produtos à venda. Sob direção do
infatigável progressista cônego Sebastião Ribeiro Lima, Vigário da
freguesia foi fundado um colégio no qual alguns moços se
preparavam em português, latim e aritmética [...] (FERREIRA, 1959,
p. 116).

Na segunda metade do século XIX, a vila de São Raimundo Nonato ganhou


as primeiras formas urbanísticas. Escolas, praças e belas casas, pontuavam o
desenho urbanístico da vila. Todavia, as secas decenais eram algo bem presente
nas lutas do sertanejo. Segundo Ferreira (1959), o crescimento da vila era lento. A
população desconhecia os meios de guardar e conservar os cereais e a farinha
excedentes. Isso contribuía para que fosse apanhada de surpresa, quando lhe
visitava o flagelo do clima seco. A alternativa era migrar para as regiões de Bom
Jesus e Gilbués.

Na vila de São Raimundo Nonato – PI, o povoamento aconteceu a partir das


fazendas de gado. Houve grandes conflitos com grupos indígenas, resultando em
aprisionamentos de domesticação. O trabalho escravo teve, também, um papel
importante na consolidação do povoamento da vila.

De acordo com Joseane F. Paes Landim (2010, p. 35), houve muitas


fazendas agropecuárias em São Raimundo Nonato. Citam-se: São Victor, Tigre,
Queimadas, Várzea Grande, Água Verde, Massapê, Caldeirão, São Lourenço e
Curral Novo, entre outras.

Nas atividades de revisão bibliográfica, constatou-se completa ausência de


publicações que contemplassem a escravidão na vila de São Raimundo Nonato.
Este tema é sugestivo para o desenvolvimento de novas pesquisas. Na pesquisa de
55

campo, constatou-se a existência de documentos que demonstram parte desta


história silenciada. Encontrou-se um trecho da carta de libertação de uma escrava,
no ano de 1884:

Registro de carta de libertação da escrava Bonifácia, como se vê.


Nós, abaixo, asseguramos marido e mulher como lemos liberdade
como represente livre tivesse nascido nossa escrava Bonifácia, a
qual honremos por comprar a Senhora Maria José pela quantia de
duzentos mil reis que ao passar desta recebemos sem que a nossa
herdeira função nisto o menor obstáculo, para que afetuássemos [sic]
ao testamento abaixo assinado. Vila de São Raimundo Nonato sete
de maio de mil oitocentos e oitenta e quatro. Agostinha José da Silva
a rogo de Ana Josefa Caroline do Raimundo da Costa Martins se
testemunham João Ribeiro Soares, Vitorino Ferreira Braga. Nada
mais se tinha em dita carta de libertação que vem oficialmente para
que se registre em reporto próprios originais reporto e dou fé. Oito de
maio de oitocentos e oitenta e quatro, eu João Raimundo Martins,
tabelião de notas.15

No livro de registro de compra e venda de bens e imóveis, de 1884,


encontram-se outros documentos referentes à libertação de escravos. Mesmo
libertos, os ex-escravos continuaram convivendo com realidades difíceis. Muitos
continuaram dedicando-se à agricultura, à pecuária e, posteriormente, à extração da
maniçoba. Destaca-se que a extração de látex da maniçoba proporcionou a
ascensão para pequenos grupos. Para a maioria, porém, as condições em que
trabalhavam eram precárias (OLIVEIRA (2007).

Paes Landim (2010), em seu trabalho de pesquisa “As representações da


família no sertão do Piauí (1836-1888)” interpreta algumas faces da história que,
muitas vezes, não é narrada. Segundo a autora, esta é a história dos vencidos.
Durante muito tempo, não houve interesse de torná-la legítima. Para tentar entender
como viviam as famílias escravas, a pesquisadora consultou livros de batismo.
Constatou que a grande maioria dos escravos batizados era registrada como filho
natural sem registro do pai.

Apesar da grande quantidade de batizados de filhos naturais, não


podemos interpretar que a escrava não possuía um parceiro fixo,
pois, para a igreja o marido só é reconhecido se a união for realizada
sob a solenidade de matrimônio. Caso contrário a união era
reconhecida, e nos casos de casamentos no período de 1836 a 1882
(até onde constam as fichas) dos 1738 matrimônios celebrados na

15
Cartório municipal de São Raimundo Nonato - Piauí. Livro de compras e vendas de bens e imóveis
do Cartório 1º Ofício. 1884-1913.
56

região apenas aproximadamente 3, 45 % (60) são de cativos (PAES


LANDIM, 2010, p. 36).

Apresentando dados significativos para a compreensão da participação dos


escravos no distrito-freguesia vila de São Raimundo Nonato, a autora destaca que a
quantidade de escravos nas fazendas era pequena, em relação aos grandes plantéis
do sul do país. Conforme Paes Landim (2010), pelas fichas de batizados foram
encontrados 112 proprietários de escravos. A maioria possuía apenas dois. Outros
possuíam de dois a cinco escravos. Apenas o Comendador Piaulino possuía 12
escravos.

Acredita-se que os escravos tiveram participação significativa na construção


vila de São Raimundo Nonato. Infelizmente, de acordo com Paes Landim (2010), o
silêncio muitas vezes oculta essa história.

2.2 SÃO RAIMUNDO NONATO – PI, NO FINAL DO SÉCULO XIX (1880-1900)

O desenvolvimento do Estado do Piauí relaciona-se intrinsecamente com a


formação econômica, social e política dos municípios. Acontecimentos históricos
justificam, porém, a formação das vilas piauienses que emergiram nas proximidades
dos rios Parnaíba, Gurgueia, Canindé e Piauí.

A transferência da capital de Oeiras para Teresina, em 1851, pelo presidente


provincial José Antônio Saraiva, foi benéfica para as vilas da região Norte da
província porque as tornou mais acessíveis. Todavia, as vilas das regiões Sul e
Sudeste ficaram mais distantes da capital, ampliando os problemas econômicos, de
comunicação, de saúde, de transporte e de educação.

Como resultado, algumas vilas das regiões Sul e Sudeste desenvolveram


forte comércio com cidades da Bahia e do Pernambuco. Ferreira (1959, p. 116) faz
referencia a este comércio:

Com a criação da vila de São Gonçalo de Amarante, a 70 léguas de


distancia, e o desenvolvimento comercial de Feira de Santana, no
estado da Bahia, distante de São Raimundo Nonato cerca de 150
léguas, convergiu para esse ponto de venda de bois, requeijão e
manteiga de nata para Amarante e os mencionados produtos e mais
bois e cavalos para Feira de Santana, cujas viagens eram
verdadeiras caravanas.
57

Além da pecuária a produção de algodão também se desenhou como um


importante fator na economia do Estado. Conforme Santana (2001), em 1846, a
província produzia bastante algodão, exportando-o. Teresina, União e São Gonçalo
do Amarante eram os maiores produtores.

Para Santana (2001), calculava-se que a exportação anual era de dez mil
arrobas. Bastava, porém, uma queda na colheita ou uma alteração no mercado
externo para que todo o comércio sofresse duras consequências. Assim, conforme
relatório do presidente da província, de 07 de setembro de 1886, em virtude da má
colheita do algodão neste ano, casas comerciais faliram.

Conforme Teresinha Queiroz (1998), até o fim do século XIX, a base da


economia piauiense foi a pecuária, atividade distribuída por todo estado, mas com
leve concentração no centro-sudeste. A partir do início do século XX, com a
exploração da maniçoba, houve um período de evidência da região sul - sudeste,
mas, ao longo do tempo, a tendência mais forte foi o adensamento da população no
Centro-Norte do estado. Este crescimento populacional na parte Norte deveu-se a
fatores econômicos e a fortes grupos políticos que tomaram importantes decisões,
possibilitando o seu desenvolvimento.

A proclamação da República em 1889 atuou positivamente porque os estados


e os municípios tiveram mais autonomia e uma melhor organização política. Como
efeito de tal ato, o primeiro governador Major Gregório Taumaturgo de Azevedo foi
nomeado pelo governo central. Em 15 de setembro de 1890 realizaram-se Eleições
Gerais para a Constituinte16 (Tab. 3).

Tabela 3 – Eleições gerais para a Constituinte (1891)

Para a Câmara Para o Senado Anos


Joaquim Negreiros Paranaguá Joaquim Cruz 9
Anfrísio Fialho [sic] Teodoro Alves Pacheco 6
Nelson de V. e Almeida Elizeu Martins 3
Firmino Pires Ferreira
Fonte: Nascimento (1988, p.17)

Ao longo do Piauí República grupos familiares tradicionais, a exemplo dos


Nogueiras, dos Martins, dos Ferreiras e outros estiveram presentes na política

16
NASCIMENTO, Francisco Alcides do. Cronologia do Piauí Republicano1889-1930. Teresina,
Fundação Cepro, 1988.
58

estadual, criando oligarquias. Ainda em 1890, de relevância na política Estadual,


houve eleição para governador do estado sendo eleitos Dr. Gabriel Luis Ferreira e
João da Cruz e Santos.

Gabriel Luís Ferreira foi o primeiro governo constitucional do Piauí. Foi eleito
pela Assembleia Estadual Constituinte. Dentre os fatos importantes destacaram-se a
instalação dos municípios de Gibués, Bertolínia, Floriano, Luzilândia, e Buriti dos
Lopes, além da criação do tribunal de Justiça do Piauí.

No que diz respeito à educação no Estado, Queiroz (1998, p. 77) pontua que
o analfabetismo era um traço de continuidade na história do Brasil. Afirma que o fim
do século XIX e o início do século XX tinham características similares.

Nas duas últimas décadas do século XIX, a instrução particular


ganha impulso no Piauí. Durante a década de 1880 aparecem vários
institutos de instrução primária e secundaria e cresce o número de
preparatório que vão dirigir-se às escolas superiores do império. O
Liceu e a Escola Normal (1882-1888) são os principais
estabelecimentos de ensino público. As escolas particulares,
algumas funcionando como internatos para alunos do interior,
supriam parte da carência deixada pelo ensino público.

Implantou-se no Piauí um regime político coronelista que possibilitou grupos


familiares, revezarem-se nos cargos públicos, criando assim uma oligarquia. No final
do século XIX, os municípios de maior influência política encontravam-se no Centro-
Norte, onde prosperaram Parnaíba, Campo Maior, União e a capital Teresina.

3 SÃO RAIMUNDO NONATO, UM PROJETO DE EMANCIPAÇÃO POLÍTICA

3.1 DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO NO INÍCIO DO SÉCULO XX

O historiador é sempre de um tempo, aquele em que o


acaso o fez nascer e do qual ele abraça, às vezes
sem saber, as curiosidades, as inclinações, os
pressupostos, em suma, a “ideologia dominante”, e
mesmo quando se opõe, ele ainda se determina por
referência aos postulados de sua época.
René Remond
59

O final do século XIX e o limiar do século XX marcaram-se por profundas


mudanças no econômico e no social em São Raimundo Nonato, vila que nasceu de
uma fazenda de gado. A dificuldade em seu crescimento acentuou-se pelas baixas
na produção da pecuária que já não tinha a pujança que caracterizou o seu início.
Isto fez com que a população de São Raimundo Nonato visse no extrativismo da
maniçoba a possibilidade de impulsionar a economia local.

Não foi somente São Raimundo Nonato que se beneficiou com a extração da
borracha da maniçoba, mas toda a região Sudeste do estado do Piauí. O boom da
borracha da maniçoba, favorecido por agentes externos, supriu a necessidade do
desenvolvimento da indústria automobilística e elétrica.

Com relação à exploração da maniçoba no Sudeste do Piauí, a pesquisa de


Ana Stela Negreiros Oliveira (2001) “Catingueiros da borracha vida de maniçobeiros
no sudeste do Piauí”, constitui uma importante referência no preenchimento do
conhecimento histórico. Neste estudo ela busca entender as modificações na
formação social e no processo de emancipação política de São Raimundo Nonato
(Fig. 6). Afirma que algumas cidades no sertão do Piauí tiveram seu
desenvolvimento relacionado à economia extrativista da maniçoba. Destaca os
municípios de São Raimundo Nonato, São João do Piauí, Caracol e Canto do Buriti.
Ressalta-se que a então Vila de São Raimundo Nonato disponibilizava de uma vasta
extensão territorial. Estavam sob sua jurisdição Caracol e vários outros municípios
que se limitavam com a vila de São João do Piauí e Canto do Buriti. Todavia, a
produção econômica da borracha da maniçoba não impulsionou o crescimento
somente de São Raimundo Nonato. Floresceram outras regiões do seu entorno que
posteriormente vieram a ser elevadas à condição de cidade.

Conforme Ferreira (1959, p. 118), abriram-se grandes roçados para o plantio


da maniçoba. A vila e o município sentiram o influxo da prosperidade.

Na vila as construções de boas e elegantes moradias sucediam-se a


fazenda da Serra, duas léguas distante adquirida por sindicatos
norte-americanos, convergiam numa vila operária com agradáveis
vividas em quadriláteros formados uma praça no centro Ferreira.
60

Figura 6 - Atuais limites territoriais de São Raimundo Nonato – PI (Fonte: Filho Oliveira
(2007 p. 108).
61

Em entrevista, Gaspar Dias Ferreira faz referências aos seus familiares que
tiveram êxito no cultivo e no comércio da borracha da maniçoba.

A maniçoba é uma árvore que se tem muito aqui nessas chapadas.


Ela dá um líquido com uma liga, que a gente chamava de borracha
de maniçoba e não é tão diferente da seringueira. Mas tem muita
liga. Então, no início do século, ela deu muito dinheiro. Meu avô
plantou uma roça muito grande. Então a situação econômica dele
passou a ser muito boa já em 1925. Então deu muito dinheiro
naquela época17.

De acordo com Oliveira (apud Emperaire, 2001, p. 246) a população da


cidade de São Raimundo Nonato teve um crescente aumento acentuado em 30
anos, passando de 5.997 habitantes em 1890 para 19.851 em 1920. Como resultado
desse crescimento tem-se a crescente imigração de outros estados principalmente
Pernambuco, Ceará, Bahia e Alagoas. Para Oliveira (2001), de Pernambuco partiu o
maior contingente de trabalhadores que chegaram à região Sudeste do Piauí.

Neste contexto destaca-se que o ambiente contribuiu de forma positiva para a


extração e o cultivo da maniçoba que pertence ao gênero botânico Manihot glaziowii,
da família euforbiácea. Esta árvore é resistente à seca por meio de sua reserva de
água nas raízes e no caule. Produz látex durante todo o ano, porém os maniçobeiros
preferiam trabalhar logo após o inverno, isto é, de março a setembro. Nas épocas de
seca, quando as folhas e as flores caem, sua produção é menor (Oliveira, 2001 p.
22). A exploração da maniçoba não era uma economia sustentável. Sua exploração
ocorreu de forma impactante ao meio ambiente. A mesma quase foi extinta.

Teresinha Queiroz (2006, p. 33) faz uma interessante leitura sobre esta
atividade econômica no estado:

A exploração da maniçoba para a produção láctea tornou-se


economicamente viável com alta nos preços internacionais da
borracha na segunda metade do século XIX, e início do século XX,
impulsionado pela demanda de países industrializados, sobretudo a
Inglaterra, constituía o principal comprador e distribuidor dessa
matéria-prima.

A produção da maniçoba teve início no estado do Ceará, na segunda metade


do século XIX, contudo na última década do século XIX, com a alta dos preços no
mercado internacional viabilizou-se a exploração em outras áreas do Nordeste.
Conforme Queiroz (2006, p. 37):
17
Entrevista: Gaspar Dias Ferreira, 78 anos.
62

Na fase inicial da exploração no Nordeste, foi predominante o esforço


dos particulares interessados em nova fonte de renda. A ignorância
dos exploradores, o teor dos artigos da impressa periódica e as
pretensões fiscais dos governos criaram expectativa
exageradamente otimista para a exploração que dava os primeiros
passos.

Como resultado deste otimismo teve-se uma leva migratória para a região
semi-árida. Logo os municípios da região Sudeste do Piauí tiveram um perceptível
aumento populacional. Os bons preços influenciaram a atividade do plantio
constituindo uma melhor organização das fazendas. Segundo Queiroz (2006), a
lucratividade do artigo da maniçoba contribuiu para o cultivo das espécies
Piauhyenses, Dichotoma e Heptaphylla. O plantio de espécies contribuiu para
alargar as áreas de ocorrência natural, uma vez que houve migração de sementes.

De acordo com Oliveira (2001, p.73), o látex da maniçoba do Sudeste do


Piauí era comercializado em Juazeiro – BA e Petrolina – PE, a 300 quilômetros da
atual cidade de São Raimundo Nonato.

A maniçoba despontou como um importante fator na economia piauiense. Em


conseqüência, houve a necessidade de uma ação fiscal. Logo, conforme Queiroz,
(2006), em 1899, o governo tomou medidas, objetivando maior controle e
fiscalização das receitas provenientes de sua exportação. De acordo com Queiroz,
(2006) o decreto nº 141 de 17 de agosto 1899, criou agências de arrecadação nos
municípios de São Raimundo Nonato e São João do Piauí municípios (Tab. 4).

Tabela 4 – Agências arrecadadoras de dinheiro no Sudeste do Piauí

Povoado Municípios
Cacimba São Raimundo Nonato
Caracol São Raimundo Nonato
Tamanduá São Raimundo Nonato
Guaribas São João do Piauí
Fonte: Queiroz (2001, p. 158)

As fazendas no Sudeste do Piauí apresentavam graves problemas


estruturais. As estradas por onde os maniçobeiros transitavam na extração do
produto eram pequenos carreiros de péssimas qualidades (OLIVEIRA, 2001).

Noé Ribeiro Soares relata a importância que a maniçoba teve no Sudeste do


Estado, provocando uma mudança contínua no meio social com a vinda de
migrantes. Ressalta, também, as condições de transporte:
63

Eu era menino, o movimento daqui era só maniçoba. Vieram uns


homens de Pernambuco botaram barracão em alguns lugares aqui
para comprar maniçoba. Exportavam para Remanso de cavalo,
jumento, burro. Não tinha carro, não tinha rodagem neste tempo. Lá
o vapor recebia e tocava com ela aí no mundo. A maniçoba nessas
serras nasceu muito aí nessas serras. Ela deu dinheiro, muitos anos.
Aí o povo começou plantar elas em suas roças.18

Ressalta-se que a extração da maniçoba era algo produtivo. Pouco a pouco


foi rendendo mais que a pecuária, atividade econômica que se caracterizou na
segunda metade do século XIX, viabilizando a criação de fazendas de gado. Ela
desenvolveu-se sem impedir que, concomitantemente, se desenvolvesse a
agricultura e a pecuária. Estas continuaram sendo atividades importantes. Plantava-
se milho, feijão e arroz que eram as bases elementares. Complementava-se com a
caça e com a criação de galinhas, porcos, ovelhas, gado vacum e cabras.

As habitações tinham estilo vernáculo. Eram de pau a pique. Ressalta-se que


existem outros sítios arqueológicos históricos que denunciam estas ocupações no
início do século (Fig. 7).

Figura 7 - Família maniçobeira (Fonte: Acervo da FUMDHAM)

18
Noé Ribeiro Soares, 99 anos.
64

No início do século XX, não se tinha à disposição uma variedade de produtos


industrializados. Noé Ribeiro Soares é enfático em sua entrevista, destacando:
“Faziam a compra em São Raimundo. Ia uma pessoa vender nas costas de um
jumento ou de um de burro. Aí as pessoas encomendavam café, açúcar, sal, sabão.
Nesse tempo não tinha óleo, era toicinho”.

São Raimundo Nonato, desde muito cedo, era um pólo comercial. Muitas das
fazendas do seu entorno tinham com ela uma ligação comercial, apesar de não
existirem estradas satisfatórias. Não se dispunha sequer de estrada que ligasse São
Raimundo a Caracol. Esta foi construída somente em 1932. O transporte era feito
por tropeiros que levavam suas mercadorias no lombo de jumentos ou de burros.
Estes tinham bons valores no mercado. Eles eram úteis como meio de transporte e
como auxiliares na agricultura (Fig. 8).

Figura 8 - O animal era útil no tráfego dos tropeiros e no comércio local (Fonte: IBGE, 1959)

Nos anos iniciais da Velha República, o Estado era ausente no sertão.


Predominava a lei dos valentes. Como discorre Guimarães Rosa [...] “O senhor sabe
o sertão é lugar onde manda quem é forte com astúcia. Deus mesmo quando vier
que venha armado [...]”19. Em 1912, São Raimundo Nonato era uma cidade

19
Guimarães Rosa. Grande Sertão Vereda.
65

relativamente violenta. A ela chegaram muitas pessoas para a atividade de extração


do látex da maniçoba. Naquele ano, ela era uma das cidades com maior quantidade
de policiais (OLIVEIRA, 2001).

Segundo Oliveira (2001), na primeira fase de desenvolvimento da maniçoba,


a resistência da população local em interagir com os trabalhadores de fora era muito
grande. Eram comuns os casamentos entre forasteiros.

A participação da mulher no trabalho da maniçoba era muito importante para


a família. Muitas mulheres que ficavam viúvas assumiam o trabalho de extração com
a ajuda dos filhos pequenos. Elas tinham jornadas duplas. Cuidavam da família, dos
afazeres domésticos, limpavam e comercializavam o produto (OLIVEIRA, 2001).

Mulher tinha muitas trabalhando... Tinha umas que trabalhavam


muito mais que homens. Elas faziam até mais vantagem. Conheci
uma senhora conhecida por Raimunda, tratada de Raimundinha,
que era a esposa do Salu, era Salustiano que morava no Zabelê. Ela
trabalhou em maniçoba, era filha mulata. A Raimundinha é até minha
prima e ela fazia muito mais vantagem em maniçoba que o próprio
Salustiano. Tinha a Maria Rosa que é esposa do senhor Roso, que é
conhecido como Negrinho, ali é outra que era maniçobeira que não
tinha homem, era difícil explorar maniçoba ou tirar maniçoba como
nos diz, pra produzir maniçoba igual a Maria Rosa. Tinha a Elisa que
era esposa de José Messias, a Elisa era outra maniçobeira especial.
A Velha Mulata que morou muito tempo na Serra Branca era uma
das maiores maniçobeiras que existia. Era a mulata com os filhos.20

O comércio em São Raimundo era bem peculiar. Como inexistiam carros, o


transporte era feito com animais. Os comerciantes responsabilizavam-se pelo
transporte da borracha até a cidade de Remanso e de Juazeiro, na Bahia, de onde
seguia para portos de exportação. Com base em diversos depoimentos, Oliveira
(2001) afirma que os comerciantes foram as pessoas que realmente tiveram lucro
com a atividade de extração do látex da maniçoba. Dentre os principais
comerciantes do primeiro ciclo da maniçoba destacavam-se Jerônimo Belo e
Aniceto Cavalcante.

Alguns comerciantes também eram donos de barracões. Forneciam


alimentos que os maniçobeiros necessitavam em troca da produção de trabalho.
Havia uma relação coronelista em que era subordinado o maniçobeiro. Este
conseguia a mercadoria para pagar com o lucro da maniçoba.

20
Oliveira 2001, p.86. apud Cícero Batista.
66

3.2 ELEVAÇÃO A CIDADE E CONSTRUÇÃO DE UM CORPO POLÍTICO

A carência de documentação oficial deixa sem resposta muitas interrogações


sobre a formação política de São Raimundo Nonato, no início do século XX. A leitura
de José Murilo de Carvalho, em sua obra: “Os Bestializados”, e de Vitor Nunes Leal
“Coronelismo, Enxada e Voto”, mostra a face da política nacional com a qual se
pode fazer analogias para obtenção de algumas respostas.

Carvalho (1987) faz uma leitura de como o povo brasileiro encarou o novo
regime. Em conformidade com Aristides Lobo, afirma que o povo, pelo ideário
republicano deveria ter sido protagonista dos acontecimentos. Na prática, assistiu
tudo bestializado, sem compreender o que se passava, julgando, talvez, ser uma
parada militar.

Conforme Carvalho (1987, p. 35), alguns anos mais tarde, depois de assistir
aos acontecimentos que cercaram a proclamação da República, o povo do Rio, “(...)
antes surpreso que entusiasmado não pode compreender o que se passa”. O povo
brasileiro ficou totalmente a parte das decisões políticas, ficando estas nas mãos de
uma oligarquia.

Houve pouca participação do povo nas decisões políticas do início do século


XX. Havia uma população fluminense que quase não participava do processo
eleitoral até mesmo porque, embora a República tivesse eliminado o voto censitário,
manteve, por outro lado, restrições, inclusive a exclusão dos analfabetos e das
mulheres. Esperava-se que a população do Rio, por ser a mais urbanizada, fosse
independente de chefes políticos e preparada para a cidadania.

Quanto ao exercício da cidadania evidenciou-se que 80% da população eram


excluídas ao direito do voto, o que mostra o indicador de que pouco significou o
novo regime, em termos de ampliação da participação (CARVALHO, 1987).

Segundo Carvalho (1987, p. 85-86):

As coisas não mudaram muito com o passar do tempo. Nas eleições


presidenciais de 1910, 21 anos após a proclamação da República,
havia no Distrito Federal 25 246, isto é, 2,7% da população calculada
para esse ano. Apenas 8687 compareceram às urnas, isto é, 34%
dos eleitores e 0,9% da população total. Computando somente os
votos apurados – a química eleitoral da época anular mais votos -,
67

verificamos que representavam 18% dos eleitores e 0,5 da


população local.

Percebe-se que, no início do século, a dinâmica política não pertencia ao


âmbito das classes marginalizadas. Ficavam as decisões nas mãos de uma
oligarquia que concentrava suas riquezas nos grandes centros. A abstinência do
exercício do voto demonstra uma exclusão das populações analfabeta e das
mulheres que estavam fora do cenário político.

Pode-se interpretar, por analogia, que, nos primeiros anos do século XX, São
Raimundo Nonato era um pedaço do sertão, com representação no campo religioso
e um poder político fraco e desorganizado.

Contudo, o fortalecimento da economia proveniente do extrativismo da


maniçoba fez com que se criasse, pouco a pouco, um corpo político relativamente
forte. No período de 1906 a 1912 a vila de São Raimundo Nonato esteve entre os
três maiores produtores de maniçoba, ficando atrás somente de Floriano e São João
do Piauí (Tab. 5).

Tabela 5 – Exportação da borracha da maniçoba do Piauí (em quilos)

Municípios 1906 1907 1908 1909 1910 1911 1912


São João do Piauí 202.432 154.286 165.062 182.559 176.742 152.964 107.627
Floriano 169.052 172.184 129.339 129.014 188.261 223.192 169.388
S. Raimundo Nonato 100.160 105.488 130.532 171.981 246.046 216.678 107.932
Fonte: Queiroz (2006, p. 75) com adaptação pelo autor. Em vermelho, o período em que
São Raimundo Nonato teve a maior produção da maniçoba no Piauí

Pode-se destacar que, nesse período, houve a consolidação do poder


concentrado nas mãos dos comerciantes, principais beneficiários da exportação da
maniçoba. Houve uma melhora de vida que não contemplou a maior parte da
população. O lucro com a exploração da maniçoba ficou com os comerciantes e
donos de barracões.

Oliveira (2001) descreve a dificuldade que os maniçobeiros passavam. Com


base em fontes orais, a autora relata que ficaram notórias a miséria e as dificuldades
que enfrentavam nesta atividade que sempre oferecia e demandava muito esforços.

Outra característica deste período era o adiantamento de dinheiro e


mercadorias para os maniçobeiros que trabalhavam para pagar os fornecedores. Há
quem veja romantismo e confiança nessa relação. O que havia de fato era a prática
68

coronelista no setor privado. O coronelismo era não somente uma mera


sobrevivência do poder privado, mas também uma forma peculiar de sua
manifestação. Era uma adaptação em virtude da qual os resíduos do antigo e
exorbitante poder privado conseguiu coexistir com um regime político de extensa
base representativa. O coronelismo é um compromisso, uma troca de proveitos
entre o poder público progressivamente fortalecido, e a adjacente influência social
dos chefes locais, notadamente dos senhores donos de terras. Não é possível, pois,
compreender o fenômeno sem a referência à estrutura agrária, que fornece a base
de sustentação das manifestações de poder privado ainda visíveis no interior do
Brasil (NUNES LEAL, 1997).

Destaca-se que o poder privado alinhava-se com o poder público em função


do regime representativo com sufrágio amplo, devido à incontestável dependência
do eleitorado com o governo (NUNES LEAL, 1997). Desse compromisso
fundamental resultavam as característica secundárias do sistema “coronelista”, quais
sejam, entre outras, o mandonismo, o compadrio o falseamento do voto e a
desorganização dos serviços públicos locais.

Para entender como estava organizada a sociedade de São Raimundo


Nonato, no início do século XX, tem-se a contribuição das viagens realizadas pelos
cientistas do Instituto Oswaldo Cruz. Este instituto tinha como objetivo realizar amplo
levantamento das condições epidemiológicas e socioeconômicas das regiões
percorridas pelo rio São Francisco e de outras áreas do Nordeste e Centro-Oeste
brasileiro. Os relatórios produzidos por Belizário Penna e Artur Neiva constituíram
um importante documento referente ao período da emancipação política, mesmo que
suas análises tenham se voltado para questões higiênicas.

Conforme Lima (apud PENA & NEIVA, 2003, p. 202) os dois pesquisadores
deixaram a seguintes impressões:

Raro é o indivíduo que sabe o que é o Brasil. Piauí é uma terra,


Ceará outra, Pernambuco outra e assim os demais estados. O
governo é para esses párias um homem que manda na gente, e a
existência desse governo conhecem-na por que esse homem manda
todos os anos cobrando-lhe os dízimos (impostos) [...] Nós éramos
para eles gringos, lordaços (estrangeiro fidalgos) a única bandeira
que conhecem é a do divino.
69

A leitura destes pesquisadores corrobora a ausência da população nas


atividades políticas, assim como a relação coronelista do início do século XX. Neste
período, Anísio Auto de Abreu foi eleito governador do Piauí para anos de 1908 a
1912 falecendo em 05 de dezembro de 1909. Tomou posse o Sr. Raimundo Manuel
da Paz já que Antônio Freire da Silva anunciou problemas de saúde. Segundo
Chaves (2009), o anúncio de Antônio Freire da Silva procedeu-se como maneira
astuciosa de o mesmo legitimar sua ascensão política. Pouco depois, apresentava
condições físicas para se tornar governador. Queria que o legislativo realizasse
eleição indireta, sendo ele candidato. Se fosse eleito assumiria. Dessa forma foi
eleito, tendo Raimundo Manoel da Paz como vice.

De acordo com Paulo Chaves (2009, p. 86): “Anísio foi eleito governador do
Piauí tendo Antonino Freire como seu vice. Atravessam um processo eleitoral
estranhamente calmo, e assumiram a nobre missão administrativa que se estenderia
do ano de 1908 a 1º de julho de 1912”. No Governo de Antônio Freire da Silva,
houve a criação da Escola Normal Oficial de Teresina, hoje Instituto de Educação
Antônio Freire, a criação da Vila Miguel Alves e a inauguração da imprensa oficial.

Na região Sudeste do estado houve a criação do Município de São Raimundo


Nonato por meio da Lei nº 669, de 25 de junho de 1912. A elevação de São
Raimundo Nonato à condição de cidade carece de informações contextuais. Sabe-
se, porém, que o intendente não dispunha de verbas significativas para a construção
de obras publicas.

Destaca Ferreira (1956) que, em 1912, a cidade possuía apenas o cemitério


de Nossa Senhora da Piedade, construído em 1903, um mercado solidamente
edificado, uma cadeia, um foro e um poço, na praça do mercado.

Gaspar Dias Ferreira por ter a família envolvida na política regional relata a
memória herdada de seus avós que protagonizaram disputas políticas nas primeiras
décadas do século XX.

Então a emancipação veio em 1912. Ela veio através de um decreto


do governo do estado. Passou de vila à categoria de cidade. Então
era assim: tinha a prerrogativa de vila mas não tinha política, não
tinha delegacia, não tinha nada. Com a cidade veio o povo e a
organização de cidade e criou o primeiro prefeito naquele tempo
chamado intendente. Era escolhido através de eleição que não era
secreta. Então os primeiros intendentes foram os “Coronéis”, pois
70

eles tinham mais gente junto deles. O voto era a bico de pena, então
os “Coronéis” ficaram. Só veio a alterar a situação em 193021.

Manoel José Rubem de Macêdo foi o primeiro intendente de São Raimundo


Nonato. Destaca-se que a família Macêdo constitui-se como uma família de forte
influencia política, vindo dela os primeiros professores, advogados e médicos de São
Raimundo Nonato. Gaspar Dias Ferreira descreve os Macedo como “Coronéis” de
posse de grandes fazendas de gado e grande quantidade de terras. Diz que, em
oposição aos Macedo tinha-se a família do Coronel José Dias Soares e Manuel
Carlos de Oliveira.

Era, aí eles eram os opositores. Eles fundaram a oposição, oposição


aos coronéis, ai nasceu a oposição em 1912. Então meu avô, meus
dois avós e o amigo deles Manuel Carlos de Oliveira foram os
fundadores da oposição contra os coronéis. Depois meu avô Coronel
José Dias que se destacou com sua intelectualidade, era intelectual.
Naquela época, ele conseguiu o título de coronel e de tenente
coronel também, mas não foi por boi não foi através de fazenda nem
gado nada, foi por causa de sua cultura. Ele era muito culto,
advogado. Foi até promotor na cidade22.

Gaspar Dias Ferreira relata que sua família obteve muitos lucros no comércio
da maniçoba, o que possibilitou a sua entrada na política.

Então nós tivemos neste extrativismo, o meu pai e o pai dele. Então
nós entramos neste comércio e aí foram muito bem sucedidos e
entraram na política em 1912 quando foi a emancipação da cidade.
Meu avô materno e paterno, Coronel José Dias Soares e um cidadão
chamado Manuel Carlos fundaram a oposição. Gostavam de dizer
que iam fundar a oposição aqui e que a oposição era que nem capim
de burro. Ele tinha ido a Teresina e tinha trazido um capim de burro
para plantar junto com a oposição, “a oposição e capim de burro não
iam acabar mais nunca. Nesta terra ainda hoje tem capim de burro e
a aposição não acabou. Sempre tem. Não é?23

Na fala de Gaspar Dias Ferreira percebe-se uma relação de revanchismo e de


dualidade entre o grupo dos Macedo e dos Ferreira. As duas famílias viam na
educação uma maneira de manterem-se fortes e com certa representação local. No
entanto, nesse período não havia prédios escolares. O ensino acontecia em casa de
particulares que lecionavam conteúdos das séries iniciais. Somente a partir de 1922,
com a chegada da Ordem Mercedária, criaram-se as primeiras escolas privadas.

21
Entrevista: Gaspar Dias Ferreira, 78 anos.
22
Entrevista: Gaspar Dias Ferreira, 78 anos
23
Entrevista: Gaspar Dias Ferreira, 78 anos
71

Nos relatos de pessoas que viveram nesse período, encontrados nos livros de
Dias (2001), de Artur Pena e Belizário Neiva e em fontes orais, entende-se que a
emancipação política em São Raimundo Nonato não foi fruto de um desejo popular.
Ela aconteceu por meio de um decreto governamental.

Outro fator que demonstra a ausência da camada popular no processo de


emancipação é o fato de os primeiros líderes políticos serem coronéis de famílias
tradicionais. Essas famílias, ao longo da história, foram responsáveis pelo
aprisionamento de índios e proprietários de escravos, sendo estes sobrenomes
identificados no trabalho de Paes Landim (2010).

3.3 ANDARILHOS DA HISTÓRIA: MEMÓRIAS COLETIVAS

Na falta de uma documentação escrita, propôs-se, neste trabalho, buscar nas


fontes orais um suporte que ajudasse a entender o passado político, muitas vezes
esquecido pela história. Nesta pesquisa consideram-se três gêneros distintos de
história oral. Um deles é a história oral de vida que, muitas vezes se traduz como
“biografia” ou “notas biográficas”. O segundo é a história oral temática que se
aproxima, em certa medida, dos procedimentos comuns nas entrevistas tradicionais.
O terceiro gênero é o da tradição oral que se assenta na observação e se trabalha
com elementos da memória coletiva (JOSÉ MEIHY E FABÍOLA HOLANDA, 2010).

Para desenvolvimento desta pesquisa utiliza-se a história oral de vida, já que


se procura elucidar um acontecimento importante que foi o processo de
emancipação política de São Raimundo Nonato - PI. Os familiares dos entrevistados
tiveram uma relação íntima com os fatos decorridos e seu modus vivendi denunciam
uma relação com este passado.

José Meihy & Fabiola Holanda (2010, p. 35) destacam que a essência
subjetiva da história oral de vida decorre de narrativas que dependem da memória,
dos ajeites, dos contornos, das derivações, das imprecisões e até das contradições
naturais da fala. Por isso é que se entende a história oral como um processo
sistêmico que se inicia na elaboração do projeto e faz uso de depoimentos gravados
em aparelhos eletrônicos, vertido do oral para o escrito, com o fim de promover o
registro e o uso de entrevista (José Meihy, 2005).
72

Outros pontos discutidos neste trabalho são a história e a memória. Busca-se


fundamentação na obra de Michael Pollak (1992)24 para que se possa trabalhar as
relações sociais e uma memória herdada, relativos a acontecimentos que marcaram
a emancipação política que não se apagaram com o tempo. Faz-se uso da memória
individual e coletiva na entrevista de Sr. Gaspar Dias Ferreira (Fig. 9).

Figura 9 - Gaspar Dias Ferreira (Fonte: Acervo pessoal de Jaime de Santana Oliveira)

Michael Pollak (1992, p. 2) responde questionamentos que se tornam


imprescindíveis para o trabalho com fontes orais:

Se destacamos essa característica flutuante, mutável, da memória,


tanto individual quanto coletiva, devemos lembrar também que na
maioria das memórias existem marcos ou pontos relativamente

24
Michael Pollak nasceu em Viena, Áustria, em 1948, e morreu em Paris em 1992. Radicado na
França, formou-se em Sociologia e trabalhou como pesquisador do Centre National de la
Recherche Scientifique - CNRS. Seu interesse acadêmico, voltado de início para as relações entre
política e ciências sociais, tema de sua tese de doutorado orientada por Pierre Bourdieu e
defendida na École Pratique des Hautes Études em 1975, estendeu-se a diversos outros campos
de pesquisa, que confluíam para uma reflexão teórica sobre o problema da identidade social em
situações limites.
73

invariantes, imutáveis. Todos os que já realizaram entrevistas de


história de vida percebem que no decorrer de uma entrevista muito
longa, em que a ordem cronológica não está sendo necessariamente
obedecida, em que os entrevistados voltam várias vezes aos
mesmos acontecimentos, há nessas voltas a determinados períodos
da vida, ou a certos fatos, algo de invariante. É como se, numa
história de vida individual - mas isso acontece igualmente em
memórias construídas coletivamente houvesse elementos
irredutíveis, em que o trabalho de solidificação da memória foi tão
importante que impossibilitou a ocorrência de mudanças. Em certo
sentido, determinado número de elementos torna-se realidade, passa
a fazer parte da própria essência da pessoa, muito embora outros
tantos acontecimentos e fatos possam se modificar função dos
interlocutores, ou em função do movimento da fala.

O indivíduo que lembra é sempre um indivíduo inserido e habitado por grupos


de referência: a memória é sempre constituída em grupo, mas é também, sempre,
um trabalho do sujeito (SCHMIDT e MUHFOUD, apud HALBWACH, 1993 p. 288).
Segundo o autor o grupo está presente no indivíduo não necessariamente pela sua
presença física, mas pela possibilidade que o indivíduo tem de retomar os modos de
pensamento e a experiência comum que são próprios do grupo.

Figura 10 - Noé Ribeiro Soares (Fonte: Acervo pessoal de Valmir Santana Oliveira)

Por se tratar de um período distante, utilizaram-se algumas entrevistas feitas


em períodos anteriores, na busca dos relatos de pessoas mais idosas. Nessas
74

entrevistas procurou-se, através dos relatos, entender quais eram as preocupações


das pessoas que habitavam a vila de São Raimundo Nonato.

Conforme Pollak (1992 p. 2):

Em primeiro lugar, são os acontecimentos vividos pessoalmente. Em


segundo lugar, são os acontecimentos que eu chamaria de "vividos
por tabela", ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela
coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. São acontecimentos
dos quais a pessoa nem sempre participou, mas que, no imaginário,
tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível
que ela consiga saber se participou ou não. Se formos mais longe, a
esses acontecimentos vividos por tabela vêm se juntar todos os
eventos que não se situam dentro do espaço-tempo de uma pessoa
ou de um grupo. É perfeitamente possível que, por meio da
socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um
fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado,
tão forte que podemos falar numa memória quase que herdada.

Destaca-se que, nas entrevistas, a intuição da memória herdada, consolidada


ao longo tempo, atuou de forma esclarecedora de alguns pontos e que, em algumas
situações o entrevistado falou com tamanha segurança que o mesmo aparentava ter
vivido o relato da memória herdada.

3.4 ORGANIZAÇÃO SOCIAL E CRESCIMENTO URBANO

Neste tópico trabalha-se o crescimento urbano em São Raimundo Nonato e a


organização social que influenciaram diretamente na produção do espaço urbano.
De início, destaca-se que, por mais que se trabalha o conceito de urbano, existem
distintas relações e realidades na formação das cidades brasileiras.

O que restou de um século de história são mapas produzidos, documentos de


registro de compra e vendas de imóveis, além das fontes orais que possibilitam a
construção de uma memória coletiva. Pelos relatos orais e estudos bibliográficos
pode-se avaliar que, no início do século, São Raimundo Nonato não era urbanizada.
Devido a fatores econômicos e sociais, tinha características essencialmente rurais.

Até 1912, vila de São Raimundo Nonato viveu o auge da maniçoba. Esta
atividade contribuiu para a criação de uma elite composta de comerciantes e donos
de barracões. Ela foi importante na elevação da vila à categoria de cidade. A criação
75

do município provocou a formação de grupos políticos que viram no poder público


uma maneira de auferir benefícios financeiros e status.

Com a decadência do extrativismo do látex da maniçoba, houve fomento da


cultura do algodão, do fumo, da cana-de-açúcar, do arroz, do feijão e da mandioca.
As casas de farinhas começaram a ser locais onde aconteciam as relações sociais
econômicas e de trabalho.

Referindo-se ao desenvolvimento urbanístico de São Raimundo Nonato,


Ferreira (1959) relata que a igreja matriz era uma das melhores do estado do Piauí.
Tinha, também, um cemitério de regulares proporções a que deram o nome de
Nossa Senhora de Lurdes. O segundo cemitério, o de Nossa Senhora da Piedade,
foi construído em 1903.

Não se dispõe de fontes para quantificar o número de habitações em São


Raimundo Nonato em 1912. Segundo Silva (2009), 1916 o conjunto urbano de São
Raimundo Nonato era composto por 246 casas com telhas e três praças, contendo
neste período, a instalação de um telegrafo (Fig. 11).

Figura 11 - Mapa elaborado por Olavo Pereira Silva Filho (2007), com destaque, em verde,
das estruturas arquitetônicas e urbanísticas de interesse para preservação

No mapa de Silva Filho (2007) feito no ano de 1989 pode-se identificar o


centro histórico de São Raimundo Nonato passível de tombamento pelo Instituto do
76

Patrimônio Histórico Artístico Nacional – IPHAN. Destaca-se que São Raimundo


Nonato não se restringe somente a essas casas. No entanto, a partir deste mapa,
pode-se ver como centro urbano de São Raimundo Nonato estava organizado no
início do século XX.

Entende-se que os pontos marcados em verde foram notificados como


construções arquitetônicas de estilo colonial vernacular passíveis de tombamento.
Eles são um marco da formação urbanística de São Raimundo Nonato. Junto à
Praça Comendador Piauilino, com número um (em vermelho), tem-se uma
concentração de casas que, segundo a historiografia, constituem a sede da fazenda
Jenipapo (SILVA, 2009).

Em entrevista com Gaspar Dias Ferreira, abordado o tema de quando e como


surgiram os bairros ao entorno da cidade, o mesmo relatou que, no início do século
não existia a maioria deles. O Bairro Aldeia é um dos mais antigos. Quanto aos
outros, o que se tinha naquele período eram pequenas fazendas.

De acordo com Gaspar Dias Ferreira:

A cidade de São Raimundo Nonato, em principio, era aquela praça


da igreja. Ali sempre, desde quando eu me entendi, já existia. Era só
ali aquela rua saindo da igreja. Para o lado direito era roça. Quem sai
do lado direito, na Rua Avelino Freitas, ali só era roça. Aquilo tudo
era roça que vem até o cemitério. Era roça e era morro. Toda a
cidade seguia pra lá até a beira do riacho. Mas aqui ela vinha até
aqui onde estamos. Meu avô que eu não conheci morava ali. Meu pai
morava ali. Ali na frente era uma roça. Aqui era outra. Meu avô
instalou roça e botou curral ali. Depois veio o genro dele ali. Não
tinha ninguém ali. Eles foram tomando conta do espaço25.

Em documentos do cartório, no livro de compra e venda de bens e imóveis do


ano 1912, pode-se constatar que o Bairro Aldeia já tinha os primeiros núcleos
habitacionais. Há relatos da tradição oral, notificando que aquele local era onde
habitavam grupos indígenas antes da chegada dos colonizadores.

Quando se fala em crescimento urbano em São Raimundo Nonato destaca-se


que, além de consultar mapas e fotografias antigas é necessária uma visita técnica
ao centro para se ver como está organizada a cidade. Constata-se que, assim como
varias outras cidades do Piauí, São Raimundo Nonato surgiu às margens do rio
sendo este fundamental para o desenvolvimento do núcleo populacional (Fig. 12).

25
Entrevista: Gaspar Dias Ferreira, 78 anos
77

Figura 12 – Perímetro urbano atual de São Raimundo Nonato - PI, em destaque o Bairro
Aldeia Nº 1, Centro Nº 2 e Bairro Santa Luzia Nº 3 (Fonte: IBGE)
78

Nas cidades campesinas do início do século XX, não há automóvel. Tem-se,


de forma bem marcante, a figura do tropeiro e a valorização do animal como meio de
transporte pessoal e de mercadoria (Fig. 13). Quanto às construções arquitetônicas
pode-se destacar a construção de belas casas, em ruas sem pavimentação o que
corrobora a afirmação de ter sido uma cidade essencialmente rural.

Figura 13 - Local onde fica a Praça do Abrigo, em 1915. As belas casas mostram a área
mais urbanizada da cidade (Fonte: Acervo pessoal de Josimar Rocha)

Não houve planejamento urbano na edificação da cidade de São Raimundo


Nonato. Isto é bem característico das cidades brasileiras e piauienses. A construção
das casas foi aleatória. Ela atendia à preocupação da época que era estar o mais
próximo possível das margens do rio para se ter acesso à água e às áreas de
plantio. Evidencia-se que a preocupação do homem que habitou São Raimundo
Nonato na metade do século XIX, e início século XX, era diferente da dos atuais. A
aproximação dessas casas com o rio fez com que São Raimundo Nonato ficasse
sujeito a frequentes enchentes.

As fortes secas marcaram o cenário de São Raimundo Nonato e boa parte da


região Nordeste na primeira metade do século XX. A construção do Açude Aldeia,
em 1912, teve grande relevância na primeira metade do século. Muitas pessoas
migraram de outras regiões para São Raimundo Nonato, com o objetivo de fugir dos
79

efeitos do extenso período de estiagem, em 1915. Gaspar Dias Ferreira faz uma
descrição da preocupação com a seca no início do século XX.

O tanque já foi devido à seca. Foi construído em 1912. Nós tivemos


um grande problema de água aqui na cidade, desde quando a cidade
era pequenininha. Água de Remanso era longe, tinha tempo que
tudo que era água de superfície acabava. Secou varias vezes esse
Açude. Então a água era só essa minada de cacimbão. Tudo aqui
era água salgada. Tinha cacimbão capaz de dar subsistência, mas
era tudo água salgada. Servia só para os animais. Aquilo era um
clamor para a gente. Aqui na cidade, que tinha mais gente, acabava
a água a gente tinha que ir tomando um litro na casa do outro.26

Nos relatos herdados são frequentes as menções de dificuldades enfrentadas


devido à falta de água. Narradas com certa dramaticidade eles ultrapassam o tempo.
Ficam na memória dos mais velhos as dificuldades vivencias pelos antecedentes.

Segundo Gaspar Dias Ferreira:

Tivemos uma seca famosa, a de 1915. Morreu muita gente. O


pessoal que morreu era mais retirante que vinha de fora, do Ceará.
Aqui, de qualquer forma tinha pouca água, mas aqui tinha nossa
fauna. Tinha muita riqueza, caça, muita coisa.27

A construção do Açude da Aldeia, com capacidade para 7.235.259 m³, com


uma área de 406,60 Km², ficou na memória (Fig. 14). Nos documentos oficias
aparece como de alta relevância social, pois os problemas de seca eram constantes.
Resolveu, em parte, este problema. Passou a receber, até mesmo, pessoas de fora
que fugiam das fortes secas. Em documentos oficiais encontram-se comprovantes
de venda e compra de terrenos no Bairro Aldeia para a Inspetoria de Obras Contra a
Seca. Há relatos orais do local onde ficavam as instalações da referida inspetoria.
Diz-se que ela instalou-se onde hoje funciona o Colégio de Nossa Senhora das
Mercês. Este local, de domínio público, foi doado para a ordem religiosa Mercedária
que presta um relevante serviço social.

Segundo Artur Neiva e Belisário Penna, em 1912, São Raimundo Nonato era
uma cidade que não dispunha de esgotos, nem se usam fossas para as fezes. Cada
quem se exonerava ao ar livre. A depuração das fezes era feita pelo sol. O registro
civil era deficiente. A única causa da morte e a morte natural.

26
Entrevista: Gaspar Dias Ferreira, 78 anos
27
Entrevista: Gaspar Dias Ferreira, 78 anos
80

São Raimundo Nonato é uma vila de casas térreas, construídas com


adobes, pavimentadas com tijolos caiados, cobertas de telhas, sem
forros. Há duas extensões estreitas sem calçamento, duas praças e
casas sem ordem população de 2000 almas, mais ou menos (A.
PENNA e B. NEIVA apud LIMA, 2003 p. 201).

Figura 14 - Açude Aldeia construído em 1912 (Fonte: Acervo pessoal de Josimar Rocha)

Destaca-se que o espaço urbano é um local de memória. Sua formação


denuncia áreas de conflito. A ocupação do espaço dá-se muitas vezes por quem
tem maior força econômica e política. Em São Raimundo Nonato a ocupação do
espaço procedeu-se de forma mais vantajosa no centro e no Bairro Aldeia surgindo
daí os outros núcleos populacionais em áreas periféricas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O milagre do historiador consiste no fato que todas as


pessoas que tocamos estão extraordinariamente
vivas trata-se de uma vitória sobre a morte.
Braudel
81

Tecem-se aqui algumas reflexões sobre o tema abordado. Considera-se que


a pesquisa teve caráter preliminar. Muito se tem ainda que investigar. Trata-se de
uma história com base em fragmentos. É um tema que visou entender a dinâmica
social que norteou e marcou a sociedade daquele período. Os trabalhos já
publicados como monografias, artigos, dissertações e teses possibilitam reconstituir
melhor o contexto histórico. Alguns relatos orais são essenciais para entender estes
fatos.

O início do século XX foi para São Raimundo Nonato um período de


descontinuidade e de mudanças provocadas pelos rumos que a econômica ganhava
com o extrativismo da maniçoba. O momento histórico que o país vivia naquele
período, foi marcado por maior autonomia do estado, o que possibilitou a elevação
de São Raimundo Nonato à condição de cidade.

Destaca-se que a extração da maniçoba propiciou o surgimento de um


sistema representativo de comerciantes e de fazendeiros remanescentes que
tiveram ampla lucratividade nesta atividade. Esta representatividade transferiu-se
para o domínio público, estabilizando um sistema coronelista. Este sistema era
representado pelas famílias tradicionais que foram buscar na política, vantagens
econômicas e status.

A emancipação política de São Raimundo Nonato foi um evento sem


participação da massa popular. A ausência de um projeto de emancipação deixou
lacunas sobre interesses e objetivos futuros. Com a emancipação houve mudanças
no campo político que passou a ter representatividade. Em termos estruturais, a
emancipação política propiciou a construção de obras públicas (barragem do tanque,
foro, cadeia pública e estruturas municipais).

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MUNICIPIO DE SÃO RAIMUNDO NONATO (1890-1960).

Ney Clemente Dias Brito


Déborah Gonsalves Silva
Gabriel Frechiani de Oliveira

INTRODUÇÃO

O tema abordado pela pesquisa que ora se apresenta consiste no estudo do


comércio da borracha da maniçoba no município de São Raimundo Nonato, Piauí,
especificamente no período de 1890 a 1960.

O desenvolvimento do trabalho dá-se pela pesquisa bibliográfica, incluindo


autores brasileiros e piauienses, bem como pela história oral, evidenciando os
relatos de entrevistados que trabalharam com a maniçoba ou viveram o seu
contexto. Divide-se a pesquisa em três áreas de abrangência: o Brasil, o Piauí e São
Raimundo Nonato. Faz-se uma comparação de acontecimentos relacionados com a
comercialização da maniçoba no país e em todo o Estado do Piauí.

Inicia-se com a história da exploração e da produção das seringueiras na


Amazônia. Foca-se o planejamento inicial do governo e mostra-se o início de sua
exploração, suas vantagens e conseqüências para a sociedade e para a economia
do Estado e do País. Explica-se que, na época em debate, a sua produção não
estava conseguindo suprir as demandas do mercado interno e internacional. Essa é
a razão pela qual, iniciou-se a produção da maniçoba na região do sertão do Piauí.
A mesma tinha por interesse estimular os comerciantes da região e suprir as
necessidades dos consumidores.

Em seguida, explicam-se as formas de como se deu início e o


desenvolvimento da maniçoba no sertão do Piauí, sobretudo, a ocupação das terras
pelos trabalhadores e a integração da economia maniçobeira no município de São
Raimundo Nonato. Faz-se um breve estudo, principalmente sobre os modos de vida
da população na época, tendo em vista, a sua alimentação, formas de trabalho,
como também, direitos e deveres (OLOIVEIRA, 2007).
87

Com relação à economia do Estado do Piauí e da cidade de São Raimundo


Nonato, observam-se as razões e as causas que levaram à sua expansão no
mercado, como também, as ruínas do período de seu auge, no país e no exterior. A
análise corresponde às duas fases de esplendor da maniçoba em São Raimundo
Nonato, quais sejam de 1890 a 1920 e de 1938 a 1960.

Enfatiza-se, depois, o comércio da maniçoba na cidade de São Raimundo


Nonato e, ao mesmo tempo, a história oral, tendo em vista, os relatos de pessoas
que viveram a época e trabalharam com o produto. Ressaltam-se as formas de
comércio da maniçoba na região do sertão do Piauí, caracterizando o seu início,
bem como o seu desenvolvimento no mercado da época. Abordam-se os modos de
vida dos trabalhadores de outros estados e regiões, impulsionados pelas riquezas e
exuberância do produto, em busca de melhores condições de vida, moradia e
trabalho. Analisam-se os dados referentes à produção da maniçoba na época, e
também as ideias e os investimentos do governo para aumentar a sua produção.
Abordam-se, ainda, os tipos de transporte e as transações realizadas pelos
comerciantes e empresários das cidades.

No final, apresentam-se relatos sobre a Fazenda Serra, Zabelê e Jurubeba


que se destacaram como as maiores reservas da árvore de maniçoba. “Os
comerciantes locais, os barraquistas, os maniçobeiros, os tropeiros e os aguadores
foram os protagonistas indispensáveis no sucesso da borracha na região Sudeste do
Piauí” (OLIVEIRA, 2007).

1 HISTÓRIA E A HISTORIOGRAFIA

1.1 A BORRACHA DAS SERINGUEIRAS NA AMAZÔNIA

Abordam-se alguns autores, principalmente aqueles que tratam da borracha


da maniçoba e das seringueiras no Brasil, tendo como referência suas causas e
conseqüências para o desenvolvimento e crescimento do comércio em todo o estado
do Piauí e no país.
88

Na sua obra Formação Econômica do Brasil, Celso Furtado (2001) faz


comentários referentes à borracha da maniçoba, referindo-se mais à região
amazônica, onde a mesma teve grande circulação. De acordo com ele, as
especiarias extraídas da floresta tinham como principal produto o cacau. Nessa
mesma época, o cacau tornara-se a base da economia amazônica. Nessa região,
poderiam ter sido cultivados outros produtos como o algodão e a maniçoba.

Segundo Furtado (2001) a região amazônica era rica e o seu solo


apresentava perfeitas condições para o cultivo de especiarias, mas convivia com o
problema da falta de trabalhadores engajados em atividades de agricultura e
silvicultura. Na sua obra, faz referência ao trabalho indígena. Diz que os índios eram
bastante disputados, fato que se dava em razão da grande falta de trabalhadores
rurais na época. A floresta amazônica oferecia grande sortimento de produtos, mas
estes, não eram explorados e nem mesmo cultivados, em razão da escassez de
mão-de-obra.

Havia, na floresta, outra espécie vegetal, a seringueira, cuja produção crescia


espantosamente. Do látex da seringueira produz-se borracha de excelente
qualidade. Essa espécie vegetal crescia rapidamente na floresta, atraindo
pesquisadores para a região, mas, tinha o mesmo problema das demais especiarias,
ou seja, a carência de mão-de-obra.

Segundo Furtado (2001, p. 130), a exportação da borracha no Brasil registra-


se desde 1920 quando alcançou a média anual de 1940 toneladas. Em 1950 a
média anual era de 1900 toneladas e, por fim, em 1960, era de 3700 toneladas. Com
isso, a produção da borracha cresce, e se expande por toda a parte do país e do
mundo. No final do século XIX e começo do século XX, a mesma transformara-se na
matéria-prima de mais rápida expansão, no mercado mundial. Furtado (2001, p. 131)
ressalta que:

As preocupações no Brasil, acerca da borracha, estavam mais


voltadas a preços, do que propriamente à produção e a sua mão-de-
obra. Com isso, a borracha oriental introduz-se no mercado logo
após a Primeira Guerra Mundial, abalando de vez a borracha
brasileira.

Após a Primeira Guerra Mundial, instalaram-se empresas produtoras de


borracha na Ásia. Essas empresas conseguiam superar a dependência interna e ao
mesmo tempo, abastecer os países consumidores do produto, fato que no Brasil
89

acontecia, exatamente, o inverso. Segundo Furtado (2001, p. 131), foi neste curto
espaço de tempo e duração, que o Brasil reconheceu-se como dependente de mão-
de-obra, não se preocupando mais com preços, mas com a sua permanência no
mercado mundial.

De acordo com Furtado (2001, p. 132), a população do Nordeste estava


ocupada desde o primeiro século da colonização em dois sistemas econômicos: o
açucareiro e o pecuário. A decadência da economia açucareira, a partir da segunda
metade do século XVII, determinou a transformação progressiva do sistema pecuário
em economia de subsistência. Com esta economia, a população cresceu em devido
à quantidade de alimentos, levando em conta a quantidade de terras e às suas
disponibilidades.

O desenvolvimento da economia algodoeira, nos primeiros decênios do


século XIX, havia permitido uma maior concentração da população na região
Nordeste. A economia de subsistência, sustentada na produção de alimentos e no
pastoreio, logo passou por um forte desequilíbrio, abalando à produção e à
população no país. Uma grave e prolongada seca, de 1877 a 1880, atingiu a região,
dizimando o rebanho e exterminando de cem a duzentas mil pessoas. Com isso, o
movimento de ajuda às populações vitimadas, logo foi habilmente orientado no
sentido de promover a sua migração para outras regiões do país, particularmente a
amazônica.

Segundo o autor, a miséria na região nordestina era grande. Os grupos


dominantes viram na saída da mão-de-obra, a perda de sua principal fonte de
riqueza. Os governos dos estados amazônicos, por sua vez, interessaram-se pelas
pessoas vitimadas pela seca, concedendo-lhes, os gastos dos seus transportes.
Formou-se, assim, uma grande corrente migratória que fez possível a expansão da
produção de borracha na região amazônica, permitindo à economia mundial,
preparar-se para uma solução definitiva do problema.

No decorrer da sua obra, Celso Furtado (2001, p. 134), faz comparações


entre a população da economia cafeeira, e ao mesmo tempo, entre a população da
economia da borracha afirmando que:

A economia cafeeira, em meio século de altos e baixos, demonstraria


ser suficientemente sólida pra prolongar-se num processo de
90

industrialização. A economia da borracha, ao contrário, entraria em


brusca de permanente prostração.

Furtado (2001, p. 134), faz elogios à população cafeeira, afirmando que a


mesma apresentaria um nível de vida relativamente elevado, pelo menos bem mais
elevado que o das regiões do sul da Europa, de onde havia emigrado. O mesmo
dirige-se à população da borracha com um tom mais crítico. Afirma que ela seria
reduzida a condições de extrema miséria, em um meio em que era impossível
encontrar uma saída para outro sistema rentável.

No final dos seus comentários, Furtado (2001, p. 135) justifica a situação final
da Amazônia e dos seus trabalhadores:

Excluídas as conseqüências políticas que possa haver tido e o


enriquecimento de reduzido grupo, o grande movimento de
população nordestina para a Amazônia consistiu basicamente em
um enorme desgaste humano em uma etapa em que o problema
fundamental da economia brasileira era aumentar a oferta de mão-
de-obra.

A respeito disto, o autor deixa claro que a economia brasileira preocupou-se


somente em enviar trabalhadores para a Amazônia, mas não ofereceu sequer boas
condições de trabalho para suprir as suas necessidades, e nem tampouco subsídios
para a sua permanência no local.

1.2 PLANEJAMENTO ECONÔMICO DA BORRACHA NA AMAZÔNIA

Na sua obra “Desenvolvimento Econômico da Amazônia” Dennis J. Mahar


(1978) dirige seus comentários à situação da Bacia Amazônica. Analisa o período de
1912 a 1945. De acordo com ele, ao analisar a Bacia Amazônica, no período citado
depara-se com algumas questões ou mesmo desafios de caráter social, político e
econômico, que até então não foram identificados e nem resolvidos.

O primeiro desafio diz respeito ao baixo crescimento demográfico. Mahar


(1978, p. 7) afirma que talvez seja este, o mais importante desafio histórico
enfrentado pelas autoridades. A densidade média populacional na região amazônica
era uma problemática bastante preocupante para a época, pois se realizava neste
91

mesmo período, a ascensão e o forte predomínio de produtos tropicais, prontos para


o plantio bem como para a colheita.

Mahar (1978, p. 7), chega até mesmo a comparar a Amazônia com o deserto
do Saara. Afirma que ambos têm limitada capacidade de suportar a ocupação
humana. Outro desafio apontado por Dennis, diz respeito à dependência amazônica
da extração de produtos florestais, tais como, borracha, frutos, castanhas, couros e
peles, como fonte de renda e emprego para a população. Além disso, devido as
suas ligações diretas com os mercados internacionais, as atividades extrativas
criaram um indesejável grau de instabilidade na economia regional.

Percebe-se, de fato, que o maior problema enfrentado pela população dava-


se na produção, no cultivo e na comercialização dos produtos. Outra barreira que o
autor chama a atenção corresponde ao rudimentar conhecimento dos recursos
naturais da região.

Mahar (1978, p. 3) deixa claro o seu pensamento e a sua posição quanto à


população e aos governantes, que na época administravam a Amazônia. Afirma que
eles possuíam uma visão totalmente distorcida da real situação da Amazônia, ou
seja, tinham-na como um verdadeiro “El Dourado, mas a verdadeira situação era
totalmente ao contrário.

Mahar (1978, p. 8) contrasta-se com Celso Furtado. Afirma e mostra a


pobreza dos solos da Amazônia e o seu delicado equilíbrio ecológico. Celso Furtado
vê o solo da Bacia Amazônica com um olhar totalmente inverso. O mesmo afirma
que ele tinha perfeitas condições de uso. Definia-o como um solo rico e natural,
disponível ao um plantio e cultivo até mesmo de cereais.

Segundo Mahar (1978, p. 8) o último desafio tem origem no prolongado


isolamento da região em relação ao resto do Brasil.

Embora a Amazônia possua um dos maiores sistemas fluviais do


mundo, os afluentes meridionais do Rio Amazonas são navegáveis
apenas em trechos relativamente curtos. Em resultado, o comércio
tendeu historicamente a fluir na direção Leste-Oeste. Através desses
fluxos comerciais, a Amazônia forjou, no decorrer de séculos, laços
econômicos e culturais com a Europa, América do Norte e seus
vizinhos sul-americanos que têm sido mais fortes, que com o sul do
Brasil.
92

Mahar (1978) afirma que a Amazônia deu créditos primeiramente às


vantagens do exterior, do que ao seu próprio país, abalando de vez à sua própria
economia, como também toda a resistência do seu país, principalmente no que diz
respeito às finanças e aos investimentos alocados para tal fim. Essas ligações com o
exterior trouxeram-lhe prosperidade temporária e limitada, uma vez que a sua renda
per capita hoje, corresponde apenas a cerca da metade do país como um todo.

O Brasil, juntamente com a Amazônia, concentrava-se, nesta época, somente


na exportação dos produtos tropicais para o exterior. Esquecia o valor das vendas
internas e, principalmente, da elaboração de meios e técnicas agrícolas para sanar
os grandes problemas dos trabalhadores, como também, da conservação das
árvores. Com toda esta problemática, o país não tomou atitudes para converter
esses graves problemas. Resolveu esperar a concorrência da borracha asiática, a
qual se expandia e se propagava por todos os cantos do país e do mundo. O que
restou de tudo foi o começo da desestabilização e da desestruturação total da região
e do país como um todo.

No decorrer da sua obra, Mahar (1978, p. 9) chama atenção para os


planejamentos efetuados pelos governantes da época. Afirma que estes
pressupunham que a borracha daria um novo salto de expansão e de
comercialização. Conforme o mesmo, de 1912 até o final da Segunda Guerra
Mundial, houve duas tentativas de planejamento regional. O primeiro ficou conhecido
com Plano de Defesa da Borracha. Teve início em 1912 e durou pouco mais de um
ano. O segundo, denominado de Batalha da Borracha, começou em 1942, com a
assinatura dos Acordos de Washington e durou até 1947. Estes planejamentos
tinham por objetivo recuperar a economia regional da borracha, dando a esta
suporte, equilíbrio ou mesmo autonomia, logo depois do seu grande surto, no
período de 1870 a 1912. “O fracasso do Plano de Defesa da Borracha e a crescente
e rápida concorrência da borracha asiática fizeram com que a economia amazônica
entrasse num período de 30 anos de colapso ou mesmo de estagnação” (MAHAR,
1978, p. 11).

Com isso, dois fatores ficaram numa situação extremamente emergencial e


precária: O setor de produção e o crescimento demográfico regional. Conforme
Dennis, a produção que atingira o nível máximo de mais de 42.000 toneladas em
1912, caiu para o mínimo de 6.550, em 1932. O crescimento demográfico regional
93

também se estagnou nesse período, à medida que a mão-de-obra recrutada,


durante o auge da borracha, começava a deixar a região em busca de
oportunidades mais promissoras. A população que ficou na Amazônia, não vendo
outras possibilidades melhores de vida, restringiu-se à forma mais primitiva de
agricultura, resumindo-se somente ao plantio e a colheita da agricultura de
subsistência, suplementada por atividades extrativas (principalmente borracha e
castanha-do-pará), quando as condições do mercado as favoreciam para isso.

Mahar (1978, p. 12) afirma que houve a criação da Rubber Reserve Company
(depois Rubber Development Corporation - RDC), com um fundo de US$ 5 milhões,
especificamente para auxiliar o governo brasileiro, no aumento da produção da
borracha. De acordo com ele, a estrutura administrativa era encabeçada pelo Banco
de Crédito da Borracha (BCB), precursor do atual Banco de Desenvolvimento
Regional. Este banco tinha o monopólio de compra e venda da borracha, e ainda, a
responsabilidade pela criação de colônias agrícolas, produção alimentar, instalação
de um sistema de transportes, cooperativas e crédito rural.

Neste mesmo período, relata Mahar (1978), criou-se também o Serviço


Especial de Mobilização de Trabalhadores (SEMTA), juntamente com a Comissão
Administrativa do Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazônia (CAETA),
transportando, de fato, para a Amazônia, mais de 32.000 trabalhadores e seus
dependentes (no total, mais de 48.000 pessoas). Essa migração em massa, tal como
comentara Celso Furtado, foi facilitada pela prolongada seca no Nordeste, em 1870.

Os trabalhadores saíram das suas localidades, dos seus lares, totalmente


iludidos com as condições de vida na Amazônia. Os mesmos não sabiam da pesada
situação em que viviam a região e os seus moradores. Lá, chegaram totalmente
despreparados para enfrentarem as crises de uma região que não buscava as
saídas necessárias para a solução dos problemas acumulados. A Amazônia, com
toda a sua riqueza e exuberância, não oferecia condições de vida, e nem tampouco
de suporte para os trabalhadores que ficavam subordinados aos seus perigosos
desafios, resumindo-se tudo, nas condições desanimadoras de miséria, fome e
escravidão.

Mahar (1978, p. 13) discute também, no decorrer da sua obra, questões


referentes à chegada e à partida dos trabalhadores na região amazônica. Afirma que
94

muitos trabalhadores, animados e motivados com a sua chegada na Amazônia, logo


nos primeiros dias, desanimam-se e recusam-se a trabalhar, abandonando os seus
serviços depois de alguns dias. O mesmo termina às suas discussões sobre a
Amazônia, deixando o seu ponto de vista final sobre o segundo planejamento:

Com respeito ao esforço e custos envolvidos, os resultados da


Batalha da Borracha, em termos de produção, foram bem modestos.
De 1941 a 1945, a produção anual de borracha natural subiu apenas
10.000 toneladas (de 12.840 para 22.902, atingindo um nível apenas
ligeiramente superior à metade do registrado em 1912, ano de
produção máxima. Além de tudo, pelo caráter de “emergência” e
curto prazo do programa, seu impacto sobre a região foi quase
inteiramente efêmero (MAHAR, 1978, p. 14).

Tendo por base essas informações, pode-se extrair delas a real situação da
borracha da Amazônia na época em debate. A produção teve um pequeno
crescimento, em vista dos investimentos do Governo e demais administradores.
Logo depois, decresceu, devido à grande escassez de mão-de-obra. A produção
cresceu quando a região disponibilizava de certo contingente de trabalhadores.
Quando este número caiu, a produção também caiu.

1.3 ASPECTOS HISTÓRICOS E ECONÔMICOS DA BORRACHA BRASILEIRA

Segundo Prado (1994, p. 236), no mesmo momento em que a lavoura


cafeeira alcançou o zênite da sua prosperidade (primeiro decênio do século) outra
atividade veio quase emparelhar-se a ela, no balanço da produção brasileira: a
extração da borracha. Este produto foi oferecido por uma árvore nativa dos trópicos
americanos (México, América Central, Bacia Amazônica) a seringueira, cujo nome
cientifico é Hevea brasiliensis. Os índios utilizavam-na, imemorialmente, na
confecção de calçados, mantos, seringas e bolas elásticas.

Caio Prado Júnior (1994, p. 236), na sua obra, História Econômica do


Brasil, discorre sobre a origem, a primeira utilização, a introdução e a aplicação da
borracha no Brasil e no mundo. Afirma que a primeira utilização industrial da
borracha deveu-se a Priestley que, em 1770, observou que servia para apagar
traços de lápis. Logo depois da descoberta do simultaneamente por Goodyear nos
Estados Unidos e Hancock na Inglaterra descobriram o processo de vulcanização,
95

em 1842. Este processo consistia numa combinação de borracha com enxofre que
lhe dava flexibilidade e a tornava inalterável em qualquer variação de temperatura.
Este material fez-se largamente aproveitável na indústria de instrumentos cirúrgicos
e de laboratório. Em 1850, aproximadamente, começaram a ser empregados no
revestimento dos aros das rodas dos veículos. Esta aplicação, aperfeiçoada em
1890 pela introdução do pneumático, e pela larga difusão do automóvel, tornou
modernamente a borracha uma das principais matérias-primas industriais.

Sobre o Brasil, Prado (1994, p. 236) faz o seguinte comentário:

Possuidor da maior reserva mundial de seringueiras nativas, verá


assim abrir-se mais uma perspectiva econômica de vulto. É que a
produção contará agora com uma larga disponibilidade de mão-de-
obra que até então representara a grande dificuldade nesta região
escassamente povoada da Floresta Amazônica.

Prado (1994, p. 236) ressalta que, no decênio 1901-1910 a exportação da


borracha chegou à média anual de 34.500 toneladas, num valor de mais de 220.000
contos, ou seja, de 13.400.000 libras esterlinas – ouro, o que veio a representar 28%
da exportação total do Brasil. O país dispunha nesta época, de todos os
instrumentos e ferramentas para o seu desenvolvimento, ou seja, o mesmo vivia o
seu período de ascensão, nas vendas e exportações, como também, nos elevados
índices de produção.

Os setores de maior produção da borracha encontravam-se na Baixa Bacia


do Rio Amazonas (Estado do Pará) e no Médio Rio (onde estava a província, hoje
estado do Amazonas). O território do Acre, como nos fala Caio, começou a
contribuir, com algum vulto, na produção brasileira de borracha em 1904, quando o
volume exportado já ultrapassava 2.000 toneladas. Em 1905, alcançou 8.000
toneladas e, em 1907, mais de 11.000, colocando-se em primeiro lugar entre as
regiões produtoras do país.

Prado (1994, p. 237) faz menção à precária exploração da borracha.


Descreve como se dava o manuseio, a utilização e a comercialização. Analisa,
também, os pesados e sofridos trabalhos dos seringueiros e as subordinações e
regras impostas por seus patrões para realização das atividades de rotina. Segundo
ele, a exploração da borracha consistiu apenas, em descobrir as concentrações de
seringueira na floresta em que se distribui muito irregularmente e, ao mesmo tempo,
96

colher a goma necessária à produção. Percebem-se diferenças entre a produção da


maniçoba no Piauí e das seringueiras na Amazônia.

Na Amazônia a produção era diferente. A de lá era a mangaba, ela


tira o leite e apara num vaso. Eles riscam ela e aparam o seu leite no
vaso. Quando tudo se acaba levam ela para casa e cozinham ela até
que ela se torne em liga, ou mesmo em borracha. A liga da nossa era
melhor do que a da mangaba, da mangaba era meio fraca, já da
maniçoba você podia esticar que ela não torrava.28

As propriedades eram divididas com estradas, isto é, picadas de 4 a 6 km de


comprimento, abertas na mata. Os caminhos davam acesso dos seringais aos rios e
aos portos. Descrevendo a dura vida do trabalhador na Amazônia, Prado (1994, p.
238) afirma que o trabalhador construía sua choupana na boca da estrada. Em cada
manhã saía a percorrê-la para colher a goma. Permanecia lá, isolado, durante várias
semanas a espera do transporte fluvial que lhe trazia os gêneros de consumo
necessários, e que levava o produto já pronto. A sua única diversão na selva era a
bebida alcoólica cuja compra dissipava, prontamente, todo no seu magro salário
adquirido.

O que se torna ainda mais desagradável, é pensar que o trabalhador sem


condições, ainda era obrigado a comprar e a arcar com as despesas dos
instrumentos de trabalho, como por exemplo, machados e outros, e ao mesmo
tempo, com a sua alimentação destacada como caríssima para a época. No final de
tudo, o que lhes sobravam eram as dívidas, sendo as tais descontadas nos meses
seguintes pelos seus patrões ou mesmo pelos chefes de serviço.

Prado (1994, p. 238) fala sobre a terrível problemática, pela qual passava a
Amazônia, nos períodos de sua ascensão e glória:

A um tal regime de trabalho e padrão devido do trabalhador


corresponde necessariamente a um sistema rudimentar de
exploração econômica. Com relação à cultura da seringueira,
nenhuma precaução maior era tomada para a proteção e
conservação das plantas. As árvores produtoras eram submetidas a
um regime de extração intensiva e mal cuidadas, com isso iam sendo
rapidamente destruídas.

Não havia de que se preocupar. As reservas da floresta eram abundantes e


outras viriam, sucessivamente, substituir as esgotadas. Mas, elas ficavam, cada vez
mais, dispersas e de difícil acesso. Era evidente a ruína que se preparava para curto
28
Inácio Pereira da Silva, 85 anos. Novo Zabelê. Entrevista realizada em 07 de Dezembro de 2011.
97

prazo. Os altos preços da borracha e o trabalho miseravelmente pago disfarçavam a


triste realidade na Amazônia.

Prado (1994, p. 238) mostra seu ponto de vista sobre a real situação da
região. Afirma que ela e os seus administradores encontravam-se resumidos
somente ao capital e aos altos preços do produto. Esqueciam da conservação das
plantas e da manutenção de onde vinha todo o manancial de riquezas e aspirações.

Conforme Prado (1994, p. 239), em 1912, a exportação da borracha brasileira


alcançou seu máximo com um total de 42.000 toneladas. Os preços também
atingiram seu teto em 1910. A tonelada valia quase 10 contos FOB, ou seja, 639
libras. Naquele ano, a exportação somou 377.000 contos (24.646.000 libras-ouro)
representando quase 40% da exportação total do país. Daí por diante foi só declínio.
O colapso da produção brasileira chegou como um cataclismo arrasador, mas as
ameaças dos concorrentes já vinham de longas datas.

Em 1873 e 1876 foram levadas do Amazonas para Londres sementes de


Hevea. Lá foram plantadas no jardim botânico de Kew. Transportadas as plantas daí
para Ceilão e Singapura, elas deram origem a imensas plantações racionalmente
conduzidas e selecionadas. Do Ceilão e da Malásia, elas desbancaram
completamente a produção extrativa da América.

Prado (1994, p. 239), chama a atenção para alguns dados. Relata que, em
1919, o Oriente contribuía com 382 mil, das 423 mil toneladas da produção mundial.
No Brasil, a produção fora resumida ao total de 34 mil toneladas que valiam apenas
105.000 contos (5.686.000 libras).

A respeito da forte concorrência da borracha asiática, Caio (1994, p. 239)


afirma que:

Não é difícil compreender esta brusca mutação do cenário


econômico internacional da borracha. A concorrência que se
estabelecera era entre uma região produtora primitiva como a
Amazônia e outra que contava com todos os grandes recursos
técnicos e financeiros da Inglaterra, seguida logo pela França e
Holanda.

Prado (1994, p. 239) justifica a razão de o Brasil encontrar-se naquela época


numa posição inferior em relação ao Oriente. Afirma que o Brasil nunca passara de
mero produtor de matéria-prima, ou seja, todo o negócio propriamente da borracha,
98

desde o financiamento, comércio, até a manipulação e o consumo do produto


industrializado era-lhe alheio. Estava assim inteiramente a mercê de seus
concorrentes que dispunham de todos os setores e alavancas econômicas da
economia da borracha.

Prado (1994, p. 240) também cita os grandes benefícios e contribuições da


borracha para a Amazônia. Sua população subira de 337.000 habitantes em 1872,
para 476.000 em 1890 e para 1.100.000, em 1906. Em plena selva erguera-se uma
cidade moderna, Manaus, capital do Estado do Amazonas, que possuía, no
momento da crise, 70.000 mil habitantes. “A riqueza canalizada pela borracha não
servirá para nada de sólido e ponderável. O símbolo máximo que ficará desta fortuna
fácil e ainda mais facilmente dissipada é o Teatro Municipal de Manaus” (PRADO,
1994, p. 240). A Amazônia disponibilizava de grandes recursos, e ao mesmo tempo,
de grandes riquezas, mas o que aconteceu, foi que os mesmos foram mal
administrados e, ao mesmo tempo, mal conservados para a geração de novos
frutos, recursos e investimentos. Prado (1994, p. 240) complementa:

Desfeito o castelo de cartas, em que se fundava toda esta


prosperidade fictícia e superficial, é claro que nada sobraria dela. Em
poucos anos, menos ainda em que se levou para constituí-la, a
riqueza amazonense se desfará em fumaça. Nas cidades, setores
inteiros de casas abandonadas e desfazendo-se aos poucos. A mata
voltando ao isolamento, com tudo isso a terra se despovoa.

Conforme Prado (1994, p. 240), vão-se os aventureiros e buscadores de


fortuna fácil procurar novas oportunidades em outros lugares. Ficará a população
miserável de trabalhadores que aí se reunira para servi-los, e que trará estampado
no físico, o sofrimento de algumas gerações aniquiladas pela agrura do meio natural.
Este foi o triste final da produção da borracha na Amazônia. Ela tinha tudo para ir á
frente. Desperdiçou tudo quanto havia produzido, ou mesmo, recebido com a
expansão da borracha ou mesmo com a sua comercialização.

2 O DESENVOLVIMENTO DA MANIÇOBA NO SERTÃO DO PIAUÍ

Segundo Oliveira (2001, p. 7), “no início do século XX, o Estado do Piauí
viveu o “boom” da borracha da maniçoba que era utilizada para a produção láctea e
99

estava relacionada ao desenvolvimento das indústrias automobilísticas e elétricas”


(Fig. 1). A maniçoba foi a segunda planta produtora de borracha conhecida no
mundo comercial. Ficava apenas atrás das seringueiras na região Norte do país.
Sua borracha era exportada principalmente para os Estados Unidos, França e
Inglaterra. Sobre isto explica José Clementino Alves:

A maniçoba do século XIX foi à segunda economia do Estado do


Piauí. A mesma era extraída aqui no Sudeste do Piauí, por exemplo,
no município de São João, São Raimundo Nonato até a cidade de
Caracol. Ela era uma grande produção que gerou muita renda ao
trabalhador, ao seringueiro que furava a maniçoba, ao atravessador
e para as grandes indústrias. As indústrias eram nos Estados Unidos
e a maniçoba era transportada daqui de São Raimundo Nonato até
aos Estados Unidos para ser extraída e produzir valor.29

Figura 1 – Borracha da Maniçoba (Fonte: Ney Clemente Dias Brito)

Na época, a produção da borracha das seringueiras da Amazônia era maior


do que a produção da maniçoba no estado do Piauí. No momento em que começou
a sua produção e exportação para outros países, a maniçoba no Piauí começou
também a se pôr em grande destaque no mercado.

29
José Clementino Alves Parente, 78 anos. São Raimundo Nonato. Entrevista realizada em 07 de
dezembro de 2011.
100

Oliveira (2001, p. 7) relata:

A exploração da maniçoba no Piauí foi mais intensa do início do


século XX até os primeiros anos da segunda década, quando os
preços internacionais do látex decaem. Uma segunda fase de
expressão ocorreu nos anos 40, período de ocupação do Sudeste
asiático pelos Japoneses, com o bloqueio da venda da borracha.

Isso se deu em razão da introdução da borracha asiática no mercado mundial


controlada pelos Japoneses. Esta tinha melhor qualidade e preços mais baixos nos
mercados europeus do que a borracha piauiense.

Oliveira (2001, p. 8) afirma:

Áreas que se encontram hoje no entorno e dentro do Parque


Nacional Serra da Capivara foram grandes produtoras de maniçoba.
Essa área foi habitada desde a pré-história, sendo a partir do final do
século XIX ocupada por homens, mulheres e crianças, que se
deslocavam de diversas regiões do país em busca de melhores
condições de vida e que vieram trabalhar com o extrativismo da
maniçoba.

Assim relata Gaspar Dias Ferreira:

Eu me recordo muito bem, no momento que muita gente daqui da


região de São Raimundo Nonato, o pessoal de Várzea Grande hoje
Coronel José Dias, aqui dessa beira de serra da cidade até São
Lourenço, havia muita gente tirando e furando borracha da serra. O
pessoal aqui da Gameleira, São Braz, também produziam borracha.
O povoado de São Braz que hoje é cidade, Anísio de Abreu, e
Caracol também produzia, só que a produção maior era de São Braz
para cá. Quando o povo tinha mesmo incentivo, era uma região que
possuía muita gente, principalmente da região de São Braz a
Coronel30.

Segundo a historiadora Oliveira (2001, p. 13),

algumas cidades localizadas no Sertão do Piauí, tiveram suas


histórias relacionadas ao desenvolvimento da economia extrativa da
maniçoba ganhando importância durante este período. São
Raimundo Nonato, São João do Piauí, Caracol e Canto do Buriti
sofreram maiores influências da produção da borracha.

A borracha possibilitou a emancipação da vila de São Raimundo Nonato, em


município e foro de cidade, em 1912 (IBGE, 2009). Incentivou ainda a emancipação
de Caracol e Canto do Buriti (1910-1920) e o povoado de Zabelê (OLIVEIRA, 2001).

30
Gaspar Dias Ferreira, 78 anos. São Raimundo Nonato. Entrevista realizada em 07 de Novembro de
2011.
101

O município de São Raimundo Nonato possuía extensa área territorial até os


anos 1960. Com a política do Governo Estadual de criação de outras cidades, este
município teve sua área e sua população reduzida. (OLIVEIRA, 2001, p. 13). A
população de São Raimundo Nonato passou de 5.997 habitantes, em 1890 para
19.851, em 1920, contando com mais de duzentas casas, três praças, e alguns
estabelecimentos comerciais que ofereciam gêneros diversificados (EMPERAIRE
apud OLIVEIRA, 2001).

