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Revista de Guimarães

Publicação da Sociedade Martins Sarmento

BREVE INTRODUÇÃO À PRÉ-HISTÓRIA DE ANGOLA.


JORGE, Vítor Manuel Oliveira
Ano: 1974 | Número: 84

Como citar este documento:

JORGE, Vítor Manuel Oliveira, Breve introdução à Pré-História de Angola. Revista de


Guimarães, 84 Jan.-Dez. 1974, p. 149-170.

Casa de Sarmento Largo Martins Sarmento, 51


Centro de Estudos do Património 4800-432 Guimarães
Universidade do Minho E-mail: geral@csarmento.uminho.pt
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https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/
Breve introdução à Pré-história
de Angola (*)
Por VITOR M. DE OLIVEIRA JORGE
ex-assistente da Universidade de Luanda ;
assistente da Fac. de Letras do Porto

Foi em 1890 que Ricardo Severo publicou o primeiro


estudo científico dizendo respeito à Pré-história de
Angola, intitulado Primeiro: vestígios do .Período neolítíoo no
Estado de Angola. Posteriormente, na primeira e no início
da segunda década do nosso século, surgiram contributos
de Nery Delgado, Paul Choffat e -Leite de Vasconcelos.
Eram ainda, porém, achegas isoladas, de curto fôlego,
baseadas em limitado número de elementos, normal-
mente artefactos recolhidos por missionários ou natu-
ralistas. ¬

Assim, pois, só no anal dos anos quarenta, princípios


dos anos cinquenta, se começaram a realizar prospecções
sistemáticas e algumas escavações, cujos resultados são
já directamente aproveitaveis para um começo de levan-
tamento da carta arqueológica de Angola e de conheci-
mento da sua Pré-história. Como responsáveis por este
arranque temos de citar, entre outros, os nomes de Jean
Janmart, Fernando Mouta, L. Leakey, J.
Redinha,
H. Breuil, J. Camarate França. Este último autor, geó-
logo a quem a Pré-história portuguesa também muito
deve, realizou de 1950 a 1953 em Angola, sobretudo na
região de Luanda e no Sul, alguns trabalhos importantes,
i i :

(*) O presente texto, que se situa num plano rneramente


divulgativo, resulta da reelaboração de parte de uma palestra pro-
nunciada em Sá da Bandeira em Fevereiro de 1973, e publicada
no «Boletim Cultural» da Câmara Municipal da mesrna'cidade,'
11.0 36 de 1974.
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ora integrado na Missão Antropobiológica de Angola


chegada pelo Prof. António de Almeida, ora sob o patro-
cínio do Governo Geral da colónia. Outros dos autores
citados puderam trabalhar em Angola devido ao apoio
concedido pela Companhia dos Diamantes, que em 1946
encetou as suas «Publicações Culturais» com um trabalho
de arqueologia pré-histórica, da autoria de Jean janrnart,
chefe do serviço de prospecções da Companhia. Desde
então, esta empresa chamou a Angola alguns bons
especialistas da Pré-história africana, os quais, a pouco
e pouco, foram elaborando -uma obra valiosa, que faz
da zona da Lufada uma das bem conhecidas de toda
a África, estratigráfica e tipologicamente, encontrando-se
aí algumas estações-tipo de indústrias pré-históricas da
zona subsariana deste continente. Um outro trabalho
deve, entretanto, ser . destacado: o de Museu dos Ser-
viços de Geologia e Minas de Luanda, em relação com
o qual foram possíveis os estudos pioneiros do Eng.°
Fernando Mouta (que os apresentou em vários Congressos
Pan-Africanos de Pré-história, exemplo que não teve
continuidade), . e, posteriormente, de Soares de Car-
valho, Mascarenhas Neto, e outros. Foi a colecção arqueo-
lógica resultante destes estudos de campo recolhida naquele
Museu, que permitiu, juntamente com as do Museu do
Dundo e da Missão Antropobiológica, a elaboração
das primeiras sínteses da Pré-história de Angola. (evi-
dentemente que ainda proporcionais ao pouco que se
sabe). Uma destas, intitulada Introdução à Pré-bístõría de
Angola, deverão-Ia a Henri Breuil e António de Almeida,
e foi apresentada ao Congresso Pan-Africano de 1959
e publicada em português em 1964; a segunda, de muito
maior fôlego, e que aqui nos servirá de guia, foi elabo-
rada por J, Desmond Clark para a Diamang e impressa
em 1966 com o título «The Distribution of Prehistoric
Culture in Angola››.
Depois, passado O primeiro arranque, as publica-
ções voltam a adensar-se sobretudo nos anais dos anos
cinquenta e nos anos sessenta. Em 1960' 1964 a Junta
de Investigações do Ultramar editou dois volumes em
grande parte decorrentes das pesquisas das suas missões
antropológicas, intitulados ‹‹Estudos sobre Pré-história
do Ultramar Portugês››, e nos quais Angola ocupa o
principal lugar. Após a morte de Jean Janmart, a Diamante
BREVE INTRODUÇÃO À pRÉ-HIsrónm DE ANGOLA 151

