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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Instituto de Filosofia e Teologia Dom João Resende Costa


Departamento de Teologia
Disciplina: Teologia Sistemática I – Antropologia Teológica
Atividade: Fichamento do Texto “Teologia da Criação”
Discente: Thiago Augusto da Costa Silva Lopes

DE LA PEÑA, Juan Ruiz. A criação no Antigo Testamento / Cristo e a criação: o Novo Testamento. In:
Teologia da Criação. Loyola, 1989. p.13-75.

A fé na criação enquanto manifestação e ação divina conta como base fundante os textos dos
primeiros capítulos do livro do Gênesis. Todavia, tais narrativas levantam questões problemáticas
13 quanto à sua interpretação. Devemos interpretá-los literalmente? Será que as narrativas da criação são
relatos factuais, ou antes, a história da experiência de fé de uma comunidade? Estes textos devem ter
um valor de cientificidade ou simplesmente literário?
A ciência, principalmente depois da revolução copernicana e das teorias darwinistas, entendeu que os
relatos bíblicos tinham a pretensão de postular verdades acerca da criação. Teorias empíricas foram
desenvolvidas e o resultado estabeleceu um contraste entre os dados bíblicos e os científicos.

O fato é que os dados da revelação acerca da criação não devem ser tomados como uma narrativa
factual ou uma descrição literal do ato criador, “mas sim uma reflexão religiosa, que é por si
independente do revestimento literário concretamente adotado, por sob o qual existe alguma coisa
14 digna de ser ouvida e acreditada”. É necessário descobrir o contexto, a cultura, a linguagem e as reais
intensões do autor sagrado ao relatar essa ação de forma tão fantástica, parecendo, em algumas vezes,
E
como uma rapsódia sem nexo. Em suma, o principal papel de uma teologia bíblica é descobrir “a
15 perspectiva segundo a qual os autores sagrados contemplam a questão”.
O que era realmente importante para os autores daquela época é a arte de bem contar histórias,
seguindo estilos literários que favorecessem não a fidelidade ao fato, mas a memorização da
experiência de fé. A simbologia destes textos tem, portanto, o intuito de manter viva a fé de um povo
que crê na ação de Deus. Em suma, os textos bíblicos não podem ser diretamente abordados sem um
anteparo contextual. Assim sendo, cabe a análise dos antecedentes da fé bíblica nas “primeiras
formulações explícitas nos profetas do Exílio”.
Esses antecedentes nos fazem compreender que a Fé na criação está intimamente ligada à Fé em
Deus, de maneira que, ao narrar a origem do cosmos, Israel também explicita o modo como
compreende e interpreta Deus, ou seja, quando se fala da criação, fala-se de Deus.

Essa fala sobre Deus, porem, não se encontra diluída em meio ao ato criador narrado, mas na história
do povo. Portanto, muito mais do que em um Deus que cria, Israel deposita sua confiança em um
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Deus que age em sua história, cuidando, zelando, guiando e salvando seu povo das ciladas da
miséria, da escravidão e do abandono. A crença do povo está ancorada na certeza de que,
diferentemente de outros deuses, Adonai era um Deus que intervinha na natureza em auxilio de seu
povo eleito e amado, a fim de salvá-lo e protege-lo. Por isso ele interfere na natureza, manipula os
fenômenos, auxilia Israel em suas batalhas e o faz resistir às intempéries factuais: seu poder ilimitado
é para proteger e amar Israel.
16 Os relatos dispostos sob estilos literários diversos acompanha a estrutura de construção textual da
prosa e da poesia. No entanto, cada construção denota uma abordagem característica do poder de
Deus: a poesia, no relato do gênesis, pretende focar nas manifestações naturais e fantásticas de Deus
por meio da natureza e de seus fenômenos. A natureza é subserviente a Deus; e este a utiliza para
intervir na história de seu povo e assim salvá-lo. Já a prosa mostra um Deus que auxilia nas vitórias e
conquistas do povo não pela natureza, mas pela intervenção divina. Deus salva e nada pode resistir ao