A intensificação de sua ocupação ocorreu em face da valorização e do


extrativismo da maniçoba. O desenvolvimento desta atividade chamou à atenção de
vários indivíduos de outras localidades que vieram para São Raimundo Nonato a
passeio, ou mesmo para trabalhar neste ramo ou em outros ramos do mercado.

Conforme Oliveira (2001, p. 20),

a cidade de São Raimundo Nonato teve um surto de riqueza com a


exploração de maniçoba, pois foi um dos municípios que mais
produziu a borracha, tanto de origem nativa, quanto cultivada.
Passado o surto extrativista, este município não experimentou mais o
mesmo apogeu, embora nunca tenha deixado de estar sempre entre
vinte mais populosas cidades piauienses.

A desvalorização do produto ocorreu quando a borracha asiática entrou em


circulação no mercado, no momento em que a sua qualidade e os seus preços eram
melhores do que os encontrados no Brasil.

Oliveira (2001, p. 20) afirma que:

estas informações descritas acima são semelhantes às da autora


Teresinha Queirós, ao passo que esta última identificara as principais
áreas de ocorrência do extrativismo e plantio de maniçoba,
destacando a região Sudeste como principal pólo do produto: Esses
dados informam os municípios de São João do Piauí, Floriano e São
Raimundo Nonato como os principais exportadores seguidos de
Oeiras, Picos, Valença, Simplício Mendes, Pedro II, Paulistana, Bom
Jesus e Amarante, com exportação anual média superior a vinte
toneladas anuais”.

De acordo com Duque (1964 apud Oliveira 2001, p. 22), é aconselhável o


seu plantio juntamente com outras espécies, como mandioca ou algodão que
ajudariam nas despesas do proprietário. A grande virtude da maniçoba é sua
adequação para o reflorestamento de terras secas e de morros, isolada ou em
consórcio com outras plantas.
102

A descoberta do método de incisão na raiz da árvore pela lega, instrumento


de trabalho dos maniçobeiros para extração do látex, foi o principal acontecimento
para que a árvore da maniçoba despertasse grande atenção (Fig. 2 e 3). Muitos
trabalhadores imigraram. Comerciantes interessaram-se pela compra e pela venda
do produto. Assim relata Inácio Pereira da Silva:

Os caras abriam os carreiros e quando estavam tudo aberto, eles


tinham uma legazinha, botavam um saco de barro para um lado e
saíam cavando o pé da baixa, de onde se encontrava a batata.
Saneavam o barro, e ali o leite caía em cima daquele barro. As
pessoas trabalhavam segunda, terça e quarta, cavando e furando,
quando era quinta e sexta, eles tornavam a começar do mesmo
lugar, sendo que o leite se tornava em lapa31.

Em meados dos anos 1900, a produção da borracha e a sua comercialização


tinham posição de destaque, no comércio local, no Brasil e no mundo. OLIVEIRA
(2001, p. 27) explica:

A exploração econômica da maniçoba exigia vasta mão-de-obra e


pouco investimento financeiro, pois a maioria da extração ocorria em
terras devolutas e os gastos dos barrraquistas eram somente com a
construção do barracão e com a compra de alimentos.

Figura 2 – José Clementino Alves Parente, 78 anos, descrevendo como se furava o chão
com a lega, para a extração do látex (Fonte: Ney Clemente Dias Brito)

31
Inácio Pereira da Silva, 85 anos. Novo Zabelê. Entrevista realizada em 07 de dezembro de 2011.
103

Figura 3 – Lega, instrumento de trabalho dos maniçobeiros (Fonte: Ney Clemente Dias Brito)

Várias espécies da maniçoba foram conhecidas, mas nem todas eram


exploradas para comercialização. Destacam-se: Manihot Glaziovii, que era
encontrada principalmente no Ceará, M. Dichotoma, cuja principal área de
ocorrência era a região centro-sul da Bahia, M. Heptaphila, que tinha como principal
área a região do médio curso do Rio São Francisco e M. Piauhiensis, que era a
espécie mais abundante em todo o estado do Piauí, em especial no Sudeste
(OLIVEIRA, 2001) (Fig. 4).

Para Oliveira (2001, p. 26),

a árvore estava localizada principalmente nas serras e chapadas do


Sudeste do Piauí, quase sempre em terras devolutas, o que
favoreceu a afluência de mão-de-obra a região. A produção era
extensiva e realizada de forma predatória, embora também, o cultivo
em algumas fazendas.

O que favoreceu a vinda de trabalhadores de outros estados, também foi à


questão que as terras na época pertenciam ao Estado. O mesmo cedeu posses de
graça para o plantio, colheita e produção da maniçoba. O movimento dos
trabalhadores de outros Estados nessa época constitui-se como a base para a
elevação da produção da maniçoba na região.
104

Figura 4 - Árvore da Maniçoba (Fonte: Ney Clemente Dias Brito)


105

2.1 A OCUPAÇÃO DAS TERRAS E O COTIDIANO DOS MANIÇOBEIROS

A economia extrativista acarretava a ocupação de novas áreas. Segundo


Emperaire, apud Oliveira (2001, p. 28), foi “com a maniçoba que se deu a exploração
e a colonização de zonas recuadas como a Serra Branca”.

Estas terras, antes da extração do látex de maniçoba, eram


desconhecidas e despovoadas. Somente após o descobrimento da
maniçoba é que passam a ser conhecidas e habitadas por indivíduos
da região ou mesmo de outros estados, que vinham em busca de
trabalho e de melhores condições de vida (OLIVEIRA, 2001, p. 28).

Na Serra Branca havia um Olho D’Água que era a principal fonte para
dessedentação humana e animal. O Olho D Água da Serra localiza-se no limite de
São Raimundo Nonato com São João do Piauí. “O mesmo era um logradouro
público que abastecia uma zona fertilíssima e suficientemente habitada por inúmeras
famílias, ou seja, era fundamental para a sobrevivência dos trabalhadores em
regiões secas” (OLIVEIRA, 2001, p. 28).

A ocupação das terras devolutas entrou em colisão com os


interesses dos maniçobeiros o que resultou no surgimento de
conflitos. Em 1912, em mensagem apresentada à Câmara
Legislativa, o governador Antonino Freire da Silva fez referências aos
arrendamentos efetuados principalmente na região de São Raimundo
Nonato e São João do Piauí. Muitos arrendamentos foram
concedidos pelo governo estadual, geralmente por dez anos. Os
solicitantes alegavam, como justificativa, o plantio de maniçoba e a
criação de animais (OLIVEIRA, 2001, p. 28).

Com relação aos arrendamentos de terras, Oliveira (2001, p. 30) faz entender
que na região Sudeste do Piauí, a documentação encontrada privilegiava áreas
menores e por maiores períodos de tempo, geralmente quatro léguas por uma de
largura e por quatro anos. Os arrendamentos concedidos, quando eram destinados
para o cultivo de maniçoba, possuíam mais de quatrocentos hectares e o prazo
variava entre quatro e dez anos.

A exploração da maniçoba proporcionou a ocupação de novas áreas e o


incremento populacional em diversas regiões do Piauí. Possibilitou a criação de
novos municípios e a dinamização dos já existentes (OLIVEIRA, 2001, p. 30).

Com a vinda de trabalhadores para o Piauí, muitos dos seus municípios foram
surpreendidos com a forte demanda de indivíduos, dando início à formação de
106

novos municípios e povoados, todos eles espalhados pela região Sudeste e


circunvizinhanças. Vieram trabalhadores da Bahia, de Alagoas, do Ceará e de
Pernambuco. Este último foi o que mais se destacou em número de trabalhadores,
tanto na primeira fase de ascensão do produto, quanto na segunda fase de seu
desenvolvimento.

De acordo com Oliveira (2001, p. 39):

A principal relação de trabalho existente na região era barraquista-


maniçobeiro. O barraquista que geralmente era um comerciante e
possuía um relativo poder executivo naquela sociedade, demarcava
uma área e arregimentava certo número de trabalhadores.

O barraquista exercia o papel de intermediário entre o maniçobeiro e o


comerciante. Às vezes, ele era o próprio comerciante que recebia a produção dos
maniçobeiros. Em outras situações ele era contratado pelos donos das terras. Um
deles relata:

Eu tinha um barracão grande que despertava muita gente, e era


desse jeito: eu fornecia ao maniçobeiro as ferramentas, e aí, quando
era no final de semana eles pegavam, lavavam, aguavam e depois
vendiam. Se sobrasse eu pagava a eles do mesmo jeito. Tornava a
fazer sacos para eles e todo tempo desse jeito, a maniçoba veio até
os anos 1961, de 50 até 61. 61 foi o derradeiro ano que eles
trabalharam de borracha. Aí a mesma acabou e todo mundo se
espatifou na época32.

Outro protagonista importante no ciclo da borracha, conforme Oliveira (2001),


foi o aguador.

Ele era o comerciante da água. Levava-a das fontes permanentes, os


chamados Olhos de Água, até os maniçobeiros mais distantes. A
relação básica do trabalho no ciclo da maniçoba pode ser
exemplificada da seguinte forma: Donos de terras – Comerciantes –
Barraquistas – Maniçobeiros – Aguadores (OLIVEIRA, 2001).

O que realmente acontecia entre estas classes era uma relação de troca. O
barraquista fornecia todos os instrumentos de trabalho ao maniçobeiro e tudo que
este necessitasse. O maniçobeiro vendia-lhe a maniçoba para sustentar a sua
família. Os maniçobeiros recebiam dos barraqueiros os produtos alimentícios
necessários a sua alimentação e à alimentação de sua família.

32
Inácio Pereira da Silva, Novo Zabelê. Entrevista realizada em 07 de dezembro de 2011.
107

A alimentação dos maniçobeiros era péssima. Eles trabalhavam todos os dias


da semana, tendo um só dia para descanso, o domingo. Eles comiam feijão, farinha,
toucinho de porco e rapadura. Às vezes complementavam sua dieta com aves, tatu e
cotia que caçavam. A caça era abundante na época.

No período chuvoso, os maniçobeiros não trabalhavam com a maniçoba.


Aproveitavam para plantar e colher feijão, milho e mandioca. Segundo José
Clementino, 78 anos, as pessoas naquela época ainda não conheciam o arroz.
Poucas pessoas produziam-no. O café vinha de Juazeiro – BA e a rapadura, de
Januária – MG. Os tropeiros eram responsáveis pelo transporte dessas mercadorias,
de Remanso – BA a São Raimundo Nonato - PI.

Havia locais com muita maniçoba, mas não havia barraquista. Neste caso, os
maniçobeiros deviam trabalhar dobrado para comprar as suas ferramentas de
trabalho e o alimento. Segundo Oliveira (2001, p. 69):

Os maniçobeiros saíam para o trabalho no escuro, antes do sol


nascer. Embrenhados no mato, rasgando o corpo nos garranchos
secos, passavam o dia furando a maniçoba. Percorriam as pinicadas
e passavam por todas as árvores em busca de resultados. Com a
lega, seu principal instrumento de trabalho, feita de um pedaço de
madeira que variava entre 50 cm e 1m de comprimento, faziam
incisões na raiz ou no caule da planta. Uma das pontas da lega, a de
madeira, servia de cavador e a outra, de ferro, era mais utilizada nos
terrenos onde havia muitas pedras. Este instrumento era
fundamental para o bom trabalho dos maniçobeiros. Era com ele que
extraíam o látex. O mesmo era utilizado para sangrar a raiz da árvore
depois de colocado o barro no buraco (Fig. 5).

O trabalho da maniçoba era leve e, ao mesmo tempo, saudável. José


Clementino Alves Parente, ex-maniçobeiro, relata:

O trabalho é muito simples, a gente comprava um facão e entrava no


mato fazendo pinicadas que, depois, se chamavam carreiros.
Limpava em redor do pé da maniçoba. Depois andava com um
saquinho de barro. Barro é uma argila que se encontra no pé das
pedras que tem o nome de tabatinga. Nós tínhamos uma lega, um
arco dobrado enfiado num pau. Aí você chega no pé, cava e corta. Aí
bota o barro, sai o leite e você vai lá para frente. Amanhã, se você já
precisar você apanha aquilo tudo, lava, e já vende para o
atravessador colocando o dinheiro no bolso33.

33
José Clementino Alves Parente, 78 anos. São Raimundo Nonato. Entrevista realizada em 07 de
dezembro de 2011.
108

Figura 5 – Lega com duas pontas (Fonte: Ana Stela de Negreiros Oliveira)

Outro material fundamental para o bom trabalho do maniçobeiro era o barro


com que forrava o buraco para receber o látex. “Geralmente, utilizava-se a tabatinga,
espécie de argila impermeável que era colocada na cova, para isolar o látex do solo
até a sua coagulação” Oliveira, 2007) (Fig. 6).

Figura 6 - Barro que forrava o leite da maniçoba (Fonte: Ney Clemente Dias Brito)
109

Oliveira (2001, p. 71 ) enfatiza o trabalho infantil e das mulheres:

Apesar das duras condições, o trabalho infantil era utilizado, e


grande maioria dos maniçobeiros começou a trabalhar ainda criança.
Algumas crianças e adolescentes já assumiam a responsabilidade de
adultos, e muitos que perderam os pais ainda tinham que sustentar
os irmãos menores. O trabalho da mulher era utilizado na lavagem e
secagem da maniçoba, e também, era muito grande sua presença
nos maniçobais.

A principal fonte de renda e trabalho na época, dizia respeito à compra e


venda da maniçoba. Dela viviam os trabalhadores e os comerciantes. Com ela
sustentavam as suas famílias, contribuindo desta maneira, para o desenvolvimento
da economia da região e estado. Inácio Pereira da Silva relata:

Era o ramo maior do município aqui de São Raimundo Nonato, a


região de Caracol, São Braz, São João. Essas regiões tudo tinha
maniçoba. Todo mundo só trabalhava com a maniçoba, e o rojão do
trabalho é como eu estou lhe dizendo. As mulheres trabalhavam,
principalmente aquelas pobres, as mais folgadas não iam, mas
aquelas mais pobres iam na hora todas elas com uma cambada de
meninos, todos furavam. Era um bocado de meninos. Ligeirinho eles
apanhavam. A época da maniçoba era um tempo que todo mundo
tinha dinheiro. Se você furasse hoje e parasse para dizer eu preciso
comprar um negócio amanhã a dinheiro, logo apanhava ela, vendia
ou mesmo comprava a dinheiro34.

Todas as relações de negócio da época concentravam-se na venda e


comercialização da maniçoba. Ela tornou-se a base da economia familiar, dos
municípios da região. A mesma gerou ao município de São Raimundo Nonato bons
lucros, empregos, vendas e estabelecimentos comerciais.

2.2 A ECONOMIA DA MANIÇOBA NO ESTADO DO PIAUÍ

A borracha produzida com o látex da maniçoba do Piauí era constituída de


várias misturas. Seu preço era elevado e sua qualidade era baixa. A Ásia tinha maior
controle sobre a produção, determinando a quantidade, o preço e a qualidade do
produto.

Queiroz (2006, p. 34) afirma:

34
Inácio Pereira da Silva, 85 anos. Novo Zabelê. Entrevista realizada em 07 de dezembro de 2011.
110

A instalação de empresas produtoras na Ásia teve o sentido de


superar a dependência dos países consumidores à oferta natural, de
alto custo e qualidade heterogênea, na maior parte de procedência
brasileira, bem como de tornar fácil e direto o controle dos países
consumidores sobre as áreas produtoras.

Sobre as impurezas da borracha da região Sudeste do Piauí, Inácio Pereira


da Silva relata:

Depois de um certo tempo para cá tinha uns caras sem vergonha


que passaram a sujara mercadoria. A maniçoba embuchava e saia o
leite que estava no buraco. Eles pegavam aquela bucha, batiam e
botavam no buraco. Aí o leite vinha cobrindo. Do meio para o fim,
saía muita sujeira. Havia os caras que furavam pouco e queriam no
final que a maniçoba desse muito peso. Assim faziam esse serviço,
mas não era todo mundo não35.

Com isso, a qualidade do produto do Brasil era inferior à da borracha asiática.


Alguns trabalhadores usavam de má fé. Para que a borracha tivesse maior peso,
acresciam impurezas para que, no ato da venda, tivessem maior lucro. Hoje o Brasil
é importador de borracha. Queiroz (2006, p, 34) explica:

O interesse manifestado pelas maniçobas e outras plantas lácteas,


como a mangabeira e o guaiúle, está ligado hoje, a outra conjuntura.
Trata-se da necessidade de atender à demanda interna, de que o
Brasil é grande importador. Ocorreu, pois, uma inversão quanto à
posição no mercado da borracha.

De fato, aconteceu o que não deveria acontecer. Brasil deixou de ser


exportador, para tornar-se num mero importador de borracha. Segundo a mesma
pesquisadora, essa dependência de mero importador ainda vai ser aprofundada se
não forem adotadas políticas de cultivo sistemático das plantas produtoras de látex.

Segundo Queiroz (2006, p. 38), a divulgação processada no Nordeste e, em


parte, a difusão das atividades da maniçoba, estavam ligadas às expectativas
geradas a partir do desempenho da economia amazônica, centrada na exploração
da borracha. As fantasias em torno da riqueza amazônica constituíam a referência
básica na propaganda da cultura da maniçoba.

Em face disso, a maniçoba piauiense encontrava-se influenciada pelas


riquezas dos seringais amazônicos, no auge de sua exportação. Aqui a extração do
látex desenvolvendo-se como importante fonte de riqueza e trabalho. Queiroz (2006,

35
Inácio Pereira da Silva, 85 anos. Novo Zabelê. Entrevista realizada em 07 de dezembro de 2011.
111

p. 41) descreve a Manihot Piauhyensis, como uma árvore de pequeno porte e muito
resistente à seca, atingindo maturidade por volta dos três anos. Segundo ela, “a
Manihot Piauhyensis estendeu-se das zonas naturais, a todo o Estado de origem.
Foi igualmente cultivada no Maranhão, n Ceará, em Pernambuco, em Alagoas e na
Bahia”.

As sementes da maniçoba do Piauí eram exportadas para a formação de


culturas fora do Estado, pois, na época, era considerada a espécie mais produtiva.
Silva, (1913, p. 92) afirma que as sementes encomendadas para distribuição pela
Superintendência da Defesa da Borracha orientavam-se para essa espécie, definida
como a mais precoce, de fácil adaptabilidade, resistência e de bom rendimento.

A Manihot Piauhyensis diferenciava-se das demais espécies. Proporcionava


mais lucros, como também resistência a períodos chuvosos, ou mais secos, sendo
ela de maior preferência pelos comerciantes e trabalhadores. A sua propaganda
difundiu-se, de modo que os demais Estados queriam suas sementes para, desta
forma, ampliar sua produção e lucratividade.

A respeito da descrição da economia piauiense na década de 1890, Queiroz


(2006, p. 51) informa:

O comércio que poderia contribuir para a melhoria das condições do


Estado, atravessava grandes dificuldades e que os braços que
podiam concorrer para a agricultura local emigravam para a região
da borracha na Amazônia, ou incorporavam-se ao Exército Nacional”.

A economia do Piauí passava por dificultosa situação. O comércio que era


visto como ponto crucial para a resolução dos problemas, não era praticado. A
população tinha maior interesse pelos seringais da Amazônia ou pelos serviços no
exército do que pela agricultura local de subsistência.

Conforme Queiroz (2006, p. 53):

Três características podem ser destacadas como integrantes de um


quadro explicativo utilizado para o próprio Brasil: A escassez de mão-
de-obra, cuja solução apontada era a imigração de europeus; a
escassez de capitais que deveria ser superada pela fundação de
estabelecimentos de créditos e a inexistência de uma estrutura de
transportes e comunicações, tida como responsável pela asfixia do
comércio que deveria ser resolvida com a construção de estradas de
ferro.
112

Entende-se, por estas informações que, na década dos anos 90, a mesma
realidade pela qual passava o Brasil, era dominante no estado do Piauí. Este
Estado passava por um período turbulento ou mesmo de desordem nas suas mais
variadas estruturas, principalmente nos setores de mão-de-obra, de capitais para
financiamentos ou alocações de recursos e, por fim, de estradas e comunicações.

Com relação à economia do Piauí, na segunda metade do século XIX,


Queiroz (2006, p. 53 relata:

A atividade mais importante era a pecuária que ainda utilizava as


mesmas técnicas oriundas do Período Colonial, afastando-se,
portanto, cada vez mais da mesma atividade em outras regiões,
embora, em termos do Estado fosse relativamente importante pela
população que ocupava e pela geração de receitas. A agricultura de
subsistência, geralmente limitada ao consumo local, empregava a
maior parte da população, cujas condições não eram suficientemente
prósperas para que se estabelecessem como fazendeiros ou
comerciantes. A depender da conjuntura de preços, eram produzidos
o algodão, o fumo e, eventualmente, o arroz para exportação.

A economia do Piauí, na segunda metade do século XIX, baseava-se nestas


práticas. Tanto o Brasil quanto o Piauí, concentravam a maior parte de suas
atenções na resolução de três problemas:

Escassez de mão-de-obra: Intensificação do povoamento,


principalmente de imigrantes europeus, o que derivaria o incremento
da agricultura e da indústria, além da criação do mercado e do
desenvolvimento do comércio;
Escassez de Capital: Para superar tal situação, propunha-se a
criação de estabelecimento de crédito que também operasse com
financiamentos para a agricultura e a pecuária. Tal proposta era
encampada pelo governo e comerciantes;
Estrutura inadequada de transporte e comunicação: A economia
do Piauí buscava à sua integração, aos mercados regionais ou
mesmo internacionais (QUEIROZ, 2006, p. 58).

Com relação aos contatos do Piauí com os mercados regionais, a Amazônia


constituía o seu principal ponto de apoio. Essa relação estreitava-se em razão do
fluxo e refluxo dos seringueiros. Quanto aos transportes, os seus custos poderiam
inviabilizar qualquer tentativa de aumento na produção, limitando-a, portanto, à sua
instância local.

Todas estas tentativas foram abandonadas porque a solução dos problemas


aparecia lentamente na mente da população ou mesmo nos órgãos administrativos
113

do Estado do Piauí. A respeito da integração do Piauí com o Brasil e com o mundo,


Queiroz (2006, p. 58) declara:

A integração em termos mundiais pressupunha a criação de


condições favoráveis a algum produto já constante da pauta de
exportações ou de algum novo produto. Entretanto a demanda
externa não estava condicionada ao controle interno da economia.
(...) estas alternativas citadas não representavam a condição
necessária e suficiente para o aprofundamento da integração da
economia piauiense aos mercados regional e internacional.

Este produto consistia na exploração, bem como na extração da maniçoba,


produto que iria combater os problemas econômicos do Estado. À medida que se
intensificava a produção da borracha, ganhava importância e respaldo um novo
mercado: a Amazônia.

3 RELATOS DE COMERCIANTES DE SÃO RAIMUNDO NONATO

3.1 O COMÉRCIO DA MANIÇOBA

De acordo com Oliveira (2001, p. 22), “no Nordeste a maniçoba era utilizada
para a fabricação de borracha desde a primeira metade do século XIX”. Segundo
Lima Rebelo (1913, p. 37, apud Oliveira, 2001, p. 22):

(...) a existência de maniçobais no Piauí era conhecida há muito


tempo, mas não despertava nenhum interesse comercial. Somente a
partir de 1895, devido à utilização do método de incisão na raiz para
a extração do látex realmente aumentou a rentabilidade da borracha,
incrementando o seu comércio.

A vinda de trabalhadores de outras regiões ou cidades do Piauí contribuiu de


forma intensiva, para o incremento demográfico urbano do Sudeste. As cidades
cresceram e desenvolveram-se econômica, social, e culturalmente. Suas populações
cresceram, incentivadas pela expansão da produção e do comércio da maniçoba.

A economia extrativa prevaleceu de forma mais intensiva até o ano


de 1913, acarretando transformações nas cidades do interior do
Piauí. O mesmo processo ocorreu na segunda fase de exploração e
comércio. O comércio do município, nesta época, era próspero e
contava com grandes lojas. As principais casas ofereciam produtos
diversificados, como a Loja Moderna, de Júlio Paixão, a Loja
114

Minerva, de Edmundo Bello da Silva, a Loja Carvalho, de Francisco


Carvalho, e por fim, a Loja Cavalcante, de Aniceto Cavalcante
(OLIVEIRA, 2001, p. 21).

Segundo Inácio Pereira da Silva, o comércio funcionava da seguinte forma:

Os comerciantes compravam bem aqui na cidade mesmo. Os


negociantes de São Raimundo Nonato eram muitos. Compravam as
borrachas das caatingas e faziam grandes quantidades e levavam
para Juazeiro, São Paulo, conforme a quantidade. Foram muitos
anos nesta vida36.

Os estabelecimentos compravam a maniçoba e vendiam-na para


comerciantes de outros municípios, gerando, assim, capital e trabalho. Segundo
Oliveira (2001, p. 23), em 1903, o Jornal de Notícias reproduziu matéria do Correio
de São Francisco de Juazeiro, informando sobre o desenvolvimento da cultura da
maniçoba na zona do Rio São Francisco, destacando a cidade de Remanso,
fronteira com o Estado do Piauí. No final do século XIX, em quase todos os Estados
do Brasil, houve incentivo à comercialização da borracha, não somente dos seringais
na região Norte, mas também da borracha da mangabeira e da maniçoba.

A maniçoba extraída na região Sudeste do Piauí era comercializada em


Juazeiro - BA e em Petrolina - PE. O comércio destas cidades tinha como base a
venda de maniçoba e de couro. O transporte da maniçoba para Remanso, na
segunda fase da borracha, era feito em caminhões. Contudo, grande parte das
mercadorias foi levada em tropas de burros ou jumentos. O comerciante local ficava
responsável pelo controle das entregas do produto até estas cidades de onde seguia
para os portos exportadores (OLIVEIRA, 2001, p. 73).

Os tropeiros tinham função muito importante no comércio local,


principalmente, quando faziam o transporte do produto das áreas de
extração para Remanso, na Bahia, cidade localizada a 98 km da
cidade de São Raimundo Nonato. As tropas levavam maniçoba,
peles de bode e farinha. Na volta, traziam tecidos, café, rapadura, sal
e outros produtos. A maniçoba era transportada seca e ensacada. A
viagem de São Raimundo Nonato a Remanso durava entre 3 e 4
dias. A produção de goma de látex de cidades vizinhas era
comercializada a partir de São Raimundo Nonato para a cidade de
Remanso - BA, a partir da qual era encaminhada para Juazeiro – BA,
por hidrovia. Em Juazeiro era embarcada, na linha férrea da Leste
em direção aos portos de Salvador e Rio de Janeiro (OLIVEIRA,
2001, p. 73).

36
Inácio Pereira da Silva, 85 anos. Novo Zabelê. Entrevista realizada em 07 de dezembro de 2011.
115

Os tropeiros levavam a maniçoba a estas cidades e, na volta, traziam


alimentos e o dinheiro para pagarem aos maniçobeiros. Oliveira (2001, p. 74)
acrescenta que fazia parte também das tropas, o burro cargueiro que levava a
comida a ser consumida na viagem. A partir das décadas de 1940 e 1950 existia
uma frota de caminhões que transportava as mercadorias pelo interior da região
Sudeste do Piauí e Norte da Bahia. Nesta época, as estradas não eram boas,
afetando desta forma todas as mercadorias, principalmente a maniçoba.

Oliveira (2001, p. 74) afirma que, apesar da preocupação do governo estadual


de propiciar melhoramento para as regiões de extração da maniçoba, não houve
quase investimentos na construção de estradas e na melhoria das comunicações.
Em 1913, o governo estadual manifestou interesse na implantação de uma usina de
refinamento da borracha de maniçoba. Ofereceu áreas de terras devolutas para sua
instalação e crédito para o seu funcionamento. Esta ideia era essencial para o
beneficiamento da maniçoba piauiense. Ela tornaria mais lucrativa a maniçoba no
mercado internacional. Infelizmente, tudo isso ficou somente prescrito na teoria.

No período de 1908 a 1913, o Piauí produziu grande quantidade de


maniçoba não só extrativa, mas, também resultante de maniçobais
cultivados. Como exemplo disso, a Fazenda Serra em São Raimundo
Nonato chegou a produzir 18 toneladas, em 1911. Em 1912, a
Fazenda Serra era administrada por dois Ingleses e possuía imensas
plantações de maniçoba. Ela empregava mais de 400 homens. Com
isso, esta fazenda desenvolveu-se de tal modo que se tornou a maior
organização da região e a única que trabalhava de forma inteligente
com a exploração de maniçoba (OLIVEIRA, 2001, p.77).

Gaspar Dias Ferreira declara:

Esse foi um ciclo de borracha que deu muito dinheiro para essa
gente. Melhorou a vida econômica e social de muita gente da cidade.
Daí para cá, deu muito dinheiro. Esse foi o ciclo inicial no começo do
século. Além daqui, tenho noticia que São João do Piauí produziu
muita borracha, Canto do Buriti, até Simplício Mendes. Tenho notícia
que era uma região produtora de borracha. O certo é que a maior
produção era daqui da nossa região e das nossas chapadas. Então
esse aí foi o ciclo da borracha37.

Oliveira (2001, p. 75) descreve a Fazenda Serra, afirmando que a mesma


“possuía 14.400 hectares, e foi comprada de Agrário Cavalcanti por Adolfo Hirchs
em 1904, industrial domiciliado em Nova York, por 5.000$000, especialmente, com

37
Gaspar Dias ferreira, 78 anos. Entrevista realizada em 07 de novembro de 2011.
116

vistas ao plantio de maniçoba”. A Fazenda Serra se destaca das demais, em função


de sua grande produção nos dois ciclos de comercialização e ascensão da
maniçoba. A Fazenda Jurubeba também merece especial atenção, pois foi uma
grande oportunidade de trabalho para a época, sobre isto nos informa Oliveira
(2001, p. 77-78):

Estas duas fazendas empregavam grande número de trabalhadores,


sendo que as relações não se diferenciavam do tipo de trabalho que
predominava na relação barraquista-maniçobeiro nas terras
devolutas. Lá, o produto também era comprado por preço inferior ao
do mercado, conseguindo com isso maiores lucros, o maniçobeiro
independente, mas poucos conseguiam trabalhar nestas condições.
Nessas fazendas, plantava-se a cana-de-açúcar para a fabricação de
rapadura. Os trabalhadores da época eram insistentes e corajosos.
As suas produções não se resumiam somente à maniçoba, mas a
outros produtos de subsistência ou lucrativos.

Oliveira (2001) afirma que, no final do século XIX e início do século XX, o
Brasil, em especial o Nordeste, foi permeado por grandes secas e crises políticas e
sociais que de certa forma incentivaram as migrações internas. Nesta época, os
trabalhadores informados sobre o progresso das seringueiras na região amazônica,
migravam para lá, em busca de melhores condições de vida e trabalho e com
grandes esperanças na criação da indústria de extração da borracha seringueira.

As transações com a maniçoba no Piauí envolviam quatro classes de


pessoas, o comerciante local, o barraquista, o maniçobeiro e os aguadores. No
Amazonas esta realidade não era diferente. Lá, havia casas-aviadoras, seringalistas
e seringueiros. As relações de trabalho eram as mesmas nas duas regiões
(OLIVEIRA, 2001, p. 86)

De acordo com Oliveira (2001, p. 87), os principais comerciantes na primeira


fase, em São Raimundo Nonato, foram Jerônimo Belo, Anicelto Cavalcante, e
Alfredo Nunes Na segunda fase, foram José Ferreira, João Dias, Abdon Rosado,
Hipólito Ribeiro, Zequinha Deusdará, José Cesário de Oliveira, João Gregório e José
Libório de Freitas. Em São João do Piauí destacaram-se a Firma Carvalho, e
Francisco Antônio Paes Landim. Inácio Pereira da Silva ressalta:

Eu tinha o meu barracão. Comprava e botava a maniçoba para secar


e vendia, depois de seca, para os patrões. Eu a lavava e possuía um
depósito para armazenar ela quando já se encontrava em grandes
quantidades. Eu vendia muito para Gaspar, Manoel Dias e Luiz Dias
que trabalhavam com ela. Eu recebia a maniçoba, comprava e tinha
o depósito para secar. Quando o mesmo estava cheio, vendia para
117

eles. Daqui, de São Raimundo, eles transportavam para Remanso,


Petrolina, Juazeiro até São Paulo. Quando havia estoque grande,
eles levavam para lá. Lá ela tinha preço melhor. Era um movimento
bonito de homens, mulheres, crianças, grandes e pequenos. Todo
mundo tinha o seu dinheirinho no bolso para fazer a feira38.

Conforme Oliveira (2001, p. 87) os compradores de Várzea Grande (hoje


Coronel José Dias), vendiam a maniçoba para os comerciantes de São Raimundo
Nonato, ou diretamente para Juazeiro ou Petrolina. O lucro era maior sem os
intermediários. Os comerciantes compravam cerca de 1.000 e 2.000 quilos de
maniçoba por semana. Os mesmos preferiam vender o produto diretamente para
Juazeiro ou Petrolina porque eles lucravam mais e ainda adiantavam os seus
negócios. Era melhor do que repassar para outros de São Raimundo Nonato.

Oliveira (2001 p. 88) relata sobre os comerciantes intermediários de São


Raimundo Nonato. Ela cita: Joãozinho da Onça, Raimundo Caboclo e João
Bonzinho que trabalhavam para José Ferreira. Jorge Tavares era agente de
Francisco Antônio Paes Landim, em São João do Piauí.

Os comerciantes de São Raimundo Nonato e de outras cidades da região


Sudeste obtiveram, com a venda da maniçoba, lucros altíssimos. Ela era o principal
produto de venda para exportação. Este produto revolucionou as cidades da região
do sertão e de todo o Estado.

3.2 REFLEXOS DA BORRACHA DA MANIÇOBA NA ECONOMIA PIAUIENSE

Conforme Santana (2001, p. 86), embora se tratasse de prosperidade


precária, como pensava Celso Furtado, o certo é que o Piauí também passou a
plantar algodão e arroz, de modo a participar do mercado mundial. Inicialmente
plantava-se algodão e arroz. Depois, extraía-se a borracha da maniçoba, a cera de
carnaúba, e o óleo do babaçu (SANTANA apud FURTADO, 2001, p. 86).

Em 1900, Arlindo Nogueira, governador do Piauí, a despeito da exportação da


borracha da maniçoba, preocupava-se com medidas garantidoras de uma boa
arrecadação, quer estabelecendo uma pauta uniforme quer aumentando a taxa. De

38
Inácio Pereira da Silva, 85 anos. Novo Zabelê. Entrevista realizada em 07 de Dezembro de 2011.
118

toda a mercadoria vendida para fora do Estado ou mesmo do país, o governo


cobrava uma taxa, compreendendo um valor X de impostos destinados à melhoria
das condições da sociedade e da economia em geral.

Em 1902, a produção da borracha, apesar da altíssima devastação das


matas, apresentava-se como uma das principais fontes de receita do Estado.
Capitais e braços aplicaram-se na produção da borracha extraída da maniçoba,
reanimando o comércio e vivificando as outras indústrias. Nota-se que nesta época,
o número de emigrantes parara em virtude de novas esperanças por parte da
sociedade, de melhores dias no Estado, em vista da exploração da maniçoba.

Em 1904, o rush da borracha levou Arlindo Nogueira a anunciar que era


próspera a condição financeira do Estado. O mesmo afirmou que: se as outras
receitas se conservaram estacionárias ou sofriam profundas depressões, avultava-
se a da exportação da borracha, com a seguinte progressão:

Anos R$
1901 75: 648$366
1902 143: 006$821
1903 228: 942$104

A receita proveniente da borracha representava 51,54% da realizada, no


último ano, no setor da exportação, e de 23,28% da receita total. No início, a
produção e a comercialização da borracha da maniçoba no Estado, caminhavam a
passos largos, no momento em que aumentava a demanda, oferta e procura no
mercado interno, como também, no mercado internacional.

Em 1908, os principais gêneros de exportação, eram em ordem decrescente


com relação aos anos anteriores. Citam-se: borracha de maniçoba, algodão, cera de
carnaúba, couro de gado vacum, pele de cabra e gado para corte. Nos anos
anteriores, a economia piauiense baseava-se principalmente na criação de gado e
seus derivados. No início do século XX, toda essa realidade mudou. Em vez da
criação de gado estar nas primeiras posições no ranking da economia piauiense, o
que predominava fortemente nesta posição era a extração da maniçoba. Sua venda
e produção cresciam rapidamente nos grandes centros e, principalmente, no meio
rural.

Em 1913, as principais fontes de receita decresceram principalmente a melhor


delas, a borracha. Em 1914, dela procedia a melhor renda, assegurada ao fisco
119

estadual. Entretanto, logo veio a quebra. Diante de todas estas incertezas, e a


produção com altos índices de sazonalidade, urgia cuidar da borracha, pois se
tratava do principal produto de exportação. Considerava-se que a medida
fundamental seria o barateamento do custo de produção. No caso particular do
Piauí, Santana (2001) recomendava as seguintes medidas:

Construção de estradas de ferro ligando os municípios produtores ao


Rio Parnaíba, para diminuir o custo de produção, com a facilidade
dos transportes e o barateamento da vida;
Concessão gratuita de terras públicas, nas zonas de maniçoba;
Perfuração de poços, onde a água não existe e é adquirida para
bebida, a preços fabulosos;
Prêmios aos cultivadores da maniçoba;
Fixação da população adventícia que se emprega na extração de
maniçoba.

Falando-se, da execução ou mesmo da concretização dessas medidas a


níveis do Estado e do país, percebe-se que somente o primeiro e o último deles
foram postos em prática. Os demais ficaram somente no papel. Se tivessem sido
concretizados na época, poderiam amenizar ou mudar toda a realidade da produção
de borracha, concorrendo diretamente com a empresa asiática.

Conforme Mendes (2003, p. 177), em 1937, o valor dos principais produtos do


extrativismo vegetal, a cera de carnaúba, o babaçu e a borracha de maniçoba, dava
ao Piauí a terceira maior posição entre todos os Estados, passando para o segundo
lugar, em 1938 e, para o primeiro, de 1942 até 1947. Durante esse período, a
borracha nordestina teve uma pequena sobrevida, durante a II Guerra Mundial,
quando os Japoneses controlavam a produção da Ásia, no período de 1939 a 1945.

Mendes (2003, p. 177), em sua obra Economia e Desenvolvimento do


Piauí, relata sobre a verdadeira situação do comércio da borracha da maniçoba no
Piauí, durante o período da II Guerra Mundial:

A Borracha da maniçoba cuja exploração crescera no início do


século, em função da demanda criada pela indústria automobilística
nos Estados Unidos e na Europa, perdeu espaço no comércio
internacional para a borracha produzida na Malásia, tal como
ocorreu, em proporções maiores, com a borracha produzida nos
seringais do Acre.

Da mesma maneira que ocorrera o declínio da borracha da maniçoba no


Piauí, nas seringueiras da Amazônia, no Acre, também não foi diferente. A sua
120

produção decaiu também, em face da forte concorrência da borracha européia. Sua


queda foi mais intensiva que a do Piauí.

A produção extrativa vegetal do Piauí chegou a alcançar uma participação de


42% do valor da produção extrativa do Nordeste, em 1947, e de 22% da produção
extrativa brasileira em 1939. Neste último ano, o valor da produção do extrativismo
vegetal correspondia a 21% do produto interno do Estado e superava em mais de
três vezes o valor da produção agrícola (MENDES, 2003, p. 177). Na época, o
Estado do Piauí vivia uma situação confortável no mercado, no momento em que a
sua economia encontrava-se regular e em boas condições.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A produção deste trabalho preenche algumas lacunas referentes ao tema.


Contribuiu para o conhecimento de como verdadeiramente ocorreu o comércio da
borracha da maniçoba no município de São Raimundo Nonato e o seu incremento
na região Sudeste do Piauí.

O comércio da borracha da maniçoba em São Raimundo Nonato e na região


proporcionou elevada prosperidade aos comerciantes, maniçobeiros, barraquistas e
a toda a população. No final do século XIX e início do século XX, as maiores
atenções da sociedade concentraram-se na produção, colheita e venda deste
produto. A borracha das seringueiras da Amazônia e da maniçoba piauiense foi
reconhecida mundialmente, em razão de sua grande oferta e qualidades.

Pela pesquisa bibliográfica e pelos relatos dos entrevistados foi possível


aprofundar o tema do desenvolvimento e do crescimento econômico da sociedade e
do município de São Raimundo Nonato.

A maniçoba teve papel fundamental na história da cidade de São


Raimundo Nonato. Foi por ela que este município elevou-se à
categoria de vila e de cidade. A cidade obteve um grande número de
habitantes, as primeiras casas de venda e comercialização do
produto (OLIVEIRA, 2007).

Nas falas dos entrevistados, percebeu-se o sentimento de alegria e de


saudade dos velhos tempos em que se trabalhava com a maniçoba. Afirmaram que,
121

se pudessem voltar o tempo, voltariam a trabalhar com toda energia, garra e vontade
com este mesmo produto. A produção e venda da borracha era uma vida leve,
saudável, e harmoniosa. Nela, toda a população possuía todos os dias o seu
dinheiro no bolso. Poucas pessoas, na época, passavam por dificuldades, exceto
aquelas que não queriam trabalhar. Havia oportunidades para todos.

Conclui-se que as seringueiras e a maniçoba em seus dois ciclos não foram


além porque foram mal administradas pelo governo, pelos trabalhadores e pelos
comerciantes. Os governos da Amazônia e do Piauí não se preocuparam em investir
na conservação das plantas, nos bons salários e nas condições de vida e de
trabalho dos maniçobeiros, em estradas para escoar a produção e preços, qualidade
e oferta do produto. Os mesmos se preocupavam somente com o lucro das
exportações. Esqueceram do mercado interno, no momento em que a concorrência
da borracha asiática entrou em cena, abalando de vez a produção das seringueiras
e da maniçoba piauiense. Os investimentos em todos esses aspectos deveriam ter
sido postos em prática, com vistas ao bom andamento e funcionamento da
comercialização e da produção.

Contudo, a contribuição destes produtos foi de fundamental importância para


a economia do Estado do Amazonas e de todo o Estado do Piauí, sobretudo, para o
município de São Raimundo Nonato. As duas fases da maniçoba foram primordiais
para o desenvolvimento do comércio na cidade de São Raimundo Nonato.

REFERÊNCIAS

DUQUE, J.G. O Nordeste e as Lavouras Xerófilas. Fortaleza: BNB, 1964.

EMPERAIRE, Laure. Végétation et Gestion dês Ressources Naturelles das La


Caatinga Du Sud-est Du Piauí (Brésil). Op. Cit.

FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. 30 ed. São Paulo: Nacional,


2001.

MAHAR, Dennis J. Desenvolvimento Econômico da Amazônia: uma análise das


políticas governamentais. Rio de Janeiro, 1978.

MENDES, Felipe. Economia e Desenvolvimento do Piauí. Teresina: Fundação


Monsenhor Chaves, 2003.
122

OLIVEIRA, Ana Stela de Negreiros. Catingueiros da Borracha: Vida de


Maniçobeiro no Sudeste do Piauí. 1900/1960. Dissertação (Mestrado). Recife:
Universidade Federal de Pernambuco, 2001.

PENA, Belisário e NEIVA, Artur. Viagem Cientifica pelo Norte da Bahia, Sudoeste
de Pernambuco. Op. Cit.

PRADO JR, Caio. História Econômica do Brasil. 45 ed. São Paulo: Brasiliense,
1994.

QUEIROZ, Teresinha. A importância da borracha de maniçoba na economia do


Piauí: 1900-1920. 2 ed. Teresina: FUNDAPI, 2006.

REBELO, José Pires de Lima. A Indústria da Borracha no Estado do Piauí. Rio de


Janeiro: Superintendência de Defesa da Borracha, 1913.

SANTANA, R.N.M. Piauí: Formação, Desenvolvimento, Perspectivas. Teresina:


FUNDAPI, 2001.

SILVA FILHO, Olavo Pereira da. Carnaúba, pedra e barro na capitania de São
José do Piauí. Belo Horizonte: Ed. Do autor (três volumes), 2007.
ARQUEOLOGIA

Autores:
Felipe Silva Sales
Vívian Karla de Sena
Waldimir Maia Leite Neto
IV VISITAS DIDÁTICAS À CASA DE NECO COELHO

Vivian Karla de Sena


Waldimir Maia Leite Neto

INTRODUÇÃO

Os sítios arqueológicos históricos Casa do Neco Coelho e Casa do


Alexandre, localizados na Trilha da Jurubeba, entorno do Parque Nacional Serra da
Capivara, foram escolhidos para iniciar os bolsistas DO Grupo
PET/Arqueologia/UNIVASF na aprendizagem e ambientação das pesquisas de
campo. Eles servem para confrontar o levantamento bibliográfico realizado
(documentos escritos, pesquisas especializadas da arqueologia histórica e o CNSA
do IPHAN) com o registro arqueológico da região.

Os sítios estão inseridos dentro do contexto histórico de extração de


maniçoba, atividade realizada no século XX, que teve um papel econômico e social
muito importante para o desenvolvimento da região. Apesar dessa importância para
a região interiorana do Nordeste, pouco foi registrado sobre o cotidiano das pessoas
que ocuparam o Sudeste do Piauí, no início, no auge e na decadência da exploração
da maniçoba. A historiografia oficial apenas discute esse momento dentro de uma
perspectiva do valor econômico para o Brasil e para o desenvolvimento do sertão do
estado do Piauí. Entretanto, o cotidiano, a cultura material e as práticas sociais
desenvolvidas pelas pessoas que vivenciaram essa época pouco foram abordados
pela historiografia oficial, deixando uma lacuna sobre este contexto histórico.

O estudo sobre esse momento histórico, além de não ter sido aprofundado
pela historiografia, também não tinha sido alvo de estudo pela própria Arqueologia.
Em decorrência deste fato, pesquisas arqueológicas históricas vêm sendo
desenvolvidas na região por alguns professores integrantes do PET/Arqueologia,
desde o ano de 2009. Pretende-se compreender a história dos grupos sociais
formadores de São Raimundo Nonato sob a ótica dos pressupostos arqueológicos.

Num primeiro momento, o Sítio Casa do Neco Coelho foi pesquisado pela
Fundação Museu do Homem Americano – FUMDHAM. Esta entidade realizou
125

pesquisa de conservação e viabilização do turismo arqueológico e cultural deste


patrimônio. Transformou-o em um museu a céu aberto. Realizou pesquisas de
restauro nas edificações evidenciadas no sítio assim como trabalhos de
acessibilidade (acesso para o turismo) e exposição dos artefatos para os visitantes.
Coletou os artefatos expostos nas escavações e revelou as estruturas que compõem
a residência escavada39.

O segundo momento da pesquisa arqueológica desenvolvida neste sítio foi


realizado por professores e alunos da disciplina Métodos e Técnicas Arqueológicas
III e IV do Curso de Arqueologia e Preservação Patrimonial, nos anos letivos de
2009 e 201040. A pesquisa, nesse momento, tinha como principal objetivo
compreender o cotidiano das pessoas que habitaram o sítio. Com o objetivo de
evidenciar outras áreas de atividades desenvolvidas na antiga Fazenda Jurubeba,
realizaram-se prospecções no entorno do sítio arqueológico. Com a detecção de
locais com potencial arqueológico demarcaram-se duas unidades de escavação,
uma próxima da estrutura da residência e outra a aproximadamente 30m de
distância da casa. Essa última era um refugo secundário da residência. A pesquisa
permitiu a coleta de artefatos que foram classificados como de utilização doméstica.
Coletou-se fechadura, chaves, pregos, moedas, cápsulas de bala de revólver,
fragmentos de vidro e de louça. Associados às estruturas arquitetônicas da
residência, os artefatos encontrados possibilitaram compreender um pouco mais
sobre as atividades diárias desempenhadas pelos moradores e trabalhadores da
antiga Fazenda Jurubeba. A cultura material estava associada a parte do cotidiano
vivenciado pelas pessoas que ocuparam o sítio, nas primeiras décadas do Século
XX.

1 VISITAS AOS SÍTIOS

Para o desenvolvimento dessa atividade com os bolsistas do


PET/Arqueologia, realizou-se, inicialmente, a apresentação das etapas da pesquisa

39
Os primeiros resultados das pesquisas arqueológicas foram publicados por OLIVEIRA, A. S. N.;
IGNÁCIO, Elaine ; BUCO, C. . No Rastro da Maniçoba: Trilha Interpretativa da Fazenda Jurubeba.
FUMDHAMentos, v. VIII, p. 124-132, 2009.
40
A disciplina foi coordenada pela professora Vivian Karla de Sena e o professor Demétrio
Mutzemberg.
126

arqueológica e a visualização das unidades de escavação, assim como a


demonstração das etapas do processo de conservação e restauração da Casa do
Neco Coelho. As atividades de preservação patrimonial culminaram com a
musealização de um Sítio Arqueológico Histórico, transformando-o em um museu a
céu aberto. Conduziram-se os alunos até o mesmo, onde se apresentou, em
contexto, os principais achados arqueológicos e os resultados da pesquisa (Fig. 1).

Figura 1 - Visita dos bolsistas do PET/Arqueologia ao Sítio Casa do Neco Coelho

A exposição dos artefatos, dispostos em expositores, permitiu aos bolsistas


uma experiência de vivência inovadora em Arqueologia. Os mesmos puderam
observar os objetos inseridos no contexto em que foram resgatados, durante as
escavações arqueológicas. Essa atividade, além de prazerosa, foi utilizada como
forma didática de aprendizagem da aplicação do conhecimento arqueológico
experimentado em sala de aula. Proporcionou aos bolsistas uma experiência
rara na Arqueologia brasileira, que é a de se observar os artefatos, estruturas e
127

vestígios no seu contexto. Normalmente, após as escavações, os artefatos são


conduzidos aos laboratórios de Arqueologia, só sendo possível acessar os seus
contextos através de registros documentais dos sítios arqueológicos (Fig. 2).

Figura 2 - Artefatos expostos no Sítio Casa do Neco Coelho

O contato com a diversidade dos tipos de artefatos evidenciados em um sítio


histórico permitiu compreender a importância de preservar o Patrimônio
Arqueológico Histórico não apenas para o desenvolvimento da pesquisa
empreendida pelo arqueólogo, mas também pela necessidade e importância de
deixar esse legado para as gerações futuras. Essa prática permite apresentar à
população local o seu patrimônio, como forma de socializar o conhecimento
científico. Ela mostra a importância de se preservar a História dos antepassados.
Permite que se sensibilize a população atual sobre a importância da preservação do
Patrimônio Arqueológico Histórico no mesmo tempo em que se acessa o passado
dessas comunidades. Ela auxilia na formação de agentes de preservação do
patrimônio local.
128

2 ESCAVAÇÃO ARQUEOLÓGICA

Além da visita didática ao sítio arqueológico Casa de Neco Coelho fez-se


escavação no sítio Casa do Alexandre. Este sítio localiza-se a 1 km, no sentido
leste, do Sítio Casa do Neco Coelho. Ele foi alvo de pesquisas arqueológicas
desenvolvidas pelos professores Waldimir Maia Leite Neto e Vivian Karla de Sena,
com alunos das disciplinas de Métodos e Técnicas Arqueológicas III e IV, nos anos
letivos de 2010 e 2011. O sítio foi ocupado por trabalhadores da Fazenda Jurubeba
que eram empregados na extração da maniçoba. Esse Sítio Arqueológico foi
descrito em pesquisas históricas como uma residência temporária, que apenas
apresentava uma cultura material ligada à atividade do extrativismo vegetal, com
poucos artefatos de utilização doméstica.

Incentivados pela necessidade de se compreender, arqueologicamente, o


contexto histórico e social do período da maniçoba assim como o cotidiano das
pessoas que ocuparam a região, os professores responsáveis pela pesquisa
iniciaram os estudos. Integraram alunos do Curso de Arqueologia e Preservação
Patrimonial da UNIVASF e bolsistas do PET/Arqueologia dessa mesma instituição.

As pesquisas no referido sítio foram iniciadas no ano de 2010. Fizeram-se


prospecções, delimitação do sítio e escavações sistemáticas com uma sondagem de
verificação do potencial arqueológico em profundidade. Abriram-se duas unidades
de escavação o que ocasionou a ampliação da área total do sítio Casa do
Alexandre. As escavações permitiram evidenciar remanescentes de uma estrutura
de parede, feita com a técnica de taipa de mão, próximas à unidade habitacional,
assim como elementos da cultura material referentes à atividade de extrativismo e
de utilização doméstica (Fig. 3).

No ano 2011 foram realizadas duas campanhas no sítio arqueológico, com


alunos das referidas disciplinas, para dar continuidade às pesquisas do ano anterior.
Foram ampliadas as escavações de uma unidade e feita uma prospecção mais
extensa no entorno do sítio. Objetivou-se evidenciar outras áreas de atividades que
pudessem estar relacionadas com o sítio em questão, assim como relacioná-lo com
outras ocupações históricas no seu entorno.
129

Figura 3 - Bolsistas do PET/Arqueologia nas escavações do Sítio Casa do Alexandre

Na ampliação das áreas de escavação evidenciou-se uma área que


apresenta indícios de ter sido utilizada para descarte (hipótese) onde havia
elementos de cultura material diversificada. Havia artefatos de utilização doméstica
(louça, grés, cerâmica simples, frascos de vidro, fragmentos de garrafa de vidro,
concha de metal) e equestre (espora para cavalo), o que demonstra uma grande
intensidade na ocupação do sítio que vai além do que foi descrito nas pesquisas
históricas realizadas a partir de documentação escrita.

As atividades do PET/Arqueologia desenvolvidas com os bolsistas consistiram


em procedimentos de coleta de dados e conservação do sítio. Na coleta de dados os
bolsistas puderam apreender os métodos e técnicas de escavação e prospecção
(utilização das ferramentas de escavação, dinâmica e atribuição de funções) em
sítios históricos assim como os procedimentos do registro (utilização de formulários
de escavação e prospecção, fotografia, desenho de perfil estratigráfico). Na
conservação do sítio foram ainda realizadas atividades manutenção das áreas
escavadas como limpeza e consolidação dos perfis estratigráficos e também limpeza
e proteção da unidade de escavação (procedimentos que asseguram a continuidade
130

das pesquisas em campanhas arqueológicas futuras e auxiliam na proteção do


patrimônio arqueológico).

Com a visita ao sítio, realizou-se também uma prospecção de reconhecimento


do mesmo. Dessa forma os bolsistas visualizaram as características de um sítio
histórico em superfície. Viram como se faz um diagnóstico de áreas de descarte de
objetos domésticos. Observaram a distribuição espacial dos artefatos em superfície
e das estruturas que podem fazer parte de outra unidade habitacional do complexo
de moradias dos trabalhadores da antiga Fazenda Jurubeba. Nessa fase da
pesquisa de campo foram apresentados aos bolsistas os métodos e as técnicas que
se emprega na coleta dos artefatos em superfície e no registro das estruturas e
vestígios associados a esses contextos.

Nesse período, os bolsistas puderam manusear equipamentos utilizados no


registro da espacialidade de sítios Arqueológicos. Operaram o Global Position
System - GPS e a Estação Total. Fizeram, também, o registro fotográfico do sítio
Casa do Alexandre com a utilização de escalas gráficas (Fig. 4).

Figura 4 - Bolsista do PET, manuseando a Estação Total no Sítio Casa do Alexandre


131

Com as atividades de visita técnica e cultural, os bolsistas PET/Arqueologia


obtiveram os primeiros contatos com sítios históricos. Viram toda a diversidade de
tipos de ocupação e a complexidade de cultura material inerentes a esses contextos.
Tais visitas permitiram ainda uma melhor compreensão da necessidade de adequar
os métodos e as técnicas da pesquisa de campo aos diversos tipos de sítios
arqueológicos e seus contextos materiais. Permitiu também a reflexão sobre os
objetivos estabelecidos numa pesquisa arqueológica e a adequação de
metodologias apropriadas para cada contexto.

Os primeiros contatos com os sítios permitiram uma melhor compreensão


sobre a composição da equipe de escavação e de prospecção, bem como a
estratégia a ser utilizada para o desenvolvimento das atividades em campo.
Questionou-se para planejamento: Que áreas serão escavadas futuramente? De
que forma serão realizadas as escavações (em unidades específicas ou em
superfície ampla)? Como se dará a divisão das equipes? Qual a disponibilidade de
recursos humanos a serem empregados nas distintas etapas da pesquisa? Que
equipamentos serão necessários para a realização de todas as etapas do trabalho
de campo (GPS, câmera fotográfica e estação total)?

As visitas técnica e cultural terão continuidade no ano letivo de 2012 com o


objetivo de dar seguimento a pesquisas desenvolvidas no Sítio Casa do Alexandre.
Serão feitas, também, novas pesquisas de prospecção na região, para evidenciar
novos sítios arqueológicos que permitam uma melhor compreensão do contexto
histórico e social na formação do atual município de São Raimundo Nonato e dos
municípios no seu entorno.
V MODO DE VIDA DOS MANIÇOBEIROS NOS ARTEFATOS DOMÉSTICOS
DA CASA DO ALEXANDRE

Felipe Silva Sales


Vívian Karla de Sena

INTRODUÇÃO

O Parque Nacional Serra da Capivara é conhecido mundialmente por sua


relevância arqueológica em função da concentração de sítios com registros
rupestres e outros vestígios das primeiras levas de ocupação pré-histórica do
continente Americano. Desde a década de 1970, muitas atividades investigativas
vêm sendo desenvolvidas na região. No entanto, em se tratando de investigações
arqueológicas acerca da dinâmica de ocupação recente do Sudeste do Piauí, onde
está situada a região de São Raimundo Nonato, há um número reduzido de
pesquisas, sendo a maioria de caráter preliminar.

No Brasil, as primeiras manifestações de interesse pela aplicação de técnicas


arqueológicas a contextos derivados dos colonizadores europeus e seus
descendentes ou de seus contatos com as populações nativas surgiram no segundo
quartel do século XX (LIMA, 1993). Os primeiros trabalhos efetivamente
sistemáticos, enfocando este período, datam da década de 1960, durante as
pesquisas do Programa Nacional Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA). Nesse
período, começou-se a investigar as missões jesuíticas no Rio Grande do Sul
(BLASI,1963; CHMYZ, 1964; BROCHADO, 1969). Nesta mesma época, surgiram
pesquisas em fortificações e igrejas de Pernambuco, igualmente relacionadas aos
primeiros momentos de ocupação do território pelos europeus (ALBUQUERQUE,
1969). Na busca pelas grandes construções e pelo passado colonial, as primeiras
pesquisas estiveram atreladas à Arquitetura. Enalteciam a ocupação portuguesa
e/ou holandesa e serviam como técnica de auxilio à historiografia tradicional.

No Brasil, em geral, o maior interesse arqueológico deu-se pelos sítios de


contextos temporais mais recuados, uma realidade percebida não apenas na região
do Parque Nacional Serra da Capivara. Desde as primeiras pesquisas sistemáticas
133

realizadas na década de 1960 pelo PRONAPA, os objetivos estiveram voltados aos


momentos anteriores à chegada dos europeus no continente Americano.

A opulência da materialidade acerca do passado pré-histórico americano e o


objetivo das pesquisas voltadas quase exclusivamente a esses contextos, bem
como o interesse por parte da Arqueologia Histórica ligada à Arquitetura e atrelada
às regiões mais litorâneas, resultaram na polarização das pesquisas arqueológicas
no Brasil. É em função dessa realidade que se percebe, atualmente, uma lacuna nos
conhecimentos científicos sobre o passado recente da região de São Raimundo
Nonato e de outras regiões do interior do país.

Entretanto, como uma realidade recente, resultante do amadurecimento


teórico e metodológico da Arqueologia Histórica, sítios arqueológicos associados
aos contextos mais recentes da ocupação da região do Parque Nacional Serra da
capivara (PARNA), estão sendo submetidos a pesquisas. Estes sítios estão situados
na chamada Trilha Histórica da Jurubeba, no entorno do PARNA. Nela estão
incluídos diversos sítios históricos e pré-históricos que outrora constituíram a
moradia de indivíduos e/ou famílias.

Inseridos neste contexto, os remanescentes culturais do Ciclo da Borracha de


Maniçoba que contempla o dinâmico processo de produção e exploração desta
espécie lactante são, atualmente, o objeto de estudo de escavações arqueológicas.
Segundo Queiroz (1993), a exploração das maniçobas para a produção láctea
tornou-se economicamente viável com os altos preços internacionais da borracha,
na segunda metade do século XIX e início do XX. Ela foi impulsionada pela
demanda de países industrializados, sobretudo da Inglaterra, que constituía o
principal centro comprador e distribuidor dessa matéria-prima. A região Sudeste do
Piauí, abundante em maniçoba, inseriu-se nessa conjuntura econômica, em
atividades extrativistas que resultaram no crescimento econômico e demográfico da
região.

Com vistas a compreender aspectos culturais acerca deste contexto histórico,


propõe-se a caracterizar parte do modo de vida dos agentes atuantes na
exploração da maniçoba pelos artefatos de contexto doméstico, coletados no
sítio arqueológico histórico Casa do Alexandre. Este trabalho é o resultado de
pesquisas arqueológicas históricas desenvolvidas na região de São Raimundo
134

Nonato pelo Programa de Educação Tutoria PET – Arqueologia - UNIVASF, com


financiamento do Ministério da Educação. Com base em pressupostos teórico-
metodológicos, realizou-se um conjunto de análises contextuais do período histórico
em questão e dos artefatos de uso doméstico (cerâmica, louça, metal e vidro)
coletados no sítio arqueológico Casa do Alexandre.

Esta pesquisa arqueológica faz-se necessária e oportuna porque a


exploração da maniçoba no Sudeste Piauiense foi responsável por modificar toda
uma realidade social e econômica da região entre o final do século XIX e início do
século XX. Tendo em vista que essas pessoas não deixaram registros escritos sobre
o sei dia a dia, a cultura material constitui uma relevante alternativa para conhecer
seu modo de vida nesse contexto. Preenchendo lacunas históricas, a materialidade
dos maniçobeiros informa muito sobre traços culturais que o registro histórico não
possibilita conhecer.

Este trabalho está estruturado em três partes. No primeiro capítulo,


apresenta-se a opção pela aplicação de pressupostos teóricos da Arqueologia
Contextual. Mostra-se a relação entre a teoria e os métodos empregados na análise
dos artefatos e no estudo do contexto histórico em questão.

No segundo capítulo, contextualiza-se o período de exploração da borracha,


com a história em nível nacional e regional. Segue-se com a apresentação das
pesquisas de Arqueologia Histórica realizadas na região do PARNA Serra da
Capivara.

O terceiro capítulo destina-se à apresentação dos aspectos materiais dos


agentes maniçobeiros evidenciados no sítio Casa do Alexandre. Expõe-se os
procedimentos técnicos aplicados na análise contextual e seus resultados, bem
como as discussões a respeito dos aspectos do modo de vida dos agentes atuantes
no sistema de exploração da maniçoba.

Por fim, em forma de considerações finais, discute-se o conjunto de dados


obtidos, relacionando-os com o sistema capitalista da primeira república do Brasil.
Percebe-se que o modo de vida dos agentes maniçobeiros associava-se com o
contexto nacional e internacional. Nesse sentido, o trabalho de pesquisa foi útil
porque acrescenta informações para a compreensão deste momento importante da
história do sudeste do Piauí.
135

1 CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS

Tanto no campo da Arqueologia, como nas demais áreas do conhecimento


científico, uma vez estabelecida a problemática da pesquisa, definidos os objetivos a
serem alcançados e destacada a importância do objeto ou tema de estudo, o
pesquisador deve definir os caminhos teóricos e metodológicos a serem seguidos.
Segundo Kern (1998, p. 34), “Busca-se, neste momento da pesquisa arqueológica,
tentar evitar os modismos teóricos e as convenções de opinião”. O arqueólogo deve
refletir a respeito da pertinência entre a teoria e os métodos que melhor se adéqüem
ao objeto de estudo.

É seguindo essa perspectiva que aqui se propõe os aspectos teóricos e


metodológicos aplicados nas análises dos artefatos de contexto doméstico do sítio
arqueológico histórico Casa do Alexandre. A pesquisa conta com um íntimo diálogo
de pressupostos teóricos e metodológicos da Arqueologia e da História, bem como
de outros campos do conhecimento como Antropologia e Arquitetura, produzindo
uma análise que adicione para a compreensão da história da região. “O caráter
multidisciplinar da Arqueologia Histórica demonstra que ela possui um amplo leque
de fontes de documentação” (ORSER, 1992, p. 29).

Não se encara Arqueologia Histórica como “serva da história”, contestando ou


confirmando registros escritos, ou mesmo precisando locais de ocorrência de fatos
históricos, em suma, como um arcabouço técnico para a mesma. “A Arqueologia tem
condições de ir além, de atingir aspectos não conscientes das estruturas técnico -
econômicas, sócio - políticas, ideológicas, etc., que não aparecem nos registros
escritos” (LIMA, 1982, p. 90). Questionamentos referentes ao cotidiano doméstico,
relações entre o homem e o espaço, hábitos de consumo, dentre outros, podem ser
levantados a partir da cultura material de contexto histórico. O documento, o registro
histórico oral e os remanescentes arquitetônicos são apenas dados a se acrescentar
nos quadros interpretativos da Arqueologia Histórica.

A Arqueologia Histórica brasileira é um campo fascinante que desvenda uma


série de hábitos, costumes e mentalidades que se estabeleceram no que veio a ser
o território brasileiro e países vizinhos com o início da colonização européia
(GASPAR, 2003). Esse campo de pesquisa, que se apresenta como sub-disciplina
136

da ciência arqueológica, está presente no Brasil a partir da década de 1960, período


em que as primeiras atividades investigativas, apresentando sistemáticas científicas
para esse contexto, foram realizadas no Sul e Nordeste. A Arqueologia passava,
então, por um momento de grande dinamismo no campo legal e nas pesquisas do
PRONAPA. A lei federal nº 3.924 de 26 de julho de 1961 dispunha acerca da
proteção do patrimônio arqueológico.

Em missões jesuíticas do Sul do país realizou-se um conjunto de trabalhos


comparativos, sobretudo com cerâmicas de vilas espanholas e sítios missioneiros do
Paraná (Chmyz, 1964) e do Rio Grande do Sul (Brochado, 1969). Estes trabalhos
enfatizavam os processos de mudança na cultura material das populações guarani a
partir do contato com os colonizadores espanhóis. No Nordeste, Albuquerque
(1969), desenvolveu pesquisas de contato euro-indígena. Fez escavações em
fortificações e igrejas de Pernambuco. Suas pesquisas apresentavam resultados
puramente descritivos. Integravam-se ao enfoque teórico histórico-cultural, com o
estabelecimento de cronologias regionais e proposições espaço-temporais.

Fortemente associada à ideologia então vigente nas esferas patrimoniais,


com uma concepção elitista de bem arquitetônico, essas pesquisas arqueológicas
de contexto histórico privilegiavam, sobretudo, os segmentos dominantes da
História. Segundo Lima (1993), nesse momento houve uma acentuada atração por
exemplares da Arquitetura Colonial. As pesquisas estavam voltadas para a
investigação de igrejas, conventos, missões, fortificações, solares, etc. A
Arqueologia Histórica fazia-se presente como técnica aplicada aos interesses da
Arquitetura, auxiliando em trabalhos de restauro de monumentos ligados à
construção de um discurso nacional eurocêntrico. Essa prática resultou nasceu não
reconhecimento como ciência social. Por vezes recebeu tratamento diferenciado em
reuniões científicas.

As críticas mais contundentes a esse enfoque histórico-cultural estão


baseadas na percepção da cultura material sob uma ótica baseada em discursos
historiográficos. A Arqueologia, como suporte técnico, serviria apenas para
corroborar um discurso presente em outras ciências. Para alguns pesquisadores
críticos desta vertente, como Funari (2002, p. 109), “a cultura material pode tratar de
temas simplesmente ausentes ou ignorados pela documentação, como no caso das
grandes minorias, da vida rural e do cotidiano”.
137

Nesta perspectiva, sítios arqueológicos como os do período maniçobeiro, que


não estão inseridos em uma lógica discursiva tradicional de nacionalismo de cunho
eurocêntrico, seriam investigados sob o ponto de vista focado, essencialmente, no
discurso histórico. A cultura material, após uma exaustiva descrição de seus
atributos caracterizadores, respaldaria a visão historiográfica tradicional. Seria
utilizada para respaldar o discurso histórico oficial.

Abordagens semelhantes foram comuns entre as décadas de 1960 e 1980, e


ainda persistem em muitas pesquisas atuais. Havia uma relação direta da
Arqueologia com a História. Nessa relação, a descrição era o objetivo e o resultado
da pesquisa.

Com a justificativa que “a Arqueologia deveria ser Antropológica em termos


de objetivos e perspectivas” (ORSER, 2002, p. 32), surgiu, nos anos 1960, a Nova
Arqueologia (Arqueologia Processual), proposta nos Estados Unidos da América.
Ela indicou novos rumos para a Arqueologia Histórica Brasileira. Capitaneada por
Lewis Binford, [...] “teve como objetivo central tornar a Arqueologia uma disciplina
científica” (GASPAR, 2003, p. 276). A partir de então, o enfoque processual ganhou
apoio nas escolas arqueológicas em outros países e, na década de 1980, chegou
com força ao Brasil.

Para esse enfoque teórico, “o objetivo básico dos arqueólogos deveria ser
explicar as mudanças das culturas arqueológicas em termo de processos culturais”
(TRIGGER, 2004, p. 286), mensuráveis por fórmulas estatísticas. As culturas seriam
percebidas por meio de regularidades e generalizações. A Arqueologia, com
enfoque processual da Antropologia Americana, propunha-se a aplicar uma
abordagem que considerasse a cultura como um sistema que tem por principal
propósito adaptar as comunidades humanas às alterações do ambiente natural.
“Nesta perspectiva, as atividades de subsistência são consideradas determinantes,
com as causas da mudança cultural, devendo ser buscadas no meio natural e na
tecnologia” (BINFORD, 1962 apud SYMANSKI, 2009, p. 8).

No Brasil, trabalhos como o de Zanettini (1986) e Lima et al. (1989) expõem


essa mudança de perspectiva teórica e metodológica, na medida que que buscam a
significância social na variabilidade de faianças, faianças finas e porcelanas em
sítios domésticos. Esses estudos não estavam preocupados somente com a
138

identificação e a descrição desses itens, mas também com a análise comparativa


inter-sítios. Visavam verificar como esses materiais refletiam a variabilidade do
status sócio-econômico dos seus ocupantes.

Nessa abordagem os aspectos relacionados ao caráter adaptativo da cultura


ao meio são, contudo, minimizados em detrimento dos determinantes das variáveis
sócio-culturais. Mantinha-se, todavia, a necessidade de se fazer uma investigação
cientificamente orientada, baseada na aplicação de métodos estatísticos na coleta e
na análise dos dados, com base, principalmente, nas fórmulas propostas Stanley
South (1972), para datação média de ocupações através dos artefatos.

Percebe-se outro modelo, pertinente para compreender a aplicação de


pesquisas com enfoque processual na Arqueologia Histórica, nos métodos e
propostas defendidas por Alcântara (2009. Ela dissertou a respeito das ocupações
maniçobeiras em abrigo sob rocha no interior do Parque Nacional Serra da
Capivara. Analisou a distribuição espacial dos sítios de maniçobeiros. Considerou o
contexto ambiental para fazer uma relação entre as variáveis que influenciam no
sistema econômico de um grupo. Chegou a um quadro interpretativo que lhe
permitiu propor que os locais para abrigo eram escolhidos em função da
proximidade das fontes de água.

A percepção da escolha dos locais para abrigo como uma realidade definida
em função das respostas ao meio, compreendidas através de análises quantitativas
dos padrões, baseadas em modelos preestabelecidos da Arqueologia Espacial,
demonstram claramente o cunho processual da Nova Arqueologia desse trabalho.
Não obstante, trabalhos seguindo esse enfoque teórico não concebem a realidade
dinâmica e particular das culturas. Ao aplicar modelos, não evidenciam as
especificidades contextuais que podem ser percebidas na cultura material. Segundo
Johnson (2000), nessas abordagens os indivíduos são reduzidos a meros
comparsas em um sistema adaptativo e em um complexo de estruturas profundas.
São retratadas como vítimas passivas que se vêem obrigadas a seguir cegamente
regras preestabelecidas.

De todo modo, o processualismo na Arqueologia Histórica foi e é bastante


utilizado em proposições de padrões de consumo, em análises de hábitos
cotidianos, de padrões de descarte e da relação entre o homem e o meio. Utiliza-se,
139

enfim, para compreender a aspectos dos sistemas culturais passados. Essas


pesquisas demonstram, sobretudo, um avanço teórico e metodológico da
investigação arqueológica, com a sistematização de campo e laboratório, bem como
o avanço nos quadros interpretativos. Todavia, no Brasil, as maiores críticas a ele
vêm dos arqueólogos pós-processualistas. Para Gaspar (2003, p. 277):

Uma avaliação das premissas teórico-metodológicas difundidas pela


Arqueologia Processual deixa claro que elas não são adequadas
para dar conta de processos de interação e conflito cultural que
marcaram o período histórico no Brasil.

O Brasil é um país que apresenta uma grande complexidade histórica. Dada a


heterogeneidade de grupos culturais formadores, tentar-se compreendê-la com
padrões e generalizações é uma atividade ineficiente em muitos casos.

Assim, as críticas mais contundentes ao enfoque teórico processualista na


Arqueologia surgem, nos anos de 1980, em meio a um contexto de discussões
científicas mais amplo. “Nas Ciências Humanas, em geral, difundia-se o pós-
modernismo e as críticas à idéia de verdade científica” (FUNARI, 2005, p. 3). Muitos
teóricos assumiram a idéia de que as ciências são construções discursivas, inseridas
em contextos históricos com realidades sociais e políticas. Ao conceber esses
pressupostos, a Arqueologia pós-processual assumiu a sua dimensão política
enquanto ciência.

Na realidade não existe o “arqueólogo pós-processualista”. Quando na


literatura arqueológica lê-se a expressão “os pós-processualistas”, o que também
ocorreu nos demais enfoques teóricos espera-se encontrar um grupo de
pesquisadores com posicionamentos específicos, defendendo direcionamentos
teóricos unificados, o que, de fato, não acontece. Na prática, o termo relaciona-se a
várias escolas de pensamento em que nem todos os arqueólogos estão em total
acordo com todos os pensamentos. Dessa forma, “o termo pós-processual enquadra
uma grande diversidade de pontos de vista e tradições” (JOHNSON, 2000, p. 134).
A partir do final da década de 1980, percebe-se uma multiplicidade de pressupostos
teóricos que acarretaram num crescente pluralismo interpretativo na Arqueologia.

Na Arqueologia Histórica, o pós-processualismo chegou ao Brasil nos anos


1990, especialmente sob a influência das idéias defendidas por Ian Hodder. Dentre
outras propostas, Hodder ressalta que [...] “a arqueologia deveria restabelecer seus
140

laços tradicionais com a história (ORSER, 1992, p. 74). “Esses arqueólogos


recuperaram o interesse por abordar o estudo da ação individual e a diversidade
sociocultural em contextos históricos e geográficos específicos” (TRIGGER, 1900
apud SALERNO E ZARANKIN, 2007). Esse novo interesse dos arqueólogos resultou
em estudos relacionados à incorporação de discursos e práticas do capitalismo no
Brasil, contemplando, porém, as particularidades dos contextos.

Como um dos principais expoentes deste direcionamento teórico, Ian Hodder


(1986), afirma que os métodos científicos adotados pelos adeptos da Nova
Arqueologia não eram satisfatórios. Ele considera que não haveria somente uma
forma de investigar e sim várias. Apóia sua consideração no pluralismo interpretativo
da Arqueologia. Neste sentido, a opção por um só método seria uma atitude
autoritária do pesquisador. Ela contradiria muitos objetos de estudo que são
específicos.

Como uma analogia, o “com-texto” reflete a ideia de que os artefatos devem


ser lidos e interpretados pelo arqueólogo. A nova proposta propõe, também, que a
cultura material não é apenas resultado de adaptações ecológicas ou sociais. Ela
apresenta elementos com múltiplos significados utilizados pelos indivíduos de uma
sociedade para simbolizar suas relações.

1.1 A ARQUEOLOGIA DOS CONTEXTOS E A CASA DO ALEXANDRE

Para Hodder (1994), a Arqueologia Contextual implica em um estudo dos


dados contextuais de análise para se chegar aos tipos de significado contextual, em
função de uma teoria geral. A análise do contexto, como elemento central e definidor
da disciplina arqueológica, requer que se perceba quais são as especificidades do
objeto de estudo e sua relação com os demais contextos.

Hodder ressaltou que a arqueologia Pós-processual possui, ao menos, três


princípios que a separam da Arqueologia Processual (ORSER, 1992, p. 74). Além de
serem percebidos como princípios básicos de sua proposta, esses pressupostos são
utilizados na maioria das pesquisas com enfoque pós-processual. Por tal razão,
segundo Johnson (2000), muitas vezes os enfoques pós-processuais também
tomam a denominação de Arqueologia Contextual.
141

O primeiro destes princípios é a tese básica e etnologicamente bem


documentada do contextualismo, de que a cultura material não é um mero reflexo da
adaptação ecológica ou da organização sociopolítica. Ela constitui, também, um
elemento ativo nas relações entre grupos. Tanto pode ser usada para disfarçar como
para refletir as relações sociais.

Os demais princípios são as idéias de que, além do arqueólogo aceitar a


participação do indivíduo como agente ativo na cultura, deve tentar incluir processos
relativos ao cognitivo, ou ao pensamento dos atores nas análises. Este deve
também perceber que as variáveis e as transformações sociais podem ser
percebidas em termos de processos históricos.

Nesta perspectiva, não é possível fazer generalizações de uma cultura para a


outra, na medida em que a cultura material é detentora de significados culturalmente
específicos. Uma abordagem nesse sentido concebe os objetos como elementos
portadores de múltiplos significados e que a especificidade dos contextos deve ser
levada em consideração nos quadros interpretativos estabelecidos pelo arqueólogo.

Sob a ótica contextual, a Arqueologia Histórica tem sido encarada em muitas


pesquisas atuais como o estudo da formação do Mundo Moderno. Essa “formação é
postulada como um processo de transformação que envolveu diferentes aspectos da
vida cotidiana” (SENATORE E ZARANKI, 2002, p. 6). Nessas pesquisas, o que se
observa é a preocupação em compreender os contextos locais e como estes
estiveram associados com as forças mais amplas que modelaram o mundo
moderno.

Os arqueólogos observam a realidade dinâmica das culturas nos diversos


contextos específicos (regionais e locais). Os indivíduos são percebidos como
agentes ativos da cultura. A Arqueologia Histórica volta sua atenção para os
aspectos materiais do passado e o modo como estes são usados para os mais
variados e particulares contextos. Segundo Zarankin e Salerno (2002; p. 7):

Esse modelo teórico e suas variantes são utilizados habitualmente


para explicar a formação da sociedade moderna, aceitando sua
aplicabilidade em diferentes contextos geográficos. No entanto,
assumir que os significados das práticas sociais e suas mudanças
diferem de contexto para contexto implica em explicar as mudanças,
enfatizando as particularidades de contextos locais.
142

Grande parte dessas pesquisas propõe-se a relacionar a cultura material com


contextos e dados históricos, discursos e práticas, construindo uma possibilidade
interpretativa sobre o objeto de estudo, inserido em uma realidade específica, mas
em sintonia com um processo mais amplo, em nível nacional e internacional.
Percebe-se, também, a relação da cultura material em períodos históricos por meio
da aceitação de sua relação com o processo de expansão dos interesses mercantis
e capitalistas das potências européias sobre o Novo Mundo.

Esses indivíduos, integrados a um novo território, vindos de realidades


específicas (Europa e África), interagiram, reinterpretaram e apropriaram valores e
idéias, resultando em adaptações particulares de acordo com os contextos históricos
e locais específicos. Para essas pesquisas, há a aceitação das especificidades
contextuais como sendo bastante complexas e os indivíduos como verdadeiros
atores sociais. Esses agentes culturais ativos são considerados como inseridos em
uma realidade latente dos processos relacionados ao mercantilismo e capitalismo
crescente na Europa pós-medieval.

Sendo assim, para a maioria dessas pesquisas, assim como neste presente
trabalho, a Arqueologia Histórica é vista como:

(...) o estudo arqueológico dos aspectos materiais, em termos


históricos, culturais e sociais concretos, dos efeitos do mercantilismo
e do capitalismo que foi trazido da Europa em fins do século XV e
que continua em ação ainda hoje (ORSER, 1992, p. 22).

Nessa perspectiva, o sítio arqueológico histórico Casa do Alexandre,


que se enquadra em um sistema de exploração extrativista exportador, é analisado
com a variável das transformações sociais e econômicas, em termos de processos
históricos, referentes ao contexto do sistema capitalista de amplitude internacional.
O contexto maniçobeiro é visto aqui com pressupostos teóricos da Arqueologia
Contextual que considere o contexto local e regional, como uma realidade em que
estes agentes apresentavam aspectos culturais específicos.

Compreender o sistema extrativista no Sudeste do Piauí a partir de


balizamentos teóricos contextuais é uma atividade que deve ser desenvolvida, a
princípio, tendo em vista a demanda de borracha na indústria automobilística
internacional. Nesse contexto o Brasil apresentava-se como principal fornecedor do
produto para os países industrializados, elevando o preço do produto. Todavia,
143

como um país periférico no sistema capitalista, estava sujeito ao constante


dinamismo do mercado.

Em nível nacional, a Amazônia era a maior produtora de látex com a


exploração da seringueira. Mesmo apresentando uma alta produção, esta região
não conseguiu suprir a crescente demanda internacional. Por isso, sistemas
extrativistas periféricos, como é o caso dos maniçobais, que produz um látex de
menor qualidade foram uma alternativa viável para o Brasil aumentar as
exportações. Com essa nova realidade a região Sudeste do Piauí vivencia um
florescimento econômico.

Ademais, essa atividade constitui-se aqui como um contexto específico, em


nível local. Nele, os agentes maniçobeiros, estão inseridos em uma dinâmica cultural
particular, em termos geográficos e históricos, mesmo associados a um sistema
econômico, histórico e político mais amplo. Eles apresentam características
resultantes de contextos específicos, que modelaram toda uma dinâmica cultural e,
acima de tudo, são atores ativos de suas próprias vidas e em sua cultura. Nessa
compreensão contextual, a particularidade e as especificidades locais são trazidas à
tona.

Essa pesquisa objetiva compreender partes acessíveis do modo de vida dos


agentes atuantes no processo de exploração da maniçoba nos artefatos de contexto
doméstico do sítio em questão. Propõe-se a contextualizar a cultura material com os
dados mais amplos e locais, tentando perceber alguns aspectos particulares dessa
cultura.

Percebe-se a cultura material, com seus aspectos tecno-tipológicos, como


resultado das especificidades referentes à realidade cultural dos maniçobeiros,
inseridos em um contexto social, histórico e econômico, em nível local, particular.
Por outro lado, esses artefatos também refletem as transformações e as mudanças
culturais que se relacionam a contextos mais amplos, como é o caso do capitalismo.
Neste sentido, nessa análise contextual, evidencia-se o papel ativo desses agentes
no consumo e uso desses artefatos. Eles não são apenas um reflexo da adaptação
a uma realidade sociopolítica ou ambiental.

A relevância de propostas nesse sentido é não conceber generalizações ou


percepções preliminares sob influências discursivas inaplicáveis aos múltiplos
144

contextos específicos. Todavia, ao assumir essa diversidade de práticas culturais de


contexto para contexto, deve essa pesquisa expor as particularidades e o porquê
das mudanças contextuais. Para tanto, recorre-se às diversas fontes, para entender
o contexto nacional e regional em que essa dinâmica extrativista ocorreu e perceber
quais eram a particularidades do contexto maniçobeiro.

Contudo, após a compreensão do arcabouço contextual, a análise dos


artefatos domésticos (cerâmica, louça, ferro e vidro) do sítio Casa do Alexandre
contou com a caracterização dos atributos técnicos. Eles foram contextualizados de
maneira a se perceber os aspectos culturais do modo de vida dos agentes
maniçobeiros. Nesse sentido, os métodos aplicados na análise contextual dos
artefatos seguem com o objetivo identificar os atributos qualitativos e quantitativos
da cultura material do sítio.

2 CONTEXTO HISTÓRICO E ARQUEOLÓGICO DO CICLO DA BORRACHA


NO SUDESTE DO PIAUÍ

2.1 CONTEXTO HISTÓRICO

O sistema de exploração extrativista dos maniçobeiros do Sudeste Piauiense


é o resultado de um contexto crescente da demanda de borracha para o mercado
externo, bem como da realidade geopolítica do Brasil no período. Não obstante, as
especificidades culturais, sociais e econômicas são fatores decisivos para o sucesso
dessa dinâmica histórica e cultural que envolve as pessoas associadas ao processo
de extração, produção e comercialização do látex de maniçoba.

2.1.1 O Brasil no final do Século XIX

No final do século XIX, consideráveis mudanças políticas e sociais são


percebidas como verdadeiros divisores da história do Brasil e, conseqüentemente,
do Piauí. Essas mudanças estão associadas diretamente ao sucesso do sistema
extrativista na região. A gradativa perda de espaço por parte da exploração da mão-
145

de-obra escrava e a derrocada do Império para a instituição de um poder


republicano, resultaram em paulatinas mudanças construídas ao longo do tempo.
Essas mudanças definiram todo o regime político, econômico e social do país.

