Você está na página 1de 5

CARACTERÍSTICAS DE ISRAEL1

Isac Antonio Pereira Parente2

Desde o exílio da Babilônia, a temática da “reunião do povo de Deus disperso” é


parte dos enunciados fundamentais da teologia de Israel. A passagem bíblica de
Deuteronômio 30,1-6 constitui um dos textos centrais para a compreensão da reunião de
Israel da dispersão, isto é, o fenômeno salvífico pelo qual Deus mesmo reconduziu do
exílio o seu povo. Esse retorno à terra prometida será chamado pelos profetas de “nova
aliança”. Mais do que uma simples reunião externa, a convocação do povo é a tarefa
ininterrupta da eliminação de tudo o que divide e causa discórdia no interior do povo.

A transformação de Israel em povo possui conteúdos muito mais antigos do que


o exílio. Isso se torna evidente sobretudo através da narrativa presente no livro dos
Juízes, quando se sugerem hipóteses do surgimento de Israel enquanto uma espécie de
união de tribos nas quais se destaca a fé em YHWH, um Deus que salva e guia aqueles
que lhe creem. Em suma, a declaração do caráter unificador de Israel, união que
claramente deu início ao povo de YHWH, transmite a ideia de que apesar da
diversidade dos grupos étnicos, com sua ação, sua intervenção e sua liderança o Senhor
criou um povo único no qual haveria irmãos e irmãos, uma “nova família”.

Embora o conceito teológico de reunião do povo de Israel tenha surgido


provavelmente apenas no período exílico, é bem mais anterior o conhecimento desse
processo de reunião como elemento fundante do povo que o fez tornar-se porção de
Deus. Daí a indispensabilidade do conceito reunião para a autocompreensão do antigo
Israel e, hoje, do novo Israel: a Igreja. Jesus quis reunir novamente o povo disperso.
Com a Páscoa de Cristo, o Israel em torno de si pôde chamar-se de ekklesia (assembleia
reunida).

A novidade dessa reunião é exatamente a de desenvolver uma sociedade livre,


igual e conciliada. Se o trabalho em prol da igualdade e da liberdade não acontece, o
serviço que o novo povo de Deus, a Igreja, presta ao mundo está, em parte, incompleto.

1
Resumo crítico – Disciplina de Eclesiologia, ministrada pelo Prof. Dr. Pe. Francisco Evaristo Marcos.
LOHFINK, Gerhard. Deus precisa da Igreja? Teologia do povo de Deus. SP: Loyola, 2008, pp.68- 211.
2
Aluno do Curso de Bacharelado em Teologia pela Faculdade Católica de Fortaleza (FCF), 2024.2.
Ora, somente na unidade as testemunhas de Jesus são capazes de vencer o lado ainda
obscuro do mundo.

Já nos primórdios a tradição bíblica aponta que nem os laços sanguíneos, nem os
laços do parentesco natural sustentaram a existência do povo de Deus. O novo protótipo
de sociedade fundamenta-se numa experiência comum e compartilhada que é a ação
libertadora de Deus para garantir ao povo um futuro. Assim, Israel é fruto da escolha
divina e da confiança do povo na promessa feita aos antepassados. Ele existe só e
somente em relação à livre escolha de Deus. Em último lugar estaria, portanto, a origem
da linhagem israelita na ideia de um automatismo sequencial das gerações.

Ainda sobre a origem do povo de Deus, tem-se que o êxodo é a experiência


fundante de Israel, diga-se o evento responsável pela fundação do povo de Deus. Na
ceia pascal, o passado dos libertos é trazido para o presente (cf. Dt 26, 5-10). Isso
porque num dado momento da história judaica, a experiência do êxodo alinhou-se à
festa da Páscoa.

Daí que o êxodo seja relembrado anualmente por todo o povo de Israel,
transformando-se em memória permanente para todas as gerações; protótipo no qual
está contida também a experiência de Israel com a falta de sua liberdade. Vivendo sob o
jugo do Faraó, eram obrigados a aceitar que toda a salvação viria do Estado, ou seja,
eram orientados à prática de uma religiosidade mediada não pelo contato com YHWH,
mas atravessada pela figura “divina” do Faraó.