convidou em 1959 o Prof. J. Desmond Clark, da Univer-


sidade de Berkeley, a prosseguir os trabalhos na Lufada,
os quais possibilitaram, logo em 1963, dois volumes de
síntese sobre essa região, aos quais se veio acrescentar
um outro em 1968. Regra-se ainda outros contributos de
variada importância, como o de J. A. Martins, que
em 1959 cartografou para os Serviços de Geologia e
Minas, as estações pré-históricas estão conhecidas em
Angola; o de O. Davies, que em 1958 estudou algumas
formações de praias elevadas de Angola, relacionando-as
com as do Sudoeste Africano; o de João Vicente Martins,
que em 1966 abordou aspectos de ‹‹A Idade dos Metais
na Lufada››, o de A. V. Rodrigues, que em 1968 escreveu
sobre Construções bastas de pedra, em Angola, etc.
Desde 1970, a colaboração do Prof. Santos Júnior
e de Carlos Ervedosa, este último da Universidade de
Luanda, permitiu 2- produção de dois trabalhos de posi-
tivo valor, um sobre o concheiro de Benfica (Luanda),
outro sobre o abrigo com pinturas do Caninguiri (Mungo).
Mais recentemente, aquele professor publicou uma síntese
sobre Arte rupestre em Angola e o resultado das suas
observações sobre as gravuras rupestres do Tchitundo-
-hulo (Virei, Moçâmedes), enquanto que Ervedosa
divulgou as conclusões dos seus. trabalhos num dos sec-
tores do mesmo complexo de arte rupestre, o Tchitundo-
-hulo Mulume. Quanto a nós, durante o ano e meio
que pudemos trabalhar em Angola, demos o nosso con-
tributo à carta arqueológica dos distritos do Huambo,
Huíla, Benguela e Moçâmedes, descobrindo cerca de duas
dezenas de estações, do Paleolítico 8 Idade do Ferro,
nessas regiões.
E é, afinal, da Universidade angolana que poderão,
cremos, vir a sair os núcleos de pesquisadores capazes dc.
cobrir o vasto território deste, em breve, novo país,
protegendo e estudando os seus vestígios pré-históricos,
e de formar no futuro um organismo que congregue os
seus esforços. Seria importante editar, por concelhos,
a carta arqueológica de Angola; regulamentar rigorosa-
mente as escavações arqueológicas, protegendo as esta-
ções, como monumentos de interesse nacional, dos depre-
dadores, aventureiros e amadores; espalhar museus pela
província; realizar periodicamente congressos e outras
reuniões sobre a arqueologia de Angola; fundar uma.
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revista especializada na matéria; enviar arqueólogos ango-


lanos aos Congressos par-africanos de Pré-história;
convidar professores estrangeiros a, realizarem palestras,
cursos e investigações; dar o maior apoio e facilidades
materiais, de tempo e de contactos, a quem trabalhe neste
campo; interessar no assunto as entidades locais, etc.
Enfim, estruturar o trabalho e lançar-lhe os fundamentos
para que tenha continuidade. Mas, para que um dia se
possa atingir este grau de desenvolvimento _ único
que dará a Angola a sua própria história anterior à che-
gada dos portugueses - longo caminho haverá a percorrer
na superação dos métodos de organização da pesquisa
durante o período colonial. Mas, isso, os futuros dirigentes .
de Angola sabe-Io-ão melhor do que ninguém.

Sob um ponto de vista de ecologia pré_histórica,


e de acordo com Desmond Clark, o território de Angola
recorra-se em regiões bem distintas entre si' a do Congo,
a do Zambeze e a do Sudoeste, nas quais se teriam ori-
ginado, a partir dos inícios do Plistoceno superior, ta_
dições culturais diferentes.
A zona do Congo, ao norte do país, é atravessada por
aguentes do rio Cassai e outros tributários da bacia do
Congo, e é constituída por um planalto sem grandes
elevações, coberto pelas chamadas areias do Calaári, e
descendo de altitudes de 1.500-2.000 metros a sul até
cerca de 700 metros em média junto à fronteira norte.
Neste Plateau abrem-se duas depressões principais de
vales de rios, a do Cassai, que faz fronteira a leste, e seus
afluentes (de orientação sul-norte) do extremo nordeste,
e a do Cuango, a oeste. Genericamente falando, é uma zona
em que domina o «mato de panda» com Braøfilyrtegia,
ocorrendo, também, para ocidente, vários tipos de savana,
e a floresta de tipo «Iau.risilva». Ao longo dos vales dos
rios, 'surge frequentemente a floresta-galeria, que pro-
longa localmente as florestas dos climas mais pluviosas
a norte, e que, na opinião de Clark, deve ter sido mais
extensa no Plistoceno do que é hoje.

¡
BREVE INTRODUÇÃO À PRÉ-HISTÓRIA DE ANGOLA 153

Em particular na região da Lufada, e de acordo com


aquele autor, as areias eólicas do Calaári ter-se-iam depo-
sitado durante o Mioceno, e encontram-se hoje encimando
as zonas mais elevadas dos interflúvios. Posteriormente,
no Plioceno e no Plistoceno superior, respectivamente,
deram-se fenómenos de redistribuição destas areias,
constituindo-se assim as chamadas areias redistribuídas
I e II ; esses fenómenos de redeposíção continuaram,
aliás, a verificar-se em menor escala, noem do Plistoceno
e no Holoceno. Acrescente-se que tanto as iniciais areias
do Calaári, como as areias redistribuídas I e II, se vieram
depor em superfícies de peneplanície, escalonadas a dife-
rentes alturas. Foi precisamente na mais baixa destas
peneplanícies (700-800 m. de altitude em relação ao
nível do mar), previamente lateritizada, que os rios vieram
depositar as suas cascalheiras de terraço, às alturas de
aprordmadamente 40,20,10 e 3-4 metros. Os terraços mais
altos - 40 e 20 m. - revelaram alguns utensílios feitos
de seixos rolados, que poderiam assinalar as mais antigas
indústrias humanas da zona, mas a sua posição estrati-
gráfica não é segura. Em contrapartida, as cascalheiras de
terraço de 10 metros deram instrumentos atribuíveis a
uma fase evoluida do Olduvaiense e ao Acheulense infe-
rior. À superfície das mesmas, em certos locais, recolhe-
ram-se artefactos de um Acheulense superior, os quais,
nas cotas mais altas em que ocorrem, são cobertos pelas
areias redistribuídas II do Calaári. A leitura da estrati-
grafia destas últimas nos interflúvios permite seguir a
evolução das indústrias ‹‹florestais›› derivadas do Acheu-
lense e características da região : o Sangoense e Lupembense
inferior, na parte mais baixa das mesmas areias, O Lupem-
bense superior nas camadas médias, e, junto ao topo,
O Tshitolense inferior e o Lupembo-Tshitolense. As
mesmas indústrias vamos encontrar nos cortes do terraço
de 3-4 metros, onde nos surgem por vezes dois uiveis de
cascalheira cobertos. por uma camada de areia e argilas,
níveis esses que D. Clark atribui ao pluvial gamblíano,
considerando-os contemporâneos das areias redistri-
buídas II. Por seu turno, a camada superior de areias e
argilas é integrada por este autor no episódio húmido
Makaliano; é contemporânea das areias redistribuídasIII
e da indústria tshítolense.
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Sobre a :zona do Zambeze sabemos ainda muito pouco, I w

não sendo possível por ora traçar a sua evolução em


termos estratigraficos e culturais. Corresponde a parte
do Leste e ao Sudeste do país, e abarca um pequeno
troço inicial do rio Zambeze e parte do curso de alguns
dos seus aguentes, além do Cubango, que pode ter já
sido também um afluente daquele grande rio (uns do
Terciário-princípios do Quaternário). Em grande parte
desta zona prolonga-se 0 ‹‹mato de panda›› com Broa:/ay
regia que encontrámos a norte, surgindo a sul o mato com
acácias disseminadas ou com Copaifera mopane. No Norte,
em particular, surgem os vales baixos e largos conhecidos
pela designação de «dambos››, com orientação sudeste.

