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Pró-Reitoria de Graduação
Curso de Letras
Trabalho de Conclusão de Curso

A LITERATURA INFANTIL PARA CRIANÇAS SURDAS

Autora: Michelle Araújo de Macêdo


Orientadora: Prof.ª Esp. Valícia Ferreira Gomes

Brasília - DF
2012

S
Brasília – DF
2012
MICHELLE ARAÚJO DE MACÊDO

A LITERATURA INFANTIL PARA CRIANÇAS SURDAS

Monografia apresentada ao Curso de


Graduação em Letras da Universidade
Católica de Brasília, como requisito para
obtenção parcial do Título de Licenciado em
Letras Português e suas respectivas
Literaturas.

Orientadora: Prof.ª Esp. Valícia Ferreira


Gomes

Brasília
2012
Monografia de autoria de Michelle Araújo de Macêdo, intitulada “A Literatura
Infantil Para Crianças Surdas”, apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de
Licenciado em Letras da Universidade Católica de Brasília, em 27 de novembro de 2012,
defendida e aprovada pela banca examinadora abaixo assinada:

_________________________________________________________
Prof.ª Esp. Valícia Ferreira Gomes
Orientadora
Curso de Letras - UCB

_________________________________________________________
Prof. Esp. Falk Soares Ramos Moreira
Examinador
Curso de Letras - UCB

_________________________________________________________
Prof. Dr. Maurício Lemos Izolan
Examinador
Curso de Letras - UCB

Brasília
2012
AGRADECIMENTO

Agradeço pela oportunidade de realizar este curso e poder conviver com colegas e
interessados na reflexão do processo de ensino-aprendizagem. Dedico este trabalho à minha
família, que tanto me tem apoiado na realização dos meus estudos e em todos os meus
projetos acadêmicos, profissionais e pessoais, a qual também entendeu as minhas
necessidades e compreendeu as minhas falhas.
Agradeço à professora Valícia, minha orientadora, que, muito mais que me orientar,
auxiliou, apoiou e incentivou, tendo comigo paciência, dedicação, disponibilidade,
compreensão, carinho e preocupação, transformando as dificuldades em superação. A você, o
meu MUITO OBRIGADO. Também agradeço aos queridos amigos e professores da UCB
que contribuíram com a minha formação e também colaboraram direta ou indiretamente com
a realização deste trabalho.

Muito obrigada a todos vocês!


O Balé das Mãos

Em meio a mil palavras


Um único gesto molda toda a expressão do sentimento
O corpo se expressa com desenvoltura
E as mãos seguem graciosamente cada movimento
Ouvidos trocados pelos olhos em uma escuta atenciosa
E o balé das mãos segue incansável e incessante.

Alexis Pier Aguayo


RESUMO

MACÊDO. Michelle Araújo. A Literatura Infantil para Crianças Surdas. 2012. 40 p.


Trabalho de Conclusão do Curso de Graduação em Letras Português, pela Universidade
Católica de Brasília – UCB, Brasília, 2012.

A presente monografia é uma pesquisa bibliográfica que demonstra os diferentes aspectos no


processo de ensino da literatura infantil para crianças surdas e o pouco contato com o texto
literário na formação de crianças surdas leitoras. E tem como propósito averiguar os métodos
inovadores utilizados para a prática de inserção das obras de literatura infantil para crianças
surdas, verificar e analisar o uso da língua de sinais e os recursos expressivos utilizados
atualmente. Este trabalho confirma a relação que existe entre as versões clássicas de
“Cinderela” e do “Patinho feio” e as versões para cultura surda das mesmas obras (“Cinderela
surda” e “Patinho surdo”); a relação foi construída por meio da aplicação das idéias de
Saussure e da interface dele com a semiótica. Comprova-se, por meio das análises desses
clássicos literários infantis adaptados para crianças surdas, que há escassos estudos a respeito
das complexidades das relações entre a criança surda e a literatura surda; e acerca das
discussões relativas ao ensino da literatura infantil para criança surda.

Palavras-chave: Literatura. Cultura. Linguagem. Crianças Surdas. Adaptação.


ABSTRACT

MACÊDO. Michelle Araújo. The Children's Literature For Deaf Children. 2012. p. 40.
Undergraduate course conclusion work in Portuguese Letters, Catholic University of Brasília
– UCB, Brasília, 2012.

This monograph is a bibliographical research that demonstrates various aspects in the process
of teaching children’s literature for deaf child and little contact with the literary text for
training deaf children for to read it. The present study aims to investigate the innovative
methods used for insertion of works of children’s literature for deaf children, verify and
analyze the use of sign language and expressive resources used currently. This work confirms
the relationship that exists between the classical versions of “Cinderella” and “The ugly
duckling” and the versions for Deaf culture of same works (“Duckling deaf” and “Deaf
Cinderella”). This relationship is checked by applying the ideas of Saussure and his interface
with the semiotics. It’s proven, through these analyses of the children’s literary classics for
deaf children, that there are few studies about the complexities of the relationships between
the deaf child and deaf literature, and the discussions relating to the teaching of children's
literature for deaf child.

