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bicho bicho

daniel grimoni
lorena medronho
Nosso tempo é especialista em criar ausências
Ailton Krenak

a questão, porém, é transformá-lo


Karl Marx

a esquerda a se construir terá de ser não apenas popular, plural


e decididamente antipatriarcal, mas também profundamente ecológica
Maristella Svampa

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um corpo bicho que morde as coisas
até escorrer delas seu segredo

entre ruínas
baforando o tempo

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outro você, você sabe

observo com a maior atenção uma coisa qualquer em movimento. constato


que possui vontade própria, intenções que não sou capaz de desvendar, um
pensamento outro. em sua naturalidade rejeita (como nunca antes vi) essa
máquina de moer naturalidades, e talvez nem se dê conta disso. penso em
fotografar ou anotar de alguma forma os gestos que faz no ambiente, guardá-la e
registrá-la, quando uma certeza me passa pela cabeça: assim que olhar para o lado
perderei essa coisa de vista, quem sabe para sempre. não poderá mais me ensinar
a irreverência ou o abandono. não poderá mais me garantir que estou aqui e
respirando. fico então amuado, muito quieto, acorrentado a esse contato radical,
assombro de mão única, e só consigo um movimento: recusar compreendê-la.
sabendo que outra alternativa significaria – para ao menos um de nós – o fim.

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performar o tempo

estou certa de que morrerei nas mãos de um bicho não bicho homem ou mulher
bicho bicho decerto que um boi ou uma vaca
estarei caminhando entre capins e ele - ou ela - estará:
nos observaremos por minutos talvez dias
e continuaremos por ali. não como quem perde tempo, mas como quem de fato está
no tempo
performando-o
com a beleza dos olhos

estou certa de que morrerei em silêncio. tranquila. sem medo.

que minha morte será serena


e que não haverá bicho homem ou mulher.
estou certa de que, como caeiro bem o disse: as flores hão de florir da mesma maneira
se bem que
talvez não. tudo vai depender do capim

espero que hajam ainda bois


e
peço perdão a todos que um dia matei

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jiboias

grandes sapos
laranjas, intercalando
pequenas vontades
a grandes prazeres
ter língua, jorge me diz, basta ter língua
não, laura interrompe
é preciso saber usá-la

e eles riem
compartilhar segredos
é como cuidar de jiboias

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cipó

eles estão cansados de guerra


fria têm armas nas mãos
decidem: vêm plantar o ferro,
ver a morte dar fruto.

cansados de travar batalha sem


sentir a morte que causam as suas
armas frias e finas

sem se gabar da
mais apurada finesse
enquanto
cravam
a ponta em corpos
cheios da
vida que desprezam:
até um dia
levantar na praça a estátua
de um ditador
como se
fosse homem santo:
uma estátua em mármore
branco tão
branca e santa quanto eles
acreditam ser. inda se acham
malandros,
apesar de desprezar
além da vida também a rua: o que inclui
os malandros.
a rua a vida e o gozo
(que têm os malandros).

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enfurnados em fortalezas
de design contemporâneo,
fazendo o possível
pra destruir tudo que está fora
(até mesmo
a reputação das cobras) e
agora querem voltar a sentir
de perto
a adrenalina da
miséria: pairar feito anjos
de mercúrio
sobre o resíduo de
barragens:
por cima da máquina
que bolaram pra engolir
coisas vivas.

embevecidos
em seus sonhos
de napoleão
parecem não
perceber a sombra
do cipó

que por cima de


seus delírios
se aproxima

veloz

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havia um rio aqui

minha pupila seca meus vácuos sangrando


o cheiro de álcool no altar vícios murchos tardios
os remédios a falta de apetite a competição
conversando com as metrópoles, diria

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estamos todos ainda lúcidos

certos dias até o tédio


acredite quando digo que as árvores pensam
que júpiter tem 70 luas (mas poucas
são realmente grandes)
amanhã nossos amigos lançam livros
não sei o interior de uma usina
só quero o que for desse mundo
e a flor do maracujá

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ah, se marx fosse latino…

ocaso no céu
vagando feito louco corre corre
venha ver ocaso no céu
e as ruínas sob nossos pés
nem doem tanto assim, daqui de cima
vejo marte corre venha ver
operacionalizar academizar sua morte

caso me pergunte
foi jorge quem tomou os cadarços
ligue para jorge diga-o
de uma vez
cinza não destoa de verde nem tente
dessa vez a cidade precisa saber

acaso no capim
verborragizando o etéreo coisas mais
bárbaro. berrando alto na superfície do teu suvaco
venha ver a sucata
logo acima da floresta
jorge, me diga, foi você? jorge?
foi você quem pôs lá?