Finalmente, a região sudoeste abarca o Sudoeste de


Angola propriamente dito e a faixa costeira entre a
escarpa litoral e o mar. Encontra-se interiormente deli-
mitada, a norte e leste, por uma linha curva que, da
barra do Cuanza, passa por Nova Lisboa e Pereira dá"Eça,
aproximadamente. É uma zona em que confluem a
savana, com imbondeiros para a zona do litoral, o mato
com acácias disseminadas, o mato com Copaäëra mopane,
e, para sudoeste, zonas desérticas e subi-desérticas onde
a vegetação escasseia. O relevo caracteriza-se fundamen-
talmente por uma «escadaria de aplanações» que descem
do planalto até à costa, estudada, entre outros, por Jessen
e Mariano Feio, que também nos deu importantes con-
tributos para o esclarecimento da geomorfologia do rio
Cunene, um dos dois rios importantes que, nesta zona,
vão desaguar à costa ocidental (o outro é o Cuanza).
Trata-se de uma região sobre a qual se têm debruçado
numerosos autores, geólogos, geomorfologistas, geó-
grafos, mas para a qual não temos ainda um estudo exaus-
tivo consagrado ao Quaternário que permita traçar uma
evolução cultural de conjunto apoiada em dados estra-
tigráficos seguros, como na Lufada. O que é pena, dada a
conhecida abundância de vestígios pré-históricos na
região; de forma que é. sempre premente insistir em que,
para que se possa aqui realizar um rigoroso trabalho de
Pré-história, vai ser necessário que as entidades compe-

r
BREVE INTRODUÇÃO À PRÉ-HISTÓRIA. DE ANGOLA 155

rentes compreendam o imprescindível de uma colabo-


ração . interdisciplinar dos arqueólogos com geólogos
exclusivamente preocupados com O Quaternário da região.
É bem evidente que, sem esse apoio, todo e esforço indi-
vidual do arqueólogo, por maior que seja, conduzirá
sempre a resultados quando muito provisórios.
Até hoje, os principais estudos de geologia do Qual
ternário realizados na zona dizem respeito às formações
litorais, e devem-se a Mascarenhas Neto, Soares de
Carvalho, e O. Davies, a zona de Benguela-Lobito
destaca-se como particularmente propícia, certamente
entre outras ainda não estudadas, à pesquisa das forma»
iões marinhas quaternárias.
A mais alta praia elevada aí detectada é a de 100 metros
em média, podendo varir entre 40 (ou 50, seg. S. de
Carvalho) e 155 metros acima do nível do mar. Apresenta
um depósito de conglomerado encirnado por areias argi-
losas, de cor avermelhada. Soares de Carvalho atribui

bug/banius. ,
.
este f i e l ao Tirreniano I, baseado na presença de Sirombus

Este mesmo autor refere-se a um nível mais baixo,


entre 16 e20 m. de altitude. Por seu turno, Davies men-
ciona também a existência de uma plataforma de praia
elevada entre 20 e 40 metros, na área de Benguela, na qual
surgem areias vermelhas com alta percentagem de argila
e contendo, na parte inferior, um nível de moluscos.
Na Ponta das Vacas a cascalheira deste nível está a 25 m.
de altitude; na Ponta do Sombreiro, a 23 rn.; em ambos
os locais, Davies encontrou, neste nível, artefactos acheu-
lenses e do Sangoense inferior. Na Ponta do Giraul,
Moçâmedes, o nível de praia de 35 metros foi cortado
pelo estuário fóssil do rio Giraul, e revelou utensílios
do Acheulense superior.
Uma outra praia elevada foi ainda detectada, entre 6
e 9 metros de altitude, em Benguela, Moçâmedes e nas
proximidades de Ambriz, com artefactos de um San-
goense evolucionado.
Finalmente, a 1,5 m., na Ponta das Vacas (Benguela),
Davies encontrou um f i e l baixo de praia que atribuiu à
transgressão flandriana, transgressão com a qual se rela-
cionariam, também, os terraços baixos dos rios junto à
costa.
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3
I
I

Tracemos agora, concluir, uM rápido bosquejo da 4


evolução das culturas pré-históricas em Angola, indicando
apenas as estações mais significativas para cada período
a considerar.
Datam de uma fase evolucionada do Olduvaiense as
mais antigas indústrias conhecidas neste país. Surgem na
zona do Congo, como se disse, nas jazidas da Catongula,
Mufo, Cataíla 2, Toca Mai, Cassenga, entre outras; mas
é sobretudo na zona do Sudoeste que a sua presença
se reveste de incontestável significado estratigráfico.
A principal estação encontra-se na zona de Palmeiri-
nhas, ao sul de Luanda, aproximadamente a 73 km desta
cidade. Está relacionada com uma plataforma topográfica
de + 100 m. que se estende desde o sul da baía das
Palmeirinhas até ao rio Cuanza. Um corte nesta plataforma
permitiu uma leitura estratigráfica que isolou quatro
camadas sobrepostas: sobre as margas e arenitos da base,
um conglomerado de origem marinha, com seixos afei-
çoados e lascas pequenas atribuiveis ao Olduvaiense
(inícios do Plistoceno médio); acima, areias argilosas ver-
melhas passando a cinzentas (as quais deram alguns arte-
factos provavelmente contemporâneos das indústrias
encontradas nas areias da plataforma de 20 metros)
cobertas, no topo, por areias vermelhas. D. Clark consi-
derou os artefactos provenientes do conglomerado das
Palmeírínhas, como uma das raras indústrias olduvaienses
evoluídas da África Austral com posição estratigrafica
bem definida e datável. Podem aproximar-se desta indús-
tria os artefactos achados aprozdmadamente ao mesmo
nível em Luanda e em Calumbo, no vale do Cuanza.
Uma zona que poderia no futuro ser de certa impor-
tância para O esmdo destas indústrias muito primitivas
do Olduvaiense é a zona da Leba (planalto da Chela)
cujos calcários dolomíticos apresentam fissuras preen-
chidas por brechas ósseas nas quais já foram reconhecidas
espécies de primatas que parecem idênticos aos que acom-
panhavam os australantropianos do Transval. Fernando
Mouta, o próprio Prof. Dart, e outros investigadores
chamaram repetidamente a atenção para a importância
destes achados, sem que, até agora, surpreendentemente,
BREVE INTRODUÇÃO À PRÉ-H1STóRIA DE ANGOLA 157