Keywords: Literature. Culture. Language. Deaf Children. Adaptation.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO................................................................................................9

2 O QUE É LITERATURA INFANTIL?.......................................................11

2.1 O PERCURSO HISTÓRICO DA LITERATURA INFANTIL


ESTRANGEIRA.....................................................................................................................12

2.2 A PRODUÇÃO LITERÁRIA INFANTIL NO BRASIL...............................................12

2.3 A IMPORTÂNCIA DA LITERATURA INFANTIL NA FORMAÇÃO


EDUCACIONAL DA CRIANÇA..........................................................................................15

3 CULTURA E IDENTIDADE SURDA.........................................................18

3.1 LÍNGUA, LINGUAGEM NA CULTURA SURDA.......................................................20

3.2 INTERFACE ENTRE A SEMÍOTICA E A TEORIA SAUSSUREANA...................22

4 A LÍNGUA DE SINAIS NA CULTURA SURDA.......................................25

4.1 A LITERATURA SURDA E AS SUAS ESPECIFICIDADES PARA OS


SURDOS..................................................................................................................................27

4.2 A LITERATURA INFANTIL PARA CRIANÇA SURDA...........................................29

5 METODOLOGIA...........................................................................................32

5.1 TIPO DE PESQUISA.......................................................................................................33

5.2 ANÁLISE DAS OBRAS LITERÁRIAS INFANTIS PARA CRIANÇA


SURDA.....................................................................................................................................34

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................38

7 REFERÊNCIAS.............................................................................................39
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1 INTRODUÇÃO

A literatura infantil contribui para a formação do senso crítico da criança surda, além
de levar à reflexão, e para a formação do indivíduo leitor e de um desempenho questionador,
esse leva a criança leitora a refletir a respeito dos acontecimentos. A literatura é capaz de
levar a criança a romper com os seus horizontes de expectativas, conduzindo à reflexão por
meio de obras conscientes e por intermédio da imaginação infantil. Porém, a literatura surda
tem diferenças da tradição de ouvintes como literatura europeia e brasileira, a culturas que
transmitem suas histórias orais e presenciais. Ela se manifesta por meio de textos, de livros,
imagens figurativas, ilustrações, filmes, cartazes, CDs, DVDs, recursos visuais - ou com o
encantamento de dramatizações em peças teatrais, ou com histórias contadas em sinais.
Segundo Strobel (2008) “a literatura se multiplica em diferentes gêneros: poesia, histórias de
surdos, piadas, literatura infantil, clássicos, fábulas, contos, romances, lendas e outras
manifestações culturais” (STROBEL, 2008, p. 61).
Portanto, a Literatura Surda atual surgiu com inovações tecnológicas e a partir do
reconhecimento da Língua Brasileira de Sinais, por meio de gravação de histórias de CDs e
DVDs, de textos que apresentam imagens, livros, fotos ou legendas em Português, que
possibilitaram formas visuais de registro dos sinais. Entretanto, no presente momento, a
cultura surda e a literatura estão se desenvolvendo muito devido aos recursos inovadores e
tecnológicos.
Esta pesquisa foi organizada em quatro capítulos e, no decorrer da mesma, é
apresentado o percurso da literatura infantil; logo depois, são desvendados como a criança
surda entra em contato como o texto literário, qual a relação da cultura surda com a literatura
infantil, os meios inovadores da literatura surda infantil, quais as inovações tecnológicas a
partir do reconhecimento da Língua Brasileira de Sinais - podendo ser por meio de gravação
de histórias de CDs e DVDs, de textos que apresentam imagens, livros, fotos ou legendas em
Português, que possibilitaram formas visuais de registro dos sinais; são analisados também o
uso da língua de sinais e os recursos expressivos utilizados ultimamente.
Sendo assim, a pesquisa teve como objetivo principal demonstrar a relação que existe
entre as ideias defendidas por Ferdinand Saussure e a interface da semiótica, e a adaptação
das versões clássicas de “Cinderela” e do “Patinho Feio”, ambas foram adaptadas para a
Cultura Surda, resultando nessas versões denominadas “Cinderela Surda” e “Patinho Surdo”.
A diferença destas se encontra nas ilustrações dos livros impressos e na adaptação para
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crianças surdas, demonstrando assim os traços da Cultura Surda, e na inserção de elementos


da cultura e identidade surdas. Essas releituras inéditas das histórias são acompanhadas com a
escrita de sinais, ilustrações e uma versão em português.
Comprovando por meio de análises de clássicos literários infantis para crianças surdas
as complexidades das relações entre a criança surda e a literatura, neste trabalho, discutem-se
questões a respeito do ensino da literatura infantil para crianças surdas. Assim, foram
analisados dois clássicos da literatura infantil, livros que foram adaptados como “Cinderela
Surda” e “Patinho Surdo”, as quais confirmam a evolução da Cultura Surda. Deste modo, a
Cultura Surda vem se adaptando aos seus artefatos, e a literatura surda também vem
progredindo.
A metodologia utilizada para esse estudo foi de uma pesquisa bibliográfica, sendo o
referencial teórico organizado em quatro capítulos. Os instrumentos de pesquisa utilizados
tiveram como base as teorias de Saussure e a interface da semiótica, aplicadas nas obras já
citadas da Literatura Infantil para crianças surdas.
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2 O QUE É LITERATURA INFANTIL?