Até a sansão da Lei do Ventre Livre, em 1888, “o modelo colonizador


brasileiro, cujas características fundamentais são a grande propriedade, uma
estrutura econômica respaldada numa única atividade” (BRANDÃO, apud IPHAN,
2008, p. 11) e a utilização do trabalho escravo, a presença de mão de obra
assalariada era um fato isolado no Brasil. Após a disposição em lei, do final do
regime escravista, um ganho oportuno e relacionado a anos de lutas e resistência,
toda uma realidade socioeconômica seguiu por caminhos que levaram a maiores
mudanças no país e definiram as particularidades do novo sistema político. Neste
contexto, a rápida expansão do mercado do café, do cacau e da borracha, dentre
outros, forçou o Brasil a incorporar ao sistema, em grande escala, uma nova força
produtiva agora assalariada.

Do ponto de vista político, esse período, chamado República Velha,


caracterizou-se pelo predomínio incontestável dos grupos agrários (MENDONÇA,
2000, p. 316). Mesmo com discursos de modernização, as elites rurais, dentro deste
novo sistema político, criaram mecanismos de crítica à centralização do poder na
monarquia e implantaram, na prática, um regime político coerente com seus
objetivos baseados na maximização do poder nas oligarquias estaduais. Assim, o
fortalecimento desses comandos regionais e do modelo econômico latifundiário
agro-exportador não cedeu ao Brasil um status no cenário geopolítico mundial,
relegando ao mesmo a caracterização de um país periférico.

Ao longo de todo o século XIX, e mesmo em boa parte do século XX,


expande-se a industrialização do Brasil (MONTEIRO, 2000, p. 302). O fortalecimento
dos centros urbanos, com o surgimento de serviços de transportes e elétricos
culminou, assim, no “momento de maior transformação econômica da historia
brasileira” (PRADO JUNIOR, 2006, p. 96). Todavia, mesmo com a tentativa de
encaminhar o Estado a uma roupagem mais moderna com a qual a Revolução
Industrial vestiu boa parte do mundo, especialmente na Europa e América do Norte,
a realidade rural ainda caracterizava o Brasil.
146

Essa tardia tentativa brasileira de incrementar a economia com ‘melhorias’ de


ordem tecnológica coincide, na Europa e América do Norte, ”por volta de 1885, com
a chamada ‘Segunda Revolução Industrial’, com inovações técnicas e a produção de
bens de consumo, dentre os quais podemos destacar o automóvel” (ALCÂNTARA,
2009, p. 12). Na indústria automobilística em constante crescimento, a borracha
surge como uma considerável alternativa à economia agro-exportadora do Brasil.
Nesse contexto, o país passa a se apresentar no cenário internacional como
principal mercado fornecedor desse produto através das atividades extrativistas na
Amazônia.

O Brasil, como zona periférica, torna-se o principal centro fornecedor de


matéria-prima aos países industrializados, mantendo em níveis bastante altos o
preço do produto no mercado internacional. Segundo Queiroz (1993), o quase
monopólio que o Brasil exercia sobre o fornecimento de borracha assegurou a
manutenção de um nível extremamente alto dos preços internacionais. Entretanto, a
produção de borracha através da extração do látex da seringueira (Heavea
brasiliensis) na Amazônia não pôde assistir a toda demanda mundial, abrindo
espaço para outras espécies provenientes do Nordeste brasileiro e fomentando toda
uma dinâmica de exploração em função da alta rentabilidade econômica.

Nesta perspectiva, estados em que havia espécies passíveis da extração do


látex entraram nessa nova dinâmica econômica que, gradativamente, tornava-se
importante à economia do país. Diante disso, o Piauí, um estado que até então
apresentava um sistema econômico pecuário sem representatividade nacional,
passou a se integrar a esse sistema extrativista exportador com a exploração,
principalmente, da maniçoba (do gênero Manihot), em fins do século XIX.

2.1.2 O ciclo da borracha no Sudeste do Piauí

A valorização da borracha, a partir do final do século XIX, possibilitou ao


Brasil da República Velha (ou Primeira República – 1989 a 1930) um considerável
crescimento financeiro devido aos altos preços e ao fato de que, por muito tempo,
mais de 50% da produção mundial pertencia ao Brasil. A borracha passou de 0,1%
das exportações brasileiras para 28,2% durante o apogeu do sistema econômico
147

(CARDOSO, 1997). Essa produção estava associada, principalmente, à Amazônia


com a exploração da seringueira. A região viveu um apogeu demográfico entre o
final do século XIX e a década de 1920.

O crescimento deste sistema econômico na Amazônia também está


relacionado ao grande fluxo de imigrantes nordestinos em busca do lucro que o
sistema estava proporcionando na região. Outro fator que favoreceu esse apogeu foi
a pouca exigência de qualificação técnica e de aparatos tecnológicos na extração do
látex. A maioria desses nordestinos não tinha qualificação técnica e viu, no
extrativismo, uma possibilidade de ganho financeiro.

Essa realidade carente por matéria-prima do mercado e o alto preço do


produto foram fatores que possibilitaram a inserção desse modelo econômico em
outras regiões do país, além da Amazônia. Segundo Oliveira (2001), no final do
século XIX, em quase todos os estados do Brasil ocorreu o incentivo à
comercialização da borracha para atender às necessidades do mercado
internacional. Com esses incentivos foi possível a extração do látex em outras
espécies como a Manihot piauienses, a Manihot heptaphylla e a Manihot dichotoma.

Com essa nova conjuntura foi possível a inserção do Nordeste no Ciclo da


Borracha. No Sudeste Piauiense a exploração da maniçoba (gênero Manihot) surgiu
como uma alternativa bastante rentável do ponto de vista econômico e demográfico
para o estado. “A partir de 1895, com a utilização do método de incisão na raiz para
a extração do látex, houve o aumento da rentabilidade da exploração,
incrementando no comércio” (REBELO, 1913 apud OLIVEIRA, 2001, p. 22). Com
isso, a região que, até então, estava passando por uma perda populacional para a
Amazônia extrativista e para o Sudeste açucareiro, viu-se em um processo inverso
em que as pessoas passam a ocupar a região na busca pelo lucro com a atividade
extrativista.

Até o advento do extrativismo, o Piauí vivia uma realidade bastante


preocupante do ponto de vista econômico.

Por ser o estado menos densamente povoado do Nordeste, a


escassez gerada pela perda da mão-de-obra gera uma crise na
pecuária. O início da exploração do látex da maniçoba incentivou a
migração proveniente de estados como Ceará, Pernambuco e Bahia
e ajudou a conter a evasão (EMPERAIRE, 1989).
148

Nesse sentido, à exploração da maniçoba estão ligados a ocupação e o


incremento populacional em vastas áreas do Piauí. Esse processo manifestou-se no
crescimento dos centros urbanos já existentes, na ocupação e expansão do
povoamento do interior e no requerimento de novos municípios junto ao estado.
Segundo Queiroz (1993), em relação à produção, destaca-se os seguintes
municípios no Piauí: São João do Piauí, Floriano, São Raimundo Nonato, Oeiras,
Picos, Valença, Jaicós, Simplício Mendes, Pedro II, Bom Jesus, Amarante,
Paulistana e Bertolínea (Fig. 1). Essas cidades viveram esse crescimento econômico
e populacional durante o ciclo da borracha no Piauí.

Figura 1 – Mapa do Piauí. Em destaque as cidades com expressiva exploração da


maniçoba entre o final do século XIX e 1915 (Acervo da FUMDHAM)

No entanto, segundo Queiroz (1999), São Raimundo Nonato tornou-se, após


1910, o principal produtor de borracha. Esta afirmativa associa-se com os dados
expostos por Emperaire (1989 apud OLIVEIRA, 2001), que indicam um crescimento
da cidade de 5.997 habitantes, em 1890, para 19.851, em 1920. São Raimundo
Nonato torna-se o principal pólo produtor em função da localização geográfica, pois
fica próxima a zonas que facilitaram o escoamento do produto. Essa produção de
149

goma de látex era comercializada em São Raimundo Nonato, de onde seguia para
Salvador ou Rio de Janeiro (RJ), por Remanso (BA) e Juazeiro (BA).

Três fatores são importantes para entender o sucesso desse sistema


extrativista na região e por que atraiu tantas pessoas. O primeiro foi a existência de
muitas terras devolutas no Sudeste do Piauí. Em grande parte dessa região as
terras não estavam nas mãos de grandes proprietários. O segundo fator foi a pouca
exigência técnica no processo de extração. O terceiro dá-se na medida em que o
Brasil detinha o controle dos preços do produto e, mesmo a produção sendo
secundária e de segunda linha, o sistema foi muito rentável economicamente.

Essa atividade extrativista na região esteve sempre atrelada à dinâmica do


mercado externo. O contexto capitalista é preponderante neste sistema, haja vista
que o Ciclo da Borracha na região é uma conseqüência da crescente demanda de
matéria prima para a Segunda Revolução Industrial. Segundo Prado Junior (2006, p.
239):

(...) precisamente em 1912 a exploração da borracha brasileira


alcançava seu máximo com o total de 42.000 toneladas. Daí por
diante se dá o declínio. Os preços também atingem seu teto em
1910, valendo então a tonelada quase 10 contos FOB, ou seja, 639
libras.

Como o Brasil considerava-se hegemônico como fornecedor dessa matéria


prima, a possibilidade da introdução de outros países exportadores de borracha de
excelência no mercado foi ignorada. Por isso, em um momento de grandes
exportações foi permitido que mudas de espécies que produzem látex de boa
qualidade fossem plantadas em outros continentes como na Ásia. Com a adaptação
ao novo habitat, outros países entraram com competitividade no cenário e, em
1913, ultrapassaram a produção brasileira.

Nesse contexto de mudança do cenário internacional, a produção da borracha


no Nordeste, que era secundária, tanto em relação à produção nacional quanto
mundial, entrou em declínio. Sua vulnerabilidade foi iminente, haja vista a íntima
relação de sua introdução na dinâmica de exportação apenas porque o Brasil era
hegemônico no mercado externo.

Todavia, mesmo com a realidade desfavorável, não é correto pensar que a


exploração extinguiu-se por completo nos centros extrativistas, após o declínio na
150

década de 1920. Mesmo com esse declínio da atividade na primeira fase de


exploração e com pouca rentabilidade, muitos agentes maniçobeiros continuaram a
insistir na extração do látex de maniçoba. Eles persistiram, a duras penas, até que
em 1939, com o controle da produção da borracha Asiática pelos Japoneses, no
contexto da Segunda Guerra Mundial, a extração voltou a ser rentável quando,
nessa segunda fase, o mercado externo voltou a recorrer à produção brasileira.

Nesse momento, entre 1939 e 1945, os Estados Unidos da América era o


principal centro consumidor da borracha brasileira e fomentava a atividade no
Sudeste do Piauí. Todavia, esse retorno do sistema não durou muito tempo e o
dinamismo do mercado externo voltou a mostrar sua constância. O declínio deu-se
após o término da Segunda Guerra Mundial e a tomada de controle do mercado
asiático pelos norte-americanos. No entanto, mesmo após o declínio da produção
pós-guerra, o extrativismo ainda persistiu em áreas pontuais, mas com pouca
rentabilidade. Nas áreas dos maniçobais do Sudeste Piauiense percebe-se essa
persistência, por exemplo, quando, na década de 1970, com a chegada dos
pesquisadores da Missão Franco-Brasileira na atual área do PARNA Serra da
Capivara, há relatos do encontro dos pesquisadores com nativos que ainda viviam
nas tocas adaptadas. Eles ainda faziam a extração da maniçoba.

2.1.3 Sistema de exploração da maniçoba no Sudeste do Piauí

A árvore da maniçoba que foi explorada na região sudeste do Piauí pertence


ao gênero botânico Manihot, da família das Euforbiáceas. É resistente à seca porque
guarda reserva de água nas raízes e nos caules. Por esta razão, durante o período
seco, as folhas caem para economia de água e só voltam com as primeiras chuvas.
“A árvore produz o látex durante todo o ano, porém os maniçobeiros preferiam
trabalhar durante o inverno, isto é, de março a setembro. Nas épocas de seca
quando as folhas caem, a produção era menor” (OLIVEIRA, 2001, p. 21).

No Sudeste do Piauí, a maniçoba localizava-se principalmente nas serras e


chapadas, quase sempre em terras devolutas, o que favoreceu a afluência de mão-
de-obra à região. A exploração era extensiva e realizada de forma predatória,
embora ocorresse também o cultivo em algumas fazendas (OLIVEIRA, 2001, p. 26).
151

Nestas áreas, por parte da população, com a percepção do potencial econômico da


maniçoba, ocorreram articulações e ações com vistas a ocupar as terras devolutas
em que havia abundância das espécies.

Nessa dinâmica de exploração era comum o sistema de barracão. O termo


barracão designa uma habitação e os limites de uma área de exploração instituída e
gerida pelo barraquista. Essas “serviam como ‘escritório central’ dentro daquele
limite, onde se davam as atividades de gerenciamento e processamento”
(OLIVEIRA, 2001 apud ALCÂNTARA, 2009, p. 18). O barraquista era responsável
por uma área de exploração e controlava as áreas menores onde agiam os
maniçobeiros. Esses limites eram estabelecidos por acordos verbais entre
maniçobeiros e barraquistas.

Segundo Oliveira (2001), a principal relação de trabalho nesse sistema era,


majoritariamente, entre barraquistas e maniçobeiros. O barraquista, que geralmente
era um comerciante e possuía maior poder aquisitivo naquela sociedade, demarcava
sua área e arregimentava certo número de trabalhadores. Ele fornecia tudo que o
maniçobeiro necessitava e este, em troca, vendia-lhe o produto do seu trabalho,
sempre a um preço menor, ou repassava uma parte do produto.

A relação de exploração era favorecida pelo controle dos produtos


necessários à alimentação do trabalhador e de sua família e pelo controle da área
de exploração. A borracha vendida dessa forma alcançava um preço menor do que
a vendida diretamente ao comerciante da cidade. A realidade exploratória da relação
barraquista-maniçobeiro era evidente, no entanto, percebe-se, segundo Oliveira
(2001, p. 40), que (...) “nos locais onde não havia barracão a penúria era ainda
maior”. Na falta destes, os agentes extrativistas viam-se obrigados a arcar com suas
despesas, uma realidade bastante árdua para muitos que vieram apenas com a
mão-de-obra para oferecer.

Nesta perspectiva, os barraquistas mostram-se como exploradores


intermediários no comércio do Ciclo da Borracha da região, mas também eram
dependentes do produto, atuando, por vezes, no ato da extração. Assim, ambos
eram dependentes do produto e eram identificados como agentes maniçobeiros.

Outra alternativa a essas pessoas, quando não estavam inseridos nos limites
de barracões e não tinham condições de se financiar, era a de ocupar terras
152

particulares. Essas terras particulares, as fazendas, podiam funcionar sob sistemas


de arrendamentos ou de barracões, sempre abaixo do jugo dos fazendeiros, que
também atuavam de maneira semelhante aos barraquistas.

O terceiro agente do sistema de exploração da maniçoba eram os aguadores.


Esses indivíduos eram responsáveis por suprir uma necessidade de suma
importância para o sertanejo, dada a carência de fontes d’água em muitos locais das
regiões semi-áridas. “Quando a água não estava localizada próximo ao barracão,
havia a necessidade de buscá-la em outros locais” (OLIVEIRA, 2001, p. 45). Esses
comerciantes de água levavam-nas das fontes permanentes, os popularmente
chamados olhos-d’água, até os maniçobeiros, com o auxílio de burros, em troca de
maniçoba como pagamento.

A relação da mão-de-obra empregada sob o sistema de barracão, quer em


maniçobais devolutos, quer privados, é referida de forma bem característica. Eram
grupos de maniçobeiros volantes, masculinos, subordinados a um barraquista e com
atividade exclusiva de explorar os maniçobais. Esses grupos eram compostos de
dezenas de homens, de idade variável, mas com participação acentuada de
adolescentes (QUEIROZ, 1993, p.104). Essas afirmativas históricas expõem que as
pessoas presentes neste sistema faziam parte de uma parcela da população
brasileira de sertanejos pobres e livres, que viviam de maneira marginalizada do
sistema e estavam constantemente em busca de alternativas para melhorar sua
qualidade de vida.

Segundo Queiroz (1993), o nível técnico da extração da borracha dos


maniçobais pode ser compreendido se levado em conta as características da
estrutura econômica e do contexto social em que se inseria a atividade. As técnicas
de extração refletiam o baixo nível de capacitação técnica que caracterizava as
regiões de ocorrência do sistema. O baixo nível de aperfeiçoamento técnico e os
baixos custos na exploração foram realidades favoráveis ao sistema e à entrada
dessa mão-de-obra. Além disso, o fator fundiário, com a existência de muitas terras
devolutas nas áreas de exploração, também favoreceu a afluência dessas pessoas.

Inserida neste contexto histórico, a área que atualmente compreende o


Parque Nacional Serra da Capivara foi palco dessa dinâmica de exploração
extrativista. A pesquisa de Oliveira (2001) possibilita do entendimento de alguns
153

aspectos desse sistema na região do PARNA. Em seu levantamento histórico oral,


ao se deparar com pessoas que participaram diretamente ou indiretamente do
sistema, colheu uma quantidade significativa de informações para reconstruir partes
possíveis desse contexto histórico.

Em se tratando dos tipos de habitação, Oliveira (2001, p. 48) destaca “4


(quatro) espécies de moradia: abrigos pré-históricos, casas de taipas cobertas com
pau de casca (Tabebuia spongiosa), casas cobertas com terra e folhas e casas
cobertas com capim”. Muitos agentes maniçobeiros foram com suas famílias para as
áreas de extração, onde viviam o dia a dia e permaneceram, mesmo após o declínio
do sistema extrativista. Optaram por moradias que possibilitassem o
desenvolvimento de práticas familiares cotidianas. Segundo Oliveira (2001, p. 49),
“na região do PARNA Serra da Capivara a principal alternativa oferecida eram as
tocas, que anteriormente serviram de abrigo aos primeiros habitantes da região”.
Essas moradias foram identificadas pela FUMDHAM.

A maior parte dos sítios arqueológicos que remontam a esse passado recente
está na área da Serra Branca. Mas, acessível à visitação e inserido na área da Trilha
Histórica da Jurubeba, o sítio arqueológico histórico Casa do Alexandre, relacionado
ao extrativismo da maniçoba, é um remanescente deste contexto arqueológico de
grande expressão para o entendimento de aspectos culturais dos agentes
maniçobeiros. Este sítio é foco desta pesquisa que se propõe a compreender
aspectos do modo de vida desses agentes culturais através das análises contextuais
dos artefatos de uso doméstico coletados em escavações arqueológicas.

Na Casa do Alexandre, foi coletado um considerável espólio de artefatos


referente às atividades cotidianas das pessoas associadas a esse contexto. O sítio é
composto por um abrigo sob-rocha, adaptado com paredes de taipa. É um
importante exemplar das habitações do período maniçobeiro, que também se
associa à realidade pessoas com baixo poder aquisitivo no Brasil da República Vela.
Esse sítio, outrora, constituiu a moradia de pessoas inseridas na dinâmica de
exploração da maniçobeira. Por isso, de maneira significativa, pode responder a
inúmeras problemáticas acerca desse período, inserindo novos dados à história
recente da região, que está diretamente associada à formação da cidade de São
Raimundo Nonato.
154

2.1.4 Pessoas com baixo poder aquisitivo

A realidade das pessoas com baixo poder aquisitivo no Brasil Colonial,


Imperial e Republicano é descrita, em muitas das publicações históricas, como
sendo bastante itinerante. A compreensão desse contexto é necessária para essa
pesquisa, na medida em que se percebe que essas pessoas pobres e livres foram
responsáveis pelo sucesso do sistema extrativista na região Sudeste do Piauí. Nesta
perspectiva, compreender o modo de vida dos maniçobeiros requer um estudo das
causas responsáveis por essa mobilidade e as marcas impressas na vida das
pessoas.

É válido ressaltar que essa pesquisa de cunho Arqueológico Histórico não


utiliza as fontes históricas de maneira acrítica, nem se refere aos atores da
exploração da maniçoba como resultantes diretos, em seus aspectos culturais, dos
quadros discursivos históricos. Os quadros historiográficos são apenas fontes de
direcionamento, sendo os artefatos, inseridos nos contextos, o “texto” de maior foco
interpretativo da pesquisa.

Sendo assim, para este período, a realidade itinerante de populações pobres


e livres é bastante postulada. Segundo Wissenbah (2004, p. 56):

A existência de populações tradicionalmente nômades marcou a


fisionomia de extensas regiões do Brasil colonial e imperial.
Excluindo zonas de povoamento mais densas e estáveis, localizadas
no litoral e nos centros urbanos, a dispersão em grandes extensões
geográficas, a mobilidade e a miscigenação foram características
que marcaram a fisionomia e o viver de largos contingentes que se
deslocavam periodicamente no interior de uma mesma área ou em
direção a outros pontos do país.

Para as pessoas pobres e livres o nomadismo mostrava-se a melhor


alternativa na busca por melhorias. Essa mobilidade foi provocada, dentre muitos
fatores possíveis de serem levantados, em consequência do sistema econômico
agro-exportador escravista vigente desde o período colonial e imperial, que relegava
à maioria desses homens um viver marginal da estrutura operante. No período
Colonial, com monopólio da grande propriedade, explorava-se o escravo. Os
brancos e mestiços pobres eram direcionados a um viver marginal. Na Primeira
República, com o imigrante assalariado, esse contexto se intensificou quando o ex-
155

escravo também se inseriu junto a esses brasileiros de baixo poder aquisitivo nessa
dinâmica.

Para justificar esta característica, Wissenbah (2004) expõe dados censitários


de 1872 a 1900 e revela que houve um movimento intenso de migrações internas ao
longo desses anos. Ele também indica que, de uma mobilidade tradicional, passou-
se a deslocamentos mais amplos no contexto da República Velha, numérica e
geograficamente. Essa população brasileira pobre, que já era o resultado de uma
pluralidade étnica, tendeu a uma miscigenação ainda maior ao final do regime
escravista. Indígenas, negros e brancos formaram uma população multiétnica e
foram responsáveis pelo intenso movimento nesse período e pelo povoamento das
áreas mais interiores do Brasil, na busca por melhores condições de vida.

A essa dinâmica populacional bastante flutuante no Brasil pode-se associar o


contexto do Ciclo da Borracha no Sudeste do Piauí. Essa região vivenciou dois
processos inversos na segunda metade do século XIX. O primeiro foi a constante
emigração populacional para outros centros econômicos com o declínio das
fazendas de gado e, na última década, o segundo, com uma constante imigração de
pessoas, buscando lucros e melhor qualidade de vida com o crescente extrativismo
da maniçoba.

Segundo Oliveira (2001, p. 26): “no Sudeste do Piauí a maniçoba estava


localizada, principalmente, nas serras de chapadas, quase sempre em terras
devolutas, o que favoreceu a afluência de mão-de-obra à região”. A existência
dessas terras devolutas e o pouco investimento técnico no processo extrativista
compõem justificativas plausíveis para o crescente movimento populacional rumo às
áreas de exploração da maniçoba nessa região. Para as pessoas pobres,
trabalhadores do campo, representantes da diversidade étnica bastante sofrida e
marginalizada do país, a alternativa do extrativismo não foi apenas o resultado do
direcionamento do contexto sociopolítico vigente. Sendo ativas, elas estavam
sempre em busca de melhorias e perceberam essa possibilidade na região.

Sendo assim, como é de se esperar, esse costume itinerante imprimiu marcas


no modo de vida das pessoas. Segundo Wissenbah (2004, p. 59), “a mobilidade, o
eixo sobre o qual se estruturava o modo de vida de largos contingentes, transparecia
na posse exígua dos bens e na própria maneira de construir as casas”. Essa
156

afirmativa corresponde a esse contexto, mas não exclui, necessariamente, a


possibilidade de, no contexto específico dos maniçobeiros, terem ocorrido
mudanças, transformando e modificado esse aspecto cultural.

No que se refere à Arquitetura, percebe-se que as habitações dos agentes


maniçobeiros apresentavam características rústicas e seculares. Neste sentido, esse
contexto associa-se aos demais contextos do interior do Brasil. Em seu volume
dedicado aos estabelecimentos rurais no Piauí, Silva Filho (2007, p. 74) descreve as
habitações como:

Casas de almas desprendidas, acolhedoras, belas pela arquitetura


amalgamada na fisionomia envolvente do sertão, numa paisagem
transfigurada de beleza e esperança, no estilo de vida escorado nos
currais de carnaúba. Despojada de qualquer aparato ornamental,
expressam toda a pureza e rusticidade dos artefatos de barro; das
trempes de pedra; do lume das lamparinas; das paredes de pedra
seca e terra crua; dos gonzos azeitados de rícino; das bilheiras
lavradas; das redes de tucum e tamboretes de couro em cabelo; das
cabaças de cuias de cujuba vazando água no arenito espesso dos
peitoris.

O sítio Casa do Alexandre é um abrigo rochoso como teto natural. Serve de


cobertura contra as intempéries. Possui paredes de taipa, com características
construtivas bastante simples e condiz com as afirmativas de discursos históricos
acerca da simplicidade das habitações em ambientes rurais. A característica dessas
habitações condiz com o contexto sazonal associado com estas pessoas.

Todavia, a partir da dissertação de Oliveira (2001), percebe-se que não


apenas as habitações dos agentes da exploração da maniçoba eram rudimentares.
A partir de registros históricos, ela a pesquisadora refere-se a São Raimundo
Nonato, no período próspero da maniçoba, como vila de casas térreas, construídas
com adobe e com características rústicas e simples. A essa realidade é possível
fazer-se uma associação com as habitações dos maniçobeiros, que também
apresentavam características semelhantes, demonstrando que não havia uma
grande disparidade entre esse ambiente urbano em formação e o rural.

Neste sentido, o que esperar dos bens relacionados a essas pessoas pobres,
que viviam de maneira itinerante e inseriram-se na dinâmica extrativista da região de
São Raimundo Nonato? No que diz respeito aos objetos do cotidiano relacionados a
eles, Queiroz (1998) e Oliveira (2002) referem-se como bastante simples e pouco
diversificados. Essas afirmativas justificam-se quando se compreende o contexto de
157

exploração e nomadismo no qual estavam inseridos. Todavia, para estudar esse


contexto específico e as transformações que se seguiram ao crescimento econômico
desse sistema de exploração, é necessário que essas afirmativas sejam discutidas,
pois há a possibilidade de os maniçobeiros terem refletido algumas mudanças
através dos seus bens.

Sendo assim, a cultura material de contexto doméstico coletado no sítio Casa


do Alexandre, que possibilita a compreensão dos aspectos do modo de vida dos
agentes atuantes no processo de exploração da maniçoba. Reflete, também,
algumas especificidades culturais das mudanças do contexto. Portanto, a validade
deste estudo é atestada na medida em que fomenta e acrescenta o quadro
contextual para a história da região.

2.2 CONTEXTO ARQUEOLÓGICO

Mesmo com muitas pesquisas arqueológicas realizadas na região Sudeste do


Piauí, desde a década de 1970, o conhecimento acerca do seu período histórico
ainda é pouco e preliminar. O modelo de colonização do Piauí difere, em termos de
efetivação e temporalidade, do da maior parte do Brasil. Esta característica seria
suficiente para fomentar pesquisas com vistas a compreender este contexto e
demonstrar a grande diversidade de modelos colonizadores no país.

As pesquisas arqueológicas relacionadas à história da região do PARNA


Serra da Capivara foram realizadas na Trilha Histórica da Jurubeba pela Fundação
Museu do Homem Americano (FUMDHAM). Além dos sítios arqueológicos históricos
que integram a trilha de visitações, a instituição tem, ainda, um cadastro com 66
(sessenta e seis) sítios arqueológicos históricos. Nestes sítios, coletou-se relativa
quantidade de artefatos referentes a ocupações históricas da região, sendo o espólio
composto por louças, metais, material de olaria e vidros.

Dos sítios cadastrados, dez são classificados como abrigo sob-rocha (Qd. 1).
Neles houve adaptações para uso dos agentes maniçobeiros. As louças e os metais
são os materiais com maior representatividade. Todavia, a variedade de artefatos é
pouco expressiva porque a cultura material histórica foi recolhida em prospecções
158

ou escavações arqueológicas com objetivos ligados à ocupação pré-histórica da


região.

Quadro 1 - Sítios com artefatos históricos em abrigos sob-rocha (Fonte: FUMDHAM, 2011)

Código Sítio Local Artefato


73 Toca do Fundo Baixão da Pedra Furada Serra Talhada Metal (facas)
267 Toca da Ema do Sítio do Braz II Serra Talhada Meta e Louça
X Caminho Para Toca do Alexandre Jurubeba Louça
420 Toca ou Casa do Alexandre Jurubeba Louça, cerâmica, vidro, metal e olaria
22 Toca do Sítio do Meio Serra Talhada Louça
425 Toca do João Sabino ou do Osvaldo Serra Branca Louça
30 Toca do Jose Ferreira Serra Branca Louça
367 Toca da Igreijinha ou Helvecio Carneiro Serra Branca Louça
416 Toca do Juazeiro da Serra Branca Serra Branca Louça
551 Toca da Mangueira do João Paulo Serra Branca Louça

Diante disso, é válido esperar que, com o desenvolvimento de pesquisas


arqueológicas de prospecção, escavação e demais etapas necessárias, seja
possível coletar mais artefatos e ampliar os quadros interpretativos referentes a
esses contextos. Symanski (2008) pontua que a esses artefatos deve-se destacar o
fato de que eles fornecem informações inéditas sobre a história de um importante
segmento da população do Nordeste, o sertanejo. Este segmento, que em raras
ocasiões teve condições de deixar registros escritos sobre si, tem sido documentado
somente através das lentes disformes dos segmentos dominantes.

O estudo desses contextos é válido porque possibilita o entendimento mais


profundo dos aspectos específicos do contexto cultural dos agentes maniçobeiros e
demais contextos associados aos períodos mais recentes. Como se sabe, esses
contextos estão intimamente relacionados com a formação da maioria dos atuais
municípios do Sudeste do Piauí. Compreender aspectos da dinâmica cultural deles
é, também, conhecer um pouco sobre o passado das pessoas que compõem
municípios como o de São Raimundo Nonato.

Em relação às práticas de preservação patrimonial, a Trilha da Jurubeba (Fig.


2), onde se insere o sítio Casa do Alexandre, é um importante exemplo dos
trabalhos neste âmbito para o contexto histórico da região do PARNA. A trilha
constitui-se de um itinerário de visitação aos sítios históricos localizados no entorno
do Parque Nacional Serra da Capivara. Tem o objetivo de reconstruir uma pequena
parte da história da ocupação colonial da região. Entre os sítios que se pode visitar
nesta área estão, também, a Casa do Avô do Sr. Nivaldo (ou Casa do Neco Coelho);
a Casa Velha da Jurubeba e a Casa do Nilton Coelho.
159

A trilha interpretativa da Fazenda Jurubeba fornece informações


sobre o meio ambiente e, a cultura do homem do sertão nordestino.
Foi instalada para que, tanto o visitante como o morador local,
conheça e valorize os sítios arqueológicos, pré-históricos e históricos
e, compreenda, as diversas nuances do patrimônio desta região
(BUCO, et all., 2002, p. 3).

No ano de 2000, técnicos da FUMDHAM realizaram as primeiras atividades


de prospecção na área. Em 2002, deram continuidade aos trabalhos de limpeza,
coleta sistemática dos artefatos em superfície, restauro e escavação. Com a parceria
IPHAN e FUMDHAM, em 2005, adaptou-se os cinco sítios para visitação de
deficiência. Nessa perspectiva, a trilha representa um significativo avanço no que se
refere ao interesse científico por parte do passado recente da região. Sua iminente
estruturação no âmbito da preservação patrimonial e o interesse crescente pela
divulgação são passos bastante largos e expressivos para a região.

Figura 2 – Trilha histórica da Jurubeba (Acervo da FUMDHAM)

O sítio que apresenta, atualmente, maiores resultados Arqueológicos


Históricos na região do PARNA Serra da Capivara é o Casa do Avô do Sr. Nivaldo
(ou Casa do Neco Coelho). Em 2002, evidenciou-se as fundações da residência,
todo o piso interno e restos da parede da cozinha. Nos fundos, encontrou-se,
também, restos de uma estrutura definida como um antigo engenho de açúcar. No
interior da casa coletou-se restos de cerâmica, pregos, chaves, moedas, cartuchos
de espingarda, além de fragmentos de louça e de porcelana. Alguns desses
160

artefatos estão acondicionados na FUMDHAM e outros, mais diagnósticos como as


louças, estão expostos no Museu do Homem Americano e no pequeno Museu no
próprio sítio.

No ano 2009, estudantes da Universidade Federal do Vale do São Francisco -


UNIVASF, sob orientação de Msc. Vivian Sena e Dr. Demétrio Mützenberg,
realizaram escavações sistemáticas neste sítio. Nessas pesquisas, recuperou-se
artefatos que possibilitam recompor partes significativas da história das pessoas que
ali viveram. É possível, também, compreender muito sobre a dinâmica do espaço da
residência e sua associação com as estruturas presentes no sítio. O espólio
evidenciado é composto por cerâmica, louça, material metálico, material vítreo e
material de olaria. Todos os artefatos coletados estão acondicionados no laboratório
de cerâmica da FUMDHAM.

Resultante das intervenções nesse sítio, o trabalho de conclusão de curso de


Oliveira (2009) teve como objetivo identificar indicadores sociais e econômicos na
configuração espacial da unidade doméstica da residência. Para responder aos seus
questionamentos a pesquisadora utilizou

preceitos teórico-metodológicos da Arqueologia Espacial, partindo do


pressuposto de que o modo como é vivenciado o ambiente físico no
cotidiano, é uma dimensão intrínseca de como se vivencia a própria
sociedade (SOUZA, 2007 apud OLIVEIRA, 2009, p 17).

Outra pesquisa arqueológica de contexto histórico foi o trabalho de conclusão


de curso de Alcântara (2009). Baseada nos levantamentos históricos provenientes
da pesquisa de Oliveira (2001) e no cadastro de sítios arqueológicos da FUMDHAM,
ela identificou, por meio de uma classificação geomorfológica, momentos
diferenciados de ocupação e exploração dos agentes maniçobeiros no PARNA Serra
da Capivara. Baseada, também, em pressupostos teóricos da Arqueologia Espacial,
propôs algumas considerações acerca da escolha dos locais para a instalação das
habitações nas tocas em função da proximidade de recursos naturais.

Com essas pesquisas, percebe-se que, de maneira gradativa, nos últimos


anos, vêm aumentando a quantidade de pesquisas referentes ao contexto histórico
da região. Todavia, a grande maioria ainda tem caráter preliminar e está ligada,
principalmente, aos interesses de preservação patrimonial. Contudo, espera-se que
os vários sítios já identificados sejam submetidos à investigação arqueológica e
161

acrescentem dados aos contextos arqueológicos já percebidos, possibilitando o


conhecimento dos contextos históricos recentes da região.

Neste sentido, a participação da UNIVASF em pesquisas arqueológicas


históricas apresenta-se de maneira crescente ao longo dos seus sete anos de
existência. Além das pesquisas já mencionadas, atualmente, desenvolve-se o
Programa de Educação Tutorial (PET) no Colegiado de Arqueologia e Preservação
Patrimonial, intitulado: “Escavando História: São Raimundo Nonato além dos 100
anos”.

Como um dos sítios estudados atualmente por docentes e discentes e da


UNIVASF, bem como pelo PET, a Casa do Alexandre apresenta uma materialidade
que remonta ao contexto de ocupação recente da região, incorporando novos
conhecimentos.

2.2.1 Sítio Casa do Alexandre

As pesquisas neste sítio (Fig. 2) ocorreram em 2010 e em 2011 sob


supervisão de Msc. Vivian de Sena e Msc. Waldimir Neto. As duas etapas de
pesquisa tiveram o objetivo geral de compreender a sua dinâmica ocupacional e
relacionar o contexto arqueológico com o contexto histórico, social e econômico da
extração do látex da maniçoba.

O sítio está localizado no entorno do Parque Nacional Serra da Capivara, em


uma área particular da FUMDHAM, nas coordenadas 23L 765217 e 9019550.
Segundo Buco et all., (2002):

A Toca do Alexandre é um local que foi utilizado pelo maniçobeiro


homônimo e sua família como espaço de moradia durante cerca de
30 anos. Nesse sítio é possível notar que o abrigo rochoso foi
aproveitado como ‘teto natural’ e as paredes foram confeccionadas
em barro, com a técnica da taipa de mão.

Neste sentido, as escavações também tiveram o objetivo de entender como se


deu o uso do espaço do sítio, identificar o período de habitação e compreender
aspectos do cotidiano das pessoas associadas a ele. Escavaram-se duas unidades
e dois poços-testes. A unidade 01 (3 m x 2 m) foi escavada com vistas a evidenciar
162

uma possível estrutura arqueológica situada ao lado da do espaço arquitetônico da


Casa. Ao norte desta unidade, em uma área com altitude inferior, escavou-se um
poço-teste com o objetivo de identificar a potencialidade da área. Todavia, não foi
ampliada por não atestar materialidade arqueológica.

Figura 2 – Imagem lateral Casa do Alexandre, associada ao abrigo (Acervo da FUMDAHAM)

A segunda unidade foi o resultado da ampliação de um poço-teste de 60 cm x


60 cm, que atingiu 55 cm de profundidade. Após sua ampliação, a unidade atingiu 4
m x 4 m, aprofundando 55 cm. Essa unidade situa-se na parte mais baixa do sítio
em relação à estrutura da Casa.

Nas unidades escavadas percebeu-se a presença de duas camadas


estratigráficas e, após a análise das mesmas, constatou-se estarem associadas a
uma mesma camada de ocupação cultural revolvida por atividades pós-
deposicionais. Há relatos orais que descrevem um período de chuvas intensas na
região do Parque Nacional Serra da Capivara, na década de 1960. Esse momento,
com intensa ação natural, pode ter sido responsável por alterar a estrutura original
da deposição dos sedimentos, desarranjando, assim, a estrutura em que os
artefatos foram encontrados. Essa hipótese ainda precisa ser corroborada com
maior precisão, em novas escavações que possibilitem conhecer melhor os
163

processos de estratificação do sítio e contextualizar o porquê da complexidade do


depósito estratigráfico.

Para as análises contextuais dos artefatos de uso doméstico resultantes das


escavações realizadas neste sítio, considera-se a cultura material presente em
superfície, na camada I e na camada II como pertencentes a um mesmo contexto
cultural. Em função da percepção de ter havido atividades pós-deposicionais no
sítio, na análise e interpretação do universo artefatual não se distingue as camadas
estratigráficas do sítio.

3 APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS DADOS PROVENIENTES DA


ANÁLISE DOS ARTEFATOS EM CONTEXTO

3.1 PROCEDIMENTOS TÉCNICOS APLICADOS NA ANÁLISE

Na caracterização dos atributos tecno-tipológicos dos artefatos utilizou-se os


procedimentos classificatórios e descritivos com base em Caldarelli (2002) para os
artefatos de contexto doméstico contemplados nessa pesquisa (cerâmica, louças,
metal e vidros). A análise tem o objetivo de identificar e descrever os atributos de
cada fragmento. Os aspectos técnicos, morfológicos e decorativos, associados aos
pressupostos teóricos adotados da arqueologia contextual, possibilitam responder os
questionamentos levantados na pesquisa. Não obstante, pela sua disposição dos
nas camadas estratigráficas, percebidas durante a escavação considera-se artefatos
como sendo referentes a um mesmo contexto cultural.

Em laboratório adotou-se os procedimentos de limpeza, registro e


acondicionamento dos artefatos focados nessa pesquisa. Esta etapa da pesquisa foi
realizada pelos bolsistas do projeto PET/Arqueologia da UNIVASF, sob tutoria do
Prof. Dr. Celito Kestering e orientação do Prof. Msc. Waldimir Leite Neto e da Prof.ª
Msc. Vivian Sena.

Iniciou-se a análise dos fragmentos cerâmicos. Identificou-se três técnicas de


manufatura: acordelada (superposição de roletes), modelada (modelagem a mão
livre) e torneada (confecção com o emprego de torno cerâmico). Pelo parâmetro da
morfologia fez-se a divisão do universo analisado em bases, bordas, bojos
164

(fragmentos do corpo do objeto cerâmico) e diferidos (artefatos que não apresentam


tamanho suficiente para identificação da morfologia). Após esta subdivisão, fez-se a
seleção de artefatos que poderiam contribuir na reconstituição do repertório de
formas dos vasilhames (especialmente as bases e as bordas).

O terceiro procedimento ocorreu com a identificação dos tratamentos de


superfície interna e externa dado aos fragmentos, resultando em uma nova divisão
com vistas a uma maior identificação das principais tendências da indústria
cerâmica. Identificados os subconjuntos, iniciou-se o preenchimento das fichas com
todos os atributos acima considerados para cada artefato.

Para os fragmentos de louça, vistos, aqui como uma categoria genérica e


ampla, procedeu-se a sua separação por categorias de produto (faiança fina, grés e
porcelana). Fez-se a classificação dos fragmentos de faiança fina pelo critério da
variedade de tipos de esmalte aplicados sobre a peça cerâmica e a coloração da
pasta. Nessa divisão, considerou-se os tipos com as terminologias: pearlware e
whiteware. Concomitante a esta etapa ocorreu a identificação de fragmentos
pertencentes a um mesmo objeto, que possibilitariam a sua remontagem.

Realizou-se a terceira subdivisão com a identificação morfológica dos


fragmentos, sendo consideradas as bases, bordas e os bojos no agrupamento. Este
item automaticamente direciona os olhares à busca pela identificação, quando
possível, das formas e funções que os objetos apresentavam. Em seguida, através
de uma ficha específica, iniciou-se a análise, contemplando os atributos técnicos e
morfológicos descritos, bem como os aspectos decorativos, funcionais e
cronológicos.

Com os aspectos decorativos, a partir da identificação da técnica de aplicação


e os motivos, seguindo critérios provenientes de Caldarelli (2002), Tocchetto et. alli.
(2001) e Symanski (2009), pôde-se inferir acerca de período de produção e a
variável de custo.

Iniciou-se a classificação dos materiais vítreos pelos seus aspectos técnicos.


Os vidros apresentaram produção fabril ou industrial. A identificação do tipo de
produção foi realizada pela observação do tipo de técnica aplicada na manufatura
dos objetos. Considerou-se como artefatos de produção fabril aqueles produzidos
em série por meio de moldes, apresentando uma maior homogeneidade entre os
165

objetos, no contexto das práticas industriais. Os artefatos de produção


industrializada foram identificados em função das marcas produzidas no fragmento
pelo processo automatizado.

Na segunda divisão foram consideraras e identificadas as formas dos objetos,


que variam desde garrafas, frascos de uso farmacêutico (ou artigos de toucador) a
copos. Mediante esta segunda divisão foi possível a identificação da função dada às
formas, haja vista a associação possível entre forma e função. Neste momento
pôde-se, então, iniciar a análise de cada artefato com o preenchimento das fichas
com os atributos descritos, junto à coloração dos fragmentos, período de produção
e, em observações, a morfologia do fragmento (Base, fundo, corpo, pescoço,
gargalo, lábio ou objeto completo).

Para os materiais metálicos a primeira divisão foi realizada em função da


natureza do material, através da sua constituição física. Percebeu-se a presença de
material ferroso, de alumínio e uma moeda (níquel). Em seguida iniciou-se a análise
com o preenchimento de fichas específicas. Para elas foi contemplado o atributo
tecnológico acima, bem como o tipo de produção (fabril e industrial), a forma dos
artefatos e a função. No caso específico da moeda, seguiu-se uma descrição acerca
do seu valor monetário, período de expedição e a casa emissora.

A análise do material arqueológico de contexto doméstico da Casa do


Alexandre, que teve como objetivo descrever os atributos de cada fragmento
possibilitou perceber similaridades e tipos que culminam na identificação de
aspectos culturais e recortes cronológicos. O processamento dos dados e a
contextualização das informações possibilitaram a compreensão de parte do modo
de vida dos agentes atuantes no sistema de exploração da maniçoba. O universo
artefactual analisado nesta pesquisa foi de 472 fragmentos, distribuídos entre
cerâmicas, louças, metais e vidros.
166

3.2 RESULTADOS E CONTEXTUALIZAÇÃO DAS ANÁLISES

3.2.1 Material cerâmico

A análise técnica dos artefatos teve como objetivo descobrir a função utilitária
dos artefatos e a contextualização das informações do universo dos maniçobeiros.
Fez-se, para isso, a identificação dos aspectos técnicos de 348 (trezentos e
quarenta e oito) fragmentos coletados no sítio Casa do Alexandre.

No universo artefactual das cerâmicas percebeu-se que o atributo técnico


compreende artefatos manufaturados pelas técnicas de acordelamento, modelagem
e torneamento. Assim, em relação às técnicas aplicadas na confecção dos objetos
cerâmicos, pôde-se perceber uma disparidade na sua variação (Fig. 3). A técnica de
manufatura ceramista por acordelamento, que está em maior quantidade no
contexto, compreende um total de 283 (duzentos e oitenta e três) artefatos,
enquanto a modelagem apresenta 52 (cinqüenta e dois) e o torneamento 13 (treze).

Figura 3 – Gráfico das técnicas de manufatura aplicadas na confecção das peças

As cerâmicas confeccionadas com a técnica de manufatura por


acordelamento (Fig. 4) foram produzidas a partir da superposição de roletes, em
forma de anéis ou espiral de argila sobre uma base. Segundo Zanettini (2005),
etnologicamente, sabe-se que essa técnica é utilizada por praticamente todas as
tribos indígenas do Brasil, também sendo muito comum em contextos pré-históricos.
Além disso, ela também era bastante difundida na África (Angola, Congo, Benin e
Nigéria). Registros textuais evidenciam a incorporação dessa técnica em nosso
território por populações de baixo poder aquisitivo porque sua produção não exige
maior perícia e instrumentos técnicos.
167

Figura 4 – Bordas de cerâmica acordelada com decoração ungulada (Acervo da UNIVASF)


Essas informações associados justificam o fato dessa técnica ser bastante
comum nos contextos históricos de populações sertanejas resultantes de uma
pluralidade étnica e compostas por muitas pessoas com baixo poder aquisitivo. A
produção das peças de cerâmica acordelada possibilita, em muitos casos, que não
seja necessária a sua aquisição por compra. Esses objetos eram majoritariamente
produzidos de maneira artesanal, em âmbito local, pelos próprios indivíduos que
faziam seu uso, principalmente, no contexto doméstico.

As cerâmicas produzidas por modelagem, que estão em quantidade


intermediária no espólio, também são artesanais. As peças eram manufaturadas por
moldagem de uma massa uniforme de argila com o emprego da mão livre.

As cerâmicas torneadas, produzidas com o uso do torno mecânico, estão em


número pouco expressivo no sítio. Na bibliografia arqueológica elas são comumente
chamadas de neobrasileiras. Todavia, a partir das considerações de Zanettini (2005)
este termo não é adotado aqui por associar-se a uma categoria arbitrária e
generalizante para as cerâmicas coloniais do Brasil.

Segundo Symanski (2008), as cerâmicas produzidas com o emprego do torno


estão associadas a uma dinâmica de produção e comercialização local-regional.
Essa característica não refuta a possibilidade da produção do objeto no âmbito do
seu uso. Entretanto, para o caso específico do contexto maniçobeiro, cerâmicas de
torno de produção regional estão em uma pequena fração, indicando uma opção
pela produção artesanal local do objeto em detrimento da aquisição por compra.
168

Em se tratando dos atributos decorativos dados aos vasilhames cerâmicos,


percebeu-se apenas a presença de três apêndices e seis bordas com decoração
ungulada (Fig. 5, 6 e 7).

Figura 5 – Borda de cerâmica acordelada com apêndice (A e B) e acordelada com apêndice


e ungulada (C) (Acervo da UNIVASF)

Excetuando esses casos específicos com decoração, notou-se que o


acabamento final dado às peças eram apenas na superfície interna (Fig. 6) e externa
(Fig. 7), o que indica uma opção pelos vasilhames sem elaboração estética com a
presença de decoração. Os tratamentos percebidos variam de alisamento, polimento
e escovamento.

Figura 6 – Gráfico de tratamento da superfície interna

Figura 7 – Gráfico de tratamento da superfície externa


169

O alisamento compreende a maior fração dos tratamentos de superfície


interna e externa dados aos artefatos. Segundo Zanettini (2005), o alisamento é um
tratamento simples, executado após a confecção do vaso com a argila ainda úmida,
servindo-se de vários instrumentos, tais como: seixos rolados, sabugos de milho,
taquaras e mesmo as mãos.

O polimento é o tratamento de superfície realizado com o emprego de seixos


rolados ou artefatos líticos polidos. O emprego dessa técnica também é considerado
simples e imprime marcas da ação polidora no objeto.

O terceiro tratamento de superfície encontrado no sítio é o escovamento. Este


tratamento também pode ser considerado como um tipo de decoração. É o resultado
da ação manual de passar na superfície ainda úmida da vasilha um objeto de pontas
múltiplas, deixando sulcos bem visíveis que guardam entre si um paralelismo e uma
proximidade.

No que se refere à morfologia dos artefatos, a fração mais significativa do


espólio é composto por bojos (77%). Essa realidade morfológica e a fragmentação
dos artefatos impossibilitaram uma maior identificação do repertório de formas do
universo cerâmico. Todavia, as bases (3%) e as bordas (18%), como artefatos
diagnósticos, indicaram a presença de vasilhames cerâmicos em forma de potes.

Esses objetos associam-se ao contexto doméstico do sítio. Serviram em


funções relacionadas, principalmente, à produção e consumo de alimentos. A
análise que visou à reprodução gráfica das formas dos vasilhames indicou que a
maior parte das cerâmicas do sítio apresenta diâmetros pequenos, formas esféricas,
com bocas abertas e de fácil manufatura. Essas características não refutam o uso
dos objetos como contentores de líquidos, mas indicam o maior uso na produção e
consumo de alimentos.

3.2.2 Materiais em louça

As terminologias e as classificações relacionadas às diferentes categorias de


objetos de louça são inúmeras. Variam em nível regional, nacional e mundial. A
opção adotada nesta análise distinguiu as categorias de faiança fina, porcelana e
170

grés das demais cerâmicas comuns de produção artesanal em função da presença


do processo de verificação e por ser o resultado de técnicas industriais ou semi-
industriais de produção em série. Neste sentido, as categorias de louça identificadas
no sítio Casa do Alexandre, que são o foco da pesquisa, foram o grés e a porcelana
(produtos não porosos) e as faianças finas (produtos porosos).

Conforme Symanski (1998), os fragmentos de louça estão entre os principais


e mais diagnósticos artefatos arqueológicos de sítios históricos, apresentando
enorme potencial interpretativo sobre aspectos socioeconômicos, hábitos
alimentares e comportamento de consumo. A combinação dos atributos pasta,
esmalte, técnica de decoração, cor e padrão decorativo fornece ao pesquisador
informações referentes ao período de fabricação das peças, permitindo a obtenção
de cronologias apuradas. O viés interpretativo dado a esses artefatos como bens de
uso cotidiano, associados a aspectos sociais, econômicos e culturais, inseridos em
contextos amplos e específicos, possibilita ao arqueólogo entender a respeito de
aspectos culturais históricos não contemplados pelo recurso historiográfico.

3.2.2.1 Faiança Fina

A opção pelo termo adotado para este produto justifica-se pela sua
consagração na literatura arqueológica e não se restringe às louças de origem
inglesa. É utilizado, também, para os produtos nacionais. Ademais, como pontua
Abreu (2010), “de modo algum, o termo faz a faiança fina ser menos cerâmica”.
Designa apenas uma categoria de cerâmicas de produção em larga escala.
Segundo Toccheto et alli, (2001, p. 22), “a faiança fina foi o resultado de uma
revolução da indústria cerâmica inglesa do século dezoito e possui características
próprias que a distinguem dos demais tipos de cerâmicas até então existentes”.

A produção da faiança fina inglesa desenvolve-se no século XIV, em


mosteiros do Sudeste da Inglaterra. Após 1690, com os irmãos John Phillip David
Evans, as técnicas de produção e vitrificação foram modificadas, dando
características fabris à produção dos utensílios. Eles descobriram a técnica de jogar
sal sobre as peças ainda no forno. Com isso o vapor do cloreto de sódio reagia e
171

formava o ácido clorídrico que deixava sobre as peças uma camada de vidro de
silicato de sódio.

Entretanto, as maiores revoluções na produção datam do final do século


dezoito. Essas revoluções caracterizam-se pela adição de feldspato à pasta branca
e pela criação da chamada faiança fina creamware. Houve a substituição da técnica
de manufatura em torno por moldes pela criação da técnica Transfer Printing, em
que a técnica de pintura artesanal a mão livre pôde ser substituída pela decoração
por transferência automática. Essas revoluções somadas resultaram na produção
em massa dos produtos, sua forte inserção na dinâmica do mercado internacional e
sua gradativa popularização.

No Brasil a faiança fina foi a classe de louça doméstica mais popular, a partir
do século XVIII. Sua importação dava-se principalmente da Inglaterra a partir da
abertura dos portos, em 1808. “A produção brasileira deste tipo de louça iniciou em
princípios do século vinte, no Paraná e em São Paulo” (BRANCANTE, 1958 apud
TOCCHETTO et al., 2001, p. 23).

Vários elementos que resultaram na faiança fina e que estavam presentes no


seu processo de produção, como o esmalte, decoração, cor e motivo decorativo,
fornecem informações referentes a tendências de consumo, gosto e período de
fabricação. Atributos como as formas, que direcionam a identificação da função dada
aos objetos, são aspectos que possibilitam o estudo desses produtos no cotidiano
dessas pessoas.

Nesta perspectiva, com a análise das louças provenientes do espólio


evidenciados no sítio Casa do Alexandre, percebeu-se que as faianças finas
correspondem a 96% do universo artefactual das louças, sendo 48 (quarenta e oito)
dos 50 (cinquenta) fragmentos. Em relação a todo o espólio de contexto doméstico,
as louças correspondem a 11% dos 472 artefatos.

A identificação dos tipos de louças coletadas dá-se em função da análise da


coloração típica do esmalte e da pasta. Com este atributo técnico, foi possível
identificar dois tipos: as pearlwares, que são 26 (vinte e seis) fragmentos e estão em
maior número no espólio em relação às whiteware, que são 22 (vinte e dois)
fragmentos (Fig. 8).
172

Figura 8 – Gráfico de tipos de faiança fina


As louças pearlware são identificadas por apresentarem uma pasta
amarelada e uma coloração do esmalte em tons levemente azulados. Estes atributos
são observados principalmente nas bordas e nas bases devido ao acréscimo de
óxido de cobalto. Sua inserção no mercado brasileiro está associada à abertura dos
portos, em 1808. As décadas entre 1790 e 1830 são o seu período de maior
produção e consumo. No Brasil, pontua Symansky (1998), o consumo desta louça
pode ter se estendido, sendo adquirida por toda a primeira metade do século XIX e
em momentos mais à frente. Essa afirmação pode ser contextualizada pela
presença deste tipo no sítio Casa do Alexandre, relacionado ao processo de
exploração da maniçoba, em fins do século XIX e início do século XX.

As louças do tipo whiteware estão presentes em menor proporção no sítio


Casa do Alexandre. Todavia, a disparidade numérica entre os dois tipos não é muito
expressiva. Há uma diferença de apenas 4 (quatro) fragmentos. O tipo whiteware
pode ser identificado pela pasta e esmalte muito brancos. Deve-se isso à redução de
óxido de cobalto no processo de esmaltação. Sua produção é datada do início do
século dezenove, em torno da década de 1820. Está cronologicamente inserida nos
recortes temporais do sítio.

Tocchetto et. al. (2001) pontuam que o consumo da whiteware popularizou-se


gradativamente a partir da segunda metade do século XIX, mantendo-se até os dias
atuais. Essa popularização foi fomentada pelo menor custo na produção das
mesmas com a diminuição do óxido de cobalto. Esta afirmação está fortemente
associada ao contexto de pesquisa de áreas urbanas do Rio Grande do Sul. Não
pode ser diretamente associada a outros contextos. No caso especifico da Casa do
Alexandre, ainda se percebe a forte presença de louças do tipo pearlware.
173

Como os períodos de produção e consumo desses tipos de louça são longos


e a variedade de decorações presentes nos objetos é ampla, na caracterização
destes artefatos é necessária a identificação dos atributos decorativos (identificação
do motivo e da técnica decorativa). Combinados, esses dados possibilitam chegar a
cronologias mais apuradas e identificar aspectos referentes ao consumo desses
objetos.

Assim, dos 48 (quarenta e oito) fragmentos de faiança fina presentes no sítio,


em apenas 17 (dezessete) foi possível perceber a presença de motivos decorativos,
identificando a técnica de aplicação. Destes, a identificação específica do motivo só
foi possível em 12 (doze) fragmentos (Qd. 2).

Quadro 2 – Tipos de atributos decorativos identificados nos fragmentos de faiança fina


Técnica Decorativa Motivo Decorativo Tipo
Com relevo e pintado à mão livre - Shell-edged - Pearlware
Pintado à mão livre - Friso - Pearlware
- Floral/Friso - Whiteware
- Borrão Azul - Pearlware
- Faixa/Friso - Whiteware
- Faixa/Friso - Pearlware
- Faixa/Friso - Pearlware
- Blue Edged - Pearlware
- Faixa/Friso - Pearlware
Carimbado - Geométrico/friso -- Pearlware
- NI -Whiteware
- NI - Whiteware
- NI - Pearlware
Esponjado - NI - Pearlware
Baixo Relevo - NI - Pearlware
- Floral - Whiteware
Transfer Printing - Oriental (cena exótica) - Pearlware

A partir da análise identificou-se que a maior porção dos artefatos (oito)


apresenta decoração a partir da técnica de pintura a mão livre. Com esta técnica, os
motivos eram produzidos de forma manual. Segundo Symanski (2001 apud Milles,
1991), os preços no mercado para essas decorações eram considerados como de
terceiro nível (em uma escala de um a quatro, em que quatro era destinado aos
produtos de maior valor). Nesta escala, percebe-se que esses artefatos não
apresentavam os preços mais acessíveis. Todavia, sendo a maioria dessas
decorações do tipo pealwares, deduz-se que, no período em que o sítio foi ocupado,
o valor do produto não era tão alto. O fato de a maioria das louças serem do tipo
pearlware indica uma possível aquisição de objetos com preços acessíveis porque,
no período, as louças whiteware eram a primeira opção para consumo. A
174

particularidade percebida com essa significativa presença no contexto justifica-se


pela distância da região em relação aos grandes centros de consumo e pelo fato de,
por vezes, ser diferenciado o recorte cronológico de produção e consumo de louças.

Produtos com essa técnica foram identificados, principalmente, com os


motivos de faixas e frisos (Fig. 9). Segundo Tocchetto et. alli. (2001:208): “a
produção dessa decoração, de maneira geral, ocorreu entre o final do século XIX e
início do século XX”. A esses artefatos podem ser associados os tipos pearlware e,
principalmente, whiteware.

Figura 9 – Base de faiança fina do tipo whiteware, com motivo, faixa e friso rosa (A), borda
do tipo pearlware, com motivo, faixa e friso azul (B) e borda do tipo pearlware,
com motivo, faixa e friso em azul e rosa (Acervo da UNIVASF)

Os demais motivos produzidos a mão livre (Fig. 10) são: floral, blue edged e
borrão azul. O artefato com motivo floral presente no sítio apresenta o estilo
denominado peasant. É caracterizado pela pintura de pequenos elementos florais a
partir de leves pinceladas, mas deixando grande parte da peça sem decoração.
Esse tipo de motivo era mais comum em whitewares, sendo produzido entre as
décadas de 1810 e 1860.

Figura 10 – Borda de faiança fina, do tipo whiteware, com motivo floral e friso (A), borda do
tipo pearlware, com motivo Blue Edged ou Shell Edged (B) e bojo do tipo
pearlware, com motivo Borrão Azul (Acervo da UNIVASF)
175

O motivo Blue Edged é comum em sítios brasileiros. Apresenta uma


variabilidade de decoração. É também conhecido como Shell Edged. Pode
apresentar cores em verde ou azul, com ou sem relevo. Symanski (2001 apud
MILLER, 1991) relaciona essas louças no segundo nível de preço e pontua que
foram muito populares por serem as mais baratas entre as decoradas. No sítio foram
evidenciados dois fragmentos com este motivo na cor azul, sendo o primeiro com
relevo (Fig. 11) e o segundo sem relevo. Para o motivo com relevo, o período de
produção situa-se entre 1800 e 1850 e, para o sem relevo, entre 1850 e 1897.

Figura 11 - Borda de faiança fina do tipo pearlware, com motivo Blue Edged ou Shell Edged,
em baixo relevo. Fragmento de um prato (Acervo da UNIVASF)

O borrão azul (ou Flow Blue) designa um tipo de estampa em azul no qual a
tinta escorre intencionalmente dentro do esmalte, produzindo um aspecto borrado.
Segundo Lima (1989), foi introduzido na Inglaterra entre 1835 e 1845, sendo popular
até 1901, principalmente para exportação. Em relação aos motivos em técnica
decorativa carimbada, apenas é possível especificar qual é o motivo em um
fragmento. Esse motivo apresenta flores e desenhos geométricos. Sua cronologia
varia entre 1845 e o início do século XX.

O único artefato com a técnica esponjada também não possibilita a


identificação do motivo. Esta técnica foi desenvolvida entre 1860 e 1935. Era
produzida com o auxílio de uma esponja para pintar a superfície da peça, dando
uma aparência ‘manchada’ ao objeto.
176

No espólio há, também, dois fragmentos com decorações em baixo relevo.


Em um deles não é possível identificar o motivo. O segundo apresenta o motivo
floral (Fig. 12). Essas louças com superfície modificada foram produzidas por moldes
de impressão no século dezenove. O motivo floral era bastante comum com o uso
dessa técnica e não apresentava pinturas, apenas o baixo relevo.

Figura 12 - Borda de faiança fina do tipo whiteware, com motivo floral em baixo relevo.
Fragmento de um prato (Acervo da UNIVASF)

Os objetos produzidos pela técnica transfer printing eram os mais caros entre
as louças. O fragmento coletado na Casa do Alexandre é um exemplar dos motivos
orientais nos objetos de faiança fina que foram impressos por transferência de um
molde para a peça (Fig. 13). Essa técnica surgiu a parir de 1750 na Inglaterra em
substituição aos motivos pintados a mão. O fragmento com esta técnica, identificado
no sítio, insere-se no estilo chinoiserie. Segundo Tocchetto et alli (2001), este estilo
baseia-se em interpretações européias de padrões decorativos da porcelana
chinesa, sendo comum entre 1816 e 1836.

Figura 13 – Fragmento de faiança fina do tipo pearlware, decorado no estilo chinoiserie, com
a técnica transfer printing (Acervo da UNIVASF)
177

Além dos aspectos técnicos e decorativos, a morfologia pode informar muito


acerca das louças do dia-a-dia das pessoas. Sendo assim, a partir dos 16
fragmentos de borda, das 10 bases e dos oito bojos, bem como dos 14 que não
possibilitam uma identificação, pôde-se perceber que o repertório de formas de
faianças finas no sítio não é diversificado. Estão os pratos em maior quantidade (Fig.
14). Neste sentido, é possível perceber que estes objetos foram utilizados,
majoritariamente, para o consumo de alimentos, à mesa.

Figura 14 – Gráfico do repertório de formas

Além dos pratos, também foram identificados outros objetos de uso


doméstico, como xícaras (duas), pires (dois) e pedestal (um). Todos esses artefatos
apresentam funções relacionadas ao cotidiano doméstico e refletem a inserção de
bens de natureza industrializada no contexto dos agentes maniçobeiros. Todavia,
pela pouca variedade de formas de objeto, é possível perceber que no universo
cultural dos agentes maniçobeiros o uso dado a esses objetos não era amplo.

3.2.2.2 Porcelana

A exportação, com maior representatividade, da porcelana chinesa para a


Europa inicia-se, a partir do século XVI e está associada aos contextos domésticos
economicamente mais abastados. No Brasil, segundo Symansky (2001), as
porcelanas e as ironstones surgiram, com maior expressão, a partir da segunda
metade do século XIX, associados a práticas cotidianas como o consumo do chá.
Nesse momento, esses objetos estão associados contextos econômicos mais
favorecidos e a práticas sociais simbólicas.
178

No sítio Casa do Alexandre, coletou-se apenas um fragmento de porcelana.


Ele não assegura a identificação de muitos dos seus atributos, o que impossibilita
uma análise mais apurada do artefato e da sua relação com os contextos. Foi
possível identificar que se trata de uma pequena parte de uma xícara, o que indica
uma funcionalidade doméstica. Ademais, a simples presença deste artefato no
contexto possibilita, também, propor que havia objetos de uso mais requintado no
contexto doméstico dos agentes maniçobeiros, compondo sua tralha doméstica
utilitária.

3.2.2.3 Grés

O grés ou stoneware é a categoria de cerâmica que mais se aproxima da


porcelana. Sua pasta é de grande dureza. Compõe-se de uma mistura de argila,
feldspato e areia quartzosa ou sílex moído. Assim como o fragmento de porcelana, a
presença de grés também é numericamente inferior no contexto do sítio. Está,
também, associado à aquisição de produtos confeccionados em série. Foi coletado
apenas um fragmento. O fragmento é um bojo de contentor de líquidos em forma de
garrafa. Outros atributos como a decoração e os aspectos tecnológicos mais
específicos da manufatura dos objetos em grés não podem ser identificados. O
período da introdução do grés no mercado brasileiro não é um assunto muito
discutido, mas esses, possivelmente, são o resultado do aumento das exportações
do produto, no início do século XIX.

3.2.3 Materiais em metal

No sítio Casa do Alexandre foram coletados 15 (quinze) artefatos metálicos,


sendo 10 (dez) de natureza ferrosa, 4 (quatro) em ligas metálicas de alumínio e uma
em níquel (moeda). Exceto a moeda, todos os artefatos são de produção fabril e não
possibilitam a identificação de cronologia. A moeda tem a representação do rosto de
Getúlio Vargas. É datada do ano de 1946, com o valor de 10 centavos de cruzado.
179

Esta moeda, que foi coletada em superfície. Associa-se ao período final da segunda
fase de exploração da maniçoba, no contexto da Segunda Guerra Mundial.

As formas e as funções os metais compreende a parte mais significativa da


análise. Dos quinze artefatos coletados, oito não possibilitam a identificação da
forma, devido ao estado de conservação. Os demais foram divididos por função:
tralha doméstica e tralha equestre.

No grupo da tralha doméstica, há 5 (cinco) artefatos com funções específicas


no contexto dos agentes maniçobeiros. Foi identificada a presença de o cabo de
talher (garfo ou colher) em alumínio. Este artefato apresenta uma função utilitária
associada ao consumo de alimentos. Também associado a esse contexto, mais
especificamente ao preparo de alimentos (ensopados), identificou-se uma concha
relativamente grande que sugere a produção de comida para um grupo grande de
pessoas. Os outros três artefatos são um colchete (pequeno objeto utilizado na
costura de vestimentas) e dois anzóis. Os anzóis são de um material ferroso e estão
associados à aquisição de pescado para o consumo. A presença destes dois anzóis
evidencia a presença da pesca como atividade na vida dos maniçobeiros e do peixe
na dieta alimentar (Fig. 15).

Figura 15 - Cabo de talher em alumínios e com decoração (A), concha em alumínio e anzóis
em metal ferroso de produção fabril (Acervo da UNIVASF)

A tralha eqüestre é percebida no sítio pela presença de uma espora, que se


usa na montaria de equídeos (cavalos, burros e jegues).

No sistema de exploração da maniçoba, os aguadores utilizavam o burro


como transporte. Esta espora pode ser associada a este contexto ou a uma
realidade corriqueira ao sertanejo, na medida em que é comum a presença de
cavalos, jegues e burros para transporte no dia-a-dia dessas pessoas.
180

3.2.4 Materiais em vidro

O vidro é definido por Caldarelli (2002) como um composto de sílica,


geralmente sob a forma de areia, e álcalis, como potássio, óxido de cálcio e
carbonato de cálcio. Esta categoria de artefatos é uma das mais comuns em sítios
arqueológicos históricos. Segundo Lima (2002, p. 3):

Embora haja muita informação contida nos cacos de vidro, a


arqueologia histórica brasileira ainda não conseguiu extrair deles
tudo o que têm a dizer sobre aqueles que os produziram,
compraram, utilizaram, reciclaram e descartaram.

Qualitativamente as informações extraídas a respeito dessa categoria


artefactual ainda são insuficientes na Arqueologia Histórica brasileira, dada a sua
grande ocorrência nos sítios e seu caráter informativo. Todavia, nessa pesquisa, a
análise contextualizada dos vidros é relevante, pois estes artefatos compreendem
uma parcela significativa do espólio e estão diretamente associados ao modo de
vida dos agentes maniçobeiros.

Buscou-se, primeiramente, identificar do tipo de produção dos 59 (cinqüenta e


nove) fragmentos, pela técnica de manufatura. A partir de cada fragmento,
Identificou-se dois tipos de produção: fabril (vinte artefatos) e industrial (oito
artefatos). Em 31 (trinta e um) fragmentos não foi possível a identificação as marcas
que os processos de produção imprimem no objeto (Fig. 16).

O processo de produção fabril de vidros ocorreu como alternativa à produção


artesanal. A partir do século XVII, os objetos utilitários em vidros passam a ser
produzidos em série, com o uso de moldes com maior homogeneidade de formas
dos recipientes. Nas técnicas de produção fabril utiliza-se quatro tipos de molde: de
peça única, duplo, de três peças e rotativo. No sítio Casa do Alexandre foram
identificadas os quatro tipos de técnica (Fig. 17).

Figura 16 – Gráfico de tipos de produção dos artefatos vítreos


181

Figura 17 – Gráfico da técnica de produção dos artefatos vítreos

A técnica por molde rotativo apresenta-se em maior quantidade no sítio


(treze). Esta técnica foi usada entre 1870 e 1920. Consistia em um molde de metal
revestido com uma pasta, soprada para se chegar à forma desejada. No processo
ocorria um movimento giratório que imprimia marcas do molde na peça. Essas
marcas são estrias horizontais nos fundos planos da base da peça. Era usado
principalmente na produção de contentores de bebida (vinhos).

Identificou-se 4 (quatro) fragmentos produzidos por molde duplo. Por esta


técnica o corpo era produzido confeccionado com o uso do molde e o gargalo, por
sopro livre. Os objetos produzidos por esta técnica deixavam dois traços verticais
que percorrem a peça, da base ao gargalo. Essa técnica foi desenvolvida entre o
século XVII e a metade do século XIX.

Dois artefatos foram confeccionados por molde de peça única, sendo eles
diagnosticados por preservarem sua forma. Esta técnica foi desenvolvida no mesmo
período do molde duplo. Sua identificação dá-se pela presença de uma estria
horizontal causada pela união entre o corpo e o gargalo da garrafa, que eram
produzidos em moldes separados.

Através da técnica de molde de três partes só foi identificado um fragmento. A


técnica foi utilizada entre os anos de 1820 e 1860. Consiste na junção de três partes
moldadas separadamente (corpo, ombro e o pescoço). A união entre as três partes
resultava em duas estrias horizontais.

No espólio do sítio também foram identificados artefatos produzidos por


técnica automática (oito fragmentos), correspondendo a uma fração significativa.
Segundo Caldarelli (2002), esse tipo de produção de vidro surgiu no século XX, com
182

a invenção da máquina de produção de vidro automático (patenteada em 1903). A


parir desse tipo de produção pode-se identificar, no recipiente, a presença de dois
traços verticais percorrendo toda a peça, dois traços horizontais no gargalo e um
próximo ao lábio. Todos os fragmentos de produção industrial identificados estão na
forma de garrafas (Fig. 18)

Figura 18 – Gargalo de garrafa produzido por técnica automática (Acervo da UNIVASF)

O repertório de formas (Fig. 19) identificado nos recipientes demonstra que as


garrafas cilíndricas, que serviam como contentores de bebidas alcoólicas,
corresponde à maior parcela do espólio (vinte e seis fragmentos). Sua função como
objeto utilitário referente ao contexto doméstico é diretamente associada à forma.
Também associado ao consumo de líquido, no uso doméstico, está o fragmento de
um copo produzido de forma industrial.

Figura 19 – Gráfico de formas identificadas para os artefatos

Frascos de toucador ou artigos farmacêuticos correspondem à segunda


fração de materiais vítreos do sítio. Estes artigos também são associados ao
contexto doméstico. Todavia, seu uso está associado ao acondicionamento de itens
farmacêuticos. Segundo Caldareli (2002, p. 174):
183

Os remédios engarrafados foram amplamente comercializados no


século XIX e tinham formas cilíndricas ou retangulares, comumente
com o nome comercial do produto gravado em relevo. Eram
produzidos, geralmente, em vidro verde claro ou água marinha.
Foram comuns até 1906, quando exigências de determinação das
fórmulas dos produtos restringiram seu uso e produção.

No sítio, os artigos de toucador apresentam formas retangulares e não


possibilitam perceber marcas de fabricante em alto relevo. Todavia, a forma é
característica e indica a função para uso farmacêutico. Outros 3 (três) artefatos com
forma de frascos foram identificados, mas apenas um possibilita a identificação da
função. Este artefato é um frasco bem preservado, em forma retangular. Indica o uso
no acondicionamento de perfume. Todos os frascos foram produzidos por técnicas
fabris (Fig. 20).

Em se tratando da coloração dos fragmentos (Fig. 21), percebeu-se que o


marrom (vinte e um) corresponde à maior fração do espólio. A maioria está
associada a garrafas ou a formas não identificadas. A coloração verde claro (vinte) é
a segunda mais comum. Corresponde, majoritariamente, aos artefatos com forma
não identificada. A coloração hialina está associada, principalmente, aos frascos. Os
fragmentos em verde escuro, verde, âmbar e branco leitoso correspondem a formas
não identificadas.

Figura 20 - Frasco de artigo de toucador (A) e de Perfume, produzido pela técnica molde de
peça única (Acervo da UNIVASF)
184

Figura 21 – Gráfico de cores identificadas nos fragmentos de vidro

Quanto à morfologia dos artefatos, a maioria corresponde ao corpo dos


recipientes (47%). Morfologias não identificadas correspondem ao segundo item de
maior fração (25%), seguido pelas bases completas (9%), corpo e base (5%), lábio,
pescoço, gargalos completos e objeto completo se apresentam com mesma fração
(3% de cada).

3.4 IMPACTOS MATERIAIS E CONTEXTUAIS DO MODO DE VIDA DOS


MANIÇOBEIROS

A partir da análise da materialidade dos agentes maniçobeiros, percebeu-se


alguns aspectos que merecem reflexão e discussão. A cultura material doméstica é
variada qualitativamente. Há quatro categorias artefactuais que apresentam suas
especificidades na vida dos maniçobeiros.

Os fragmentos de cerâmica representam o percentual mais significativo do


espólio, com 74% de 472 artefatos. A caracterização desses artefatos indica que, no
sítio Casa do Alexandre, optou-se por objetos utilitários cerâmicos manufaturados
artesanalmente, em nível local e com técnicas seculares, como é o caso das
cerâmicas acordeladas. A manufatura de vasilhames cerâmicos para funções
associadas à produção e consumo de alimentos, através de técnicas que exigiam
pouco incremento tecnológico está associada ao contexto de baixo poder aquisitivo
e marginalização em essas pessoas viviam.
185

As pessoas que compuseram o crescimento populacional do Sudeste do


Piauí vieram para esta região, busca de melhores qualidades de vida que o lucro da
atividade extrativista poderia render. Elas viviam em um país que relegava aos
pobres um viver marginal e itinerante. Esses sertanejos, que eram o resultado da
pluralidade étnica que compõe o país, eram direcionados ao viver sofrido e
exploratório, no sistema agro-exportador oligárquico do período colonial e da
República Velha. Por esse motivo, buscavam alternativas que lhes trouxessem
melhorias e, na vastidão do território, estavam sempre em andanças a procura de
um espaço melhor para viver.

Os agentes maniçobeiros são o resultado dessa dinâmica itinerante que


caracterizou o viver de pessoas pobres no Brasil da República Velha. Com o
advento do extrativismo do látex da maniçoba, a região experimentou um
crescimento em termos populacionais e econômicos nunca visto anteriormente.
Essa nova alternativa econômica, que exigia pouco incremento técnico, mostrou-se
bastante promissora a esses sertanejos. Assim, instalaram-se na região e partiram à
luta em busca de lucro no sistema extrativista. Como estavam inseridos em um
contexto marginal e itinerante, tiveram, desde cedo, que aprender a tirar o que
podiam da terra e da natureza, não se apegando muito aos bens materiais e
produzindo aquilo que consumiam.

A estas características associa-se a manutenção de traços culturais seculares


no modo de fazer a cerâmica que utilizavam no sítio. O que caracteriza esse
universo cerâmico é a técnica simples de produção e sem estética nos padrões
decorativos. Esses objetos poderiam ser produzidos e consumidos localmente sem
necessidade de aquisição por compra.

A cerâmica de torno, associada a uma produção artesanal regional, exigia um


maior incremento técnico e estava mais associada a uma aquisição no comércio do
que a uma produção local. Os maniçobeiros detinham o conhecimento técnico da
produção de seus objetos cerâmicos e estes atendiam às suas necessidades
cotidianas. Considera-se a manutenção do uso desses objetos como uma opção
dentre as alternativas.

O contexto econômico em que estavam inseridos foi favorável, na medida em


que atraiu muitas pessoas e gerou receitas ao estado do Piauí. A manutenção do
186

uso de produtos manufaturados artesanalmente, afastando em alguns casos a figura


do comerciante foi uma opção. Os maniçobeiros não estavam inseridos no contexto
econômico capitalista apenas como fornecedores de matéria prima para a indústria
automobilística. A presença de louças e vidros indica que também estavam inseridos
no contexto capitalista, como consumidores de bens industrializados.

Os fragmentos de louça representam 11% dos artefatos coletados no sítio. A


gradativa mudança de uma realidade itinerante para alguns desses agentes
extrativistas é evidenciada quando passam a adquirir produtos que até então não
faziam parte do contexto doméstico. A inserção desses sertanejos pobres e
marginalizados nesse contexto econômico possibilitou o lucro e a aquisição, mesmo
que módica, de bens industrializados e requintados. Como se viu na análise, a
variedade de formas é pouco expressiva, mas os aspectos decorativos são
quantitativamente significativos. Interpreta-se que esta característica integrou-se à
vida dos maniçobeiros em consequência de uma relativa melhoria na qualidade de
vida. Como bens funcionais, estes objetos estiveram relacionados a práticas
domésticas mais comuns, como é o caso dos pratos, no consumo alimentício à
mesa.

Percebe-se essa realidade de transformações também no vidro, que


representa 12 % do espólio. A presença de bens de consumo fabris e
industrializados é comum no sítio. Pode ser associado às mudanças no modo de
vida dessas pessoas, no contexto de exploração da maniçoba. Os artefatos
identificados apresentam formas que indicam funções mais variadas do que se vê na
categoria das cerâmicas e das louças. Há objetos associados às necessidades de
saúde, ao consumo de bebidas alcoólicas e a artigos de perfumaria. Essas
características, por si, demonstram uma habitação mais permanente no sítio e a
existência de práticas diárias não necessariamente relacionadas ao extrativismo.

Nesse sentido, os artefatos metálicos (3%) evidenciam a existência de


práticas comuns cotidianas no sítio. Indicam um modo de vida essencialmente
sertanejo. Esses dados refutam linhas de pensamento acerca desse contexto,
referindo-se aos maniçobeiros apenas como indivíduos que vieram em busca de
lucro, trabalhavam de sol a sol e retiravam-se por completo dos locais de exploração
na iminência do decréscimo da produção.
187

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma Arqueologia Histórica do contexto maniçobeiro proposta aqui não é a


Arqueologia das ‘coisas’ e ‘pelas coisas’. Os fragmentos materiais são componentes
culturais que, ao serem estudados, podem falar muito sobre as pessoas que os
utilizaram. Compreender os aspectos culturais através do que é material é o papel
do arqueólogo. A cultura material é um elo entre o presente e a história, as coisas e
as pessoas. Com ela pode-se construir conhecimento sobre o passado.

A opção pela nomenclatura Arqueologia Histórica do contexto maniçobeiro


reflete uma proposta que concebe a realidade particular deste contexto específico.
Evita generalizações abruptas ou quadros interpretativos em desacordo com a
realidade dinâmica e complexa da cultura estudada. Os materiais de contexto
doméstico do Sítio Casa do Alexandre expõem as especificidades contextuais e
culturais do sistema de exploração da maniçoba na região de São Raimundo Nonato
e sua associação com um contexto mais amplo de dinâmica capitalista.

Com o estudo dos contextos em que os agentes maniçobeiros estavam


inseridos, percebeu-se que o sistema de exploração da maniçoba na região esteve
presente, em nível nacional, de maneira secundária. Percebeu-se, também, que a
prática extrativista exportadora na região Sudeste do Piauí e na Amazônia, insere-se
como um contexto periférico de produção de matéria prima para um setor
industrializado internacional. Esse fator é evidenciado, quando se percebe o
constante dinamismo do mercado e o declínio da atividade no país.

É possível perceber que as pessoas associadas à extração e ao comércio do


látex da maniçoba eram pobres. No Brasil, eram relegadas à marginalidade da
estrutura política, econômica e social. Elas, que viviam de maneira itinerante pela
vastidão do território Brasileiro, encontraram na região de São Raimundo Nonato
uma alternativa de melhoria na qualidade de vida com o lucro da maniçoba e se
estabeleceram na região. A chegada dessas pessoas à região, com o advento do
extrativismo da maniçoba, representou um florescimento econômico. O contexto foi
responsável por incrementar consideravelmente no déficit populacional que o
Sudeste do Piauí viveu em momentos anteriores.
188

A análise contextual da cultura material doméstica do sito Casa do Alexandre,


permitiu que algumas características do modo de vida dessas pessoas fossem
evidenciadas. Os artefatos demonstram que os agentes maniçobeiros não eram
apenas indivíduos que se integraram a uma estrutura marginal, de um viver simples,
associado exclusivamente ao contexto econômico. Eles ocuparam as serras e
chapadas da região Sudeste do Piauí com objetivos econômicos. O lucro era o
maior atrativo. A cultura material demonstra que eles viram nessa região um novo
espaço de habitação, desenvolveram práticas do dia-a-dia e transformaram
características culturais seculares.

Neste sentido, o estudo desse cotidiano possibilitou perceber que essas


pessoas de baixo poder aquisitivo, estavam inseridas no contexto de mudanças e
transformações associadas ao capitalismo. Seu modo de vida que era foi
modificando-se. Com o lucro, auferido na extração do látex, houve uma melhoria na
qualidade de vida. Em função dessa mudança foi-lhes possível adquirir bens
industrializados, demonstrando que os maniçobeiros também estavam associados
aos novos discursos e práticas dos quais o capitalismo e o Mundo Moderno vestiram
o mundo.

No caso específico das louças, esses bens apresentam uma variedade


considerável de motivos decorativos e pouca variabilidade na forma e função dos
objetos. Uma reflexão a respeito dessa característica propõe uma opção por bens de
natureza decorativa em detrimento das formas e funções variadas. A incorporação
desses bens à vida dessas pessoas não está associada a práticas mais requintadas
como o consumo do chá. Ao contrário, relaciona-se ao contexto doméstico e às
práticas alimentares comuns ao sertanejo.

O artefato vítreo também indica a incorporação de produtos industrializados à


vida dos agentes maniçobeiros. Esses artefatos apresentam funções variadas que
fazem parte do universo doméstico do sítio Casa do Alexandre e refletem
representações sociais. Os objetos metálicos são relevantes na medida em que
associam os aspectos materiais dos maniçobeiros a práticas do dia-a-dia, comuns
aos sertanejos, como a montaria.

Todavia, a presença de bens produzidos com técnicas seculares e simples


demonstra a permanência de traços culturais seculares dessas pessoas, que
189

viveram de maneira itinerante no Brasil. Os vasilhames cerâmicos manufaturados


com técnicas mais simples, com a pouca exigência de aparato técnico, propõe que
os maniçobeiros, com suas particularidades, mesmo incorporando bens industriais
em sua vida, não abandonaram objetos que por muito tempo estiveram em seu
contexto.

Desta forma, a percepção desses aspectos do modo de vida dos agentes


maniçobeiros, através dos artefatos coletados no sítio Casa do Alexandre, indicam
características particulares a respeito das pessoas que também foram responsáveis
pela formação da sociedade sanraimundense. Os sertanejos, importante segmento
das populações Nordestinas, são resultantes da complexidade cultural que
caracterizou o interior do Brasil.

Os maniçobeiros, como autênticos sertanejos que foram, apresentam aqui


particularidades culturais, perpetuando traços e técnicas associadas ao contexto de
exploração e marginalidade ao qual foram direcionados. Entretanto, também
incorporaram objetos industrializados no seu dia-a-dia, demonstrando, assim, que
não estavam inseridos no sistema capitalista apenas como fornecedores de matéria
prima. Eram consumidores e, necessariamente, reinterpretaram a esses objetos e
utilizaram-nos de maneira cultural específica.