se tenha procurado promover o seu estudo por um espe-


cialista competente. Aliás, a zona da Leba é arqueologica-
mente muito rica, em estações de superfície e em grutas
(muito embora as estações conhecidas sejam generica-
mente de épocas mais recentes), cujo estudo sistemático
a Universidade já iniciou.
Em Angola o complexo industrial olduvaiense é
seguido, como acontece de uma forma geral em toda a
África, por um Acheulense inferior. No território ango-
lano, porém, só na zona do Congo se provou a existência
desta indústria, relacionada com as cascalheiras do terraço
de 10 metros dos rios Chiumbe e Luembe, como, por
exemplo, em Cassenga (Lufada). Tecnicamente, nesta
região da Lufada, o Acheulense inferior surge-nos pouco
elaborado, e à base de utensílios pesados.
Quanto ao Acheulense superior, - estádio seguinte,
ocorre nesta mesma zona, como se disse, à superfície
das cascalheiras do terraço de 10 metros, entre outros
locais; aí, as peças apresentam um talhe ‹‹fresco››, enquanto
que as que provêm do terraço de 3-4 metros se encontram
desgastadas. Predominam ainda os instrumentos pesados,
mas o talhe torna-Se mais cuidado.
Na zona do Zambeze, apenas se conhece uma peça,
um biface, proveniente da confluêncía do Luconha com
o Lungué-Bungo. Em contrapartida, na região do Sudoeste
foram assinaladas várias estações, no baixo Cunene,em
Capangombe, no Brútuei, etc., na costa, a mais impor-
tante estação é sem dúvida a da Baía Farta, correspon-
dente a um solo de ocupação instalado sobre o con-
glomerado marinho de 100 metros e coberto, por sua vez,
por areias argilosas vermelhas. Bifaces, ‹‹hachereaux››,
seixos afeiçoados unifaciais e bifaciais, facas, raspadores,
lascas residuais e utilizadas, núcleos, fazem parte deste
solo de habitação e de oficina, que, segundo D. Clark,
produziu algumas das mais perfeitas peças acheulenses da
África. o mesmo autor acentua que a área costeira de
Angola, ao contrário do que se nota na zona do Congo,
parece ter sido bastante propicia à instalação dos caça-
dores acheulenses, numa época contemporânea da forma-
ção das praias de 25-35 metros. Climaticamente, esse
período teria conhecido maiores precipitações e mais baixas
temperaturas do que hoje se verificam no Sudoeste e
na região costeira de Angola, condições favoráveis à
Q

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formação de campinas com vegetação de gramíneas, que


os acheulenses parece terem privilegiado.
Com o «Primeiro Período Intermédio» (‹‹First Inter- I
mediate Period››) começamos a assistir à individualização
cultural das várias regiões de Angola, que se manifestará
amplamente na «Middle Stone Age». É pelo menos o
que afirma, num curto artigo de divulgação (1), o investi-
gador Miguel Ramos, que atribui várias indústrias da
região do Sudoeste ao complexo Fauresmith (Carvalhão,
Munhino, Ochinjau, S. Nicolau, Maconge, e outras);
esperamos com interesse detalhadas monografias resul~
tartes dos seus trabalhos nestas estações, tanto mais que,
até há pouco tempo, o que se conhecia no Sudoeste eram
escassos materiais provenientes da Ponta das Vacas
(Benguela), Ponta do Girar (Moçâmedes), etc., os quais
parecia estarem em relação com o que se observa a nor-
deste do país. .
Nesta a r e , é um Sangoense-Lupembense inferior
(não diferenciáveis) que ocupa este período. Surge na
parte inferior das Areias Redistribuídas II, nos inter-
flúvios, como, por exemplo, em Catongula e nas minas
de Mussolégi. São indústrias compostas por picos, ras-
padeiras nucleiformes, bifaces e poliedros, e mais rara-
mente também por «core-axes››. Não aparecem ainda os
núcleos de plano de percussão preparado. Também a
10 km. a sul de Ambriz, e a cerca de 1 km. da costa, foi
descoberta uma estação atribuída a esta época, num
terraço de 22 metros.
Na ‹‹Middle Stone Age››, como se disse, a especiali-
zação regional das indústrias é já evidente. A zona do
Congo está bem caracterizada pela presença do Lupem-
bense superior, que at surge em locais de habitação e em
sítios de trabalho e em particular de mineração, em três
posições estratigráficas diferentes: nos níveis superiores
das areias redistribuídas II, como em Catongula, Musso-
légi e em Cauma; sob as areias redistribuídas III (Furi I),
nos noiveis inferiores e médios de tais areias (Matafari),
e, nos vales, nas argilas arenosas que encimam as casca-
lheiras do terraço mais antigo, finalmente, nas casca-