Mesmo com o grupo de Moisés fugindo desse sistema, o êxodo reflete também
as experiências feitas por Israel no Egito e que se tornam crítica contra seu próprio
Estado, já que trai os antigos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade da aliança das
tribos, e arroga-se um poder quase que celeste. Por outro lado, a solução dada por Deus
é diferente: ele leva o povo para fora, para longe do Egito, a fim de conceder-lhe uma
nova terra e para além disso, para dar-lhe um novo projeto de sociedade.

É no êxodo que começa o amor verdadeiro de Israel por IHWH. Lá ele


compreende que somente abandonando seu próprio eu e saindo de si mesmo, é possível
à entrada numa nova terra. Justamente essa imagem da saída geográfica exerce até os
dias presentes um efeito inigualável na história do povo de Deus. Posto que ali, no
evento do êxodo, tem-se o ato concreto da saída de uma antiga sociedade para o Senhor
e para o próximo: a mais autêntica e visível revolta contra qualquer sistema dominante.
Liberta, a nova sociedade encontra sua máxima expressão na Torá. Nela estão
contidos os dez mandamentos, que não são meras exigências de cunho moral, mas ação
salvadora que garante a vida. No decálogo há, então, um nexo entre a ação salvadora de
YHWH no cumprimento dos mandamentos.

Dessa forma, na narrativa de libertação do povo de Deus os mandamentos da


Torá são partes integrantes. Eles querem mostrar o que significa servir a Deus com
exclusividade de corpo, mente e coração. É precisamente esse o ponto em que Israel
deve sempre distinguir-se das nações vizinhas: nas muitas experiências salvadoras,
YHWH mostrou-se o único que salva. Como YHWH é o único Senhor e Salvador,
devem servir só a Ele em todos os âmbitos da vida.

A Torá exige a subordinação do mundo interno e externo ao domínio de Deus.


Daí que ela se refira a toda a criação, pois a vida inteira e todo o mundo deve ser
perpassado e formado pela fé em YHWH, para que tudo ganhe sua dignidade e sua
identidade originária. Também o tempo exerce grande influência no ser humano, por
isso a Torá despende grande atenção ao calendário das festas e à organização do tempo
cronológico. Neste sentido, a instituição do sábado é uma das mais bonitas criações de
Israel. No descanso sabático, YHWH livra seu povo do risco de perder-se no mundo e
no trabalho.

Para Israel, a presença de YHWH está inseparavelmente ligada à Torá. Por meio
dos mandamentos, Ele se faz presente no meio do povo salvando-o e resgatando-o das
situações injustas. Na Torá Israel observa, aprende aquilo que deve realizar: ser, para a
honra de YHWHY no mundo, uma sociedade justa. Significa, em outras palavras, dar
forma à realidade terrestre, tornando-a uma comunidade de fé na qual floresce uma
mútua responsabilidade de uns pelos outros. Além do coração do homem, as suas
condições de vida e as estruturas sociais em que se acha mergulhado também precisam
ser santas (justas). Isso refletirá um Estado adequado à vontade de YHWH, sob seu total
domínio.

Nas “narrativas de murmuração” do Êxodo e de Números é contada de forma


clara a história da resistência de Israel. Resistência porque o povo eleito de Deus vivia
em conflito, teimosia e mesmo sublevação constantes com Ele. A raiz disso está na
atitude do povo em não enxergar em sua história uma condução feita por Deus em
destino à salvação. É o pecado basilar do povo de YHWY em toda sua existência:
desconfiança e falta de fé nas promessas de Deus. Todavia, infidelidade e revolta
existem na medida em que o povo se deparou com o Deus verdadeiro e sua vontade. É
difícil ao homem abrir-se para uma vontade diferente e mesmo contrária, nisso
compreende-se a constante relutância de Israel. Porém, o plano de YHWH para Israel é
que eles sejam não um povo religioso, mas de fé.

Ao mesmo tempo, a história de rebeldia de Israel é uma narração da descoberta


da verdade: Deus só quer a salvação do mundo. Apesar de reagir com ira às
murmurações, decidindo mesmo destruir esse povo, Ele desiste da sua fúria. A ira de
YHWH converte-se em amor e em misericórdia, de condenação em salvação. Em todo o
Antigo Testamento, encontram-se textos nos quais Deus responde à infidelidade e à
rebeldia do povo eleito com fidelidade. Mas isso exigiu que ele encontrasse em Israel
pessoas que correspondessem também com fidelidade às suas exigências.