O aprofundamento de pesquisas referentes a esse contexto ampliará esse


quadro interpretativo e incorporará novas informações históricas a respeito da
formação da sociedade moderna de São Raimundo Nonato. O estudo do sítio Casa
do Alexandre e dos demais sítios maniçobeiros, bem como de outros contextos
relacionados à ocupação recente da região, é importante para uma maior
compreensão da história da cidade São Raimundo Nonato e da região Sudeste do
Piauí.

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Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa, São Paulo: Companhia das
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ZANETTINI, P. E. Maloqueiros e seus palácios de barro: O cotidiano doméstico


na casa bandeirista. Tese (Doutorado), Universidade Federal de São Paulo, São
Paulo, 2005.
MEMÓRIA
HISTÓRIA
ARQUEOLOGIA
E PATRIMÔNIO

Autores:
Pávula Maria Sales Nacimento
Tânia Maria de Castro Santana
VI GUERRA DA TELHA: MEMÓRIA, HISTÓRIA, ARQUEOLOGIA E
PATRIMÔNIO

Tânia Maria de Castro Santana


Pávula Maria Sales Nascimento

INTRODUÇÃO

A história contada é sempre uma história por ser contada. Ela constrói-se
junto à elaboração do discurso narrativo. Não existe fora da fala que a conta, da
escrita que a documenta, da memória que a lembra (POMPA, 1995).

Era uma manhã de outono do mês de abril do ano de 1927. O céu estava
coberto de nuvens, quando Domingos Alves de Santana e Otacílio Pamplona,
fazendeiros da fazenda Telha, proximidades de São Raimundo Nonato, atual
município de Dirceu Arcoverde - PI, iniciaram a Guerra da Telha41. As lembranças
relacionadas a este conflito ainda estão presentes no cotidiano da comunidade.
Segundo consta na memória local, Domingos e Otacílio, influenciados pelas histórias
do cangaço de Lampião, teriam iniciado um episódio violento, chefiando uma
chacina em que o sangue foi “derramado em cachoeira” (DIAS, 2000, p. 162).

O conflito ocorreu por motivos banais. Os “fuxicos de leva e traz” como


popularmente se conhecem os boatos locais, teriam ocasionado o estranhamento
dos dois fazendeiros, resultando num motim em que morreram, segundo os
populares da região, aproximadamente trinta pessoas, em mais ou menos três anos.
Este foi, sem dúvida, um episódio que marcou bastante a vida das pessoas
envolvidas. Configura-se, até os dias atuais, como um acontecimento presente na
memória, na lembrança e na história daquela comunidade.

Desde a minha infância, ouço falar sobre a Guerra da Telha. Meus avós,
sobreviventes desse conflito, sempre contavam esse episódio. Suas histórias
chamavam-me a atenção de forma que, ao contar e recontar as suas lembranças,
eles mal sabiam que assim estavam contribuindo para a disseminação da história de
um acontecimento que repercutiu no cotidiano daquela comunidade. O curso de
Arqueologia e Preservação Patrimonial possibilitou a oportunidade de narrar essa

41
A denominação “guerra da telha” é usada ao longo deste trabalho, mesmo o conflito não tendo as
dimensões de uma guerra.
196

história, por meio de metodologias que aprendi. Essas foram importantes para o
desenvolvimento desse trabalho que se estrutura em quatro eixos temáticos: a
memória, a história, a arqueologia e o patrimônio.

A História e a Memória sempre mantiveram laços próximos, embora nem


sempre esta relação tenha sido “pacífica”. Esse tipo de metodologia, predominante
no século XIX, apresenta uma narrativa que tem o propósito de unir o tempo, dando-
lhe sentido. O passado é um processo porque não está morto. No lugar de memória,
a imaginação é investida de uma aura simbólica, objeto de um ritual. O ritual é um
elemento muito importante para o estudo e a análise de uma sociedade (PIERRE
NORA 1984 apud ARÉVALO, 2004).

Sobre as relações entre história e patrimônio, estas sempre mantiveram


estreitos laços, desde a antiguidade quando os conhecimentos que abrangem as
áreas se encontravam no âmbito de reflexões filosóficas ou mitológicas. A partir de
meados do século XX as duas disciplinas passam a ser analisadas de formas
distintas, sendo definidas agora como “ciências autônomas” (ASSIS, 2009, p.11). O
patrimônio é objeto de estudo da Arqueologia.

A História tem como característica primordial a utilização da escrita. A


problemática entre a Arqueologia e a História, tendo a escrita como parâmetro
definidor de ambas, está presente nas discussões de Funari (2006, p. 84):

Os documentos escritos tornaram-se sinônimos de história, a tal


ponto que até hoje, usamos a expressão Pré-História para referirmos
a um passado sem escrita. Por sua origem filológica, a história
mantém, portanto, uma ligação fortíssima com a escrita.

Além das suas implicações com a história, a memória pode também ser
objeto de uma metodologia de pesquisa. A partir dos estudos pautados na chamada
“história oral”, a memória pode ser um meio de adquirir informações em que os
narradores exprimem seus conhecimentos e as suas lembranças sobre o objeto de
pesquisa. As entrevistas orientam as premissas de uma metodologia específica.
Estes depoimentos são pautados na experiência dos narradores que, por sua vez,
geram informações baseadas nas memórias acerca de eventos passados. Ainda
sobre a memória, Bosi (2007 apud Nascimento 2009, p. 11) destaca que:

Temos a memória como uma das principais funções no processo


psicológico, já que ela permite a relação do corpo presente no
passado e, ao mesmo tempo, interfere no processo atual das
197

nossas representações. Nesse sentido, a memória aparece


enquanto força subjetiva, simultaneamente densa e ativa, oculta e
inovadora.

Acerca da metodologia de pesquisa da história oral, concorda-se com Borges


(2005, p. 111), uma vez que a mesma entende ser possível o diálogo entre a
história, a oralidade e a Arqueologia através de:

Uma abordagem que leve em consideração, além dos saberes


acadêmicos, os saberes locais sobre o sitio arqueológico, torna o
sitio mais próximo da história do cotidiano de populações passadas
que não tem voz na historiografia. Na leitura das pessoas locais é
possível distinguir permanências e transformações na maneira de
relacionar com o meio. Na oralidade, a interpretação do espaço e
dos vestígios materiais se mistura com tradição, memória e
invenção, tornando rica a narrativa sobre o passado, fazendo com
que as pessoas se identifiquem, ou não, com aquele lugar e com
quem produziu.

Assim, as leituras efetuadas pelas pessoas que vivem nas vizinhanças dos
sítios arqueológicos não só contribui para uma melhor análise arqueológica, como
também recebe dados preciosos sobre a interação com o meio local e inclusive
informações de cunho etnográfico sobre os vestígios e o próprio sítio. Infere
narrativas que constroem histórias mais próximas e íntimas das sociedades que
habitaram o local (BORGES, 2005).

Tratando dos fenômenos que caracterizam a memória como fonte de


pesquisa, Le Goff (2003, p. 420-421) aponta que:

Os fenômenos da memória, tanto nos seus aspectos biológicos


como nos psicológicos não são mais do que os resultados de
sistemas dinâmicos de organização e apenas existem na medida em
que a organização os mantém e os reconstitui.

De acordo com Atlan apud Le Goff (2003), utiliza-se uma linguagem falada e
depois escrita, sendo esta última uma extensão fundamental das possibilidades de
armazenamento da nossa memória. O indivíduo pode, graças a isso, sair dos limites
físicos do corpo para estar interposto seja em outras pessoas que ouvem as
narrativas ou nas que as lêem, nas bibliotecas.

Por outro lado, tem-se a Arqueologia, aqui entendida como o estudo das
sociedades passadas em seus diversos aspectos, usando como objeto principal de
pesquisa os restos materiais deixados como testemunho. “Ela estuda o homem a
198

partir da sua cultura material” (NAJJAR, 2005). Pesquisa tanto o período pré-
histórico como o histórico, tendo como diferença a natureza das fontes. Os
arqueólogos que trabalham em períodos históricos têm como fonte auxiliar para as
suas pesquisas, a memória e os documentos escritos.

O objetivo geral dessa monografia é, portanto, desenvolver um trabalho com o


propósito de conhecer o conflito denominado Guerra da Telha, ocorrido na região
Sudeste do Piauí, no início do século XX, a partir das perspectivas das ciências aqui
abordadas, ou seja, Memória, História, Arqueologia e Patrimônio.

O objetivo específico para a realização desse trabalho é compreender a


formação do meio social em que viviam as pessoas que habitaram a região Sudeste
do Piauí. Chega-se ao período em que ocorreu o conflito, problematizando quem
foram os personagens dessa história e que repercussão teve esse fato no meio
social da época e atual.

Pelos vestígios deixados no contexto social em que viveram os envolvidos,


sejam eles documentais, memoriais ou arqueológicos, busca-se “recompor” um
quadro que dê visibilidade ao conflito, uma vez que, segundo Kern (1989, p. 104)
“Todos os vestígios da vida e da atividade dos homens do passado podem tornar-se
um testemunho”. Assim, o propósito deste trabalho é conhecer esse episódio a partir
dos parâmetros metodológicos abordados pela Memória, pela História, pela
Arqueologia e pelo Patrimônio. Estes parâmetros permitem evidenciar, pelas
histórias contadas e recontadas pelos sobreviventes e testemunhas, o conflito
Guerra da Telha, uma vez que ainda são escassas as fontes escritas sobre ele.

A presente pesquisa teve início com um levantamento bibliográfico, sobre


questões históricas, culturais, sociais e econômicas da região, na tentativa de
compreender o processo de ocupação do local e os aspectos históricos que
fundamentaram a ocupação da Fazenda Telha. A partir do levantamento cartográfico
que foi realizado de forma preliminar, pois quase não existem informações dessa
natureza sobre o local, juntamente com a pesquisa oral e as fontes históricas pode-
se inferir sobre a abrangência territorial do conflito.

Em um segundo momento, realizou-se os trabalhos de campo. Nele houve o


preenchimento dos protocolos de entrevista oral com as pessoas da região,
principalmente com os moradores mais idosos do local que vivenciaram ou ouviram
199

falar sobre o conflito. A partir desse trabalho em que o alvo da pesquisa é o


conhecimento presente na memória das pessoas, problematiza-se a história
abordada. A memória passa a ser a presença do passado, não como uma
construção psíquica e intelectual, mas como reconstrução que termina por ser uma
representação seletiva do passado. Não precisa ser a memória vivenciada pelo
indivíduo. Pode ser também a de um indivíduo inserido no contexto social e familiar
do entrevistado (HALBWACHS 1945, apud MOREIRA, 2005).

Elaborou-se o protocolo de pesquisa de forma que abrangesse os


questionamentos necessários para desenvolvê-la. Ele compõe-se de identificação
pessoal do entrevistado, nome, filiação, naturalidade, ano de nascimento, seguida
pelo relato do episódio, área de abrangência, ano em que aconteceu o conflito,
envolvidos, causas, conseqüências, fonte de informações e observações adicionais.
Para a realização de um levantamento dessa ordem é necessário utilizar a história
oral que é uma metodologia de pesquisa e de construção de fontes para o estudo da
História (DELGADO, 2006).

Segundo Delgado (2006), são três os procedimentos relativos à entrevista em


historia oral utilizados em projetos de pesquisas: depoimentos de historia de vida,
entrevistas temáticas e entrevistas de trajetória de vida. O procedimento utilizado

para levantamento da historia oral da pesquisa “‟Guerra da Telha”: Memória,


História, Arqueologia e Patrimônio foram às entrevistas temáticas. Nelas propõe-se
um tema e o entrevistado narra sobre o fato. Ainda segundo Delgado (2006, p.22),
“narrações temáticas são entrevistas que se referem a experiências ou processos
específicos vividos ou testemunhados pelos entrevistados”.

No campo, são catalogados e fotografados os fragmentos da cultura material


que supostamente pertenceram à Guerra da Telha. Realizaram-se os mesmos
procedimentos com os vestígios arqueológicos que estão em posse dos populares
da região.

Por último, realizaram-se as análises preliminares do material proveniente da


etapa de campo e os processos de identificação e caracterização dos vestígios
arqueológicos os quais, juntamente com as metodologias da história oral
possibilitaram uma abordagem sobre o meio em que estes estiveram inseridos,
sendo relevantes para essa narração.
1 HISTÓRIA

1.1 A COLONIZAÇÃO DO PIAUÍ

A colonização do Piauí iniciou com as expedições de bandeirantes42 que, em


meados do século XVII até o final do século XVIII, desenvolveram a expansão das
fazendas para a pecuária extensiva na região Nordeste do Brasil (OLIVEIRA, 2009).
Domingos Afonso Mafrense e Julião Serra43 fizeram parte do grupo de exploradores
que adentraram os sertões, pelas cabeceiras do rio Piauí, em 1674. A partir de 1676
tiveram início as primeiras concessões de sesmarias44 para a obtenção de terras
que beneficiaram não só aos dois colonizadores citados, como também a outros
grandes nomes como os de Francisco Dias de Ávila e Bernardo Pereira Gago. As
posses de terra, que foram doações do governo de Pernambuco, mediam dez
léguas cada uma. A partir dessas doações, as fazendas de gado expandiram-se por
toda a região (OLIVEIRA, 2009). Nesse período era grande o interesse da coroa
portuguesa pela exploração do Nordeste brasileiro. Dias (2007, apud Oliveira, 2009,
p. 16) pontua que:

Havia um interesse da coroa portuguesa diante da exploração da


economia do sertão nordestino, o que por esses motivos
impulsionava o povoamento da região, incentivando a colonização
das terras piauienses.

Foi por esse estímulo que fazendeiros como Jorge Velho, Francisco Dias
D`Ávila e Domingos Mafrense tornaram-se os maiores sesmeiros piauienses. No
decorrer da colonização da região, acabaram perseguindo e, até mesmo,

42
Denominam-se bandeirantes os colonizadores de São Paulo, que, a partir do início do século XVI,
penetraram nos sertões brasileiros em busca de riquezas. Inúmeras expedições conhecidas como
“Bandeiras” ou “Entradas”, eram organizadas com a finalidade de combater os povos nativos.
Expulsavam nos de suas terras ou aprisionavam-nos para utilizá-los como escravos nas fazendas.
Em geral as expedições passavam do Maranhão para o Pernambuco ou vice versa, adentrando as
caatingas e terras agrestes (DIAS, 2002, p. 69).
43
A primeira expedição desses colonizadores foi realizada em 1674, quando travaram violentos
combates com os povos Guesguês. Derrotados, foram feitos prisioneiros ou assassinados. As
mulheres e as crianças, escravizadas. Nesse momento, a Casa da Torre requereu as primeiras
sesmarias no rio Gurguéia (Dias, 2002, p.71).
44
Eram concessões administrativas em que o colono seria agente de uma imensa obra semi-pública,
pública no designo e particular na execução. As terras que não fossem exploradas podiam ser
retomadas pelo poder público. Daí a expressão, ainda hoje conhecida, de terras devolutas (FAORO
1976, p.79 apud MENDES, 1995).
201

exterminando diversos grupos indígenas que se encontravam nessas terras. Entre


os grupos indígenas, estavam os guesguês, os acroás, os tremembés e, no caso da
região Sudeste do Piauí, local em que está inserido o objeto de estudo dessa
pesquisa, os pimenteiras45. Na região que correspondente a São Raimundo Nonato,
a guerra contra estes índios, comandada por João do Rego Castelo Branco, teve
início em 1776. O sofrimento desses índios durante esse processo foi muito grande
(OLIVEIRA, 2001, apud OLIVEIRA, 2009, p. 18).

Outro explorador que adentrou terras piauienses foi o bandeirante paulista


Domingos Jorge Velho. Explorou o território entre os anos de 1662 e 1663, com o
projeto de implantação de aproximadamente 50 fazendas de gado. Permaneceu na
região até o ano de 1687, quando foi chamado pelo governador de Pernambuco
para o cargo de chefe do quilombo dos Palmares46 (DIAS, 1996 apud OLIVEIRA,
2009). Os D`Ávila, fazendeiros da Casa da Torre47, também tiveram forte influência
na colonização do Piauí. Após a implantação de uma economia bem sucedida,
baseada na criação e comercialização de gado na Bahia, resolveram expandir as
pastagens, terminando também por vir implantar suas fazendas no Piauí (OLIVEIRA,
2009). As disputas pelas terras piauienses davam à Casa da Torre da Bahia a fama
de prepotente e cruel, embora não fosse a única a exercer a tirania e a opressão na
região. Os sesmeiros podiam estender os seus domínios muito além do que era
estipulado na doação. Eles tinham procuradores no Piauí, com cargos de capitão,
com o direito de impor leis e autoridade a serviço dos seus chefes (DIAS, 2002).

Nesse momento da história, a região torna-se objeto de intensa exploração,


principalmente por baianos e paulistas que eram grandes proprietários de terras e de
escravos e caçadores de índios. Segundo Dias (2002, p. 66), “esse foi realmente o
período reconhecido pelos historiadores como período de colonização que teve seu
marco inicial de 1660 até aproximadamente 1670”.

45
Tribo Indígena que esteve presente no contexto social do Sudeste piauiense. Embora não se saiba
se os Pimenteiras são um ou vários grupos étnicos, existem documentos que assinalam a sua
presença localizada entre Pernambuco e Piauí desde 1676 até 1818 (PESSIS, 1991 apud
OLIVEIRA, 2009, p.16)
46
Localizava-se na então capitania de Pernambuco, na serra da Barriga, região hoje pertencente ao
município de União dos Palmares, no estado brasileiro de Alagoas. “Quilombos eram lugares de
refúgio dos escravos, que se estabeleciam em áreas isoladas e de difícil acesso, para se proteger
das autoridades coloniais e dos donos dos engenhos” (ALLEN, 2010, entrevista disponível em
www.revistabcz.com). Visitado em 09/10/2010.
47
A Casa da Torre localiza-se no atual município de Mata de São João, no litoral do estado da Bahia,
residência da linhagem dos D'Ávila.
202

O projeto inicial de colonização da região Sudeste do Piauí, pode ser dividido


em duas etapas. A primeira delas aconteceu com a chegada dos sertanistas
provenientes do São Francisco, durante o final do século XVII e o início do século
XVIII, dispersando a sua população nativa. A segunda fase teria acontecido a partir
da segunda metade do século XVIII, após a expulsão dos jesuítas, com a expansão
da área ocupada pelas fazendas de gado. Esse período também deu origem aos
conflitos com os índios pimenteiras, os últimos povos indígenas em guerra com o
colonizador na capitania do Piauí (OLIVEIRA, 2007).

As terras piauienses foram divididas da seguinte forma: enquanto os


expedicionários que vieram da Bahia, Francisco Dias D’Ávila e Domingos Afonso
Mafrense ficaram com as terras situadas entre os rios Gurguéia e Canindé, o
paulista Domingos Jorge Velho ficou com as terras entre os rios Canindé e Potí. A
constituição histórica da sociedade piauiense é marcada por lutas e conflitos
sangrentos que ocorreram desde o começo do processo de colonização, uma vez
que, desde então, vários nativos foram mortos, escravizados e/ou aldeados para dar
lugar às grandes fazendas de gado (DIAS, 2002, apud OLIVEIRA, 2009).

Os conflitos pela posse de terras eram constantes. Aconteceram primeiro


entre nativos e sesmeiros, depois, entre posseiros e grandes proprietários. Em 1697
existiam 129 fazendas no Piauí e, em menos de um século, em 1762, elas já eram
536, espalhadas por toda a capitania, margeando os principais rios e acumulando
uma grande quantidade de terras (DIAS, 2002, p. 250).

Com a morte de Domingos Afonso Mafrense, já que o mesmo não possuía


herdeiros, suas terras foram deixadas como herança para os missionários da
Companhia de Jesus (NUNES, 2001 apud OLIVEIRA, 2009)48. Em 1711, os Jesuítas
receberam dele, como herança, trinta fazendas. Durante o período de sua
administração, os jesuítas ampliaram esse número para trinta e nove fazendas e
cinqüenta sítios. Com a expulsão dos catequizadores, as fazendas e sítios passaram
para a ordem da Coroa Portuguesa (DIAS, 2002, p. 79). Os motivos que levaram a
expulsão da Companhia de Jesus na colônia, em meados do século XVIII, incluem
hipóteses como o fato de que esta teria deixado de ser somente religiosa, tornando-

48
Entre essas terras estaria a área que supostamente está inserida no Sudeste do Piauí o sítio
histórico Brejo do São João, um possível remanescente de uma fazenda jesuítica. Conferir em
(ASSIS, 2009).
203

se também política. Desta forma o clero, aos poucos, deixava de ser subordinado à
coroa portuguesa. Esta, não satisfeita, decretou a expulsão dos jesuítas e confiscou
seus bens (DIAS 2006, apud OLIVEIRA, 2009). Sobre a ordem de expulsão dos
Jesuítas, Dias (2002, p. 79), aponta que:

Por ordem do Marques de Pombal o Governador João Ferreira


Caldas executou a expulsão dos religiosos, remetidos. Presos para
a Bahia “bandidos” e proscritos de Portugal e seus domínios, como
rebeldes traidores, adversários e agressores, que tinham sido de El
– REI Dom José.

Após a expulsão dos jesuítas, as fazendas passaram à administração real,


sendo denominadas Fazendas do Fisco ou Fazendas Nacionais. No século XVIII,
foram ocupadas por posseiros de várias regiões da colônia, devido à
desorganização da nova administração. A nova sociedade piauiense, aos poucos,
começou a sofrer transformações. Formou-se uma nova sociedade, constituída por
vaqueiros, lavradores, artesões e comerciantes (OLIVEIRA, 2009). Segundo Dias
(2007 apud OLIVEIRA, 2009, p. 18), nesse momento surge uma nova sociedade:

Surgem outros povos, bem como uma nova sociedade, outra


organização social, com a formação das famílias de sertanejos,
criadores de gado, cavalos e caprinos. As famílias de sertanejos
viviam nas fazendas, comendo o que plantavam, vestindo o que
teavam com o algodão que produziam, eram hospitaleiras,
respeitando a Deus, as leis e o apego à terra.

O processo de colonização do Piauí passou por muitas fases, sinônimas de


lutas e violências. Durante o processo de conquista, usavam-se na região, vários
sistemas brutais que acabaram por reduzir drasticamente, após dois séculos de
intensivas lutas, o contingente populacional indígena (OLIVEIRA, 2009)49.

O Piauí do século XVII era basicamente rural. Suas povoações dificilmente


poderiam ser consideradas centros urbanos. De acordo com Claudete Miranda Dias:
“pode-se dizer que o Piauí era uma grande fazenda de gado com uma população
dispersa pelo interior, ligada pelos caminhos de gado, mas sem escolas, hospitais e
com um comércio baseado em feiras” (DIAS, 2002, p. 78). Durante esse período,
praticamente não havia circulação de moedas. O comércio era insignificante. A

49
Em 1758, o Piauí foi desmembrado do Maranhão, quando foi criada a capitania de São José do
Piauí e designada como sede do governo a Vila da Mocha que mais tarde, no ano de 1761 passou
a ser conhecida como Oeiras. Esta foi capital do Piauí de 1759 a 1852. Nestes quase 100 anos
teve dez governadores, nove presidentes e mais a administração de Juntas Tríplices e de vices-
governadores e vice-presidentes (DIAS, 2002).
204

província tinha uma população de aproximadamente cem mil habitantes dos quais
vinte e cinco mil eram escravos. Vale lembrar que, a exemplo do restante do país,
desde os primórdios da colonização piauiense, utilizava-se o trabalho escravo.

Apesar de a pecuária necessitar de pouca mão de obra devido o seu


caráter extensivo dificilmente estaria isenta da escravidão, uma
vez que já fazia parte da psicologia social Brasileira. A visão de que
no Piauí não teria havido escravidão, ou que diferente do resto do
país teria sido mais a menos devido às características da
escravidão, no Piauí como forma de sustentação da estrutura foi
semelhante as demais que existiram em várias regiões do Brasil
(DIAS, 2002, p. 117).50

A mão de obra utilizada nas fazendas de gado constituía-se de escravos


negros e trabalhadores livres. Estes últimos eram constituídos por mulatos,
caboclos, mestiços e nativos. A população escrava piauiense, no final do século
XVII, representava aproximadamente 70% da mão de obra das fazendas de gado
(DIAS, 2002). No ano de 1865, a população escrava do Piauí estava formada por
1.493 pessoas, das quais 311 eram aptas à agricultura, 166 à criação de gado, 17
às artes e 999, sem habilidade para ocupação alguma (MARTINS, 2003). Pode-se
relatar a presença de mão de obra escrava também na Fazenda Telha. Nos
inventários da fazenda vizinha, denominada Riacho Seco, vê-se redigida, em 1859,
de autoria das senhoras Maria do Carmo do Amor Divino e de Florença Lopes de
Azevedo, a presença de alguns escravos, em meio aos seus bens pessoais51.

1.2 FAZENDAS DE GADO

Os primeiros colonizadores do Piauí, conforme pontua Dias (2002, p. 71),


“tornaram-se grandes proprietários de fazendas de gado e de terras doadas em
sesmarias”. A partir da criação de gado, desenvolveu-se um comércio basicamente
para o mercado consumidor de grandes províncias como a Bahia, e Minas Gerais.

Segundo Mott (1985, p. 25), “a extensão territorial atribuída a cada fazenda


era muito grande o que gerava uma longa distância de uma fazenda para outra”.

50
Grifo meu.
51
Maria do Carmo do Amor Divino possuía sete escravos, entre eles cinco homens e duas mulheres,
e Florença Lopes de Azevedo, possuía um total de nove escravos, entre eles, quatro homens e
cinco mulheres. Os documentos que contêm essas informações (Inventários) estão localizados no
1° Cartório de Registro Cível de São Raimundo Nonato – PI.
205

Somente em 14 de outubro de 1744 é publicada uma provisão do Conselho


Ultramarino delimitando o termo de três léguas de terra para cada chefe de
sesmaria. Daquele dia em diante, cada fazendeiro só podia possuir essa
determinada quantidade de terra para explorar.

Mesmo com o decreto e ordem, especificando e limitando a quantidade de


terra, embora a ordem tenha vigorado na maioria dos casos, não deixou de
acontecer doações generosas, que resultaram no distanciamento cada vez maior de
uma fazenda para outra (MOTT, 1985).

De um total de 148 doações de terras feitas pelo governador e capitão Geral


do Estado, entre 1728 e 1746, observa-se que 99 sesmarias (mais de 66%)
aparecem referidas como sítios, 19 como fazendas e 30 com denominações
variadas, tais como “terra”, “lugar”, “posse”, “sorte de terras”, etc. Em 1760, quando
os jesuítas foram expulsos do Piauí, do total de 81 propriedades que foram
confiscadas, 32 eram denominadas como fazendas de gado e 49 como sítios
(MOTT, 1985).

Notava-se que, nesse meio pecuarista, havia propriedades menos extensas e


que, em geral, situavam-se nos brejos e terras úmidas, onde eram cultivados
gêneros de subsistência. O termo fazenda restringia-se àquelas propriedades onde
se criava gado vacum e cavalar, enquanto os sítios eram atribuídos às terras em que
se cultivavam outros tipos de alimentos. O gado era criado solto, pois não havia
cercas delimitando uma fazenda de outra. Existia ainda uma légua de terra de uso
comum por onde os animais podiam circular entre as mesmas (MOTT, 1985).

A multiplicação do numero de fazendas continuava rapidamente. Em 1859


havia um total de 5.024 estabelecimentos, somando um rebanho de 132.714
cabeças. O número de fazendas crescia em proporção maior que os rebanhos, o
que indica apenas os avanços na ocupação das terras. A média de cabeças de gado
por fazenda caiu para 26, o que indica maior crescimento do numero de fazendas do
que do rebanho, anunciando, dessa forma, o declínio da pecuária (MENDES, 1995,
p. 63).

Ainda nesse contexto, no ano de 1859, verifica-se que, no meio social onde
ocorreu o conflito Guerra da Telha, houve também a exploração da atividade
econômica pecuarista. Nos inventários das senhoras Maria do Carmo do Amor
206

Divino e de Florença Lopes de Azevedo, que residiram na fazenda Riacho Seco,


vizinha à Fazenda Telha, está registrado, em meio aos bens que as mesmas
possuíam, além de ouro, prata, cobre, bronze, ferro, móveis, cavalos, escravos,
também o gado52.

Segundo Martins (2003), na pecuária piauiense do final do século XVIII até


próximo aos dias atuais, não aparece nenhuma inovação no sistema de criar o gado,
obedecendo aos mesmos processos adotados nos tempos coloniais:

A pecuária extensiva no Piauí formou-se como a atividade


econômica básica da região, perdurando até a segunda metade do
século XX. Durante o período de colonização não havia riqueza
natural explorada, apenas a pecuária era a base econômica
piauiense (MARTINS, 2003, p. 63).

Com o passar do tempo, propriedades de pequeno porte, cada vez mais


ganham espaço no meio. Nelas aparecem novas fontes de subsistência e renda
familiar. A pecuária deixa de ser a maior fonte econômica da região, dando lugar a
outras formas de subsistência, mas não deixando de existir. Sabe-se que, até os
dias atuais, esta ainda é uma atividade muito praticada no interior nordestino. A
atividade pecuarista está intrinsecamente ligada à fonte de renda de grande parte da
população da região objeto deste trabalho. Na região de Dirceu Arcoverde – PI, esta
atividade persiste nos dias atuais, embora em menor escala, se comparada com o
período de colonização.

1.3 O PIAUÍ NO INÍCIO DO SÉCULO XX

Marcada pelas chuvas escassas e o solo relativamente pobre, a região


Sudeste do Piauí não era propícia à monocultura da cana de açúcar, diferentemente
das inúmeras cidades do litoral nordestino, que tiveram sua economia baseada
nesse tipo de cultivo. Por outro lado, era uma área favorável ao desenvolvimento da
pecuária extensiva que foi praticada até o final do século XIX, quando a seca
constante e as dificuldades de transporte acentuaram-se, causando a decadência
dessa atividade (OLIVEIRA, 2009).

52
Os documentos contendo essas informações (Inventários) estão no 1° Cartório de Registro Cível
de São Raimundo Nonato – PI.
207

Do final do século XIX ao início do século XX, o Sudeste do Piauí tem uma
configuração bem diferente daquela economia do período de colonização. Agora, há
novos elementos inseridos no contexto, novas fontes econômicas.

Concomitantemente ao declínio da pecuária extensiva, a extração


do látex para a produção da borracha que abastecia a indústria
automobilística alcançava uma posição de destaque, nas últimas
décadas do século XIX e inicio do Século XX. No Piauí, era o boom
na economia baseada no extrativismo do látex de maniçoba. Esta se
tornava um elemento fundamental para a sobrevivência do sertanejo
nativo e dos imigrantes de diversas áreas, pois como essa atividade
foi notavelmente incorporada de mão-de-obra, atraiu a população de
estados nordestinos como Pernambuco, Ceará e Bahia (QUEIROZ
2006 apud OLIVEIRA 2009, p. 19-20).

O incremento do extrativismo da maniçoba para a produção de borracha


ocorreu em duas fases de maior expressão. A primeira foi do final do século XIX até
as duas primeiras décadas do século XX. A segunda teve início a partir de 1940,
quando houve um domínio dos japoneses aos mercados asiáticos em virtude da
Segunda Guerra Mundial e, por esta razão os americanos novamente incentivaram a
produção da maniçoba no Sudeste do Piauí. Permaneceu de forma contínua até
1960 (OLIVERA, 2007).

Quanto à presença dessa atividade na região Sudeste do Piauí, pode-se


inferir que “toda a zona de caatinga do Sudeste do estado do Piauí foi percorrida por
maniçobeiros” (EMPERAIRE, 1983 apud OLIVEIRA, 2001, p.40).

Houve também no Nordeste piauiense exportações de babaçu que, em


meados de 1911, desempenharam um papel fundamental na economia piauiense.
Juntamente com a carnaúba, seguido pelo período que compreende as duas
grandes guerras, a primeira de 1914 - 1918 e a de 1939 – 1945, caracterizou-se, no
Piauí uma considerável expansão das atividades econômicas com uma integração
maior entre a economia rural e as cidades, e surgiram pequenas indústrias
(MENDES, 1995, p. 68)

Fechando essa abordagem sobre a economia nordestina, aponta Mendes


(1995, p. 77) que: “A economia piauiense ainda guarda traços vivos da herança
colonial. A pecuária foi e continua extrativista. O extrativismo vegetal não tem mais
importância, senão como fonte residual de renda, complementar às atividades
agropecuárias”.
208

1.4 CARACTERIZAÇÃO E ABRANGÊNCIA DA ÁREA DE ESTUDO

A história da região que hoje compreende o município de Dirceu Arcoverde,


local onde está contextualizada a Guerra da Telha, objeto dessa pesquisa, está
intimamente ligada à história de povoação da cidade de São Raimundo Nonato.

A cidade de São Raimundo Nonato, originou-se da localidade Confusões. Em


1832, um decreto regencial desmembrou-a dos municípios de Jaicós e Jerumenha e
nomeou-a freguesia de São Raimundo Nonato. No ano de 1836, a sede do distrito
passou a ser na localidade de Jenipapo que já contava com algumas edificações
residenciais, além de uma feira mensal. Nesse período, a igreja matriz da cidade
estava em construção. Foi concluída somente em 1876. Foi elevada a vila em 1850
e, à categoria de cidade, em 1912 (OLIVEIRA 2001 apud OLIVEIRA, 2009, p. 19).

O Sudeste do Piauí, na área onde se localiza o município de São Raimundo


Nonato, também esteve economicamente inserido no período do apogeu da
maniçoba. Nunes e Abreu (1995, p. 102) descrevem esse período.

A cidade de São Raimundo Nonato teve um surto de riqueza com a


exploração da maniçoba, pois foi um dos municípios que mais
produziram borracha, tanto de origem nativa, quanto cultivada. Essa
situação contribuiu para um significativo crescimento populacional
do município, no começo do século. Passando o surto extrativista,
São Raimundo Nonato não experimentou mais o mesmo apogeu,
embora nunca tenha deixado de estar sempre entre as 20 mais
populosas cidades piauienses.

Passado o período de riqueza e declínio, a economia de São Raimundo


Nonato concentrou-se nas atividades agropecuárias. O município também ganhou
projeção internacional por abrigar um centro de pesquisas arqueológicas. Ali foram
encontrados diversos sítios arqueológicos, contendo material de grande valor para o
estudo da história do homem americano (NUNES e ABREU, 1995, p. 102).

Bom Jardim, como era conhecida a região que hoje compreende o município
de Dirceu Arcoverde, fazia parte do município de São Raimundo Nonato até meados
do ano de 1979, quando foi desmembrado dessa cidade. O município tem uma
população de 6.066 habitantes. Compreende uma área total de 1.005,76 km², (Fig.1
e 2). Está localizado na microrregião de São Raimundo Nonato, e mesorregião do
Sudeste piauiense (CEPRO, 2005).
209

De acordo com a Fundação Centro de Pesquisas Econômicas e Sociais do


Piauí (2005), Dirceu Arcoverde - PI, por estar localizado próximo ao Parque Nacional
homônimo, juntamente com mais dezessete municípios, compõe a área de
desenvolvimento Serra da Capivara, (Fig. 3).

A área do objeto desta pesquisa – Guerra da Telha – situa-se na zona rural


do município de Dirceu Arcoverde. É conhecida como Fazenda Telha. Abrange
algumas localidades e fazendas próximas, nas margens do Riacho Seco, que
atravessa toda a área do município e deságua no riacho São Lourenço, afluente
intermitente do rio Piauí. A Fazenda Telha é composta por um cemitério, uma
fazenda (onde existiu a sede e outras residências, uma serra e um riacho53 (Fig. 4).

O local onde ocorreu o conflito apresenta-se totalmente em ruínas. A guerrilha


destruiu as roças e residências que havia no local. Todo o espaço está coberto por
fragmentos das estruturas e objetos que havia no lugar. Entre estes há fragmentos
de telha, tijolo, cerâmica, louça, vidro, ferro e madeira. Identificam-se também
fragmentos das bases que sustentavam as residências (Fig. 5).

A vegetação que cobre a área onde estavam localizadas as residências é


basicamente composta por plantas caducifólias, espécies espinhosas (cactáceas) e
juazeiros (Zizyphus joazeiro Mart).

Figura 1 - Localização do município de Dirceu Arcoverde, no estado do Piauí


53
Parte do Riacho Seco que deságua no Rio Piauí, localmente conhecido como Riacho da Telha
210

Figura 2 - Município de Dirceu Arcoverde, no estado do Piauí e no Brasil (Fonte: IBGE).


Elaboração: Adolfo Okuyama. Laboratório de Geoprocessamento da FUMDHAM
211

Figura 3 - Mapa com os municípios do entorno do Parque Nacional Serra das Confusões e
Serra da Capivara (Fonte: FUMDHAM)

Figura 4 - Locais que compõem o espaço da Fazenda telha: cemitério (1), serra (2), sede da
fazenda (3) e riacho (4) (Fonte: Google Earth com adaptação da autora)
212

Figura 5 – Ruínas da sede da Fazenda Telha, onde houve o conflito

A abrangência do conflito foi local, mas as perdas atingiram lugares próximos


como a Fazenda Telha, a Fazenda Duas Barras e a Fazenda Mulungu. Atingiu
também as localidades: Volta de Cima, Volta de Baixo, Jatobazeiro, Teodoro,
Espetos e São Honorato (Fig. 6). Atingiu também as cidades próximas que hoje
fazem limite com o município de Dirceu Arcoverde e estiveram envolvidas, apoiando
com auxilio financeiro e material. São elas: São Raimundo Nonato - PI, Remanso –
BA e Pilão Arcado – BA. Algumas cidades da Bahia, de Goiás, de São Paulo e de
Minas Gerais foram usadas como local de refúgio para os guerrilheiros.

A malha territorial de abrangência local do conflito foi realizada a partir de


uma medida hipotética. Os pontos mais extremos foram identificados por
testemunhas do conflito. Fechou-se um quadrado perfeito. Cada lado do quadrado
mede 20 km. Pode-se inferir que a extensão territorial local do conflito seja de
aproximadamente 400 km².

A economia da Fazenda Telha era baseava-se na pecuária, bastante


explorada no período. Criavam-se suínos e caprinos, formando a base de
subsistência familiar. Segundo Ribeiro (2002, p.10)54 cultivava-se, também, feijão,

54
Informações contidas no Projeto Pedagógico: Guerra da Telha, da Unidade Professora Isabel de
Macedo Ribeiro, comunidade Capim do Zé Macário, no município de Dirceu Arcoverde – PI, 2002.
213

milho, mandioca e maniçoba, que se encontrava nesse momento na sua primeira


fase, denominada o bom da maniçoba no Piauí.

Figura 6 - Localidades atingidas pela Guerra da Telha (Fonte: Google Earth com adaptação
da autora)

A exploração da maniçoba no Sudeste do Piauí era extensiva e predatória. As


espécies que se desenvolveram na região foram a Manihot heptaphylla e a Manihot
dichotoma, sendo cultivadas principalmente nas serras e chapadas (ALCÂNTARA,
2009). Entre os municípios do Piauí que se destacaram na produção maniçobeira,
estavam São João do Piauí, São Raimundo Nonato e Caracol. São Raimundo
Nonato está inserido entre as três grandes áreas produtoras de maniçoba do
Sudeste piauiense55 (QUEIROZ, 2004 apud ALCÂNTARA, 2009).

O látex das cidades vizinhas era comercializado em São Raimundo Nonato,


de onde seguia em tropas de burros e jumentos, quando não havia estradas, e em
caminhões, quando essas foram abertas para a cidade de Remanso – BA. De
Remanso era encaminhado para Juazeiro – BA, por hidrovia e embarcado, em linha
férrea, para Salvador – BA e Rio de Janeiro – RJ (ALCÂNTARA 2009).

55
Vale ressaltar que a área que hoje compreende o município de Dirceu Arcoverde Piauí, local onde
está inserido o conflito “Guerra da Telha” objeto dessa pesquisa, no período do apogeu
maniçobeiro, pertencia ao município de São Raimundo Nonato.
2 MEMÓRIA

2.1 A MEMÓRIA E A HISTORIA ORAL

A memória é onde cresce a história, que por sua vez a alimenta,


procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos
trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para libertação e
não para a servidão dos homens (LE GOFF, 2003, p. 477).

A memória, segundo a ótica de Le Goff (2003), é uma maneira que o homem


tem de conservar informações, as quais, posteriormente ele poderá usar,
atualizando impressões ou informações de um tempo passado. Assim, a partir da
memória, pode-se determinar funções sociais que ela poderá apresentar. Destacam-
se as lembranças coletivas. Ao lembrar-se do passado, os indivíduos retomam a
memória pessoal. Existe também a memória que a pessoa adquire ao longo do
tempo, sendo esta a memória social do grupo, da família, enfim do local de
convivência (HALBWACHS 2006 apud NASCIMENTO, 2009).

Memória é a necessidade que se reflete em torno daquilo que se denomina


como História Social do Lembrar. Partindo-se da ideia de que tanto a memória
social, quanto a individual é seletiva, é necessário identificar os princípios de seleção
e observar suas variações de lugar para lugar, ou de um grupo para outro, e suas
transformações com a passagem do tempo. As memórias são maleáveis. É
necessário compreender como são concretizadas, e por quem são, assim como os
seus limites (BURKE 2000, apud MOREIRA 2005, p. 3).

Segundo Le Goff (2003), “a memória coletiva sofreu grandes transformações


com o surgimento das ciências sociais, desempenhando um papel muito importante
diante da interdisciplinaridade que veio a se manifestar”. Diante dessa abordagem,
Halbwachs, em seu livro sobre a memória coletiva, analisa alguns campos dessa
ciência. Aponta, por exemplo, que a Psicologia Social estuda a memória que,
estando ligada aos comportamentos, pode-se com ela chegar às mentalidades.
Sabe-se que esta traz suas colaborações para esse tipo de análise.
215

Pierre Nora (apud Le Goff, 2003, p. 473), por sua vez, compreende a memória
coletiva como “o que fica do passado no vivido dos grupos, ou o que os grupos
fazem do passado”. Aponta ainda que, quase até os dias atuais, “história e memória”
confundiram-se praticamente e a história parece ter se desenvolvido sobre o modelo
da memorização e rememoração.

Diante do exposto, pode-se inferir que o estudo da memória social é um dos


meios fundamentais para abordar o tempo e a história, em que a memória está “ora
em retraimento, ora em transbordamento” (LE GOFF 2003, p. 426). Para se analisar
uma história a partir da memória individual ou coletiva, precisa-se estar preparado
para se deparar com seus estágios e desafios, buscando, através desses
momentos, adquirir informações relevantes para a pesquisa.

Entretanto, é necessário também atenção para as fragilidades do uso da


memória. Muitas vezes, no processo psicológico de lembrar, em que são abordadas
as lembranças individuais e coletivas, ao se permanecer em contato com um grupo,
é possível que se identifique com ele e se confunda o passado do pesquisador com
o passado do outro (HALBWCHS apud NASCIMENTO, 2005, p. 7).

Ainda, sob essa mesma ótica, Nascimento (2005) aponta que:

O ato de lembrar é individual, entretanto as lembranças estão


relacionadas com o grupo social do qual fazemos parte, ou ao qual
julgamos pertencer. O fato de pertencermos ao grupo faz com que
algumas atitudes coletivas sejam pensadas como individuais.

Na sociedade contemporânea, a separação entre memória e história


apresenta significados bem definidos. A memória é apresentada como uma tradição
definidora, composta por uma herança que dá sentido e forma, sendo viva e
dinâmica, toda poderosa, enquanto a história é o correlato opositor. Sendo uma
narrativa unificadora, ela separa e seleciona os fatos, matando os momentos de
memória, colocando o passado como algo distante e misterioso. A história cria uma
identidade universal que precisa ser absorvida em contraponto às várias identidades
fragmentadas, cada qual com sua memória específica (NORA apud ARÉVALO,
2004, p. 3).

Arévalo, inspirado nas concepções de Pierre Nora e no contexto da análise e


estudo da história e memória, apresenta ainda a categoria “Lugares de Memória”.
Segundo ele, é nos grupos regionais, sexuais, étnicos, comportamentais de
216

gerações e de gêneros que se busca a memória viva e presente no dia a dia. Estes
lugares de memória são uma mistura de história e memória. Nesse sentido, não
existem mais possibilidades de se ter somente uma ou outra, possibilitando dessa
forma um hibridismo dessas duas maneiras de inferir sobre o passado (NORA apud
ARÉVALO, 2004, p. 4).

Ainda, segundo essa mesma autora, os lugares de memória nascem e vivem


do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos,
organizar celebrações, manter aniversários, pronunciar elogios fúnebres, redigir
atas, porque estas operações não são naturais (NORA, apud ARÉVALO, 2004, p. 4).
Nesta perspectiva é possível trabalhar a Guerra da Telha. A partir da narração do
episódio, o material proveniente da pesquisa é protocolizado e arquivado em
trabalhos como este. Traz-se, à superfície, a história adormecida na memória das
pessoas e ao mesmo tempo, mergulha-se em um período anterior ao presente para
reconhecer culturas e práticas do passado.

Para se trabalhar a memória como possível detentora de história, utiliza-se o


procedimento metodológico da história oral. Esta problematiza a construção de
fontes e documentos, através do registro das narrativas induzidas e estimuladas,
além de testemunhos, versões e interpretações sobre a história em suas múltiplas
dimensões. Podem vir a serem factuais, temporais, espaciais, conflituosas e/ou
consensuais (DELGADO, 2006).

Ainda sobre a metodologia da história oral e sua relação com a Arqueologia,


Borges (2005, p. 111) afirma que:

Uma abordagem que leve em consideração, além dos saberes


acadêmicos, os saberes locais sobre o sítio arqueológico, torna o
sítio mais próximo da história do cotidiano de populações passadas
que não têm voz na historiografia. Na leitura das pessoas locais é
possível distinguir permanências e transformações na maneira de
relacionar com o meio. Na oralidade, a interpretação do espaço e
dos vestígios materiais se mistura com tradição, memória e
invenção, tornando rica a narrativa sobre o passado, fazendo com
que as pessoas se identifiquem, ou não, com aquele lugar e com
quem produziu.

As leituras efetuadas pelas pessoas que vivem na vizinhança dos sítios


arqueológicos contribuem para uma melhor análise, uma vez que esta receberá
dados preciosos sobre a interação com o meio local e informações de cunho
217

etnográfico sobre os vestígios e o próprio sítio. Inferem também narrativas que


constroem histórias mais próximas e íntimas das sociedades que habitaram o local.

A partir desses parâmetros, narra-se a história da Guerra da Telha. Pela


história oral, pautada na memória dos indivíduos, prossegue-se à narração do
conflito, buscando contextualizá-lo temporalmente na história da região.

2.2 A GUERRA DA TELHA SOB A ÓTICA DA MEMÓRIA

A narração desta historia é possível a partir da abordagem dos moradores


que descendem ou que viveram o conflito. Diante da pesquisa oral aplicada a essas
pessoas, pode-se recontar essa história.

A Guerra aconteceu na Fazenda Telha, área rural do município de Dirceu


Arcoverde – PI. Segundo testemunhas, o conflito teve início em meados de 1927,
terminando por volta de 1930. É necessário frisar que, dentre as narrativas, o
período, do início ao fim do conflito, oscila entre 1925 e 1930. Privilegia-se, porém a
primeira data, uma vez que a mesma prevalece no discurso dos entrevistados.

Segundo o Sr. Tiago Alves de Santana, em entrevista realizada no dia 24 de


julho de 2010, o conflito começou por ciúmes de mulheres. Os dois chefes locais,
Domingos Alves de Santana e Otacílio Pamplona, homens respeitados na região e
donos de grandes fazendas com base econômica voltada para a pecuária, teriam
encabeçado a briga. As mulheres envolvidas no episódio eram moradoras da área
dominada por Otacílio e protegidas por ele. O estopim do conflito teria ocorrido por
motivos banais. Os supostos parentes de Domingo Alves, nos domingos, iam
passear e ver as mulheres residentes nas terras de Otacílio. Com essa mesma
argumentação testemunham os senhores, Alvino Francisco de Santana, José de
Santana Neto, José Alves de Santana Filho e a senhora Creusa Alves de Santana,
entrevistados entre os dias 25 e 30 de julho de 2010. Entretanto, nas entrevistas do
senhor Raimundo Martins de Santana e da Sra. Aldiva Martins de Santana
realizadas nos dias 28 e 29 de julho do mesmo ano, alega-se como motivo para
essas desavenças, a disputa por terras na região.
218

Para melhor visualização desse meio, das relações, de como surgiu e quem
eram as pessoas que formavam essa história, em entrevista, o Senhor Tiago Alves
de Santana relata que:

Quando surgiu à guerra foi assim, o Otacílio tinha lá suas terras e a


fazendona, os trabalhadores e os cangaceiros, pra fazer serviço
assim de mandado quase como no tempo de cativeiro. O
Domingos, da mesma forma, tinha muita roça de gado e ajuntava
aquele povo pra trabalhar e ganhar uma grugetinha, que dinheiro
quase não tinha. Foi nesse tempo que, quando deram fé, surgiram
as brigas entre eles. Otacílio e Domingos eram dois grandes
homens que sabiam fazer um escritinho e ler outro.

Percebe-se, nas palavras do entrevistado, como era formado o meio onde


ocorreu o conflito. Quando ele cita que os trabalhadores eram mandados quase
como no tempo de cativeiro, remete ao período escravista, que se sabe, esteve
presente na região. Sabe-se também que e o processo que resultou no fim dessa
atividade foi muito lento, tendo os laços de dependência permanecido sob outras
formas de ligação social. Ainda é perceptível, nesse trecho da entrevista do Sr.
Tiago Alves de Santana, que quando ele fala que havia muitas fazendas de gado,
refere-se à pecuária básica da região, herdada dos tempos coloniais. Na fala do Sr.
Tiago, também é possível notar o grau de instrução das pessoas que habitavam o
local, quando cita que apenas os grandes fazendeiros da região sabiam fazer “um
escritinho e ler outro”.

Nas palavras do senhor Anfilófio Alves dos Passos56 percebe-se que, no


período em que aconteceu o conflito, além da pecuária também havia o plantio da
mandioca, milho, feijão e maniçoba. Ele mesmo relata que, durante muito tempo, as
pessoas sofreram prejuízos, não podendo mais usufruir das fontes econômicas do
local.

Ainda sob a ótica econômica da região, destaca-se que naquele período, nas
palavras da entrevistada Creusa Alves de Santana, a população era muito
massacrada pela seca, o que dificultava também o relacionamento entre vizinhos.
Cada um desses líderes da “guerra” tinha suas criações de gado e plantações que
dependiam de água e alimentos para sobreviver. Como as fontes desses recursos

56
Entrevista registrada no projeto pedagógico “Guerra da Telha” de organização de Agnaldo Ribeiro,
realizado a frente da unidade Professora Isabel de Macedo Ribeiro da comunidade Capim do Zé
Macário, zona rural do município de Dirceu Arcoverde-Piauí (2002, p. 10).
219

no local, além de escassos, situavam-se na beira do riacho, havia encontros


esporádicos entre os fazendeiros e possíveis disputas entre eles por esses bens.

Com o propósito de auxiliar e manter a Guerra da Telha, ambos os lados


tinham uma espécie de padrinhos, pessoas influentes na região, bem como pessoas
que se enquadravam em favor de um lado ou outro dos conflitantes. Segundo o Sr.
José de Santana Neto, eram essas pessoas, os parentes e os coronéis, que
auxiliavam na manutenção da guerrilha, sendo eles:

Muita gente, os homens da família do Domingo e do Otacílio, além


dos homens de poder que auxiliavam com homens, armas e
munição, esses eram prefeitos e delegados das localidades
maiores da redondeza, como São Raimundo, Remanso e Pilão
Arcado57.

Quanto ao tipo de ajuda oferecida, esses senhores, chefes de fazendas, em


especial ao caso do conflito Guerra da Telha, eram auxiliados por homens fortes da
região como Chico Lioba do Pilão Arcado, Franco do Remanso e José Ferreira de
São Raimundo Nonato58. Esses os auxiliavam com fuzis, rifles, munição e capangas
que eram trazidos para o combate59.

Nas palavras do Sr. José Alves de Santana Filho60, vê-se como era dividido
esse tipo de apoio:

O Domingos recebia auxilio de Zé Ferreira, chefe na vila de São


Raimundo, e do Franco, Coronel de Pilão Arcado. O Otacílio recebia
auxilio do Chico Lioba que era Coronel do Remanso. Recebiam
desses homens, fuzis, rifles e munição, além de reforço humano,
quando mandavam homens para atacar61.

Os auxiliadores na Guerra da Telha eram o Coronel Franklin Lins de


Albuquerque, de Pilão Arcado, o coronel Francisco Leobas de França Antunes de
Remanso e o Coronel José Ferreira de São Raimundo Nonato. Entre os dois
coronéis ribeirinhos, de Pilão Arcado e de Remanso, segundo Dias (2000), existia
uma rivalidade, o que fez com que efervescesse o gosto pela batalha.

57
Entrevista na integra com o Sr. José Santana Neto em 26/07/2010. Grifo meu.
58
As cidades de Pilão Arcado, Remanso e São Raimundo Nonato, são próximas do local onde
ocorreu o conflito. Fazem limites com o município de Dirceu Arcoverde - PI. No período do conflito,
inicio do século XX, o território da Fazenda Telha fazia parte de São Raimundo Nonato – PI.
59
Entrevista com o Sr. Alvino Francisco de Santana, concedida em 25/07/2010.
60
Entrevista com o Sr. José Alves de Santana Filho, concedida em 27/07/2010.
61
Entrevista com o Sr. José Alves de Santana Filho, concedida em 27/07/2010.
220

O conflito era realizado em “tocaias” que eram feitas para atacar e eliminar o
inimigo. Os primeiros a morrer numa tocaia foram dois homens do bando do
Domingos. Morreram os dois e feriu-se no braço um filho do Domingos. Essas
primeiras vítimas do conflito chamavam-se Claro e Dominguinhos62.

Os ataques eram muito bem articulados. Eram muito bem armados, com
mosquetes e espingardas winchester calibre quarenta e quatro papo amarelo (DIAS,
2000, p. 163). As primeiras pessoas que morreram em virtude do conflito, segundo o
Sr. José Alves de Santana Filho63, foram enterrados no cemitério da Telha, sendo os
primeiros a ser sepultados naquele lugar. Também, segundo o Sr. Alvino Francisco
de Santana64, “nos locais onde esses foram enterrados até os dias de hoje não é
capinado, não é limpo. A limpeza é realizada somente no restante do cemitério”.

Realizavam-se também ataques surpresas nas residências dos envolvidos.


Conta o Sr. Tiago Alves de Santana65 que “as casas das pessoas eram atacadas à
surdina. Vários homens cercavam as residências e cobriam de bala e fogo. A casa
do meu tio Domingos foi derrubada a tiros. Atiraram na cumeeira66, até cair”.

No que diz respeito às mortes ocorridas por ocasião desse episódio, o Sr.
Raimundo Martins de Santana67 conta que, “morreu muita gente por causa desse
fuxico. Esse mal entendido acabou com as pessoas que moravam por aqui nessa
época. Uns morreram e os outros foram embora, fugidos”.

O conflito só teve fim com a intervenção das forças militares, que vieram por
ordem ao local. Segundo o Sr. Alvino Francisco de Santana68 “a guerra só acabou
na época do governo Getúlio Vargas, quando esse mandou as forças armadas para
acabar com o conflito”. Conta o Sr. Anfilófio Alves dos Passos69 que: “somente com
a ditadura de Getúlio Vargas o cangaço teve fim. O governo destruiu todos os
armamentos, prendeu cangaceiros e acabou com o banditismo.

62
Entrevista com o Sr. José Alves de Santana Filho concedida em 27/07/2010.
63
Entrevista com o Sr. José Alves de Santana Filho concedida em 27/07/2010.
64
Entrevista com o Sr. Alvino Francisco de Santana concedida em 25/07/2010.
65
Entrevista com o Sr. Tiago Alves de Santana realizada no dia 24/07/2010.
66
“Linha” madeira central que se encontra encima das casas para sustentar a cobertura.
67
Entrevista com o Sr. Raimundo Martins de Santana concedida em 28/07/2010.
68
Entrevista com o Sr. Alvino Francisco de Santana concedida em 25/07/2010.
69
Entrevista presente no projeto pedagógico guerra das telhas de organização de Agnaldo Ribeiro,
realizado na unidade educacional Professora Isabel de Macedo Ribeiro da comunidade Capim do
Zé Macário, zona rural do município de Dirceu Arcoverde - Piauí em 2002.
221

Na fala do Sr. Anfilófio Alves dos Passos percebe-se uma associação do


conflito Guerra da Telha com o cangaço e o banditismo. O cangaço seria um tipo de
espelho, que supostamente impulsionava e influenciava os nordestinos, tornando-os
violentos, pessoas “sem lei”, portadores de armas, verdadeiros “bandidos”.

Sobre a grande presença de movimentos conflituosos no Nordeste do Brasil,


Dias (2002), relata que, “desde o período colonial, o Piauí transformou-se em um
palco de intensos e intermináveis conflitos, principalmente resultantes da ocupação
de terras”. A ocupação das terras exigiu luta armada. Os sesmeiros mantinham um
aparato militar, formado por negros e nativos capturados. Na prática e
cotidianamente definia-se o poder. No período colonial era “o poder pessoal, a
coragem e o espírito de liderança que definiam pouco a pouco a estrutura
hierárquica”. Era uma sociedade de “guerreiros e combatentes”, organizada a partir
da usurpação das terras dos povos nativos, do latifúndio e da criação de gado
(DIAS, 2002, p. 73).

Durante a narração das testemunhas, percebe-se, nas entrelinhas70 das falas,


o conjunto de elementos característicos, que auxiliaram o processo de recontar a
história. Foi possível observar o tempo e o espaço em que ocorreu o conflito. É
visível nas narrativas dos entrevistados, que a abordagem da história é homogênea.
Há similaridades na forma como é interpretada a história. As testemunhas narram
como iniciou, quais foram as conseqüências do fato e como terminou o conflito.
Analisa-se o fato a partir do que Geertz chama de “maiúsculas” 71 do discurso.
Percebe-se que pode ir além, para uma melhor interpretação da abordagem.

2.3 ENTRELINHAS DA GUERRA DA TELHA

Durante o discurso narrativo realizado pelas testemunhas do conflito,


percebe-se a formação do meio social que desencadeou o fato. É visível a fala sobre

70
Palavras que surgem no decorrer da entrevista. Elas fazem parte do discurso histórico real do
episódio. As testemunhas deixam fluir, mesmo não tendo a intenção de falar sobre, pois na
maioria das vezes o entrevistado narra o que é interessante para ele, como os sucessos e
angústias. Cabe ao pesquisador saber ouvir a narração e abordar todos os pontos relevantes no
discurso.
71
Retirar, de uma coleção de miniaturas etnográficas, um conjunto de observações, uma ampla
paisagem cultural da nação, da época, do continente ou da civilização (GEERTZ, 1989, p. 15).
222

o cangaço, a seca, o coronelismo e o governo Getúlio Vargas, período em que


foram enviadas para o local as forças armadas, com o objetivo de conter o conflito.
Diante disto, e para melhor compreender-se o contexto histórico e espaço-temporal
em que aconteceu o episódio, abre-se um rápido parêntese para tratar das
entrelinhas da fala.

2.3.1 Cangaço

A organização do cangaço está associada às condições particulares do sertão


nordestino. Destacam-se a concentração da propriedade rural, as grandes secas e o
mando dos coronéis, que eram figuras bastante ativas durante os primeiros
processos políticos do Nordeste brasileiro (CASTRO, 2010).

De acordo com Castro (2010), o surgimento do cangaço está associado às


grandes secas periódicas que devastavam a economia sertaneja e obrigavam muitos
pais de família a saírem de suas pequenas roças em busca de uma melhor condição
de vida em outras regiões. O mais conhecido bando de cangaceiros que atuaram no
sertão nordestino era chefiado por Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Este, com
sua tropa, fez do sertão um “cenário de violentas aventuras” (CASTRO, 2010, p. 17).

Houve dois momentos distintos na história do cangaço. Numa primeira fase,


os grupos armados eram sustentados por chefes políticos locais e, no segundo
momento, formaram–se bandos desvinculados do poder político local. Estes atuaram
nas áreas secas do Nordeste, permanecendo até aproximadamente o ano de 1940
(CASTRO, 2010). O movimento foi tão forte na região Nordeste que influenciou
vários outros manifestos menores por toda a região sertaneja do Brasil.

Embora nenhum dos entrevistados tenha relatado diretamente sobre a


atuação do cangaço em meio ao conflito Guerra da Telha, sabe-se que as
influências desse período foram muito grandes no Nordeste brasileiro. Citações
indiretas sobre o cangaço estiveram presentes nas falas dos entrevistados para essa
pesquisa. Pode-se inferir que houve uma associação entre a violência dos homens
que guerrilharam nesse conflito com o cangaço que foi um movimento de grande
repercussão no cenário nordestino.
223

2.3.2 Seca

O Nordeste brasileiro tem como um dos expoentes de sua visibilidade a seca.


Este fator climático, na maioria das vezes, representa região. As conseqüências das
secas são visíveis desde o período colonial. Entretanto, o fenômeno ocorrido em
1877 e 1879 marcou grandes emergências, provocando um momento de crise
econômica e política, como nunca antes havia acontecido (NEVES, 2001).

As grandes calamidades sociais, verificadas a partir da grande seca de 1877


eram devidas principalmente ao fluxo interno e brusco de retirantes dos outros
estados, em particular do Ceará, que vieram estabelecer-se no Piauí (NEVES,
2001). Mesmo estando em meio ao território nordestino e também sofrendo
resultados das secas, o estado do Piauí era um lugar pouco explorado, o que dava
condições de vida aos vizinhos que chegavam. Não suportando a situação por muito
tempo, o Piauí passou a viver calamidades sociais relacionadas à perda de
produção, no início do século XX (DOMINGOS, 1983).

Desde as primeiras manifestações da ação da seca no Nordeste brasileiro


foram vários momentos de emergência devido às conseqüências que esta traz para
o cenário sertanejo, provocando grandes implicações econômicas em todo o
território como também no Piauí (presente nesse meio). As implicações provocadas
por este fenômeno têm um peso histórico extraordinário. Suas conseqüências ainda
hoje são profundamente sentidas pelos nordestinos (DOMINGOS, 1983).

Tratando desses períodos de seca no Nordeste do Brasil, vale ressaltar aqui a


seca ocorrida em meados do ano de 1930, que dentre as suas grandes
conseqüências levou muitas pessoas “flageladas” a migrar para outras regiões do
Brasil (DOMINGOS, 1983, p. 45).

Estando o conflito Guerra da Telha inserido entre os anos de 1927 a 1930,


pode-se inferir que os efeitos da seca fizeram-se presentes no meio em que se
desenvolveu esse episódio. A ação da seca está presente no relato da Sra. Creusa
Alves de Santana, quando ela lembra que a Fazenda Telha e a Fazenda Duas
Barras, localizavam-se próximo ao Riacho Seco, por este local ser propício à
presença da água mesmo em períodos de seca.
224

2.3.3 Coronelismo

A situação social e política da região Nordeste, nas primeiras décadas da


República, tiveram ligações fortíssimas com o coronelismo. O poder público dos
coronéis estava acima de toda a sociedade da época em que essa ordem
prevaleceu (FACÓ apud CASTRO, 2010).

Sobre como e quando surgiu a atuação coronelística e como ela se


desenvolveu durante muito tempo principalmente no interior do país, Castro (2010,
p. 9) relata que:

As raízes do coronelismo provêm da tradição patriarcal brasileira e


do arcaísmo da estrutura agropecuária no interior remoto do país.
Detentores do poder político e econômico, oriundos do monopólio da
terra e do controle das armas, os coronéis estavam espalhados por
todo o sertão nordestino. Entre eles ocorriam intensas disputas pelo
poder, quase sempre permeadas pela violência.

O coronelismo correspondia a uma rede de interesses. Garantia para uma


pequena oligarquia o controle do estado, das cidades e localidades inseridas na sua
área de atuação. Apesar das grandes divergências e dos conflitos, esse arranjo
político tornou possível a permanência de uma reduzida elite agrária no poder,
durante várias décadas (CASTRO, 2010).

Era a atuação do coronelismo um compromisso, uma troca de proveitos, entre


o poder público que era fortalecido e a decadente influência social dos chefes de
localidades, em especial os senhores de terras. Não é possível compreender esses
fenômenos “sem referência a nossa estrutura agrária, que fornece a base de
sustentação das manifestações de poder privado ainda tão visíveis no interior do
Brasil” (LEAL, 1997, p. 40). Desse tipo de compromisso resultam as características
secundárias do sistema coronelista, que se manifestam no mandonismo e na
desorganização dos serviços públicos locais (LEAL, 1997).

A ação coronelística é visível em meio à realidade do conflito Guerra da


Telha. Existem relatos sobre o envolvimento destes em todas as narrações dos
entrevistados, o que nos leva a inferir que esse tipo de poder esteve muito presente
neste episódio. Em ambos os lados do conflito, o de Domingos Alves de Santana e o
de Otacílio Pamplona, a ação coronelística tinha influências sobre o movimento em
associação com os fazendeiros.
225

2.3.4 Governo Getúlio Vargas

Na década de 1920, diversos fatores conjugaram-se para acelerar o declínio


da República Velha. O fim da política café com leite, o agrupamento das oligarquias
dissidentes na aliança liberal e o colapso da economia cafeeira foram alguns dos
fatores que criaram condições para dar início à “Revolução de 1930, que assinalou o
fim da República Velha e o início da Era Vargas” (CASTRO, 2010, p. 19).

A era Vargas tentava consolidar o estado, como nação. O estado precisava


integrar as camadas sociais que, durante toda a história brasileira, haviam sido
marginalizadas e desamparadas, na intenção de criar uma economia moderna, mas
produtiva, eficaz e planificada. A industrialização e a promoção social foram os
principais caminhos, no entendimento de que fortaleceriam o Estado Novo. Por isso,
criou-se uma política voltada para a industrialização (CASTRO, 2010). Foram várias
as divergências e os conflitos que ocorreram durante o arranjo político de Getúlio
Vargas. Este, por sua vez, criou-se maneiras de pacificar as rebeliões, mantendo no
poder uma reduzida elite agrária, durante várias décadas (CASTRO, 2010).

No período de 1930 a 1945, Getúlio Vargas esteve no poder pela primeira


vez. Adotou medidas econômicas e realizou inovações institucionais que
assinalaram uma nova fase nas relações do estado com o sistema político e
econômico. As próprias soluções adotadas após 1930 mostram que o governo foi
respondendo aos problemas e dilemas, conforme esses surgiam, determinados por
interesses políticos submetidos a pressões econômicas, sociais e militares (LANNIN
apud CASTRO, 2010, p. 20).

Os entrevistados relatam que a Guerra da Telha somente teve fim com a


intervenção dos Militares que estiveram presentes no local. Essa intervenção chegou
no período em que Getúlio Vargas teve seu primeiro mandato à frente do governo
Brasileiro, possibilitando pensar que o episódio tenha ocorrido no início da década
de 1930.
226

3 ARQUEOLOGIA E PATRIMÔNIO

3.1 A ARQUEOLOGIA E A ABORDAGEM DA CULTURA MATERIAL

A Arqueologia é uma ciência social, que visa, a partir de materialidades,


contribuir para o conhecimento da história do passado (JORGE, 2007, p. 11). A
palavra arqueologia vem do grego arkhaiologia, “discurso sobre as coisas antigas”, o
estudo do passado humano pelos vestígios materiais que tenham sobrevivido ao
tempo. Começa no momento em que surgiu o interesse pela história dos artefatos e
estende-se até os dias atuais (BAHN, 1996, p. 14).

O leque de possibilidades da Arqueologia é ilimitado. Abrange muitos campos


e meios na produção de trabalhos e pesquisas. O estudo do passado que é
abordado por este campo do saber pode ter dezenas, centenas ou milhares de anos.
A partir da Arqueologia, pode-se estudar uma casa dos anos 1950 bem como uma
caverna pré-histórica. Seu campo de pesquisa é o estudo das sociedades pretéritas
em seus diversos aspectos com base nos restos materiais por elas deixados. Ela
estuda o homem a partir da sua cultura material (NAJJAR, 2002, p. 6).

O seu objeto engloba tanto o período “pré-histórico” como o “histórico”. O que


os difere, é a natureza das fontes. Os arqueólogos que trabalham em períodos
históricos utilizam também os documentos escritos nas suas pesquisas e cada área
do conhecimento tem sua forma de investigação. Os estudos em Arqueologia
Histórica mostram o seu caráter multidisciplinar como disciplina científica.

De acordo com NAJJAR (2002, p. 8), “o diálogo com outras áreas do


conhecimento como a História, a Arquitetura e a Antropologia tem sido fundamental
no desenvolvimento de pesquisas”. A multiplicidade de informações implica a
necessidade do olhar de cada uma dessas áreas. “Artefatos, documentos escritos,
informação oral e a própria Arquitetura podem informar sobre as relações entre
ocupantes e como estes se relacionavam com a sociedade” (NAJJAR, 2002, p. 8-9).

Na Fazenda Telha, local onde ocorreu o conflito Guerra da Telha, objeto


desse trabalho, estão presentes os vestígios que compõem a cultura material
proveniente dos processos de habitação e convivência social do período.
227

3.2 ESPAÇO E PAISAGEM

A partir de pesquisas, sob a ótica da Arqueologia da Paisagem, é possível


identificar componentes do meio natural e cultural que, mediante um contexto com
abordagem ecossistêmica, permitem obter informações sobre as formas de
apropriação e organização do espaço. A utilização de meios técnicos como Sistema
de Informações Geográfico, Modelagem Digital do Terreno e maquetes eletrônicas,
pode auxiliar na reconstrução e compreensão da paisagem (BORNAL, 2008).

A abordagem do espaço e da paisagem neste trabalho não tem a pretensão


de apontar a fundo as características ecossistêmicas do local, mas apresentar
elementos que compõem o sítio para uma compreensão do espaço que o circunda.
A área desta pesquisa apresenta variações de temperatura. No período de janeiro a
temperatura média anual é de 28°C. Apresenta uma amplitude térmica anual inferior
a 5°C. O mês mais frio é junho, com temperatura média de 25°C, máxima de 35°C e
mínima de 12°C. O período mais quente corresponde ao início da estação das
chuvas, de outubro e novembro com temperatura média de 31°C, máxima de 45°C e
mínima de 22°C (EMPERAIRE, 1991).

Nenhum rio na região, incluindo o Riacho da Telha, é permanente. No período


de chuvas, as enchentes são comuns. Em seguida passam-se longos meses
durante os quais os leitos dos rios ficam completamente secos. O fundo arenoso dos
rios principais é utilizado durante a estação seca para as culturas de vazante. O
milho, o feijão e legumes crescem nos locais onde há umidade. A vegetação é a
caatinga formada por plantas caducifólias, espécies espinhosas de cipós, de
cactáceas e bromélias (EMPERAIRE, 1991).

A localização da fazenda, à margem do Riacho da Telha, leva a inferir que,


devido ao clima seco da região, esse pode ter sido um ponto positivo diante da
escolha do lugar para habitar. Pode também ter sido este um dos motivos pelos
quais esses moradores viviam em desavenças, ou seja, em disputa por água. Como
a nomenclatura do local indica, o lugar era uma fazenda de gado vacum e cavalar. A
região não era propícia à monocultura da cana de açúcar e foi, por muito tempo,
praticada a agricultura de subsistência, com o cultivo de milho, feijão, mandioca,
maniçoba e a criação de animais domésticos como os suínos, caprinos e ovinos.
228

A análise da paisagem da Fazenda Telha é breve. Nunca antes houve


pesquisa no âmbito da espacialidade e/ou da Arqueologia para que se obtivesse
informações mais aprofundadas do local. Faz-se apenas uma amostragem
preliminar do lugar em que ocorreu o conflito (Fig. 7)72. Os círculos coloridos na
imagem indicam as estruturas que compõem o local. Para se realizar uma análise
mais acurada, seria necessária uma pesquisa arqueológica mais intensa73.

1 Estrutura 1, casa do Sr. Joaquim 4


Uma das residências do período
do conflito
Residência do Sr. Domingos Segundo os moradores, esta
2 5
Alves de Santana teria sido uma olaria
Uma das residências do
3 6 Residência do Sr. Satu
período do conflito

Figura 7 - Estruturas do local (Fonte: Google Earth, com adaptações da autora)

72
As informações adicionadas à imagem foram fornecidas pelas pessoas que residem junto ao local.
73
O trabalho de prospecção da Fazenda Telha ocorreu de forma intensiva e extensiva. No terreno
das estruturas 2, 3 e 4 a prospecção foi bem detalhada (intensiva). No restante do terreno essa
ocorreu de forma extensiva, ou seja, ocorreu de forma breve, foram identificadas apenas as
estruturas.
229

3.3 ESTRUTURAS DO CONTEXTO

A estrutura arquitetônica faz parte da cultura material. Pode ser estudada a


partir de metodologias arqueológicas. É considerada, por isso, artefato arqueológico.
Os arqueólogos devem atentar para o significado cultural de uma estrutura ou de
uma ruína. Ao contrário dos artefatos que podem ser conduzidos para laboratórios,
as estruturas são mais bem compreendidas no contexto original, em que foram
produzidas, o que possibilita a compreensão das modificações que essas sofreram
em meio à sociedade que as construiu (PINHEIRO, 2009, p. 36 e 37).

As residências indicam estruturas sociais e categorias culturais presentes


durante sua existência, através dos atributos de seus componentes, como também
sensações vivenciadas por seus ocupantes em decorrência de sua funcionalidade
(SYMANSKI, 1997, apud PINHEIRO, 2009).

As estruturas que formam o contexto arqueológico do local onde ocorreu a


Guerra da Telha apresentam-se bastante deterioradas. Restam apenas ruínas. São
prejuízos provocados principalmente pelo homem e por agentes erosivos que
acabam por carrear grande parte do material para dentro do riacho (Fig. 8 a 11).

Figura 8 - Base estrutural (alicerce) da residência do Sr. Domingos Alves de Santana


230

Figura 9 - Estrutura 3. Local onde existiu uma das residências da área

Figura 10 - Estrutura 4. Local onde existiu uma das residências da área


231

Figura 11 - Estrutura 5. Uma olaria

3.4 CULTURA MATERIAL

Os vestígios arqueológicos que provêm da Fazenda Telha estão, em sua


grande maioria, in situ, com exceção dos que estão em posse de pessoas da região.

O trabalho de análise e identificação foi realizado somente com os materiais


que estão em posse das pessoas da região. Os vestígios arqueológicos que estão in
situ têm, nesse trabalho, o caráter de mera apresentação. São analisados somente
os que apresentam atributos possíveis de análise. Os materiais arqueológicos
evidenciados no contexto do conflito são: fragmentos de louça, de metal, de vidro,
de cerâmica, material de olaria e de madeira74.

74
Além dos vestígios; louça, metal, vítreo, cerâmica, olaria e madeira, há também, artefatos da
indústria lítica pré-histórica, no contexto da Fazenda Telha.
232

3.4.1 Louça

“Todo produto manufaturado de cerâmica, composto de substâncias minerais


sujeitas a uma ou mais queimas pode ser designado pelo termo louça” (PILEGGI
1958, apud CALDARELLI 2000, p. 115). Dois grandes grupos compõem a categoria
referente à louça. São eles: 1) produtos porosos: louça de barro, terracota, produtos
de olaria (telhas, tijolos, etc.), faiança, faiança fina ou variedades refratárias e 2)
produtos não porosos: louça vitrificada ou grés cerâmico, louça vidrada ou porcelana
dura (CALDARELLI 2000, p. 115).

A análise dos materiais que se encontram em posse dos populares da região


juntamente com as que estão in situ foi realizada a partir das categorias que
responderam à procedência, identificação, tipo, morfologia, forma, técnica, motivo,
função, marca e produção (Fig. 12 a 19).

Figura 12 - Fragmentos de louça com carimbo

PROCEDÊNCIA: Francisco Alves de Santana, Barreirinho, Dirceu Arco Verde - PI


IDENTIFICAÇÃO: Faiança fina
TIPO: Whiteware
233

MORFOLOGIA: Base
FORMA: Prato
TÉCNICA DE DECORAÇÃO: Não Identificada
MOTIVO: Não Identificado
FUNÇÃO: Mesa
MARCA: J. & G. MEAKIN LTD
PRODUÇÃO: 1851-1967
OBS: Pratos fabricados em Ironstone, pela fábrica inglesa J&G Meakin Ltd. (1851-
1967)

Figura 13 - Fragmento de louça com carimbo em posse de Francisco Alves de Santana

PROCEDÊNCIA: Francisco Alves de Santana, Barreirinho, Dirceu Arcoverde – PI


IDENTIFICAÇÃO: Faiança fina
TIPO: Whiteware
MORFOLOGIA: Base
FORMA: Malga
TÉCNICA DE DECORAÇÃO: Não identificado
MOTIVO: Não identificado
FUNÇÃO: Mesa
MARCA: Societé Ceramique Maestricht
PRODUÇÃO: 1858 – até os dias atuais

OBS: Teve grande tradição ceramista e exportou muito para o Brasil durante o
século XIX e o início do século XX, provavelmente através do Porto de Antuérpia.
234

Figura 14 - Fragmentos de louça, com decoração (pedaços de um mesmo prato)

PROCEDÊNCIA: Em posse de Francisco Alves de Santana


IDENTIFICAÇÃO: Faiança fina
TIPO: Whiteware
MORFOLOGIA: Borda
FORMA: Prato
TÉCNICA DE DECORAÇÃO: Em azul borrão, pintado a mão
MOTIVO: Geométrico em faixas concêntricas
FUNÇÃO: Mesa
MARCA: Societé Ceramique Maestricht
PRODUÇÃO: 1858 – até os dias atuais
235

Figura 15 - Fragmentos de louça pintado em azul escuro, em posse

PROCEDÊNCIA: Lourany Alves de Santana, Barreirinho, Dirceu Arcoverde – PI


IDENTIFICAÇÃO: Faiança fina
MORFOLOGIA: Borda
FORMA: Prato
TÉCNICA DE DECORAÇÃO: Borrão azul
MOTIVO: Não identificado
FUNÇÃO: Mesa
MARCA: Não identificado
PRODUÇÃO: 1835 – 1845.

OBS: O termo Borrão Azul designa um tipo de estampado em azul no qual a tinta
escorre intencionalmente dentro do esmalte, produzindo um aspecto borrado.
Produzido na Inglaterra.
236

Figura 16 - Alguns tipos de louças encontradas na Fazenda Telha. Em posse de

PROCEDÊNCIA: Loureny Alves de Santana, Barreirinho, Dirceu Arcoverde – PI


IDENTIFICAÇÃO: Faiança fina
TIPO: Whiteware
MORFOLOGIA: Base (carimbada) e outras
FORMA: Não identificado
TÉCNICA DE DECORAÇÃO: Não identificada
MOTIVO: Motivos geométricos, paisagem, círculos e listras
PRODUÇÃO: 1851-1967 (carimbo) MARCA: J. & G. MEAKIN LTD
FUNÇÃO: Mesa

OBS: Fragmentos de louça encontrados pelos moradores no contexto da Fazenda


Telha.
237

Figura 17 - Louça com carimbo

PROCEDÊNCIA: In Situ, entre as estruturas 2 e 3


IDENTIFICAÇÃO: Faiança fina
TIPO: Whiteware
MORFOLOGIA: Base
FORMA: Prato
TÉCNICA DE DECORAÇÃO: Não identificado
MOTIVO: Não identificado
FUNÇÃO: Mesa
MARCA: J. & G. MEAKIN LTD
PRODUÇÃO: 1851-1967

OBS: Pratos fabricados em Ironstone pela fábrica inglesa J&G Meakin Ltd. (1851-
1967).
238

Figura 18 - Louça decorada

PROCEDÊNCIA: In situ, próximo da estrutura 2


IDENTIFICAÇÃO: Faiança fina
TIPO: Whiteware
MORFOLOGIA: Bojo
FORMA: Não identificado
TÉCNICA DE DECORAÇÃO: dipped (técnica banhada)
MOTIVO: Listras em vermelho e flores em azul
FUNÇÃO: Mesa
MARCA: Não identificado
PRODUÇÃO: Não identificado
239

Figura 19 - Louça decorada

PROCEDÊNCIA: In situ, entre as estruturas 3 e 4


IDENTIFICAÇÃO: Faiança fina
MORFOLOGIA: Borda
FORMA: Não identificado
TÉCNICA DE DECORAÇÃO: dipped e cut sponge
MOTIVO: Linhas horizontais e flores pintadas sobre fundo lilás e amarelo
FUNÇÃO: Mesa
MARCA: Não identificado
PRODUÇÃO: Não identificada
240

3.4.2 Cerâmica

O termo cerâmica refere-se aos produtos de argila misturada com vários


aditivos e enrijecidos pela aplicação de calor. Os tipos de cerâmica variam desde os
estruturais, tijolos, calhas, telhas (Olaria) a vasos, utensílios de cozinha, sendo
caracterizados os materiais fabricados a partir da cerâmica como grosseiros e
refinados (ORSER, 2005)75.

O objetivo da análise dos fragmentos de cerâmica provenientes do local


onde ocorreu o conflito como os outros materiais que compõem a cultura material da
Fazenda Telha é identificar os atributos técnicos, morfológicos e decorativos. A partir
dessas informações pode-se inferir sobre a realização desse tipo de trabalho na
região (Fig. 20 e 21).

Figura 20 - Material cerâmico localizado in situ, próximo à estrutura 3

75
“The term ceramics‟ refers to products to made of Clay mixed with various additives and hardened
by applyng heat. Types of ceramics range from structural (e.g. bricks, tiles, drainpipes) and
decorative (e.g. vases, figures, artware) to useful (e. g. tablewere, teawere, kitchenwere), and are
characterised by both coarse and refined varieties” (ORSER, 2005, p. 106).
241

Figura 21 – Fragmento de cerâmica acordelada, (Roletes de argila que são sobrepostos um


encima do outro formando a vasilha). Em posse da Unidade Professora Isabel
de Macedo Ribeiro, comunidade Capim do Zé Macário, zona rural do município
de Dirceu Arcoverde – PI

3.4.3 Olaria

O material referente à olaria do local onde ocorreu o conflito está bastante


comprometido. Na análise das telhas é importante observar que é estabelecido
como distal, mesial e proximal, a posição espacial da decoração na capa do objeto 76
(Fig. 22 e 23).

76
Distal: Corresponde à peça com decoração na extremidade inferior.
Mesial: A decoração está centralizada na peça.
Proximal: Os motivos decorativos são encontrados na extremidade superior do artefato (CALDARELLI,
2000, p. 200).
242

Figura 22 - Material de olaria (tijolo), localizado in situ, próximo à estrutura 4

Figura 23 - Material de olaria (telha), localizado in situ, próximo à estrutura 2


243

3.4.4 Metais

Os materiais metálicos têm sua presença registrada em vários sítios


arqueológicos, mas somente muito recentemente estão sendo objeto de um estudo
mais detalhado, por parte de pesquisadores que trabalham com Arqueologia
Histórica (CALDARELLI 2000, p. 192).

Na Fazenda Telha, destacam-se as moedas do período Imperial e


Republicano, o primeiro iniciado em 1822 com D. Pedro I. Os cartuchos e balas
estão intimamente relacionados com o contexto do local. Também foram
identificados cravos utilizados na construção de residências, chave e talher que são
vestígios materiais domésticos (Fig. 24 a 31).

Moeda de cobre do período imperial. Esse tipo de moeda esteve em uso


durante os primeiros anos de império de D. Pedro I, até meados do reinado de
D. Pedro II. A emissão desse tipo de moeda foi realizada pelas casas
emissoras do Rio de Janeiro, Goiás e Bahia.

Figura 24 - Moeda em posse de Francisco Alves de Santana, Barreirinho, Dirceu Arcoverde

Moeda de cobre, equivalente a 20 réis do período imperial, emitida pelas casas


da moeda do Rio de Janeiro, Goiás e Bahia.

Figura 25 - Moeda em posse da Unidade Professora Isabel de Macedo Ribeiro, comunidade


Capim do Zé Macário, zona rural do município de Dirceu Arcoverde-PI
244

Figura 26 - Bala de Rifle em posse de Sidney Alves de Santana, Lagoa do Buraco, Dirceu
Arcoverde – PI

Figuras 27 - Bala de Rifle em posse de Rodrigo Alves de Santana, Lagoa do Buraco, Dirceu
Arcoverde – PI.

Figura 28 - Casca de bala em posse de Creusa Alves de Santana, Barreirinho, Dirceu


Arcoverde – PI
245

Figura 29 - Uma chave em posse da Unidade Professora Isabel de Macedo Ribeiro,


comunidade Capim do Zé Macário, município de Dirceu Arcoverde - PI

Figura 30 - Material em posse da Unidade Professora Isabel de Macedo Ribeiro,


comunidade Capim do Zé Macário, Dirceu Arcoverde - PI.
246

Figura 31 - Material férreo em posse da Unidade Professora Isabel de Macedo Ribeiro,


comunidade Capim do Zé Macário, Dirceu Arcoverde - PI

3.4.5 Vítreo

O vidro é um material composto de sílica, em geral sob forma de areia, e


álcalis, como potássio, óxido de cálcio (cal) e carbonato de sódio. A sílica e os
álcalis determinam suas características gerais (dureza, brilho e durabilidade) e
outros elementos químicos determinam a sua cor. A cor natural do vidro é
decorrente das impurezas da areia, que varia de verde a âmbar. As cores artificiais
são produzidas pela adição de corantes como cobalto, cobre, ferro, manganês,
estanho, ouro e arsênico (CALDARELLI, 2000, p. 172).