A literatura infantil tem como possibilidade a formação de leitores e escritores


competentes. A literatura é um possível caminho para a criança desenvolver a imaginação,
emoções e sentimentos de forma prazerosa e significativa. A mesma tem o objetivo de
propiciar uma visão da realidade, diversão e lazer. A autêntica literatura infantil não deve ser
feita essencialmente com a finalidade pedagógica, didática ou para incentivar hábito de
leitura. O papel que a literatura exerce é um espaço de ampla significação aberta às emoções,
ao sonho e à imaginação, favorecendo também a construção de conceitos, como os de cultura,
civilização e tempo histórico durante a infância. É importante ressaltar que para
Cademartori(1994, p.18):
A literatura infantil, por sua vez propicia uma reorganização das percepções do
mundo e, desse modo, possibilita uma nova ordenação das experienciais da criança.
A convivência com textos literários provoca a formação de novos padrões e o
desenvolvimento do senso critico. (CADEMARTORI, 1994, p. 18).

Segundo a afirmação acima, a Literatura Infantil e os contos de fadas podem ser


decisivos para a formação da criança em relação a si mesma e ao mundo à sua volta. A
literatura infantil serve para reforçar os laços de desenvolvimento e descobertas da criança.
Elas aprendem desde cedo, que a linguagem dos livros tem suas próprias combinações, e que
as palavras podem criar mundos imaginários, os quais contribuem para o desenvolvimento
emocional e cognitivo da criança; e tais são os resultados que apresentam a literatura para o
desenvolvimento da linguagem e criatividade da criança.
A literatura infantil contribui para a formação do senso crítico da criança, além de
levá-la à reflexão e para a formação da criança, enquanto ser humano, para que a mesma
tenha um comportamento questionador e seja levada a refletir a respeito dos fatos. Como diz
Cademartori (1994, p. 73): “Através da história, a dimensão simbólica da linguagem é
experimentada assim com a sua conjunção com o imaginário e o real”.
Deste modo, podemos considerar que a leitura é uma ferramenta ímpar na aquisição da
autonomia crítica; autonomia esta que possibilita visões ampliadas de passado, presente e
futuro. Essa autonomia abraça conceitos além das linguagens, figuras, significados e
significantes, e entrega para a criança o conhecimento. Sendo assim, os clássicos sofreram
adaptações, e os contos folclóricos serviram de inspiração para os contos de fadas.
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2.1 O PERCURSO HISTÓRICO DA LITERATURA INFANTIL ESTRANGEIRA.

Para entender melhor a literatura infantil, precisamos descrever o percurso histórico.


Como Lajolo e Zilberman afirmaram, a expressão “literatura” tem como significado básico “a
arte de escrever” e sua origem remonta ao latim. Porém, a expressão “literatura infantil”,
apareceu no continente europeu em meados do século XVIII, com Charles Perrault, que não
foi apenas responsável pelas primeiras obras literárias infantis, mas também pelos contos de
fadas que encantaram crianças e adultos daquela época.
As primeiras obras publicadas visando o público infantil aparecem no mercado
livreiro na primeira metade do século XVIII, antes disto apenas durante classicismo
francês, no século XVII, foram escritas histórias que vieram a ser englobada como
literatura também apropriada à infância (LAJOLO E ZILBERMAN 1991, p. 15).

Os contos têm como objetivo trazer uma moral que frequentemente gera lembranças
inconscientes na criança; e é a partir daí que estes contos de fadas ficam conhecidos por elas.
Perrault se tornou também grande divulgador das histórias tradicionais folclóricas européias
daquela época. Esse escritor relatou a cultura do seu povo por meio dos contos de fada, e, ao
mesmo tempo, proporcionou uma reflexão popular na época, apresentando então um novo
olhar. Os contos de fada de Perrault são conhecidos até hoje. São exemplos de seu trabalho a
“Cinderela” e o “Chapeuzinho Vermelho”. Pode-se concluir que Perrault foi o primeiro
criador de contos, apresentando assim uma nova literatura voltada para o imaginário infantil,
por meio da qual ofereceu ao mundo elementos populares que proporcionaram um
enriquecimento cultural das tradições, gerando dessa forma uma ambientação propícia para a
ligação do mundo infantil com o seu imaginário.
No século XIX, surgem na Europa Luís Jacob e Guilherme Carlos Grimm, mais
conhecidos como Irmãos Grimm. Os Irmãos Grimm escreveram os contos baseados na
memória popular de seu povo (como narrativas de lendas, contos folclóricos e histórias da
Alemanha, todas conservadas por tradição oral). Seus contos agradavam tanto os adultos
como as crianças. Com a influência de Hans Christian Andersen - que escreveu diversos tipos
de literatura, dedicando-se a obras literárias voltadas para crianças e jovens adolescentes - os
seus contos encantaram a todos de tal forma que percorrem todo o mundo desde o século XIX
até os tempos atuais.
Os contos literários de Andersen relatam a sua vida e de outras pessoas no seu
contexto real. Sua literatura é dotada de realismo, pois ele mostra perfeitamente os obstáculos
que a vida lhe impõe. A grande diferença dos contos dos Irmãos Grimm para os de Andersen
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estava no fato de que os contos de Andersen além de possuírem fantasia estavam ligados ao
cotidiano. Algumas obras fizeram muito sucesso e são conhecidas até hoje. Ligia Cademartori
(1994) afirma que:
Questões relativas á obra de Charles Perrault, frequentemente apontando como os
iniciadores da literatura infantil vinculam-se a pontos básicos da questão da natureza
da literatura infantil como, por exemplo, a preocupação com o didático e a relação
com o popular (CADEMARTORI, 1994, p. 34).