(1) Adítamento a «A Pré-história da África» de Desmond


Clark, pp. 234-240.
BREVE INTRODUÇÃO À PRÉ-HISTÓRIA DE ANGOLA 159

feiras do terraço de 3-4 metros. De uma maneira geral,


as indústrias do Lupembense superior da Lufada incluem
bifaces, picos, raspadores ou raspadeiras, «core-axes››,
pontas, trinchetes, etc. A técnica Levallois está presente.
Outros instrumentos lupembenses foram recolhidos
em Marimba (Malange), Mavoío (Maqueta do Zombo),
perto de Brito Godins (Baixa de Cassanje), Catete,etc., etc.
No, Sudoeste, predomina, na opinião de Desmond
Clark, uma «Middle Stone Age» indiferenciada, que não
pode ligar-se ao complexo lupembense, e só muito remo-
tamente admitirá comparações com o complexo Stillbay-
-Pietersburg (através dos seus raros raspadores típicos e
pontas), e cujos materiais incluem raspadores, facas,
seixos afeiçoados, pouco individualizados tipologica-
mente. São numerosas as estações conhecidas, quer no
interior (Chitaca Hui, Vila de Almoster; área de Bata
Bata e zona da Leba, Humpata; Cangalongue, Jau; etc.),
quer no litoral (Ponta do Giraul e Ponta Negra, Moçã-
medes; etc.).
Embora os trabalhos que pudemos realizar em 1973
e 74 no SO. de Angola não tenham passado de uma
fase preliminar, levam-nos de momento a aceitar a opinião
de Desmond Clark sobre o carácter pouco ‹‹típico›› destas
indústrias. Na região de Sá da Bandeira, por exemplo,
as jazidas 1 dos Barracões e 1 do rio Capitão, e, na região
do Dombe Grande, Benguela, a jazida da Chitandalucua,
são bons exemplos desta ‹‹atipicidade».
Todavia, o citado investigador Miguel Ramos vem
afirmar, no artigo referido, que no Alto do Choi, na cas-
cata da Leba, no Giraul (bem como na chamada Ilha dos
Amores, perto de Serpa Pinto) se encontrariam indús-
trias atribuíveis ao complexo Stillbay-Pietersburg; e
que «escavações recentes» (crê-se que do mesmo autor)
«mostram ser muito provável que exista uma faces cul-
tural da Middle Stone Age específica do Sudoeste de
Angola e que a sua evolução se tenha processado em, pelo
menos, dois estádios bem definidos - Leba e Capan-
gombe.›› (1) Aguardamos a publicação documentada dos
resultados dessas investigações, que se afigura serem da

(*) Op. cit., p. 237.


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mais alta importância para a Pré-história *do Sudoeste de


Angola.
E chegamos .ao «Segundo Período Intermédio»,
que na zona do Congo assiste ao florescimento de uma
indústria de transição, o Lupembo-Tshitolense, e aos
inícios do Tshitolense. O Lupernbo-Tshitolense localiza-se
em várias jazidas da Lufada, como Bala Bala e Caimbunji,
e compõe-se de bifaces, picos, raspadores, «cores-axes››,
pontas, trinchetes, etc., distingue-o particularmente do
estádio anterior o desenvolvimento do «core-axe» e da
ponta (surge pela primeira vez a ponta com espigão).
É, além disso, uma indústria de aspecto mais evoluído, na
qual, de acordo com Clark, aumenta a variedade das formas
e as dimensões médias tendem a diminuir. Fora da Lufada,
o Lupembo-Tshitolense foi assinalado em Mavoio,
Morro do Paiol (Noroeste da zona.)
Na área do Zambeze, duas jazidas deste período temos
de considerar • a de Dirico junto à fronteira, na congruência
do Ocavango e do Cuito; e Menongue, em Serpa Pinto,
no já citadO local da «Ilha dos Amores››, uma pequena
ilhota do rio Cuebe. Esta última estação foi alvo de uma
escavação de Camarate França em 1952; consistiu esta
na abertura de uma vala que cortou cerca de 70 cm de
areias do rio até atingir o substracto rochoso. As areias
que condnham os materiais arqueológicos eram de cor
clara, contendo lendlhas carbonosas; todavia, não se
verificou a presença de evidentes níveis estratigráficos,
pelo que a escavação distinguiu três camadas arbitradas.
Estas permitem seguir a evolução da indústria, que, da
base ao topo, se foi progressivamente aperfeiçoando ;
trata-se de um Magosiense típico minuciosamente des-
crito por C. França. Aqui, baste-nos uma enumeração de
alguns dos tipos presentes' núcleos discóides pequenos,
com plano de percussão preparado; núcleos piramidais
de lâminas, pontas sob-triangulares e lanceoladas, raspa-
dores e raspadeiras, bulis, crescentes, triângulos e tra-
pézios ; variadas outras peças sobre lamela e lâmina.
. Finalmente, na zona Sudoeste, encontramos' no
Oci(rio Cunene), uma jazida magosiense amém das anterior-
mente referidas. Mas o que é sobretudo interessante é o
aparecimento de toda uma ‹‹variante costeira» destas indús-
trias de transição da ‹‹Middle›› para a «Latem Stone Age››.
Esta fácies litoral está bem caracterizada nas Palmeirinhas,
BREVE INTRODUÇÃO À BRÉ-HISTÓRIA DE ANGOLA. 161

aparecendo in .Rita na parte superior das areias argilosas


que cobrem a plataforma de praia elevada de 20 metros,
nitidamente articulável com as praias elevadas de 20-35 m.
de S. de Carvalho e O. Davies. A indústria desta jazida
utilizou como matéria-prima pequenos seixos de quartzo
e ‹‹chert››, cuja superfície inicial conservou por vezes numa
das faces dos artefactos; incluí: raspadores laterais sobre
seixo, raspadeiras nucleiformes, raspadeiras, além de umas
peças que J. Desmond Clark chama ‹‹Pebble Adzes›› e que
se assemelham a pequenos núcleos díscóides, sem plano
de percussão preparado, cuidadosamente retocados na
periferia, mencione-se ainda numerosas peças utilizadas,
e núcleos, preparados ou não, lascas e lâminas residuais, etc.
Enfim, Clark considera que se trata de uma indústria do
‹‹Second Intermediate›› pelos seus núcleos preparados,
lascas com talão facetado, lamelas e pequenos núcleos de
lâminas, mas adaptada» ao ambiente e à matéria-prima
que encontrou no litoral.
E assim chegamos ao último período da Idade da
Pedra, a ‹‹Later Stone Age››. É a época de desenvolvi-
mento do Tshitolense nas áreas de floresta, caracterizado
por s e i o s afeiçoados bifaciais, raspadores, na maioria
de pequenas dimensões, «core-axes››, trinchetes, além de
variados outros tipos de peças. Surge também em
Cabinda - Morro das Pacatas-, Mavoio, Luanda, etc.
Entretanto, no litoral a variante costeira continua a
destacar-se, estando representada, seg. Desmond Clark,
no concheiro de Benfica, a 17 km ao Sul de Luanda, o
qual, num corte de estrada, mostrou ter 60 CM. de espes-
sura, dos quais os 15 cm inferiores revelaram uma indús-
tria da «Latem Stone Age» misturada com conchas de
moluscos. Trata-se de peças de quartzo talhadas em
seixos rolados, num conjunto pouco significativo, onde
estão presentes raspadores, núcleos, pequenas lascas, etc.
Mais recentemente, este cocheiro foi estudado por
C. Ervedosa e Santos Júnior, como Se disse, os quais
distinguiram, na estação, dois momentos de ocupação,
atribuindo o primeiro a uma ‹‹Middle Stone Age» de
fácies costeira, e relacionando o segundo com a edificação
do cocheiro referido.
Desmond Clark faz notar a ausência, nesta época e no
Nordeste de Angola, de peças de tipo neolítico, parecendo
poder concluir~se que a indústria tshitolense ‹‹epipaleo-
11
162 REVISTA DE GVIMARÃES

lítica» aí persistiu até à chegada das populações do ferro.