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seu poder. Portanto, em uma coisa os dois estilos textuais se coincidem: ambos falam do poder de
Deus.
O fato de YHWH ser um deus celeste se relaciona com o fato de que do céu, sua morada, ele é capaz
de interferir na história, na materialidade. Isso significa que seu poder não está submetido a uma
condição temporal ou espacial. Seu poder é tão ”fundamental, incondicionado e inexpugnável que, a
17 rigor, não necessita de exibições espetaculares para se manifestar [...]”. Ele não se identifica com os
fenômenos da natureza, pois está além. Sua preocupação é a de salvar a humanidade e não a de se
manifestar de forma fantástica e miraculosa. Ele se revela de diferentes formas, desde as mais
violentas e misteriosas às mais solidas e conhecidas.
Isso nos faz compreender que o ato criador é anterior ao da salvação não simplesmente por uma
questão lógica, mas, antes, pelo fato de que Deus é poderoso não para mostrar sua onipotência, mas
18 para provar a sua bondade. Deus criou o mundo e desde sempre quis estabelecer uma aliança com a
obra criada. Portanto, a ideia de aliança é preeminente à de criação, uma vez que essa é capaz de
dizer mais sobre a bondade e o amor de Deus do que esta.
Jeremias seria o primeiro profeta a falar do tema da criação. Neste período, Israel sofria as dores do
exílio. O povo, sem esperança, angustiado e subalterno, começou a duvidar do poder e até mesmo da
existência de Deus. O profeta, então, não mede esforços para proclamar uma palavra de conforto,
alento e consolação diante das mazelas do sofrimento e da dor provocados pelas intempéries da vida
19 no deserto. O profeta ensina o povo a ter confiança no Deus poderoso, forte e santo. Assim, a
proclamação da fé no Deus da aliança nasce em resposta às dificuldades enfrentadas pelo povo. O
relato da criação é o esboço de “um contraponto da recriação de Israel”. No fundo, a ideia central é a
de que o Deus que tem poder de criar os céus e a terra também é capaz de salvar o seu povo amado.
Por isso, ele se revela na história e no tempo.
A teologia profética se desenvolve sob os seguintes pontos:
1. Deus é o único capaz de determinar o fim de tudo porque ele é o autor de tudo. Isso significa
que nem os poderosos e nem as intempéries do deserto têm o poder de destruir o povo.
2. É nesse poder que o profeta se baseia para propagar sua mensagem de consolação e
esperança.
3. A potestade criadora de Deus serve, também, para elaborar argumentos para contestar a
idolatria.
4. Para denotar a ação criadora exclusiva de Deus, o profeta usa o verbo hebraico “bará”. Isso
20 significa que a criação é um atributo exclusivo de Deus. Ele cria do nada e não forma ou
modela de algo preexistente, segundo a literatura bíblica. ”Essa ação é incomparável, não
homologável a nenhuma outra, especificamente divina [...]”.
5. Em alguns pontos da literatura bíblica, o ato criador está associado à Palavra de Deus. Isso
denota, portanto, que da mesma maneira que a partir da fala de Deus todas as coisas foram
feitas, assim também ele chama a Israel para a aliança, para fazer dele o seu povo, a nova
criação. O ato criador, portanto, é o inicio da relação entre o povo e o seu Deus salvador. A
criação não está a mercê do acaso, mas submete-se a ação de uma Deus “pessoal, dialogal,
que pensa, quer e chama as criaturas”.
Em síntese: durante muito tempo, o homem bíblico não se ateve a um artigo dogmático da fé que
visava fundamentar a crença em um Deus criador do céu e da terra. Isso já estava implícito na vida e
na fé do povo israelita. O fato é que esse símbolo de fé precisou ser explicitado diante de uma crise:
21 as dificuldades enfrentadas pelo povo durante o exílio foram um atentado contra a fé, fazendo com
que varias pessoas se questionassem acerca do poder de Deus. É, então, que vem o profeta com sua
mensagem de consolação, afirmando que o Deus criador do céu e da terra é o mesmo capaz de salvar
o povo da humilhação e escravidão, pois sua bondade e seu amor são fieis aos seus amados.
23 A confrontação com as mitologias cosmogônicas pagãs fez com que, na redação do relato da criação,
o autor sagrado fizesse uso de um mito preexistente pertinente. A partir dessa história, a redação de
E um relato sobre a criação ganha um viés ontológico a partir do momento em que se introduz a
vocação de Abraão. Isso significa que, a fonte sacerdotal tem como primazia a junção dos diferentes
24 acontecimentos criacionais com a geração do povo de Israel. Dessa forma, o ato criador de Deus não