Conforme a autora, o encontro didático entre a literatura infantil e o conhecimento


popular traz a oportunidade de ampliar, transformar ou enriquecer sua própria experiência de
vida. Nesse sentido, a Literatura apresenta-se não só como veículo de manifestação de cultura,
mas também de ideologias. Hans Christian Andersen retratava em suas obras o cultivo dos
valores de seus antepassados e seguia a linhagem dos irmãos Grimm, porém com obras mais
amadurecidas, já que começara a escrevê-las vinte anos após os irmãos Grimm.

2.2 A PRODUÇÃO LITERÁRIA INFANTIL NO BRASIL

No Brasil, a literatura infantil teve as primeiras transformações no final do século XIX,


com o aparecimento dos primeiros livros para crianças escritos e publicados por brasileiros
como Monteiro Lobato, que dessa forma começou sua carreira de escritor. Lobato produziu
com seus personagens uma nova visão para a história literária em seu período. Ele teve uma
preocupação direcionada à educação e à cultura das crianças. Ligia Cademartori (1994) afirma
que por essas razões, a literatura infantil brasileira viveu por muito tempo à sombra de
Lobato.
Com a chegada do movimento modernista brasileiro, Monteiro Lobato foi um dos
mais influentes escritores brasileiro do século XX, quebrando padrões europeus
literários, pois os seus livros esboçavam as questões sociais, trazendo um novo olhar
crítico para literatura infantil. Desta maneira, seus livros trazem um olhar
nacionalista dos problemas da sociedade brasileira com denúncias literária que
escandalizou o Brasil naquela época. (CADEMARTORI, 1994)

A literatura para Lobato tinha uma finalidade social, pois se constituía na linguagem o
instrumento mais poderoso e expressivo na vida da criança, por ser um meio de comunicação
e consequentemente um meio de socialização. Para Ligia Cademartori (1994, p. 51):
Monteiro Lobato [...] Estimula o leitor a ver a realidade através de conceitos
próprios. Apresenta uma interpretação da realidade nacional nos seus aspectos
social, político, econômico, cultural, mais deixa, sempre, espaço para a interlocução
com o destinatário. A discordância é prevista. (CADEMARTORI, 1994. p.51).

As suas personagens mostram uma lição de moral na qual a liberdade é de grande


valor. E, no momento em que a criança começa a ler o livro, ela constrói reflexões sobre o
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regime daquela época. Lobato foi um importante educador intuitivo e fez com que as pessoas
entendessem as coisas por meio da alegria. Nos seus livros, ele apoia questões morais
construtivas para a formação da criança, pois, quando a literatura desperta bons sentimentos,
isso gera boas consequências com o tempo, conduzindo a criança, por exemplo, a fazer boas
ações, e despertando nela o amor pela justiça, pela verdade e pela imaginação.
Monteiro Lobato é considerado o primeiro escritor brasileiro a se preocupar com a
literatura infantil, dando um real valor às crianças. Novaes (1973, p. 163) diz a seguinte frase
a respeito da: “[...] literatura infantil brasileira de nossos tempos: aventuras em contato com
a natureza; travessuras na cidade; fantasia e tecnicismo; espiritualismo”.
Mostram-se por meio dessa citação as novas características da literatura brasileira
resultantes da obra de Lobato. Uma dessas características era a maneira de misturar o
imaginário com o real, mostrando como a criança costuma fazer em sua vida. Nesse aspecto, é
possível a convivência dos dois lados, o imaginário e o real. Atualmente suas obras são
readaptadas, continuam sendo apreciadas e respeitadas por todos, como por exemplo, o “Sítio
do Pica-Pau Amarelo”.
A literatura, assim como a nossa língua e muitas outras coisas, não é estática e por isso
sofre mudanças ao longo do tempo. É preciso que se saiba lidar com essas mudanças, sem
deixar a literatura desaparecer. A modernidade sempre vai chegar, mas os livros, as histórias
fantásticas, a viagem pelo mundo imaginário não podem ser esquecidos. Pois não há
tecnologia que substitua a imaginação e o prazer de se deleitar diante de um livro, de uma
história.
Enfim, conclui-se que em cada país foram surgindo aos poucos propostas
diferenciadas e ao mesmo tempo modernas em relação às obras literárias infantis. No Brasil,
após a literatura revolucionaria de Lobato, surgiram outros autores com obras literárias
infantis pertinentes. A literatura infantil não tem apenas o objetivo de ensinar e informar a
criança, mas também é utilizada para fazer insurgir uma nova visão da realidade. Depois
desse percurso literário, à procura de uma literatura mais adequada para a infância, podem-se
observar duas tendências próximas daquelas que já influenciavam a leitura dos clássicos pelas
crianças: fizeram-se adaptações e do folclore nasceu os contos de fada, voltados
especificamente para a criança.
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2.3 A IMPORTÂNCIA DA LITERATURA INFANTIL NA FORMAÇÃO


EDUCACIONAL DA CRIANÇA.