São apresentados, na seqüência, os materiais que compõem alguns


exemplos do material vítreo que se encontram no contexto da Fazenda Telha.
Diante da análise desse material são apresentados quando possível os quesitos que
respondam: produção, coloração e utilidade do objeto (Fig. 32 a 35).
247

Vidro confeccionado pela produção fabril, de coloração hialina. A partir do gargalo


pode se inferir que foi utilizado para armazenar remédio, como por exemplo, o óleo de
rícino, amplamente utilizado como laxante durante a segunda metade do século XIX e
início do século XX (LIMA, 1996, apud CALDARELLI, 2000, p. 175).

Figura 32 - Pescoço e gargalo de material vítreo in situ, próximo à Estrutura 2

Vidro com coloração verde claro possivelmente de produção artesanal, devido


às estrias e bolhas que ficaram registradas no vidro no momento da produção.
Figura 33 - Vidro verde claro in situ. Localizado próximo à Estrutura 3
248

Base de uma garrafa de produção industrial, coloração âmbar, utilizada para


armazenar bebidas.
Figura 34 - Base de uma garrafa localizada in situ, próximo à Estrutura 2

Partes do pescoço e gargalo de uma garrafa de produção industrial, coloração verde


oliva, utilizada para armazenar bebidas.

Figura 35 - Pescoço e gargalo de uma garrafa localizada in situ, próximo à Estrutura 4


249

3.4.6 Madeira

Ainda dentre os vestígios materiais provenientes do local há um vestígio de


madeira. Localiza-se próximo a uma das estruturas residenciais. É um pilão
fabricado a partir do reaproveitamento do tronco de uma árvore (Fig. 36).

Na análise preliminar da cultura material da Fazenda Telha, mais


precisamente do local onde ocorreu o conflito Guerra da Telha observou-se a
ocorrência de uma freqüência de louças consideradas como de alto custo em uma
classificação de valor econômico na época. Isso demonstra, de certa forma, o poder
aquisitivo das pessoas que habitaram o local. A cerâmica apresenta-se refinada com
decoração. Os metais são, também, bastante importantes em análises.

Figura 36 - Material de madeira. Segundo populares da região este seria um pilão usado
para triturar alimentos, feito a partir do tronco de uma arvore

Neste caso específico apontam a configuração do conflito, já que são


evidenciados, cartuchos e balas de armas de grande porte na época, que teriam
sido usadas no combate. O vidro, por sua vez, aparece com uma variação e
evolução da técnica. Percebe-se vidros com técnicas de produção artesanal e fabril,
além da presença rústica do material criado a partir da madeira.
250

3.5 PATRIMÔNIO

O patrimônio cultural tem intrínseca relação com a memória, com a história e


com o passado, ou seja, com as múltiplas dimensões da cultura as quais evocam
um passado vivo, acontecimentos e coisas que precisam de preservação, por serem
coletivamente significativas em sua diversidade. O termo patrimônio cultural tem
uma amplitude categorial que comporta várias espécies, como por exemplo, o
artístico, o histórico, o religioso, o arqueológico, o etnográfico, o monumental entre
outras (ARMELIM, 2009).

Vale ressaltar que o filósofo Maurice Halbwachs foi o primeiro a aventar a


idéia da memória coletiva. Segundo ele, corresponde ao conjunto de lembranças
que um grupo de pessoas compartilha a respeito de um evento marcante que,
somado a fatos e imagens de domínio público, forma um tecido muito mais extenso
e bem tramado do que a simples soma das recordações individuais (ARMELIM,
2009, p. 21 a 22).

A partir desse pensamento pode-se julgar necessário que, diante da


abordagem do conflito, juntamente com a Memória, com a História, e com
Arqueologia, seja relevante inserir nesta abordagem também a perspectiva do
Patrimônio. Esta abordagem reconhece os valores culturais de cada povo e a sua
identidade que são representados por bens materiais e imateriais tornando-se
juridicamente protegidos perante lei77 (ARMELIM, 2009, p. 23).

Aproximando essa abordagem à realidade contextual e geográfica em que


está inserida a Fazenda Telha, vale destacar que, sob a Lei Nº 4.515/1992,
publicada no Diário Oficial nº 15, de 13/11/1992, o Patrimônio Cultural do Estado do
Piauí é:

Constituído pelos bens de natureza material e imaterial, tomados


individualmente ou em conjunto, portadores de referencia à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
comunidade piauiense e que, por qualquer forma de proteção,
prevista em lei, venham a ser reconhecidos como valor cultural,
visando a sua preservação (CASTRO, 2008, p. 193).

77
Em 1972, a Organização das Nações Unidas para a Ciência e a Cultura (UNESCO) criou a
Convenção do Patrimônio Mundial, para incentivar a preservação de bens culturais e naturais
considerados significativos para a humanidade. Disponível em: www.iphan.gov. Visitado em
30/11/2010.
251

Vista a abordagem da “Guerra da Telha” apresentada nesse trabalho fica


clara a necessidade de se iniciar um processo de reconhecimento da área, com um
registro do sítio arqueológico. É o local portador de referência à identidade da
comunidade de Dirceu Arcoverde - PI, ficando clara a importância que os vestígios
materiais têm para a população.

O capítulo V art. 29 da lei Nº 4.515/1992 trata dos eventos de relevância


cultural para o estado. Declara que “quando o bem ou manifestação cultural se
revestir de especial valor e, pela sua natureza ou especificidade, não se prestar a
proteção, pelo tombamento, o governo do Estado poderá declará-lo de relevante
interesse cultural” (CASTRO, 2008, p. 196).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A escolha do tema Guerra da Telha para o desenvolvimento desse trabalho


não aconteceu por acaso. O motivo que levou à sua realização era conhecer e
apresentar o conflito, o que foi possível a partir das perspectivas da Memória, da
História, da Arqueologia e do Patrimônio que fechou essa narrativa, abordando a
necessidade de se conhecer e preservar o patrimônio cultural daquela área
arqueológica.

A partir da memória com a metodologia da história oral foi possível realizar o


trabalho de recontar a Guerra da Telha. A partir dos depoimentos das testemunhas
do conflito narrou-se aquele episódio, abordando como e quando ocorreu, os
envolvidos e as conseqüências. Foi possível não somente conhecer a história
versada pelo entrevistado como também conhecer outras informações relevantes
para a realização desse trabalho, que apontaram aspectos como período, economia
e costumes que configuram a região. Observou-se que, dentre as palavras narradas
pelos entrevistados, surgiam algumas que estavam intimamente relacionadas com o
contexto histórico mais amplo. Não era, porém, objetivo do narrador falar sobre este,
pois o objetivo dele era narrar como ocorreu o conflito Guerra da Telha, porque
ocorreu e principalmente suas conseqüências e resultados. Percebe-se que as
tristezas e as angústias sentidas no momento ficaram muito bem registradas na
memória daquele povo.
252

A História forneceu dados importantes para a execução deste trabalho com


suas abordagens, onde foi possível contextualizar a área de estudo à abrangência e
a extensão territorial que o conflito abarcou.

A Arqueologia e o Patrimônio fecharam essa abordagem com a apresentação


do espaço e paisagem local. Mostraram que a Fazenda Telha está localizada à
margem do riacho da Telha, uma fonte de água que foi um dos fatores favoráveis a
escolha do local para habitar o interior nordestino. Ainda nessa ótica é apresentada
a configuração espacial das estruturas que formam o local. Foi possível identificar
seis estruturas, das quais houve uma maior relevância nas análises das estruturas 2,
3, e 4, por se saber com exatidão que essas são provenientes do período que
ocorreu o conflito. Não há maiores informações sobre esses quesitos, por ser
necessária a realização de trabalhos arqueológicos mais aprofundados devido à
extensão territorial e por não haver atualmente trabalhos já realizados que
fornecessem mais dados para esta pesquisa.

Foi abordada, no âmbito da Arqueologia, a cultura material proveniente do


local, mais especificamente do entorno das estruturas 2, 3, e 4. Foi possível
conhecer os artefatos correspondentes a materiais cerâmicos, de louças, vítreos,
metálicos e de madeira. A partir de sua análise pode-se conhecer os elementos que
configuraram a Fazenda Telha. A presença de louças com decorações e marcas
estrangeiras indica o status econômico das pessoas que habitaram o local. A
existência de moedas do período imperial aponta uma datação relativa para a
ocupação da região. Por sua vez, as balas de armas consideradas de grande porte
naquele momento fazem conhecer a dimensão do conflito, inferindo o real
significado que este teve para a comunidade.

Foram abordados também os elementos que configuram o patrimônio cultural


como forma de se iniciar urgentemente um processo de reconhecimento e
preservação do local diante da relevância que o episódio teve e tem para aquela
comunidade.

Ainda na ótica do patrimônio, dando ênfase a educação patrimonial, estão


sendo proferidas palestras com o tema Guerra da Telha: Memória, História,
Arqueologia e Patrimônio, nas escolas da comunidade, com o intuito de
253

conscientizar a população sobre a preservação patrimonial e apresentar os


resultados desse trabalho.

Por fim, percebe-se que os principais objetivos deste trabalho, que tem
caráter introdutório, buscando apresentar e conhecer o conflito “Guerra da Telha”
foram alcançados. Ressalta-se que essa pesquisa não é e nem pode ser conclusiva,
pois muito tem por se fazer diante da abordagem Guerra da Telha.

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www.iphan.gov Visitado em 30/11/2010.
PATRIMÔNIO

Autores:
Ana Stela de Negreiros Oliveira
Celito Kestering
Déborah Gonsalves Silva
Jucinéa dos Santos Mota
Juliana Ferreira Sorgine
Maria de Fátima Paes de Almeida Neta
Marian Helen da Silva Gomes Rodrigues
Mauro Alexandre Farias Fontes
Rianne Maria Oliveira Paes
VII OS RITUAIS DO MORRO DO CRUZEIRO: ATRIBUTOS DA IDENTIDADE
SANRAIMUNDENSE

Maria de Fátima Paes de Almeida Neta


Celito Kestering

INTRODUÇÃO

As comemorações alusivas ao centenário da cidade de São Raimundo


Nonato acontecem no ano 2012. Esta é uma cidade de grande importância para a
região, para o estado e para o país, tanto no lado político quanto no econômico.

Para os sanraimundenses, temas que desvendem aspectos da história de sua


terra têm relevância particular. Estes fomentam o cultivo da auto-estima coletiva dos
habitantes da cidade. Há, porém, aqueles que, por esquecimento, deixam perder, ao
longo do tempo, referências patrimoniais, históricas e culturais.

As novas gerações acabam prejudicadas porque não lhes chegam


informações relativas à tradição, como as crenças e os rituais religiosos. Este é o
tema que se aborda nesta pesquisa. Deve-se a sua escolha ao sentimento de
obrigação, enquanto pesquisadores e enquanto cidadãos.

Aborda-se uma pequena parte da cultura sanraimundense. Objetiva-se


resgatar e preservar parte da cultura imaterial e da historia de São Raimundo
Nonato. Refere-se aos tipos de rituais praticados no Morro do Cruzeiro. O tempo
passa e modificam-se as pessoas e os lugares. Ao longo dos anos, parte dessa
história está sendo modificada. Com isso, perdem-se aspectos relativos a fatos que
foram importantes para o desenvolvimento da cidade.

Pretende-se deixar um pequeno registro de algo que foi importante e que hoje
não existe mais, na forma que tinha antes, devido às constantes mudanças na vida
cotidiana das pessoas ou por meio de intervenções políticas. Por este motivo, fez-se
a coleta de depoimentos de algumas pessoas da cidade. Para obter informações
relativas ao cruzeiro e entender como se deu e como continua a prática religiosa
referente ao Morro do Cruzeiro, aplicou-se um questionário. Cada entrevistado
relatou fatos ocorridos com ele e com o Morro do Cruzeiro.
258

Apresenta-se, inicialmente, um conjunto de conceitos que abordam o


significado de patrimônio. Em seguida, mostra-se a importância da preservação
como forma de conscientizar a população. Apresenta-se, ainda, o conceito da
cultura imaterial dos ex-votos. Para que se possa entender a importância dos ex-
votos no contexto do Morro do Cruzeiro, em São Raimundo Nonato, cita-se,
também, algumas práticas que persistem na sociedade atual. Por último faz-se uma
apresentação da metodologia da historia oral aplicada em campo. Esse método é
importante para coletar e analisar os depoimentos concedidos.

Aborda-se a história e o desenvolvimento da cidade de São Raimundo Nonato


para entendê-la, desde a sua formação até os dias atuais. Relata-se a história da
vida religiosa e pessoal do santo que deu origem ao nome desta cidade. A devoção
a este santo está presente na sua historia, desde o seu surgimento até hoje. Pode
não estar diretamente ligada à devoção do Morro do Cruzeiro, mas, de certa forma,
deu origem a esta prática. Não se pode relatar a história da cidade de São
Raimundo Nonato sem que se relate a participação da Igreja Católica no seu
desenvolvimento.

Por fim, analisam-se os depoimentos coletados que fazem referência a um


ritual de prática religiosa tradicional desta cidade. Contextualizam-se as práticas que
aconteciam e que acontecem no Morro do Cruzeiro. Com isso, chega-se a uma
conclusão preliminar que abre caminhos para pesquisas futuras sobre essa prática
religiosa e incentiva a preservação desse patrimônio imaterial.

1 PRESERVAÇÃO PATRIMONIAL

Patrimônio é uma inextricável articulação de herança e construção. É herança


porque, subjacente à idéia, encontra-se a vontade de conservar (congelar o tempo),
valorizar e transmitir certos bens. É construção porque tais valores são
indissociáveis do olhar contemporâneo sobre eles. É criação na medida em que são
reconhecidos como valores patrimoniais (JORGE, 2000, p. 125).
Existem diversas definições para patrimônio. Mais comumente ele é
considerado como um conjunto de bens entendidos como herança de um povo ou
de uma nação. Seu vocábulo refere-se, originalmente, à herança paterna, ou seja,
259

aos bens materiais transmitidos de pai para filho. Daí o termo, ainda hoje, referir-se
à herança familiar.
A extensão do uso do termo como herança social apareceu na França pós-
revolucionária, quando o Estado decidiu tutelar e proteger as antiguidades nacionais
às quais era atribuído significado para a história da nação (MORAES, 2004). Os
bens, então considerados como patrimônio histórico, abrangiam não somente os
imóveis como igrejas ou palácios. Eram relativos, também, aos bens móveis, como
os documentos escritos ou os acervos dos museus.
Na Segunda Convenção da UNESCO (1972)78 definiu-se como patrimônio
cultural e natural:
(...) os monumentos, os conjuntos e os sítios (...)
(...) monumentos [são] obras arquitetônicas, esculturas ou pinturas
monumentais, objetos ou estruturas arqueológicas, inscrições, grutas
e conjuntos de valor universal excepcional do ponto de vista da
história, da arte ou da ciência;
(...) conjuntos [são] grupos de construções isoladas ou reunidas, que,
por sua arquitetura, unidade ou integração à paisagem, têm valor
universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da
ciência;
(...) sítios são obras do homem ou obras conjugadas do homem e da
natureza, bem como áreas, que incluem os sítios arqueológicos, de
valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético,
etnológico ou antropológico.
São considerados Patrimônio Natural:
- os monumentos naturais constituídos por formações físicas e
biológicas ou por conjuntos de formações de valor universal
excepcional do ponto de vista estético ou científico;
- as formações geológicas e fisiográficas, e as zonas estritamente
delimitadas que constituam habitat de espécies animais e vegetais
ameaçadas de valor universal excepcional do ponto de vista estético
ou científico e
- os sítios naturais ou as áreas naturais estritamente delimitadas
detentoras de valor universal excepcional do ponto de vista da
ciência, da conservação ou da beleza natural.

O Morro do Cruzeiro é um patrimônio cultural. Caracteriza-se como um sítio.


Foi construído pela ação do homem que ocupou um espaço e, ao longo de sua
história, passou a fazer parte do cotidiano dos cidadãos sanraimundenses.

Por serem frágeis, os bens culturais e naturais são ameaçados. As ameaças


vão desde as catástrofes até o envelhecimento. Além disso, estão expostos a
agentes físicos e químicos de intemperismo. Sofrem também os efeitos da evolução

78
A Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura,
reunida em Paris, de 17 de outubro a 21 de novembro de 1972.
260

da vida social e econômica das sociedades em que estão inseridos. Preservar é, por
isso, livrar o patrimônio de algum mal, mantê-lo livre de corrupção, perigo ou dano,
conservá-lo, defendê-lo e resguardá-lo (LEMOS, 1987, p. 24). Em sua historia, o
Morro do Cruzeiro sofreu uma série de mudanças. Foi-se destruindo,
descaracterizando-se. Sofreu constantes modificações. Em cada intervenção,
perdeu características. Como parte do patrimônio material e imaterial da cidade, o
cruzeiro e o morro que o abriga devem ser preservados.

1.1 A CULTURA IMATERIAL E OS EX-VOTOS

A verdadeira cultura brasileira é a cultura imaterial, facilmente assimilada pela


população. Na região Nordeste do Brasil, o acervo imaterial é constituído de saberes
que formam parte da vida cotidiana das comunidades e são transmitidos de geração
em geração. São técnicas, procedimentos e objetos funcionais do dia a dia. São
também festividades religiosas ou seculares, destinadas a lembrar acontecimentos
associados a eventos e fatos vivenciados pelos antepassados. São, ainda, histórias
e transmitidas pela tradição oral, verdadeiras enciclopédias de informações e de
comportamentos que, historicamente, permitiram às novas gerações intuir sobre os
riscos a que estão expostos (PESSIS, 2006). Cultura imaterial é, então, o conjunto
de práticas, expressões, conhecimentos, técnicas, objetos, artefatos, lugares que
são partes do cotidiano e, conseqüentemente, fazem parte da cultura de um grupo.

Segundo o IPHAN (2011):


O patrimônio imaterial é transmitido de geração em geração e
constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de
seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história,
gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo
assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade
humana.

O termo ex-votos vem do latim. Significa o pagamento de uma promessa ou o


agradecimento de um favor ou de uma graça concedida por um santo, ou seja, é um
voto alcançado. Os materiais dos ex-votos são diversos. Eles são confeccionados
em madeira, cera, gesso, barro, papelão ou tecido. Representam partes enfermas
do corpo humano, curadas pela interferência de algum santo. São objetos oferecidos
aos santos, configurando-se como uma prática religiosa que reflete a crença e as
261

atitudes do homem diante da vida, da doença, da morte e do perigo. Expressam


também suas ambições, seus desejos e também suas alegrias.

A designação ex-voto aplica-se a um quadro, pintura ou objeto, placa com


inscrições, figura esculpida em madeira ou cera a que se conferiu uma intenção
votiva. O voto é a promessa, o ato anterior à graça que, uma vez alcançada, é
cumprida pela gratidão do prometido, na oferta do ex-voto (GÓES, 2009).

A origem dos ex-votos é desconhecida. Sabe-se que eles eram muito


utilizados na antigüidade. É uma prática tão antiga quanto a história da humanidade
(LINDOSO, FERRETTI, 2006, p. 616). No Brasil, esta prática sobrevive até os dias
atuais. Sua presença é muito forte no Nordeste do Brasil, mas, há também registros
dela em todo o Brasil.

Em toda a micro-região de São Raimundo Nonato, há relatos de que ainda


existe essa prática. Um exemplo concreto desse tipo de ritual acontece no sitio Toca
do Cruzeiro, localizado no Parque Nacional Serra da Capivara. Neste local, há a
devoção aos santos e, em conseqüência, a prática de ex-votos. Esse fato também
ocorre no Morro do Cruzeiro, na cidade de São Raimundo Nonato.

No sitio Toca do Cruzeiro, existe um pequeno cruzeiro edificado pelos


moradores do povoado de Sítio do Mocó, município de Coronel José Dias. No sítio
Morro do Cruzeiro, em São Raimundo Nonato, há também um cruzeiro que é um dos
maiores símbolos de religiosidade popular.

2 A HISTÓRIA ORAL COMO METODOLOGIA

A História Oral é um procedimento metodológico. Com ela, registram-se


narrativas induzidas e/ou estimuladas, testemunhos, versões e interpretações em
múltiplas dimensões: factuais, temporais, espaciais, conflituosas e/ou consensuais
(DELGADO, 2006, p. 13). É também conhecida como História Oral Contemporânea.

A História Oral Contemporânea, como se convencionou chamar, surgiu em


meados do século XX, após a invenção do gravador de fita. Além de uma
metodologia de pesquisa, auxilia na constituição de fontes para o estudo da História
Contemporânea (NAKAMURA e CRIPPA, 2010). É o método de pesquisa utilizado
262

nas entrevistas e em outros procedimentos articulados entre si, para registrar


narrativas das experiências humanas.

No Brasil, a História Oral começou a ser adotada, na década de 1970. Uma


das suas primeiras experiências aconteceu no Museu da Imagem e do Som de São
Paulo. Mais tarde surgiu o interesse por tal área, no Museu do Arquivo Histórico da
Universidade Estadual de Londrina – PR.

No ano de 1975, a Universidade Federal de Santa Catarina implantou um


laboratório específico de História Oral. Foi, porém, o Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC, implantado no Rio
de Janeiro, também em 1975, que obteve o maior êxito com esse método.

Atualmente, tal método é utilizado por profissionais que atuam nos meios de
comunicação, como emissoras de rádio e televisão, jornais e revistas. Grandes
reportagens e biografias, filmes e documentários têm feito uso de depoimentos,
fotografias e ilustrações para sua produção (GOVEIA, 2009).

Falar da Historia Oral é falar também e principalmente da memória. É pelas


lembranças que as pessoas guardam em suas memórias que se constrói a história
contada. Neste sentido, vale ressaltar que a memória é uma maneira que o homem
tem de conservar informações para usá-las no futuro, atualizando-as com suas
impressões ou informações de um tempo passado (LE GOFF 2003, apud
SANTANA, 2010). Segundo SANTANA (2010), para se analisar uma história, a partir
da memória individual ou coletiva, precisa-se estar preparado para se deparar com
seus estágios e desafios. Cada indivíduo tem uma visão subjetiva de tudo, a partir
das experiências pessoais. Ele liga os fatos, diretamente, com a sua experiência.

Para se preservar um patrimônio, o método da Historia Oral é bastante útil.


Ele permite contextualizar e até mesmo reforçar fatos registrados em documentos
escritos. Deve-se, porém, levar em conta que, assim como as lembranças da
memória podem trazer benefícios para a pesquisa, elas também podem gerar
problemas. Os depoentes elaboram suas afirmações a partir de suas experiências.

Com base nisso, utilizou-se esse método para a coleta de depoimentos.


Levou-se em conta a sua fragilidade. Procurou-se, por isso, extrair o máximo de
informações possíveis para imprimir caráter científico à pesquisa cujo objetivo
263

principal é resgatar e registrar informações obtidas em depoimento, para que os


rituais praticados não se percam no esquecimento da população.

Realizou-se um levantamento bibliográfico, com a procura por pesquisadores


que atuaram nessa área específica da preservação patrimonial, da cultura imaterial
e dos ex-votos que se estendem até os cruzeiros. Em seguida, produziu-se um
questionário cujo objetivo era colher informações sobre o cruzeiro e sobre o ritual
dos ex-votos. Em primeiro lugar quis-se saber quando se deu o início da construção
do cruzeiro na cidade. Pretendeu-se saber, também, se ele sempre foi conhecido
com o nome atual. Depois, fez-se a pergunta a respeito da existência de
documentos relativos ao mesmo. Em seguida, questionou-se sobre os rituais e as
graças alcançadas. Após estas perguntas perguntou-se aos entrevistados sobre o
que aconteceu com os restos do antigo cruzeiro e dos ex-votos. Buscou-se saber,
também, quem foi responsável pela construção do novo cruzeiro e como está a
devoção da população atual da cidade. Quis-se saber se esta ainda realiza os rituais
do cruzeiro e dos ex-votos, apesar das mudanças ocorridas ao longo do tempo.
Especulou-se ainda sobre a prática de rituais neste cruzeiro, para saber se ainda
existe, quais são e onde são guardados os ex-votos.

Seguiu-se com a produção dos documentos de autorização dos depoentes


para a divulgação das suas declarações. Fez-se, então, a pesquisa de campo para
coleta dos depoimentos. Neles, foram relatados fatos relativos ao Morro do Cruzeiro,
às promessas e aos ex-votos. Priorizou-se, como público alvo, as pessoas mais
idosas da cidade.

3 A CRENÇA COMO ATRIBUTO DA IDENTIDADE SANRAIMUNDENSE

No ano de 1674, o português Domingos Afonso Sertão conquistou o Piauí,


por meio de lutas sangrentas com as tribos indígenas que ocupavam a região. Seu
povoamento ocorreu de maneira diferenciada das demais capitanias. Foi
conquistado a partir do interior (do Rio São Francisco) para o litoral. Seu
desbravador fundou ali várias fazendas de gado, de modo que, ao retornar à Bahia,
onde tinha residência, deixou 30 fazendas de gado, administradas por vaqueiros de
sua confiança (MOTT, 1985, p. 72).
264

Segundo GOVEIA (2009), por volta da primeira metade do século XVIII,


índios, jesuítas herdeiros das terras de Domingos Afonso e posseiros instalaram, no
Vale do Canindé, prósperas fazendas de gado. Daí surgiu um intenso comércio com
a vila de São Gonçalo do Amarante e principalmente com a Bahia. Em uma dessas
fazendas, denominada Conceição, os jesuítas edificaram o Sobrado, marco inicial da
ocupação. Assa região corresponderia ao município de São Raimundo Nonato. Um
decreto regencial, em 1832, desmembrou-o dos municípios de Jaicós e Jerumenha,
nomeando-o Freguesia de São Raimundo Nonato.

Em 1832, pouco tempo após sua elevação a distrito eclesiástico, a freguesia


de São Raimundo Nonato foi situada na localidade chamada Confusões. Anos mais
tarde, em 1836, esta perdeu seu posto de sede da freguesia, sendo transferida para
uma nova sede chamada de Jenipapo. Esta contava com algumas edificações
residenciais e uma feira que acontecia semanalmente.

Sobre o surgimento da freguesia, Dias (2001, p. 31) afirma que “para dirimir
tão confusa situação, veio o Decreto Regencial, de 6 de julho de 1832, criando uma
freguesia eclesiástica com o nome de São Raimundo Nonato”. A freguesia ganhou
esse nome em homenagem ao santo. Devotos dele logo construíram uma pequena
capela que levou seu nome como homenagem. Por ter surgido de uma fazenda de
gado, a cidade de São Raimundo Nonato, até hoje, tem este santo como protetor e
padroeiro dos vaqueiros. Gouveia (2009) afirma que a construção da capela ocorreu
nesta mesma época do decreto que deu origem à freguesia de São Raimundo
Nonato, antes subordinada aos municípios de Jaicós e Jerumenha.

Em 1876, construiu-se a igreja matriz de São Raimundo Nonato. Paralelo a


esta construção, plantava-se o primeiro cruzeiro da cidade na frente da igreja (Fig. 1).
O responsável por essa construção foi o Padre Henrique José Calvalcante.

Com o desenvolvimento do setor agropecuário e o crescimento demográfico, a


fazenda Jenipapo foi elevada à categoria de vila, por meio da Lei provincial nº 257, de
12 de agosto de 1850. Com o passar dos anos, a vila de São Raimundo foi elevada à
categoria de cidade, por efeito da lei estadual nº 669, de 25 de junho de 1912
(GOVEIA, 2009). Com o status de cidade, o Município de São Raimundo Nonato,
começou sua trajetória de desenvolvimento e de acontecimentos que foram, ao longo
do tempo, marcando sua história (Fig. 2).
265

Figura 1 – Igreja Catedral de São Raimundo Nonato – PI (Fonte: acervo da FUMDHAM)

Figura 2 – Antiga Praça Getúlio Vargas, popularmente conhecida como rodinha do Bitoso,
atual praça Júlio Paixão (Fonte: Acervo da FUMDHAM)
266

Marcada pelas chuvas escassas e pelo solo pobre, essa região não era
propícia à monocultura de cana-de-açúcar, diferentemente das muitas cidades do
litoral nordestino, que tiveram sua economia baseada nesse tipo de cultivo. Por outro
lado, era uma área favorável ao desenvolvimento da pecuária extensiva, que foi
praticada até o final do século XIX, quando a seca constante e as dificuldades de
transporte se acentuaram, causando a decadência dessa atividade.

Concomitante ao declínio da pecuária extensiva, a extração do látex para


produção de borracha que abastecia a indústria automobilística alcançava uma
posição de destaque, nas últimas décadas do século XIX e início do século XX
(OLIVEIRA 2009). O extrativismo da maniçoba para a produção de borracha ocorreu
em duas fases de maior expressão. A primeira foi do final do século XIX até as duas
primeiras décadas do século XX. A segunda fase teve início a partir de 1940,
quando houve um domínio dos japoneses nos mercados asiáticos em virtude da
Segunda Guerra Mundial e, por esta razão, os americanos novamente incentivaram
a produção da maniçoba no Sudeste do Piauí, que permaneceu de forma contínua
até 1960 (OLIVEIRA, 2001).

De acordo com o IBGE, atualmente a cidade de São Raimundo Nonato


possui uma população de 32.327 habitantes e uma unidade territorial de 2.415,592
km². Sua sede fica a 576 km de Teresina, capital do Piauí. Passou a ser
considerado como município pólo da microrregião de São Raimundo Nonato. Sua
economia está basicamente distribuída entre setores do comércio e do turismo.

O turismo tornou-se uma atividade bastante viável para a região. Seu


território abriga parte do Parque Nacional Serra da Capivara, tombado pela
UNESCO, em 1991, como Patrimônio da Humanidade. E em 2002 foi oficializado o
pedido para que o mesmo seja declarado Patrimônio Natural da Humanidade
(RIBEIRO, 2009). O turismo veio para alavancar o desenvolvimento. Além de
marcar e modificar completamente a história da cidade de São Raimundo Nonato, o
turismo traz benefícios para as outras cidades da mesorregião do Sudeste
piauiense e para o estado como um todo.
267

3.1 A POPULAÇÃO E A RELIGIÃO

Até 12 de agosto de 1850, a história civil e eclesiástica de São Raimundo


Nonato é, em maior parte, a do Município de Jaicós e, em menor parte, a do
Município de Jerumenha, dos quais foi desmembrado para constituir-se vila
(ENCONTROS DE EVANGELIZAÇÃO E MEMORIAL DA DIOCESE E DAS
PARÓQUIAS (2006, p. 52).

A história da Diocese e da Paróquia de São Raimundo Nonato não pode ser


contada separadamente. Devido à dificuldade de se chegar a Bom Jesus do
Gurgueia, os bispos e prelados instalavam-se em São Raimundo Nonato.

Este foi reconhecido como distrito eclesiástico em 1832, pelo decreto da


Regência do Império em 06 de julho do mesmo ano, com o nome de Freguesia de
São Raimundo Nonato com sua sede num lugar chamado Confusões. Neste local
foi se formando, aos poucos, uma vila que seria conhecida como São Raimundo
Nonato, oficialmente reconhecida em 04 de março de 1851.

O desenvolvimento deste item é necessário que se entenda quem foi


Raimundo Nonato que. Esse santo está intimamente ligado à história da cidade e,
de certa forma, está ligado diretamente à pratica religiosa de devoção ao Morro do
Cruzeiro.

3.1.1 São Raimundo Nonato

São Raimundo nasceu em Portell, pequeno povoado da região da Catalunha,


a Nordeste da Espanha. Seus pais eram humildes, apesar de descenderem da
família dos Viscondes de Cardona.

Em 1302, a mãe de Raimundo Nonato entrou em trabalho de parto e, devido


a complicações e à falta de assistência médica, não resistiu e morreu com seu filho
ainda no ventre. Este foi tirado com vida de sua mãe já falecida, com a ajuda de
Raimundo de Folch, Visconde de Cardona. O Visconde deu à criança o seu nome e
acrescentou o sobrenome de Nonato (não nascido) pelo mistério de sua vida. Este
Visconde tomou-o sob sua proteção e comprometeu-se pela sua educação. Ele
268

cresceu em seu povoado. Desde pequeno aprendeu suas primeiras orações.


Posteriormente teve seus primeiros ensinamentos na escola paroquial de Portell
(NEGREIROS, 2003).

Na sua adolescência, foi iniciado na carreira militar. Por insegurança de seu


pai que temia o seu envolvimento com a vida religiosa, foi trazido de volta para sua
cidade natal onde ficou cuidando do rebanho da família. Daí surgiu a devoção ao
santo como padroeiro dos vaqueiros. Esse distanciamento de nada adiantou porque,
com isso, ele aproximava-se cada vez mais da vida religiosa que tanto sonhava.

Em 1224, ingressou na Ordem de Nossa Senhora das Mercês, que tinha


como finalidade libertar cristãos que caíam nas mãos dos mouros e eram feitos
escravos. Ordenou-se sacerdote e seus dotes de missionário vieram à tona. Em
1335, aos 33 anos de idade, Raimundo Nonato foi enviado para Redenção, na
Argélia. Lá conseguiu libertar alguns prisioneiros e devolvê-los às suas famílias. Mas
nem sempre isso era possível, já que não se tinha os recursos financeiros
necessários. Com isso, Raimundo se ofereceu para ficar como refém. Permaneceu
como prisioneiro por oito meses, até que a expedição mercedária veio com dinheiro
para libertá-lo junto com os outros prisioneiros. Lá ele sofreu verdadeiras torturas e
humilhações, mas jamais desistiu da sua missão.

Libertado da prisão, retornou à Espanha, com sua saúde abalada. Em 1338


aos 33 anos de idade, Raimundo Nonato foi convidado pelo Papa Bento XII, a ser
nomeado cardeal, em Consistório de dezembro de 1338.

Seu jeito de pregar a palavra de Deus não agradava a todos. Ele foi
denunciado e condenado à morte. Percebendo, porém, que deixariam de ganhar
com a morte dele a solução que os mouros encontraram como castigo para
Raimundo foi perfurar os seus lábios com um ferro quente, e a fechar com um
cadeado. Sofreu outros tipos de castigos. Foi açoitado nas ruas e praças da cidade
e foi preso em uma masmorra (NEGREIROS, 2003, p. 21).

Apesar das várias tentativas de impedir que Raimundo continuasse a pregar a


palavra de Deus, eles não conseguiram. Quando teve sua boca perfurada e fechada
com um cadeado, ele continuou a transmitir seus ensinamentos por meio de sinais.

Em 31 de agosto de 1339, devido à saúde debilitada pelos sofrimentos do


cativeiro, Raimundo Nonato foi acometido de forte febre e acabou morrendo, aos 37
269

anos de idade. Seu túmulo tornou-se local de peregrinação, sendo erguida ali uma
igreja, para abrigar seus restos mortais.

As graças alcançadas pelo seu intermédio cresciam cada vez mais. Com isso,
tendo em conta todos os testemunhos e fatos, a Igreja propôs-se a examinar sua
vida e suas virtudes. Com o passar dos dias, as solicitações para canonização deste
santo cresciam mais e mais. Em dezembro de 1628, Raimundo Nonato foi
canonizado (Fig. 3). Para sua comemoração foi escolhido o dia 31 de agosto. Devido
à condição difícil do seu nascimento, São Raimundo Nonato é também venerado
como padroeiro das parturientes, das parteiras e dos obstetras (NEGREIROS, 2003,
p. 36).

Para Dias (2001, p. 48): “(...) Não [foi] só pela fé, mas, também, pela razão,
que o nome do Distrito-Freguesia foi adotado em homenagem ao Santo de Portell,
por seu martírio. São Raimundo Nonato é festejado no dia 31 de agosto, data da sua
morte” (Fig. 4). Como o próprio nome da cidade propõe, a grande maioria da
população era e continua sendo católica apostólica romana.

Em 1218 foi fundada a Ordem de Nossa Senhora das Mercês, por intermédio
de São Pedro Nolasco. Tempos mais tarde, o papa João Paulo II elevou a Prelazia
de São Raimundo Nonato à categoria de Diocese, fato que aconteceu em 03 de
outubro de 1981.

3.1.2 A Igreja Católica na cidade de São Raimundo Nonato

A história da cidade de São Raimundo Nonato é importante para a


compreensão de como se deu o processo de implantação das práticas religiosas. O
relato da implantação da entidade católica é, também, importante. Ambos os fatos
estão diretamente ligados ao cruzeiro porque, para o catolicismo, a cruz é o sinal
máximo da fé. Sem a cruz não há salvação. Relatos atribuídos a Jesus Cristo,
afirmam que: “Quem quiser salvar-se, tome a sua própria cruz e siga-me”. Os
protestantes, por exemplo, não adotam a cruz porque entendem que não precisa
haver esforço pessoal para salvar-se. Afirmam que Jesus já carregou a cruz pela
salvação de todos. Para eles basta acreditar em Jesus e a salvação é alcançada.
270

Figura 3 – Imagem de São Raimundo Nonato (Fonte: Elisabeth Belarmino Veiga)


271

Figura 4 - Imagem de São Raimundo Nonato em procissão (Fonte: Acervo pessoal de


Elisabeth Belarmino Veiga)

Para que se entenda como se deu o processo de implantação da entidade


católica na cidade de São Raimundo Nonato é necessário que se relate pelo menos
uma pequena parte desta historia.

Pela Bula Supremum Catholicum Ecclesiam, emitida a 10 de março de 1901,


o Piauí passava a ser uma Província Eclesiástica independente do Maranhão. O
primeiro bispo eleito para a nova província eclesiástica foi o Mons. Fabrício de
Araújo Pereira que não aceitou o cargo, ficando administrada por um Administrador
Apostólico até 1906. Nesse ano foi nomeado Dom Joaquim Antônio de Almeida que
a administrou até 1910. Seu sucessor foi Dom Otaviano Albuquerque que iniciou seu
mandato, visitando as comunidades do sul do Piauí (ENCONTROS DE
EVANGELIZAÇÃO E MEMORIAL DA DIOCESE E DAS PARÓQUIAS (2006, p. 45 )

A 18 de julho de 1920, pressionada pelo Núncio Apostólico do Rio de Janeiro,


a Santa Sé emitiu a Bula Ecclesia Universae, criando a Prelazia de Bom Jesus do
Gurguéia. Em Roma, foi eleito bispo o padre Inocêncio López Santamaría. Este
aceitou a proposta da Prelazia de Bom Jesus do Gurguéia e indicou para
administrador apostólico o padre Pedro Pascual Miguel Martinez que chegou a São
Raimundo Nonato, em julho de 1922.
272

Dom Pedro Pascual foi nomeado o mestre geral desta prelazia, em 18 de


dezembro de 1924, e, no dia 25 de julho de 1925, foi ordenado bispo. Em 05 de
maio de 1926 veio a falecer. Com sua morte foi substituído pelo padre Mariano
Ferrer, temporariamente substituído pelo padre Francisco Freiria Mallo.

Anos mais tarde, a Santa Sé nomeou Dom Ramón Vicente Hárrison Abello ou
D. Ramón Harrison, mercedário do Chile. Este tomou posse, em São Raimundo
Nonato, no dia 04 de outubro de 1927 e permaneceu na Prelazia, apenas 22 dias.
Devido a problemas de saúde, apresentou sua renúncia ao Santo Padre. Veio a
falecer no dia 09 de agosto de 1949 (ENCONTROS DE EVANGELIZAÇÃO E
MEMORIAL DA DIOCESE E DAS PARÓQUIAS (2006, p. 47).

Em 31 de agosto de 1951, foi ordenado o terceiro bispo Dom Inocêncio


López Santamaría que chegou, no início da década de 30, tomando posse em São
Raimundo Nonato, no dia 18 de fevereiro de 1931.
Dom Inocêncio, como era conhecido, foi o grande motivador e impulsionador
da fundação da Congregação Missionária das Irmãs Mercedárias do Brasil, fundada
em 10 de agosto de 1938 pela Madre Lúcia Etchepare. Era uma das maiores forças
políticas da cidade. Dirigiu a Prelazia por 27 anos, vindo a falecer em 09 de março
de 1958, em São Raimundo Nonato. Seu corpo encontra-se sepultado na catedral
desta cidade.
Dom José Vázquez Días, foi ordenado bispo auxiliar de Dom Inocêncio no dia
09 de setembro de 1956. Chegou, em São Raimundo Nonato, no mês de março,
com a condição de morar na sede da Prelazia, em Bom Jesus do Gurguéia. Sua
condição foi aceita e ele foi morar na sede. Com o falecimento de Dom Inocêncio,
em 09 de março de 1958, Dom José sucedeu-o como quarto Prelado, transferindo-
se definitivamente para Bom Jesus, sede da prelazia (ENCONTROS DE
EVANGELIZAÇÃO E MEMORIAL DA DIOCESE E DAS PARÓQUIAS (2006, p. 48).
D. José Vázquez, era auxiliar de D. Inocêncio quando assumiu a Prelazia.
Esta era muito grande para que ele administrasse-a sozinho. Devido a essa
dificuldade e por outros motivos, ele solicitou que fosse criada a Prelazia de
Raimundo Nonato. Este fato ocorreu no dia 05 de janeiro de 1959. O pedido foi
atendido e autorizado por Bula Papal de João XXIII, em 17 de dezembro de 1960.

Com a criação da Prelazia de São Raimundo Nonato foi nomeado o seu


primeiro prelado, D. Amadeo González Ferreiros que tomou posse em 06 de maio
273

de 1962. Em 19 de maio de 1963, foi nomeado Bispo. Anos mais tarde, por motivos
de saúde, ele comunicou sua renúncia à Santa Sé. D. Amadeu morreu em Madri, no
dia 20 de março e foi enterrado em Síndran, na Espanha, sua cidade natal.

Para substituir D. Amadeo, o Papa Paulo VI, em 05 de dezembro de 1969,


nomeou o Pe. Cândido Lorenzo González como Bispo titular de Scardona e Prelado
da Prelazia de São Raimundo Nonato.
D. Cândido foi sagrado Bispo na Igreja de Nossa Senhora das Mercês, Rio de
Janeiro, pelo Cardeal D. Jaime de Barros Câmara, em 19 de março de 1970. Tomou
posse da Prelazia de São Raimundo Nonato, no dia 05 de abril do mesmo ano.

No dia 03 de outubro de 1981, o Papa João Paulo II elevou a Prelazia de São


Raimundo Nonato à categoria de Diocese. D. Cândido foi o primeiro Bispo
Diocesano. Em 04 de setembro de 2000, aos 75 anos de idade, D. Cândido
apresentou sua renúncia ao Santo Padre. Ele permaneceu na Prelazia e Diocese de
São Raimundo Nonato no período de 32 anos e cinco meses (ENCONTROS DE
EVANGELIZAÇÃO E MEMORIAL DA DIOCESE E DAS PARÓQUIAS (2006, p. 50 ).

D. Cândido ficou mais dois anos para que pudesse ser nomeado seu
sucessor D. Pedro Brito Guimarães, o segundo Bispo da Diocese de São Raimundo
Nonato. No dia 14 de setembro de 2002, Dom Pedro tomou posse.

No mês de novembro de 2010, D. Pedro convidou D. Cândido para voltar para


São Raimundo Nonato porque o mesmo recebera um convite para ser arcebispo de
Palmas, Tocantins. D. Cândido aceitou voltar, levando em conta também a sua
idade avançada. Retornou a São Raimundo Nonato, onde se encontra até hoje.

3.1.3 A atualidade da crença religiosa em são Raimundo Nonato

Desde o seu surgimento, a cidade de São Raimundo Nonato sempre esteve


ligada, fortemente, à religião Católica Apostólica Romana. Segundo dados do IBGE,
no ano 2000, em São Raimundo Nonato, 24.899 eram católicos; 1.588 eram
evangélicos; 209 eram de outras religiões e 194 não tinham religião. Inexistem
resultados nas outras opções de religião como, Umbanda e Candomblé, Judaica,
orientais e não determinadas (Fig. 5).
274

Figura 5 – Gráfico com dados relativos às religiões existentes na cidade de São Raimundo
Nonato (Fonte: IBGE, 2000)

3.2 OS CRUZEIROS E AS PROMESSAS

A relação da população da cidade de São Raimundo Nonato está, de fato,


ligada à religiosidade. Dentre as práticas, as mais utilizadas da religião católica são
o culto aos cruzeiros e a devoção aos santos.

É na religião que o homem se apóia no momento da busca pela identificação


dos valores que regem sua existência. Procura um refúgio para angústias inatas,
estabelecendo contrapontos entre o bem e o mal, o certo e o errado. Fundamenta-se
na experiência grupal onde o místico assume os valores religiosos, sendo estes,
benéficos ou maléficos (AQUINO, 2009).

Dentro da cultura imaterial encaixam-se os ex-votos. Essa prática de


colocação de ex-votos em agradecimento a graças alcançadas, era comum nas
práticas religiosas que aconteciam no Morro do Cruzeiro.
275

Os praticantes apegam-se a devoções e esperam vantagens. Apóiam-se em


promessas para se protegerem durante a conquista de novas terras, para soluções
de problemas espirituais, materiais e de enfermidades (GOÉS, 2009).

No Morro do Cruzeiro colocavam-se ex-votos, em agradecimento a graças


alcançadas, geralmente curas de enfermidades. Agradeciam-se, também, a chuvas
copiosas que caíam no final dos períodos de grande seca.

Segundo Marques e Oliveira (2007) “No imaginário mítico-religioso dos


devotos cristãos, o Santo Cruzeiro está investido de poder, assim como outros
santos da igreja católica”. Isso mostra um tipo de relação que acontece e que serve
de exemplo para o modo como o Morro do Cruzeiro é visto ou era visto pelas
pessoas que nele criam ou crêem. Para as pessoas esse Santo Cruzeiro tinha e tem
o mesmo poder ou muito semelhante ao dos santos católicos.

3.2.1 A história escrita

Relatam-se, aqui, trechos da história dos cruzeiros da cidade de São


Raimundo Nonato. O Padre Herculano de Negreiros, assim escreve79:

Em 1850, esse Distrito-Freguesia foi elevado à categoria de Vila. A


instalação da nova Comuna favoreceu o progresso desse Distrito,
que atingiu rápido desenvolvimento. O Distrito- Freguesia era
visitado por sacerdotes forâneos advindos de Jaicós. Foram eles
que construíram, em 1836, a primeira capela, à frente da qual
plantaram uma Cruz. Notícias eclesiásticas dão como primeiro
pároco residente em São Raimundo Nonato, o Pe. Henrique José
Cavalcante. Em 1876, o Pe. Cavalcante concluiu, no lugar da antiga
capela, o belo e grandioso templo, dedicado a São Raimundo
Nonato, hoje catedral diocesana (Fr. Geman Garcia). Um belíssimo
cruzeiro, obra inédita no gênero, na arquitetura sacra do Piauí, foi
plantado no local da primitiva capela que deu origem à atual igreja
catedral.
Em 29/07/1900, carcomido pelo tempo, aquele madeiro ruiu.
Interpretado o fato, como um castigo de Deus, o povo guardou
reverentemente aquele toro caído e, pranteando sua ausência,
tratou de plantar no lugar uma cruz mais bonita.
Quando da re-implantação do novo cruzeiro da frente da matriz,
também numa colina próxima, ao nascente foi reinstalada, em
tamanho menor, uma réplica do que fora reconstruído na frente da
igreja matriz. E a partir deste momento, esta colina passou a ser

79
Encontra-se o texto transcrito no livro ainda não publicado O Fascínio da Cruz, de Padre
Herculano de Negreiros.
276

denominada piedosamente por Morro do Santo Cruzeiro, assim


denominado até os dias de hoje.
Em 1964, o então prefeito da cidade, Gaspar Dias Ferreira, a
pretexto de urbanizar aquela praça, destruiu o magnífico cruzeiro,
construído pelo padre Henrique Cavalcante, um século antes-1864
e restaurado, 60 anos atrás, em 1904.
A cruz do Morro do Cruzeiro, empurrada pela roda do tempo,
resistiu aos anos e ao espírito predador de governantes sem
escrúpulos, até 1994, quando o prefeito Hamilton a substituiu por
outra, desta vez feita de concreto com 5 metros de altura sobre uma
base também de concreto. Esta agora com pontos de luz nas hastes
vertical e horizontal ganhara uma área de terreno no entorno com Lei
de tombamento, promovida pela Câmara Municipal.
No ano 2000, por motivo da virada do milênio, uma nova cruz, desta
vez em estrutura metálica, de 25 metros de altura e recoberta de
vitral e zinco, foi elevada no lugar da anterior.

Este fragmento do texto retirado de um livro não publicado, mostra de forma


clara, que houve várias mudanças nos cruzeiros. O primeiro momento aconteceu
quando havia somente a capela. São Raimundo Nonato era vila. Quando se
construiu a Igreja Catedral, colocou-se essa cruz no local antes pertencente à
capela. Com o passar dos anos, essa cruz caiu. Ela foi, então, substituída por outra.
Junto a essa implantação, fez-se uma réplica que foi colocada no morro. Ao longo
dos anos, um prefeito retirou a cruz da frente da igreja, agora permanecendo
somente a do morro. Anos mais tarde, esta foi substituída por uma cruz de concreto
que, por sua vez, foi substituída pela cruz que se encontra no morro até hoje.

3.2.2 A história falada

Com base nos depoimentos coletados, pode-se afirmar que, na memória da


população, ainda há lembranças relacionadas ao Morro do Cruzeiro ou do Santo
Cruzeiro.

Segundo o Pe. José Herculano de Negreiros, a cruz foi implantada, pela


primeira vez, na frente da capela, em 1836. Ela é anterior à catedral cuja
inauguração aconteceu em 1876.

Ainda segundo o Pe. José Herculano de Negreiros, quando estava


acontecendo a construção da catedral, foi colocada um cruz de madeira que tinha no
máximo uns três metros de altura. Essa cruz de madeira ficava em um pequeno
pedestal, de 70 centímetros de altura, que era de pedra rachão e cal. Ali perdurou
277

até o início do governo de Hamilton Baldoíno. Este prefeito substituiu a cruz de


madeira por uma de concreto de uns cinco metros de altura, com o pedestal.

Relacionado a este fato, em 1876, ano da inauguração da catedral, no local


da capela substituída pela catedral, foi implantada uma cruz. Com o passar dos
anos, mais especificamente no ano 1900, esta cruz caiu. Com essa caída que foi
bastante lamentada pela população, foi logo edificada outra em seu lugar. Paralelo a
esse acontecimento também foi implantada uma cruz de menor tamanho, na colina
próximo à catedral, local esse que passou a ser conhecido como Morro do Santo
Cruzeiro ou Morro do Cruzeiro como é chamado até hoje.

Em 1964, o cruzeiro que ficava em frente à Igreja Catedral foi derrubado pelo
prefeito da época. Restou, assim, somente a cruz da colina. Em 1994 o então
prefeito Hamilton Baldoino, substitui a cruz de madeira por uma de concreto, com
pontos de luz nas hastes (Fig. 6). Após a cruz de concreto que substituiu a de
madeira, no ano de 2000, edificou-se um cruzeiro, de vitral e zinco, com 25 metros
de altura (Fig. 7).

Figura 6 - Cruz de concreto (Fonte: Acervo do Colégio Edith Nobre de Castro)


278

Figura 7 – A atual cruz do Morro do Cruzeiro (Fonte: Acervo pessoal dos autores, 2011)
279

A relação da população com o Morro do Cruzeiro está diretamente ligada à


crença das promessas. Segundo o Pe. José Herculano de Negreiros, as pessoas
tinham o local como um lugar sagrado, um local de adoração e de devoção e até
mesmo de peregrinação. Lá colocavam os seus ex-votos, como partes do corpo,
pedaços de braço, perna, orelha e cabeça.

Segundo D. Cândido Lorenzo Gonçalez, Hercília de Castro Damasceno e


Maria de Lourdes Santana Veiga, as pessoas também pediam graças como chuva,
nos períodos de seca.

Somente uma parte dos entrevistados fez algum tipo de promessa. Na


maioria, essas promessas eram para pedir saúde como relatam Hercília de Castro
Damasceno, Luiza Landim Pindaíba, Maria Landim Pindaíba Silva e Raimunda da
Silva Souza. Maria Hildenir dos Santos, diferentemente das demais, fez promessa
para seu filho prosperar nos estudos.

Para pagar sua promessa, ela subiu o morro do cruzeiro e rezou o terço de
joelhos. Soltou fogos de artifício em agradecimento pela graça alcançada. O fato
ocorreu quando ainda não havia escadaria. Existia somente um carreiro.

Quando perguntados sobre os restos do cruzeiro anterior, mais de metade


dos entrevistados respondeu que não sabe que fim eles tiveram. O Pe. Herculano de
Negreiros supõe que uma pessoa das proximidades do cruzeiro guarda pedaços da
cruz anterior à atual, porém esta especulação é somente uma possibilidade
levantada por alguns populares.

O mesmo acontece quando se questiona sobre o destino que tiveram os ex-


votos. A maioria das pessoas identificadas não sabe que fim eles tiveram. D.
Cândido Lorenzo Goncalez, Pe. José Herculano de Negreiros, Isabel de Castro
Paixão Filha e Maria Landim Pindaíba Silva supõem que foram desaparecendo, ao
longo do tempo. Eles acham que o seu desaparecimento deu-se por ação antrópica
ou pela ação da natureza. O Pe. José Herculano afirma que, aos poucos, os ex-
votos foram desaparecendo por conta do desaparecimento da própria devoção do
povo, quando a cruz de madeira foi substituída pela de concreto.

Com o processo de modificação do Morro do Cruzeiro, esperava-se que a


população perderia elementos da sua tradição. As constantes mudanças geraram
descrença popular. O Pe. José Herculano de Negreiros diz que as pessoas
280

acreditavam mais no antigo por que as pessoas, hoje em dia, não têm mais aquela
devoção de antes. Hoje, o que há no local é a falta de respeito. Este local deveria
ser sagrado.

Há pessoas que acreditam que, apesar das mudanças ocorridas, a fé que era
depositada ao antigo cruzeiro ainda é a mesma no atual, como afirmam Maria
Hildenir dos Santos, D. Cândido Lorenzo Goncalez, Hercília de Castro Damasceno,
Inácio Pereira de Souza e Raimunda da Silva Souza.

Quando questionada sobre os rituais praticados hoje no atual cruzeiro, quase


a totalidade dos entrevistados não sabe que tipo de ritual é praticado atualmente,
com exceção de D. Cândido Lorenzo Goncalez. Ele relata que o ritual que tem visto
ser praticado por lá, atualmente, são orações em voz alta.
Todos os entrevistados afirmaram que atualmente não existe um local
especifico para a guarda dos ex-votos. Segundo Isabel de Castro Paixão Filha, é
provável que eles estejam embaixo do palco.

4 ANÁLISE E RESULTADOS

De acordo com os depoimentos coletados e ao que se sabe da historia da


cidade de São Raimundo Nonato, a religiosidade ainda é um atributo marcante da
população sanraimundense. É notável, porém, que, ao longo da sua história, esta
religiosidade tem sofrido constantes mudanças. Pode-se registrar, até mesmo,
quando se deu o início e o fim de cada momento dessa religiosidade.
O que se pode afirmar é que a tradição da devoção ao Morro do Cruzeiro
ainda vive, mesmo que de forma dispersa e não tão movimentada quanto antes.
Este local sempre foi conhecido como Morro do Cruzeiro ou do Santo Cruzeiro. Ao
passar dos anos ficou conhecido, pela maior parte da população, apenas como
Morro do Cruzeiro.
As fontes documentais são muito ausentes, quase inexistentes. Encontrou-se
somente o discurso de um advogado, reproduzido em um livro não publicado, que
aqui foi citado de forma fragmentada, e a existência de uma imagem, o que
comprova a escassez de documentação referente ao cruzeiro.
281

As constantes mudanças físicas que aconteceram na estrutura de ambos os


cruzeiros, mostram que se foi perdendo fragmentos da identidade religiosa popular.
Foram sendo criadas novas características ao longo do tempo. É provável que essas
mudanças na crença continuem, promovendo escassez de ex-votos.

Resumindo a história dos cruzeiros, podem-se identificar momentos distintos.


O primeiro momento foi aquele em que se iniciou a construção da igreja matriz, em
local diferente da capela que existia anterior à sua construção. No local da antiga
capela foi implantado o primeiro cruzeiro.

Com o passar dos anos e por ser de madeira, o cruzeiro original caiu. No
mesmo local, construiu-se, então, um novo cruzeiro. Paralela e concomitantemente,
implantou-se, em uma colina próxima, uma replica em menor tamanho que o
original.

Anos mais tarde, mais especificamente em 1964, por intervenção política,


destruiu-se o cruzeiro localizado na frente da igreja catedral, restando apenas a
réplica edificada no Morro do Santo Cruzeiro ou, simplesmente, Morro do Cruzeiro.

Em 1994, mais uma vez por intervenção política, a cruz do morro foi
substituída por uma de concreto. Por fim, novamente por intervenção política,
substituiu-se a cruz de concreto por uma estrutura metálica com vitral e zinco, que ali
se encontra até os dias atuais. Assim, ao longo dos anos, por intervenções políticas,
modificou-se o patrimônio cultural, símbolo da religiosidade popular da cidade de
São Raimundo Nonato.

A devoção à réplica do cruzeiro implantada no morro passou a ser mais


fervorosa que à cruz original da frente da catedral. Este fervor evidenciava-se
quando muitas pessoas depositavam nele a sua fé, pedindo bênçãos, urgência na
cura de enfermidades e súplica para todos os tipos de graças. Esta fé concretizava-
se no atendimento aos pedidos. Ouvidas as súplicas, as pessoas sentiam-se
obrigadas a pagar suas promessas tanto pela oferta de ex-votos, quanto pelo
comprimento de outras promessas.
Pagavam-se promessas com sacrifícios como a subida do morro de joelhos
ou por abnegações menos desgastantes como a reza de terços ou acendimento de
velas. Hoje essa pratica de colocação de ex-votos está praticamente extinta. Há,
ainda, pessoas que acendem velas (Fig. 8 e 9) e sobem o cruzeiro de joelhos.
282

Figura 8 – Local onde atualmente são acesas as velas, junto ao cruzeiro (Fonte: Acervo
pessoal dos autores, 2011)

Figura 9 – Outro local, junto ao cruzeiro, onde atualmente são acesas velas (Fonte: acervo
pessoal dos autores, 2011)
283

A escassez de ex-votos no Morro do Cruzeiro pode ser um indicativo da


ausência de um local de guarda. Apesar da escassez de ex-votos, esta prática ainda
existe, porém de forma isolada.
É bastante provável que a devoção ao Morro do Cruzeiro esteja sendo
transferida para a devoção aos santos. Constata-se que hoje, esta devoção faz-se
forte e está presente na maioria dos bairros da cidade. Um exemplo disso é a
procissão da festa do padroeiro da cidade. A cada ano que passa, maior quantidade
de pessoas participam dela. Apesar de se saber que a devoção aos santos na
cidade não é um fato novo, pois a história da cidade está ligada ao santo que leva
seu nome, é notório o aumento do contingente populacional nas procissões.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A preservação patrimonial não está ligada somente aos grandes monumentos


que, por si só, mostram a sua importância para as sociedades. Ela vai muito além. É
algo que, independentemente da sua magnitude ou simplicidade, deve e merece ser
preservado. O termo preservar dá uma noção de que alguma coisa deve ser
guardada. Por este motivo a escolha deste tema, mostra porque a história do Morro
do Cruzeiro merece destaque.

A cultura imaterial relativa ao Morro do Cruzeiro foi mostrada nos


depoimentos orais. Eles permitiram visualizar a relação da população com uma
cultura que foi, por eles, montada e modificada apesar de os rituais não ocorrerem
mais da mesma forma que acontecia antigamente. Esta prática passou por
mudanças notáveis. A principal característica notada com relação à sociedade de
São Raimundo Nonato é que, desde o seu surgimento existe devoção a algum tipo
de religiosidade.

A trajetória dos cruzeiros é outro fator que confirma essa religiosidade como
característica da população da cidade. A cruz é um dos símbolos mais importantes
da fé cristã. Ela confirma a forte presença da igreja católica na história da cidade de
São Raimundo Nonato.
284

O objetivo inicial dessa pesquisa que era resgatar e preservar uma pequena
parte da cultura imaterial da história de São Raimundo Nonato foi alcançado. Várias
questões ficaram sem resposta o que suscita outras pesquisas na área.

As informações colhidas nos depoimentos tornaram este trabalho uma


referência à devoção ao Morro do Cruzeiro e aos rituais lá praticados. Registrou-se o
que, até o momento, estava presente apenas na memória das pessoas. A cada ano
que passa, as pessoas estão indo embora, levando consigo lembranças que jamais
poderão ser resgatadas. A pesquisa não pode ser encerrada por aqui. Há, ainda,
muita história a ser desvendada e registrada para que as gerações futuras saibam
que a cruz do Morro do Cruzeiro, não foi edificada somente para visitação turística.
Sua história é o resultado de um longo processo marcado por experiências de vida
que não voltarão jamais.

REFERÊNCIAS

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VIII QUEIMADAS DO SENHOR DO BONFIM: ENTRE O CÉU E O INFERNO

Jucinéa dos Santos Mota


Déborah Gonçalves Silva

INTRODUÇÃO

Neste trabalho de investigação histórica toma-se como objeto de estudo as


práticas religiosas no povoado de Queimadas do Senhor do Bonfim, localizado no
município piauiense de Dirceu Arcoverde. Para realizá-lo, procurou-se fazer uma
abordagem contextualizada e norteada teoricamente por autores que tratam da
temática das práticas religiosas no Brasil.

Em função do processo de colonização associado ao intenso fluxo migratório


que resultou num país de forte miscigenação, o Brasil possui rica diversidade
religiosa. Em função disso, são inúmeros os estudos desenvolvidos no Brasil sobre a
temática da religião.

A decisão de trabalhar com essa temática baseou-se em motivações pessoais


e na aproximação com o lócus de estudo. O povoado de Queimadas do Senhor do
Bonfim é rico de uma simbologia que desperta interesse em populares e estudiosos
da cultura e das manifestações religiosas. Atualmente, esta região recebe um
número considerável de fiéis em busca de alcançar uma “graça”.

O título atribuído Queimadas do Senhor do Bonfim: entre o céu e o


inferno, explicita bem o universo da pesquisa. Existem dois motivos bem distintos
que envolvem as comemorações em torno do Santo Padroeiro do povoado de
Queimadas. O motivo de caráter religioso é representado pelas romarias, preces,
promessas e fé. O motivo considerado profano está relacionado com festas, músicas
e consumo de álcool.

O objeto de pesquisa faz uma abordagem dos fatores físicos, culturais e


religiosos de curta e longa duração que envolve as manifestações religiosas.
Aborda-se a temática a partir de dois conceitos pertinentes: o sagrado e o profano.
288

Este trabalho contribui para melhorar o entendimento da religiosidade popular,


das tradições religiosas e culturais no município de Dirceu Arcoverde, que ainda
foram precariamente estudados, para que a população possa ter mais conhecimento
sobre essa cultura popular cujo santo festejado é o Senhor do Bonfim.

O objetivo inicial dessa investigação é fazer um estudo sobre a fundação do


povoado e a religiosidade em torno dele, ou seja, como os devotos manifestam seu
espírito religioso no novenário, com o pagamento de promessas e como vêem as
festas profanas que ali acontecem associadas à festa religiosa.

A metodologia adotada para o desenvolvimento deste trabalho foi a História


Oral. Com ela realizaram-se entrevistas com moradores do povoado e com pessoas
que conhecem e participam desse festejo. Além disso, procurou-se obter um suporte
teórico em bibliografias que auxiliaram no entendimento do tema, de maneira a
situarem-se os principais conceitos sobre religiosidade, história cultural e memória.

Autores como Pierre Nora (1981), Lee Goff (1994), Maurice Halbwchs (2006),
Cínthia Gindri (2005), Sandra Pesavento (2005), Mircea Eliade (1992), Roberto da
Matta (1997) nortearam teoricamente as investigações sobre o tema, inclusive na
elaboração e aplicação das entrevistas. Eles ajudaram a compreender melhor os
depoimentos dos entrevistados.

Inicialmente, faz-se uma abordagem teórica entre História e Memória,


expondo um debate entre as mesmas. Essa parte da narrativa foi muito importante
para o desenvolvimento deste estudo, pois, conhecer os caminhos pelos quais a
memória percorre é fundamental para um trabalho historiográfico como este.
Considerando que não se faz História sem buscar as memórias dos sujeitos, os
estudos da bibliografia pertinente a essa temática foram fundamentais.

Destaca-se a importância do Patrimônio Cultural Imaterial com um breve


estudo sobre o reconhecimento do mesmo, destacando as principais manifestações
que abarcam esse cenário como as rezas, as danças e os rituais que têm
considerável influência na sociedade, sejam pelas manifestações culturais ou
mesmo pela sua representatividade. A respeito disso, destaca-se o papel da
religiosidade na cultura imaterial.

Em seguida, destacam-se, na história de Dirceu Arcoverde e do povoado de


Queimadas, o pagamento de promessas, a manifestação sagrada, a festa profana e
289

o sentido das festividades na atualidade. Procura-se saber como os devotos fazem


suas manifestações em torno do santo padroeiro.

Nessa parte da narrativa, aborda-se a participação da comunidade e o


entendimento que a mesma tem a respeito das festas profanas associadas às
práticas religiosas do Povoado das Queimadas e que, por essa razão, não se tornou
um santuário como era desejo da Igreja Católica e de seus fiéis. O registro dessa
história de vida religiosa pertencente a sujeitos sociais de diferentes classes tornou-
se o objetivo maior desta investigação.

1 HISTÓRIA E MEMÓRIA

A memória, onde cresce a história, que por sua vez a


alimenta, procura salvar o passado para servir o
presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma que a
memória coletiva sirva para libertação e não para a
servidão dos homens (LE GOFF, 1994, p. 477).

Segundo Nora (1981), entende-se como memória, algo contado por


testemunhas que viveram um momento ou por alguém que o repassou. A memória é
interpretada nos relatos dos entrevistados. Ela contribui para o entendimento da
sociedade, sobre algo da antiguidade que, para muitos, não existe mais. É por isso
que o estudo de memória é importante. Pela memória reconstrói-se a história.

A história é uma reconstrução sempre incompleta do que não existe


mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no
eterno presente. A história é uma representação do passado porque
é afetiva e mágica. A memória não se acomoda a detalhes que a
confrontam. Ela se alimenta de lembranças vagas (NORA, 1981, p.
9).

A memória é uma reconstrução do passado feita por sujeitos e a história é a


representação do passado, a partir de fontes concretas, deixadas pela humanidade.
Segundo Halbwchs (2006), a memória, no sentido primeiro da expressão, é reviver o
passado. É uma construção psíquica e intelectual que acarreta numa representação
seletiva do passado. Nunca é somente do indivíduo, mas de um contexto familiar,
social e nacional.
290

Segundo Burke (2000), na visão tradicional, as relações entre a história e a


memória eram relativamente simples. A função do historiador era contribuir para a
memória dos acontecimentos públicos. Escrevia em proveito próprio, para lhe
proporcionar fama e, também, em proveito da posteridade, para aprender com o
exemplo deles.

Conforme Burke (2000), os historiadores interessam-se ou precisam


interessar-se pela memória, considerando-a como fonte e fenômeno históricos. Além
de estudarem a memória como fonte de informações, os historiadores devem
elaborar uma crítica da reminiscência, nos moldes da operação de análise dos
documentos históricos. Na verdade, essa tarefa começou a ser cumprida, em parte,
nos anos 1960, quando alguns historiadores contemporâneos passaram a entender
a relevância da história oral.

Mesmo os que trabalham com períodos anteriores têm alguma coisa


a aprender com o movimento da história oral, pois precisam estar
conscientes dos testemunhos e tradições embutidos em muitos
registros históricos (BURKE, 2000, p. 72).

Os historiadores devem interessar-se pela “história social do lembrar”.


Partindo da premissa de que a memória coletiva e individual, é seletiva, faz-se
necessário identificar os princípios de seleção e observar como os mesmos variam
de lugar para lugar, ou de um grupo para o outro, e como se transformam ao longo
do tempo. As memórias são maleáveis. É necessário compreender como e por quem
se concretizam, assim como os limites dessa maleabilidade (BURKE, 2000, p. 73).

Segundo Leroid Gourhan, apud Le Golf (1994), os desenvolvimentos


contemporâneos da memória coletiva ganharam ênfase no século XIX. Deram mais
espaços aos procedimentos da evolução da memória. A autora faz uma abordagem
a partir da evolução das sociedades no século XX. Mostra que a memória coletiva é
muito importante para a sociedade. Ao mesmo tempo, apresenta a história como
uma fonte rica em arquivos para um bom desempenho no campo da pesquisa.

A autora ainda destaca a memória como um elemento para chamar a


identidade individual ou coletiva, que procura buscar as atividades fundamentais de
cada indivíduo. Portanto, é pela memória que cresce a história. Esta, por sua vez,
alimenta-a revivendo o passado, para servir ao presente e ao futuro, ou seja, busca
salvar algo que parecia perdido. Nesse caso, entende-se por memória coletiva a
291

forma compartilhada pela busca de algo profundo e constituído de verdade para o


entendimento.

O desenvolvimento contemporâneo de memória ganhou ênfase no século


XIX. A relação entre história e memória é uma das grandes fontes de debates que
atravessa gerações. Trata-se da construção de referências sobre o passado e o
presente de diferentes grupos sociais ancorados nas tradições e intensamente
ligados às mudanças culturais. O processo da memória no homem intervém não só
no ordenamento de vestígios e de elementos do passado. Faz uma reinterpretação
deles. A história ideológica ordena os fatos de acordo com certas tradições
estabelecidas. Essa história é a memória coletiva que tende a confundir a história
com o mito:

A memória foi posta em jogo de forma importante na luta de forças


sociais pelo poder. Torna-se senhora da memória e do
esquecimento. É uma das grandes preocupações das classes e
grupos de indivíduos, que dominaram e dominam as sociedades
históricas (GINDRI, 2005, p. 95).

A evolução das sociedades, na segunda metade do século XIX, esclarece a


importância do papel da memória. Ela pode ter vários significados, dependendo do
contexto em que é aplicado. Pode referir-se à memória como uma grande fonte
criada por armazenagem de informações diversas, isto é, como recordações, com a
história individual de um sujeito ou como a historia de um povo. A memória resulta
das experiências. A memória individual ou coletiva pode registrar tanto personagens
fundados em fatos concretos como pode tratar de qualidades e atributos que se
transferem para a necessidade de construção de uma identidade, sem
desnecessariamente terem pertencido ao mesmo espaço e tempo das pessoas. “A
passagem da memória para a história obriga cada grupo a redefinir sua identidade
pela revitalização de sua própria história” (GINDRI, 2005, p. 92).

A memória coletiva é fundamental para o sentimento nacional, para a


consciência de classe, étnica ou das minorias. Constitui-se de lutas contra a
opressão ou a dominação. Valoriza a participação na construção da identidade de
comunidades. Desempenha importante papel no fortalecimento e na emancipação
dos fracos. Ela não pode nem deve ser esquecida.

Para o historiador que trabalha com memória, seja por meio de


registros escritos transformados em narrativas de cunho
292

memorístico, seja pelo recolhimento ao vivo pela oralidade de


lembranças daqueles que rememoram, há que levar em conta as
múltiplas mediações nesse processo (PESAVENTO, 2005, p. 95).

Os autores que buscam os resultados da memória têm como objetivo


mencionar, de forma ampla, as respostas adquiridas ao longo de sua pesquisa por
existir vários tipos de divergência nas fontes, porque os depoentes e documentos
trabalhados trazem visões diferentes. Gindri (2005), afirma que para a construção do
pensamento social é essencial a existência da memória. O seu conteúdo pode
constituir-se apenas de recordações coletivas, que por sua vez, estão presentes nas
sociedades de qualquer época, e conseguem reconstruir, assim, a recordação não
só social, como ainda resulta, em larga medida, de reelaboração com a ajuda dos
dados retirados do presente e do passado. A memória é um elemento essencial do
que se costuma chamar de identidade individual ou coletiva. Sua busca é uma das
atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje (GINDRI, 2005, p.
97).

Para Halbwchs (2006), a memória coletiva relaciona-se com lembranças.


Seus depoentes podem explicitar sobre determinados acontecimentos. Nos relatos
pode haver divergências e semelhanças. Cada quem esclarece seu ponto de vista
com recordações parecidas ou, às vezes, diferentes. Deve-se compreender que as
diferentes lembranças dos sujeitos pertencentes à determinada sociedade compõem
a memória coletiva de um povo. As lembranças permanecem coletivas e são
lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que somente alguns
estiveram envolvidos. Isto acontece porque jamais se está só.

Ao se analisar o estudo sobre história e memória é preciso selecionar os


sujeitos para obter informações de fatos que eles viveram ou alguém lhes repassou
para conseguir respostas claras, dando ênfase à contribuição do entendimento
social.

1.1 HISTÓRIA ORAL

No Brasil, a História Oral surgiu para dar suporte aos pesquisadores. Uma
das primeiras experiências ocorreu, em 1971, no Museu da Imagem do Som MIS/SP
293

que tem se dedicado à preservação da memória cultural brasileira (FREITAS 2002,


p. 31).

Para melhorar o entendimento de história oral, a História Oral tem como


fundamento buscar a identidade de diversas culturas que se espalham pelo
universo. Visa, também, trabalhar com as regras dessa técnica nos depoimentos. Na
realização da entrevista oral, o entrevistador deve estar atento para não interromper
a fala do entrevistado. Deve transcrevê-la na íntegra. Não pode retirar algo sem a
ordem do depoente. Tem que realizar nova entrevista se for necessário.

Para esta pesquisa, utilizam-se fontes orais como técnica de investigação.


Trabalha-se “com o ser humano e suas experiências de vida através de narrativas
para um melhor entendimento de nosso cotidiano” (FREITAS, 2002, p. 81).

Segundo Freitas (2002), a história oral abre portas para vários narradores.
Por isso é que esse método de pesquisa é muito importante para que se possa
colher experiências de vida através de depoimentos. Esse método possibilita novas
versões da história e dá voz a diferentes narradores.

Devido o uso de recursos eletrônicos, a história oral é técnica fonte


por meio das quais se produz conhecimento de abrangência
multidisciplinar. Ela tem sido sistematicamente utilizada por diversas
áreas das ciências humanas, a saber, história, sociologia,
antropologia, lingüística, psicologia, entre outras. (FREITAS, 2002, p.
18)

A História Oral tem utilidade múltipla nas diferentes áreas do conhecimento.


Essa flexibilidade que a torna multidisciplinar também se aplica aos estudos das
diferentes sociedades a partir da utilização de fontes orais. As tradições assumem
diferentes formas e funções que podem fazer parte de esferas sociais distintas,
chamando a atenção para o cuidado que o historiador deve ter ao utilizar as fontes
orais como base metodológica em seus estudos.

Pelos relatos orais, chega-se aos “lugares de memória” dos sujeitos. Com
eles podem-se reconstruir fatos históricos de uma determinada sociedade. A
aplicação de tal metodologia, porém, requer estudos de aplicação e cautelosa
interpretação das informações recolhidas.

Esses cuidados tornam-se cada vez mais necessários visto que a História
Oral alcança até os meios de comunicação, a exemplo das emissoras de TV, jornais,
294

revistas e documentários. É usada, também, em depoimentos, fotografias e muitas


outras possibilidades. Pode ser desenvolvida em contextos conjuntos, trabalhos
coletivos em instituições de ensino, com várias pessoas ou de iniciativa individual.
“Uma sociedade oral reconhece a fala, não apenas como meio de preservação da
sabedoria dos ancestrais” (FREITAS, 2002, p. 19).

Segundo Thompson (1992, p. 112), “a evidência oral pode conseguir algo


mais penetrante e mais fundamental para a história”. O estudo de História Oral é
precioso porque em cada ramo de estudo sobre ela aparecem opiniões diferentes.
O historiador deve fazer uma análise bem detalhada para chegar a conclusões
verdadeiras, através de depoimentos bem analisados.

1.2 PATRIMÔNIO CULTURAL E IMATERIAL

No Brasil, a partir do decreto de 4 de agosto de 2000 e com a aprovação do


decreto nº 3.551, instituiu-se o inventário e o registro do chamado “patrimônio
cultural imaterial ou intangível”. Isto alterou radicalmente a visão do tipo de atuação
preservacionista, voltada para o tombamento dos bens de pedra e cal: igrejas,
fortes, pontes, prédios urbanos, etc. Alguns intelectuais brasileiros começaram a
valorizar o tema do inatingível. Passaram a contribuir na construção de um acervo
diversificado de expressões culturais em diferentes áreas (línguas, festas, rituais,
danças, lendas, mitos, músicas etc.) e fazeres diversificados.

Os artigos 215 e 216 da Constituição Federal deixam claras as


responsabilidades do poder público e a importância da colaboração da sociedade na
promoção do patrimônio cultural brasileiro compreendido como bens de natureza
material e imaterial (ABREU, 2003, p. 11).

o fato é que, sem desprezar a importância de dar continuidade, a


uma atuação norteada por políticas públicas, na área da preservação
dos chamados bens matérias tangíveis as novas forças
desencadeadas pelos debates sobre patrimônio cultural intangível [..]
essa definição passa inclusive pelo campo do bipatrimônio e do
patrimônio genético, propondo novos olhares e facilitando a
compreensão da noção de patrimônio natural, como uma construção
que se fez a partir do intangível (ABREU, 2003, p.12).
295

Geralmente, esses grupos baseiam-se nas classificações e nos


levantamentos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN,
órgão federal que visa promover a salvaguarda do patrimônio cultural brasileiro, em
sua dimensão imaterial e material, por meio da produção e do tratamento de
informações sobre bens dessa natureza.

A palavra patrimônio está relacionada com palavras frequentes no nosso


cotidiano. Fala-se em patrimônio econômico, financeiro, familiar, cultural e
patrimônios intangíveis. Muitos estudos afirmam que esta categoria constituiu-se em
fins do século XVIII, juntamente com a formação dos estados nacionais. Ela não é,
porém, uma invenção moderna. Estava presente no mundo clássico, desde a idade
média. Essas divisões resultam de processos de transformação:

(..) recentemente constituiu-se uma nova qualificação para


patrimônio imaterial ou intangível, opondo-se ao chamado patrimônio
de pedra e cal. Aquela concepção visa aspectos da vida social e
cultural dificilmente abrangidos pelas concepções tradicionais. Nesta
nova categoria estão lugares, festas, religiões, formas de medicina
popular, música, dança, culinária, etc. (SANTOS, 2003, p. 24).

Segundo Reginaldo dos Santos (apud Abreu, 2003, p. 27), o conceito de


patrimônio, no tocante às manifestações religiosas “é pensado não exatamente
como um símbolo de realidades espirituais, nem açorianas, na verdade ele é
pensado como formas específicas de manifestações diversas”.

Após a aprovação da convenção do patrimônio mundial cultural e natural da


UNESCO, em 1972, países do terceiro mundo reivindicaram a realização de estudos
para a posição em nível nacional, de um instrumento de proteção às manifestações
populares de valor cultural.

No Brasil, as discussões aconteceram nos anos 1930, 1970 e 1980. O


decreto nº 3.551, de 2000, não se compôs apenas do patrimônio de edifícios e obras
de arte erudita. Contemplou, também, o produto da alma cultural, o conhecimento
sobre o bem cultural de natureza imaterial que equivale a documentos pelos meios
técnicos, onde o passado e o presente dessas manifestações em suas diferentes
versões tornam-se acessíveis ao público. A Constituição Federal de 1988, nos
artigos 215 e 216, entende como patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência, as identidades da ação e a memória. (ABREU, 2003, p. 11).
296

Segundo Pohh (2005), numa compreensão bastante simplificada da


historiografia, patrimônio é um conjunto de bens e objetos importantes para as
pessoas porque, em sua representação, torna uma reserva de valores. Não são
valores puramente econômicos. Eles são guardados e repassados na família e na
sociedade, com o intuito de construir a sua história, como representações de cultura,
arte, literatura, música etc., para se tornarem sua memória.

(...) Mas o patrimônio não se resume apenas ao que é herdado, mas


é também aquilo com que um grupo específico da população se
identifica. É o valor que os seres humanos, tanto no plano individual
como coletivamente atribuem ao legado do passado, que vai
determinar o que se tornará importante para ser lembrado (POHH,
2005, p. 69).

1.3 HISTÓRIA CULTURAL: ASPECTOS DE UM DEBATE

Anterior às discussões a respeito da História Cultural como campo de


abordagem da História, torna-se necessário perfazer o polissêmico termo de cultura.
É importante considerar a diversidade cultural que é, de fato, essencial para
compreender melhor o país em que se vive. Ela também está relacionada com as
relações sociais estabelecidas no país e mundo. A diversidade também se constitui
de maneiras diferentes de viver.

Desde o século passado tem havido preocupações sistemáticas em estudar e


discutir sobre cultura. As preocupações com a mesma se voltaram tanto para a
compreensão das sociedades modernas industriais quanto das que iam
desaparecendo ou perdendo suas características originais.

Em uma visão bem antiga, a cultura se referia à ideia de refinamento pessoal.


Transformou-se na descrição das formas do conhecimento dos dominantes nos
estados nacionais que se formavam na Europa, a partir do fim da idade média. As
preocupações com a cultura voltavam-se para o erudito. A ela tinham acesso
somente os setores da classe dominante. O conhecimento erudito contrapunha-se
ao conhecimento da maior parte da população que se supunha vulgar, inferior e
atrasada. Essa passou a ser entendida como a cultura popular.
297

Entende-se então por cultura popular as manifestações culturais


dessas classes, as manifestações diferentes da cultura dominante,
que estão fora de suas instituições que existem independentemente
delas. É importante ressaltar que é a própria elite cultural da
sociedade, participante de suas instituições dominantes, que
desenvolve a concepção de cultura popular (SANTOS, 1994, p. 55).

A renovação dos estudos históricos deu-se, a partir de meados deste século,


em três ondas sucessivas. A primeira, de maior interesse em nosso objeto de
estudo, consistiu na inversão proposta pelos Annales e pelo marxismo. Ambos
demonstravam interesse pelos modos de pensar o quotidiano das grandes massas
populares, mais do que pelos das elites. Sob a égide da revista dos Annales,
fundada por Marc Bloch e Lucien Febvre, o campo da História Cultural, chamada
posteriormente de Nova História Cultural, passou a contrariar a historiografia mais
centrada na figura dos grandes homens. A Nova História Cultural passou a ser
considerada como uma possível quarta geração da Escola dos Annales. Apesar de
ser amplamente criticada por se reconhecer mais pelos temas que estudava do que
pela unidade teórico-metodológica, a Nova História Cultural ganhou cada vez mais
adeptos.

É importante destacar que a Nova História Cultural foi além das mentalidades.
Implantou uma postura que trouxe as grandes massas ocultas da sociedade, o que
implicou em profundas transformações nos métodos e nas práticas, além do
interesse pelos sujeitos produtores e receptores da cultura popular. A História
Cultural é importante para identificar o modo como, em diferentes lugares e
momentos, a realidade social é construída e pensada, tendo como base as
representações das classificações e das exclusões que constituem as configurações
sociais e conceituais de um tempo ou de um espaço.

[...] A história cultural deve ser entendida como o estudo dos


processos com os quais se constrói um sentido, uma vez que as
representações podem ser pensadas como esquemas intelectuais
que criam as figuras graças às quais o presente pode adquirir
sentido. O outro se torna inteligível e o espaço pode ser decifrado
(CHARTIER, 1995, p. 17).

A história cultural visa entender as expressões e os sentidos dados às


práticas em determinado momento, em que os eventos são organizados a partir de
suas manifestações culturais.
298

No capítulo cinco do livro Domínios da História (1997), intitulado: História


das Mentalidades e História Cultural, o historiador Ronaldo Vainfas, apresenta a
trajetória, as posições e os debates no campo de estudos sobre cultura e história.
Em sua abordagem, relaciona os desdobramentos do campo de estudos das
mentalidades para a análise da cultura, como resultado da aproximação criteriosa
entre História e Antropologia (VAINFAS, 1997, p.145). Afirma que História Cultural
pode ser compreendida a partir de três categorias, que orientam as três principais
abordagens do campo. São elas: “recusa do conceito vago de mentalidades,
preocupação com o popular e valorização das estratificações e dos conflitos sócio
culturais como objeto de investigação”.

No Brasil, os estudos de História Cultural ganharam destaque no final dos


anos 1980, como os primeiros frutos da pós-graduação. Eles superaram os limites
temporais aos quais estavam confinados – Brasil colônia e Império – e ampliaram
seu campo de interesses, incluindo estudos sobre as artes e a cultura de massa no
mundo contemporâneo.

Nesse sentido, entende-se que a proposta de investigação do presente objeto


de estudo perpassa pelos temas, teorias e metodologias propostas pela Nova
História Cultural, na medida em que procura apresentar aspectos sócio-culturais de
uma sociedade.

1.4 A RELIGIOSIDADE COMO MANIFESTAÇÃO CULTURAL

O fenômeno religioso representado pela manifestação cultural em torno do


Santo Senhor do Bonfim que dá nome ao Povoado Queimadas, localizado no
município de Dirceu Arcoverde, Estado do Piauí, é uma manifestação católica muito
comum no universo religioso do país.