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estaria vinculado apenas à intenção de criar o cosmo e a natureza, mas, principalmente, de constatar
que a aliança com o povo de Israel já estava nos desígnios de Deus desde antes da criação e de sua
intervenção na história. As fórmulas de toledot mostram que o surgimento das gerações do povo
eleito está atrelado ao ato criador. Portanto, as histórias bíblicas da criação não se limitam apenas em
narrar o feito criador e a aliança com seu povo como extensão do ato criador, mas, sobretudo, visa
falar do Deus criador e de Israel enquanto povo eleito, que carrega consigo a crença no Deus todo
poderoso, pontífice da criação e das gerações da aliança.
As narrativas do livro do Gênesis, do ponto de vista da exegese contemporânea, são compostas sobre
o solo mítico, de pouca relevância teológica, e as interpretações proféticas, de grande significado
religioso. Essa dupla interpretação da realidade e construção simbólica causa danos na compreensão
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da mensagem de Deus. Tais irregularidades estão pautadas nas repetições e duplicatas de textos e
expressões, “defasagem entre o número de horas e o número de dias” e contradições aparentes e
implícitas.
As tentativas de harmonização entre cultura, religiosidade e fatos históricos fizeram com que os
textos do Gênesis ficassem um tanto quanto míticos e poéticos, mais especificamente os versículos 1
e 2 do primeiro capítulo. Contudo, podemos perceber que a tradição sacerdotal teria se baseado na
26 cosmogonia das respectivas conjecturas históricas para relatar não uma ação de Deus, mas uma
especulação de como teria sido a criação à luz do conhecimento até então portado pela cultura semita.
Ou seja, o autor sagrado redigira os textos segundo o contexto cultural da época, que era o conhecido,
o existente.
Na narrativa do primeiro capitulo do Gênese é uma tentativa mítica de explicação da criação por
meio da ação de Deus: do caos, após sucessivos processos e movimentos cosmogônicos, ele cria o
cosmos. A criação é tida como uma ordenação de algo preexistente e caótico. Portanto, podemos
compreender que a cultura semítica não possui a ideia de uma criação ex nihilo.
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Para a tradição sacerdotal, os pressupostos biológicos e os dados cosmogônicos são pouco relevantes.
O que interessa é constatar que Deus, o mesmo da aliança, aquele que escolheu Israel para designar-
lhe a missão de levar ao mundo a palavra do Deus de Abraão, relaciona-se intimamente com a
criação, com a natureza e tudo aquilo que a compõe.
Toda a cosmogonia da tradição sacerdotal está emoldurada nos primeiros versículos do livro do
28 Gênesis. Tal ideia pode ser sistematizada da seguinte forma:
a) O verbo “criar” é atribuído, exclusivamente, a Deus, pois somente ele tem o poder de fazer
E algo a partir do caos.
b) Deus, em sua liberdade, criou tudo o que existe de forma divina.
29 c) Deus criou tudo “no princípio”, ou seja, antes de todos os tempos. Mas, redigir o texto, o
autor situa a criação em um momento temporal, simbolizando que o tempo da graça nasce
juntamente com o ato criador.
Esses versículos dão a base necessária para a interpretação e captação da mensagem teológica de todo
o texto seguinte. Essa nova modalidade hermenêutica pode ser demonstrada conforme o esquema
abaixo:

a) O “nada” é entendido como algo fora do tempo e do espaço, uma vez que a existência
depende, necessariamente, destes dois fatores, que são preliminares. O que existe é o inerte, o
vazio, o disforme, o caos. A harmonização vem com a especificação, ou seja, com a limitação
30 de algo criado enquanto fruto do caos, transformado em ser graças à força criadora de Deus.
Todavia, se analisarmos bem os dois primeiros versículos, veremos que há uma contradição,
ou seja, não há um nexo entre “tudo foi criado por Deus” e a preexistência do caos. Porém, o
autor sagrado transmite uma mensagem, desapegada da letra e da veracidade factual, para
dizer que tudo foi criado por Deus e que antes da criação não existia a ordem, a harmonia.
Sem a ação criadora, o universo seria o caos.
b) O surgimento da luz é em decorrência da palavra dirigida por Deus. Logo, a força da palavra
é capaz de criar a luz e não separá-la das trevas.