Na maioria das vezes, encontramo-nos com os caminhos da leitura motivados por


diversas situações: necessidade, prazer, obrigação, divertimento ou somente o passar do
tempo. Nesta expectativa, podemos garantir que a leitura é essencial para a construção da
personalidade e para o desenvolvimento intelectual, ético e estético da criança como ser
humano.
Se considerarmos que a escola tem como um de seus papéis fundamentais a formação
da personalidade da criança, a literatura é de extrema importância para auxiliar nessa
construção, pois nela a criança ocupa o espaço privilegiado de acesso à leitura. É
imprescindível que se crie possibilidades para o desenvolvimento do gosto pela literatura por
intermédio de livros significativos. Por meio da literatura, a criança desperta uma nova
relação com diferentes sentimentos e visões de mundo, adquirindo, assim, condições para o
desenvolvimento intelectual e para a formação de princípios individuais para medir e
codificar os próprios sentimentos e ações.
A obra infantil necessita ser simplificada para um fácil entendimento para a criança
ler e entender. Além disso, e acima de tudo, precisa ser interessante e estimular a criança. As
obras literárias apresentam um significado educativo e delicado, que é transmitir valores. A
literatura infantil leva a criança à descoberta do mundo, onde sonhos e realidade se
incorporam, onde a realidade e a fantasia estão intimamente ligadas, fazendo a criança viajar,
descobrir e atuar num mundo mágico, podendo modificar a realidade, seja ela boa ou ruim.
Cademartori (1994, p. 23), afirma que:
[...] a literatura infantil se configura não só como instrumento de formação
conceitual, mas também de emancipação da manipulação da sociedade. Se a
dependência infantil e a ausência de um padrão inato de comportamento são
questões que se interpenetram, configurando a posição da criança na relação com o
adulto, a literatura surge como um meio de superação da dependência e da carência
por possibilitar a reformulação de conceitos e a autonomia do pensamento.
(CADEMARTORI, 1994, p.23).

O trabalho com literatura infantil tem como objetivo formar a criança para que:
compreenda aquilo que lê; consiga transmitir aos outros os elementos de uma história por
meio de ilustrações; possa transformar um texto numa narrativa prazerosa para quem ouve;
aprenda a ler o que não está escrito; e entenda os vários sentidos a ser atribuídos a um texto
imaginando e criando a partir desta experiência. Coelho (2000, p. 9) assegura que:
Literatura infantil é, antes de tudo, literatura; ou melhor, á arte: fenômeno de
criatividade que representa o mundo, o homem, a vida, através da palavra. Funde os
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sonhos e a vida prática, o imaginário e o real, os ideais e sua possível/impossível


realização. (COELHO, 2000, p. 9).

A literatura é um possível caminho para a criança desenvolver a imaginação, as


emoções e os sentimentos de forma prazerosa e significativa. Para descrever a história, é
preciso saber como interpretá-la. E é por meio dela que as crianças aprendem nomes, sons,
músicas e se inserem na cultura. Segundo Coelho (2000, p. 15):
[...] a literatura, e em especial a infantil, tem uma tarefa fundamental a cumprir nesta
sociedade em transformação: a de servir como agente de formação, seja no
espontâneo convívio leitor livro, seja no diálogo leitor texto estimulado pela escola
(COELHO, 2000, p. 15).

A autora chama a atenção para a importância que a literatura exerce na formação do


ser. É importante considerar que a literatura tem um grande potencial na tarefa de formar o
leitor. De acordo com a autora, as obras infantis são as que mais encantam as crianças. Mas é
importante proporcionar a elas diferentes experiências literárias para que criem um repertório
amplo.
Os livros são um ótimo caminho para ampliar o universo cultural das crianças, porque
permitem entrar em contato com situações desconhecidas. Como afirma Cademartori (1994,
p. 66):
No entanto, a literatura tem um papel no desenvolvimento linguístico e intelectual
do homem e, desse modo articula-se com interesses que a escola propala com seus,
cabe à tentativa de explicitar qual poderia ser a relação da literatura com a criança a
partir do inicio da escolaridade. (CADEMARTORI, 1994, p.66).

As historias infantis são caminhos que devem ser explorados pelo educador de
maneira a não desperdiçá-la apenas como conteúdo para a aprendizagem. Há de se considerar
as características do universo infantil para ajudar em seu desenvolvimento. As histórias
devem suscitar nas crianças momentos de prazer onde serão experimentadas novas sensações.
É pertinente que o professor introduza na sua prática pedagógica a literatura infantil e
que a mesma disponha de informação que venha a contribuir para o desenvolvimento da
criança, estimulando a criança a buscar diferentes caminhos para as resoluções de
dificuldades. Afinal, por meio da literatura, a criança terá a oportunidade de desenvolver seu
potencial intelectual e cognitivo, ampliando, ao mesmo tempo, a sua visão das regras sociais e
a cultura da sociedade.
A leitura é um meio de propagação de ideologias que, muitas vezes, é responsável pela
mudança social de cada criança. Abramovich (1997, p. 143) confirma que:
Ao ler uma história a criança também desenvolve todo um potencial crítico. A partir
daí ela pode pensar, duvidar, se perguntar, questionar... Pode se sentir inquietada,
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cutucada, querendo saber mais e melhor ou percebendo que se pode mudar de


opinião... E isso não sendo feito uma vez ao ano... Mas fazendo parte da rotina
escolar, sendo sistematizado, sempre presente – o que não significa trabalhar em
cima dum esquema rígido e apenas repetitivo. (ABRAMOVICH, 1997, p.143).

