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O TRABALHO DE CAMPO1

Rafael José dos Santos

Com Franz Boas, um alemão radicado nos Estados Unidos, e Bronislaw Malinowski, um polonês radicado na
Inglaterra, surge a moderna Antropologia mediante o “trabalho de campo” (fieldwork), que também
denominamos etnografia (algo como “mapeamento de etnias”). Os pesquisadores deixaram de priorizar as
informações indiretas, fornecidas por colonizadores, viajantes e missionários, para transformar a tarefa de
coleta de dados em parte integrante de sua pesquisa.
O trabalho etnográfico alterou as relações do antropólogo com as culturas estudadas. À medida que os
antropólogos começaram a travar contatos diretos com um “outro”, perceberam que tratavam com sistemas
bem mais complexos do que pensavam os homens do século XIX. Os rituais, os sistemas de parentesco, os
mitos, assim como as estruturas das relações sociais, econômicas e políYcas, revelavam um tal nível de
sofisYcação que seria impossível e improcedente conYnuar a tratá-las como “inferiores”.
Vejamos dois registros feitos a parYr de pesquisas etnográficas. Uma citação de Franz Boas, e outra de
Malinowski.
Franz Boas: Frequentemente me pergunto que vantagens nossa “boa sociedade” possui sobre aquela dos
“selvagens” e descubro, quanto mais vejo de seus costumes, que não temos o direito de olhá-los de cima para
baixo. Onde, em nosso povo, poder-se-ia encontrar hospitalidade tão verdadeira quanto aqui? [Boas referia-se
aos esquimós] ... Nós, “pessoas altamente educadas”, somos muito piores, relaIvamente falando... Creio que,
se esta viagem tem para mim (como ser pensante) uma influência valiosa, ela reside no fortalecimento do ponto
de vista da relaIvidade de toda formação [Bildung]2, e que a maldade, bem como o valor de uma pessoa, reside
na formação do coração, que eu encontro, ou não, tanto aqui quanto entre nós.
Bronislaw Malinowski: A ideia geral que se faz é que os naIvos vivem no seio da natureza, fazendo mais ou
menos aquilo que querem, mas presos a crenças e apreensões irregulares e fantasmagóricas. A ciência moderna,
porém, nos mostra que as sociedades naIvas têm uma organização bem definida, são governadas por leis,
autoridades e ordem em suas relações públicas e parIculares, e que estão, além de tudo, sob o controle de laços
extremamente complexos de raça e parentesco. (...) As suas crenças e costumes são coerentes, e o
conhecimento que os naIvos têm do mundo exterior lhes é suficiente para guiá-los em suas diversas aIvidades
e empreendimentos. Suas produções arYsIcas são cheias de senIdo e beleza.
Os dois trechos demonstram uma mudança no olhar da Antropologia e, talvez, este “olhar” seja uma das
caracterísYcas marcantes que diferenciam nossa disciplina de outras. Na história da Antropologia,
Malinowski é considerado o revolucionário pioneiro do trabalho de campo, embora outros antes dele já
Yvessem viajado para coletar diretamente informações. Sua importância foi, sem dúvida, ter estabelecido
métodos e técnicas para a etnografia, em parYcular a “observação parYcipante”. Vamos deixar o próprio
Malinowski falar sobre isso, através das recomendações que ele faz no capítulo introdutório de sua obra
Argonautas do Pacífico Ocidental, um estudo sobre os naYvos das Ilhas Trobriand:
Nesse Ipo de pesquisa, recomenda-se ao etnógrafo que de vez em quando deixe de lado sua máquina
fotográfica, lápis e caderno e parIcipe pessoalmente do que está acontecendo. Ele pode tomar parte nos jogos
dos naIvos, acompanhá-los em suas visitas e passeios, ou sentar-se com eles, ouvindo e parIcipando das
conversas (Malinowski, 1978, p. 31).
Evidentemente, muitos métodos e técnicas de pesquisa surgiram e se desenvolveram a parYr daí, como por
exemplo, a antropologia visual, assim como o registro livre do “discurso” naYvo. A Antropologia transformou-
se não apenas em suas técnicas de pesquisa, mas também na própria forma de escrever sobre as culturas.
Mas como dissemos anteriormente, além de consYtuir uma revolução no trabalho de campo, a etnografia
de Malinowski forneceu os elementos para a contestação do evolucionismo social e do etnocentrismo. Como
podemos perceber, Malinowski descobriu que, assim como na sociedade considerada “civilizada”, os naYvos