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Deus cria todas as coisas pela força da palavra, sem esforço, e com absoluta liberdade. É uma
ação transcendental que confere o ser às coisas sem o auxilio de movimentos exteriores aos
31 da ação criadora, pois ele é onipotente. Essa força mostra o caráter dialogal da relação
criatura-criador. Dessa forma, torna-se evidente a ideia de que a criação é a revelação de
E
Deus, que se dá por meio de obras e palavras.
32 c) As criaturas são resultado da intensão do criador. Como em Deus não existe o mal, logo, este
não é fruto de Deus, mas sim da própria liberdade do homem, pois “nada sai defeituoso das
mãos divinas”. Tanto que ele “viu que tudo era bom”.
d) Ao criar todas as coisas, Deus só confere nome a algumas delas (céu, terra, mar, sol, lua, luz e
trevas). Para a cultura hebraica, o nome é a coisa designada. Portanto, dar o nome significa
criar inclusive o que os desdobramentos das coisas designadas servem como suporte e
condição de existência (ao nomear a terra, isso significa que Deus também é o responsável
33 pela criação de tudo aquilo que nela habita).
e) Os dias são enumerações que não tem a intenção de marcar o tempo de predominância do dia
e da noite, mas sim para demarcar a semana. Portanto, a condição temporal, para a cultura
hebraica da época, independe da contagem dos dias e das noites. Mas serve para demarcar o
tempo de duração de uma semana.
A intenção do autor sagrada na redação das narrativas da criação é transmitir a ideia de que a ação
34 criadora está respaldada na organização do caos, ou seja, a força criadora está na ação de separar a
luz das trevas, o cosmos do caos. Depois da ação de Deus, o universo não permanece o mesmo.
A ação criadora encontra seu ápice no ser humano, o coroamento da criação. Todavia, isso não lhe
confere uma posição privilegiada em relação aos outros seres criados. É atribuído a ele um estatuto
ontológico de simples criatura. O diferencial entre o ser humano e as demais criaturas está no fato de
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que, ao criar, Deus faz do homem um co-criador, ou seja, designa-lhe a missão de zelar, cuidar da
criação. Deus concede suas bênçãos a toda criatura, para que se multipliquem e perpetuem a vida no
planeta. Ao homem, Deus dá a graça de ter sido criado à sua imagem.
Contudo, entre imagem e Deus existe uma diferença incomensurável. Quase como deus, Deus criou o
homem. Mas a transcendência divina é singular e infinitamente superior. Por mais que sejamos
chamados a sermos semelhança de Deus, segundo a sua imagem, ainda assim seremos criaturas.
No que tange a compreensão do sétimo dia, sábado; em nenhum momento podemos entendê-lo como
36 sendo o dia em que Deus abriu mão de ser o cuidador da criação, designando essa tarefa ao homem.
Mas deve ser entendido como o dia em que Deus deu à criação o direito de continuar a obra criadora
aos moldes de sua liberdade. Ou seja, o sábado representa o dia em que Deus vê sua criação com
profunda benevolência e decide confiar os seus cuidados à própria liberdade de cada ser,
especificamente ao homem. O mundo fica aberto para evoluir, modificar e se criar cada vez mais.
37 Podemos sintetizar as reflexões teológicas até então desenvolvidas da seguinte forma:
a) “A identidade entre o Deus Salvador de Israel (o Deus da aliança) e o Deus criador do
E universo dá origem a uma perfeita síntese Deus-homem-cosmo”.
b) O relato enfatiza a ação de um único Deus, onipotente, do qual procede todas as coisas que
38 compõem o universo. A ação criadora se dá por intermédio da palavra.
38 c) A fé na criação liberta o homem para a crença na ação de um único Deus e na sua
responsabilidade enquanto co-criador do cosmos, resgatando a esperança e criando a
E mentalidade da fidelidade à aliança como condição da extirpação do sofrimento da
escravidão.
39 d) O relato da criação está demasiado resumido e pautado nas cosmovisões da época.
e) A ideia de uma criação ex nihilo não é genuinamente bíblica, mas sim metafisica. A ideia de
criação segundo a mentalidade hebraica está baseada numa reestruturação e organização do
cosmos, pressupondo, assim, a preexistência do caos.
f) A temporalidade tem o papel de situar a criação no evento da história humana e para romper
com correntes religiosas que defendem a reminiscência do tempo. O tempo deve, a partir
desse relato, ser valorizado como espaço sob o qual Deus realizou a sua obra; e não como
algo que pode ser quebrado com a ideia de um retorno ao passado. É na temporalidade que