O fio de meada da história da salvação aparece como o projeto de fidelidade por


parte de Deus e a disponibilidade dos que creem na promessa. Nessas circunstâncias, os
profetas atestam que Deus chama para ser seus colaboradores homens excluídos,
desqualificados e também figuras importantes ao templo e à corte real. No fim, a
mensagem central reside no fato de que Israel é formada pela condução de Deus
mesmo, cujo peso da fidelidade sobrepõe-se à infidelidade do povo. Ele permanece,
sempre, no meio dos seus eleitos.

Quando se procura por uma forma à tal sociedade que convém a YHWH, surgem
alguns traços auto definidores e que terminam por ajudar no questionamento sobre suas
características indispensáveis. Pergunta deveras importante, pois a ordem social querida
por Deus está inserida na concretude da história para tornar visível como deve ser o
mundo segundo a vontade de Deus. Daí que a fé ganhe uma dimensão marcadamente
social, no sentido de ser-para-o-mundo.

Primeiro traço: o povo de Deus como uma sociedade de tribos. Nos primórdios,
Israel organizava-se em uma sociedade de tribos totalmente diversa da estrutura estatal.
Na verdade, mais parecia um modelo oposto à organização monárquica das
cidades-estados cananéias. Os israelitas não queriam viver à semelhança do povo de
Canaã ou dos egípcios. Colocando-se sem temor a serviço de YHWH, em constante e
mútua solidariedade uns para com os outros, tem origem o povo de Deus. Suas marcas
principais são, então, a voluntariedade e a igualdade.
Segundo traço: o povo de Deus como Estado. Com Davi, Israel inaugura a
experiência de um estado próprio. Independente das tribos, Davi cria uma base de
poder, uma tropa, um sistema tributário e um aparato capazes de fazer emergir um
governo central fincado na realeza sagrada. Apesar das muitas condições de injustiça
geradas quando do período dos Reis, a fase em que o povo de Deus viveu sob a forma
de Estado gestou a esperança na chegada de um descendente de Davi que fundará uma
sociedade inteira e verdadeiramente justa.

Terceiro traço: o povo de Deus como comunidade do templo. Dominados por


impérios estrangeiros, Israel encontra sua forma de existir. Termina por tornar-se uma
minoria que vive socialmente dentro de um Estado (opressor) maior. Agora como
“subsociedade”, um dos símbolos ou uma das estruturas mais marcantes é o Templo.
Depois da volta do exílio, o Templo é a máxima expressão de uma sociedade cuja
realidade se coloca sob o domínio de Deus. Entretanto, para que depois do exílio o povo
uma outra vez fosse coeso, outra figura ocupará o lugar de importância do Templo, é a
Torá. Ela transformou-se no texto sagrado que deu para Israel forma e identidade. Fazer
a vontade de YHWH implica estudar a Torá e viver segundo suas determinações.

Quarto traço, o definitivo: O povo de Deus na união das sinagogas. Os eleitos


por YHWH aparecem como uma reunião de pequenas comunidades em torno das
sinagogas. Elas são uma das mais geniais de Israel, pois os judeus da diáspora
raramente conseguiam realizar uma viagem e uma visita ao templo de Jerusalém. Dessa
forma, a leitura e o estudo da Torá nas sinagogas se tornaram a segunda pátria dos
judeus. Entretanto, isso não fez com que fosse esquecida a ligação à terra de Israel e
consideração de Jerusalém sua capital-mãe. E a sinagoga é mais do que uma casa de
orações, nela se conserva também o arquivo da comunidade. Não eram isoladas entre si
as sinagogas, antes praticavam constante intercâmbio entre as diversas comunidades
sinagogais. Trata-se, dessa maneira, de uma forma nova de vida do povo de Deus.

A união das sinagogas representa por si uma parcela grande da esfera pública,
constituindo-se uma entidade social e política. Mesmo agradecendo a existência do
Estado e rezando pelos governantes, a união das sinagogas não mais forma um Estado.
É importante salientar que esse princípio de união das comunidades estabelecido por
Israel passará a ser o princípio através do qual se formará a Igreja primitiva. Nela se
manifestará em plenitude o que virá a ser o povo de Deus, uma verdadeira pátria cuja
salvação é o fermento para a transformação da sociedade humana.

Você também pode gostar