O que já é mais estranho, segundo Clark, é essa ausência
de materiais neolíticos se verificar também no Noroeste,
onde deviam surgir prolongamentos das fácies neolíticas i
do baixo Congo, a norte. E refere-se a uma excepção ao
facto, as peças reveladas em 1890 por Ricardo Severo.
Da zona do Zambeze neste período, sabe-se muito
pouco. Os materiais superiores de Menongue, microlí-
ticos, parece sugerirem o Wiltonense. De vários locais,
como o rio Cuengue, rio Xissoi, etc., provêm pedras com
perfuração central; de Galangue, cinco machados polidos,
possivelmente pertencentes já a um Neolítico da região,
cujas raízes poderiam estar a norte, na zona do baixo
Congo.
Quanto à zona sudoeste, curiosamente não tem aparo
tecido at, com a abundância que poderia esperar-se aten-
dendo à sua ampla presença no Sudoeste Africano, o
Wilton; todavia, tal pode dever-se à raridade das escava-
ções, as quais, quando praticadas, revelaram já indústrias
de tipo wiltonense, como, por exemplo, no Caninguíri
(Mungo), e no Tchitundo-hulo (Virei), como veremos
adiante. Mas a analogia com outras indústrias do Sudo-
este Africano é também frutuosa, pois parece encon-
trar-se em Angola prolongamentos de indústrias tardias
do tipo da «Cultura de Erongo» (1), com lascas e
lâminas de dimensões maiores, sumariamente retocadas.
É ocaso de indústrias dos estratos superiores da gruta 1
da Leba, gruta que tem sofrido ao longo do tempo varia-
das depredações, e onde Camarate França fez uma sonda-
gem de resultados bastante significativos. Acrescente-se
que os trabalhos foram retornados na gruta em 1973 e
1974, pela Universidade, revelando-se a sala 2 (2) propícia,
apesar de todos os remeximentos, a análises estratigrá-
ficas significativas; o material recolhido está em estudo.
Desmond Clark descreve, desta estação, pedras utilizadas
como piões, polidores ou para a moagem de cereais;
uma pequena pedra com perfuração central; um seixo

(1) Também designada «cultura de Btandberg» ou «da Dama-


ralândía››, que em Angola, seg. Ervedosa (1974), será atribuível
aos Cuissís, povo vatua do distrito de Moçâmedes.
(2) Segunda sala da gruta, a partir da entrada.
BREVE INTRODUÇÃO À PRÉ-H1STÓR1A DE ANGOLA 163

afeiçoado unífacíalg raspadeiras nucleiformes; lascas


várias, um fragmento cerâmico não decorado, e pontas
de seta de ferro. Se estas últimas peças forem contem-
porâneas das de pedra, então tratar-se-á, de facto, de uma
indústria relativamente recente.

Façamos um rápido balanço do que foi dito sobre a


evolução cultural de Angola até à Idade do Ferro.
já em 1959, Henri Breuil e António de Almeida
tinham posto correctamente o problema da Pré-história
de Angola, nestas palavras :
‹‹Nos materiais pré-históricos de Angola verifica~se
grande diferença entre as indústrias setentrionais e meri-
dionais: enquanto as do Norte se assemelham às dos
conjuntos ‹‹florestais›› (...) e ostentam faces conguesas,
as das jazidas, muito mais numerosas, situadas nas regiões
sob-desérticas do Sul, descobertas por um de nós (A. A).,
relacionam-se com as que o outro (H. B.) observou nas
savanas sob-desérticas do contíguo Sudoeste Africano.
Quer dizer que, se neste último território se encontram
as velhas indústrias de bifaces comuns a toda a Africa,
no Norte de Angola a Pré-história desenvolve-se no sen-
tido das indústrias Sangoan e subsequentes da região da
‹‹Diamang›› e dos ex-Congos belga e francês(...).›› (1)
A síntese de D. Clark de 1966 vem na sequência de
tais noções. Segundo ele, as sociedades de caçadores
primitivos da <‹Earlier Stone Age» teriam escolhido o
seu habitat na periferia das florestas, desenvolvendo um
Acheulense clássico, com utensílios de gume extenso, na
costa e no Sudoeste; quando, porém, penfittafam nas
regiões húmidas do Norte da Lufada, deixaram aí um
instrumental diferente, com predominância de utensílios
pesados.
É a partir da ‹‹Middle Stone Age›› que as diferenças
entre o Norte e o Sul surgem bem nítidas. O Lupembense,

. 0) Improdução à Pré-birtária de Angola, ‹‹Estudos sobre Pré-


-hlstÓria do Ultramar Portug.», vol. 2, Lisboa, 1964, p. 159.
164 REVISTA DE GVIMARÃES I

faces congolóide, especializou-se em «core-axes» (goivas


ou cinzeis) e em pontas de projéctil; na área do Zambeze,
I
parece ter havido uma tradição Stillbay-Pietsburg que w

â
estaria na origem do Magosíense; no Sudoeste, uma
‹‹Middle Stone Age» indiferenciada seria a resposta a clí-
mas mais secos, e antecederia as indústrias tipo Erongo
ou Wilton. Assim, pois, a ‹‹Late Stone Age» teria, pelo
menos em parte, mantido a diversificação das três áreas
pré-históricas de Angola; O Congo com um Tshitolense ;
O Zarnbeze, com um muito provável Wíltonense, e o
Sudoeste com o Wíltonense e a cultura de Gongo.
Compete agora aos arqueólogos angolanos a conti-
nuação das pesquisas iniciadas pelos mestres estrangeiros
citados, ampliando, corrigindo, ou alterando este pri-
meiro esquema quando as suas observações o impuserem.