1
Adaptação de SANTOS, R. J. O trabalho de campo: o antropólogo “dança com lobos”. In.: Antropologia para quem não vai ser antropólogo.
Porto Alegre, Tomo Editorial, 2005. pp.37-42. Material de apoio ao ensino e de uso apenas escolar.
2
Em alemão, idioma de Franz Boas, a palavra bildung tem o significado semelhante ao de civilização, não no sen<do evolucionista,
mas como um modo de vida específico de uma sociedade. Já o termo kultur (cultura) indica a produção arDs<ca, filosófica,
espiritual.
das Ilhas Trobriand consYtuíam uma sociedade com suas insYtuições, leis, conhecimentos e artes. Não há
como deixar de notar a preocupação do antropólogo em mostrar que se tratava de uma sociedade e de uma
cultura com sua própria complexidade.
Mas quando Malinowski desenvolvia os métodos de observação etnográfica (recorrendo, inclusive, ao uso
da fotografia), o golpe fatal no evolucionismo e no etnocentrismo, pelo menos no interior da Antropologia,
já havia sido desferido por Franz Boas. Note, na citação do autor, que ele menciona o “ponto de vista da
relaYvidade de toda formação [bildung]”. O que significava isso?
Para Boas, era impossível comparar sociedades em termos de avanço e atraso, porque cada cultura - cada
“formação”, cada bildung – só poderia ser entendida a parYr de seus próprios valores, hábitos, modos de
vida e, não menos importante, de sua própria história. Cada cultura só poderia ser compreendida
relaYvamente, daí surgir o termo “relaYvismo cultural”. Boas foi também um críYco do determinismo
geográfico, lançando mão de inúmeros exemplos de culturas diversas em condições similares. Com igual
intensidade, ele não poupava críYcas ao determinismo biológico, como podemos perceber por este trecho
de uma conferência proferida por ele em 1932:
Este é o tema da antropologia cultural. Podemos dizer com segurança que os resultados do imenso material
reunido durante os úlImos cinquenta anos não jusIficam a suposição de qualquer relação estreita entre Ipos
biológicos e forma cultural.
Com suas idéias, resultantes de intensas pesquisas, Boas tornou-se uma figura central, principalmente na
Antropologia que se desenvolveria nos Estados Unidos, onde ele vivia e lecionava. O adjeYvo “cultural”, que
acompanha a Antropologia em muitos currículos universitários, refere-se à tendência culturalista fundada
por ele.
Para nós, no Brasil, existe ainda um dado muito importante relacionado com as ideias de Franz Boas. Entre
seus alunos da Universidade Colúmbia, em Nova lorque, encontrava-se um jovem intelectual brasileiro,
Gilberto Freyre, que publicaria no início dos anos 1930 o clássico Casa Grande & Senzala. Deixemos falar o
então jovem cienYsta social, enquanto escrevia o prefácio à primeira edição de sua obra:
Foi o estudo da Antropologia sob a orientação do professor Boas que primeiro me revelou o negro e o mulato
no seu justo valor – separados dos traços de raça os efeitos do ambiente ou da experiência cultural. Aprendi a
considerar fundamental a diferença entre raça e cultura; a discriminar entre os efeitos de relações puramente
genéIcas e os de influências sociais, de herança cultural e de meio. Neste critério de diferenciação fundamental
entre raça e cultura assenta todo o plano deste ensaio [Freyre referia-se ao seu livro]. Também no da
diferenciação entre hereditariedade de raça e hereditariedade de família (Freyre, 1986, p. 11).
Esse é um belo exemplo de como coisas e nomes aparentemente distantes podem ter relação com a nossa
vida: quantas vezes você ouviu que a cultura brasileira é fruto da “mistura de raças”? Pois é. Só que a palavra
“raça”, aqui, não tem o significado biológico, mas cultural: a cultura brasileira teria sua história formada pela
contribuição do branco, dos negros e dos índios. Isso é Gilberto Freyre, aluno de Franz Boas.
Hoje em dia podemos até concluir que talvez as coisas não tenham sido bem assim, que os caminhos da
cultura brasileira, ou quem sabe das culturas no Brasil, tenham sido outros, ou não tenham sido únicos.
Entretanto, se considerarmos que no Brasil da virada do século XIX para o século XX havia quem atribuísse
as razões de nosso “atraso” ao clima ou à presença de raças “inferiores”, sem dúvida o pensamento de Freyre,
a parYr de Boas, foi um grande avanço. O que não dá para entender é como tem gente que ainda pensa assim
no início do século XXI.
Não foram apenas as contribuições de Boas nos Estados Unidos e de Malinowski na Inglaterra que ajudaram
a Antropologia a entrar em sua modernidade. Ambos deram passos decisivos ao transformar o trabalho de
campo, a etnografia, no principal método de pesquisa de nossa ciência, assim como contribuíram para a
superação de visões equivocadas sobre outras sociedades e culturas. Mas além dos métodos, a Antropologia
também foi impulsionada pelo trabalho teórico, e nesta área temos que conhecer algumas ideias de Émile
Durkheim (1858-1917) e Marcel Mauss (1872-1950).

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