Com a introdução da literatura no âmbito escolar, temos um instrumento que irá


auxiliar as normas e os valores. A literatura infantil proporciona uma lição de vida de forma
imaginária, contribuindo para a formação da criança no processo de construção da sua
personalidade. A literatura é um dos meios mais eficazes para o desenvolvimento sistemático
no trabalho da linguagem e na formação da criança, pois utilizar a literatura infantil é
trabalhar com a criança e sua personalidade. A mesma enriquece a imaginação da criança e
oferece condições de mostrar uma saída do comodismo para o uso do raciocínio crítico do
imaginário. Essas características são de extrema importância para a formação da
personalidade da criança e irão refletir no seu futuro.
A literatura é um instrumento que permite ao professor tanto ensinar ao aluno a leitura
correta, como também conduzir uma interação social com a criança, favorecendo a formação
de um leitor crítico. Neste sentido, quanto mais cedo a criança tiver contato com os livros,
mais cedo ela perceberá o prazer que a leitura produz e maior será a probabilidade dela se
tornar um adulto leitor. Assim, é por meio da leitura que a criança adquire um caráter crítico-
reflexivo, que será extremamente relevante à sua formação cognitiva.
A literatura infantil oferece a possibilidade de as crianças trabalharem suas emoções,
pois, ao mesmo tempo em que ela favorece a elaboração de questionamentos no mundo da
fantasia, ela coloca também a criança em contato com elementos ou sentimentos reais,
libertando-a por dar vazão ao seu imaginário. Logo, o ensino da literatura infantil pode
promover a formação do leitor, ajudando-o a trabalhar com a imaginação e,
consequentemente, constituindo-o como um ser no mundo real.
Quando a criança ouve ou lê uma história e ela tem a capacidade de comentar, indagar,
duvidar ou discutir sobre ela, realiza-se então uma interação verbal, que neste caso, vem ao
encontro das noções de linguagem, da comparação das ideias e dos pensamentos críticos em
relação aos textos. É muito importante que a literatura infantil permaneça inserida no contexto
de ensino e aprendizagem, para que seja despertado na criança tanto o mundo mágico da
criatividade, como o hábito de leitura, que é extremamente importante. Além do ensino
didático e dos valores morais, a literatura infantil desperta prazer, emoção e pensamento
crítico.
Pode-se concluir que a produção de uma literatura infantil deve ser de fácil
entendimento e agradável para as crianças, sendo necessário o condimento da alegria, da
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mobilidade, da surpresa, do interesse, em face das situações ou desfecho imprevisíveis em que


ocasione na história um inicio, meio e o fim. O convívio com o texto literário, no processo de
formação, possibilita ao aluno o conhecimento de si mesmo, do espaço que o circunda e da
vida social.

3 CULTURA E IDENTIDADE SURDA

A cultura surda é toda voltada para o visual. As comunidades surdas manifestam a


descrição de sua cultura no território local, onde habitam ou se encontram. Os surdos, no
convívio com outros surdos e por meio de processos sociais, formam suas ideologias. A
cultura surda tem sua identidade e sua singularidade.
A Cultura Surda é o jeito de o sujeito surdo entender o mundo e de modificá-lo a fim
de torná-lo acessível e habitável ajustando-o com as suas percepções visuais, que
contribuem para a definição das identidades surdas e das comunidades surdas. Isto
significa que abrange a língua, as ideias, as crenças, os costumes e os hábitos dos
surdos. (STROBEL, 2009, p. 27).

Para Strobel (2009), existem diferentes artefatos que contribuem para a formação da
cultura surda; um dos principais é o linguístico, que inclui a literatura surda. A participação
dos sujeitos surdos na sociedade é dificultada pela própria, quando esta carece de recursos
visuais que, por sua vez, promoveriam a acessibilidade em variados espaços para estes
sujeitos. Dessa maneira, a cultura surda é definida como:
Antes a história dos povos surdos não era reconhecida, os sujeitos surdos eram
vistos como deficiente, anormais, doentes ou marginais. Somente depois do
reconhecimento da língua brasileira de sinais, das identidades surdas e, na percepção
da construção de subjetividades, motivada pelos Estudos Culturais, é que
começaram ganhar força as consciências político-culturais. Em determinado
momentos, quando a luta por posições de poder ou pela imposição de idéias revela o
manifesto político cultural dos povos surdos. (STROBEL, 2009, p. 100).

A identidade pode ser chamada tanto pelo próprio indivíduo, como pelo grupo do qual
faz parte. A palavra utilizada no momento encontra-se no plural: “identidades”. Portanto,
temos várias identidades, a depender do papel que desempenhamos no grupo que estamos
inseridos. Para uma justificativa mais detalhada cito aqui Strobel (2009, p.105):
A história cultural dos surdos é longa e complexa, existe há muitos anos e contém
inúmeras formas de se comunicar, ou seja, através da língua de sinais, desenhos,
expressões faciais, corporais, imagens visuais, artes, movimentos de lutas, criações,
pedagogias... (STROBEL, 2009, p. 105).

Foi a partir destas comprovações, que se desenvolveu a análise do processo de busca


da comunidade surda por sua própria identidade e por respeito a sua cultura. A partir do
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discurso da escritora surda Strobel (2008), ela deixa clara a importância da língua de sinais
como uma das principais marcas da identidade surda. Strobel (2008, p. 59) afirma que:
A Cultura Surda retrata a vida que os surdos levam suas conversas diárias, as lições
que ensinam entre si, suas artes, seus desempenhos e seus mitos compartilhados, seu
jeito de mudar o mundo, de entendê-lo e de viver nele. (STROBEL, 2008, p. 59).