5 ¢

. A terminar esta já relativamente longa exposição,


uma breve nota sobre as estações de arte rupestre e da
Idade do Ferro conhecidas em Angola, sem o que o pano-
rama traçado ficaria muito incompleto; o autor voltará
ao assunto com mais desenvolvimento noutros estudos,
onde melhor caberão discussões de pormenor ociosas num
trabalho geral de divulgação, como este.
. A necessidade de tratar 8 parte o assunto da arte
rupestre de Angola deriva da circunstância de ser muito
difícil a datação destas manifestações artísticas, e sua rela-
ção com o todo cultural em que se teriam integrado,
aliás, O estudo sistemático da arte rupestre de Angola,
quase toda esquemática e, ao que parece, raramente pré-
-banta, só nos últimos anos foi iniciado por Santos Júnior
e Carlos Ervedosa, de cujo labor resultaram numerosos
decalques arquivados no Centro de Estunos de Antro-
pologia da U. L., os quais, à medida que forem publicados,
fornecerão contributos capitais ao panorama de conjunto.
Este, baseando-nos em Santos Júnior, pode descrever-se
considerando três grupos principais de estações de acordo
com a sua distribuição geográfica: ‹‹Um a leste no distrito
do Moxico, só com gravuras; outro a sul, junto da costa,
BREVE INTRODUÇÃO À PRÉ-HISTÓRIA DE ANGOLA 165

no distrito de Moçârnedes, com gravuras e pinturas ;


outro no centro, entre Quibala, Nova Lisboa e Silva Porto,
distritos do Huambo e do Quanza Sul, com estações
todas de pinturas» (1). O primeiro grupo é composto pelas
gravuras rupestres de Capelo, Bambala e Calola, des-
cobertas e descritas pelo Dr. José Redinha; o segundo
grupo íntegra principalmente as gravuras do Tchipopilo
(Camucuio, Vila Arriaga) e o complexo de arte rupestre
do Tchitundo-hulo (Virei, Moçârnedes) , ao terceiro grupo
pertencem as pinturas de Danda Zumba e Nhia Qui-
nhengo (Quibala), as do concelho do Ebo (Quanza Sul),
as de Éuè ia Sinèuio (concelho de Cassongue, entre a Cela
e o Alto Hama), as do Monte Luve (concelho do Bimbe),
as do abrigo do Caninguíri (Mungo), e as de Galanga
(3 abrigos). Mas o carácter puramente convencional,
embora útil para uma primeira visão de conjunto, destes
grupos geográficos, patenteia-se na mais ampla mancha
definida por outras estações por ora isoladas: tal é o caso
das pinturas da região do Negage, das gravuras rupestres
da gruta do Musseque (Alto Chicapa), das gravuras rupes-
tres de Montenegro (margem direita do Cunene), das
pinturas do abrigo 1 da serra do Hôndío (Ganda), das
pinturas da gruta da Chitandalucua (Dombe Grande), etc.
De todas estas estações pode, por ora, destacar-se o
abrigo com pinturas do Caninguíri (Mungo, distrito do
Huambo), grande painel de cerca de 20 metros de extensão
por aproximadamente 4 metros de altura, no qual se
destacam motivos pintados a branco (predominantes),
vários tons de vermelho, e amarelo oca. Os temas são
muito variados, desde os geométrico-simbólicos até aos
antropomórficos (realistas, sei-esquemáticos e esquemá-
ticos) e animalísticos (realistas e sei-esquemáticos). Feitas
sondagens no solo do abrigo, foram encontrados materiais
de feição microlítica atribuíveis a uma «Latem Stone Age››,
e, mais especificamente, ao Wilton (S. Júnior e C. Erve-
dosa); entretanto, datações pelo C 14 permitidas pela aná-
lise de carvões recolhidos nessas escavações situam os
estratos da estação entre 7.840 + 80 e 10.410 + 90 anos.
Serão igualmente antigas as pinturas? Os autores que

.
(1) «Arte rupestre cm Angola››, p. 20;
166 REVISTA DE GVIMARÃES

as estudaram pensam afirmativamente. Digno também de


menção especial é o complexo de pinturas e gravuras do
Tchitundo-hulo (deserto de Moçâmedes), composto de I
dois abrigos com pinturas e três estações de ar livre
com gravuras, das quais a principal é o grande ifuelberg
granítico do Tchitundo-hulo Mulume, que poderá conter
cerca de 2 mil insculturas. A técnica destas gravuras é,
na maior parte, a da picotagem. Surgem isoladas ou em
grupos, e são predominantemente geométrico-simbólicas ;
há algumas representações de animais (antílopes, um
chacal, ofídíos, seg. Santos Júnior) e, pelo menos, o que
cremos ser uma figura humana, por nós observada. De
estilo geométrico são igualmente as pinturas do abrigo
que se abre na vertente noroeste deste morro, estudadas
por C. Ervedosa, que também praticou uma escavação
nos depósitos que cobrem parte do solo rochoso do
I
abrigo, tendo encontrado várias camadas, sendo as infe- I

riores atribuíveis ao wiltonense, com micrólitos e contas


de colar feitas de casca de ovo de avestruz; a mais pro-
funda destas foi datada pelo C 14 de 2.596 + 53 anos.
As camadas superiores prece poderem relacionar-se com
a «Damaraland Culture››.
A concluir esta alínea, diga-se que é necessário, no
campo da arte rupestre de Angola, que se continue a
realizar prospecções e a publicar o ‹‹corpus›› das estações ;
e, por outro lado, que se intensifiquem escavações arqueo-
lógicas nestes locais, procurando estabelecer o contexto
dos mesmos, como se fez, por exemplo, no vizinho
Sudoeste Africano (1).