A prática de conversar com Deus e Santos, formalizando este diálogo através


de súplicas, rezas, preces e promessas, está intimamente ligada às dificuldades e
necessidades sentidas pelo povo que vive no sertão do país e que sofre com o
fenômeno das secas. É nesse momento reservado à fé, que essas pessoas realizam
as promessas e procissões direcionadas aos santos, buscando alcançar graças e
proteção divina, ou seja, é através da fé que essas pessoas procuram chegar ao ser
299

supremo. A promessa torna-se, portanto, um pacto que abriga os dois lados. É uma
ação positiva no sentido de resolver problemas, através de algum sacrifício ou pela
oferta de algo precioso para o santo de cada devoto. A lógica social faz com que as
pessoas que acreditam nesta fé tenham as suas súplicas atendidas.

Conforme DA MATTA (1998, p. 112), a religião é vista como uma maneira de


dar respostas aos sofrimentos, como por exemplo, “acidentes e doenças. A religião
pode explicar porque uma pessoa ligada a nós ficou doente, sofreu um acidente fatal
ou foi vítima indefesa e gratuita de desesperança e aflição”. Nessas ocasiões, é
comum estabelecer-se um forte envolvimento com santos, deuses ou espíritos.
Fazem-se súplicas acompanhadas de objetos oferendas e sacrifícios utilizados para
pagamento de promessas. Existe a necessidade de se construir um grande espelho
que toma forma de religião, para dar sentido ao sentimento de comunhão e
esperança como um todo:

(...) mas, além disso a religião marca e ajuda a fixar os momentos


importantes na vida de todos nós. Desse modo, nascimentos,
casamentos, batizados, crismas, comunhões, funerais etc. todos os
momentos que assinalam uma crise de vida e uma passagem na
escala da existência social são marcados pela presença da religião
que legitima o aval divino (...). Todos esses aspectos formam aquilo
que chamamos de religião num sentido amplo (DA MATTA, 1998, p.
113).

A Igreja Católica acompanha, quase sempre, as organizações mais amplas


da sociedade. Ao longo da história, ela organizou-se de diversas maneiras. Ela
configurou-se com normas, papéis, estruturas, práticas e significados vinculados às
condições históricas. Neste sentido, por exemplo, não há como entender o
cristianismo sem as influências do mundo grego e da civilização romana.

O catolicismo popular brasileiro é, também, fruto do mundo rural. A religião


confirma ou rejeita práticas nas sociedades onde elas se situam. “As ciências da
religião buscam entender as constantes do fenômeno religioso ou sua lógica interna,
nem sempre visível ao olhar comum e espontâneo” (PASSOS, 2006, p. 1).

A religião integra vários tipos de expressão religiosa, desde a informalidade


carismática até a formalidade rígida da burocracia dos grupos primitivos. As grandes
tradições tratam da relação entre o sagrado e o profano. Nessa relação os humanos
experimentam a realidade, nos mais diversos aspectos recortados pelas dimensões
300

do sagrado e do profano. Este binômio altera-se em intensidade, dependendo do


estágio cultural em que se encontram os grupos.

(...) para o homem religioso, o espaço não é homogêneo. O espaço


apresenta roturas, quebras. Há posições de espaço qualitativamente
diferentes dos outros (...). Há, portanto, um espaço sagrado e por
conseqüência, forte e significativo, e há outros espaços não
sagrados, e por conseqüência sem estrutura nem consciência
(ELIADE, 1992, p. 25).

Além da nítida distinção entre as duas dimensões, o sagrado apresenta-se


para o homem religioso como a verdadeira realidade. O resto é o caos, ou seja, a
ausência de sentido. A manifestação do sagrado é a organização do caos, revela o
sentido da realidade e propõe um caminho de acesso a Deus. Esse caminho é
oferecido pelos rituais, por si capazes de instaurar, no tempo e no espaço profanos,
a vitalidade do sagrado que vem das origens, do tempo da beatice, da verdade e da
salvação:

(...) As diversas religiões se estruturam a partir dessa dinâmica entre


o sagrado e o profano e oferecem aos fiéis a possibilidade de
experimentá-la como um caminho de vida na busca do sentido mais
profundo da realidade e da sensibilidade da salvação da
precariedade da vida (...). As tradições religiosas, com suas
diversidades de doutrinas, ritos, disciplina e organização sustentam-
se nessa relação bipolar, podendo distinguir-se uma da outra de
modo a afirmar a diversidade e a relação entre as duas dimensões
(PASSOS, 2006 p. 2).

As religiões, em suas perspectivas, sejam elas pelo carismático ou primitivo e


selvagem, não possuem uma fixação objetiva de seus elementos, regras e funções.
Nelas predomina a espontaneidade dos fiéis que é regida pelas orientações do líder
carismático. Desse modo, são mais ou menos espontâneas as orientações, as
doutrinas, as regras, os rituais, as normas de vida e os papéis religiosos:

(...) A razão última da religião não são suas representações


sobrenaturais, mas a oferta de salvação e de sentido para a vida,
prova disso são os trânsitos religiosos que podem fazer trocas e
adaptações das representações em função da eficácia e da oferta
religiosa. Nesse sentido os rituais são atualizações necessárias das
cosmovisões religiosas (PASSOS, 2006, p. 7).

No âmbito religioso, segundo Passos (2006, p. 8), as regras da vida fazem


parte de qualquer organização social. As organizações religiosas primam por regras
que, por seu aprofundamento transcendente, obrigam os fiéis a cumpri-las sob pena
301

de comprometerem sua presença no grupo e sua própria salvação. No processo de


racionalização religiosa mais rígida, as normas disciplinares chegam a regular
diretamente a vida cotidiana dos fiéis. As grandes tradições religiosas são, por isso,
portadoras de um modo de organização que conserva, em sua estrutura, diferentes
tipos de organização social, das mais simples do mundo antigo, passando pelas
sociedades fortemente hierarquizadas da idade média e chegando às complexas
sociedades modernas. As forças morais e políticas das grandes tradições religiosas
residem nesse acúmulo de experiências de que são portadoras. Esse aspecto é
ativo na tradição. Ele opera em quase equilíbrio entre o consenso coletivo e
individual de cada grupo80.

2 O MUNICÍPIO DE DIRCEU ARCOVERDE

O Município de Dirceu Arcoverde está localizado na macrorregião de São


Raimundo Nonato, mesorregião do Sudeste piauiense. Compreende uma área de
1035,2 km2. Tem como limites os municípios de Coronel José Dias e São Lourenço
do Piauí, ao norte; o estado da Bahia, ao sul; Coronel José Dias e o estado da
Bahia, a leste; Fartura do Piauí e São Lourenço do Piauí a oeste (Fig. 1). Sua sede
situa-se na latitude 09º20’17” sul e na longitude 42º25’40” oeste. Seu território tem
1005, 706 km2 e a sua densidade demográfica é de 6.64 habitantes/km². Situa-se a,
aproximadamente, 561 km de distância da capital do Estado, Teresina (IBGE, 2010).

É considerado um dos municípios mais quentes do estado. Apresenta


temperatura mínima de 25ºC e máxima de 38ºC. Está a 740 metros acima do nível
do mar. Seu relevo apresenta chapadas baixas, com algumas partes suavemente
onduladas como serras, morros, planaltos e planícies. A vegetação predominante é
a caatinga arbórea e arbustiva. No período da seca toda a vegetação parece morta.
No período das chuvas revive e produz frutos que a população local saboreia. Na
caatinga predominam as plantas xerófilas, isto é, adaptadas à falta de água. Existem
plantas variadas como o cajueiro, o umbuzeiro, o xiquexique, o mandacaru e o
caroá.

80
GEERTZ , Clifford. A interpretação das Culturas. 1978, p. 116-117.
302

Figura 1 – Município de Dirceu Arco Verde no estado do Piauí (Fonte: IBGE, 2011)
303

Assim como os demais municípios da região, Dirceu Arcoverde, antes da sua


emancipação política, dependia econômica e politicamente do Município de São
Raimundo Nonato. Em 29 de novembro de 1979, foi realizado um plebiscito para o
seu desmembramento. Em 30 de novembro do mesmo ano, Bom Jardim, como era
conhecido, foi desmembrado de São Raimundo Nonato pela lei nº. 3.701 do mesmo
ano. A escolha do nome do novo Município foi em homenagem ao governador do
Estado do Piauí, Dirceu Mendes Arcoverde que faleceu no exercício do cargo.

Em 1982 foram realizadas as primeiras eleições. O candidato Olimpio Dias


dos Passos foi eleito prefeito municipal, ficando à frente do governo municipal por
seis anos. Em seguida outros prefeitos como Hipólito Miguelino Braga, Ruival
Barreira de Aguiar, José Walter Barroso de Carvalho, Francisco de Castro Ribeiro e
Alcides Lima de Aguiar deram continuidade à administração de Dirceu Arcoverde.

Segundo o censo de 2010 (IBGE), a população atual de Dirceu Arcoverde é


de 6.675 habitantes, sendo 3.403 homens e 3.272 mulheres. A maior parte reside na
zona rural, sobrevivendo, basicamente, da agricultura familiar.

As principais fontes de subsistência são a agricultura, a pecuária, o comércio


e o artesanato. A agricultura baseia-se na produção de feijão, mandioca e mamona.
A pecuária firma-se na criação de suínos, ovinos, caprinos bovinos e vários tipos de
aves. A maior parte da produção é comercializada em São Raimundo Nonato por ser
a cidade pólo. Todos os municípios da macrorregião dependem, política e
economicamente, de São Raimundo Nonato.

2 O POVOADO DE QUEIMADAS DO SENHOR DO BONFIM

Queimadas é uma pequena comunidade situada no município de Dirceu


Arcoverde, Sudeste do Piauí, próximo à divisa com o estado da Bahia, na interseção
cartesiana de latitude sul de 42º25’ e longitude 9º2’ (Fig. 2).

O povoado de Queimadas possui mais de um século e meio de existência,


segundo relados de quem habita aquela região. É difícil reconstruir sua história
porque possui poucos registros. Por isso, buscam-se informações pela História Oral,
304

entrevistando pessoas que moram e freqüentam o povoado. Com esta pesquisa,


chegou-se ao início no século XIX, como data aproximada da sua fundação.

O início do povoado aconteceu a partir da chegada dos primeiros moradores,


vindos da Ilha de Madeira, a exemplo do senhor Raimundo Ribeiro Soares. O senhor
Abílio Leonardo da Costa, um dos primeiros moradores da localidade, relata a
história dos fundadores81.

Conforme o senhor Abílio: “este povoamento foi fundado no século XIX, e aí


sempre que vêm, passando esse povoado desse tempo pra cá, foi passando de pai
para filho e aí, hoje eu sou o dono legitimo e o mais velho da família”.82

A família Ribeiro é muito grande. Hoje ela encontra-se espalhada por todas as
partes do território brasileiro, com seu foco principal de fixação na região de São
Raimundo Nonato. “É uma família imensa que, desde os primeiros anos de
colonização, ajudou a povoar o Brasil” (RIBEIRO, 1996 p. 107).

Um pequeno ramo desta família se adentrou pelo delta do Rio


Parnaíba, único meio de penetração nas terras do Brasil colônia,
provavelmente na segunda metade do século XVIII. Conhecido como
Rio Grande dos tapuias e, um pouco mais tarde, como Rio das
Garças. Este manancial hídrico recebeu o nome de Parnaíba,
batizado pelo legendário bandeirante Domingos Jorge Velho.
Subiram em batelões que já singravam este caudaloso rio
plenamente navegável, chegando a Teresina a 60 léguas de sua foz.
Daí uma parte da expedição se destacou em cavalhada, para o Alto
Longá, 13 léguas para o centro onde se fixou dedicando se à criação
de gado, uma atividade em desenvolvimento e bastante fomentada
no estado da Bahia, Pernambuco e Piauí e Minas pelo Donatário
Garcia D´Ávila do Castelo da Torre (RIBEIRO, 1996, p. 107).

A meta desta família era fazer um bom aproveitamento das terras do sertão
piauiense, para que o seu criatório fosse em frente. Ela teve grande influência no
povoamento e desenvolvimento do Piauí e também de São Raimundo Nonato. Diz a
tradição oral que, no início do século XIX, três irmãos da mesma família fizeram uma
longa cavalhada até São Raimundo Nonato, distante 85 léguas do Alto Longá
(RIBEIRO, 1996 p. 108). Conta-se que, a partir desse percurso, teve início a história
da família Ribeiro no sul piauiense.

81
Entrevista concedida por Abílio Leonardo da Costa em 06/08/2010 no povoado de Queimadas no
município de Dirceu Arco Verde - PI. Seu relato também se encontra no livro Homenagem a uma
vida (1996), escrito pela família Ribeiro.
82
Idem, 06/08/2010, no povoado de Queimadas, município de Dirceu Arco Verde – PI.
305

Os irmãos Ribeiro vieram para o sul do Piauí em busca de terras


boas para a criação de gado, atividade predominante em todo o
estado, fixaram-se em lugares diferentes mas relativamente próximas
de Queimadas perto da divisa com o estado da Bahia nas cabeceiras
de um riacho afluente do São Lourenço. Queimadas pertence hoje ao
município de Dirceu Arcoverde, antigo Bom Jardim, Jurema, nas
nascentes do Rio Piauí, próximo a São Raimundo Nonato (RIBEIRO,
1996, p. 108).

Em cada um destes três lugares começou o crescimento da família Ribeiro.


Por serem descendentes de portugueses, seus membros guardam traços lusitanos,
tanto na cor da pele, quanto nos padrões culturais. Cada uma destas células
recebeu um nome derivado do lugar em que se instalaram. Essa dominação não
apresentava nenhum preconceito ou designação pejorativa. “Eram os queimadeiros,
os juremeiros e os macaqueiros” (RIBEIRO 1996, p. 109). Desses grupos
pertencentes à mesma família, Queimadas foi o lugar que mais cresceu em termos
de população. Em ordem decrescente, situavam-se os macaqueiros e os juremeiros.
“Os queimadeiros tornaram-se o maior grupo familiar que se concentrou na divisa do
Piauí com a Bahia, Bom Jardim, Poços, Queimada de Dentro, São Lourenço e
adjacências” (RIBEIRO, 1996, p. 109).

A família Ribeiro do povoado Queimadas tinha como principal atividade


econômica a criação de gado e equinos. Eles acharam que esse lugar era
fundamental para o desenvolvimento de seu criatório porque possuía uma
vegetação boa para a alimentação, a macambira.

Nesta região, de longas datas, o gado se alimentava na solta com a


vegetação existente. Nas secas rigorosas faziam-se queimadas nas
áreas infestadas de macambira, uma bromélia cujo bulbo é um
excelente suplemento alimentar para o seu gado. Era a região das
queimadas, como ficou sendo chamada até os dias atuais (RIBEIRO,
1996, p. 109-110).

Existem divergências entre o livro escrito pela família Ribeiro e os


depoimentos de Abílio e Betinha. Abílio afirma que, quando o português chegou,
aqui já era conhecido como Queimadas. Betinha diz que, quando seus pais
chegaram em Queimadas, encontraram esse lugar já queimado. Aí eles
arrancharam seu gado e fizeram suas primeiras casas. “Ai, nessa região, então por
306

isso deram o nome de Queimadas por já encontrar esse lugar todo queimado. Aí
eles supõem que tinha sido os índios que fizeram essa queimada”83.

Pelos depoimentos e pelo que se encontra no livro escrito pela família Ribeiro
deduz-se que a família Ribeiro arranchou nas Queimadas com o objetivo de cultivar
boas pastagens para seu gado. Nesta região do semi-árido encontrava-se esse
terreno, que eles viram com um olhar positivo para morar e até hoje é conhecido
como Queimadas. Tudo indica que a família Ribeiro, vindo de Portugal, povoou o
lugar.

2.1 SANTOS, DEVOTOS E PROMESSAS

O termo religião conduz uma relação na forma de crer dos seres humanos. É
nesse sentido que a Igreja Católica acredita que os santos realizam milagres. Os
fiéis buscam soluções aos seus problemas com promessas feitas para os santos. A
religião predominante no povoado de Queimadas é a católica. Lá existe a tradição
das romarias ao Senhor do Bonfim (Fig. 2). São grandiosos a fé e o sentimento
religioso católico dos participantes. Eles fazem sacrifícios para agradar ao santo com
pagamento de promessas.

Diante desse fenômeno, procura-se entender a religiosidade existente no


povoado. Quer-se esclarecer como e quando começou esta tradição religiosa que
tem como santo festejado o Senhor do Bonfim.

Segundo relatos de pessoas entrevistadas, por volta de 1848, passou por


Queimadas um grupo de ciganos, trazendo em suas bagagens uma valiosa imagem
de nosso Senhor do Bonfim, feita de marfim, deixando-a aos cuidados do casal
Raimundo e Mariazinha84. Deixaram-na, com a condição de que, se voltassem
algum dia, levá-la-iam. Se não voltassem, ela seria o santo padroeiro do lugar.

83
Entrevista concedida por Abílio Leonardo da Costa em, 06/08/2010, no povoado Queimadas,
município de Dirceu Arcoverde PI, e por Elizabete Ribeiro Soares (Betinha), em 07/03/2011, na
cidade de Dirceu Arcoverde – PI. O Festejo do Senhor do Bonfim funciona durante dez dias sendo
nove dias de novena e um dia do santo padroeiro que é muito adorado pelos fiéis.
84
Esse relato encontra-se em um pequeno trecho escrito pelo padre José de Anchieta Carvalho, em
1998, sobre algumas indagações feitas à senhora Arlinda que era moradora da localidade de
Queimadas. Hoje, Arlinda é falecida. Seu relato também está escrito no livro da família Ribeiro.
307

Figura 2 - Lugar onde os devotos depositam os ex-votos (Fonte: Acervo pessoal, 2010)

Então, aquele casal edificou uma pequena “casa de oração” que os devotos
valorizam muito. O santo foi sendo festejado, com grande devoção e carinho.

Quando esse casal faleceu, seus descendentes deram continuidade ao


festejo santo. Em 1922, o templo foi reformado e modificado pelo senhor Chiquinho
das Queimadas, membro da família Ribeiro. Ele teve a colaboração do padre
Marcos que foi o primeiro celebrante na nova capela. Essa foi a última grande
mudança na estrutura da capela. No período que corresponde aos festejos do
padroeiro do povoado Queimadas, a capela recebe nova pintura e alguns pequenos
reparos para poder receber os seus devotos durante o novenário (Fig. 3).

Como o santo festejado é o Senhor do Bonfim, o povoado ficou conhecido


como Queimadas do Senhor do Bonfim. O novenário ocorre todos os anos entre os
dias 28 de julho e 06 de agosto, dia do padroeiro. Durante o novenário os devotos
do povoado e das regiões vizinhas visitam a capela. Com muita, realizam orações e
súplicas. Apesar de a imagem de marfim ter sido roubada há alguns anos atrás, e de
ter sido substituída por outra, a fé no santo continua a mesma.
308

Figura 3 – Foto da igreja (Fonte: Acervo pessoal, 2010)

Segundo a visão dos fiéis, os pedidos feitos ao Senhor do Bonfim só são


atendidos se eles frequentarem a sua capela com muita honra e dedicação.
Geralmente, no dia 06 de agosto, muitos devotos vêm até mesmo de outras cidades
e estados. Essa devoção fervorosa espalhou-se por boa parte do planeta. É
importante ressaltar que vêm pessoas, até mesmo a pé, caminhando vários
quilômetros ou léguas para pagar suas promessas, soltando fogos, rezando em
caminhada na procissão que acontece antes da missa e indo até o santuário.
Chegando lá, eles acendem velas no campanário do Senhor do Bonfim,
agradecendo as graças recebidas. Segundo eles, foi o santo que, de uma forma ou
de outra, tirou-lhes do fracasso com algum tipo de milagre (Fig. 4). Assim diz
Roberto da Matta (1998, p. 116):

Realmente, o que é o milagre senão uma resposta dos deuses a uma


súplica desesperada dos homens, na forma de desejos, motivações,
sentimentos e vários objetos alguns inclusive com a forma da parte
que foi curada – prova cabal da realização do milagre ou da graça
finalmente obtida.
309

Figura 4 - Santuário das Queimadas. Romeiros fazendo pedido ao Santo (Fonte: Acervo
pessoal, 2010)

No santuário de Queimadas, os romeiros fazem pedidos ao santo. Segundo


eles, ir a esse lugar sagrado, no dia do padroeiro, significa muito porque esse santo,
de uma forma ou de outra, atende a seus pedidos. A caminhada até o santuário é
um sacrifício válido na medida em que o santo atende a todas as suas súplicas.

Na maioria das entrevistas realizadas com moradores do povoado e do


município de Dirceu Arcoverde, percebe-se que todos eles têm uma fé fervorosa no
Senhor do Bonfim, como santo protetor e pronto a atender aos seus pedidos. Assim
esclarece o depoimento de Manoel Messias da Rocha:

No que se refere aos milagres, Queimadas se tornou um ponto de


referencia para as solicitações dos milagres. As pessoas aqui,
durante todo esse tempo, vêm em busca de cura. Geralmente eles
colocam junto ao santuário parte de seu corpo, ou então retratos,
fotos de pessoas queridas que eles almejam alcançar alguma
graça.85

85
Entrevista concedida por Manuel Messias da Rocha, no dia 06/08/2010, na cidade de Dirceu Arco
Verde – PI.
310

Pode-se observar, também, no depoimento de Eurico dos Santos, outro


entrevistado, como as pessoas acreditam em milagres, representando seu corpo
com inúmeras peças de madeira e de gesso que se encontram no santuário das
Queimadas, simbolizando a cura.

Para mostrar a grandiosidade de Senhor do Bonfim pela cura que ela


recebeu, então ali tem milhares de coisas: mãos, pés, problemas, de
acidentes de carro, de pessoas que recebem verdadeiros milagres
que nem a medicina é capaz de desvendar.86

Pode-se observar, diante da interpretação feita por Geertz (1978, p. 144),


“que os significados só podem ser armazenados através de símbolos”. Por isso é
que os devotos do senhor do Bonfim fazem esse tipo de demonstração. Os ex-votos
são uma prática de pagamento de promessas em que fiéis utilizam símbolos
sagrados. As peças de madeira, caixas de vela e fotos são a representação de
respostas aos seus problemas de saúde. Se a pessoa quebrou alguma parte de seu
corpo ou sofreu de alguma doença faz uma promessa ao Senhor do Bonfim. Se o
seu pedido foi atendido, ele vai até o santuário, no dia do padroeiro, levando as
peças que representam a parte fraturada do corpo que, naquela ocasião, foi curada,
pela vontade do santo (Fig. 5).

Além de peças em madeira e gesso, representando partes curadas do corpo,


existem, em grande número no Santuário, fotos de pessoas que tiveram êxito em
sua saúde. Todos esses materiais são deixados no Santuário como forma de
pagamento pela graça alcançada. Portanto, o pagamento de promessas nas
Queimadas do Senhor do Bonfim acontece como resultado de muita fé dos
participantes locais e regionais. Pessoas de lugares distantes também fazem seus
pedidos ao santo e propõem sacrificar-se para pagar.

Observa-se, nas procissões e no campanário, como as pessoas agradecem,


dando louvores ao padroeiro. Alguns fazem toda a caminhada da procissão, até
mesmo descalços, porque, dizem, o santo vai junto com o padre na frente da
procissão. Essas pessoas vão rezando, agradecendo, cantando os cânticos, na
intenção de pagar suas promessas ao santo. Isso abrange a população de Dirceu
Arcoverde e região circunvizinha. A tradição de ir a Queimadas no dia 06 de agosto
é de fundamental importância para os romeiros do Senhor do Bonfim (Fig. 6).

86
Entrevista concedida por Eurico dos Santos, em 07/08/2010, em Dirceu Arcoverde – PI.
311

Figura 5 - Romeiros pagando suas promessas (Fonte: Acervo pessoal, 2010)

Figura 6 - Procissão em Queimadas do Senhor do Bonfim (Fonte: Acervo pessoal, 2010).


312

2.2 OS FESTEJOS SANTOS E AS FESTAS PROFANAS

É comum, nas pequenas cidades do Brasil, estabelecer-se relação entre as


festividades sagradas e as profanas. Na maioria das vezes, após a celebração
religiosa, os devotos reúnem-se em bancas de comidas e bebidas. Essa prática,
inicialmente chamada de Quermesse, era realizada pela própria Igreja e tinha como
objetivo receber os devotos em confraternização. Além disso, todo o recurso
financeiro arrecadado era utilizado em benefício do Santuário.

Com o passar dos anos, essa prática sofreu fortes alterações. Em seu lugar,
nos dias de hoje, encontram-se festas profanas que, segundo a Igreja, são
realizadas sem o seu consentimento.

Em Queimadas, a relação atual dos festejos santos com as festas profanas


do Senhor do Bonfim estabelece-se de maneira complexa. A igreja e a maioria dos
devotos colocam-se contra a realização de festas profanas no povoado de
Queimadas, em paralelo com as festividades religiosas. Os devotos veneram o
santo padroeiro que é o Senhor do Bonfim, acreditando, de uma forma ou de outra,
que ele pode resolver seus problemas, isto é, atender seus pedidos. Para os
mesmos, é nesse momento dedicado a fé e adoração ao santo que acontece o
pagamento de várias promessas, no decorrer do novenário e, principalmente, no dia
06 de agosto.

Algumas pessoas são totalmente contrárias. Elas não dão a menor


importância à festa religiosa. Essas questões provocaram recentemente um grande
debate entre a Igreja, os fiéis e a população em geral. Estes últimos defendem o
aproveitamento do grande movimento de pessoas no povoado, durante esse
período, para incentivar a economia local. Além das bancas de bebidas, a população
coloca algumas barracas de bijuterias, tecidos, jogos e comidas típicas que chamam
atenção da população jovem que dá importância ao profano.

A Igreja é totalmente contrária. Afirma que o momento da romaria não é


apropriado para festas dançantes e nem para se obter lucros com a venda de
mercadorias. O interesse da Igreja é fazer, na região, um Santuário. Para isso, as
festas profanas não deveriam ocorrer no local.
313

Eurico dos Santos, que se considera uma pessoa muito devota do Santo
Senhor do Bonfim, menciona em seu depoimento que:

Quando se colocam, ao lado do santo, coisas profanas por quê? Ora


a festa é do padroeiro. As pessoas aproveitam para promover aí. Vão
utilizar o nome do padroeiro para tirar proveitos particulares. E o pior
é que tiram proveito e não deixam nada para a igreja. Então, deve
ser somente Igreja. Então eu não concordo. Esse é o meu ponto de
vista.87

Segundo o relato de Eurico dos Santos, existe um conflito entre o lado


profano e o sagrado. Pensa que as pessoas devem respeitar e não colocar ao lado
da igreja coisas que não são agradáveis a sua religião e fé. Pode-se observar,
também, no depoimento de Dona Betinha, outra devota do santo, que ela é
totalmente contra as vendas de bebidas alcoólicas e festas profanas na época do
festejo.

Por uma parte eu não acho correto. Já que o festejo é religioso,


quem vai são os romeiros do Senhor do Bonfim. Vão em
homenagem a Senhor do Bonfim. A gente pensa que é o próprio
Jesus, misturar uma coisa com a outra. Eu não acho que isso seja de
acordo de botar festas, numa parte. Por outra, concordo que ter uma
barraca pra ter a água e refrigerante. Tudo bem, mas a cachaça, a
bebida eu não acho certo.88

Na visão de Roberto da Matta (1997), a partir de uma observação que o


mesmo faz sobre a realidade sócio-cultural brasileira, nas festas, paradas e
procissões, a presença do profano é quase inevitável. Para ser evitada é preciso
eliminar todas as informalidades das solenidades ou das festas. A partir do momento
em que a pessoa sai de sua casa em direção a uma procissão ou a outra solenidade
religiosa, está recheada de formalidades e rituais. Essa fuga é a peça fundamental
da profanação. Na medida em que se sai do âmbito da festa, os participantes
misturam-se com as demais pessoas, confundindo o sagrado com o profano.

Os ritos são momentos diferentes do mundo cotidiano. O ritual é um aspecto


das relações sociais e uma técnica de mudança de posição de pessoa moral, do
profano para o sagrado ou do sagrado para o profano.

Na missa estão acentuadas as relações de reforço de uma ordem


estabelecida (por meio das oposições fundamentais entre Deus,

87
Entrevista concedida por Eurico dos Santos, no dia 10/08/2010, na cidade de Dirceu Arcoverde - PI
88
Entrevista concedida por Elizabete Ribeiro Soares (Betinha) em 07/03/2011 na cidade de Dirceu
Arcoverde - PI
314

homens, oficiantes, fiéis, altar, lugar de público, objetos cuja


manipulação é exclusiva, mas também o conjunto de situações, em
que as relações são invertidas), Deus desce até os homens. Os
homens sobem até Deus. Objetos sagrados são incorporados aos
fiéis, a um local apropriado por confusão de categorias (DA MATTA,
1997, p. 82).

Sérgio Buarque de Holanda conceitua o brasileiro como um indivíduo que


busca uma relação de intimidade, procurando fazer com que o estranho seja logo
um amigo familiar. Isso faz com que a relação com o santo seja movida dessa
maneira. “Nosso velho catolicismo, tão característico (...) permite tratar os santos
com uma nova intimidade, quase desrespeitosa, e que parece estranho às almas,
verdadeiramente religiosas, provém ainda dos mesmos motivos” (HOLANDA, 1995
p. 149).

Dessa forma, pode-se observar que há um grande descaso por parte dos fieis
em relação à doutrina religiosa. Tem-se o hábito de tratar todas as relações
cotidianas com intimidade. Isso gera uma situação em que seguir formalidades é de
livre arbítrio.

A vida interna do brasileiro, nem é bastante disciplinadora para


envolver e dominar toda a sua personalidade, interando como peça
consciente no conjunto social. Ele é livre, pois para ele abandonar
todo o repertório de idéias, gestos e formas que se encontram em
seu caminho assimilando sem maiores dificuldades (HOLANDA,
1995, p. 151).

No povoado de Queimadas, o lado religioso é bem reconhecido pelos fiéis. O


profano pensa que as festas dançantes podem lhe trazer mais resultados. Os fiéis
comprometem-se com o sagrado no intuito de rezar, agradecer ao santo. Os
profanos buscam lucros para favorecer seu próprio bolso.

Apesar de as festas profanas terem sido proibidas pelo bispo diocesano, no


ano de 2006, a população continuou fazendo festas dançantes de maneira
desrespeitosa. Nos anos 2007, 2008 e 2009, a administração pública retornou as
festas dançantes.
315

2.3 O SONHO DE UM SANTUÁRIO

Durante o novenário do festejo do Senhor do Bonfim, no povoado Queimadas,


ocorreu a primeira romaria do terço dos homens. Ela foi organizada pelo senhor
Giovane, um dos dirigentes dessa pastoral, com o apoio do padre Emanuel,
responsável pela paróquia de Dirceu Arcoverde. A romaria do terço dos homens
aconteceu no dia 28 de julho de 2010 e no dia 28 de julho de 2011.

Geovane explica: “a gente fez uma colocação em reuniões. Colocamos,


então, fazer uma caminhada. Colocamos um lema como romaria através das
Queimadas ser um centro para romeiros”.89 Segundo ele, a idéia de fazer essa
romaria foi mais uma exaltação de fé pelos homens católicos de Dirceu Arcoverde
como também para incentivar a população a participar de mais essa atração dentro
dos festejos de nosso Senhor do Bonfim.

Figura 7 - Saída da Igreja matriz ao povoado de Queimadas (Fonte: acervo pessoal, 1010)

89
Entrevista concedida pelo senhor Geovane Alves da Silva, em 10/08/2011, na cidade de Dirceu
Arcoverde – PI.
316

A romaria tem início algumas horas antes da missa nas Queimadas. Por volta
das quatro horas da tarde, as pessoas saem, em caminhada, da Praça da Igreja
matriz de Dirceu Arcoverde que tem como padroeira Nossa Senhora de Fátima. Os
homens do terço vão até o Santuário das Queimadas. Na frente vai o padre e o
carro de som e, atrás, uma boa parte da população católica, cantando, rezando e
entoando louvores ao Nosso Senhor do Bonfim. Geovane explica:

A trajetória até agora a gente não tem papel como a gente deve
organizar. Através dessa organização, a gente sabe que é uma
caminhada muito longa, uma caminhada que as pessoas idosas,
jovens, adolescentes, crianças, também está procurando levar não
só como a nossa comunidade, mas para nossa diocese.90

Os devotos ao santo fazem peregrinações. Andam a pé alguns quilômetros


até ao santuário, demonstrando veneração e fé ao santo. No dia 06 de agosto,
quando é comemorada a festa do santo padroeiro continua havendo uma
caminhada em procissão, antes da missa, saindo o cortejo da casa do Pedrão que é
um lugar próximo, ao povoado de Queimadas. Ali outros devotos esperam a imagem
do santo para acompanhar juntos até o Santuário. Segundo eles, a fé continua viva.
Por isso, persistem em fazer sacrifícios para ir às missas, no povoado de Queimadas
(Fig. 8).

A paróquia e os romeiros do Senhor do Bonfim, principalmente a população


idosa e uma pequena parte da população jovem, têm como proposta continuar todos
os anos com o evento. A outra parte dos jovens está ligada mais nas festas
profanas. Ela não dá importância ao religioso. O bispo já proibiu as festas
dançantes, mas a população continua fazendo, desrespeitando a Igreja. O padre
Emanuel explica:

Chamamos de santuário, mas só de nome. De título, de direito


concedido pelo vaticano, pela Santa Sé, não é. Mas o povo, aqui de
Dirceu Arco Verde, da nossa Paróquia Nossa Senhora de Fátima que
vai lá, tem a participação de gente que as vezes nem nos festejos
daqui da matriz vem, o festejo de nossa senhora de Fátima. Mas é
atraído ao Senhor do Bonfim. Isso deixa uma certa esperança no
coração da gente.91

90
Entrevista concedida pelo senhor Geovane Alves da Silva, em 10/08/2011, na cidade de Dirceu
Arco Verde – PI.
91
Entrevista concedida pelo Padre Emanuel Messias Nunes Soloneira, em 10/08/2011, na cidade de
Dirceu Arcoverde - PI.
317

Figura 8 - Romeiros e a imagem do Santo (Fonte: acervo pessoal, 2010)

Segundo a análise do padre Emanuel, as romarias de Queimadas são uma


pedra fundamental na religiosidade de Dirceu Arcoverde e circunvizinhança. Nelas,
as pessoas manifestam sua fé no Senhor do Bonfim. Por isso, os devotos vão lá,
venerar o santo.

O padre Emanuel questiona: “Muita gente ainda não descobriu a identidade


do Senhor do Bonfim. Pensa que o Senhor do Bonfim é um santo qualquer, como
Santo Antonio, são Pedro e São Paulo. O Senhor do Bonfim é a própria santidade. É
Jesus, o filho de Deus”.92

Alguns católicos acreditam muito nele. Outros pensam que ele não é tão
importante assim. O mesmo padre menciona: “Pouca gente descobriu quem ele é”.

O número de romeiros das Queimadas vem aumentando, a cada ano. Vêm


pessoas de varias regiões vizinhas, a pé, de carro e de motocicletas. Essa
demonstração dos fiéis chama atenção. Cada vez mais, o povo busca soluções
mágicas aos seus problemas.
92
Idem, em 10/08/2011
318

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O povoado de Queimadas tem mais de um século e meio. Seu povo


comemora as festividades do Senhor do Bonfim, uma das manifestações populares,
religiosas e culturais das mais antigas do Sudeste do Piauí. O povoado recebe
visitas de devotos vindos de diversas regiões.

Há um tipo de frequentadores profanos que afluem com o intuito de participar


apenas das festas dançantes, das farras e bebedeiras. Apesar de a Igreja ser
totalmente contrária, muitas pessoas continuam fazendo as festas profanas para
obter seus lucros e prazeres carnais.

A maior parte dos frequentadores é devota de Nosso Senhor do Bonfim. Ano


após ano aumenta o número de participantes que, cada vez mais, acreditam que o
santo é milagroso. Ele atende suas necessidades de saúde. Eles pagam promessas
e fazem vários sacrifícios, como andar a pé, para agradecer as graças recebidas.

A Igreja combate as festas dançantes porque pretende transformar a capela


do povoado em um santuário. Na luta que se trava entre o religioso e o profano, no
povoado de Queimadas, o céu parece levar ligeira vantagem sobre o inferno.

REFERÊNCIAS

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Contemporâneos. Rio de Janeiro, 2003.

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metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

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dezembro de 2010.
319

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Manuais informativos. Trabalhos de levantamento documental Imaterial, 2006.

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POHH. Inácio Ângelo. Patrimônio cultural e ações educacionais. In PESAVENTO,


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PESAVENTO. Sandra Jatahy. História Cultural. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica,


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RIBEIRO, Nerfino. Homenagem: uma vida, 1996.

SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. São Paulo: Brasiliense. Coleção
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THOMPSON, Paul. 1934 a voz do passado. História oral. Trad. Lólio Lorenço de
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HALBWCHES, Maurice. A Memória Coletiva, 2006.


IX O PATRIMÔNIO EDIFICADO DA CIDADE DE CORONEL JOSÉ DIAS – PI

Rianne Maria Oliveira Paes


Mauro Alexandre Farias Fontes

INTRODUÇÃO

O município de Coronel José Dias está localizada na região Nordeste do


Brasil, no Sudeste do estado do Piauí, a 500 km de Teresina, capital do estado, na
microrregião de São Raimundo Nonato. Sua emancipação política efetivou-se pela
Lei Estadual n° 4.477, de 29 de abril de 1992, no entanto, a efetivação desta lei foi
em 1º de janeiro de 1993, quando o território que compreendia o povoado de Várzea
Grande foi desmembrado do município de São Raimundo Nonato.

O município de Coronel José Dias possui uma superfície de 1.822 km 2,


representando 0,72% do estado do Piauí. A sede do município está localizada nas
coordenadas geográficas de 08º48’59” de latitude sul e 42º40’45” de longitude oeste
(IBGE, 2006). Atualmente a cidade de Coronel José Dias é formada pelos bairros:
Barro Vermelho, Santa Luzia, Limoeiro, Bela Vista, São Pedro e Centro.

O objeto deste estudo são as edificações do bairro São Pedro. Este bairro,
primeiro povoado da cidade, teve início com a criação de gado e a exploração da
maniçoba. Era conhecido como Rua Velha, a antiga sede da fazenda Várzea
Grande.

Com esse trabalho, pretende-se identificar e cadastrar as edificações,


passíveis de tombamento, do início do povoado Rua Velha que deu origem à cidade
de Coronel José Dias – PI. O interesse em trabalhar com o resgate das antigas
edificações reside no objetivo de contribuir para que a mesmas não desapareçam da
memória da comunidade local. É bom que sejam elencadas enquanto elementos
identitários da população de Coronel José Dias, num contínuo processo de
construção do patrimônio material que influencia no das sociedades
contemporâneas (SILVA, 2003).

Segundo Jorge (2000), a origem da palavra Patrimônio vem do latim pater


que, em sua acepção mais básica, significa pai, nesse sentido enquanto herança,
321

comportamento ligado, aquilo que o pai deixa para os filhos. Desse sentido material,
chega-se ao figurado: aquilo que tem valor incomensurável.

A cidade de Coronel José Dias teve início com a chegada de Vitorino Dias
Paes Landim que recebeu aquele território, como prêmio ao massacre indígena. O
presidente da província do Piauí em exercício, Manoel de Sousa Martins, doou a ele
três fazendas: Boqueirãozinho, Serra Talhada e Serra Nova. Na sede da fazenda
Serra Nova originou-se o povoado de Várzea Grande. Isto deu-se no a Pno de
1829. O povoado foi autenticado e levado ao Cartório da Vila de São Raimundo
Nonato no dia 1º de abril de 1855. Para tal, o Cônego Sebastião Ribeiro Lima pagou
de emolumento a quantia de um cruzeiro e cinqüenta centavos.

A Fazenda Serra Nova era uma pequena vila constituída de uma igreja e um
conjunto de edificações de arquitetura colonial.93 Com a construção da BR-020, no
início da década de 1960, e com a emancipação política, houve um crescimento
populacional, um desenvolvimento econômico e uma expansão territorial que dividiu
o povoado de Várzea Grande em Rua Velha, hoje bairro São Pedro, e Barragem,
hoje centro da cidade. A Rua Velha, bairro mais antigo do município, é portador de
um arcabouço cultural importante para a memória da comunidade.

Os objetivos específicos desta pesquisa são:

 Identificar como se deu a formação do povoado de Várzea Grande;

 Identificar as edificações (casas, igreja, bodega, etc.), do início do processo de


formação do povoado Várzea Grande, mais precisamente a Rua Velha, hoje
bairro São Pedro;

 Identificar as construções passíveis de tombamento, para o futuro processo de


Tombamento Municipal, com o apoio da Secretaria de Turismo do Município.

A busca pela preservação é um processo de diferentes e difíceis estágios que


ultrapassam a aplicação de ações institucionais e de instrumentos legais
preservacionistas.

A realização dessa ação somente é possível quando o “valor do bem” a ser


preservado é reconhecido pela comunidade a qual, identificando com o fim visado,

93
SANTANA, Edvaldo. Povoado São Pedro e os desbravadores que deram origem a cidade Berço do
Homem Americano. São Raimundo Nonato: INTA, 2010
322

interage no processo de valorização e torna real e efetiva a ação. O acervo histórico


representativo do período de formação da cidade já foi parcialmente destruído.
Talvez a pesquisa ajude a compreender a luta pela permanência de alguns
descendentes dos primeiros moradores da comunidade e sua relação afetiva com o
patrimônio material edificado da atual cidade de Coronel José Dias.

1 PATRIMÔNIO MATERIAL

A extensão do uso do termo Patrimônio, como herança social aparece na


França pós-revolucionária, quando o Estado decidiu tutelar e proteger as
antiguidades nacionais às quais se atribuía significado para a história da nação.

O conjunto de bens entendidos como herança do povo foram, então,


designados como Patrimônio Histórico. É importante observar que em sua acepção
original, incluía não apenas os bens imóveis, mas também os bens móveis, tais
como acervos de museus e documentos textuais (TEIXEIRA et alli, 2004, p. 2).

Patrimônio implica uma inexplicável articulação de herança e construção. É


herança porque, subjacente à idéia, encontra-se a vontade de conservar, valorizar e
transmitir certos bens. É construção porque tais valores são indissociáveis do olhar
contemporâneo sobre eles. É uma criação da sociedade atual, na medida em que os
reconhece como valores patrimoniais.

Segundo Hugues de Varine-Boham, o patrimônio cultural divide-se em três


grandes categorias de elementos (LEMOS 1925):

 A primeira relaciona-se com os elementos pertencentes à natureza, ao meio


ambiente. São os recursos naturais, que tornam o sítio habitável. Nesta
categoria estão, por exemplo, os rios, a água desses rios, os seus peixes, a
carne desses peixes.

 A segunda refere-se ao conhecimento, às técnicas, ao saber e ao saber fazer.


São os elementos não tangíveis do patrimônio cultural. Compreende toda a
capacidade de sobrevivência do homem no seu meio ambiente. Vai desde a
perícia no rastejamento de uma caça esquiva na floresta escura até as mais
altas elucubrações matemáticas apoiadas nos computadores de última geração.
323

 A terceira é muito importante porque reúne os chamados bens culturais que


englobam toda a sorte de coisas, objetos, artefatos e construções obtidas a
partir do meio ambiente e do saber fazer.

Patrimônio é uma herança, sim, mas é, sobretudo, um projeto. Esse projeto


pode ser predominantemente considerado como algo elitista, quase um lugar de
culto moderno para uma minoria esclarecida, ou como um elemento de fruição
comunitário, que é necessariamente plural e pode e deve ser sentido vivido de
formas muito diversas por pessoas diferentes (OLIVEIRA, 2000).

A comunidade do Bairro São Pedro, tem uma grande identificação com as


edificações antigas porque sabe que seu conjunto arquitetônico foi a origem do
município de Coronel José Dias - PI.

O patrimônio é um elemento da cidadania e da identidade, nas várias


escalas, local, regional, nacional e mundial ou, por outras palavras,
um elemento-chave da vivência democrática. Não deve, não pode
ser imposto em cima da autoridade do Estado, deve ser incorporado
como tal pelo conjunto dos cidadãos, como um recurso coletivo de
desenvolvimento e de bem-estar, de qualidade de vida. Deve ter
mais um sentido ascendente do que descendente, embora, conforme
os valores em causa, existam vários tipos responsáveis em relação
ao que consideramos patrimônio (VITOR OLIVEIRA JORGE, 2000).

Se um sítio, ou uma região, é declarado (a) patrimônio da humanidade, isto


implica, obviamente um compromisso de responsabilidade que vai desde o habitante
local até a comunidade internacional, não devendo as diversas instâncias alienar,
para outras, as suas responsabilidades próprias.

No ano 1933, ocorreu o IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna -


CIAM, na cidade de Atenas. O tema do congresso era a cidade funcional, que
propunha uma nova maneira de viver, com base em uma ocupação racional do solo
urbano. Os princípios adotados naquele congresso foram reunidos em um
documento denominado Carta de Atenas cuja meta era “(...) uma cidade que
funcionasse adequadamente para o conjunto de sua população, distribuindo entre
todas as possibilidades de bem-estar decorrentes dos avanços técnicos (...)” 94.

94
As referencias à Carta de Atenas foram extraídas da obra A Carta de Veneza (versão de Le
Cousier; tradução de Rebeca Sherer). São Paulo: Hucitec, Edusp, 1993. (Estudos avançados),
não- paginada.
324

A cidade funcional idealizada na Carta deveria ser organizada para atender


a quatro necessidades básicas humanas: habitação, lazer, trabalho e circulação. Por
sugestão da delegação italiana, introduziu-se uma seção destinada ao patrimônio
histórico das cidades. A proteção ao patrimônio histórico estava consagrada na
medida em que os valores arquitetônicos (edifícios isolados ou conjuntos urbanos)
deveriam ser salvaguardados, se constituíssem expressão de uma cultura anterior.

A Carta de Atenas é um marco importante para a proteção dos bens culturais


imóveis, em virtude do seu caráter universal, constituindo-se importante diretriz
seguida pelos profissionais ligados às políticas urbanas.

No ano 1964, durante o II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos


de Monumentos Históricos, realizado na cidade de Veneza, aprovou-se a Carta de
Veneza. A importância dessa Carta está na reunião dos princípios de uma ampla
compreensão dos problemas de conservação e da restauração dos monumentos e
do ambiente que os envolve.

A Carta de Veneza nasceu em razão da crescente preocupação com a


deterioração dos monumentos históricos, sobretudo daqueles destruídos durante a
Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Ela retomou a preocupação da Carta de
Atenas em relação à proteção do patrimônio histórico. Segundo Murilo Marx, ela
ampliou e aprofundou os fundamentos da proteção ao conceituar a “conservação, a
restauração e a documentação”. A Carta de Veneza foi concebida para tratar
exclusivamente da proteção dos monumentos.

A primeira contribuição dada por esta Carta foi a afirmação de um interesse


universal pela conservação dos monumentos históricos. O preâmbulo da Carta de
Veneza evoca a responsabilidade da humanidade em relação à salvaguarda das
obras monumentais que integram seu patrimônio comum para as futuras gerações95.

A noção de monumento, concebida pela Carta de Veneza, compreende a


criação arquitetônica isolada, bem como o ambiente no qual ele se insere. Portanto,
segundo os princípios da Carta de Veneza, conjuntos históricos podem ser
adaptados às necessidades modernas. Trata-se da noção de revitalização do
monumento que pode ser reutilizado a despeito de sua função original.

95
Gian Carlo Gasperini, op.cit.,p .21
325

Em 1972 fez-se a Convenção Relativa à Proteção Mundial, Cultural e Natural.


Nela definiram-se alguns conceitos básicos sobre patrimônio edificado:96

 Monumentos: são obras arquitetônicas, de escultura ou de pintura


monumentais, elementos ou estruturas de natureza arqueológica, inscrições,
cavernas e grupos de elementos que tenham um valor universal excepcional do
ponto de vista da história, da arte ou da ciência;

 Conjuntos: são grupos de construções isoladas ou reunidas que, em virtude de


sua arquitetura, unidade ou integração na paisagem, tenham um valor universal
excepcional do ponto de vista da historia, da arte ou da ciência e

 Lugares notáveis: são obras do homem ou obras conjugadas do homem e da


natureza, bem como as zonas, até mesmo lugares arqueológicos, que tenham
valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou
antropológico.

A classificação dada pela Convenção procura atender às possíveis


manifestações humanas por meio dos bens culturais imóveis. Os monumentos e os
conjuntos compreendem realizações exclusivas da ação humana, os lugares
notáveis, as realizações conjuntas do homem e da natureza.

Ao longo dos anos, o Comitê do Patrimônio Mundial, por meio de suas


reuniões, formulou alguns conceitos para melhor caracterização dos bens culturais
previstos na Convenção Relativa à Proteção Mundial, Cultural e Natural, de 1972.

Os conjuntos, ou os chamados sítios culturais, são os locais que agregam


os bens culturais considerados de grande valor, ao lado daqueles de menor
expressão. Este procura conservar todo o conjunto onde o homem habita e
manifesta suas realizações. É a conservação do ambiente humano. Essa concepção
resulta diretamente da Carta de Veneza e é adotada como um dos princípios básicos
de proteção, conforme manifestação do diretor-geral da UNESCO na XVI
Conferência Geral da organização.

De acordo com a Convenção Relativa à Proteção Mundial, Cultural e Natural,


de 1972, a cidade de Coronel José Dias, caracteriza-se como um bem cultural
pertencente ao patrimônio cultural dos conjuntos e lugares notáveis. O Bairro São

96
Artigo 1º da Convenção da UNESCO, “sobre o Patrimônio Mundial, Cultural e Natural”, adotada em
Paris, em 1972.
326

Pedro é formando por um conjunto arquitetônico remanescente do final do século


XIX e início do século XX. Caracteriza-se com a arquitetura do início do século XX
que estava associada ao desejo de novidade, na qual não há um momento exato, ou
uma brusca mudança nos sistemas construtivos. Suas edificações têm
características da arquitetura vernácula. Nela a comunidade utiliza técnicas e
matérias encontradas no próprio local. As mesmas também se caracterizam por sua
história e arquitetura. Pela história pode-se perceber que estas edificações tiveram
início com a chegada dos criadores de gado e dos maniçobeiros na região97.

1.1 PROCESSO DE TOMBAMENTO

Patrimônio cultural é o conjunto de bens que possui valores para uma


comunidade. Esses valores podem ser históricos, artísticos, paisagísticos, afetivos e
outros, sendo fundamental para a identidade daquele grupo social.

Os bens culturais são classificados em materiais, que representam os bens


móveis e imóveis, como quadros, livros, esculturas, edifícios, conjuntos urbanos, e
artefatos arqueológicos. Os bens imateriais são as formas de expressão, as
técnicas, as lendas, as tradições, a culinária, que são transmitidas de geração em
geração.

Após exaustivo estudo sobre determinada área ou bem que é representativo


para uma comunidade, estabelecem-se regras específicas para esse bem ou
conjunto de bens, com o intuito de preservar as características que os qualificam
para proteção. O tombamento só é feito aos bens materiais móveis ou imóveis. No
caso do patrimônio cultural de natureza imaterial, faz-se o registro do bem.

O tombamento não se confunde com a desapropriação, pois o proprietário do


bem pode vendê-lo ou alugá-lo. Há apenas uma restrição, no que se refere às
alterações que venham a ser feitas no bem. Qualquer intervenção só pode ser feita
se autorizada pelo órgão que efetuou o tombamento. Contudo, não pode ser
destruído ou descaracterizado.

97
SANTANA, Edvaldo. Povoado São Pedro e os desbravadores que deram origem a cidade Berço do
Homem Americano. São Raimundo Nonato: INTA, 2010
327

As constituições brasileiras de 1824 e 1891 eram omissas quanto à proteção


dos bens culturais imóveis. A primeira referência àquela categoria de bens encontra-
se na Constituição de 1934, ao dispor que “compete concorrentemente à União e
aos estados proteger as belezas naturais e os monumentos de valor histórico ou
artístico, podendo impedir a evasão de obras de arte”.98 Excluído do campo das
competências federais, ao Município era vedada a ação normativa para a proteção
dos bens culturais.

A Constituição de 1937 dispunha de dispositivo semelhante, mas conferia aos


municípios a responsabilidade pela proteção dos bens culturais:

Os monumentos históricos, artísticos e naturais, assim como as


paisagens ou os locais particularmente dotados pela natureza,
gozam da proteção e dos cuidados especiais da nação, dos estados
e dos municípios. Os atentados contra eles cometidos serão
equiparados aos cometidos contra o patrimônio nacional.99

A mesma sistemática foi adotada pela Constituição de 1946, ao fazer


referência à expressão poder público, do que se infere a responsabilidade da
União, dos Estados e dos municípios pela proteção. “As obras, monumentos e
documentos de valor histórico e artístico, bem como os monumentos naturais, as
paisagens e os locais dotados de particular beleza ficam sob a proteção do poder
público”.100

A Constituição de 1988 trouxe várias inovações em relação às constituições


anteriores. Estabeleceu que a preservação do patrimônio histórico e artístico
nacional é competência comum da União, dos Estados e dos Municípios.

No Piauí, as entidades que tratam da preservação são: o Instituto do


Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN, por meio da Superintendência
Regional do Piauí, e a Fundação Cultural do Piauí - FUNDAC. Em Coronel José
Dias, a Secretaria de Turismo tem grande interesse na criação de um documento em
nível municipal e estadual em defesa da proteção do patrimônio material da cidade.

O artigo 216 da Constituição de 1988 utiliza a expressão patrimônio cultural,


dando-lhe conteúdo, ao especificar os bens culturais que ele abriga, os bens de
natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores

98
Constituição de 1934, artigo 10º, III.
99
Constituição de 1937, artigo 134.
100
Constituição de 1946, artigo 175.
328

de referencia à identidade, à nação, à memória dos diferentes grupos formadores da


sociedade brasileira, para, a seguir, enumerá-los nos incisos daquele mesmo
dispositivo.

Em relação aos bens culturais imóveis, abandona a noção de


monumentalidade que permeava as constituições anteriores101. Os monumentos
representam as grandes realizações humanas, daí a expressão notável,
anteriormente cunhada, que denota bens grandiosos e significativos.

Assim, a Constituição reconhece como bens culturais imóveis as “edificações


e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais”. Tais
manifestações são aquelas provenientes “das culturas populares, indígenas e afro-
brasileiras, e de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”.102

Outra inovação importante encontra-se no inciso V do artigo 216, da


Constituição de 1988. As constituições anteriores apenas faziam referência aos
monumentos ou obras históricas ou artísticas. Nesse aspecto, a atual Constituição
amplia o universo, dos bens culturais imóveis, conferindo-lhes maiores qualificações,
ao reconhecer os conjuntos urbanos e sítios também de valor paisagístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.103

Os meios de proteção são tratados pela primeira vez em nível constitucional:


inventários, registros, vigilância, tombamento, desapropriação, e “outras formas de
acautelamento e preservação”.104 No Brasil, a proteção do patrimônio cultural,
denominado patrimônio artístico e nacional, é regulamentada pelo Decreto - Lei n
º 25/37. Esse decreto disciplina o instituto do tombamento, o processo de
tombamento de um bem, os efeitos jurídicos produzidos pelo instituto e as sanções
advindas da não-observância das restrições que recaem sobre o bem tombado.

Segundo o Decreto - Lei n º 25/37, o tombamento é o instituto jurídico pelo


qual se faz a proteção do patrimônio histórico e artístico, que se efetiva quando o
bem é inscrito no livro do tombo.105

101
Carlos Frederico Marés. “A proteção jurídica dos bens culturais”. In: Cadernos de Direito
Constitucional e Ciência Política, n º 2, ano 1, p. 23, janeiro-março de 1993.
102
Constituição de 1988, artigo 216, parágrafo 1º
103
Constituição de 1988, artigo 216, V.
104
Id, artigo 216, parágrafo 1 º.
105
Decreto-Lei n º 25/37, artigo 1º, parágrafo 1º.
329

O artigo 4º do Decreto - Lei n º 25/37 prevê quatro livros do tombo, nos quais
deverão ser feitas as inscrições dos bens culturais que são: Livro do Tombo
Arqueológico, Etnográfico, Belas Artes e Paisagístico em que são inscritos os bens
“pertencentes às categorias de arte arqueológica, etnográfica, ameríndia e
popular”106 e os “monumentos naturais, bem como sítios e paisagens que importe
conservar e proteger pela feição notável com quem tenham sido dotados de
natureza ou agenciados pela indústria humana”107; Livro do Tombo Histórico em que
inscrevem-se “as coisas de interesse histórico e as obras de arte histórica” 108; Livro
de Belas-Artes que se destina à inscrição das “coisas de arte erudita, nacional e
estrangeira”109; Livro de Tombo das Artes Aplicadas que é reservado à inscrição das
“obras que se incluírem na categoria das artes aplicadas, nacionais ou estrangeiras”
110
.

A inscrição num dos livros de tombo determina uma diretriz de conservação


estabelecida pelo órgão responsável pelo tombamento, conferindo-lhe também
critérios para apurar eventual dano sobre o bem cultural. A principal disposição legal
referente aos bens tombados é o Decreto - Lei nº 25/1937 que, dentre outros, impõe
penalidades em caso de destruição do patrimônio cultural:

Art. 17 - As coisas tombadas não poderão, em caso nenhum, ser


destruídas, demolidas ou mutiladas, nem sem prévia autorização
especial do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ser
reparadas, pintadas ou restauradas, sob pena de multa de cinqüenta
por cento do dano causado.

Por se tratar de edificações remanescentes do início da cidade de Coronel


José Dias, o bairro São Pedro insere-se no Livro de Tombo Histórico. Este bairro
propiciou a chegada de criadores de gado e de maniçobeiros vindos de outras
regiões em busca de melhores condições de vida. Aqui se instalaram por se tratar
em um local bastante propício para a extração de maniçoba. A fazenda Serra Nova,
foi uma das pioneiras na extração da maniçoba111. Além disso, sua arquitetura
vernácula remete ao início do século XX que se caracterizava pelo desejo de
novidade.
106
Id. Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, artigo 4 º,item 1.
107
Id. Artigo 1º, parágrafo 2º.
108
Livro do Tombo Histórico, artigo 4º, item 2.
109
Livro do Tombo das Belas-Artes, artigo 4º, item 3.
110
Livro do Tombo das Belas-Artes, artigo 4º, item 4.
111
SANTANA, Edvaldo. Povoado São Pedro e os desbravadores que deram origem a cidade Berço
do Homem Americano. São Raimundo Nonato: INTA, 2010
330

2 O PROCESSO DE COLONIZAÇÃO DO PIAUÌ

A colonização do território piauiense teve início na segunda metade do século


XVII, quando foram concebidas as primeiras sesmarias. Até a década de 1660,
aproximadamente, a região assemelhava-se a um corredor migratório. Os
transeuntes estavam preocupados na busca de índios, nas descobertas de minerais
e no conhecimento geográfico da área. Por essas razões, nenhum interesse foi
demonstrado na fixação em definitivo no local, com exceção de Domingos Jorge
Velho que chegou a se instalar na região por um período mais longo.

Também a ação dos missionários católicos serviu de suporte à


colonização do Piauí. Além do trabalho desenvolvido nas
peregrinações pelas aldeias, nas missões jesuíticas agrupavam - se
os indígenas que passaram a receber ensinamentos tanto religiosos
como aqueles que possibilitaram habituá-las para o trabalho
organizado. Diz o próprio rei de Portugal. No que bem mostra a
experiência o quanto é preciso assistência dos padres missionários e
porque, por este meio, se puderam trazer muito mais para esta
empresa tão sacrossanta (...). E por se ter mais certo que será isto
um instrumento muito eficaz para reduzi-los ao caminho da verdade
sendo sobre as doutrinas que se lhes prega.112

Na primeira fase da história do Piauí, observa-se que os interesses


metropolitanos encontravam respaldo na mobilização dos bandeirantes e dos
religiosos com relação à população indígena. Domingos Jorge Velho sintetiza muito
bem o espírito dos conquistadores, ao afirmar:

Irmos ao sertão deste continente (...) Se não adquirir o tapuia gentio


brabo e comedor de carne humana para reduzir ao conhecimento da
urbana humanidade e humana sociedade de racional trato, para por
esse meio chegar a ter aquela luz de Deus e dos mistérios da fé
católica que lhes basta para a sua salvação.113

Estando a coroa interessada na ocupação colonial da área, utilizou-se do


sistema de sesmaria que, na prática, constituiu-se na distribuição da terra a quem
empreendesse a conquista. Aproveitando-se de tal medida, os criadores expandiram
o espaço pecuarista, conquistando novas áreas ainda não monopolizadas pelos
grandes senhores. Se, por um lado, intensificou a conquista do território, por outro

112
Carta de El Rei, de 13 do 01 de 1699 – A.H.V/Pé – cód. 257. Fl.7
113
Carta de Domingos Jorge Velho a El Rei, datada de 05.07.1964. /M: ENNES – op. Cit; p. 201- 207.
331

resultou na formação do latifúndio que viria a ser uma das principais características
do Piauí.

As primeiras sesmarias no Piauí, concedidas a Domingos Afonso Mafrense e


a outros três requerentes, abrangiam dez léguas em quadro para cada uma, o que
totalizou uma concessão, de uma só vez, de 5,7% do atual território piauiense. Isto
significa que, nas condições da época, somente a pecuária permitia a ocupação
econômica das terras.

A criação de gado nos sertões piauienses, desde meados de 1674, quando


Domingos Afonso Mafrense estabeleceu as primeiras fazendas na região dos rios
Piauí e Canindé, teve êxito apenas como instrumentos de ocupação do território
(BRANDÃO, 1999). A pecuária extensiva tal como se implantou no Piauí, resultou
em uma economia primitiva, tradicional dentro do sistema econômico em formação
no Brasil. Para se formar uma fazenda de gado eram suficientes poucas cabeças de
gado e alguns escravos. Não houve necessariamente a construção de casas e sim
currais rústicos, feitos com matérias locais, sob a responsabilidade dos moradores
da fazenda.

Entre 1730 a 1772, após o início da ocupação das terras, registrava-se a


existência de 129 fazendas de gado no Piauí crescendo para 400 fazendas. Como
todo o processo de desenvolvimento produtivo, a pecuária começou a perder ritmo
de crescimento a partir da segunda metade do século XIX. O desenvolvimento da
pecuária só acontece quando está integrada à agricultura, não apenas para a
produção de alimentos suplementares para os rebanhos nos tempos de seca, mas
também como atividade complementar da renda do trabalhador.

No Piauí, algumas fazendas iniciaram a plantação de cana de açúcar. Esta se


reservava, basicamente, à fabricação de rapaduras e aguardentes, nos pequenos
engenhos existentes, destinadas ao consumo próprio e ao mercado local. Ainda no
final do século XIX, deu-se início ao extrativismo.

No início do século XX, a extração do látex da maniçoba teve grande


expressão econômica na região semi-árida. Essa atividade influenciou no
surgimento de vilas, povoados e até cidades (BRANDÃO, 1999). A árvore da
maniçoba pertence ao gênero botânico Manihot, da família das Euforbiáceas. É
resistente à seca porque guarda reservas de água nas raízes e no caule. Durante o
332

período seco, as folhas caem para economia de água e só voltam com as primeiras
chuvas. A árvore produz o látex durante todo ano, porém os maniçobeiros preferiam
trabalhar logo após o inverno, isto é, de março a setembro. Nas épocas de seca
quando as folhas caem, a produção é menor (OLIVEIRA, 2001).

Esta atividade teve importância destacada para o Piauí, principalmente no


período compreendido entre 1897-1913, quando se tornou economicamente viável
com os altos preços internacionais da borracha, sendo a Inglaterra o principal
comprador e distribuidor desta matéria-prima. A partir de 1911, a tendência dos
preços foi persistentemente decrescente, e contribuiu para que diminuísse de forma
progressiva (GODOI, 1993).

Na década de 1920, a exportação era insignificante no conjunto da economia


regional. Esta economia extrativista sucumbiu com a concorrência asiática mas, a
partir dos anos 1940 houve a segunda fase de exploração da maniçoba, quando os
japoneses dominaram os mercados asiáticos, em virtude da Segunda Guerra
Mundial. Por esta razão, os americanos incentivaram novamente a produção que
permaneceu, de forma contínua, até 1960 (QUEIROZ, 1984, p. 29).

Até o final do século XIX, a maioria das terras na região em estudo: Bairro
São Pedro – Antiga Várzea Grande era utilizada na atividade pecuária e na
agricultura. Os trabalhadores iam chegando e ocupando a área em que iriam
trabalhar. Cada um procurava marcar o seu terreno e se adaptar da melhor maneira
possível.

Uma boa parte dos imigrantes chegou à região, no início do século XX,
primeira fase da borracha. Muitos dos seus filhos permaneceram na atividade até o
final dos anos 1940. Grande parte herdou o trabalho dos pais e, entre os dois
períodos de boa comercialização do produto, continuou fazendo a extração, apesar
da pouca procura da borracha, alternando-a com a agricultura de subsistência.

Na primeira fase de desenvolvimento do comércio da maniçoba, a resistência


em aceitar a interação dos trabalhadores de fora era freqüente. Alguns casamentos
ocorriam somente entre forasteiros. Os trabalhadores que chegaram à região
vinham geralmente sozinhos e solteiros e se dirigiam às terras onde o trabalho
estava organizado sob o comando de um barraquista (OLIVEIRA, 2001, p. 83).
333

2.1 A ORIGEM DE VÁRZEA GRANDE

Como toda fazenda no Piauí, Várzea Grande também surgiu da necessidade


de expansão de terra para a criação de gado. No século XVIII, a pecuária foi a maior
atividade econômica do Piauí. Ela influenciou o surgimento de vários povoados e
futuramente cidades como, por exemplo: São Raimundo Nonato, Dirceu Arcoverde,
São Lourenço e Coronel José Dias. A pecuária perdeu seu ritmo de crescimento a
partir da segunda metade do século XVIII, entrando em declínio no início do século
XIX.

Na época de luta pela posse de terra, no século XIX, Vitorino Dias Paes
Landim tomou parte na conquista da terra dos índios que habitavam essas
caatingas. Na verdade o termo tomar parte é eufemismo porque o que ocorreu, de
fato, foi um massacre. Com essa ação violenta, o mesmo foi recompensado com
terras, conforme o registro eclesiástico feito em 1855:

Eu abaixo assinado declaro que sou possuidor do sítio denominado


Serra Nova, nesta freguesia de São Raimundo Nonato. Província do
Piauí, havido por descoberta que dele fiz em ano de mil oitocentos e
vinte nove e da qual me tenho autorizado em razão de concessão do
governo, feita a quem tomasse parte na conquista dos índios que
habitaram essas caatingas; sua extensão é de duas léguas de
comprimento, duas de largura; confinando ao nascente com terras da
fazenda Alagoinhas, ao poente com o sitio denominado Torre, ao
Norte com a serra que corre em frente dos fundos dos pastos e dali
por diante seguem-se terras incultas, ao Sul com o retiro Boa Vista,
pertence à fazenda Curimatá, limites estes provenientes de
convenções particulares entre mim e os respectivos donos. E por ser
de lei fiz passar a presente declaração em que me asseguro sendo
duas do mesmo teor, uma para o registro, e outra, que ficará em meu
poder. Vila de São Raimundo Nonato vinte e um de Abril de mil e
oitocentos e cinqüenta e cinco = Vitorino Paes Landim=. Apresentava
nesta Vila de São Raimundo Nonato aos vinte e um de abril de mil
oitocentos cinqüenta e cinco, pagando por uma somente mil
quinhentos e vinte réis = O vigário Sebastião Ribeiro Lima114
(GODOI, 1999).

Do século XVIII ao XIX, ocorreu o massacre dos povos nativos e a


transformação das terras em lavouras e fazendas de gado. Vitorino Dias Paes
Landim recebeu do governo, como presente pelo ato de desbravamento, as três
fazendas: Serra Nova, Boqueirãozinho e Serra Talhada. O Sítio Serra Nova com a
114
Registro eclesiástico de 1855, fls. 4V. e 5. Arquivo Histórico da casa Anísio Brito, Teresina (Apud
GODOI, 1999)
334

valorização e extração da borracha de maniçoba, em primeiro de abril de 1855,


passou a se chamar Fazenda Várzea Grande, com uma grande extensão de terra
conforme registro em cartório:

A dada “Várzea Grande” limita-se ao Norte, com as Gerais, ao


nascente, com as dadas Almas e Alagoinhas; ao Sul, com a dada
Onça e ao Poente com a dada Sitio da Torre, todas deste município.
Sua área é de 13.068.000.000 e foi avaliada globalmente em CR$
653,40 e para efeito da divisão a razão de CR$ 0,05 por hectare,
cabendo aos condôminos de acordo com os títulos juntos aos autos,
as áreas geométricas seguintes.115

Nota-se que o registro eclesiástico caracteriza a gleba de terra como sitio


Serra Nova e não como fazenda Serra Nova. Isto foi um artifício para driblar a
resolução Nº 76, de 17/07/1822, que extinguiu o regime de sesmarias e definiu a
ocupação da terra pelo critério do tipo de trabalho empreendido. A fazenda
destinava-se à criação de bovinos. O sítio era destinado à agricultura e à criação de
miunças. As posses eram as terras destinadas aos camponeses, mas, de fato, esse
critério acabou servindo apenas para nomear de outra forma as antigas sesmarias.
Assim, era possível encontrar grandes extensões de terras classificadas como
posses ou sítios (GODOI, 1999).

Conforme relato pessoal de uma moradora local, em 1910 chegou à fazenda


Várzea Grande o senhor José Dias que era advogado e tabelião de justiça no Piauí.

Coronel José Dias, nasceu na antiga Várzea Grande (Bairro São


Pedro). Saiu junto com seus pais para São Raimundo Nonato onde
se criou e estudou. Ele nasceu no século XIX, não sei o ano. Era ele
quem arrumava as coisas. Mudava os nomes como de Serra
Talhada, Serra Nova para Fazenda Várzea Grande. Era advogado e
116
ajudava as pessoas nas questões. Chegou à fazenda em 1910.

Em 1916, a fazenda Várzea Grande passou à condição de povoado do


município de São Raimundo Nonato, mantendo o mesmo nome. O povoado
centralizava grande parte do comércio da região. Por estar próximo de São
Raimundo Nonato e de São João do Piauí ocorria grande fluxo de pessoas em
busca de venda e compra de produtos.

115
Os documentos contendo essas informações (Inventários) estão localizados no 1° Cartório de
Registro Civil de São Raimundo Nonato –PI. Registro de Divisão, Separação e Aquisição das
Posses da Fazenda Várzea Grande, PP. 80 ess, 10, Cartório de São Raimundo Nonato em 1950.
116
Informação verba obtida em entrevista com a senhora Nailde Martins Dias, no dia 10/03/2010.
335

Em 1962, o povoado passou a município com o nome de Coronel José Dias,


em homenagem ao coronel, conforme relatam as pessoas mais antigas da
comunidade. Sua emancipação não durou três dias. Ela foi contestada por Edson
Ferreira, deputado na época, sob alegação de não ter havido plebiscito para a
mudança de nome.

No dia 29 de abril de 1992, passou à condição de município, pela Lei 4.447,


aprovada na Assembléia Legislativa e sancionada pelo Governador do Piauí Antônio
Almeida Freitas Neto (Fig. 1). O processo de desmembramento foi movido pelos
deputados Marcelo Castro e Valdemar Macedo.

Figura 1 - Mapa de localização do Município de Coronel José Dias (Fonte: Google imagens)
336

2.2 ECONOMIA E MEMÓRIA DE VÁRZEA GRANDE

Manoel Coelho Cavalcante (Neco) com sua esposa Ana e os filhos foi uma
das primeiras famílias a chegar à região de São Raimundo Nonato, no início do
século XX, provavelmente vindo de Pernambuco. Ele trabalhou, inicialmente, como
escrivão, na fazenda Serra dos Gringos, que pertencia ao industrial americano
Adolpho Hirchs. Relatos de médicos do Instituto Oswaldo Cruz, que passaram pela
região em 1912 e visitaram a fazenda Serra dos Gringos, citam a presença de mais
de 400 trabalhadores no que foi considerado, o maior empreendimento da região
(PENA e NEIVA, 1916). Neco Coelho adquiriu, posteriormente, outras propriedades,
dentre elas a fazenda Jurubeba (OLIVEIRA, 2001).

A Fazenda Jurubeba representa o tipo de ocupação colonial do


espaço, no sertão do Piauí, que teve início a partir do século XVII,
quando as terras eram ocupadas e exploradas economicamente por
atividades baseadas na criação de gado.
Durante muito tempo, as terras da Fazenda Jurubeba foram
utilizadas para a pecuária, a agricultura de subsistência e para a
extração e o cultivo da maniçoba. Na fazenda nasceram e foram
criados seus filhos que mais tarde exploraram e comercializaram a
maniçoba na região, principalmente na Fazenda Barreirinho,
comunidade da então cidade de Coronel José Dias (OLIVEIRA,
2001).

Na segunda fase da maniçoba, nos anos 1940, ainda houve grande migração
de pessoas oriundas de Pernambuco, da Bahia e de outros lugares, em busca de
extrair e comercializar a borracha.

No ano de 1942, chegou à região a família de Manoel Roberto da Silva, vinda


de Tacaratu – PE, em busca da extração da maniçoba. Aqui chegando, apossa-se da
Fazenda Gongo que tinha quatro léguas em quadro. Lá, onde possuía um barracão,
dedicou-se à exploração da maniçoba. Barracão era um local que servia para venda
e troca de produtos. No barracão ficava um contador que cuidava da transação
comercial entre extrativistas e o proprietário. Em 1946, Manoel Roberto da Silva
possuía um comércio no povoado de Várzea Grande, onde fornecia produtos
alimentícios para os trabalhadores da maniçoba. A maniçoba adquirida pelo senhor
Manoel Roberto era vendida em São João do Piauí.
337

Em 1959 Manoel Roberto e seus filhos compraram uma área de terra vizinha,
para onde transferiram sua casa e comércio. Neste mesmo ano iniciou-se a
construção da BR-020 cujo traçado passava próximo à sua residência e comércio.

O desenvolvimento urbano do povoado de Várzea Grande deu-se no início do


século XX, na segunda fase da borracha, que era sua principal atividade econômica.
Os imigrantes começaram a se aglomerar no local por ser próximo da área de
extração de maniçoba. O local ficava próximo, também, de uma capela onde se
comemoravam as festas de São Pedro, no mês de junho. Ali construíram suas
residências e casa comerciais.

De acordo com os moradores atuais, em 1925 a comunidade assistia as


novenas na capela cuja sede era na casa de Dona Maria Josefa. A igreja de São
Pedro foi construída entre 1936 e 1946, pela própria população local. Os homens
trabalhavam como pedreiros e o serviço de carregar material como água e tijolos era
feito pelas mulheres. Os padres Francisco, Jerônimo e Ângelo foram os primeiros a
celebrarem missas no povoado.

O velho Isidoro, pai do senhor Bruno, contou que, quando foram


construir a igreja, andava um bêbado que gostava de xingar e dizer
palavrões. No momento que estavam construindo o alicerce, ele foi
ajudar e, pegando uma pedra esta caiu em cima de seu pé e disse
um palavrão. “Ai, meu pé, satanás” e jogou a pedra dentro do
alicerce. Como as pessoas eram muito supersticiosas, por ser a casa
de Deus, não podia ser excomungada, então decidiram construir ao
lado, desprezando esse alicerce117.

Pelo que consta nos documentos do 1º Cartório de São Raimundo Nonato, a


terra onde foi construída a citada igreja, foi doada pelo Senhor João Libório de
Freitas e sua mulher Lídia Lima Libório, em 1950. Nos registros de julho de 2006, no
1º Cartório de São Raimundo Nonato consta, também, que 200 hectares de terras
que se dizem ausentes, pertence ao Padroeiro (São Pedro). Até o momento, em
nenhum documento consta outro proprietário.

Conforme depoimentos de alguns moradores, em 1948, existiam três lojas de


tecidos e algumas bodegas no povoado. A borracha de maniçoba também era
comercializada em Várzea Grande: “os comerciantes da Várzea Grande Rua Velha,

117
Informação oral concedida pela senhora Isabel Neres de Oliveira, no dia 12/03/2010.
338

vendiam a borracha que compravam dos maniçobeiros para comerciantes de São


Raimundo Nonato, São João do Piauí, Canto do Buriti e outros”118.

As bodegas existentes no povoado eram utilizadas para a compra de produtos


como borracha e fornecimento de alimentos para os maniçobeiros. Alguns
comerciantes, a exemplo de Manoel Roberto, tinham barracões, barracas de pano
ou de saco que ficavam na fazenda Gongo, próximo aos maniçobais. Eles forneciam
produtos alimentícios que, às vezes, eram trocados por borracha com os
trabalhadores no local de extração. Depois vendiam a borracha na Várzea Grande,
em São Raimundo Nonato ou em São João do Piauí119.

Em frente à Igreja havia um abrigo que servia como mercado público para
vendas de vários produtos como: frutas, verduras, legumes, leite, carnes e outros.
No mesmo local funcionava o açougue da época120.

Em relação ao lazer dos moradores do Bairro São Pedro, havia salões de


festas. Um deles pertencia a Matias. Nele ocorriam várias festas. Comemoravam os
festejos de São Pedro. Só restou a casa que virou residência da família Pereira121.

Na segunda fase, a extração de maniçoba (1940 a 1960) melhorou a renda de


muitos moradores do Povoado Várzea Grande. Assim, desenvolveu-se o seu
comércio. Com a desvalorização da borracha, surgiu o cultivo do fumo (Nicotiana
Tabacum), que teve sua expressão comercial na região, no período de 1944 a 1960.

2.3 DECLÍNIO ECONÔMICO DO BAIRRO SÃO PEDRO (1958-1999)

A decadência da maniçoba e do fumo ocorreu no início da década de 1960,


quando foram construídas a Barragem e a Rodovia Fortaleza a Brasília - BR-020.
Estas construções demandaram mão-de-obra e contribuíram para que as pessoas
do bairro São Pedro começassem a mudar-se para alojamentos próximos ao

118
Informação oral concedida pelo Sr. Expedito Rodrigues do Nascimento, no dia 13/03/2010.
119
SANTANA, Edvaldo. Povoado São Pedro e os desbravadores que deram origem a cidade Berço
do Homem Americano. São Raimundo Nonato: INTA, 2010
120
Informação oral. Entrevista com a senhora Isabel Neres de Oliveira ,concedida no dia 12/03/10.
121
SANTANA, Edvaldo. Povoado São Pedro e os desbravadores que deram origem a cidade Berço
do Homem Americano. São Raimundo Nonato: INTA, 2010
339

trabalho. Aos poucos foram construindo suas residências e comércios, formando


assim um novo povoado que recebeu o nome de Barragem.

No tempo do DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra a


Seca) as pessoas não saíram de uma só vez fora, vindo aos poucos
até construírem suas casas e ficarem de vez. Foi em 1960, quando já
tinha movimento da estrada BR-020, que as pessoas começaram a
transferirem seu comércio para a Barragem. O primeiro a construir
seu comércio foi o Senhor José Cesário (Zé Preto) e como ele os
outros comerciantes. No abrigo onde funcionava a feira livre, eram
vendidas carnes, frutas e verduras. Não só as pessoas da
comunidade faziam compras como também de algumas fazendas
vizinhas, como por exemplo, a Fazenda Alma, Fazenda Lagoinha e
outras122.

Nas décadas de 1970 e 1980 o comércio do povoado ainda resistia, com


poucas casas que forneciam cereais e compravam a produção local. Alguns
comerciantes permaneceram ainda por um bom tempo. Dos anos 1980 a 1990,
houve um grande êxodo. Nos anos de 1979 a 1982 surgiram muitas oportunidades
de trabalho com a chegada da Construtora QUEIROZ GALVÃO que veio para
pavimentar a BR-020, beneficiando várias pessoas. Os que permaneceram no bairro
São Pedro viviam da produção agrícola e de criação de animais.

Estes fatores contribuíram para que os comerciantes mudassem seus


estabelecimentos para as proximidades da Barragem, hoje sede do município de
Coronel José Dias (Fig. 2). A construção da Rodovia – BR 020 ocasionou um grande
fluxo migratório regional e interestadual para São Paulo, Minas Gerais. Isso
contribuiu para a decadência econômica do povoado de Várzea Grande, bairro São
Pedro que, aos poucos, foi sendo abandonado pelos seus primeiros moradores.
Surgiram o esquecimento e o abandono. Alguns descendentes ainda resistem e
persistem em desenvolver atividades que garantam a sua sobrevivência no povoado,
recordando os tempos do seu apogeu.

122
Informação oral concedida pelo Sr. Expedito Rodrigues do Nascimento, no dia 13/03/2010.
340

Figura 2 - Localização de Coronel José Dias (Fonte: Carvalho, 2003)


341

3 A TRADIÇÃO ORAL E A ARQUITETURA, NA IDENTIFICAÇÃO DO


PATRIMÔNIO EDIFICADO DE CORONEL JOSÉ DIAS - PI

3.1 TRADIÇÃO ORAL

A tradição oral é um método de pesquisa que privilegia a realização


de entrevistas com pessoas que praticaram ou testemunharam
acontecimentos, conjunturas, visões do mundo como forma de se
aproximar do objeto de estudo (VERENA ALBERTI, 2000).

De acordo com a tradição oral, pode-se identificar o casario que deu origem
ao povoado. Isabel Neres, Jeremias Pereira, Nailde Martins e Expedito Rodrigues
relatam sobre seis edificações antigas que deram início ao povoado. Trata-se de
uma igreja e cinco casas que serviam de residência e, ao mesmo tempo, de local
para a comercialização de mercadorias.

Isabel Neres, moradora mais antiga do bairro, relata algumas histórias do


início do povoado, quando Vitorino Dias Paes, no início do Século XX, chegou ao
local. Segundo Isabel, no ano 1916, existia uma casa que foi uma das primeiras a
ser construída na comunidade. Ela era dividida em casa de morada e um local de
comércio. No ano 1925, foi construída uma capela que funcionava na casa de Dona
Maria Josefa. No ano 1945, havia três lojas e bodegas que funcionavam nas
próprias casas de moradas. Havia uma grande feira livre na praça central, na frente
da igreja de São Pedro.

Jeremias Pereira é proprietário da casa mais antiga da comunidade. Trata-se


de uma herança patrimonial de sua família que passou de geração em geração.

Nailde Martins é descendente de Vitorino Dias Paes Landim que promoveu o


massacre indígena na região, por volta dos séculos XVIII e XIX e recebeu, em troca,
a fazenda Serra Nova que deu início ao povoado de Várzea Grande.

Expedito Rodrigues deu início ao processo de emancipação do município,


ocorrido no dia 29 de abril de 1992, quando passou à categoria de município pela
Lei 4.447. Com a emancipação houve a mudança do núcleo urbano da antiga Rua
Velha, para a Barragem, hoje centro da cidade, às margens da BR-020.
342

Segundo Parafita (2005), tradição oral:

É a transmissão de saberes feita oralmente, pelo povo, de geração


em geração, isto é, de pais para filhos ou de avós para netos. Estes
saberes tanto podem ser os usos e costumes das comunidades,
como podem ser os contos populares, as lendas, os mitos e muitos
outros textos que o povo guarda na memória (provérbios, orações,
lengalengas, adivinhas, cancioneiros, romanceiros, etc.). Também
são conhecidos como patrimônio oral ou patrimônio imaterial. Através
deles cada povo marca a sua diferença e encontra-se com as suas
raízes, isto é, revela e assume a sua identidade cultural.

3.2 ARQUITETURA

Trata-se de um conjunto arquitetônico remanescente do final do século XIX e


início do século XX, construídas em alvenaria,123 com adobe cru124 e cal. As
edificações apresentam traços da arquitetura colonial brasileira e alguns aspectos da
configuração vernácula do período do início do povoado de Várzea Grande.
Predominam as edificações térreas, com pé-direito125 alto, sem a presença de
platibanda126, com exceção da igreja de São Pedro. A arquitetura vernácula
caracteriza-se pelos recursos empregados do próprio local, ambiente em que a
edificação é construída.

Segundo Silva Filho (2007), um exemplo desse tipo de arquitetura é a cidade


de Jerumenha do Piauí. Trata-se de uma praça quadrada, com uma igreja no centro

123
Tipo de estrutura constituída por pedras naturais ou artificiais sobrepostas e ligadas ou não por
argamassa. Fonte: http://engenhariacivil.files.wordpress.com/2007/02/termos-tecnicos.pdf.
Acesso: 14/03/2011.
124
Essa técnica consiste em moldar o tijolo cru em fôrmas de madeira. O bloco de terra é seco ao sol,
sem que haja a queima do mesmo. A mistura a ser moldada pode ser feita apenas com água e
terra ou com o acréscimo de estabilizante e fibras naturais. Amassado com os pés, forma-se uma
mistura plástica. Os tijolos de adobe são usados em paredes, abóbadas, cúpulas, entre outras.
Fonte: http://engenhariacivil.files.wordpress.com/2007/02/termos-tecnicos.pdf.
Acesso: 14/03/2011.
125
Altura entre o piso e o teto. Fonte: http://engenhariacivil.files.wordpress.com/2007/02/termos-
tecnicos.pdf
Acesso: 14/03/2011.
126
Termo arquitectónico Platibanda designa uma faixa horizontal (muro ou grade) que emoldura a
parte superior de um edifício e que tem a função de esconder o telhado. Pode ser utilizado em
diversos tipos de construção, como casas e igrejas. Tornou-se um ornamento característico
durante estilo gótico. Fonte: http://engenhariacivil.files.wordpress.com/2007/02/termos-
tecnicos.pdf
Acesso: 14/03/2011.
343

e ruas mais ou menos regulares. Ela originou-se de uma aldeia de índios


domesticados. Define-se o termo como um processo construtivo, um vocabulário
arquitetônico e como o uso das construções por um determinado grupo social, numa
determinada época, em uma determinada região.