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Deus se faz homem e promove a união entre o humano e o divino.
No que diz respeito ao Antigo Testamento, a única cosmogonia contida na bíblia, Gn 1, não tem o
objetivo de narrar a origem do mundo, mas sim a origem do mal. Contudo, as narrativas dos capítulos
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2 e 3 não deixam de conter elementos cosmogônicos e antropomórficos que enaltecem a organização
do cosmos.
Nos salmos, por exemplo, a ideia de criação é muito frequente. O autor sagrado, diante dessa ideia,
deixava-se imbuir por um espirito de ação de graças que o inspirava a redigir tais poemas. Além
disso, sentimentos e posturas como a admiração e a confiança o impulsionava a produzir textos de
adoração e de louvação que compunham o itinerário piedoso frente a ideia de criação cultivada pelo
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povo israelita.
Os salmos também trabalham com os temas referentes à salvação, ao amor de Deus, à atuação de
Deus na história humana e na natureza e, principalmente, com a universalização da criação. “Toda a
criação é vista pelo salmista como um instrumento cósmico onde ressoa a glória de Deus [...]”.
A literatura sapiencial implantará um novo modo de interpretar a criação. A partir daquela, esta não
mais será vista do ponto de vista soteriológico, mas sim como fonte contemplativa dos “atributos de
Deus”, que se manifestam nos elementos constitutivos dos seres criados e na consciência ética dos
seres humanos. A criação não mais será vista como uma explicação para a origem do cosmos, mas
43 sim uma preliminar para o desenvolvimento de uma teodiceia fundamental para a constituição da
moral. O que interessa não é mais o traçar as linhas da historicidade do povo de Israel, mas
“esclarecer o mistério do mundo e a condição humana”.
A preocupação, agora, passa a girar em torno da “problemática da inteligibilidade do real, do bom
uso da criação e da questão do sentido da vida humana”.
Com profunda sabedoria, Deus criou a terra. Isso nos leva a compreender que a sabedoria de Deus
precede o ato criador.
A sua incomensurável sapiência nos impõe a obrigação de respeitarmo-nos mutuamente. Contudo, o
pano de fundo desta obrigação moral é a igualdade na criação, ou seja, “é uma ilustração para mostrar
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a igualdade essencial vigente entre os homens, seja qual for o status social”.
Essa literatura transmite, também, a ideia de que tudo o que acontece no cosmos e com relação ao ser
humano é dotado de sentido, inclusive o sofrimento. Todavia, isso, a princípio, é incompreensível,
pois Deus está muito além da compreensão humana.
A nossa condição de criaturas nos impede de entendermos os mistérios de Deus. O melhor caminho é
“reconciliar-se com a majestosa grandeza da criação e dar ouvidos à sabedoria que vem de Deus, que
45 interpela o homem, intimida-o a converter-se e a reconhecer seus limites [...]”.
Em suma, a contemplação da criação conduz-nos à contemplação de Deus, sob o qual repousa o
mistério do mundo.
Portanto, compete ao homem apenas a compreensão de que é dependente da ação de alguém maior,
suficientemente bondoso e justo; e que merece confiança ilimitada. Todavia, o homem tem que estar
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disposto a receber tudo de Deus, inclusive os males, na esperança de, a partir deles, encontrar sentido
para a vida.
47 A sabedoria bíblica, a salvação do Egito e a criação estão em função de uma única coisa: a aliança.
Com toda essa análise textual dos relatos bíblicos surge uma questão crucial: existe mito na bíblia, ou
melhor, a narrativa do Gênesis é um mito?
Para responder essa pergunta, devemos entender o que é um mito. Este é caracterizado por ser uma
tentativa de explicação da realidade. Sua explicação não rege a tentativa de se compreender os
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acontecimentos do passado, mas para interpretar o presente. “O homem se pergunta sobre o sentido
das coisas”. Para responder ele recorre a construções hipotéticas e fantasiosas, que são, hoje,
explicações sem fundamento verificável; mas no passado era o recurso e o modo com o qual o povo
utilizava para relatar e explicar a sua historicidade.
52 Após contemplarmos um pouco da visão de criação que nos é fornecida a partir da perspectiva
cosmogônica do Antigo Testamento, chegou a hora de conhecermos a noção de criação construída a
partir de Jesus Cristo, ou seja, no Novo Testamento.
“Toda a história é compreendida como unidade e recapitulada desde seu começo até o final nesse