As identidades continuam em constante e permanente construção e buscam determinar


singularidade e estabelecer fronteiras identificatórias entre o sujeito e o outro, para conseguir
o reconhecimento dos demais membros do grupo social. Dessa forma, é nas relações de tempo
e de espaço que os outros diferentes se encontram e se constituem enquanto sujeitos. Na tese
de pós-graduação “Literatura Surda: produções culturais de surdos em Línguas de Sinais”,
Mourão (2011, p. 45) cita que:
Os artefatos culturais criam representações sobre como é o surdo. A cultura que
caracteriza um local, onde convivem os sujeitos, é construída nos processos sociais e
práticas discursivas, através dos artefatos culturais. As manifestações das tradições
culturais, dos valores e das artes de diferentes grupos correm o risco de desaparecer
com o tempo, mas para que não desapareçam, essas manifestações são
frequentemente modificadas, hibridizadas, tendo a possibilidade de circular em
muitos locais. (MOURÃO, 2011, p. 45).

Podemos relacionar a cultura surda com a Literatura Surda, pois a mesma faz parte da
tradição surda. Segundo Strobel (2009, p, 61):
A literatura se multiplica em diferentes gêneros: poesia, história de surdos, piadas,
literatura infantil, clássicos, fábulas, contos romances, lendas e outras manifestações
culturais. Karnopp faz referência a respeito desse artefato cultural: “[...] utilizamos a
expressões “Literatura Surda” para histórias que têm a língua de sinais, a questão da
identidade e da cultura surda presente na narrativa [...]”. (STROBEL, 2009, p, 61).

Segundo Skliar (2011, p.11) a surdez constitui uma diferença a ser politicamente
reconhecida; a surdez é uma experiência visual; a surdez é uma identidade múltipla ou
multifacetada; e, finalmente, a surdez está localizada dentro do discurso sobre a deficiência.
Para Skliar, existe a possibilidade de estar sempre buscando e propondo conhecer a
apropriação das potencialidades do sujeito surdo, voltando-se para a análise dos discursos
acerca da surdez no contexto político, social e escolar exclusivistas, sem, entretanto, fugir da
importância desse sujeito como agente de transformação, como um todo no meio social.
Outra questão fundamental para a compreensão do sujeito surdo está focalizada fora
dele, no ambiente externo propriamente dito; ali é que ocorre todo o processo de
desmistificação acerca de sua capacidade de aprendizagem, pois a surdez é uma questão de
linguagem; ela está, portanto, fora do sujeito. A cultura surda, a experiência visual e o uso da
língua de sinais sustentam o encontro e a vida da comunidade surda.
20

Qualquer que seja a linguagem, ela faz parte e é do uso comum entre determinados
grupos sociais; eles apropriam-se desta para realizar entre si as mais variadas formas de trocas
de informações. Pelo ponto de vista da surdez, ela pode e deve ser superada por meio desse
instrumento de comunicação adotado: com o uso da língua de sinais e procurando
compreender como se dão essas trocas.
A Língua Brasileira de Sinais é usada pela comunidade surda no Brasil e há estudos
que demonstram os diferentes níveis linguísticos (fonologia, morfologia, sintaxe) do uso e do
funcionamento desta língua. Portanto, não se trata de mímica ou gestos improvisados, como
certos ouvintes às vezes pensam. A literatura sobre a linguística e a língua de sinais, no Brasil
e no mundo, estabelece uma equivalência entre as línguas orais e as línguas de sinais. Quadros
e Karnopp (2004, p. 16) citam que:
(...) a linguagem é restringida por determinados princípios que fazem partem do
conhecimento humano e determinam a produção oral ou viso-espacial, dependendo
da modalidade das línguas (faladas ou sinalizadas). (QUADROS & KARNOPP,
2004, p.16).

Este território surdo é algo que completa a vida para o surdo: não é focalizando
somente o surdo, mas é algo que acontece pela comunicação, aquilo que provoca em cada um
e no outro, que recebe a informação, as palavras completas e os significados. Os corpos agem
como consequência de sentimentos, de compreensões, de entendimentos, de conhecimentos;
enfim, eles atuam como a fala. Sobre a questão de significante/significado e signo, citarei,
mais a frente, Ferdinand de Saussure para um fácil entendimento.

3.1 LÍNGUA, LINGUAGEM NA CULTURA SURDA.

A definição de língua para Saussure é composta por um conjunto dos signos


linguísticos. Os signos são formados pela união do significante com o significado. Podemos
falar qualquer língua oral-auditiva, fazer o sinal em qualquer língua espaço-visual, escrever
em português, inglês ou outra língua oral-auditiva, fazer a datilologia com o alfabeto manual,
escrever em Sign Writing1.