A arquitetura espontânea, também denominada vernácula ou


anônima, é aquela construída por pessoas sem formação ou
atribuição profissional para tanto, constituindo-se em experiências
transmitidas de geração para geração, por meio de herança cultural.
Essa arquitetura empírica, produzida pela coletividade com matérias
simples e autóctones, procura se adaptar ao entorno próximo e à
tradição, utilizando elementos de baixo consumo energético
(ROHDE, 1983).

Conforme Silva Filho (2007), a moradia urbana piauiense, notadamente da


segunda metade do século XVIII e por todo o XIX, é tão portuguesa quanto a própria
língua dos colonizadores. Nela persistem certos fundamentos da casa lusitana,
como os parâmetros de pedra, os beirais em boca de telha ou planos de telhados
com tacaniças127, por vezes amortecidos de contrafeito no encontro dos beirais. O
transplante das soluções de além-mar, através do litoral e do sertão sanfranciscano,
não se fez com o rigor do classicismo renascentista.

Com uma política econômica orientada pelo comércio de boi, a Capitania


interiorizou-se, forçosamente. Desenvolveu estruturas arquitetônicas ajustadas à
condição de isolamento e de auto-subsistência.

A origem rural dos primeiros núcleos urbanos do Piauí, aliada a um


parcelamento relaxado do solo, iria conferir um caráter rústico à casa
da cidade. As casas das nascentes vilas setecentistas não passavam
de artefatos rudimentares de pouca duração, de tal sorte que quase
tudo vem do século XIX. Implantadas sobre limites frontal e lateral
dos terrenos, as edificações foram assentadas, esquadrejando, a
unidade urbana (SILVA FILHO, 2007).

Segundo a arquitetura do século XX, associadas ao desejo de novidade,


edificaram-se casas térreas e bangalôs assobradados que repetem semelhanças
nas formas. Variavam apenas no tratamento dos revestimentos, acabamentos de
beirais e esquadrios. As edificações representaram irregularidade do parcelamento
do solo, com lotes nos mais variados formatos.

127
Água triangular de uma cobertura. Viga que une duas águas convergentes.
344

Para Silva Filho (2007), o retângulo foi à geratriz para o riscado das casas que
ora se apresentavam com grandes frentes, ora compostas tão somente de porta-e-
janela. Boa parte dessas casas é mais larga que profunda, a exemplo a cidade de
Oeiras, onde se caracteriza um tipo de ocupação derivada de posses e
demarcações promovidas no passado pelos os grupos dominantes.

A casa urbana, com ou sem comércio é independente de se tratar de morada-


inteira , meia-morada ou porta-e-janela, foi levantada indistintamente, tanto nos lotes
centrais quanto nos de esquina.

Moradia e comércio vão se localizar em setores especificos. Nas


casas térreas invariavelmente o comércio fica na esquina, onde se
instalaram balcão e prateleiras. As vendas oferecendo todo tipo de
mercadorias, remédios, alimentos, bebidas, utensílios domésticos,
tecidos e ferramentas (...) (SILVA FILHO, 2007).

A cidade de Coronel José Dias tem uma arquitetura com características


remanescentes da arquitetura colonial brasileira que, durante a primeira metade do
século XX era associada ao desejo de novidade. Nela não há um momento exato,
ou uma brusca mudança nos sistemas construtivos, na configuração e organização
espacial da casa urbana, até porque a economia permanecia atrelada ao meio rural.

As edificações do bairro São Pedro, destacam-se pelo ritmo das aberturas, ou


seja, as aberturas das edificações estão na mesma direção, voltadas para a praça
central. As espessuras das paredes correspondem à largura do abobe. Foram
implantadas no alinhamento dos lotes. Seus telhados têm duas águas e são
cobertos por telha do tipo artesanal, com cumeeiras128 paralelas à rua, sendo
utilizados troncos de carnaúba como caibros129.

As edificações encaixam-se nas descrições de Silva Filho (2007), em que o


retângulo foi à geratriz para o riscado das edificações. No Piauí, ainda hoje, as
transações imobiliárias são feitas em função da frente e não da área do terreno.

128
Parte mais alta do telhado, onde se encontram as superfícies inclinadas (águas). A grande viga de
madeira que une os vértices da tesoura e onde se apóiam os caibros do madeiramento da
cobertura. Também chamada espigão horizontal
Fonte: http://engenhariacivil.files.wordpress.com/2007/02/termos-tecnicos.pdf
Acesso: 14/03/2011.
129
Peça de madeira que sustenta as ripas de telhados ou de soalhos. Nos telhados, o caibro assenta
nas cumeeiras, nas terças e nos fechais. No soalho, apóia nos barrotes.
Fonte: http://engenhariacivil.files.wordpress.com/2007/02/termos-tecnicos.pdf
Acesso: 14/03/2011.
345

A padronização do parcelamento do solo, com lotes de maior


profundidade que as frentes, aliada aos afastamentos lateral e
frontal, ocupados com jardins decorativos caracterizavam em novo
tipo de implantação, em completa ruptura com as antigas fachadas
alongadas. Com isso, as casas se tornam mais profundas. A
setorização já nada mais tem a ver com a tipologia da morada inteira
(SILVA FILHO, 2007).

Em Várzea Grande, atual bairro São Pedro, encontra-se um tipo de moradia


pouco diferente dos padrões. São casas bastante modestas, despojadas, de
vestíbulo ou corredor, com meia-água formando biqueiras e com cimalha de beiral
rematando as fachadas. Esse tipo de cobertura favorece a coleta de água pluvial,
por se tratar de um local com grande escasez de água.

As fachadas são caracterizadas pelo formado geratriz, ou seja no formato


retangular. Nesse formato há a presença de várias portas e janelas, caracterizando a
arquitetura do século XX, associada ao desejo de novidade, mas ainda movidas pelo
o caráter rural.

As edificações foram feitas de acordo com as condições climáticas, que


demandava construções compactas, de paredes espessas, com pequenas
aberturas, com predominância de cores claras e com coberturas altas, de materiais
isolantes e leves.

O principal material de construção utilizado na região de Várzea Grande são


tijolos e telhas produzidos no próprio local, a menos de 10 m, e é conhecido como
tanque.

A maior parte das residências no Piauí são construídas com


materiais próprios da região e se destacam: o barro, utilizado na
confecção de telhas, tijolos de adobe e vedos em taipa, e a
carnaúba, que aparece no madeiramento dos telhados e na
estruturação das paredes. Em geral, as casas possuem ambientes
amplos, com pé-direito alto e paredes internas de meia-altura
(BARRETO, 1838).

As casas foram construídas com materiais da própria região. As mesmas


possuem ambientes amplos e pé-direito alto. São retangulares. Ora apresentam-se
com grandes frentes, ora são compostas apenas de porta e janelas. A igreja que deu
origem à formação da comunidade foi construída na praça centralizada. Segundo
Silva Filho (2007), a mesma não se distancia, por completo, dos léxicos
346

renascentistas em que a arquitetura religiosa e os prédios públicos são construídos


nas praças centralizadas.

Para Silva Filho (2007), o povoado constitui-se de um pequeno aglomerado


rural com a capela de São Pedro na cabeceira mais elevada, com uma grande praça
cercada de habitações. O conjunto arquitetônico repete o espírito e ambientação de
povoações formadas no século XVIII130.

4 O PATRIMÔNIO MATERIAL DE CORONEL JOSÉ DIAS - PI

Pretende-se tombar, pela aplicação de legislação específica, as edificações


do bairro São Pedro como bens materiais, de valor histórico, cultural, arquitetônico,
ambiental e/ou simbólico para a comunidade, protegendo-o de descaracterização ou
de destruição (Fig. 3).

Figura 3 - Locais que compõem o espaço da Rua Velha (Fonte: Google Earth com
adaptação dos autores).

130
SILVA FILHO, Olavo Pereira da. Carnaúba, pedra e barro na Capitania de São José do Piauhy.
Belo Horizonte: Ed. do Autor. 2007.
347

Na primeira metade do século XIX já se constituíra em povoado. Possuía uma


capela e várias casas que abrigavam as famílias vindas principalmente do estado de
Pernambuco, em busca da extração da borracha de maniçoba, que era uma das
principias riquezas da época na região.

4.1 IGREJA DE SÃO PEDRO

A igreja caracteriza-se como uma construção imponente, com cobertura em


duas águas, telhas do tipo artesanal, arrematada por platibandas (Fig 4). Ela foi
construída pela própria população, em terreno doado por uma família religiosa da
localidade, no período de 1936 a 1940, em homenagem ao padroeiro131. Para
edificá-la fez-se uso da matéria prima local. Suas primeiras demarcações foram
deixadas de lado por uma superstição da comunidade que mudou toda a construção
para poucos metros ao lado. Naquela época, Várzea Grande era um povoado.
Pertencia ao município de São Raimundo Nonato.

Figura 4 - Igreja de São Pedro (Fonte: Rianne Paes, 2010).


131
Memorial da Religião do Bairro São Pedro. Paróquia Imaculada Conceição- Coronel José Dias -
PI, 2008.
348

4.2 CASA E BODEGA DO SR. GEREMIAS PEREIRA

Pintado de azul, o casarão onde funcionava a casa, bodega e salão de festas


de Pedro Inácio hoje pertence ao Sr. Jeremias Pereira que o utiliza como residência
e bodega. O casarão foi construido em 1916. Mantém sua arquitetura vernácula.
Está bem preservado em relação às casas do entorno. Jeremias é um dos
comerciantes que chegou em Várzea Grande nos anos 1970 (Fig. 5).

O casarão retrata a arquitetura de sua época. Tem fachada plana, com


contornos retos, em alto relevo, nas janelas e nas portas. Nela viveu Matias Dias,
comerciante que trabalhava como farmacêutico, receitando medicamentos para a
comunidade local. Havia um engenho de cana-de-açúcar, que era utilizado para a
produção de rapadura132.

Figura 5 – Casarão edificado no início do Século XX (Fonte: Rianne Paes, 2010).

132
Informação verbal concedida pelo Sr. Jeremias Pereira, no dia 11/03/2010.
349

4.3 CASAS E COMÉRCIOS

As demais casas localizadas no entorno da praça central da Rua Velha, eram


residências de pesssoas que trabalhavam e comercializavam a maniçoba. Algumas
serviam de local para a troca de alimentos, e até mesmo como loja de tecidos e
cereais (Fig. 6). No comércio local, destacaram-se os primeiros habitantes que
chegaram em 1910, vindos de Remanso - BA, ataídos pela exploração do látex de
maniçoba.

Figura 6 - Casas antigas do povoado Várzea Grande (Fonte: Rianne Paes, 2010)

Os comerciantes compravam o produto da maniçoba para revendê-lo aos


grandes comerciantes do estado da Bahia. Com o dinheiro da venda, as pessoas
compravam gêneros de primeiras necessidades como alimentos, tecidos, remédios,
calçados feitos sob encomenda nos sapateiros e até bebida alcoólica. Os
comerciantes da época compravam produtos como fumo, algodão, pele, mandioca,
milho, feijão, farinha e semente de biro que era utilizada para fazer sabão.

Até a década de 1950 esses produtos eram transportados para São


Raimundo Nonato, Canto do Buriti, Remanso e até para o estado do Maranhão, em
350

lombo de animais, utilizando a estrada que dava acesso a Teresina, passando pelo
pelo povoado de Várzea Grande. Os animais voltavam carregados dos produtos que
eram comercializados no povoado133.

Segundo Silva Filho (2007, apud Oliveira, 2007), pode-se caracterizar e


identificar esse conjunto arquitetônico que pode ser tombado como Patrimônio
Cultural da Humanidade, por suas características técnicas peculiares e por ter sido o
primeiro núcleo urbano que deu origem à cidade de Coronel José Dias - PI.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A identificação e a conservação de edificações históricas são importantes


para a cultura e para a história da cidade. Antes de se iniciar qualquer processo de
tombamento é necessário realizar uma pesquisa histórica, arqueológica e
arquitetônica sobre as edificações.

Esse trabalho teve como objetivo o levantamento e identificação do conjunto


arquitetônico da antiga Rua Velha, hoje bairro São Pedro cuja origem é atribuída,
pela historiografia piauiense, à chegada de pessoas para trabalhar na criação de
gado e na extração da borracha de maniçoba.

Foram utilizados três critérios para a identificação destas edificações: a


tradição oral, a historiografia piauiense e a arquitetura. De acordo com a tradição
oral, as edificações em estudo são de pessoas que vieram explorar a maniçoba que
era muito valorizada na época. Conforme Oliveira (2001), durante quinze anos da
fase áurea da primeira década do século XX, a região foi considerada como uma
das principais responsáveis pela exportação do látex de maniçoba no estado. A partir
de 1915 os preços começaram a cair e a produção, a diminuir na região.

Pelos depoimentos foi possível identificar seis edificações passíveis de


tombamento. Com os relatos, pôde-se conhecer a história versada pelos
entrevistados e ter acesso a outras informações relevantes para a realização desse
trabalho. Pôde-se observar, também, que as seis edificações passíveis de
tombamento fazem parte da arquitetura vernácula.
133
Informação verbal concedida pela senhora Nailde Martins Dias, no dia 10/03/2010.
351

De acordo com a Convenção Relativa à Proteção Mundial, Cultural e Natural,


de 1972, o bairro São Pedro, da cidade de Coronel José Dias caracteriza-se como
um lugar notável que pode ser tombado como patrimônio cultural. Tem edificações
do final do século XIX e do início do século XX. Elas apresentam características da
arquitetura colonial e vernácula. Na sua edificação foram empregados materiais e
recursos do próprio ambiente, caracterizando uma tipologia arquitetônica com
caráter local ou regional no processo de planejamento e ordenação do crescimento
urbano.

Com base nas suas peculiaridades o bairro São Pedro pode ser registrado no
livro de Tombo Histórico no qual se destacam “as coisas de interesse histórico e as
obras de arte histórica. Nele encontram-se elementos de vários períodos de
ocupação. Começa-se pela ocupação indígena e seu massacre, com a chegada de
fazendeiros em busca da criação de gado. Prossegue-se, com a chegada de
imigrantes, nos anos 1960, para extrair e comercializar o látex da maniçoba.
Finaliza-se com a construção da Barragem e da Rodovia BR-020, quando o bairro
entrou em declínio, transferindo-se a maior parte da sua população.

Esse patrimônio tem toda uma simbologia. Sua valorização é


responsabilidade não só do governo, mas da própria sociedade. Na maioria das
vezes, as pessoas da sociedade local não interessam por sua história e acabam
perdendo o vínculo de pertencimento com os monumentos e edificações históricas.

Esta pesquisa buscou elementos que configurassem o patrimônio edificado


como estratégia para se iniciar um processo de reconhecimento e preservação do
local diante da relevância do bairro para o início da cidade. A secretaria de Turismo
Municipal está elaborando um projeto de lei para tombar o casario do bairro São
Pedro como Patrimônio Municipal.

Com o tombamento das seis edificações espera-se que a Secretária de


Turismo da Prefeitura Municipal de Coronel José Dias promova a restauração das
mesmas. Elas poderão ser utilizadas como um museu histórico a céu aberto. Assim,
manter-se-á viva a cultura dos primeiros criadores de gado e maniçobeiros da
região.
352

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- PI.

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http://engenhariacivil.files.wordpress.com/2007/02/termos-tecnicos.pdf
Acesso: 14/03/2011.
X A TEMÁTICA DO PATRIMÔNIO CULTURAL NO CURRÍCULO ESCOLAR

Marian Helen da Silva Gomes Rodrigues


Juliana Ferreira Sorgine
Ana Stela de Negreiros Oliveira

INTRODUÇÃO

Este trabalho é decorrente do processo de reflexão e de inquietação


vivenciados enquanto bolsista do Programa de Especialização em Patrimônio do
IPHAN, na rotina do Escritório Técnico I, da 19ª SR do IPHAN, referente às ações
educativas direcionadas à temática do patrimônio, desenvolvidas nas comunidades
do entorno do Parque Nacional Serra da Capivara.

O Escritório Técnico I vinculado à Superintendência do IPHAN no Piauí,


localizado em São Raimundo Nonato-PI, desenvolve ações educativas desde 2005
(ano de sua criação), visando o envolvimento das populações do entorno do Parque
Nacional Serra da Capivara a seu patrimônio. Acredita-se que as ações educativas
centradas no patrimônio cultural são imprescindíveis à efetiva preservação e
apropriação consciente do patrimônio cultural pelas comunidades, tendo em vista as
ameaças de danos à integridade dos bens naturais e culturais, sobretudo
arqueológicos.

No rol das dificuldades enfrentadas na preservação do Parque, a mais


recorrente é a depredação antrópica. A caça predatória tem ocorrência permanente.
Depredam-se sítios arqueológicos, com pichações das pinturas ou destruição parcial
dos abrigos devido ao uso deles para moradias e acampamentos. Os
assentamentos rurais, realizados pelo INCRA, na área do corredor ecológico 134 entre
o Parque Nacional Serra da Capivara e Serra das Confusões também são motivos
de constantes preocupações.

134
O Corredor Ecológico corresponde a 412 mil hectares. É uma espécie de “estrada verde” que foi
criado para proteger várias espécies vegetais e animais entre o Parque Serra da Capivara e
Parque Serra das Confusões. O Corredor Ecológico é gerenciado por várias esferas
administrativas, governo federal, estadual e municipal, entidades não-governamentais,
Universidade Estadual do Piauí, Ministério Público entre outros. Fonte: www.ecoviagem.com.br.
Acesso em 15 de março de 2009.
355

Os problemas de destruição antrópica ocorrem desde que o Parque foi criado.


Constantes atritos acontecem entre moradores e os gestores do Parque. Esta é uma
das questões a ser enfrentada pelo Escritório do IPHAN. Muitos dos casos de
destruição antrópica acontecem por falta de instrução e despreparo da população.
Por isso o IPHAN aposta na inserção da temática do patrimônio nas ações
educativas, sejam elas do ensino escolar ou não.

Devido a essa complexidade de problemas enfrentados pelo IPHAN e pela


FUMDHAM135 para proteger o Patrimônio Cultural da Serra da Capivara, as ações
de cunho educativo tornaram-se prioridade, sobretudo nas escolas. Realizam-se
palestras sobre o patrimônio cultural, visitas monitoradas ao Parque Nacional Serra
da Capivara e ao Museu do Homem Americano, oficinas de arte e educação:
música, literatura de cordel, artes plásticas, capoeira, teatro e xilogravura com
motivos rupestres. Estas atividades permitem uma aproximação com a comunidade
quanto às questões de preservação do Parque Nacional Serra da Capivara.

No entanto, no decorrer do planejamento interno das atividades anuais do


Escritório Técnico, surgem questionamentos como: Que escolas selecionar? Que
ações seriam mais eficazes, levando em consideração o contexto de cada escola?
Como se dará a continuidade das ações? Os professores serão capazes de dar
continuidade? Que instrumento didático será utilizado?

As ações de Educação Patrimonial desenvolvidas pelo IPHAN isoladamente


não garante a sua eficácia. Pergunta-se: quais seriam as melhores formas de
aproximar a vivência escolar da lida de preservação do Patrimônio Cultural?
Palestras, oficinas, visitas monitoradas seriam suficientes ou deveria haver uma
combinação dessas ações com outras tantas? Que tipo de contribuição o IPHAN
pode e deve dar no que tange à temática do patrimônio em ações educativas?

Para discutir tais questões, este estudo parte dos seguintes pressupostos:

* Uma ação educativa integrada entre as várias esferas, IPHAN, FUMDHAM e


escola pode contribuir para que a temática do patrimônio cultural se constitua no
núcleo escolar de forma sistemática, contínua e dinâmica;

135
A Fundação Museu do Homem Americano foi criada em 1986, uma entidade científica brasileira,
que desenvolve nessa região, pesquisas interdisciplinares que abrangem o estudo da interação
homem-meio, da pré-história aos dias atuais. Fonte: www.fumdham.org.br. Acesso em 12 de
março de 2008.
356

* O projeto político-pedagógico é um suporte de democratização e autonomia da


escola. Nele pode-se inserir as peculiaridades culturais, artísticas e históricas locais.

Para tanto, decidiu-se realizar um estudo de caso na Unidade Escolar Elzair


Rodrigues de Oliveira, do 1º a 5º ano do Ensino Fundamental, situada no
assentamento Novo Zabelê, em São Raimundo Nonato - PI. Este estudo buscou
refletir sobre a inserção da temática do patrimônio cultural no núcleo escolar, com a
adoção de uma metodologia que incluiu concepções sócio-culturais e ambientais,
introduzindo as diversas questões e conflitos, de maneira que a escola e seus
integrantes estejam envolvidos.

Propôs-se identificar subsídios para o aperfeiçoamento e/ou construção de


um projeto político-pedagógico na escola Elzair Rodrigues de Oliveira. Incluiu-se a
temática do patrimônio cultural com ênfase no patrimônio cultural e ambiental do
Parque Nacional Serra da Capivara. Tentou-se promover uma relação de
pertencimento, apropriação consciente e proteção desse patrimônio.

Utilizou-se como metodologia um levantamento bibliográfico sobre tal


temática, tomando como base os documentos oficiais da educação: Leis de
Diretrizes e Bases da Educação (LDB), Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e
os documentos pedagógicos da escola objeto de estudo. Buscou-se compreender
como a temática do patrimônio cultural é enfocada nos documentos atuais e, por
outro lado, como a escola poderia trabalhar essa temática em seu currículo.

Para a pesquisa qualitativa, utilizou-se como metodologia o estudo de caso. A


pesquisa qualitativa envolve a obtenção de dados descritivos, obtidos no contato
direto do pesquisador com a situação estudada, dando mais ênfase ao processo do
que ao produto e se preocupa em descrever a perspectiva dos participantes
(BOGDAN E BILKEN,1982, apud LÜKKE E ANDRÉ, 1986).

Partindo desta premissa criou-se um espaço diagnóstico na Unidade


Escolar Elzair Rodrigues de Oliveira. Utilizou-se a observação e o diálogo com os
sujeitos da escola, por contatos nas oficinas, palestras, visitas monitoradas ao
Museu do Homem Americano, Parque Nacional Serra da Capivara desenvolvidas
pelo Escritório Técnico I. Alguns eventos escolares permitiram a investigação e a
discussão na identificação de subsídios para serem implantados na construção e/ou
aperfeiçoamento de um projeto político-pedagógico.
357

1 EDUCAÇÃO E PATRIMÔNIO CULTURAL

No arcabouço da preservação do patrimônio cultural, sujeitos conscientes


estarão aptos a construir “um futuro menos predatório” (CASCO, 2006, p. 3), pois o
conhecimento crítico e a apropriação das comunidades de seu patrimônio são a
garantia de preservação. Nesse processo, a educação patrimonial vem se tornando
um fator essencial na proteção do patrimônio cultural, pois como asseveram Mário
de Andrade e Luiz Magalhães a proteção do patrimônio depende da educação
popular (ORIÁ, 2008).
O processo educativo, em qualquer área do conhecimento, leva o indivíduo a
utilizar suas capacidades intelectuais para a obtenção de habilidades e conceitos
que serão utilizados na vivência cotidiana. Um dos objetivos que a educação
patrimonial propõe, segundo Horta (1999), é estimular situações de aprendizagem
sobre os processos culturais, seus produtos e manifestações, que doravante
despertarão nos sujeitos o interesse em resolver assuntos significativos para sua
vida individual e coletiva.
Nesse contexto, discutir sobre patrimônio material e imaterial no núcleo da
escola formal é essencialmente importante para a formação crítica cidadã,
considerado marco referencial de mudança (FREIRE, 2001). Essa discussão
estimulará nos educandos o aprendizado de habilidades e de temas que serão
importantes para a vida cotidiana. Além do mais, a experiência de refletir sobre o
contexto sociocultural e ambiental do seu entorno reforça as relações identitárias
entre as próprias pessoas e o ambiente em que se vive.
Freire (1987) completa que o educador deve partir do contexto dos sujeitos,
através do diálogo e da busca de temas geradores que possibilitem problematizar
questões inerentes à realidade desses.
Por sua vez, no escopo legal da educação brasileira, a Lei de Diretrizes e
Base da Educação Nacional – LDB 9394/96 enfatiza, com tenacidade, que a parte
diversificada dos currículos do ensino fundamental e médio deve observar as
características regionais e locais da sociedade e da cultura, abrindo espaço para a
construção de uma proposta de ensino direcionado para o contexto em que a escola
está inserida.
358

Os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs do 1º ao 5º ano e os do 6º ao


9º ano, alimentam a perspectiva de apropriação das questões regionais e locais para
potencialização dos currículos escolares. É importante lembrar que nos PCNs a
temática da Educação Patrimonial está prevista no ensino de História.
Fica claro que a LDB e os PCNs legitimam claramente a inserção da temática
do patrimônio cultural nos currículos. Eles permitem, dessa forma, que os
educandos reconheçam o patrimônio cultural do seu lugar e desenvolvam um
sentimento de revalorização e apropriação consciente, garantindo a sua preservação
e perpetuação.
Carvalho e Oliveira (2010) asseveram que é preciso investir na educação
porque é através dela que a população apropriar-se-á do conhecimento da realidade
cultural. Desse modo as pessoas estarão mais aptas a conviver solidariamente, de
forma sustentável, com os recursos naturais e culturais disponíveis no seu meio
ambiente.
Neste sentido, a prática pedagógica pauta-se na necessidade de reconhecer
a realidade, sobre ela refletir e nela intervir, numa perspectiva de desconstruir
saberes internalizados, modificando dessa forma “hábitos, atitudes, valores,
comportamentos e conceitos” (SOUSA E REIS, 2003, apud CARVALHO E
OLIVEIRA, 2010, p. 47).
Aplica-se essa discussão no contexto da pesquisa. É preciso que a
comunidade do Novo Zabelê lance um novo olhar para o Parque Nacional Serra da
Capivara, entendendo que o acervo arqueológico, a arte rupestre, a fauna e a flora
fazem parte de um patrimônio da coletividade em que ela está inserida e que,
doravante, poderá usufruir deste de forma sustentável.

1.1 PATRIMÔNIO CULTURAL E EDUCAÇÃO PATRIMONIAL

Segundo a Constituição Federal de 1988, somam ao patrimônio cultural


brasileiro todos os bens materiais e imateriais que sejam portadores de referência à
identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira.
359

Em linhas gerais, delineia-se o patrimônio cultural como um patrimônio que


possui importância afetiva, faz referência à memória, à história, e à identidade de um
povo. Quando se trata de bens culturais, remete-se às formas de conhecimento
passadas de geração em geração, às coisas que se cria à memória oral, às danças,
à alimentação e às festas. Tudo isso é importante, pois através desses bens pode-e
conhecer a história, os modos de viver, as expressões artísticas pertencentes a cada
grupo humano, e que os diferem entre si. Por isso, esse patrimônio é essencial para
uma coletividade.

Ainda, conforme a Constituição de 1988, a proteção do patrimônio cultural


brasileiro é de responsabilidade do poder público, em conjunto com a comunidade.
Dentre as formas de preservação patrimonial destacam-se inventários, registros,
tombamentos e ações que impedem sua destruição e descaracterização. O
conhecimento crítico e a apropriação das comunidades de seu patrimônio são a
garantia de preservação do patrimônio.

Santos (2008) sustenta que é fundamental a participação das pessoas


envolvidas nos processos de reconhecimento patrimonial. O valor cultural das
referências provém da concentração de significados detectados em todo grupo
social. Ele enfatiza ainda que o valor a um determinado bem não deve ser dado
somente pelos técnicos especializados, mas, sobretudo por diferentes segmentos da
população, assim poderão contribuir para definição de estratégias para a
preservação e formulação de políticas culturais. Fica claro que a participação da
população na prática de preservação do patrimônio é primordial, sobretudo através
da educação formal e/ou informal.

O conceito de preservar o patrimônio através da educação, já veio de Mário


de Andrade, no período de criação do SPHAN, atual IPHAN. O mesmo elucidou que
a proteção do patrimônio depende da educação. Mais adiante, no final do século XX,
Aloísio Magalhães corroborou essa afirmativa quando disse que a comunidade é a
melhor guardiã de seu patrimônio (ORIÁ, 2008).

Desde então, o IPHAN tem concentrado esforços na proteção dos bens


patrimoniais do país, criando leis específicas, formando técnicos, realizando
tombamentos e restaurações dos bens culturais. Atualmente tem investindo em
360

ações de cunho educativo nas comunidades e escolas situadas no entorno dos bens
tombados, no sentido de garantir maior proteção para esses bens.

Partindo desses pressupostos, nota-se que essas ações educativas, tratadas


como Educação Patrimonial, vêm se tornando um instrumento político de proteção
do patrimônio cultural. Mas, afinal o que se entende por Educação Patrimonial?

A ideia surge da necessidade de realizar um trabalho de conscientização e


preservação patrimonial. No IPHAN, não há consenso sobre que metodologia utilizar
para inserção do patrimônio em ações educativas. As mesmas sempre estiveram
presentes como um dos elementos de ações nos museus, com intuito de
complementar o processo de conhecimento e apropriação dos acervos
museológicos.

No entanto, essas ações educativas só começaram a tomar corpo, depois da


década de 1980, no 1º seminário que ocorreu no Museu Imperial em Petrópolis - RJ,
intitulado Uso Educacional de Museus e Monumentos, com inspiração no trabalho
pedagógico desenvolvido na Inglaterra sob a expressão de Heritage Education. A
partir desse seminário, o IPHAN criou um Guia Básico de Educação Patrimonial
coordenado pela museóloga Maria de Lourdes Parreira Horta e outros
colaboradores, contendo uma metodologia própria que se tornou um referencial no
que tange às ações educativas direcionadas para a proteção, disseminação,
valoração e apropriação do patrimônio cultural.

O Guia Básico define Educação Patrimonial como:

Um processo permanente e sistemático de trabalho educacional


centrado no Patrimônio Cultural como fonte primária de conhecimento
e enriquecimento individual e coletivo. A partir da experiência e do
contato direto com as evidencias e manifestações da cultura, em
todos os seus múltiplos aspectos, sentidos e significados, o trabalho
de Educação Patrimonial busca levar as crianças e adultos a um
processo ativo do conhecimento, apropriação e valorização de sua
herança cultural, capacitando-os para um melhor usufruto desses
bens, e propiciando a geração e a produção de novos conhecimentos,
num processo continuo de criação cultural (HORTA; GRUMBERG e
MONTEIRO, 1999, p. 6).

Ainda, segundo Horta, Grumberg e Monteiro (1999), o conhecimento crítico e


a apropriação consciente pelas comunidades de seu patrimônio cultural são de
suma importância para sua efetiva proteção, sustentabilidade e, sobretudo,
fortalecem laços afetivos e identitários. A metodologia pode ser aplicada a qualquer
361

evidência material ou manifestações culturais, seja um objeto, um conjunto de bens,


um museu, um sítio histórico ou arqueológico, uma unidade de conservação ou
qualquer expressão popular de relevância afetiva e coletiva.

Assim, a Educação Patrimonial começou a sair das dependências dos museus


e ganhar seu espaço em vários projetos de proteção ao Patrimônio. Consta,
inclusive, na portaria nº. 230 do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
– IPHAN, a educação patrimonial como elemento fundamental durante etapas de
pesquisas arqueológicas em áreas onde haverá empreendimentos de grande porte.

Na revisão bibliográfica feita para este estudo, viu-se que as pesquisas


nessa área ainda são incipientes. A produção acadêmica sobre ações educacionais
direcionadas a preservação patrimonial ainda é escassa, sobretudo no núcleo da
escola formal.

2 O PARQUE NACIONAL SERRA DA CAPIVARA, A COMUNIDADE E A


ESCOLA.

O Parque Nacional Serra da Capivara, situado no Sudeste do Piauí, região


semiárida do Nordeste do Brasil, foi criado em 06 de junho de 1979 pelo Decreto
Presidencial Lei nº. 83.548, a pedido da equipe de cooperação científica franco-
brasileira, para proteger uma área de 129.140.000 ha. e sua superfície de 241 km.
Fica a 530 km da capital do estado, Teresina. Sua criação deu-se por motivações
ligadas às questões de preservação de um meio ambiente específico e de um dos
mais importantes patrimônios culturais atualmente conhecidos no país. As principais
características que motivaram sua criação foram ambientais, culturais e turísticas
(PESSIS et al, 1991). Ocupa terras de quatro municípios, São Raimundo Nonato,
Coronel José Dias, João Costa e Brejo do Piauí136, e está coberto pelo bioma
caatinga, palavra indígena que significa floresta branca, ocupando 11% do território
nacional e 70% do estado do Piauí (Fig. 1).

136
Dados demográficos dos municípios que fazem limite com o Parque Nacional Serra da Capivara:
São Raimundo Nonato: 30.852 habitantes, em 2.428 Km²; Coronel José Dias: 4.358 habitantes,
1.822 Km²; João Costa: 3.199 habitantes, em 1.716 Km²; Brejo do Piauí: 3.181 habitantes, em
2.213 Km² ( Fonte: Censo IBGE 2007). Site www.ibge.gov.br. Acesso: 20 de janeiro de 2009.
362

Figura 1 - Mapa do Parque Nacional Serra da Capivara, e as cidades que o compõem


(Fonte: FUMDHAM)

O Parque Nacional Serra da Capivara é a única unidade de conservação do


Brasil destinada à preservação da caatinga. Nele encontra-se um importante acervo
de sítios pré–históricos com evidências da presença do homo sapiens desde o
Pleistocênico Superior. A esse patrimônio arqueológico está agregada uma grande
quantidade de arte rupestre nos mais de 600 paredões rochosos areníticos.

Em 1991, devido à importância mundial do complexo artístico rupestre a


Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura (UNESCO)
inscreveu o Parque Nacional Serra da Capivara na lista de Sítios Patrimônio
Mundial, e em 1993, foi considerado patrimônio nacional pelo IPHAN com inscrição
no livro de tombo arqueológico, etnográfico e paisagístico (BUCO, 2005).

A Fundação Museu do Homem Americano e o IBAMA gerenciam o Parque


Nacional Serra da Capivara. Nele realizaram-se importantes descobertas para a
compreensão da trajetória do homem pré-histórico no continente Americano.
Durante os últimos trinta anos, essa equipe científica estudou a região, constituindo
um importante acervo de conhecimentos sobre a área. No entanto, a sua trouxe
363

vários conflitos sociais com as comunidades tradicionais, gerados, sobretudo, pelo


modelo de criação das Unidades de Conservação no Brasil. Disposições legais
impedem que grupos humanos coabitem o mesmo espaço e continuem com as
mesmas práticas de subsistência, sendo as de maiores ocorrências relacionadas à
caça de animais selvagens, à retirada e a queima de madeira.

Diegues (2001) explica que os parques nacionais eram concebidos dentro de


uma ótica de conservação na qual o homem e a natureza são separados. Esta
concepção gira em torno do mito da natureza intocada, no qual a natureza é
representada em sua forma “autêntica” e primitiva.

A persistência de problemas e a dificuldade de adquirir recursos para custear


as pesquisas, dentre outros fatores, motivaram a FUMDHAM/IBAMA (atual ICMBio)
criar um Plano de Manejo para o Parque137, no qual foram delineadas diretrizes e
estratégias de uma política ambiental, cujos objetivos voltam-se para a proteção do
mesmo e para a garantia de continuidade das pesquisas (PESSIS et al, 1991).

Com a criação do Parque surgiu também a necessidade da implantação de um


sistema intensivo de preservação patrimonial, fomentando os cuidados com o meio
ambiente, o desenvolvimento de uma política autossustentável, econômica e social
nas comunidades. Com isso, a FUMDHAM desenvolveu, desde 1989, trabalhos
educativos e profissionalizantes com as comunidades do entorno do Parque
Nacional Serra da Capivara.

Inicialmente foram construídos três Núcleos de Apoio à Comunidade (NACs),


nos povoados de Sítio do Mocó, Barreirinho e Serra Vermelha, numa parceria com a
Instituição Italiana Terra Nuova. O núcleos tinham escolas, creches e postos de
saúde. Com eles visava-se oferecer ensino diferenciado para a realidade local em
tempo integral e cursos profissionalizantes, além de melhores condições de saúde e
nutrição para as crianças. Os alunos entravam na escola, às 7 horas e saíam às 17
horas. Recebiam aulas do ensino formal com professores capacitados e
desenvolviam atividades extracurriculares centradas em arte-educação. Recebiam

137
De acordo com Plano de Manejo (2004, p. 5): “O plano de manejo de um parque nacional é um
instrumento teórico e operacional destinado a organizá-lo segundo suas características, de acordo
com as finalidades que originaram sua criação. Seu objetivo é fornecer as bases de organização e
a estratégia para coordenar a proteção do meio ambiente, do patrimônio cultural e a utilização
cultural e recreativa de uma área. O plano identifica as ações prioritárias para que os objetivos
definidos sejam alcançados, estabelece os procedimentos que regulam a utilização das áreas do
Parque Nacional e determina o cronograma operacional.”
364

também três refeições diárias e cuidados médicos por enfermeiros formados pela
FIOCRUZ do Rio de Janeiro.

Em 1996, os NACs foram transformados em Centros de Educação Ambiental


(CEAs), e foram construídos mais dois centros ao Norte e Nordeste do Parque com
o apoio do Ministério da Educação, do Governo do Estado, do BNDES e da
EMBRATEL.

A iniciativa foi considerada pela UNICEF em 1993 e, em 1999, foi honrada


pelo ITAU/UNICEF, como o melhor programa de capacitação docente realizado na
rede pública dos municípios, no entorno do Parque.

A partir de 2000 surgiram dificuldades na aquisição de verbas para a


manutenção das crianças nas escolas durante os dois períodos, motivo pelo qual a
FUMDHAM foi buscar parceria com os municípios. A mesma cedia os prédios em
comodato e eles cuidavam da educação e manutenção da estrutura. Infelizmente a
qualidade do ensino foi insuficiente, a carga horária reduziu-se em duas horas
diárias, o tempo das crianças em contato com a escola decaiu, os professores
capacitados pela UNESP foram substituídos, prédios e instalações não foram
mantidos. Assim sendo, a parceria foi desfeita.

Para encontrar uma alternativa intermediária e evitar a interrupção do trabalho


educacional criou-se o Pró-Arte FUMDHAM, em parceria com o Instituto Ayrton
Senna, uma escola de arte-educação, visando além de outros objetivos, ações
educativas centradas no patrimônio cultural e natural do PARNA através da arte
(RELATÓRIOS DA FUMDHAM)

2.1 A COMUNIDADE DE ZABELÊ E A UNIDADE ESCOLAR

Ninguém nasce feito, ninguém nasce marcado para ser isso ou aquilo. Pelo
contrário, nos tornamos isso ou aquilo, somos programados, mas para
aprender. A nossa inteligência se inventa e se promove no exercício do
social (PAULO FREIRE).

No processo de criação do Parque Nacional Serra da Capivara, muitas


famílias estavam instaladas em vários povoados dentro da área que foi delimitada. O
365

povoado de Zabelê, que formava a maior comunidade, com aproximadamente 90


famílias, é o único totalmente inserido nas terras do PARNA (DIAS, 2007).

No povoado Zabelê a mão de obra era predominante familiar, havendo troca


de dia de trabalho entre os camponeses do próprio povoado. Dificilmente havia
pagamento em dinheiro, geralmente havia troca de favores ou objetos. A agricultura
de subsistência era a principal atividade econômica com poucos rendimentos, sendo
a mamona o único produto destinado à comercialização. Os camponeses relatavam
diversas dificuldades de sobrevivência do grupo naquele local: o isolamento, a seca,
a fome, a má qualidade das estradas. O único transporte utilizado eram os jumentos
que passavam por pequenas trilhas. As festividades religiosas138 eram dias
importantes para comunidade, pois implicava na intensificação da rede de relações
entre o Zabelê e os povoados vizinhos, reforçando assim laços sociais (GODOI,
1993). A água consumida pelos moradores era de difícil acesso e de má qualidade.
Lá praticava-se a caça predatória de animais selvagens e a queima de madeira.

Nos anos seguintes, os pesquisadores da Missão Franco-Brasileira139,


mantiveram contato com os moradores dos povoados que seriam atingidos pelo
processo de demarcação da área do Parque, na tentativa de conscientização para a
importância da sua preservação.

De acordo com o Código Florestal e o Regulamento dos Parques Nacionais,


nenhuma comunidade humana podia continuar habitando ou trabalhando dentro do
Parque. No período a FUMDHAM e o IPARJ140 cogitaram que fosse implantado um
projeto de acompanhamento educacional ecológico, proporcionando assim a
permanência dos grupos humanos na área do PARNA, constituindo assim um
projeto piloto no que tange a salvaguarda dos Parques no Brasil. Porém, o Código
Florestal e Ambiental e o Regulamento dos Parques impediram.

Assim, algumas famílias afirmaram que preferiam sair do povoado em vez de


ficarem instalados lá, sem poder caçar, plantar e tirar madeira. O processo de

138
Comemoravam o padroeiro São José e a Padroeira Nossa Senhora de Fátima (GODOI, 1993).
139
Equipe de pesquisadores de uma cooperação científica bi-nacional (França-Brasil), responsável
pelas pesquisas realizadas no Parque Nacional Serra da Capivara. Tais pesquisadores criaram a
Fundação Museu do Homem, uma entidade cientifica, filantrópica, social civil (OSCIP), sem fins
lucrativos, declarada de utilidade pública, estadual e federal e cadastrada no Conselho Nacional
de Assistência Social (Fonte: www.fumdham.org.br). Acesso: 20 de julho de 2008.
140
Instituto de Pesquisas Antropológicas do Rio de Janeiro, responsável na época de realizar a
delimitação, o levantamento fundiário e a avaliação do número de habitantes do interior do PARNA
(ARRUDA,1997).
366

indenização foi tenso. Muitos moradores eram posseiros e não puderam receber
indenização por suas culturas temporárias (ARRUDA, 1997). Assim, parte da
população migrou para São Raimundo Nonato e Coronel José Dias, cidades do
entorno do Parque. Alguns construíram novas moradias, abriram pequenos
comércios e outros conseguiram empregos como feirantes, zeladores, entre outros.

A partir de 1997, o IBAMA solicitou ao INCRA a aquisição de novas terras para


reassentar aquelas famílias. A comunidade passou a habitar terras localizadas na
zona de preservação permanente141 do Parque Nacional Serra da Capivara. Assim,
foi criado o Assentamento Lagoa Novo Zabelê, localizado a 12 km da cidade de São
Raimundo Nonato (Fig. 2 e 3). Atualmente o assentamento possui 171 famílias. Nem
todos os assentados são oriundos do antigo Zabelê. No processo de delimitação
fundiária, outras pessoas consideradas sem terras, de vários locais da macrorregião,
ganharam terras para se reassentarem (DIAS, 2007).

No período de cerca de 20 anos, o assentamento foi beneficiado por vários


projetos do governo federal, entre eles: projeto de moradia rural; energia elétrica;
água encanada; sistema telefônico; casa de farinha comunitária; uma unidade
escolar de ensino regular; posto de saúde com atendimento médico e odontológico.

Dentro do assentamento há diversos projetos autossustentáveis em


desenvolvimento, produção de produtos de limpeza, apicultura, fabricação de doce e
geleias de frutas nativas, criação de ovinos e caprinos, remédios fitoterápicos, horta
comunitária de plantas medicinais, plantação de caju, mamona e artesanato com
sementes de cipó. Hoje a população reconhece que a disponibilidade de água,
saúde, eletricidade, transporte e projetos autossustentáveis melhoraram muito as
suas condições de vida em relação às condições precárias do antigo Zabelê.

No entanto, a comunidade tem dificuldade de se relacionar com esse


patrimônio e ainda conserva, em alguns aspectos, os mesmos modos de vida que
dos grupos antes da criação do Parque, entre eles o extrativismo e a caça ilegal.

141
Zona de preservação permanente é uma faixa de proteção de 10 km do perímetro do Parque.
Nessa área encontram-se mais de 500 sítios arqueológicos com pinturas rupestres. Não é uma
área tombada, portanto existem várias comunidades alojadas, sobretudo assentamentos agrários,
onde ocorre a caça predatória de animais silvestres e a queima desordenada de madeira
(GUIDON, 1994).
367

Figura 2 – Localização do antigo Zabelê e o assentamento Novo Zabelê (Fonte: FUMDHAM)

Figura 3 - Assentamento Novo Zabelê e, ao fundo, o Parque Nacional Serra da Capivara


(Fonte: Marian Helen, acervo IPHAN)
368

A queimada é bastante comum na região. Os agricultores utilizam-na para


preparar as terras na época do plantio. Muitas vezes o fogo propaga-se e atinge
sítios arqueológicos. O mesmo provoca o superaquecimento e acelera o
aparecimento de fissuras e desplacamento dos suportes rochosos com pinturas
rupestres, assim como o acúmulo de fuligem que se deposita sobre as pinturas.
Desta forma, muitos registros rupestres já foram destruídos (LAGE, 2007).

No estudo realizado constatou-se que a caça de animais selvagens142,


sobretudo do tatu, do qual algumas espécies já foram extintas, não é uma prática de
subsistência. Então o que explicaria tais práticas predatórias?

Para Laraia (2004 p. 45) o modo de ver o mundo, as apreciações de ordem


moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais são produtos de uma
herança cultural, determinada culturalmente. O homem é o resultado do meio
cultural em que foi socializado. É herdeiro de um longo processo acumulativo, que
reflete o conhecimento e a experiência adquiridos pelas numerosas gerações que o
antecederam.

Hall (2005) afirma que a identidade do sujeito sociológico forma-se através da


interação do eu com a sociedade. Aprende-se com o outro, no contexto cultural em
que os saberes são passados de geração a geração.

Por outro lado, Laraia (2004) afirma que a cultura é dinâmica. O homem tem a
capacidade de questionar os seus próprios hábitos e modificá-los. Não caberá a este
estudo fazer um aprofundamento sobre tais questões, mas é importante considerá-
las para se pensar o objeto aqui investigado.

Então, pensando no contexto desta pesquisa, supunha-se que tais práticas já


deveriam ter sido modificadas, criando assim um elo de interação entre o homem e o
meio ambiente. Para isso, acredita-se que é necessário um trabalho contínuo de
sensibilização no que tange à proteção do patrimônio cultural e natural dessa região.

142
A legislação brasileira proíbe a captura sem licença dos chamados animais silvestres em todo
território nacional. Tal proteção à fauna encontra-se determinada nos dispositivos da Carta Magna
Federal de 1988 e na Lei Federal nº. 9.605/98. No artigo 29 é proibido caçar, perseguir, matar,
apanhar e utilizar espécimes da fauna brasileira sem a prévia autorização ou licença do IBAMA,
com a obtida pena - detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e multa, § 4º a pena é aumentada
se o crime é praticado em: V- uma Unidade de Conservação. Desta forma, comete crime
ambiental quem compra, vende, exporta, guarda, mantém em cativeiro ou transporta larvas, ovos
ou espécimes da fauna, bem como objetos e produtos dela oriundos, provenientes de criadouros
não licenciados e/ou autorizados e/ou sem permissão.
Fonte www.academialetrasbrasil.org.br/fcoaguiarxerimbabo.doc. Acesso: 31 de maio de 2009.
369

O núcleo escolar é um importante instrumento de reflexão, discussão,


sensibilização e promoção do patrimônio. Para Santos (2008, p. 21), a escola
precisa incentivar seus sujeitos a conhecer e valorizar o patrimônio cultural e natural
da comunidade. É na comunidade local que a escola encontra o primeiro espaço de
debate educativo. É com esse intuito que se delimita a Escola Elzair Rodrigues de
Oliveira como espaço privilegiado para refletir sobre a apropriação da questão do
patrimônio feita pela comunidade escolar. Para situar o leitor no contexto da
pesquisa, cabe delinear sucintamente as características da escola objeto de estudo
assim como os sujeitos que a compõem143.

Até 2002, a comunidade Novo Zabelê não tinha uma instalação apropriada
para funcionar uma escola. As crianças e os jovens deslocavam-se diariamente para
escolas circunvizinhas, precisamente no centro da cidade de São Raimundo Nonato,
situada a 12 km do assentamento. O transporte era cedido pela Secretaria de
Educação, no entanto, devido às más condições em que era feito, os pais, mães e
responsáveis pelos alunos manifestaram insatisfação e reivindicaram uma escola na
comunidade. Em 2003, a gestão municipal construiu o prédio, fez remanejamento
dos alunos e lotação de professores (Fig. 4). Começou, assim, a funcionar a
Unidade Escolar Elzair Rodrigues de Oliveira.

Figura 4 - Escola Elzair Rodrigues de Oliveira (Fonte: Wesley Sousa Dias)

143
Todas as informações descritas aqui foram cedidas pela diretora da escola, a Sra. Eliane da Costa
Oliveira, no dia 10/04/2009.
370

A escola funciona nos turnos da manhã, tarde e noite, com ensino


fundamental I - 1º ao 5º ano, II – 6º ao 9º ano e EJA (Educação de Jovens e
Adultos). Possui, atualmente, cerca de 261 alunos divididos entre os três turnos. No
turno da manhã, 98 alunos, no turno da tarde 117 e, no turno da noite, 46, todos
oriundos das famílias assentadas.

As turmas são constituídas, em média, de 15 a 30 alunos, sendo que as do


Ensino Fundamental II são menores. No turno da noite, funciona a EJA (Educação
de Jovens e Adultos) através de uma parceria existente entre a Secretaria de
Educação Municipal e a Secretaria de Educação Estadual. Pode-se constatar que os
alunos estão dentro da faixa etária correta, de acordo com as séries que estão
cursando. Os alunos do noturno são basicamente agricultores que resolveram
retomar o estudo.

A estrutura física da escola é adequada e sem pichações. O imóvel é todo


murado, garantindo a segurança. Suas salas de aula são devidamente pintadas com
mobília bem conservada. Possui um pátio pequeno, local de recreação e também de
servir o lanche. Nos fundos da escola, está sendo construída uma quadra de esporte
comunitária, que servirá de espaço recreativo para os alunos e a comunidade, assim
como espaço para os eventos escolares.

O corpo docente e administrativo é composto por 16 educadores


concursados, dentre os quais somente um reside no assentamento. Os demais
deslocam-se todos os dias de São Raimundo Nonato. A escola tem dois diretores,
sendo que uma diretora acumula a função de coordenadora pedagógica; uma
secretária e uma auxiliar; dois vigias, residentes no assentamento e quatro auxiliares
de serviços gerais. É pertinente salientar que o número de alunos e professores
aumentou nesse ano de 2009. No início da pesquisa funcionava apenas ensino
fundamental, do pré ao 5ª ano, com seis professores. Devido ao tempo para
finalização da pesquisa, as outras séries não foram incluídas.
371

3 CURRÍCULO ESCOLAR E AUTONOMIA

O Projeto Político Pedagógico – PPP é um instrumento teórico-metodológico


que a escola elabora com a participação da comunidade escolar. Ele fornece o
aporte para a escola inserir as peculiaridades culturais, históricas e artísticas locais.
Nele, tem-se a possibilidade de inserir, de forma sistemática e reflexiva, a temática
do patrimônio. Para embasar essa discussão faz-se um diálogo com os autores
Moacir Gadotti (1997), Ilma Veiga (1995) e outros que tratam de importantes
questões relacionadas ao PPP como autonomia da escola pública, conceitos e
fundamentos para a sua realização.

Veiga (1995) define o projeto-pedagógico da escola como um instrumento


político, por estar intrinsecamente ligado ao compromisso sócio-político e com os
interesses reais e coletivos de um determinado grupo social. É político por
representar um compromisso com a formação do cidadão para uma determinada
sociedade e pedagógico por definir ações educativas e características necessárias
para as escolas cumprirem seus propósitos e suas intencionalidades. Nesses
termos, o projeto político-pedagógico vai além de um simples argumento de planos
de ensino e de atividades diversas.

O Projeto Político Pedagógico sobrepõe-se ao plano diretor da escola. Ele é


mais do que um conjunto de objetivos, metas e procedimentos da escola. É também
a história, o conjunto de currículos, de métodos, o conjunto de seus atores internos e
externos e o modo de vida dos sujeitos envolvidos. Acima de tudo, tem uma direção
política, um norte, um rumo. Por isso, todo projeto pedagógico é político, sendo
sempre um processo inconcluso, uma etapa em direção a uma finalidade que
permanece como o horizonte da escola (GADOTTI, 1997).

O PPP pressupõe a reflexão e o trabalho realizado em conjunto por todos os


profissionais da escola, no sentido de atender às diretrizes do Sistema Nacional de
Educação, bem como às necessidades locais e específicas da comunidade escolar.
Em suma, ele é um documento formal e intencional que se revela como articulador
dos processos que ocorrem na instituição escolar desde os mais simples aos mais
complexos. Ele deve harmonizar o tempo, os recursos humanos e materiais, os
372

espaços para atender a todos, prevendo os diferentes tipos de aprendizagem dos


alunos, atentando-se, sobretudo para a educação na diversidade.

Conforme determinações do Ministério da Educação, cada escola deverá ter o


seu PPP. Não existem duas escolas iguais, cada uma tem sua particularidade.
Neste sentido não se pode achar que um único modelo de projeto político-
pedagógico pode ser aplicado em qualquer escola, sem levar em consideração as
suas singularidades. Por isso, o mesmo é considerado um forte instrumento de
autonomia e gestão democrática no núcleo escolar.

A autonomia e a gestão democrática da escola fazem parte da


própria natureza do ato pedagógico. A gestão democrática da escola
é, portanto, uma exigência de seu Projeto Político Pedagógico. Ela
exige, em primeiro lugar, uma mudança de mentalidade de todos os
membros da comunidade escolar. Mudança que implica deixar de
lado o velho preconceito de que a escola pública é apenas um
aparelho democrático do Estado e não uma conquista da
comunidade (GADOTTI, 1997, p. 35).

Em consonância com Gadotti (1997), Veiga completa:

A principal possibilidade de construção do projeto político-


pedagógico passa pela relativa autonomia da escola, da sua
capacidade de delinear sua própria identidade. Isto significa resgatar
a escola enquanto espaço público, lugar de debate, do dialogo,
fundado na reflexão coletiva. Portanto é preciso entender que o PPP
da escola dará indicações necessárias a organização do trabalho
pedagógico (1995, p. 105).

A escola deve adotar como uma das suas principais tarefas, refletir sobre a
sua intencionalidade educativa. Assim, ela procura fundamentar o conceito de
autonomia, enfatizando a responsabilidade de todos, sem deixar de lado os outros
níveis da esfera administrativa educacional.

A ideia de autonomia está ligada a concepção emancipadora da educação.


Para ser autônoma, a escola não pode depender dos órgãos centrais e
intermediários que definem a política da qual ela não passa de executora. Ela
idealiza o seu projeto político-pedagógico e tem autonomia para executá-lo e avaliá-
lo, ao assumir uma nova atitude de liderança, no sentido de refletir sobre as
finalidades sócio-políticas e culturais (VEIGA, 1995, p. 108).

Segundo Gadotti, existem pelo menos duas razões que justificam a


implantação de um processo de gestão democrática na escola:
373

1ª porque a escola deve formar para a cidadania e, para isso, ela deve
dar o exemplo. A gestão democrática da escola é um passo
importante no aprendizado da democracia. A escola não tem um fim
em si mesma. Ela está a serviço da comunidade. Nisso, a gestão
democrática da escola está prestando um serviço também à
comunidade que a mantém. 2ª porque a gestão democrática pode
melhorar o que é específico da escola, isto é, o seu ensino. A
participação na gestão da escola proporcionará um melhor
conhecimento do funcionamento da escola e de todos os seus atores;
propiciará um contato permanente entre professores e alunos, o que
leva ao conhecimento mútuo e, consequência, aproximará também as
necessidades dos alunos dos conteúdos ensinados pelos professores.
(1997, p. 35)

Morastini (2004) completa que a gestão democrática permite aos indivíduos


de diferentes segmentos da comunidade escolar, interna ou externa, a possibilidade
de participar e exercer sua cidadania, no sentido de relacionar-se mais e tendo
dessa forma maior liberdade de expressão. Nela, todos demonstrarão seu
conhecimento, que é único e poderá ser agregado aos conhecimentos dos
professores, coordenadores, diretores, dos alunos, familiares e demais membros
externos da comunidade: “Esta junção e consequente troca oportunizam um maior
envolvimento e incorporação de cada vez mais conhecimentos, de modo formal e
informal, tornando os seres mais responsáveis, criativos e, consequentemente, mais
autônomos” ( MORASTINI, 2004, p. 29)

Todavia, é pertinente discutir sobre a descentralização do ensino, no qual se


prioriza o contexto dos detentores do poder em detrimento daquele que está
arraigado no contexto local. Nesses termos reforça-se que o ensino deve iniciar de
baixo para cima e não de cima para baixo, ou seja, do local para o global.

A construção do projeto político-pedagógico não pode ser vista apenas como


uma exigência legal, mas como um novo significado à atuação escolar, que visa
ajudar a escola a enfrentar os desafios cotidianos, de forma reflexiva, consciente,
participativa, sistematizada e dinâmica.

3.1 OS DOCUMENTOS OFICIAIS DA EDUCAÇÃO

Pensando na proposta de inserir a temática do patrimônio cultural do Parque


Nacional Serra da Capivara no currículo da unidade escolar Elzair Rodrigues de
374

Oliveira no projeto político-pedagógico, procurou-se analisar a Lei de Diretrizes e


Bases da Educação e os Parâmetros Curriculares Nacionais. Compreende-se como
a temática do patrimônio cultural é enfocada nesses documentos e, por outro lado,
como a escola poderia trabalhar essa temática em seu currículo.

Sendo o projeto político-pedagógico um forte instrumento de autonomia das


escolas, o mesmo permite que a escola insira suas peculiaridades individuais e
coletivas. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) permite que cada escola
elabore sua proposta pedagógica de acordo com a realidade local. Os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs) trazem maneiras de se trabalhar a transversalidade e
a interdisciplinaridade nos currículos escolares (MARTINS, 2001).

Para a Lei de Diretrizes e Bases da Educação nº. 9394/96, a escola tem a


incumbência de elaborar a sua proposta pedagógica. Ela enfatiza também que a
parte diversificada dos currículos dos ensinos fundamental e médio deve observar
as características regionais e locais da sociedade e da cultura, abrindo espaço para
a construção de uma proposta de ensino direcionada para o contexto em que cada
escola está inserida. Observe-se o que dizem os Capítulos I e II da LDB:

Capítulo I Artigo 1º. A educação abrange os processos formativos


que se desenvolvem na vida familiar, na convivência, no trabalho,
nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e
organização civil e nas manifestações culturais (...) Artigo 3º. O
ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: II -
Liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o
pensamento, a arte e o saber. (...) Artigo 12º Os estabelecimentos
de ensino, respeitando as normas comuns e as do sistema de
ensino, terão a incumbência de: I – elaborar e executar sua
proposta pedagógica; (...)VI - Articular-se com as famílias, criando
processos de integração da sociedade com a escola. (...) artigo
14. Sobre a gestão democrática – os sistemas de ensino definirão as
normas da gestão democrática do ensino público na educação
básica, de acordo com suas peculiaridades e conforme os seguintes
princípios: I – participação dos profissionais da educação na
elaboração do projeto pedagógico da Escola; II – participação da
comunidade escolar e local em conselhos escolares ou
equivalentes. Artigo 15. - Os sistemas de ensino assegurarão às
unidades escolares públicas de educação básica que os integram
progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e
de gestão financeira observadas as normas gerais de direito
financeiro público (...). Capítulo II (...) Artigo 23 § 2º - o calendário
escolar deverá adequar-se às peculiaridades locais, inclusive
climáticas e econômicas, a critério do respectivo sistema de ensino,
sem com isso reduzir o número de horas letivas previsto nesta lei.
(...) artigo 26 – Os currículos do ensino fundamental e médio devem
ter uma base comum, a ser complementada em cada sistema de
375

ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada


exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da
cultural, da economia e da clientela (...) § 4 – O ensino da história
do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e
etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente indígena,
africana e europeia. (...) Artigo 27 – Os conteúdos curriculares da
educação básica observarão, ainda, as seguintes diretrizes. I –
Difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos
e deveres dos cidadãos de respeito ao bem comum e a ordem
democrática. (..) Artigo 32 O Ensino fundamental terá por obrigação a
formação básica do cidadão, mediante:§ II – compreensão do
ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das
artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade(grifos meus,
LDB 9394/96).

Pode-se observar que a LDB oficializa legalmente a autonomia das escolas


de construir seu projeto político-pedagógico contando com a participação coletiva, e
inserir questões locais de cunho social, natural e cultural em seu currículo.
Pensando no contexto em que esta pesquisa está sendo desenvolvida, a Lei de
Diretrizes e Bases da educação brasileira legitima claramente a inserção da temática
do patrimônio cultural do Parque Nacional Serra da Capivara no currículo da
Unidade Escolar Elzair Rodrigues de Oliveira. Este patrimônio está intrinsecamente
relacionado com a história cultural daquela região144.

Para fortalecer essa questão, o Estatuto da Criança e do Adolescente


fomenta que as escolas devem tratar as questões pertinentes ao seu contexto local.
O artigo 58 deste estatuto assim propõe: "No processo educacional respeitar-se-ão
os valores culturais, artísticos e históricos próprios do contexto social da criança e do
adolescente, garantindo-se a estes a liberdade da criação e o acesso às fontes de
cultura".

Por sua vez, os Parâmetros Curriculares Nacionais da 1ª à 4ª série, assim


como os da 5ª à 8ª série, alimentam a perspectiva de apropriação das questões
regionais e locais para potencialização dos currículos escolares. É importante
lembrar que, nos PCNs, a temática da Educação Patrimonial está prevista no ensino
de História.

144
É pertinente reforçar que as questões patrimoniais podem ser aplicadas no projeto político-
pedagógico de diversas unidades escolares do Brasil, uma vez que o patrimônio cultural tanto
material como imaterial se manifesta em vários pontos do país. Por isso, a temática do
patrimônio cultural deveria ser um elemento constituído nos projetos político-pedagógicos das
escolas brasileiras. Assim se tornaria mais um elemento de proteção, disseminação e
preservação do patrimônio nacional. O IPHAN vem apostando na educação como instrumento
de preservação do patrimônio cultural garantindo a sua perpetuação para as gerações futuras.
376

Da mesma forma, o Guia básico de Educação Patrimonial enfatiza a


importância da Educação Patrimonial no currículo escolar, sobretudo de forma
transversal e interdisciplinar:

Os currículos escolares são comumente sobrecarregados, com


disciplinas que competem entre si por limitação de tempo em sala de
aula e pelas normas oficiais estabelecidas. Os objetos patrimoniais, os
monumentos, sítios e centros históricos ou o patrimônio natural são
um recurso educacional importante, pois permitem a ultrapassagem
dos limites de cada disciplina (HORTA, GRUMBERG e MONTEIRO,
1999, p. 36).

A transversalidade e a interdisciplinaridade são formas de trabalhar conceitos.


Elas buscam estabelecer uma integração entre as várias disciplinas do currículo,
inserindo temas da realidade que são importantes para formação dos sujeitos.

Os objetos patrimoniais, os monumentos, sítios e centros históricos, ou o


patrimônio imaterial e material, são um recurso adicional importante, pois permitem a
ultrapassagem dos limites de cada área/disciplina, e o aprendizado de habilidades e
temas que serão importantes para a vida dos alunos (HORTA, 1999, p. 36). Além do
mais, a experiência de refletir sobre o contexto sócio cultural e ambiental que se vive
reforça as relações identitárias entre as pessoas e o ambiente em que vivem.

Um dos objetivos da escola é exercer o papel de educar o indivíduo para


responder às necessidades pessoais e aos anseios de uma sociedade em
transformação. Ela deve criar espaços autônomos, criativos, solidários e, sobretudo
participativos. Para isso, precisa utilizar metodologias que possam servir de
interação entre o sujeito e o objeto do conhecimento, formando assim cidadãos
conscientes.

Contudo, pensando no contexto desta pesquisa, a elaboração do projeto


político-pedagógico deve encadear uma prática constante de reflexão e debate
sobre as questões que permeiam o patrimônio cultural e natural, dentro da Unidade
Escolar Elzair Rodrigues de Oliveira. Tais questões deverão ser enfocadas no
sentido de criar sujeitos capazes de se apropriar dos estudos ali discutidos, ou seja,
sujeitos capazes de construir uma relação de respeito por seu patrimônio cultural e
natural. Criam-se, assim, mecanismos de adequação à nova realidade, sem perder a
sua identidade e respeito por suas origens, sua história, sua cultura que, juntamente
com as pinturas rupestres, guardam a memória de várias gerações e povos que
377

habitaram a região do Parque Nacional Serra da Capivara. Assim, através das ações
sócio-culturais e ambientais pode-se desenvolver uma consciência cultural e
ambiental responsável que ajude a população ali assentada a ser capaz de enfrentar
as mudanças que surgiram e as que ainda estão por vir naquela região.

4 A UNIDADE ESCOLAR ELZAIR RODRIGUES DE OLIVEIRA

No ano de 2007, a diretora da Escola Elzair Rodrigues de Oliveira, veio ao


Escritório Técnico I do IPHAN, solicitar que se levassem os alunos da escola para
visitar o Parque Nacional Serra da Capivara e Museu do Homem Americano,
inserido esta Unidade Escolar no Programa de Educação Patrimonial.

Diante do interesse da diretora e do histórico de conflito dessa comunidade


com a gestão do Parque, em decorrência das desapropriações, nasceu a proposta
de desenvolver ações educativas patrimoniais nesta escola e fazer dessas ações um
diagnóstico, a fim de observar as reações dos educandos e educadores referentes
às atividades realizadas. Acreditava-se ser importante que as crianças olhassem,
sob outra ótica, o patrimônio cultural e natural da região, uma vez que a escola é um
lugar de troca de olhares e de construção de novos olhares145.

O Programa de Educação Patrimonial elaborado pelo Escritório, naquele ano,


consistia de palestras sobre patrimônio cultural, meio ambiente, oficinas de arte-
educação: literatura de cordel, teatro, música, pintura e modelagem em argila, e
visitas monitoradas ao Parque Nacional Serra da Capivara e ao Museu do Homem
Americano.

A proposta de trabalhar com arte-educação no Programa de Educação


Patrimonial partiu da primeira chefe do Escritório Técnico e também coordenadora
do projeto Pró-Arte FUMDHAM, Cristiane de Andrade Buco146, que formou monitores
locais na polivalência da arte.

145
Em todo o contexto desta pesquisa, refere-se ao patrimônio cultural e natural do Parque Nacional Serra da
Capivara, pois se entende que, nesse caso, não se pode separar os dois patrimônios, uma vez que os
mesmos estão intrinsecamente ligados. São, portanto, indissociáveis, pois seja na preservação cultural ou na
ambiental, estão envolvidas ações de atribuição de valor, que ocasionam ações de preservação desses
valores e dos suportes que lhes dão materialidade.
146
Tem formação em Arte-Educação e em Arqueologia.
378

Buco considera que a arte-educação permite “a vivência com diferentes


linguagens artísticas, melhorar a auto-estima, fornecendo assim a interação do
homem com o patrimônio de uma maneira lúdica, dinâmica, intensa e
transformadora, num processo de conhecimento e descoberta” (BUCO, 2007, p. 3).
Cabe, destacar que o Escritório Técnico contava apenas com duas
profissionais de atuação direta, a chefe do escritório e a bolsista do PEP. Era, por
isso, fundamental firmar parcerias para o desenvolvimento das atividades do
Programa, entre eles com alunos do curso de História da Universidade Estadual do
Piauí, com estudantes do curso de Arqueologia da Universidade Vale do São
Francisco e com monitores de arte-educação do projeto social Pró-Arte FUMDHAM.

O registro do diagnóstico foi feito através de relatórios mensais, memorial


descritivo da bolsista, caderno de campo com registro das observações da
pesquisadora e questionário investigativo com os professores da Unidade Escolar.

4.1 O PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO VIGENTE NA ESCOLA

A priori tinha-se como pressuposto analisar o projeto político-pedagógico da


escola objeto de estudo, a fim de verificar como era tratada a questão do patrimônio
cultural e natural no mesmo. Sabia-se que a legislação educacional (LDB, 9394/96)
incumbe as escolas de elaborar seus projetos político-pedagógicos, considerando as
peculiaridades culturais, sociais e ambientais nas quais estão inseridas.

No entanto, descobriu-se que a escola não possui tal documento. Diante


dessa descoberta surgiram vários questionamentos: se não há um instrumento
formal que norteia a prática pedagógica, como se dá essa prática? Como investigar
o tratamento dado à questão do patrimônio cultural e natural na prática pedagógica
da unidade? Por que a escola não tem o projeto político-pedagógico? Para
responder tais indagações a interação com a direção da escola, os professores e a
coordenadora pedagógica foi fundamental. Ela possibilitou a obtenção de respostas
que serviram de base para a elaboração de sugestões.

* Porque a escola não possui projeto político-pedagógico?


379

Para os professores e a direção da escola: “Estamos pensando em construir,


leva tempo. Em outras escolas já começaram a elaborar. Aqui já fizemos algumas
reuniões para discutir sobre o projeto político-pedagógico”.

Para a Secretaria de Educação do município de São Raimundo Nonato é


muito difícil construir um projeto político-pedagógico. As universidades que oferecem
cursos de licenciaturas na região não formam os professores para isso. Por isso,
todos encontram dificuldades na sua elaboração. É preciso capacitação e muita
reflexão antes de iniciar a sua construção.

Solange Negreiros147 considera importante que as questões cotidianas, locais


e culturais sejam discutidas dentro da escola. Ela afirma que a construção do projeto
político-pedagógico representaria um grande avanço. Acredita também na inserção
da temática do patrimônio cultural como um instrumento de valoração pela
comunidade. Diz que o PPP contribui para o aprimoramento do processo ensino -
aprendizagem dos alunos e, até mesmo, da relação de convivência entre professor,
aluno e comunidade. Concorda que a melhor maneira de sistematizar o ensino é a
construção do PPP, pois se o ensino não for sistematizado certos conteúdos, temas,
correm risco de caírem no esquecimento. Afirma, ainda, que o PPP é um espaço de
autonomia, mas, sobretudo, abre espaço para parcerias e contribuições externas.

É compreensível a insegurança e a resistência dos educadores e


coordenadores na elaboração do PPP. Segundo Veiga (1995) sua construção
necessita de uma reflexão constante do cotidiano escolar e, para isso, é necessário
um tempo razoável de reflexão-ação, para se obter um mínimo necessário à
consolidação de sua proposta que, muitas vezes, causa estranhamento, medo do
novo e da mudança.

* Como é elaborado o planejamento pedagógico da escola?

Para os educadores e a direção, o planejamento é elaborado basicamente


utilizando livro didático vigente em toda rede municipal de educação. O mesmo é
renovado a cada 4 anos. A escolha é feita por todo corpo docente e administrativo
da secretaria de educação. Em alguns momentos trabalha-se com projetos. Em

147
Entrevista realizada em 18/12/08 com Solange Negreiros, Diretora de Projetos da Secretária de
Educação do município de São Raimundo Nonato.
380

comum acordo com os professores, a direção e a coordenação escolhe-se um tema


e trabalha-se de forma interdisciplinar148.

Embora a escola não possua projeto político-pedagógico, procurou-se


investigar se a mesma trabalha, enfrenta, discute e problematiza as questões
culturais e naturais locais no planejamento pedagógico. Para isso, elaborou-se uma
ficha diagnóstica com quatro questões que foi entregue para os seis professores. As
fichas ficaram duas semanas com os professores. Quando se retornou à escola,
eles relataram que decidiram responder coletivamente, ou seja, todos responderam
uma única ficha.

* Como o currículo escolar aborda a história local? As festividades, as


brincadeiras, os lugares de passeio e a religiosidade?

Através do diálogo e da participação da turma; brincando e contado histórias; com


parcerias e colaboração de todos da escola; respeitando a opinião dos alunos (a
religião da qual cada um faz parte).

* Como a escola discute a relação do patrimônio cultural e ambiental do


Parque Nacional Serra da Capivara com a realidade dos educandos? Se não
discute, justifique.

Incentivando a conhecê-lo para poder preservá-lo e amá-lo como se fosse um


patrimônio de cada um.

* Qual a sua opinião em relação à inserção de concepções sócio-culturais e


ambientais no projeto político-pedagógico?

Através dessas concepções o educando vai se conhecer melhor e dar valor a sua
própria cultura, resgatando a cultura local.

* Quais outros pontos você considera relevante para serem incluídos no PPP
da referida Unidade?

148
Relato das professoras da escola: A cada quatro anos o governo federal e as editoras através do
Plano Nacional do livro didático enviam vários modelos de livros para as secretarias de educação
de todo país, para que os secretários de educação, coordenadores pedagógicos e educadores
analisem. A escolha dos livros leva em consideração os conteúdos que mais se aproximam do
contexto local. Em poucos casos encontram-se livros que podem ser contextualizados com as
questões locais da região. “Escolhemos o livro de história pela referência de uma gravura que
continha a pedra furada do Parque Nacional Serra da Capivara, mas dentro do livro o texto é
abordado superficialmente, é dada maior ênfase a arqueologia, pré-história, pinturas rupestres da
Europa”.
381

Buscar mais parcerias para que os educandos fiquem mais empolgados e assim
conheçam a si mesmos. Implantar a Educação Ambiental como disciplina desde as
séries iniciais.

Com o questionário esperava-se obter informações mais precisas, que


permitissem uma análise mais aprofundada. As respostas dos educadores foram
breves e pontuais. Percebeu-se, com isso, uma dificuldade em trabalhar, discutir,
enfrentar e problematizar as questões culturais e ambientais no planejamento.
Mesmo havendo um esforço para responder ao questionário, não ficou claro como
são abordadas tais questões na ação pedagógica.

Outro aspecto mencionado pelos educadores é sobre a formação continuada.


Todos disseram que falta uma capacitação no que tange às questões patrimoniais e
ambientais. “Sabemos que é importante, mas não sabemos como direcionar”
(PROFESSORES).

4.2 AÇÕES EDUCATIVAS

Relatam-se e analisam-se as ações educativas de arte-educação centradas


no patrimônio cultural e natural, desenvolvido pelo Escritório Técnico na escola
objeto de estudo. Assim pôde-se levantar questões importantes que permitiram uma
reflexão sobre quais elementos poderiam ser inseridos e discutidos no
aperfeiçoamento e/ou construção do projeto político-pedagógico.

4.2.1 Palestras

A maioria das palestras desenvolvidas pelo Escritório Técnico na Unidade


Escolar Elzair Rodrigues de Oliveira tiveram como títulos: Patrimônio, o que é e
como preservar e Parque Nacional Serra da Capivara. Elas foram ministradas pela
chefe do Escritório Técnico do IPHAN, pela bolsista e por estudantes do Curso de
Arqueologia e Preservação Patrimonial da Universidade Federal do Vale do São
Francisco - UNIVASF.
382

As palestras contemplavam todo o núcleo escolar. Percebeu-se que as


mesmas provocaram maior interesse nos educadores. Uma educadora, que vive na
comunidade, afirmou: “É preciso começar ensinar as crianças que os animais são
importantes para o ciclo da vida, pois aqui existe a caça e todos comem tatu, e que a
carne do tatu pode transmitir várias doenças”.

Outra educadora revelou: “Acho importante que as crianças comecem


entender que o Parque não é de uma só pessoa ou instituição. Mas isso ainda não
está claro para nós, nos sentimos muito distante dele, mesmo estando tão perto”.

Mesmo que o estudo do patrimônio seja impreciso nos debates escolares, as


falas dos educadores revelam que existe, de alguma maneira, interesses no que
concerne às abordagens do patrimônio cultural e natural do Parque Nacional Serra
da Capivara (Fig. 5).

Figura 5 - Palestra na escola Elzair Rodrigues de Oliveira (Foto do acervo do IPHAN)


383

4.2.2 Oficina de literatura de cordel e contadores de história

Uma arte popular, a literatura de cordel vem despertando o interesse dos


educadores no sentido de valorizar os saberes populares locais. Dentro dessa
perspectiva, optou-se por oferecer essa oficina na escola objeto de estudo com o
intuito de motivar as crianças a descobrirem ou redescobrirem um pouco da história
da comunidade. Com isso, a monitora cordelista149 incentivou as crianças a
contarem as suas histórias de vida em forma de verso (Fig. 6).

Figura 6 - Oficina de literatura de cordel (Foto: Acervo IPHAN).

Brincando com as rimas, as crianças construíram sua própria história. No


relato das crianças, muitas contam a história da desocupação do antigo zabelê e do
reassentamento. Uma criança de 10 anos, embora não tenha vivido no antigo
Zabelê, conhece toda história e fez questão de levar sua avó para legitimar o que ela
havia contado.
149
O Escritório Técnico contou com a parceria de monitores em arte-educação do projeto social Pró-
Arte FUMDHAM na realização das oficinas, que tem uma educadora poetisa que desenvolve
projetos de cordel com as crianças.
384

Não se pode negar ou esconder que os tempos vividos naquele território, as


expressões culturais, as desapropriações e as mudanças de vida, fazem parte da
história de constituição do Parque Nacional Serra da Capivara e, portanto, devem
ser reconhecidas e revalorizadas (Fig. 7).

Figura 7 - Contadores de história (Foto: Acervo IPHAN / Marian Helen)

Em outro momento, fomos convidados pela escola para assistir a culminância


do projeto Cidadania no mundo das letras150. O evento iniciou com um grupo de
crianças encenando a história da comunidade (Fig. 8). Em seguida houve um
momento dos contadores de história, dona Arlinda151 contou a história do Zabelê,
desde o nome dado à comunidade, as atividades econômicas de subsistência, o
momento de desapropriação e do reassentamento.

150
O projeto cidadania no mundo das letras é uma iniciativa da Caritas Diocesana de São Raimundo
Nonato em parceria com o Projeto Dom Helder Câmara. Tem como objetivo a valorização e o
desenvolvimento da cultura local, da produção literária de educadores, crianças, adolescentes e
jovens através do acervo de livros e da junção das metodologias dos projetos “Arca das Letras” e”
Baú de Leitura”. Em 2008 foram contempladas com o projeto as comunidades Novo Zabelê e
Lagoa das Emas. Maiores informações e-mail caritas.srn@hotmail.com. Fonte: Folder Cidadania
no mundo das letras, São Raimundo Nonato.
151
Dona Arlinda é uma das mais antigas moradoras do Zabelê. Ela participa ativamente de todas as
ações da escola. Ela diz “é só me chamar que venho contar a nossa história”.
385

Figura 8 - Culminância do projeto de leitura (Foto: Acervo IPHAN/ Marian Helen)

Percebeu-se claramente no relato um sentimento de mágoa pela


desapropriação, mas também o sentimento de ter pertencido àquele lugar, o que
naturalmente se considera uma apropriação, mesmo que inconsciente diante da
atual conjuntura patrimonialista.

4.2.3 Visitas monitoradas ao Parque Nacional Serra da Capivara e Museu do


Homem Americano

As visitas sempre eram encaradas pelos educandos e educadores com muito


entusiasmo. Nelas os paredões rochosos da Serra da Capivara tornavam-se
verdadeiros suportes de memória152. Uma educadora recordou as histórias de

152
Nora, definiu que os suportes de memória coletiva funcionam como “detentores” de uma sequência
de imagens, ideias, sensações, sentimentos e vivências individuais e de grupos, num processo de”
revivenciamento” ou de reconhecimento das experiências coletivas, que têm o poder de servir
como substância aglutinante entre os membros do grupo, garantindo-lhes o sentimento de
pertença e de identidade, a consciência de si mesmos e dos outros que compartilham essas
386

seus pais: “Antes da criação do Parque eles andavam muito entre os boqueirões a
procura de água. Corriam entre os vales e até ouviam vozes dos caboclos”. Quando
foi questionada quem eram os caboclos, respondeu: “Ah, meu pai disse que foram
os homens que fizeram essas pinturas ai”. As crianças, por sua vez, passavam
horas admirando as pinturas, a perfeição dos desenhos e questionando que muitas
coisas ali pintadas ainda existem atualmente, tais como os animais, o veado, o tatu e
a onça (Fig. 9 a 11).

Ficou claro que quando esse grupo compara, associa e rememora histórias
vividas nesse Parque, está reconhecendo-se como parte integrante do mesmo,
mesmo que inconscientemente. O contato in situ com as pinturas rupestres tornou-
se um forte instrumento de apropriação, pois os educandos e educadores diante dos
paredões rochosos conhecem de perto as evidências do passado, seu significado e
a importância dos testemunhos deixados pelo homem americano. Ao mesmo tempo,
percebem uma relação do homem de ontem como o homem de hoje.

As visitas ao Museu do Homem Americano surtiram a mesma reação. O


contato direto com os artefatos líticos e cerâmicos, com esqueletos e painéis serviu
para comprovar, certificar o que aconteceu na história dos antepassados. Esse
contato direto dos sujeitos com o bem patrimonial, decorre não só de visitar o
Parque ou Museu como simples lugar de lazer ou entretenimento. Ele possibilita um
contato com o patrimônio arqueológico, as pesquisas realizadas sobre homens e
mulheres que viveram há milhares de anos e que fabricavam os instrumentos de que
dispunham e a evolução tecnológica. Cria na comunidade um respeito pela cultura
de seus antepassados, levando-a a uma (re) valorização e fruição social.

Para Horta (1991), nada substitui o objeto real, fonte de informação sobre a
rede de relações sociais e o contexto histórico em que foram produzidos, utilizado e
dotado de significado pela sociedade que o criou. É esse contato que permite aos
sujeitos entender uma sucessão de informações a respeito desse patrimônio.

vivências. Reconstrói-se por essas memórias, a representação que um povo faz de si mesmo
(Nora, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Revista do programa de
estudos de pós-graduação em História e do Departamento de História. São Paulo, N 10,1998, p.
21-28)
387

Figura 9 - Visita à toca Boqueirão da Pedra Furada (Foto: Acervo IPHAN/Marian Helen)

Figura 10 - Visita à toca do Sítio do Meio (Foto: Acervo IPHAN/Marian Helen)


388

Figura 11 - Crianças em frente à Pedra Furada (Fotos: Acervo da FUMDHAM)

4.2.4 Oficina de Lascamento de Pedra

No Museu do Homem Americano, estão expostos materiais arqueológicos


encontrados nas escavações e prospecções. Há ferramentas líticas que os homens
das cavernas utilizavam como instrumentos domésticos, machadinhas, pontas de
flecha, cortadores, esculpidores entre outros (Fig. 12). Na Fundação Museu do
Homem Americano, trabalham técnicos especialistas que numeram e catalogam
esse material lítico.

O Museu oferece aos visitantes uma oficina intitulada Lascamento de Pedra.


Nela, um técnico especialista153 explica como os homens das cavernas
manuseavam e lascavam as pedras de acordo com a necessidade.

153
O Técnico especialista em lascamento de pedra adverte aos educadores e educados que é
perigoso fazer isso sem orientação, portanto, não podem brincar de homens das cavernas
sozinhos, pois o mesmo passou por vários treinamentos para assim identificar uma peça lítica
esculpida pelo homem de uma peça lítica esculpida pela natureza.
389

Figura 12 - Ponta de uma flecha no Museu do Homem Americano (Foto: IPHAN / Marian

Os educandos e educadores da escola objeto de estudo tiveram a


oportunidade de participar dessa oficina (Fig. 13). No lúdico e na brincadeira fizeram
replicas de cortadores, raspadores, apontadores. Entre um lascamento e outro
ouviam-se comentários como:

Nossa! Como eles conseguiam cortar uma carne com isso? Temos
tanta facilidade hoje em dia e nem percebemos (PROFESSORA);
Esses homens e mulheres eram muito inteligentes (ALUNOS);
Vou levar uma dessas para minha mãe cortar pão (ALUNOS);
Corta mesmo, é bem afiada (PROFESSORA QUE TIROU UMA
LASCA DA SUA CALÇA JEANS).

Na oficina, esse grupo percebeu como o homem pré-histórico utilizava o que


a natureza lhe oferecia para sobreviver, sem depredá-la. Caso contrário, esses
artefatos não estariam ali expostos com datações de milhares de anos. Confirma-se
que somente através de uma aproximação direta com um bem cultural e natural é
possível um reconhecimento e uma revalorização. É sentindo parte integrante de um
bem que a preservação se torna consciente e automática. A escola pode ser um
canal de aproximação entre a comunidade e o seu patrimônio cultural.
390

Figura 13 - Oficina de lascamento de pedra (Foto: IPHAN / Marian)

4.2.5 Educação Ambiental

Trecho I

(...) O caçador malvado deve ser julgado e condenado. Quantos anos


de prisão vocês dão ao caçador? 50 anos? Não. 20 anos? Não. 10
anos? Não. Cinco anos? Não. (silêncio no recinto). Vamos, o caçador
mata os animais e deve ser punido. Quantos anos? 3 anos? Não. Ele
precisa ser punido e vocês tem que dar a sentença. 1 ano? Sim!
(muito fraco).