daqui não escuto o capim


sintetize para mim
a cor das moedas

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terra selvagem

saber que na cidade nosso deserto


todas as formas trocam
no vento como
dunas

será que nesse ano acordar cedo pra


atravessar o sinal de trânsito
e fingir todas as coisas
não estão

ruindo

nosso sexo faminto de entrar na carne percorrer

& nosso corpo que grita de frente pra morte


feito criança berrando de susto:

voz desse absurdo estar vivo

tenho vontade de comer


uma goiaba
prédios de apartamento
se esforçam p/ não
arrebentar

por debaixo
se desvelando no tempo

seu corpo de animal

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camboatá

enquanto a pia continua


pingando
os dias passam
em eterno
cansaço
pigarro
caguete
vício
como
uma dessas árvores
que caem na floresta
quietas
mas tão

absolutamente
sonoras

talvez
elas devessem
ser mais

me diga, ruth,
quantos pensamentos cabem
num espaço
vazio?

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habitado

não existe
um
bicho apenas dentro
de mim
– é em quantidade
suficiente
para dar
conta de festa & fome
que sou habitado
– atravessado
entre chão e mistério:
plumas, patas, rastro

nem somente uma


árvore
um único
arbusto:

– são também de cipó


os meus braços,
enroscando-se
no que vive
com força, apego
de jiboia ao mundo
que é terra
– e a lâmina irreverente
da grama
rasteira
sou eu:
invisível

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e viva
verde
junto ao verde
todas elas juntas:
e quando falo não acredito
serem minhas
as palavras que digo: erra quem
pensa que basta
uma
pessoa para movimentar
um corpo
uma língua: se escutar verá como foi
preciso,
para a manifestação
mais simples, que cada voz
esbarrasse na outra & na outra & na
outra & na outra & na outra & esbarrasse na outra & na outra
& na outra & na outra & na outra & esbarrasse na outra & na
outra & na outra & na outra & na outra & esbarrasse na outra
& na outra & na outra & na outra &

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nela fazer caber a afronta

uma sacudidela e a gente vira esse negócio:


duas mãos de cinza desmaiado
aquilo que corrompe põe pra baixo da cabeça
todo este desperdício sintomático
sintomas como dito na tv
longe do que temos de fato
peste, indague ao buraco que bicho é este
que te açoitou
coito mal dado, feito poeira de cortiça toda gostosinha bonitinha
no tapete
o que eu quero mas não faço
é te contar que praga é sintoma
não causa
por isso chove

16
inventar nosso alimento

você implorando palavras enquanto olha os prédios o céu


as nuvens de fogo

todo caminho agora


mata fechada cidade
adentro exige
a fortaleza do corpo
parcerias amores rezas

você descendo os olhos o concreto do ponto


ainda morno
desses dias: verão
no trópico
sujeira dos sapatos
sua respiração
cansada
das coisas
que
escorrem
quando num lance

de olhar te
encontro
repito

hoje o que posso


com meu corpo o que tenho

as palmeiras
nos ensinam a ficar
de pé

17
transmutar fuligem
em transparência

não sei se você ouve

18
raiz

ser a planta,
que segue, em meio ao asfalto,
ser a planta,
que com delicadeza
vive a contrapor lógicas
questionar descartes
ser a planta

mas reconhecer que sempre


podemos abrir caminho
com dinamites

19
panfleto | escondam-se

em dias de sol, rios tendem a se encontrar com o mar


e quando rio se encontra com o mar é uma festa tamanha
acontecimento tão grande
que terra vira lama pedra vira areia e areia se esconde
leve como é

quando rio se encontra com o mar


as árvores correm em extasia
sobem aos céus as raízes, em sinal de apreço

as folhas retorcidas vão se abraçando


se organizando e reorganizando
tudo para que haja sol

os caranguejos e siris correm


e nós
panfletários ansiosos depressivos acneicos
sequer sorrimos

[o mangue chora nosso silêncio]

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índice

lorena medronho

performar o tempo 5
jiboias 6
te diria, no sofá 9
ah, se marx fosse latino… 11
camboatá 13
nela fazer caber a afronta 16
raiz 19
eis aqui um poema panfletário | escondam-se palavras 20

daniel grimoni

outro você, você sabe 4


cipó 7
estamos todos ainda lúcidos 10
terra selvagem 12
habitado 14
inventar nosso alimento 17

21
para estar ao lado

APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil - https://apiboficial.org/

SUBVERTA – @subvertamos

Afronte Nacional – @afrontenacional

Rede Brasileira de Justiça Ambiental

Sociedade do Bem Viver – @sociedadedobemviver

MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – @movimentosemterra

MTST - Movimento dos Trabalhadores sem Teto – @mtstbrasil

Marcha das Margaridas – @marchamargaridas

ANA - Articulação Nacional de Agroecologia – @ana_agroecologia

22
essa plaquete foi composta
em minion e garamond pro
em outubro de 2020
durante a pandemia de covid-19
enquanto a floresta amazônica e o pantanal
ardem em chamas como nunca antes:
um projeto: a terra urge

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