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acontecimento transcendental”.
Em Jesus Cristo a criação é consumada e a revelação encontra a sua plenitude. Ele é a última palavra
pronunciada por Deus e a certeza de que este sempre esteve presente na história humana.
Da mesma forma que a fé de Israel nasceu da reflexão de um Deus criador e salvador, o evento Jesus
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Cristo adquire uma dimensão cósmico-criadora.
A ideia de criação no Antigo Testamento pode ser entendida tanto quanto do lado absoluto (ex
nihilo), quanto no sentido de organização do cosmos e início da vida dos seres criados.
Encontramos duas palavras gregas que denotam criação: “ktisis” e “katabolé”. Esse significa
“criação no sentido ativo”, ou seja, a força da palavra criadora é capaz de gerar o cosmos do nada.
Esta, por sua vez, dá a ideia de construção das bases, isto é, a predisposição necessária para a vida ser
gerada, similar à concepção hebraica de organização do cosmos. A partir desse último esboço, Deus
54 seria como um grande arquiteto que assenta os fundamentos para a obra ser construída.
Isso enfatiza o fato de o mundo ser criado por obra de Deus. Todavia, em Jesus, a concepção de que
“tudo o que Deus fez é bom” foi resgatada. Portanto, aquilo que outrora havia sido subtraído da
mentalidade israelita por legalismos e tabus moralistas, Jesus transfigura os valores humanos,
devolvendo aos filhos de Deus a dignidade de seres criados.
Isso não nega a existência do mal, mas recusa a ideia de que existe alguma criatura má ou recusada
pela vontade divina.
A ideia de criação, em Jesus, ganha o significado de instauração do Reino de Deus. Isso está
presente, principalmente, nas narrativas dos milagres em dia de sábado. Essa postura de Jesus denota
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a sua intensão em mostrar que o descanso sabático é a salvação, ou seja, é um dia que contém um
destino salvífico para toda a criação. As curas de Jesus significam a recriação, a nova vida que só
Deus é capaz de dar. Portanto, as curas em dia de sábado nada mais são do que exposições da real
identidade de Jesus Cristo: O Deus salvador e criador.
Em São Paulo, a criação é reafirmada como sendo advinda de Deus, por meio da palavra. O mesmo
Deus que outrora falou e todas as coisas foram feitas, agora, em Jesus Cristo, também por meio da
56 palavra, promete-nos a ressureição. A mesma luz que separou o cosmos da escuridão, hoje, ilumina o
coração humano com a nova e definitiva luz chamada Jesus Cristo. O ato criador, portanto, é a
presença operante da salvação. Ela é possível porque é anunciada pelo próprio Deus.
“O imanentismo panteísta está tão longe da mente do apóstolo como o pensamento de um
transcendentalismo divino que faça divino que faça de Deus um ente absolutamente estranho ao
57 mundo e, portanto, rigorosamente incógnito e inacessível”. Todavia, ele deixa vestígios do divino em
meio a natureza, a fim de aproximar o homem do sagrado. Mas esses vestígios da ação divina foram
corrompidos pelo mal e pelo pecado.
“Cristo aparece ao lado do Pai no papel de criador”. As preposições gregas “ek”, “dià” e “eis”,
remontam à ideia de um único agente, isto é, Deus. Elas transmitem a seguinte compreensão:
a) Ek: dirige-se ao Pai, causa primeira de tudo.
b) Dià: dirige-se ao Pai, causa mediadora de tudo.
58 c) Eis: dirige-se ao Pai, causa final de tudo.
Todavia, essas preposições também transmitem a causalidade do cosmos em dois planos diversos,
mas que se identificam: o Pai e o Filho. O Pai é a causalidade primeira, o Filho é o mediador da
criação e, por conseguinte, da salvação, pois o princípio criador não pode se divergir do da salvação.
A mediação de Jesus religa a humanidade a Deus.
De O hino cristológico da carta de São Paulo aos colossenses (Cl 1, 15-20), mantém a discussão acerca
da divindade e da humanidade de Jesus. Além disso, o texto retrata com mais intensidade o tema da
criação enquanto salvação e identifica Cristo com o Pai, mostrando que o Deus Salvador é o criador.
60 Ele trabalha com as ideias do Cristo salvador, redentor e criador, da sabedoria divina simbolizada
pela imagem de Deus, do Cristo enquanto imagem do Pai e primogênito de toda a criação. No hino,
A São Paulo se dedica para mostrar que Cristo presidia o desígnio criador antes mesmo de sua
execução, pois havia uma previsão de sua encarnação. Tal previsão nos permite concluir que a
66 sabedoria divina está ancorada na história humana por meio da encarnação. Portanto, em Cristo,
assim como no Pai, todas as coisas foram criadas, pois não há como separar o Pai de sua palavra