Trecho II

(...) Era uma vez um caçador valente, que matava todos os animais
ferozes, inclusive a onça. Ele usava uma flauta para atrair os bichos
e matar. Certa vez ele foi convidado por um fazendeiro para matar
uma onça que comia o gado dele (...), então subiu na serra e foi atrás
da onça que tanto atormentava o fazendeiro (...) (as crianças
gritavam e aplaudiam).

Trecho III

(...) No Parque existem muitos animais, onça, veado, araras, gato do


mato, macacos pregos, pássaros (mostrando fotos dos animais). E se
391

a gente encontrar esse bichinho o que devemos fazer? (foto de um


Mixila) (bem alto todos responderam) mata e come! (risos).

O trecho I é de uma encenação teatral feita por alunos da Universidade


Federal do Vale do São Francisco na Escola Elzair Rodrigues de Oliveira, do projeto
itinerante de fósseis de animais silvestres. O teatro fazia parte da sensibilização
contra a caça predatória dos animais.

O trecho II é de uma história contada e encenada pelas crianças da escola


Elzair Rodrigues de Oliveira na culminância do projeto Cidadania no mundo das
letras.

Os dois trechos descritos mostram alguns aspectos que apontam para a


valorização do caçador pela comunidade escolar. No primeiro as crianças não
queriam que o caçador fosse julgado e preso, o que era para ser uma brincadeira
lúdica, tornou-se num grande constrangimento, pois as mesmas não queriam julgar
o caçador. No segundo trecho, o caçador é retratado como guerreiro, herói. No
cotidiano das crianças o caçador é o pai, o avô, o tio, o primo ou o irmão. Quem quer
ver seus entes queridos julgados e condenados?

O relato do trecho III aconteceu numa palestra sobre Educação Ambiental. A


palestrante, utilizando o recurso de data show, mostrava fotos de vários animais
existentes no Parque Nacional Serra da Capivara (Fig. 14 e 15). No decorrer da
amostra, interagindo com as crianças, apareceu a foto de um tamanduá (Mixila). Ela
perguntou o que devemos fazer quando encontrarmos esse bichinho no Parque. Em
couro as crianças gritaram “mata e come”. A caça faz parte do universo da
comunidade, e a legislação ambiental é vista como a vilã, a opressora.

Está-se diante de três situações delicadas. Por um lado existe o discurso da


legislação ambiental brasileira que condena e pune a caça predatória de animais
silvestres e do outro, a valorização do caçador pela comunidade. Como discutir isso
no núcleo escolar?

Devem-se inserir essas questões no currículo, ou fingir que o problema não


existe? Tendo em vista que a escola é um espaço de autonomia, discussão e
mediadora de conflitos, considera-se que ela deve abrir o debate, na medida em que
essas questões forem sendo levantadas. Os alunos terão oportunidade de
problematizar e questionar o que está sendo discutido com o que já conhecem.
392

Figura 14 – Tatu verdadeiro (Foto: Acervo da FUMDHAM)

Figura 15 – Tamanduá colete ou mixila (Foto: André Pessoa / acervo da FUMDHAM)


393

Talvez esses conflitos não sejam resolvidos nessa geração, mas, é


fundamental que essa discussão faça parte dos debates sociais locais. Somente
assim, as gerações seguintes compreenderão que é convivendo de forma
harmoniosa com a natureza, respeitando a biodiversidade que se garante a
continuidade dos recursos naturais, fonte necessária da sobrevivência humana.

4.2.6 Cartilha

Em 2008, o Escritório Técnico através do plano anual, iniciou a construção de


uma cartilha educativa154 com o objetivo de auxiliar as ações desenvolvidas e
também subsidiar os educadores da escola.

A mesma priorizou a história de vida dos alunos, que remete ao


conhecimento da história dos antepassados (históricos e pré-históricos). A cartilha
foi lançada em 2009. Houve um grande interesse da rede de educação do município
para a sua implantação nas escolas municipais como um livro paradidático,
mediante apoio técnico do IPHAN.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que acontece é que o melhor guardião de um bem cultural é


sempre seu dono (as comunidades locais) (ALOÍSIO MAGALHÃES)

Considera-se que as atividades educativas desenvolvidas pelo Escritório


Técnico na Unidade Escolar Elzair Rodrigues de Oliveira constituíram um canal
importante de aproximação entre a comunidade escolar e o patrimônio do Parque
Nacional Serra da Capivara. Elas proporcionou aos sujeitos uma interação com esse
154
A cartilha foi desenvolvida no Escritório Técnico I, com textos de Ana Stela de Negreiros Oliveira
(Historiadora), Marian Helen Rodrigues (Bolsista IPHAN/UNESCO), Rômulo Negreiros
(Arqueólogo), Flávio André Gonçalves (Arqueólogo), Joyce Holanda (Graduanda em Arqueologia)
e Tâmyris Santana (Graduanda em Biologia). Foi publicada pela 19ª Superintendência do IPHAN
no Piauí. Inicialmente a cartilha será utilizada pelos alunos da rede municipal de São Raimundo
Nonato, contemplando alunos do 3º ao 6º ano do ensino fundamental, cerca de 1810 alunos.
Firmou-se também uma parceria com o Centro Educacional “SESC LER” e será utilizada com os
alunos do Projeto Habilidades de Estudo- PHE, cerca de 100 alunos e os alunos do Projeto SEC
LER-EJA, 5 turmas de adultos com cerca de 125 alunos.
394

patrimônio. No entanto, verificou-se que esse tipo de ação não é eficaz em longo
prazo, uma vez que o Escritório Técnico não dispõe de um plano sistemático de
continuidade e tampouco de profissionais para este fim.

Com isso, torna-se necessário que o Escritório Técnico reflita sobre a


importância das ações do Programa de Educação Patrimonial, levando em
consideração que sendo desenvolvidas isoladamente e sem um plano de
continuidade não terão eficácia. Para isso é fulcral que haja uma ação integrada
entre várias esferas da sociedade; poder público, órgãos de preservação, sociedade
civil e população em geral, no sentido de fomentar políticas públicas no que tange à
proteção e à conservação do patrimônio.

Verificou-se que a referia unidade escolar não possui projeto político-


pedagógico. O projeto político-pedagógico é um instrumento teórico-metodológico
que a escola elabora com a participação da comunidade, em busca de um rumo,
que fornece aporte para inserir as peculiaridades culturais, históricas e artísticas
locais (GADOTI,1997).

O projeto político-pedagógico é um instrumento de autonomia da escola. A


história da comunidade reforça os laços identitários entre os sujeitos e a história
local da comunidade, tornando-se um forte elemento curricular.

É pertinente pensar em medidas que viabilizem uma formação continuada


para os educadores, a fim de instrumentalizá-los com concepções sócio-culturais e
ambientais para que os mesmos tornem-se multiplicadores ativos e construtores de
novas concepções. O IPHAN, através da Superintendência do Piauí poderá
contribuir com essa formação, promovendo seminários, oficinas e acompanhamento
sistemático.

A prática da caça e o desconhecimento da legislação ameaçam a


salvaguarda do patrimônio na comunidade Zabelê. Um trabalho com legislação e
noções sobre patrimônio cultural material e imaterial seria fundamental para a
concepção de um projeto político – pedagógico, iniciando a mudança de
mentalidade do local para o global.

Até a conclusão desta pesquisa a Unidade Escolar Elzair Rodrigues ainda


não havia começado a construção do projeto político – pedagógico. Espera-se que,
395

no momento que ela o comece, os dados descritos nesta pesquisa sirvam de


subsídios para a sua concepção.

Não se pode mudar o passado, mas pode-se projetar o futuro sobre novas
perspectivas, trocando os problemas por soluções e experiências positivas. E a
educação é a principal mediadora nesse processo

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SOCIEDADE

Autoras:
Déborah Gonçalves Silva
Estelita dos Santos Braga
XI O PAPEL DA MULHER NO DESENVOLVIMENTO SOCIO-ECONOMICO DE
SÃO RAIMUNDO NONATO: UM ESTUDO DE GÊNERO (1912 - 1970)

Estelita dos Santos Braga


Déborah Gonsalves Silva

INTRODUÇÃO

Este estudo tem por finalidade investigar o papel da mulher no


desenvolvimento social, econômico e cultural que culminou no processo de
emancipação política da cidade de São Raimundo, ocorrido no ano 1912.

Faz-se uso da obra O Campo da História, de José de Assunção Barros


(2009), para entender as especialidades da história. Propõe-se entender por que, na
historiografia, houve tanta resistência em relação aos trabalhos que investigassem
questões ligadas ao gênero. Pretende-se, no decorrer desta narrativa, abordar a
importância das mulheres no processo de desenvolvimento da cidade de São
Raimundo Nonato, no período de 1912 a 1970, abarcando essa temática no campo
da História Social.

São Raimundo Nonato teve um bom desenvolvimento social nesse período,


marcado pelo considerável crescimento populacional devido à vinda de pessoas de
outras regiões em busca de trabalho na extração do látex da maniçoba. Além disso,
o desenvolvimento da cidade fez-se presente em todos os seguimentos da estrutura
sócio-econômica com a participação efetiva dos sanraimundenses. As mulheres
destacaram-se no trabalho, participando na extração do látex da maniçoba e na
educação, com o surgimento da Escola Normal que, inicialmente, era só para
mulheres.

A opção de trabalhar com História Social parte da necessidade de se discutir


o papel dos sujeitos históricos dentro das relações sociais tecidas em determinada
sociedade. De acordo com José de Assunção Barros (2009, p.116):

Qualquer informação historicizada pode ser tratada socialmente, é


correto dizer. Mas é também verdade que nem toda história é
necessariamente social. Se é possível elaborar uma história social
das idéias ou uma história social da arte, é possível também elaborar
uma história das idéias ou da arte, sem que se restrinjam a discutir
400

obras do pensamento ou da criação artística sem reestruturá-las


dentro do seu âmbito social mais amplo.

A História Social pode dirigir sua atenção para uma classe social, uma
minoria, um grupo profissional, uma célula familiar, ou seja, para um subconjunto
específico da sociedade, visando compreender como se estabelecem as relações a
partir das experiências de vida. Esta amplitude da História Social contribuiu para que
alguns historiadores desenvolvessem estudos sobre as mulheres, a partir do campo
historiográfico dos estudos de gênero.

A renovação dos estudos históricos dá-se a partir das propostas dos Annales,
que colocam o interesse em se estudar o quotidiano das massas populares mais do
que o das elites. Até então, na História Social, as mulheres eram vistas como uma
categoria homogênea de pessoas biologicamente femininas que se moviam em
contextos e papéis diferentes, mas cuja essência, enquanto mulher, não se alterava.

A história positivista, a partir do século XIX, fez um recuo na função do seu


exclusivo interesse pela história política e pelo domínio público. Privilegiava as
fontes administrativas, diplomáticas e militares, nas quais as mulheres pouco
apareciam. Por sua vez, para superar a historiografia de identidades abstratas, a
Escola dos Annales preferiu voltar-se para história dos seres vivos concretos e a
trama de seu cotidiano em vez de se ater a uma racionalidade universal. Com o
desenvolvimento de novos campos, como o da História das Mentalidades e a
História cultural, reforça-se o avanço na abordagem do feminino.

Foi com a onda do movimento feminista, a partir dos anos 60, que finalmente
surgiu à história das mulheres. É notória a resistência por parte de alguns
historiadores em aceitar a mulher como objeto de sua própria história. Foi, porém,
inevitável que tal história surgisse.

Como problema inicial para esta investigação, pretende-se compreender


como as mulheres contribuíram para o estabelecimento da cidade e do município de
São Raimundo Nonato, tanto no campo social como nos campos político e
econômico. Para tanto, consultam-se autores que trabalham com a temática de
estudo de gênero dentro da História Social. Estes nortearão, teoricamente, o
desenvolvimento deste trabalho.
401

Objetiva-se analisar as mulheres sanraimundenses no processo de


desenvolvimento sócio-econômico deste lugar. Procura-se entender como era sua
participação na família, na educação e no trabalho. Para isso, adotam-se, como
referencial metodológico, fontes orais e a discussão de conceitos como memória e
cotidiano que possibilitam a compreensão do lugar social das mulheres de São
Raimundo Nonato.

Busca-se desenvolver algumas observações pertinentes no que diz respeito


aos estudos da historiografia brasileira, no campo do gênero, especificamente no
contexto dos estudos sobre as mulheres. Faz-se um esboço do progresso em
relação a esses estudos tanto no cenário nacional como no regional. Apresentam-
se, também, narrativas de mulheres sanraimundenses sobre as lutas travadas para
conseguirem participação efetiva no desenvolvimento social, político e econômico da
região. Destarte, este trabalho apresenta considerações sobre as bravas mulheres
do sertão piauiense e possibilita o início de uma grande jornada historiográfica para
os pesquisadores da região de São Raimundo Nonato.

1 A HISTÓRIA E OS ESTUDOS DE GÊNERO

A necessidade de pesquisas em novos campos da História faz surgir a


História Social que, por sua vez, segundo Barros (2009), “é a mais sujeita à
oscilação de significados”. Inicialmente, a expressão História Social significava a
história das grandes massas, ou dos grupos sociais de várias espécies, em
contraste com a biografia de grandes homens e com a história das instituições. Era
definida como uma história estática.

A predisposição de analisar as várias dimensões sociais de uma sociedade


faz surgir outra concepção, a que busca o estudo da sociedade como um todo. A
História Social propõe-se a estudar seja um continente, um país, uma cidade ou uma
aldeia. O que lhe importa é a noção de estar aberta a muitas possibilidades de
pesquisas e sentidos. Ela imiscui-se na História da Sociedade.

Dentro da complexidade que é a História Social, surgem várias ramificações


baseadas nas diferenças e desigualdades sociais: os enclausurados, os marginais,
as raças e etnias, os excluídos, os discriminados, as minorias, os gêneros e as
402

relações de gênero (BARROS, 2009). Estes temas da História Social fazem interface
com a História Antropológica e a Etno-história. É neste contexto que se insere a
presente pesquisa. Analisa-se o gênero feminino em questões como: qual a
importância das mulheres na história e quais as dificuldades enfrentadas por elas,
até serem vistas como sujeito e objeto de pesquisa da história.

Segundo (Barros 2009), a História Social pode dirigir sua atenção para uma
classe social, uma minoria, um grupo profissional, uma célula familiar, ou seja, para
um subconjunto específico da sociedade. Entende-se, portanto que a História Social
pode tratar tanto de uma classe social geral, como de uma célula familiar isolada. É
dentro dessa subespecialidade da História Social que se procura desenvolver o
discurso historiográfico desta pesquisa, propondo analisar e discutir o gênero
feminino na historiografia brasileira e piauiense.

Segundo Rachel Soihe (2007), a grande reviravolta da história, nas últimas


décadas é a discussão sobre temáticas e grupos sociais até então excluídos,
contribuindo para o desenvolvimento de estudos sobre as mulheres. A história
cultural passou a ter fundamental importância por preocupar-se com as identidades
coletivas de uma ampla variedade de grupos sociais como os oprimidos, os
camponeses, os escravos e pessoas comuns. Desse modo, pluralizam-se os objetos
da investigação histórica. Nesse bojo, as mulheres são alçadas à condição de objeto
e sujeito da história.

De acordo com Erick Hobsbawm (1995), em sua obra Era dos Extremos, a
ideia de família nuclear, modelo padrão na sociedade ocidental nos séculos XIX e
XX evoluiu. Naquela época pensavam-se as unidades familiares e de parentesco
muito maiores. Elas eram concebidas como parte do crescimento do individualismo
burguês ou qualquer outro. A idéia de família nuclear, daquele período, baseava-se
numa má compreensão da histórica e da natureza da cooperação social e sua
justificação nas sociedades pré-industriais. A crise da família estava relacionada
com mudanças bastante dramáticas nos padrões públicos que governam a conduta
sexual, a parceria e a procriação, sendo tanto oficiais quanto não oficiais. A grande
mudança em ambas está datada, coincidindo com as décadas de 1960 e 1970.
Tornaram-se, agora, permissíveis coisas até então proibidas, não só pela lei e
religião, mas, também, pela moral concedida, convenção e opinião da vizinhança.
403

Esse período de 1960 a 1970 foi o marco para várias mudanças de


comportamento em relação ao sexo. Mulheres do mundo todo passaram a se
redescobrir devido a sua participação mais ativa no mercado de trabalho em
conseqüência da industrialização. Percebe-se este fato, não só nos grandes centros,
mas em todos os lugares onde há organização de trabalho.

O Estado do Piauí, de forma tímida, também tem suas mulheres engajadas


nessa luta de igualdade dos gêneros. A participação da mulher no contexto público
trouxe várias perturbações. Antigamente não era aceitável que a mulher se
desenvolvesse intelectualmente e fosse buscar seu sustento fora de casa. No Piauí,
as trabalhadoras das fábricas eram vistas como mulheres que colocavam em risco a
ordem pública e eram, por isso, bastante discriminadas.

Ainda segundo Hobsbawm (1995), é através da família a melhor maneira de


observar essa reviravolta da revolução cultural, isto é, através da estrutura de
relação entre os sexos e gerações. “Na maioria dessas sociedades, essas relações
resistiriam de maneira impressionante à mudança súbita, embora isso não queira
dizer que fosse estático. Além do mais, apesar das aparências em contrário os
padrões foram mundiais”.

Antes dessa reviravolta, houve, na historiografia, grandes resistências para


falar da presença feminina na história, por se acreditar que, ao falar de homens a
mulher estava igualmente representada. Nessa história positivista, com exclusivo
interesse pela história política e pelo domínio público, que privilegiava as fontes
administrativas, diplomáticas e militares, as mulheres pouco apareciam, não sendo
possível assim tal representação. Pode-se pensar que essa postura aplica-se tanto
na historiografia quanto na vida cotidiana desses sujeitos na medida em que:

As relações entre homens e mulheres eram definidas por um


rigoroso senso de territorialidade, ou seja, a mulher devia voltar-se
exclusivamente para o mundo doméstico e o homem encarregar-se
das esferas produtivas. Uma exacerbada vigilância sobre o sexo
frágil se configurava através das expectativas sobre a conduta da
mulher, e da Igreja com suas implicações sobre a sexualidade e o
controle da feminilidade (...) (SANTOS, 2010, p. 35).

É a partir da Escola dos Annales, que buscando desenvolver a historiografia


de identidades abstratas, preferindo voltar para história dos seres vivos concretos e
a trama de seu cotidiano, ou seja, os novos padrões de vida e o relacionamento
entre esses envolvidos. Em hora as mulheres não fossem logo incorporadas à
404

historiografia pelos Annales, foi esta, porém, que contribuiu para que isso se
concretizasse num futuro próximo.

A partir da década de 1960, correntes revisionistas marxistas, engajadas no


movimento da história social, assumem uma postura diversa. Começam a ter como
objeto de estudo grupos ultrapassados pela história, como as massas populares
sem um nível significativo de organização e as mulheres do povo.

O desenvolvimento de novos campos como História das Mentalidades e


História Cultural reforça o avanço na abordagem do feminino. A onda do movimento
feminista, ocorrido a partir dos anos 60, vem contribuir ainda mais, para o
surgimento da História das Mulheres.

Michel de Certeau (1995), em sua obra A Cultura no Plural, faz uma alusão
às obras literárias francesas dos séculos XVII e XVIII distribuídas por livreiros
ambulantes e lidas pelo povo em geral. Ele afirma que foi graças a essa literatura
que se manteve a língua francesa. O fato de ela ter sido censurada como obras
literárias ditas como subversivas e imorais só ajudou porque foi preciso que ela
fosse censurada para ser estudada. Tornou-se, então, um objeto de interesse
porque seu perigo foi eliminado.

Assim, tempos depois, esses livros foram usados para estudos, sobretudo
após 1969, quando a erudição de inspiração marxista, ou pelo menos populista, foi
posta a serviço da cultura popular. Ela insere-se, também no que se segue a uma
história social em pleno desenvolvimento, há 30 anos. Ela desenha, enfim, a utopia
de outra relação política entre as massas e a elite.

Os estudos desde então consagrados a essa literatura tornaram-se


possíveis pelo gesto que a retira do povo e a reserva aos letrados ou
aos amadores. Do mesmo modo, não surpreende a julguem “em via
de extinção”, que se dediquem agora a preservar as ruínas, ou que
vejam a tranqüilidade de um aquém da história, o horizonte de uma
natureza ou de um paraíso. Ao buscar uma literatura ou cultura
popular, a curiosidade cientifica não sabe mais que repete suas
origens e que procura, assim, reencontrar o povo (CERTEAU 1995,
p. 56).

Nos Estados Unidos, onde se desenvolveu o referido movimento feminista,


bem como em outras partes do mundo, as reivindicações das mulheres provocaram
uma forte demanda de informações pelos estudantes, sobre as questões que
estavam sendo discutidas.
405

Raquel Soihet (2007) afirma que, a partir de 1973, como resultado dessa
crise, as universidades francesas criaram cursos e grupos de reflexão que discutiam
a respeito desse movimento. A partir desses debates nasceu um boletim de
expressão em que era focalizado o mesmo objeto: Penelópe, Cahiers pour I´histoire
des Femmes. Em conseqüência disso, as pesquisas multiplicaram-se, tornando a
história das mulheres, um campo relativamente conhecido em nível institucional.

Na Inglaterra, reuniram-se os historiadores da História das Mulheres em torno


da History Workshop e, nos Estados Unidos, desenvolveram-se os Women´sStudies,
surgindo as revistas Signos e Feminist Studies.

Estes estudos estendem-se até os anos 70. Autores de partes da Europa e do


mundo, incluindo o Brasil, deram fôlego aos estudos de gênero. As pesquisas
envolviam o papel social das mulheres. Esse reconhecimento, até então era
bastante frágil. Não se pode afirmar que as relações entre os sexos fossem vistas
como uma questão fundamental a ser abordada no campo historiográfico.

Até a década de 1970, muito se discutiu acerca da passividade da


mulher, frente à sua opressão, ou da sua reação como resposta ás
restrições de uma sociedade patriarcal (...), na qual se sucedem
“mulheres espancadas, enganadas, humilhadas, abandonadas,
loucas, e enfermas...” - emerge a mulher rebelde. Viva e ativa,
sempre tramando mil astúcias para burlar as proibições, a fim de
atingir os seus propósitos (SOIHET, 2007. p. 278).

O desenvolvimento da história das mulheres, articulado com as inovações no


próprio terreno da historiografia tem dado lugar a pesquisas sobre inúmeros temas.
Não mais apenas focalizam-se as mulheres no exercício do trabalho, da política, no
terreno da educação, ou dos direitos civis, mas introduzem-se, também, novos
temas na análise, como família, maternidade, gestos, sentimentos, sexualidade e o
corpo.

As pesquisas sobre a participação feminina na história têm sido cada vez


mais específicas. Elas desmistificam e colocam a mulher em igualdade ao homem,
na construção da história, (...) “porque mulheres (em qualquer tempo histórico em
que vivenciam suas experiências) configuram-se como sujeitos sociais que
imprimem sentidos ao movimento conflitante da história e, como tais, não vivem
isoladas do mundo” (VASCONCELOS, 2010, p. 20).
406

A produção de Biografias femininas ao longo da história, segundo Eleni


Varikas (1989), teve como função, mesmo que não explicitada, provar a capacidade
feminina idêntica à masculina, de fazer a história e de construir a civilização.

Donde reproduzem a definição épica da história, opondo aos feitos


dos homens àqueles das mulheres. Por outro lado, aponta aspectos
positivos nessas iniciativas das mulheres, decorrentes de uma
tentativa de subversão subterrânea dos modelos recebidos, o que
sugere a busca de outros valores, além de se constituírem numa
arma na defesa do gênero contra as tradições misóginas. E, hoje,
quando a biografia tem despertado interesse crescente, têm surgido
obras desse tipo, buscando compreender o condicionamento social e
sexual das mulheres focalizadas e a interação entre sua vida pública
e privada (VARIKAS, 1989, p. 281).

A busca incessante por parte de algumas historiadoras em desvendar o


mundo feminino tem levado a diversas fontes históricas. Pelo fato de a mulher estar
inserida na esfera privada, encontra-se pouco registro dela nos arquivos públicos.
Sua presença era bastante reduzida neste cenário. Por longo tempo as mulheres
estiveram ausentes das atividades consideradas dignas de serem registradas.
Dessa forma, só encontra-se registros que falam das mulheres nos documentos
policiais aliados a processos criminais, quando essas são acusadas de perturbarem
a ordem pública.

Dentro dessa perspectiva, de acordo com Soihet (1997), utiliza-se uma


variedade de fontes, a exemplo das cartas, dos diários, sendo esses os mais raros,
devido seu alto índice de destruição por partes das mulheres que, por medo de
serem objetos de zombaria, desfaziam-se deles. Utilizam-se também obras literárias,
a escrita religiosa (católica ou evangélica), mas os comuns são os objetos por elas
deixados como: dedais, jóias, roupas, bibelôs e fotografias, fruto do encargo que
lhes foi atribuído de transmitir a história da família. Hoje, busca-se, com esse
material, construir uma Arqueologia Feminina na medida em que o acesso à escrita
não se deu no mesmo ritmo que o dos homens.

As dificuldades de penetrar no passado feminino têm levado os


historiadores a lançarem mão da criatividade, na busca de pistas que
lhes permitam transpor o silêncio e a invisibilidade que perdurou por
tão longo tempo neste terreno (SOIHET, 1997, p. 296).

Segundo Soihet (1997), acompanhando a renovação teórica dos estudos


históricos, refinaram-se os métodos e as técnicas, desenvolvendo-se a
407

inventabilidade com relação às fontes, o que tem possibilitado maior intimidade com
aqueles segmentos e a ampliação dos horizontes da história. Dentro desta
perspectiva aumentam-se as produções historiográficas que tratam da história das
mulheres e a colocam como sujeito histórico participativo do lugar social onde estão
inseridas.

Com base na temática de estudos de gênero procura-se analisar o papel da


mulher no cenário sócio-econômico da cidade de São Raimundo Nonato. Utiliza-se o
conceito de gênero para fundamentar o trabalho. Este conceito é definido por alguns
autores como uma categoria que “(...) nas ciências sociais tomou outra conotação e
significa a distinção entre atributos culturais alocados a cada um dos sexos e a
dimensão biológica dos seres humanos” (SOIETH, 2007).

O grande impacto que vêm produzindo as análises sociais funda-se em ter


chamado a atenção para o fato de que grande parte da humanidade estava na
invisibilidade das mulheres. Seu uso assinala que, tanto elas quanto os homens são
produtos do meio social e, portanto, sua condição é variável (SOIETH, 2007).

Segundo Soares (2000), a principal importância desta abordagem é que, além


de ser um conceito que tenta desconstruir a relação entre as mulheres e a natureza,
distingue e descreve categorias sociais (uso empírico) para explicar as relações que
se estabelecem entre elas (uso analítico).

Lauretis (1994) destaca as relações sobre o termo gênero a partir da


gramática. Apresenta como esse termo aparece na forma gramatical de diferentes
maneiras, ou mesmo ausentes. Verifica, também, que o termo é uma representação
não apenas no sentido de cada palavra ou signo. Representa seu referente, seja ele
um objeto, uma coisa, ou um ser animado.

O termo gênero é, na verdade, a representação de uma relação, a


relação de pertencer a uma classe, um grupo, uma categoria. Gênero
é a representação de uma relação (...) o gênero constrói uma relação
de pertencer (...) assim, gênero representa não um individuo e sim
uma relação social de pertencer, em outras palavras, representa um
individuo por meio de uma classe (LAURETIS, 1994, p. 210).

Baseado nesses conceitos, a categoria gênero foi adotada pelo movimento


feminista para analisar a relação de poder existente entre homens e mulheres. Essa
relação de poder vale também para relações de classe e raça, como é o caso das
mulheres negras.
408

Dentro da relação de gênero não se pode analisar separadamente cada um, é


necessário confrontar um com o outro para tentar igualar a capacidade intelectual e
força física de homens e mulheres. A discussão de gênero foi fruto de muitos
trabalhos científicos em todo o mundo e no Brasil, Maria Odila Leite da Silva foi uma
das precursoras.

Gênero dá ênfase ao caráter fundamental social, cultural, das


relações baseadas no sexo, afastando-a da naturalização (...) relativo
ao aspecto relacional entre as mulheres e homens, de que nenhuma
compreensão (...) poderia existir através de um estudo que
considerasse totalmente em separado (...) (COSTA, 2003, p. 188).

Segundo Soffioti (1992), a construção dos gêneros ocorre na dinâmica das


relações sociais. Os humanos só se constituem como tal na relação com outros.
Entretanto não se trata de perceber apenas a relação masculino versus feminino,
mas sim a totalidade formada por cada um deles, porque cada um é sua própria
história, suas relações sociais, contradições de gênero, classe, raça e etnia.

1.1 A MULHER NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA

As mudanças no comportamento feminino do final do século XIX e início do


XX faziam-se cada vez mais presentes na sociedade brasileira. Os novos
comportamentos femininos exigiam “que a senhora soubesse conservar um ar
modesto e uma atitude séria, que a todos impunha o devido respeito” (MALUF e
MOTT, 1998, p. 368). Foram muitos os preconceitos que a mulher teve que
enfrentar, nessa nova ocupação e participação na vida pública. Onde antes era
espaço tipicamente masculino tornava-se notável a presença feminina.

Era nas cidades, as quais trocavam sua aparência paroquial por uma
atmosfera cosmopolita e metropolitana, que se desenrolavam as
mudanças mais visíveis (...) a nova paisagem urbana, embora ainda
guardasse muito da tradição, era povoada por uma população nova e
heterogênea (MALUF e MOTT, 1998, p. 372).

Referente aos novos hábitos que surgiam da participação da mulher nas ruas,
trabalhando ou apenas passeando, surgem notas em revistas e jornais. Essas notas
descriminam essa iniciativa feminina, interpretando como ameaçadora à ordem
familiar. Segundo Maluf e Mott (1998), essa ordem era tida como o mais importante
409

suporte do Estado e a única instituição social capaz de representar as intimidadoras


vagas da modernidade.

Hoje em dia, preocupada com mil frivolidades mundanas, passeios,


chás, tangos e visitas, a mulher deserta do lar. É como se há um
tempo se evadisse um ídolo. É como se exalasse um perfume. A vida
exterior desperdiçada em banalidades, e criminoso esbanjamento de
energia (MALUF e MOTT, 1998, p. 372).

Dentro dessa perspectiva, os autores afirmam que a família se dissolve e


perde a urdidura firme e ancestral de seus liames. Rumo à cozinha! Esse era o lema
do momento, clamava a revista feminina, em agosto de 1920.

O discurso acerca do comportamento feminino visto pela sociedade machista


como imoral e fútil, colocava em evidencia a disputa entre homens e mulheres.
Nesta disputa acusavam-se, reciprocamente, com os principais causadores de uma
intolerável corrosão dos costumes. Se as relações das mulheres estavam pontuadas
de mágoa e revolta, a dos homens parecia revelar desconfiança para com a nova
mulher. Nas três últimas décadas do século XIX, de acordo com Maluf e Mott (1998),

o dever ser das mulheres brasileiras, foi traçado por um rigoroso


discurso ideológico, que reunia conservadores e diferentes matrizes
de reformistas. Esse discurso acabou por desumanizar as mulheres
como sujeito histórico, ao mesmo tempo em que cristalizou
determinados tipos de comportamento, convertendo-os em rígidos
papéis sociais, de modo a reduzir ao máximo suas atividades e
aspirações, até encaixá-las no papel de “rainha do lar”, sustentado
pelo tripé mãe-esposa-dona-de-casa.

Não sendo admissível por essa sociedade a participação da mulher na vida


pública, a que se aventurasse sofria discriminação e preconceito crucial da
sociedade. Na crença de uma natureza feminina que, biologicamente, dotaria a
mulher de dotes para desempenhar as funções da esfera da vida privada, o discurso
bem conhecido apresenta a realidade feminina neste tempo. O lugar da mulher era o
lar e sua função consistia em casar, gerar filhos para a pátria e plasmar o caráter
dos cidadãos de amanhã. Dentro dessa ótica, não existiria realização possível para
as mulheres fora do lar, nem para os homens dentro dele já que eles pertenciam à
rua e ao mundo do trabalho.

A imagem da mãe-esposa-dona-de-casa, como a principal e mais


importante função da mulher, correspondia àquilo que era pregado
pela igreja, ensinado por médicos e juristas, legitimado pelo Estado e
divulgado pela imprensa (MALUF e MOTT, 1998, p. 374).
410

Segundo Maluf e Mott (1998), por muito tempo foi depositada toda uma carga
de deveres para a mulher na vida privada Não lhe foi possível ter uma vida pública,
pois seu dever era estar no lar, fazendo dele um templo. À mulher era negado o
direito de igualdade com o homem e, no código civil de 1916, foi estabelecido o
papel a ser desempenhado por homens e mulheres na sociedade, sintetizando a
utilização da idéia do “lar feliz”.

A função de cada um, nesse “pequeno estado”, atribuía ao marido e à mulher


papéis complementares. Em nenhum momento a igualdade de direitos, em vários
preceitos do código civil de 1916, sacramentava a inferioridade da mulher casada ao
marido. Ao homem, chefe da sociedade conjugal, cabia a representação legal da
família, como administrador dos bens comuns do casal e dos particulares da esposa,
bem como o direito de fixar e mudar o local do domicilio da família, ficando a mulher
como dependente e subordinada. Ela era, ainda, relativamente inabilitada para o
exercício de determinadas atos civis. Suas limitações eram semelhantes aos
impostos, pródigos, menores de idade e índios.

E a manutenção da família era responsabilidade dos cônjuges. Dependia da


autorização do marido a mulher trabalhar ou não. O poder do marido ia bem mais do
que o previsto na lei. Cabia a ele deliberar sobre as questões mais importantes,
como a distribuição de recursos materiais e simbólicos no núcleo da família, a
decisão sobre o tipo e local da formação educacional e profissional dos filhos. O uso
de violência para com a esposa e filhos era considerado “legitimo”. A agressão
física era um dos motivos que levavam as mulheres a pedirem o divórcio,
principalmente as de família abastada.

O processo de divórcio de famílias paulistas nesse período revela o


recurso freqüente à coerção física das mulheres (...). Embora
nenhum código permitisse ou revelasse tais agressões, estas davam
sob a proteção de regras de costumes (...). (MALUF e MOTT, 1998,
p. 377).

A representação do Código Civil de 1916 dividia as esferas públicas e


privadas, sendo o homem para o público e a mulher para o privado. Esse conjunto
de normas, deveres e obrigações foi formalmente estabelecido para regrar o vínculo
conjugal, a fim de assegurar a ordem familiar. Cabia ao homem assegurar a
manutenção e o sustento da família, sento de tal modo que, se não cumprisse era
tomado pela mulher como falha. Nessa perspectiva, a impossibilidade de o marido
411

ser o único provedor da família, de acordo com os padrões tradicionais, levava


alguns ao suicídio, justificado pela derrota moral de não cumprir seu dever. Em
contrapartida do marido provedor a mulher era responsável pela vida familiar. Sendo
casada, ela deveria distinguir-se socialmente, respeitando os ditames da moral e dos
bons costumes.

O casamento era tido como uma instituição social. O menor sinal de


flexibilidade na divisão das funções no interior da família repercutia como uma
ameaça modernizante. As inovações propostas pela vida moderna povoavam as
páginas dos mais diferentes tipos de literatura. Justificava-se a importância e a
legitimidade das regras do sistema familiar social. Mesmo que fosse necessário
acatar algumas mudanças e introduzir outras, não se podia, de modo algum, alterar
esse sistema familiar tão bem estabelecido na sociedade.

Dentro dessa ótica o casamento, era celebrado com a pureza do amor, o


garantidor da “saúde da humanidade”. Era assim colocado pela Igreja e defendido
por médicos e juristas. Os relacionamentos conjugais também eram realizados por
interesse, ou seja, casamentos arranjados que garantissem a estabilidade
financeira. Segundo, Maluf e Mott (1998), foram as mulheres de classe baixa,
pobres, sós, negras e mulatas as que mais sofreram preconceito, tendo o
comportamento mais fiscalizado e submetido a metidas prescritivas.

A necessidade de a mulher complementar a renda familiar, só aumentou o


seu trabalho. Exigia-se dela que cumprisse todas as obrigações de dona de casa
para depois dedicar-se ao trabalho remunerado. Aquelas que não tinham marido,
que criavam sozinhas os seus filhos, tinham que educá-los e sustentá-los. Além
disso, ainda eram mal vistas pela sociedade.

De acordo com Maluf e Mott 1998, é difícil analisar a vida dessas mulheres do
Brasil, na transição dos séculos XIX e XX. Pelas mudanças ocorridas nas grandes
cidades como urbanização e industrialização, o trabalho feminino dividia-se entre o
lar e a rua. A mulher era responsável por fazer economia dentro do lar, evitando que
o dinheiro de seu marido fosse desperdiçado. Aquela que não tinha marido devia
trabalhar em dobro para dar conta do sustendo da casa.

A mulher teve que vencer vários preconceitos colocados pela sociedade para
conseguir ser reconhecida como força de trabalho e igualdade intelectual ao homem.
412

Isso aconteceu de diferentes formas. Para a mulher de classe alta, foi a educação
que proporcionou, de certo modo, essa igualdade e, para as mulheres de classe
baixa, foi o rompimento da moral machista colocada à prova pelas conquistas
femininas, ocupando posições sociais tidas como masculinas.

1.2 ESTUDOS SOBRE A MULHER NO PIAUÍ

A participação feminina que antes estava voltada para a vida privada, com a
valorização dos espaços urbanos, passou a ser ampliada não apenas nos grandes
centros do país, como também nas demais regiões a exemplo do Piauí,
especialmente em Teresina, então capital do Estado. Segundo CASTELO (2005), a
mulher começou a participar com mais intensidade da vida urbana. Saiu do espaço
doméstico e buscou a participação na agitação das novidades modernas. Mesmo
sendo um processo gradual, mostrou-se irreversível, o que levava algumas cronistas
a prever o caos social e o fim da família. A mulher começou e se destacar, fazendo-
se presente, com expressividade, nos festivais religiosos. Muitas divulgavam das
festividades e participavam intensamente dessas manifestações religiosas.

As mulheres tinham papel fundamental na organização dessas festas


religiosas, participando das comissões que seriam encarregadas de
ornamentar as igrejas, de preparar os cânticos das missas, de
arrumar os frutos a serem utilizados pelas imagens e pelo altar
(CASTELO, 2005, p. 42).

De tal modo as mulheres passaram a freqüentar, com mais expressividade os


bailes e festas de aniversários, casamentos e muitos outros. As festas faziam parte
do lazer dos teresinenses. Eram momentos de convívio elegante, em que as
mulheres e os homens podiam colocar em prática todos os requintes de sua
educação. Era papel da mulher saber receber os convidados e criar entretenimentos
que preenchessem as horas festivas. Na alta sociedade teresinense coube às
mulheres a responsabilidade de organização e bom andamento das festas onde elas
eram anfitriãs.

Os jornalistas em suas crônicas aos bailes, sempre apontavam a


delicadeza e a educação dos anfitriões, exaltando ainda o ambiente
elegante e as mulheres bonitas e bem vestidas (...). O papel da
mulher nos bailes era de sedutora. Ela seduzia pela beleza, pelos
413

dotes, pelo jeito de dançar, de olhar e de reservar-se a espera do


convite para dançar (CASTELO, 2005, p. 44-45).

Era comum encontrarem-se também essas mulheres de classe social


elevada no teatro. Algumas dedicavam-se a apresentações artísticas, como música
e peças teatrais. As outras mulheres não participavam por não terem dinheiro para
tanto luxo.

Segundo Castelo (2005), nesse período de valorização dos espaços


públicos pela elite, o carnaval era uma festa para a população pobre. As mulheres
das famílias abastadas não podiam participar. A elas cabia apenas o papel de
observadoras da folia. As proibições da Igreja Católica, grande influenciadora de
opinião na elite, exigiam que a mulher se restringisse ainda mais dessa participação.

Com o desenvolvimento das cidades, os passeios públicos tornaram-se cada


vez mais freqüentes. As mulheres não podiam sair sozinhas. Elas deviam sair
sempre acompanhadas de um homem responsável ou em grupo.

O surgimento do cinema deu oportunidade às mulheres de classe baixa ao


lazer diferenciado por ser mais acessível, se comparado ao teatro. O cinema não só
influenciou os padrões de beleza e vestuários das mulheres, mas o imaginário
feminino ligado às relações amorosas.

As expectativas com relação ao namoro passaram a serem bem


diferentes das vigentes até então. Os beijos e cenas arrebatadoras,
apaixonadas, vistas em filmes passaram a povoar a cabeça das
mulheres. O flerte também se intensificava, e as salas de espera
tornaram-se espaços próprios a essa nova forma de namoro e
diversão (CASTELO, 2005, p. 60).

De acordo com CASTELO (2005), as mulheres pobres tinham participação


ativa não só no carnaval, como também no cinema por ser uma diversão
relativamente barata. Por volta da década de 1920, quando a elite passou a repudiar
as velhas tradições como São João e outras festas tradicionais, vistas como
incivilizadas, as camadas populares continuavam festejando os folguedos, congos,
maracatus, bumba-meu-boi e outros. Nestas festas, estavam sempre presente as
mulheres. Enquanto as senhoritas da elite eram fortemente vigiadas, algumas
mulheres pobres gozavam de relativa liberdade e assim tinham maior participação
nos espaços urbanos.
414

No século XIX e início do XX, a educação feminina estava votada ao


aprendizado de atividades domésticas e modos de comportamentos. A casa era um
espaço reservado à mulher. Sua vida direcionava-se para o casamento, sendo essa
a única forma de realização pessoal. Ao lado dessa educação doméstica, as
mulheres piauienses, em particular as de famílias abastadas, recebiam como
complemento da sua formação algumas aulas particulares de leitura e de escrita.

Em Teresina, existiam duas escolas particulares que ofertavam aulas


primárias para pessoas do sexo feminino e algumas escolas públicas voltadas para
a mesma clientela. Se o futuro das mulheres era o casamento e o cuidado com os
filhos, o marido e a casa, não havia por que se preocupar com a continuidade dos
estudos. Esses colégios particulares tinham o objetivo não só de moldar os seus
comportamentos, mas de criar uma mulher religiosa, apegada aos valores cristãos e
ser exemplo de moral e virtude na sociedade.

No tocante ao ensino profissionalizante, de acordo com Castelo (2005), em


1909 foi fundada uma Escola Normal Livre, criada pela Sociedade Auxiliadora da
Instrução. Essa escola tinha, à sua frente, intelectuais e políticos renomados. O
curso era de quatro anos. No seu currículo constavam disciplinas como, Português,
Francês, Geografia, História, Música, Desenho, Trabalhos Manuais, Educação Moral
e Cívica, Pedagogia, Física, Química, Metodologia, História Natural, Geologia,
Higiene, Horticultura, Jardinagem, Educação Doméstica e Literatura.

Um dos objetivos da Escola Normal Livre, fundada por esses intelectuais que
tinham fortes ligações com a maçonaria e com idéias dos livres pensadores, era a
de fazer frente ao ensino ministrado no Colégio Sagrado Coração de Jesus. Naquele
colégio, as mulheres recebiam forte orientação religiosa que não era aceita pelo
grupo de intelectuais cujos princípios e projetos eram libertários. A Escola Normal
Livre, logo nos primeiros anos de sua existência, começou a receber alunos de
outras cidades e vilas do interior como Parnaíba, Amarante, Floriano, Oeiras, São
Raimundo Nonato.

O poder público objetivava fazer da mulher a grande aliada na luta para


melhorar a educação primária em Teresina e no interior do Piauí. A Escola Normal
tornou-se, nos anos subseqüentes, uma das principais preocupações dos
governantes piauienses, no que diz respeito à educação (CASTELO, 2005, p. 840).
415

As mulheres piauienses, principalmente as de classe alta, escolhiam a


profissão de professora para a sua realização profissional, mesmo esta pagando
baixos salários o que era justificado por uma transgressão dos papéis sociais. A
mulher fora do lar, como trabalhadora assalariada, estaria fora do seu lugar. À
medida que as mulheres passavam a ocupar a função de professoras, essa
atividade perdia prestígio e sofria queda na remuneração.

Nessa perspectiva, Teresinha de Queiroz (1988), afirma que os livres


pensadores não foram muito felizes na sua investida para educar as mulheres. O
ensino laico consolidou-se nas décadas de 1910 a 1920. No entanto, a Igreja
Católica, consciente da importância do papel da mulher na família e como
educadora, retrabalhou o produto final da Escola Normal e fez das normalistas,
professoras propagadoras da educação católica.

Ressalta-se que a educação não era para todas as mulheres piauienses. As


mulheres pobres não estavam incluídas nessa formação o que tornava grande o
índice de mulheres excluídas do processo educacional, influenciando diretamente
nas oportunidades de emprego.

Para as mulheres de elite, segundo Castelo (2005), era a profissão de


professora uma das mais respeitadas. O magistério era uma saída honesta para a
mulher suprir suas necessidades financeiras, na falta do pai ou marido.

Outras profissões como a de músico serviam apenas para mostrar frieza e


boa educação, sendo bem mais difícil ganhar dinheiro com as mesmas. No
jornalismo, em Teresina, existiam algumas que foram precursoras com o jornal
Borboleta, dirigido por três senhoritas da alta sociedade, Helena M. Berverlamaqui,
Maria Amélia Rubem e Alaide M Burlamaque. Essas só foram remuneradas devido
ao feito de 20 jornais terem sido vendidos e, até mesmo, terem assinantes. Para
aquelas que não tinham talento intelectual ou musical, a saída para complementar o
orçamento doméstico era ensinar trabalhos manuais, ou mesmo partir para a
produção e comercialização desse artesanato.

Havia outras atividades remuneradas abertas às mulheres de classe média,


como datilografia e enfermagem.

Os modelos femininos dominantes em Teresina continuavam sendo


os de esposa e mãe. Entretanto, a necessidade de sobrevivência
levou grande número de mulheres a exercer algum tipo de função
416

remunerada. Muitas delas procuravam um lugar no mundo do


trabalho como forma de viabilizar a sua subsistência e de sua família;
outras objetivavam complementar as finanças domesticas (...);
Outras, ainda ocupavam posições no mercado de trabalho como
forma de realizar-se em uma profissão que lhes satisfizesse (...).
Diferentes são as histórias de cada uma dessas mulheres que
resolveram ou foram abrigadas a abandonar o espaço domestico e
enfrentar o trabalho nas fábricas, escolas e outros lugares
(CASTELO, 2005, p. 98).

Para as mulheres pobres as oportunidades de trabalho eram mais difíceis e


árduas. Havia oportunidade de trabalho nas duas fábricas da cidade, a fábrica de
fiação de tecidos piauiense e a fábrica de cigarros Ipiranga. Essas mulheres
operárias eram conhecidas na cidade como pipiras. Esse era o trabalho mais
procurando pela classe de mulheres que o julgavam menos humilhante e mais digno
do que o de criada. Havia, também, o trabalho de lavadeira e de engomadeira que,
diferentemente do das criadas, não exigia que se dormisse na casa dos patrões.
Podia-se trabalhar durante o dia e dormir na sua própria casa. Havia, ainda, outras
atividades como as de carregadoras de água, comércio ambulante nas ruas da
cidade oferecendo frutas, temperos, a venda de cuscuz e bolos ou mesmo jornais. A
última saída para as mulheres pobres proverem o seu sustento e o da sua família
era a prostituição. De acordo com Castelo (2005), a sociedade começava a valorizar
o trabalho e a construir imagem positiva das atividades produtivas e das pessoas
que a elas se dedicavam. Nela, a mulher ainda sofria fortes restrições à sua inserção
nesse universo.

No que diz respeito à vida social, as mulheres piauienses que seguiam


rigorosamente o modelo tradicional concebiam o casamento como a base da
instituição social familiar, mesmo que nele já fosse possível a liberdade de escolha
baseada no amor. A mulher continuava pertencendo à esfera privada. O lar devia
seguir o modelo da “Sagrada Família” no qual Maria assumia o papel de esposa e
de mãe dedicada, sempre preocupada com o filho. Segundo Castelo (2005), uma
boa formação moral era essencial para que a mulher cumprisse firmemente as suas
funções de esposa. Casar-se era, acima de tudo, uma forma de realização pessoal
para as mulheres.

As mulheres solteiras eram vistas de duas maneiras. A primeira era a de


mulher desavergonhada que vivia de seus encantos, a seduzir os homens casados e
a ameaçadora da tranqüilidade das casadas. A segunda era a da que não tinha
417

encantos suficientes para conquistar um homem, a que não sabia prendê-lo aos
seus encantos. Vista em tom de zombaria e de reprovação, a ela direcionavam-se
adjetivos como rabugenta, intrigante, histérica, maldosa entre outros tantos termos
pejorativos.

Dentro dessa ótica, outro problema para as mulheres solteiras era o de


promoverem o sustento. Sem o marido que era visto como provedor, a saída para as
mulheres de elite, era o sustento vir de herança, de seu trabalho ou, ainda, ficar sob
tutela de irmão ou parente. Era mais fácil livrar-se do casamento do que da tutela
masculina.

Para as mulheres pobres, o trabalho era visto mais como fator de provimento
para sobrevivência do que de emancipação. Quanto o trabalho honesto faltava ou
não supria todas as necessidades, a prostituição surgia como alternativa.

De um modo geral, no final do século XIX e início do XX, o Piauí foi marcado
por uma série de novos produtos, frutos do avanço tecnológico na vida cotidiana.
Entre essas novidades estavam o telefone, o cinema e o automóvel. O primeiro
aspecto dessas novas perspectivas para as mulheres era a inserção no mercado de
trabalho. Com ela, as mulheres exerceram atividades de telegrafia e datilografia
principalmente na educação primaria, na indústria têxtil, no setor educacional e no
funcionalismo público (CASTELO, 2005).

Castelo (2005) aponta ainda um segundo aspecto da mudança dos


comportamentos femininos. As novas modas começaram a ser transmitidas pelo
cinema e pelas revistas. Mudaram-se as roupas, os cortes de cabelo e os
comportamentos nos relacionamentos amorosos. Essas novas perspectivas
estendiam-se até o campo da política. Chegavam até as mulheres excluídas da
participação política pela justificativa da falta de independência.

No começo do século XX, as mulheres, principalmente as de classe média e


alta da sociedade brasileira, deram início a uma reivindicação. O sucesso desse
movimento foi a obtenção do direito ao voto na constituição de 1934.

Revela-se então que as mulheres piauienses não estiveram alheias a essas


transformações no comportamento da sociedade. Pelo contrário, sempre batalharam
por seu espaço, enfrentado os preconceitos. Todas elas, sem distinção de classe
418

social, raça ou credo, estiveram, direta ou indiretamente, presentes nos mais


diversos trabalhos e manifestações culturais, políticas ou religiosas.

Ressalta-se que, para as mulheres da elite a busca pela igualdade entre


homens e mulheres como direito de ser e agir participativamente em qualquer
ocupação social vinha de uma consciência intelectual que buscava romper
preconceitos e discriminação com o sexo feminino. Para as mulheres de classe
baixa não havia uma consciência de luta por igualdade. Os motivos que as levavam
a procurar trabalho era o instinto de sobrevivência. Muitas delas tinham que prover
seu próprio sustento pelos mais variados motivos, como a falta dos pais. Desde
cedo tinham que trabalhar ou, por serem mães, tinham que batalhar pelo sustento
da família, independente destas serem sozinhas ou mesmo casadas porque
dificilmente o trabalho de apenas um dos cônjuges seria suficiente para o
provimento das necessidades da família.

Fazer as mulheres de Teresina se conceberem como protagonistas


de sua própria historia e se lançarem como sujeitas políticas,
constituía um dos principais desafios para as organizadoras dos
movimentos de mulheres, tendo em vista o caráter eminentemente
patriarcal que caracterizava a sociedade piauiense, onde
historicamente os espaços de atuação feminina eram limitados,
principalmente no que se refere à participação política
(VASCONCELOS, SILVA, FRANCO, SANTANA,2010, p, 158).

Nota-se que a desigualdade entre os sexos no tocante ao trabalho na classe


baixa é quase inexistente. Não há nesse grupo uma consciência de igualdade de
direitos entre feminino e masculino, mas sim, uma luta diária por sua própria
existência.

2 A PARTICIPAÇÃO FEMININA NO DESENVOLVIMENTO DE SÃO


RAIMUNDO NONATO

Para tornar mais compreensiva a pesquisa, faz-se uma breve introdução da


História de São Raimundo Nonato, correspondente ao período de 1834 a 1912.
Devido à falta de fontes historiográficas fica limitada a história das mulheres que
viveram nessa região e contribuíram para que São Raimundo Nonato chegasse ao
status de cidade. Por isso aprofunda-se mais no período de 1912 a 1970. Faz-se,
419

desse período, uma análise sobre quais os papeis desenvolvidos pelas mulheres
sanraimundenses no que diz respeito ao desenvolvimento social deste lugar.

São Raimundo Nonato fica localizado a 550 km da capital Teresina, no


Sudeste do estado. Tem os seguintes limites: ao norte, Canto do Buriti e João Costa;
ao sul, Fartura do Piauí e Dirceu Arcoverde; a leste: Coronel José Dias e São
Lourenço; a oeste: Várzea Branca, Bonfim do Piauí e São Braz do Piauí (Fig. 1).

São Raimundo Nonato é hoje mundialmente conhecida como a capital da pré-


história. Por abrigar, em suas terras, o Parque Nacional Serra da Capivara que por
pesquisas realizadas na década de 70 pela arqueóloga Dra. Niède Guidon tornou-se
um dos mais importantes centros de pesquisas arqueológicas do mundo. Isto fez
desta cidade um importante pólo de agitação arqueológica. O Parque Nacional Serra
da Capivara um dos nove bens inscritos na lista de Patrimônio Cultural da
Humanidade. O mesmo foi reconhecido em 1972, pela UNESCO.

Em 1832, por meio de um Decreto Regencial, criou-se na região de


Confusões, atualmente cidade de Caracol, a Freguesia de São Raimundo Nonato.
Por falta de progresso, fez-se a sua transferência para a Fazenda Jenipapo. O fato
de este ser um lugar maior e com melhor desenvolvimento contribuiu para São
Raimundo Nonato elevar-se à categoria de vila e, mais tarde, de cidade Dias (2001).

Segundo DIAS (2001), os habitantes compunham-se de poucos brancos,


alguns mamelucos, negros e índios aldeados. A Freguesia nasceu sob influência
religiosa e sua população não poderia adotar outra religião se não a católica. Em
1876, foi construída a igreja que hoje é conhecida como a Igreja Catedral de São
Raimundo Nonato. Pela carência de padres o Distrito-Freguesia era visitado apenas
por sacerdotes forâneos que deixaram de visitar os fiéis mais distantes para dedicar-
se à paróquia.

A religiosidade de seus fiéis sempre foi muito forte. As mulheres destacam-se


na religião católica deste lugar. Elas são as responsáveis por organizar os cultos
religiosos e as festividades do padroeiro. Sempre coube às mulheres o desafio de
divulgar a religião, o que trouxe o crescimento das festividades do santo. São de sua
responsabilidade a organização dos cantos, a ornamentação do andor com flores
para a procissão e também o cuidado com o leilão.
420

Figura 1 – São Raimundo Nonato em relação ao estado e ao Brasil


421

De acordo com Dias (2001), a Igreja teve grande responsabilidade no


desenvolvimento social de São Raimundo Nonato. Através dela, os padres
mercedários trouxeram a educação, após a elevação de vila a cidade. Até então, a
educação era precária. Não havia escolas. Alguns professores particulares davam
aulas em suas próprias residências.

Dois colégios merecem destaque na educação, no primeiro momento do


desenvolvimento social: o Ginásio Dom Inocêncio e a Escola Normal Gercílio de
Castro Macedo. Apesar de não ter todos os professores formados, o ginásio Dom
Inocêncio mantinha uma rígida disciplina e uma grade curricular com doze
disciplinas: Português, Matemática, História, Geografia, Ciências, Inglês, Francês,
Latim, Desenho, Canto Orfeônico, Trabalhos Manuais e Religião.

A Escola Normal deu oportunidade para os sanraimundenses, em especial as


mulheres, para se formarem no magistério aonde posteriormente vinham a ser
professoras na mesma escola. Como exemplo tem-se a professora Amenália
Macêdo Silva Rosado, ícone da educação desta cidade onde nasceu, estudou e
trabalhou. É conhecida como uma professora de grande prestígio. Por onde passou,
deixou marcas de sua competência. Hoje mora na capital Teresina e trabalha na
Secretaria de Educação do Estado do Piauí.

Com a criação de escolas públicas, todos os sanraimundenses, os mais


abastados e os mais pobres, podiam sonhar em se formar.

São Raimundo Nonato desenvolveu-se economicamente, graças à extração


do látex da maniçoba. Não existia outra grande produção. A agricultura cultivada era
apenas a de subsistência. O comércio da cidade era o mais variado possível. Havia
lojas de tecidos, de utensílios domésticos, farmácias e feiras livres. Nessa época,
havia, também, duas agências bancárias: a do Banco do Estado do Piauí e a do
Banco do Nordeste do Brasil. A população de São Raimundo era composta por
pessoas do lugar e de outros municípios que vinham para trabalhar, fazer negócios
ou estudar.

Na década de 1970, a juventude sanraimundense tinha como lazer o cinema


de seu Clovis, lanchonetes e clubes onde se realizavam festas. As famílias
sanraimundenses faziam-se presentes nessas atividades de lazer. Muitas moças,
acompanhadas de seus namorados, saíam para a diversão social.
422

2.1 AS MULHERES DE SÃO RAIMUNDO E A LUTA POR ESPAÇO NA


SOCIEDADE

Para traçar um perfil do papel da mulher na sociedade sanraimundense de


1912 a 1970 precisa-se estar atento aos mais simples e modestos gestos, atitudes e
trabalhos desempenhados por essas autoras e protagonistas dessa história.
Entende-se que, até o início do século XX, na sociedade patriarcal machista, a
mulher esteve colocada à margem da história que a via como coadjuvante no
processo de desenvolvimento social. Não se aceitava que a mulher tivesse sua
opinião, ou seja, que se manifestasse contra a ordem social vigente.

A mulher era vista como esposa, mãe e dona-de-casa. Era esse tripé que
dava sustentabilidade à sociedade machista. Então, qualquer tipo de não
cumprimento dessa ordem era visto como fator de desequilíbrio social porque a
sociedade baseava-se no modelo de família nuclear (pai, mãe e filho).

Em 1912, a principal atividade econômica da região de São Raimundo Nonato


era a maniçoba. A Fazenda Serra era uma das maiores produtoras. De acordo com
Oliveira (2001), a Fazenda Serra era administrada por dois ingleses. Tratava-se de
uma imensa plantação de maniçoba. Empregava mais de 400 homens que moravam
em ranchos espalhados pela fazenda. Os proprietários trouxeram até de Barbados,
negros para executar o trabalho. Essa empreitada não teve sucesso e os mesmos
foram despedidos.

Ainda segundo Oliveira (2001), os trabalhadores que chegavam à região


vinham sozinhos, solteiros e se dirigiam às terras onde o trabalho já estava
organizado. Apesar das duras condições, o trabalho infantil era utilizado. A grande
maioria dos maniçobeiros começou a trabalhar quando criança. A partir de seis ou
oito anos de idade já ajudavam os pais, principalmente nos maniçobais mais
próximos. Algumas crianças ou adolescentes assumiam responsabilidades de
adultos. Muitos deles, que perderam os pais e tinham que sustentar os irmãos
menores, começavam muito cedo naquela profissão. Não havia qualquer tipo de
preconceito com o trabalho feminino, apesar de a atividade estar relacionada á
força, à coragem e ao domínio da natureza. O trabalho da mulher era utilizado na
lavagem e secagem da maniçoba. Era também grande a presença da mulher nos
maniçobais. No interior do Nordeste, a mulher exercia e exerce muitas atividades
423

conhecidas como masculinas, na agricultura por exemplo. Com a maniçoba não


podia ser diferente:

Mulheres, tinha muitas trabalhando... As mulheres tinham umas


trabalhadoras que trabalhavam muito mais de que os homens. Elas
faziam até mais vantagem. Conheci uma senhora conhecida por
Raimunda, tratada de Raimundinha, que era a esposa do Salu, era
esposa do Salustiano que morava no Zabelê, ela trabalhou em
maniçoba, era filha da Mulata. A Raimundinha é até minha prima e
ela fazia muita vantagem em maniçoba do que o próprio Salustiano.
Tinha a Maria Rosa que é esposa do senhor Roso que é conhecido
como neguinho, ali era outra que era uma maniçobeira que não tinha
homem, era difícil para explorar maniçoba ou tirar maniçoba como
nós diz, pra produzir maniçoba igual á Maria Rosa. Tinha a Eliza que
era esposa do José Messias, a Elisa era outra maniçobeira especial.
A velha Mulata que morou muito tempo na Serra Branca era uma das
maiores maniçobeiras da região que existia era a Mulata com os
filhos (Cícero Batista, 66 anos. Revista FUDHAMENTOS).

Com a extração da maniçoba, São Raimundo Nonato desenvolveu-se


socialmente. As mulheres que lá trabalhavam supriam as suas necessidades
financeiras. Era do maniçobal que tiravam o sustento de sua família. Por ser uma
atividade em que não havia preconceito com o trabalho feminino, as mulheres de
classe baixa trabalhavam com seus maridos e filhos. Juntos proviam seu sustento
familiar.

Ressalta-se que o maniçobal era dividido, um lado era só para mulheres e


outro só para os homens. Isso denota que havia preconceito mesmo que essas
mulheres não admitam. Elas afirmam que não se sentiam excluídas nessa divisão
operacional de setores. É possível que sua pouca instrução não lhes permitisse
fazer uma análise crítica da situação. Elas simplesmente aceitavam a divisão como
natural, sem qualquer questionamento. Pode até ser que não houvesse preconceito
com o gênero, mas, apenas uma forma de os maridos preservarem suas mulheres e
filhas do contato com outros homens para evitar qualquer desentendimento.

Nós éramos de uma família de 12 irmãos. Todos viviam da


maniçoba, tanto os homens como as mulheres. Todos trabalhavam.
Minha mãe, as primas dela e todos os parentes furavam maniçoba
para sobreviver. Eu fui trabalhar na maniçoba para conseguir
dinheiro para comprar meu vestido de noiva e eu consegui. Quando
fui, eu já era bem forte para trabalhar. Eu tinha 16 anos.155

155
Entrevista concedida por Arlinda, 77 anos.
424

Os motivos que levavam uma mulher pobre a trabalhar nunca eram por
emancipação, sim por necessidade. Aí está o fato de não ser observado um
preconceito com a mulher no trabalho junto ao homem. Era necessário que ela
buscasse trabalhar para se sustentar, pois seus pais não podiam dar-lhe tudo o que
ela precisava.

Nesse período, as mulheres tinham como lazer as reuniões feitas pelos


maniçobeiros, nos finais de semana, para tocar e dançar. Participavam, também,
das festividades do padroeiro da cidade São Raimundo Nonato. Porém, para irem
até São Raimundo Nonato tinham que ser acompanhadas por um homem, fosse ele
o pai, irmão, primo ou noivo. A companhia era obrigatória por ser longe o percurso e
por não ser aconselhável mulher sair sem a presença masculina. Era costume as
famílias pobres adotarem alguns valores morais burgueses. Dizia-se: “não é porque
a moça é pobre que ela tem que sair desacompanhada”.

No período de exploração da maniçoba, ocorreram muitas mudanças na


cidade de São Raimundo Nonato em termos de crescimento populacional,
movimento comercial e o aumento da criminalidade devido à grande quantidade de
trabalhadores que vinham de outros estados para trabalhar no maniçobal. Houve
redução na atividade agrícola e intensificação dos intercâmbios regionais. Com a
decadência da borracha, restou aos trabalhadores ocupar-se com a agricultura de
subsistência, ao contrário do que acontecia antes. A extração da maniçoba passou a
ser, apenas, um complemento da renda familiar. Em suma, o declino da borracha foi
inevitável. Sua queda levou os sonhos do muitos trabalhadores que esperavam
ansiosamente mudar a sua situação financeira.

As mulheres de baixa renda eram muito solidárias. Quando estavam grávidas


contavam com o apoio de uma parteira. Esta acompanhar toda a gravidez até o dia
do nascimento do bebê. Fazia o parto de graça, em casa. Era uma espécie de
agente de saúde voluntária.

As mulheres pobres e batalhadoras não se deixavam abater diante das


dificuldades que a vida lhes impunha. Mesmo sem instrução educacional, seguiam
em frente. Dedicavam-se aos mais árduos trabalhos, não reparando que eram
discriminadas.
425

Nota-se que, no trabalho braçal, a mulher competia de igual para igual com o
sexo oposto. Ela não era vista como um ser frágil porque o que estava em jogo eram
a sua sobrevivência e a de sua família. Não era uma ocupação de destaque na
sociedade. O grupo em que ela estava inserida não discutia ou proibia sua
participação, mesmo o homem mantivesse seu papel de patriarca e defensor do lar.
Ela tinha o respeito de sua família. O marido precisava da ajuda de sua companheira
para suprir as necessidades financeiras e isso era tido como natural.

Era diferente das famílias abastadas. Nestas, quando o homem não


conseguisse ser o provedor do lar, ele era visto como um fracassado. Sua mulher
jamais podia sair da esfera privada. Se fosse necessária a sua saída ela era vista
como uma transgressora. Dizia-se que ela estaria colocando em risco o bem estar e
a saúde de sua família.

Nós, que vivíamos do cabo da enxada, éramos iguais ao que o


homem fazia. Nós também podíamos fazer. A única coisa que não
fazíamos era cortar com o machado. Eu criei os meus filhos no
pesado todos os 7 filhos... Quando eu vim para São Raimundo
Nonato, estavam construindo essa pista daí do corte. Eu ajudei na
construção, carregando pedra na cabeça. Aí o prefeito dava aquele
vale pra gente trocar por carne de jabá, óleo, farinha e rapadura. Era
alimento para eu e meus filhos (Emília, 90 anos).

São Raimundo tem sua origem ligada à religião católica. As mulheres deste
lugar destacam-se por sua religiosidade e fé. Desde o início de cidade, participam
dos eventos religiosos. São elas as responsáveis pela organização dos cultos
religiosos e participam da Ordem Mercedária de Nossa Senhora das Mercês. São
responsáveis pela arrecadação do dízimo e comprometem-se a levar a palavra do
senhor aos hospitais, às delegacias e aos lares em que se encontram pessoas
enfermas. Ajudam na celebração dos cultos religiosos. Todas as primeiras sextas,
prestam conta das arrecadações dos dízimos ao padre e ainda organizam os leilões
e bingos para ajudar a paróquia. Nessas ordens religiosas alguns homens também
participam.

A influência da Igreja sobre as mulheres era grande. Ela ditava a moral e os


bons costumes A mulher era orientada pela igreja a ser boa esposa e mãe como
Nossa Senhora foi. O casamento era algo fundamental. A mulher tinha que casar o
mais cedo possível para evitar cair em tentação. Ela devia cuidar bem de seu lar, na
426

fé e dedicação aos filhos e ao esposo. “Eu me casei com vinte anos, já era velha por
que no meu tempo as moças se casavam com doze anos” (LOURDES, 80 ANOS).

Na sociedade sanraimundense, as mulheres fazem-se presentes em todas as


ocupações e na política. Destaca-se a Dona Socorro Victor que foi a primeira
vereadora desta cidade, em 1988. Ela teve cinco mandatos consecutivos em um
período de 20 anos, que ela exerceu com grande competência e prestígio. A Dona
Socorro Victor, deste cedo, interessou-se pelo trabalho e pelas causas sociais.
Quando moça, estudava na Escola Normal e trabalhava com o seu pai, no comércio.
Ela sempre teve consciência de que, pelo trabalho, conseguiria a sua emancipação.

Então eu tive a coragem de entrar na política. Só era eu de mulher.


Naquela época, não existia cota para mulheres como hoje. Eram 11
vereadores e eu era a única mulher... Ganhei o mandato quando o
município era grande... Então eu fui eleita com 649 votos... E sofri
discriminação por parte dos colegas vereadores. Quando quis ser
presidente da câmara, um desses colegas vereadores disse que na
mesa não sentaria uma mulher. Ele usaria saia se na mesa eu me
sentasse como presidente e mesmo assim eu o desafiei. Infelizmente
eu não o venci... Mas não baixei minha cabeça e nem desisti. Aí,
tempos depois, consegui ser vice-presidente da casa (SOCORRO
VÍCTOR, 57 ANOS).

Nota-se que, quando se trata de posição social de destaque, a mulher sofre


bastante para conquistar seu lugar. Para uma mulher conseguir um lugar no espaço
tido antes como apenas masculino, ela deve provar que não é só competente, mas,
também, insistente para conseguir vencer todas as barreiras impostas pelo homem
que não admite dividir espaço com a mulher. Para o homem machista, é
inadmissível que uma mulher fique em posição de superioridade.

Essa postura adotada por homens que não querem ser comparados ou
igualados em suas ocupações com mulheres levou a discussão de gênero em que
se baseia essa pesquisa. Por que no trabalho intelectual a mulher deve ser inferior
se no trabalho braçal ela pode ser igual ao outro gênero? Em que se baseia a
inferioridade feminina no que diz respeito ao intelecto masculino? Essa ideia
fundamenta-se no argumento de que a mulher, por ser emotiva, não pode estar na
esfera pública. Este lugar, viril e competitivo, deveria ser dominado por homens
cruéis e impiedosos, que jamais se curvariam a uma mulher. O que lhes garante que
as mulheres não podem ser também fortes? Tudo isso cai por terra quando
mulheres determinadas impõem-se e mostram que são capazes e competentes.
427

A sociedade sanraimundense é uma sociedade machista que sempre


oprimiu as mulheres. Mas nós mulheres somos corajosas e
batalhadoras. Eu sempre mostrei minha coragem... Eu visto a minha
saia com muito orgulho. Eu não sou venal. Eu tenho palavra e gosto
de ajudar. Tudo o que faço, é de coração (SOCORRO VICTOR, 57
ANOS).

As mulheres sanraimundenses ricas e de boa educação, com consciência de


seus direitos na sociedade, não ficaram alheias aos preconceitos. Foram atrás de
seus direitos e lutaram por seu espaço. Com a construção da Escola Normal, essas
mulheres puderam estudar e se formar no magistério. Algumas exerceram a
profissão de professora e outras foram para a capital fazer um curso superior. As
que preferiram ficar e se casar não desistiram de seus sonhos e ambições
profissionais.

Era comum as moças filhas de comerciantes trabalharem com os pais no


comércio. Assim iam conquistando sua independência financeira desde cedo.
Quando se casavam, continuavam a trabalhar para ajudar no sustento do lar. Com a
educação que haviam recebido dos pais e reforçada pela igreja, de que sempre
vem, em primeiro lugar, a família, as mulheres ainda se prendiam ao lar. Mesmo
sendo financeiramente independentes elas dificilmente optavam por deixar o marido
e os filhos para irem estudar na capital. Mesmo sem um curso superior, buscavam
melhoria e qualidade de vida para os seus, enfrentando preconceitos e jornadas
duplas de trabalho.

Comecei a fazer dois cursos de faculdade fora da São Raimundo,


mas foi o tempo em que vieram os filhos e eu tive de dar prioridade
aos filhos, porque quebrava toda uma estrutura de família com
relação aos filhos. Eu tive que fazer a opção de ficar com minha
família, meus filhos e eles são a prioridade... Num primeiro momento,
eu conciliei o trabalho de professora com o comércio. Eu comecei a
costurar em casa. Eu fabricava roupas infantis e enxovais. Eu
costurava e vi que tinha um dom que era comercializar (SOCORRO
MACEDO, 57 ANOS).

As mulheres não tiveram obstáculos para exercer profissões como a costura,


a venda de frutas e verduras na feira ou o comércio ambulante nas ruas. Essas
ocupações não proporcionavam nenhum destaque social e tampouco ameaçavam
os homens em suas ocupações de prestígio como grandes comerciantes, médicos,
advogados, prefeitos e vereadores.
428

No início de cidade, as mulheres sanraimundenses não tinham preconceito.


Porque era muito baixo o nível de escolaridade, elas aceitavam as regras impostas
pelos pais, pela igreja e pela sociedade em geral. Tudo era aceito como natural. O
papel da mulher era ser esposa, mãe e dona-de-casa e isso era o fundamental. Só
havia diferença entre as mulheres pobres e as ricas. Enquanto as ricas não
precisavam trabalhar fora de casa, as pobres tinham que dar conta de mais
obrigações. Além de esposas, mães e donas-de-casa, tinham que ser trabalhadoras
da maniçoba, costureiras, lavadeiras, mascates e agricultoras, nos períodos de
chuvosos.

A mulher sanraimundense é discriminada quando quer ocupar lugares que,


historicamente, eram exclusividade masculina. Ainda sobrevive uma cultura
machista muito grande em São Raimundo Nonato. Esta cidade tem um índice
grande de violência doméstica. Muitas mulheres sofridas não buscam seu
aprimoramento profissional por falta de incentivo de sua família. Muitas ficam
totalmente dependentes dos maridos. Porém, de um modo geral, as
sanraimundenses são mulheres de muita coragem e determinação naquilo que
pretendem fazer em suas vidas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo desse trabalho, realizou-se um estudo sobre o papel da mulher, no


desenvolvimento social de São Raimundo Nonato. Utilizou-se uma abordagem
crítica e analítica sobre as fontes orais, fundamentada no conceito de gênero e nas
obras que tratam sobre a história das mulheres.

Em 1912, São Raimundo Nonato elevou-se à categoria de cidade. Seu


desenvolvimento social deu-se devido à extração do látex da maniçoba. Foi graças a
essa atividade econômica que muitas famílias proviam o seu sustento. Nessa
atividade, as mulheres participaram ativamente. Nela não havia preconceito por
parte dos homens. Porém, um fato no mínimo curioso pode ser observado. No
maniçobal, as mulheres trabalhavam separadas dos homens, ou seja, o espaço de
trabalho era dividido entre os gêneros. Ambas as partes não viam isso como
preconceito. Há relatos de que muitas mulheres trabalhavam sem deixar a desejar a
429

nenhum homem. Havia compradores de látex da maniçoba que preferiam comprar o


que era produzido por mulheres. Certos homens usavam de má fé, misturando
pedras ao látex para aumentar o peso.

Com relação ao trabalho que dependia de força física não foi notado
preconceito com as mulheres que o praticavam, mas com relação a atividades
intelectuais havia resistência por parte dos homens para aceitar que uma mulher o
fizesse. Com relação à moral, os preconceitos são os mesmos tanto para mulheres
ricas quanto para as pobres.

No início da cidade, a educação das mulheres sanraimundenses era voltada


para a esfera privada. Elas eram educadas para serem esposas, mães, donas-de-
casa. Com o crescimento da cidade, surgiram colégios que possibilitaram às
mulheres estudarem. A Escola Normal foi a que mais formou mulheres no
magistério. Essa era uma profissão para as moças da classe mais elevada. Essas,
quando casavam, continuavam exercendo a profissão para ajudar seu esposo no
provimento do lar.

O trabalho para as mulheres desse lugar não era visto como emancipação do
gênero. Era uma necessidade de sobrevivência. Os questionamentos referentes à
desigualdade entre homens e mulheres só é válido para as mulheres de classe alta
e intelectualmente desenvolvidas. Elas procuram por direitos sociais iguais aos dos
homens e buscam, no trabalho, sua emancipação profissional.

As mulheres sanraimundenses que viveram no período da emancipação de


São Raimundo Nonato eram determinadas, corajosas e batalhadoras. Foi com muita
persistência que atingiram o seu ideal.

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Cassandra Maria Bastos (Orgs.). Lápis, Agulha e Amores: História de Mulheres
na Contemporaneidade. Fortaleza: Edição UFC, 2010.
BIOGRAFIA DOS AUTORES

Ana Stela de Negreiros Oliveira: Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco
(2007), Mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco (2001) e Graduada em
Licenciatura Plena em História pela Universidade Federal do Piauí (1983). Atualmente é DAS do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Tem experiência na área de História, com
ênfase em História do Brasil, atuando principalmente nos seguintes temas: História Colonial, História
do Piauí, História Indígena, Arqueologia Histórica e Patrimônio Cultural.
Email: anastelanegreiros@hotmail.com
Celito Kestering: Licenciado em Filosofia, Psicologia e Sociologia pela Universidade do Sul de Santa
Catarina – UNISUL (1974); Engenheiro Agrônomo pela Faculdade de Agronomia do Médio São
Francisco – FAMESF (1980); Especialista em Realidade Brasileira, pelo Instituto Brasileiro de
Desenvolvimento – IBRADES; Mestre em Pré-História (2001) e doutor em Arqueologia (2007) pela
Universidade Federal de Pernambuco – UFPE; Professor Adjunto na Universidade Federal do Vale
do São Francisco – UNIVASF. Email: celito.kestering@mail.com.
Claudio Marcio Barbosa de Siqueira: Estudante do Curso de Arqueologia e Preservação
Patrimonial e bolsista do Programa de Educação Tutorial – PET. Email: cmbs.qrql@gamil.com
Déborah Gonsalves Silva: Graduada em História, pela Universidade Estadual do Piauí – UESPI,
Campus de São Raimundo Nonato, onde atuou como professora e coordenadora do quadro
provisório do Curso de História (2009-2011); Mestranda em História Social, na Universidade Federal
do Maranhão – UFMA. Desenvolve pesquisas sobre escravidão e relações de compadrio entre
escravos no Piauí. Tem experiência na área de História com ênfase nas temáticas: escravidão,
família, cultura material, Piauí Colonial. Email: deborahgonsalves@yahoo.com.br
Estelita dos Santos Braga: Graduada em História pela Universidade Estadual do Piauí-UESPI,
Campus de São Raimundo Nonato - PI (2012).
Felipe Silva Sales: Estudante do Curso de Arqueologia e Preservação Patrimonial da UNIVASF e
bolsista do Programa de Educação Tutorial – PET. Email: felsales@hotmail.com
Gabriel Frechiani de Oliveira: Licenciado em História pela Universidade Estadual do Piauí – UESPI
(2007); Especialização em Metodologia do Ensino de História e Geografia pelo Sistema Educacional
EADCON (2009); Aluno do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Arqueologia da
Universidade Federal do Piauí - UFPI. Atuou como professor do quadro provisório na UESPI e
professor do quadro efetivo da Secretaria Estadual de Educação e Cultura do Piauí. Tem experiência
na área de História, Arqueologia e Preservação Patrimonial.
Ianthe Santos Silva: Estudante do Curso de Arqueologia e Preservação Patrimonial da UNIVASF e
bolsista do Programa de Educação Tutorial – PET. Email: ianthe.santos@gmail.com
Ingrid Lopes de Oliveira: Estudante do Curso de Arqueologia e Preservação Patrimonial da
UNIVASF e bolsista do Programa de Educação Tutorial – PET. Email: ingridlopes92@hotmail.com
Jaime de Santana Oliveira: Pós-graduando em nível de especialização Lato Sensu em Educação
Contextualizada no Semiárido, na Perspectiva da Educação do Campo, na Universidade Estadual do
Piauí - UESPI, com apoio do Ministério das Ciências e Tecnologia- MCT/CNPq/CT-Hidro/ Ações
Transversais. Graduado em Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual do Piauí -
UESPI e Graduando em Arqueologia e Preservação Patrimonial na Universidade Federal do Vale do
São Francisco – UNIVASF.
Jéssica Rafaella de Oliveira: Estudante do Curso de Arqueologia e Preservação Patrimonial da
UNIVASF e bolsista do Programa de Educação Tutorial – PET. Email: jessica.rafaella@hotmail.com
José Nicodemos Chagas Júnior: Estudante do Curso de Arqueologia e Preservação Patrimonial da
UNIVASF e bolsista do Programa de Educação Tutorial – PET. Email: nicodemoschagas@gmail.com
Jucinéa dos Santos Mota: Nasceu em Dirceu Arcoverde - PI. Graduada em História pela
Universidade Estadual do Piauí - UESPI, Campus de São Raimundo Nonato - PI (2012).
Juliana Ferreira Sorgine: Graduada em História (2002) e mestre em História Social (2005) pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é historiadora do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, lotada na Coordenação-Geral de Pesquisa e Documentação da
432

Instituição, onde atua na coordenação do Programa de Especialização em Patrimônio do IPHAN.


Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil, História da Preservação do
Patrimônio Cultural e Formação Profissional no campo da preservação do Patrimônio Cultural.
Leonardo Tomé de Souza: Estudante do Curso de Arqueologia e Preservação Patrimonial da
UNIVASF e bolsista do Programa de Educação Tutorial – PET. Email: tomedesouza11@hotmail.com
Lucas Braga da Silva: Estudante do Curso de Arqueologia e Preservação Patrimonial da UNIVASF
e bolsista do Programa de Educação Tutorial – PET. Email: viplucas@hotmail.com
Maria de Fátima Paes de Almeida Neta: Bacharel em Arqueologia e Preservação Patrimonial pela
Universidade Federal do Vale do São Francisco - UNIVASF. Email: fatinha17@hotmail.com
Marian Helen da Silva Gomes Rodrigues: Graduada em Letras/Português pela Universidade
Estadual do Piauí. Especialista em Psicopedagogia (FATEH), em Educação, Cultura e Meio Ambiente
(UFPI), em Patrimônio Cultural (PEP/IPHAN). Mestre em Arqueologia Pré-Histórica e Arte Rupestre
(IPT e UTAD – Portugal - Erasmus Mundus & quot; Quartenário e Pré-História & quot;). Professora
efetiva da rede municipal de Educação de Coronel José Dias. Tem experiência na área de Educação,
Psicopedagogia, Arte, Gestão do Patrimônio arqueológico, projetos culturais, arqueologia e turismo
sustentável.
Mauro Alexandre Farias Fontes: Graduado em História pela Universidade Federal de Pernambuco
(1999) e mestre em História, com área de concentração em Pré-história, pela Universidade Federal
de Pernambuco (2003). Atualmente é professor assistente do Colegiado de Arqueologia e
Preservação Patrimonial da Universidade Federal do Vale do São Francisco. Tem experiência na
área de História, com ênfase em Pré História do Nordeste do Brasil, atuando principalmente nos
seguintes temas: cerâmica pré-histórica, arqueologia da morte, preservação patrimonial e arqueologia
pré-histórica e histórica. Email: mauro.farias@univasf.edu.br
Ney Clemente Dias Brito: Graduado em História pela Universidade Estadual do Piauí - UESPI,
Campus de São Raimundo Nonato - PI (2012).
Pávula Maria Sales Nascimento: Bacharel em História e Mestre em História, Cultura e Sociedade
pela Universidade Federal de Campina Grande - UFCG. Atualmente é professora assistente do curso
Arqueologia e Preservação Patrimonial da Universidade Federal Vale do São Francisco - UNIVASF.
Rianne Maria Oliveira Paes: Bacharel em Arqueologia e Preservação Patrimonial pela Universidade
Federal do Vale do São Francisco – UNIVASF.
Rodrigo Bernardo da Silva: Estudante do Curso de Arqueologia e Preservação Patrimonial da
UNIVASF e bolsista do Programa de Educação Tutorial. Email: drack_wicca@hotmail.com
Silvyo Bruno Guerra Correia: Estudante do Curso de Arqueologia e Preservação Patrimonial da
UNIVASF e bolsista do Programa de Educação Tutorial – PET. Email: bruno.guerra85@gmail.com
Taiguara Francisco Alexo da Rocha Silva: Estudante do Curso de Arqueologia e Preservação
Patrimonial e bolsista do Programa de Educação Tutorial – PET. Email: taiguara.mosh@hotmail.com
Tamara Grazielle Cavalcante Moraes: Estudante do Curso de Arqueologia e Preservação
Patrimonial da UNIVASF e bolsista do Programa de Educação Tutorial – PET.
Email: tamaragrazielle10@hotmail.com
Tânia Maria de Castro Santana: Bacharel em Arqueologia e Preservação Patrimonial pela
Universidade Federal do Vale do São Francisco – UNIVASF.
Vivian Karla de Sena: Graduada em História(2004) e mestre em Arqueologia (2007) pela
Universidade Federal de Pernambuco. Professora Assistente do Curso de Arqueologia e Preservação
Patrimonial da Universidade Federal do Vale do São Francisco. Tem experiência na área de História,
com ênfase em História Indígena e Colonial. Faz pesquisa arqueológica de sítios pré-históricos e
históricos e análises laboratoriais de artefatos cerâmicos. Tem experiência em prospecção,
mapeamento e salvamento de sítios arqueológicos do sertão e costa litorânea do Nordeste. Realizou
trabalhos de levantamento de cultura material e imaterial em áreas de instalação de linhas de
transmissão, barragens e barragens de hidrelétricas. Email: vivian.sena@univasf.edu.br
Waldimir Maia Leite Neto: Mestre em Arqueologia pela Universidade Federal de Pernambuco,
(2008). Professor Assistente 1 no curso de Arqueologia e Preservação Patrimonial da Fundação
Universidade Federal do Vale do São Francisco – UNIVASF. Email: waldimir.leiteneto@univasf.edu.br

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