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Universidade Federal do Rio Grande - FURG

22ª Mostra da Produção Universitária – MPU


Rio Grande/RS, Brasil, 25 a 27 de outubro de 2023
ISSN: 2317-4420

“RAYA Y PUNTO, PUNTO Y RAYA”: DELINEAMENTOS INICIAIS SOBRE A


PRÁTICA CULTURAL DA VAQUEANIA (REGIÃO PLATINA, SÉCULOS XVIII E
XIX)

MATOS, Fabio Alberto de.


SOSA, Derocina Alves Campos.

fabio-66-@furg.br
Universidade Federal do Rio Grande – FURG

Palavras-chave: História Cultural; Região Platina; Gaúcho; Vaqueano.

1 INTRODUÇÃO

O meu interesse pelo tema surgiu durante a disciplina “História e Literatura”, (cuja
docente faz-se presente, neste trabalho, como orientadora), momento em que tomei
conhecimento sobre a obra “O Vaqueano”, do rio-grandino Apolinário José Gomes Porto
Alegre. Adentrei-me, assim, no estudo das representações literárias e musicais desta feição
histórica.
Em uma determinada pajada do álbum “Poesias Gaúchas: Êxitos 2”, questionou o
poeta missioneiro Jayme Caetano Braun: “Vaqueano!/ Onde estás, Vaqueano?/ Há um eco que
me interroga”; recebendo como resposta, na estrofe seguinte: “A evolução pôs a soga/ o meu
destino haragano” (BRAUN, 2017). Além das poesias e das canções nativistas e/ou
tradicionalistas, o termo figura em grande parte da literatura platina, sendo, inclusive, o
personagem que controla a narrativa de João Simões Lopes Neto, em Contos Gauchescos e
Lendas do Sul.
Em contrapartida, pouco ou nada se testemunha do termo em pesquisas científicas ou
bibliografias “clássicas” que abordem as classes mais baixas pela perspectiva do trabalho e da
cultura, apesar dos vaqueanos fazerem-se presentes em uma boa quantidade de fontes
históricas. Esta apresentação caminha nesse sentido: quem foram os vaqueanos? Como se
dava o seu saber-fazer? Como podemos definir esta prática? Perguntas mais elementares que,
apesar de não representarem a questão problema de minha pesquisa final, cumprem
excelentemente o seu objetivo neste trabalho, tendo em vista uma apresentação deste cunho,
curta e intencionalmente introdutória ao tema.
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Agora, trabalhando em hipóteses, podemos ter como apoio a frase de Eric Hobsbawm,
“quando o campo se esvazia, as cidades se enchem” (1994, p. 288), algo que podemos
inverter e reafirmar, dado a nossa perspectiva: quando as cidades se enchem, o campo se
esvazia. Teríamos aí, contudo, um dos primeiros pensamentos alcançados ao buscarmos as
possíveis razões pelo desaparecimento da vaqueania. Mas não iremos por esse caminho em
busca dessas respostas, e sim para introduzirmos mais calmamente o tema. Falamos, portanto,
de uma prática cultural que viu o seu fim, em certos lugares, com a chegada do
desenvolvimento tecnológico e científico estrangeiro, que revolucionou os meios de
transporte entre os povoados e as províncias; isto é, o fim do escravismo colonial enquanto
modo de produção (ao lado da economia de mercado/subsistência) e o princípio do
capitalismo enquanto tal, na virada para o século XX.
Antes, em meados do período oitocentista, comprovando que o relógio do tempo é
diferente em cada sociedade, temos, durante a primeira Revolução Industrial, as locomotivas
cortando a geografia da Europa de ponta a ponta, facilitando o transporte de cargas e pessoas,
entre cidades e países, ao passo que, no interior da Região Platina (Brasil, Argentina, e
Uruguai), ia o vaqueano à cavalo, guiando viajantes estrangeiros, contrabandistas,
ex-escravizados, milícias e militares governistas natureza adentro, com base em seu
conhecimento empírico, em sua memória. Uma figura representada ao extremo na literatura
da região, mas muito pouco, como dito anteriormente, na historiografia – principalmente na
brasileira.
Compreendendo a prática da vaqueania como um saber-fazer, passamos a lidar com as
dimensões subjetivas a respeito do tema, anexando-nos ao campo da História Cultural. Temos
por cultura, com base em Sandra Jatahy Pesavento, “um conjunto de significados
partilhados”; produções sociais e históricas a se expressar ao longo do tempo “em valores,
modos de ser, objetos, práticas” (PESAVENTO, 2006, p. 46). Logicamente, estudos sobre a
cultura são complexos e necessitam de um constante diálogo entre seus diferentes pensadores;
relação esta que manteremos com Carlo Ginzburg, Jacques Le Goff e Roger Chartier,
essencialmente. Ao empregarmos, eventualmente, conceitos do Materialismo Histórico,
certamente teremos como base as obras clássicas do marxismo, mas com apoio constante em
Edward Thompson, que muito focou em estudos culturais dentro da perspectiva materialista.
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2 METODOLOGIA