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criadora, que se revela na forma humana, a fim de livrar o homem da escravidão do pecado e da
morte.
Cristo é a fonte, a foz e o sustentáculo de toda a criação e salvação. “É o fundamento contínuo da
permanência de tudo no ser; é ele quem outorga unidade, harmonia e coesão à realidade”.
Em cristo repousa a plenitude da revelação. Esta comunicação de Deus sob a forma humana serviu
para a plenificação das criaturas e para a divinização e dignificação do humano. Em suma, Jesus é a
mediação de toda a causa da divinização da criação, seja no Antigo ou no Novo testamento. A partir
dele, o mal foi banido da essência da humanidade, portanto, não há lugar para a hostilidade,
tampouco para a escravidão. Cristo venceu todas as fragilidades humanas para estreitar os laços da
aliança entre Deus e a humanidade.
De modo semelhante a Paulo e ao Antigo Testamento, João atribui ao Logos cristão o papel
revelador, criador e salvador. Ele retoma o livro do Gênesis para mostrar a criação por meio da
67 palavra (Logos). Ao afirmar a eternidade do Logos, João afirma que no pensamento de Deus, eterna
é, também, a criação. Ou seja, o que preexiste não é simplesmente uma matéria desforme, mas o
E eterno desejo de Deus em criar; desejo este que se concretizou em um momento pontual e temporal.
A mediação de Jesus serve para mostrar para o homem as diversas possibilidades de regresso aos
68 planos divinos de Deus por meio da reconciliação e da missão. No ato criador, “o pensamento sai da
eternidade de Deus para voltar a Deus passando pelo mundo [...]”. Jesus é esse Logos de Deus que se
manifesta na história e é “tão divino quanto o Deus junto ao qual existe desde toda a eternidade”.
Jesus configura o agente criador, pois, na mentalidade do Novo Testamento, ele é o Logos
69 encarnado, canal irradiador e mediador da Graça e da Verdade sobre a criação, sendo causa de sua
transfiguração em salvação.
Nessa linha, o prologo de João dimensiona a criação para o âmbito da funcionalidade para o ser
humano. Portanto, Deus criou o mundo em razão do ser humano, pois o ama acima de tudo e por isso
o quer salvar. Não obstante, o ser humano não é o único que recebe as graças do ato criador, pois
70 “além da existência, toda a criação recebe a permanência no ser, a vitalidade e a coerência da
vitalidade inesgotável do Logos”.
Dessa forma, Cristo configura o papel de criador e salvador da humanidade, pois é a plenitude da
revelação e o agente veiculador da nova vida, da nova criação, para o ser humano.