Está ainda igualmente muito pouco estudada a Idade


do Ferro em Angola, mas sabemos ser de introdução muito
recente, isto é, possivelmente durante a segunda metade
do primeiro milénio da nossa era. Todavia, o processo de
n-
(1) V. W. E. Wendt, «Preliminary Report on an Archaeo-

log1caI Research Programme in South West Africa››, ‹‹Cimbebasia››,
s é . B-Vol. 2, n.° 1, 1972.
BREVE INTRODUÇÃO À PRÉ-HISTÓRIA DE ANGOLA 167

difusão da tecnologia do ferro em Angola é complexo,


com vários caminhos prováveis, de cronologia quiçá
diferente. Uma das vias de penetração da metalurgia deve
ter sido a bacia do Zambeze, pois ao longo de todo o vale
deste rio, para leste, aparecem fornos de fundição muito
semelhantes aos observados no interior de Angola (Alto
Zarnbeze), por Redinha, Vicente Martins, e outros. Os
fornos ,da região da Lufada, de Malange e do Moxico,
pertencem já 1 , outra tipologia, mais relacionada com o
Zaire, portanto, com outra área de influência e de possível
penetração. A tradição oral da Lufada pouco nos diz para
uma possivel datação: a maior parte das tribos aí-irma
terem sido os Bapendes a ensinar-lhes a tecnologia do ferro.
Profundamente diferente das culturas do ferro da
Lufada é a do Centro-Sul de Angola, de cerâmicas muito
menos elaboradas, e onde nos surgem os conhecidos
amuralhados totalmente inexistentes no Nordeste (aí,
ocorrem recintos defensivos definidos por um fosso ,
a utilização de fossos, aliás associados a muralhas, surge
também na área de Nova Lisboa, Cuíma, na importante
estação do Fé ti). Nas zonas de paisagem com inste/berge,
como em Nova Lisboa, zona do Cubal-Ganda, etc.,
aparecem tipos de fortificações originais, quase inacessí-
veis por vezes, instaladas no alto desses montes-ilhas,
tradição que ainda se manteve até ao nosso século, como
se documenta pela luta das «Pedras do Candumbo››,
nos arredores de Nova Lisboa, e de que viajantes e etnó-
grafos nos dão também testemunho. A Universidade
iniciou recentemente (1973) o estudo destes inrelberge
fortificados, na região da Ganda, tendo encetado esca-
vações no povoado fortificado da Quitavava, onde
existem cerca de 500 estruturas de fundos de cubara, asso-
ciadas a escórias de ferro, um fragmento de tubo de fole
de ferreiro (algaraviz), abundantes cerâmicas, lisas ou
com decoração incisa ou impressa, e numerosas peças
liticas, incluindo seixos afeiçoados de aspecto muito pi‹
mitivo por vezes. A 5 km para norte desta estação, o insal-
berg fortificado da Pumbala é uma verdadeira amostra da
variedade dos padrões decorativos das cerâmicas desta
cultura. Na área foi também estudada uma oficina de
fundição do ferro, estratigraficamente associada ao talhe
de peças de quartzo de tom geral rnicrolítico, embora
atípicas. É o conhecido «abrigo 1» da Ganda, ponto de
168 REVISTA DE GVIMARÃES

partida das prospecções e escavações realizadas nesta


importante região arqueológica, onde recentemente se
descobriu mais um amuralhado (Um ata, Serra do
Indongo) e um ire/Éferg fortificado, o do Lumbi (área da
Babaera). .,

É já clássico o pequeno artigo de A. de Almeida e


Camarate França sobre os recintos muralhados do Oci
(uma das maiores estações deste género conhecidas em
Angola, com um perímetro de cerca de 9 km.) ; esse
trabalho refere-se aos amuralhados de Galangue,
angola, etc., etc. Todavia, até hoje nenhum estudo pro-
fundo de escavação foi realizado nestes povoados, tra-
balho extremamente moroso e incompatível com espora-
dicas perrnanências nos locais. Assim, pouco sabemos
sobre um dos aspectos mais interessantes da Pré-história
de Angola. Mas estamos certos de que os futuros diri-
gentes deste novo país africano compreenderão a impor-
tância do estudo deste e doutros aspectos da sua história,
na formação de uma consciência nacional moderna.
Libertar um país da tradição colonial e reconstruir cienti-
ficamente a sua história (em grande medida recorrendo
à arqueologia pré-histórica), eis, a nosso ver, duas tare-
fas profundamente solidárias.

Novembro de 1974

I
BREVE INTRODUÇÃO À PRÉ-HISTÓRIA DE ANGOLA 169

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Fig. 2 -jazida paleolítica do Munlvino (Huíla) : um aƒpecío. «Aáfiddle
Stone Age» provável.

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Fig. 3 - Gruta 7 da Leça (Humpata), vista do exterior.


Fig. 4 -.Mina Munguanbø II (Lenda, NE Angola), uma jazida
lupembo-Lrbítolenre
Fig. 5 Bzface de tzpo aí/aeulensø da região da Huíla (Museu da Huíla,
Sá da Bandeira)
Fig. 6 - Pintura; do tecto de um dos abrzzgos da complexo do Tcbitundø-
-bula (Tá/Jitundo-/øulo mamã) -Pormenor (Víreis, Moçâmedes)
/-

Fig. 7 - Gravura do Tøbitundo-bula mulume ( Vires,


Moçâmederj
.
...
..
.
.

Fig. 8 -Pintura: esquemdticax do abrigo Í da :erra do Hôndio (Gania)


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A . r a s :
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finêaâaâazeâazâeâ

§âä:â=;àâ:â;-zm:

Fig. 9-.S'obreoi1›êncía de técnicas da I. da Pedra (Tsbitolense) : talhe


de ‹‹_pedemeíra.r›› e de ponta: de .reia por um artesão da Lenda
(NE Angola)
........ ..
............. . ........

.
.
.
.
....

Fig. 10 - Abrigo 1 da Ganda, uma oficína de fundição de ferro e do tal/Je


da pedra, vendo-.re uma sondagem Praticada por amadores.

J
.........

Fig. 11 -Àluralba: do Óøí (Vila Folgares, dixt. da Huíla)

Fig. 12-*Mum1/Ja: do E/éu (jan), vista: do exterior (Pormenor).


Repare-Je nas duo: ‹‹:eteíroJ››, no grande: pedras do boxe, e na dí:_po.rí;:ão
«em conto» dos pedro: superiores
Fig. 13¬ Pormenor do poooadofortzficado da Qzcitaoaoa (Ganda) , durante
as escaoacões de Agosto de 7973, vendo-se um núcleo de fundos de czzbaía
circulares.

Fig. 14 - Fragmeníor de vam: decorado: da Qzlitavava (Ganda) .


(Foto: do autor)
11

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