Por lidarmos com uma temporalidade escoada, “com o não visto, o não vivido”, nós,
enquanto historiadores, utilizamos os “registros e sinais do passado” que chegam até nós, para
acessarmos este outro tempo (PESAVENTO, 2012, p. 42). Este acesso, no entanto, precisa
acontecer de alguma forma; e falar de um como, é falar de um método. Para tanto,
empregamos um diálogo entre o “paradigma indiciário” de Carlo Ginzburg e o “método da
montagem” de Walter Benjamin.
Com Ginzburg, o historiador enfrenta a fonte com atitude dedutiva e movida pela
suspeita: “presta atenção nas evidências, por certo, mas não entende o real como
transparente.” (PESAVENTO, 2012, p. 63). Assim, não nos atentamos ao primeiro olhar, à
primeira impressão, mas buscamos os detalhes e os contextos das fontes históricas. Já em
Benjamin, semelhantemente, o historiador realiza “um trabalho de construção, verdadeiro
quebra-cabeças ou puzzle de peças, capazes de produzir sentido” (PESAVENTO, 2012, p. 64).
O apoio em Ginzburg e Benjamin justifica-se, primeiramente, porque o paradigma indiciário
de um encontra correspondência na estratégia metodológica de outro, dado que Benjamin
propõe o cruzamento dos traços e registros do passado, a fim de revelarem relações, analogias
e contrastes. Com base em ambos, buscamos apresentar tanto uma pesquisa crítica, quanto
uma narrativa expositiva lógica, ao discorrermos sobre as fontes – dentre elas: anuários,
cartas, diários e bibliografias da época.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Em seu disco de 1997, “Cantos Revolucionarios de America Latina”, Soledad Bravo


canta: “Entre tu pueblo y mi pueblo, hay un punto y una raya [...] / caminando por el mundo,
se ven ríos y montañas, se ven selvas y desiertos, pero ni puntos ni rayas / porque esas cosas
no existen, sino que fueron trazadas” (BRAVO, 1997). Assim, somos lembrados de que a
produção cartográfica, artefato semiótico tradutório de certos aspectos da realidade, refere-se
a um acessório trazido pelo colonizador e, portanto, representante do espaço geográfico a
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partir de sua inclinação ideológica eurocêntrica, estrangeira, necessariamente reforçando as


relações de poder vigentes.
Em contrapartida, o saber-fazer da vaqueania possui outra lógica. A presença da
ancestralidade negra e indígena em seus sujeitos históricos (por serem majoritariamente
autóctones, negros e mestiços, como confirmaremos nas fontes), igualmente às
disponibilidades materiais do período, lhes delegam o costume de empregar as suas próprias
formas de localização geográfica e espacial, não carecendo de mapas que representam o olhar
de fora para dentro e, sim, de seu conhecimento empírico; de sua experiência e a dos seus; de
sua relação com a natureza ou com outros membros de seu convívio.
Este é o perfil, encontrado nos vestígios do passado, do sujeito histórico em questão.
Nesse sentido, “vaqueano”, ou “baqueano”, simboliza o conhecedor dos caminhos, um guia
campestre, que possui o mapa de sua região conservado ‘em sua própria cabeça’. Trata-se de
um perfil humano bastante específico, muito embora comum ao contexto, cujo ofício não
institucionalizado permite não apenas o deslocamento de estrangeiros ou continentinos entre
povoados ou províncias, do início do século XX para trás, mas que detém um papel central
nas movimentações dos corpos militares na região sul-americana, bem como no contrabando
entre os países platinos. Essa feição histórica, tida como detentora do conhecimento
topográfico, cobrava o seu serviço àqueles que pudessem pagar, ou que o arregimentassem à
força – dada as características das convocações para as guerras no período.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como consequência ao caráter do processo de ocupação espanhol e português das


Américas, dentro do sistema de acumulação primitiva de capitais sorvidas pelas metrópoles,
produziu-se uma miscigenação forçada que, ao fim e ao cabo, resultou em fator de exclusão
das figuras mais exploradas. Logo, temos os vaqueanos e os gauchos malos saindo das
classes etnicamente subalternas da sociedade; frutos da margem da globalização que se
constituía.
Finalmente, definimos a vaqueania por meio de três pilares fundamentais: um desafio,
um saber, uma prática – estabelecendo uma dialética bem definida. Por “desafio”, temos os
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apresentados pela natureza, de deslocamento, de comunicação ou de localização, que


dificultam o contato entre um ponto e outro; por “saber”, contamos com os provindos da
experiência construída neste constante encontro sujeito x natureza, seja pelo indivíduo que o
construiu empiricamente, seja o passado de geração em geração; por “prática”, um trabalho,
uma cultura, que supera, dialeticamente, esse desafio.
Concluindo, o saber-fazer da vaqueania é fruto dessa relação dialética entre os
desafios apresentados pela natureza, apreendidos na experiência dos sujeitos e superados por
meio de seu trabalho – que é cultural. Em síntese, a vaqueania é a superação dialética, por
meio da experiência (o saber), do desafio apresentado pela natureza. Todavia, ainda há muito
a se interpretar, pois, lembremos: este texto trata-se de um recorte de uma pesquisa maior, e
se destina apenas a introduzir os ouvintes ao saber-fazer dos sujeitos históricos em questão.

5 REFERÊNCIAS

BRAUN, Jayme Caetano. Vaqueano. In: Poesias Gaúchas: Êxitos 2. Usa Records,
2017.

BRAVO, Soledad. Punto y raya. In: Cantos revolucionarios de America Latina. Last
Call Records, 1997.

HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cultura e representações, uma trajetória. Anos 90:


revista do Programa de Pós-Graduação em História. Porto Alegre. Vol. 13, n.
23/24 (jan./dez. 2006), p. 45-58, 2006.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. 3ª Ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2012.

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