APRECIAÇÃO FINAL

A análise dos relatos da criação e de textos do Novo Testamento, que retomam essa temática, proposta
pelo teólogo espanhol Juan Ruiz De La Peña, visa traçar um itinerário bíblico da fé na criação
desvinculada de pretensões contemporâneas em querer desenvolver uma teoria cosmogônica cientifica da
origem do universo a partir de dados convergentes e coincidentes entre relatos bíblicos e especulações
científicas. A fé na doutrina bíblica da criação impõe aos indivíduos uma imagem mítica da origem do
cosmos. Todavia, é preciso compreender que o discurso bíblico veicula a ideia da criação enquanto ação
salvífica da humanidade e não a descrição de uma ação cosmogônica e ontológica. Enquanto o Antigo
Testamento trabalha com a noção de criação enquanto organização do caos e geração do cosmos a partir
de uma matéria disforme, conforme a mentalidade semítica, o Novo Testamento opera com uma
concepção puramente cristológica, Colocando Jesus no centro da criação, enquanto princípio, meio e fim
de todas as coisas. Isso é enaltecido por João e, posteriormente, por Paulo, que estão convictos de que a
ação de Cristo na criação não obedece a uma predisposição temporal, mas, sobretudo, a um desejo em
querer fazer progredir a humanidade, em graça e em verdade, criando possibilidades de favorecer a vitória
da vida eterna sobre a morte e do bem sobre o mal. Neste sentido, a criação é a justificação de Deus na
história humana frente a ameaça de vitória do pecado e da morte. O fato é que, o mal passa a ser mais
evidente na vida do homem do que o bem. Todavia, o mal e o pecado nãos chegam a sucumbir o bem.
“Para a fé na criação, o mal não pode ser o núcleo central do real, nem pode distorcer a visão do mundo a
ponto de relegar o bem a uma posição periférica” (p. 72). Por meio da vinda e da vida de Cristo, a criação
foi mergulhada não numa ordem cosmológica, como no passado, na organização do cosmos, mas em uma
ordem de graça e verdade, pois, sendo a plenitude da revelação, Jesus faz com que o homem contemple de

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perto a face amorosa e salvífica do Pai, permitindo com que ele se enxergasse não como um subproduto do
pecado, mas enquanto filho de Deus.
Em Jesus, o humano e o divino dão-se as mãos, a natureza se diviniza e a humanidade se dignifica pela
salvação. A salvação e a criação, neste ponto, adquirem um grau de similitude, pois se trata do resgate da
dignidade e da divindade originais que foram perdidas pela compreensão de que o ser humano é o errado
que faz. Uma vez que “Deus viu que tudo era bom”, portanto, era necessário fazer reerguer a esperança do
bem que fora realizada por Deus ao término da Criação e consumada por Jesus na redenção.
Isso gera uma necessidade de adequação ética dos costumes humanos, de maneira a fazê-los condizer com
a nova realidade transcendida por Jesus, que transformou a criação em Reino de Deus. Os seres humanos
devem ser motiva dos pela esperança de que Jesus incluiu, novamente, Deus no mundo e que, portanto,
não podem agir ou pensar que existem duas realidades diferentes, humana e divina. Na verdade, nosso
comportamento e nosso pensar devem ser condizentes com a nova realidade, a de Reino de Deus, pois “o
mundo não tem uma revelação própria e independente da revelação de Deus em Cristo”. Não podemos
deixar que o mal se instaure na esperança de consolação na vida eterna. Esta tem início no agora. E para
um ser que deve buscar constantemente a progressão, nada melhor do que se espelhar e confiar nos
exemplos e na presença de Jesus ressuscitado, sustentáculo da criação e fundamento seguro e sólido da fé,
capaz de dar à vida do homem o sentido pleno que o transforma e realiza.

Observação: Na apreciação final estão contidos elementos presentes nas páginas 70 a 75, pois foram
julgadas por mim como sendo uma síntese de todo o texto. Portanto, optei por inclui-las enquanto
complemento da apreciação final e não como parte da fichamento.

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