1
Sign Writing: A palavra em inglês, “SignWriting” significa “Escrita de Sinais” no Brasil.
O SignWriting é um sistema de escrita para escrever línguas de sinais. Essa escrita expressa as configurações de
mãos, os movimentos, as expressões faciais e os pontos de articulação das línguas de sinais. Cada língua de
sinais vai adaptá-lo a sua própria ortografia. (Disponível em: http://escritadesinais.wordpress.com/2010/08/16/o-
que-e-signwriting/).
21

Saussure, conhecido como o pai da Linguística moderna, descreveu a linguagem


humana como “língua”, produto social constituído por uma comunidade linguística, e como
“fala”, produto do uso da língua por um sujeito - portanto, também individual. O conceito de
evolução da língua, como fato social, transcende o sujeito. Dessa forma, Saussure (2006, p.
90) argumenta que uma língua é radicalmente incapaz de se defender dos fatores que
deslocam, de minuto a minuto, a relação entre significado e significante. É uma das
consequências da arbitrariedade do signo.
O significado refere-se à ideia, ao conceito mental ou descrito. O significante é o
conceito e o significado é a representação mental que temos, ou seja, essa representação é
obtida por meio de sons, nas línguas orais; e de imagens, nas línguas de sinais. Saussure
(2006) define que:
A língua é um sistema de signos que exprimem idéias, e é comparável, por isso, á
escrita, ao alfabeto dos surdos-mudos, aos ritos simbólicos, ás formas de polidez,
aos sinais militares etc., etc. Ela é apenas o principal desses sistemas. (SAUSSURE,
2006, p. 24)

Conforme o autor afirma, a linguagem possui, além da função comunicativa, a função


de constituir o pensamento. A linguagem é uma atividade mental que abrange os dois níveis
de experiência, simbolização e conceitualização. Ela surge quando há associação entre
significante, sons e imagens, e o contexto que traz o significado, ideias ou mensagens que se
queira comunicar. A partir disso, o ser humano utiliza a língua para se expressar.
O signo linguístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma
imagem acústica. Esta não é o som material, coisa puramente física, mas a
impressão (empreite) psíquica desse som, a representação que dele nos dá o
testemunho de nossos sentidos; tal imagem é sensorial e, se chegamos a chamá-la
“material”, é somente neste sentido, e por oposição ao outro termo da associação, o
conceito, geralmente mais abstrato. (SAUSSURE, 2006, p. 80).

Além disso, Saussure refere-se às crianças que tendem a imitar as pessoas que as
cercam. Naturalmente são inseridas no ambiente linguístico e sofrem as influências do seu
meio que pode ser especificado e organizado em termos de padrões de trocas de interações,
independente da cultura. As atividades humanas são constituídas por um complexo conjunto
de ações num processo dinâmico que integra relações sociais e comportamento, mediados por
uma Linguagem.
Para confirmar esta teoria, recorre-se novamente a Saussure, que defende que os
signos são formados a partir das relações interpessoais vivenciadas pelo indivíduo e da sua
história. O significado é a parte mais estável do signo. A linguagem se constrói, basicamente,
mediante a utilização de um conjunto de signos, cujos significados são coletivamente
22

conhecidos, identificáveis e traduzíveis, porque já foram trabalhados em vários contextos,


ocorrendo a sua unificação histórica e cultural.
A cultura aqui, incluindo-se as linguagens, constitui-se por meio de expressões pelos
quais um grupo social se identifica como outro grupo (construindo comportamentos, valores,
costumes, tradições comuns e compartilhadas), porque as recebe e assimila no decorrer dos
tempos.
Desta forma, por meio da interação com as pessoas, a criança se expressa e participa
da produção cultural e, ao mesmo tempo, internaliza os significados e as formas de ação sobre
o mundo elaborado socialmente. Ao agir sobre o ambiente, a criança inicia seu processo de
internalização das formas culturais da organização social. Nesse processo, os sistemas
simbólicos - e particularmente a linguagem - exercem um papel fundamental na comunicação
e no estabelecimento de significados compartilhados socialmente - os quais permitem
interpretações dos artefatos, fatos e situações.

3.2 INTERFACE ENTRE A SEMÍOTICA E A TEORIA SAUSSUREANA.

A semiótica é o estudo de signos ou significações, da estética do sensível. A diferença


entre os vários tipos de semióticas vem da delimitação de seu campo de estudo. Ela ajuda a
entendermos como conseguimos interpretar mensagens, interpretar obras de arte, textos e, até
mesmo, como se comunicam pessoas por meio de sinais como a Língua Brasileira de Sinais.
Na visualidade da língua de sinais e do cotidiano vivido pelo surdo, tem-se a
possibilidade do uso das imagens. O visual para o surdo é extremamente necessário; sendo,
assim, o modo de ver o mundo por meio das imagens. A semiótica é o estudo dos signos
linguísticos. Para não delimitar um conceito tão amplo, que faz interface em várias outras
ciências, analisemos Santaella:
A semiótica é a ciência que tem por objeto de investigação todas as linguagens
possíveis, ou seja, que tem por objetivo o exame dos modos de constituição de todo
e qualquer fenômeno como fenômeno de produção de significação e sentido.
(SANTAELLA, 1994, p.13)

Santaella menciona Peirce, no qual a mesma conceitua o que é a semiótica,


discordando apenas na questão de não ver a linguagem como uma ciência:
A Semiótica ou Lógica, por outro lado, tem por função classificar e descrever todos
os tipos de signos logicamente possíveis. Isso parece dotá-la de um caráter
ascendente sobre todas as ciências especiais, dado que essas ciências são linguagens.
Não era assim, contudo, que Peirce a concebia. Para ele, as ciências têm de ser
deixadas a cargo de seus praticantes, o que o conduz, como lógico, apenas à
elucidação dos métodos e tipos de pensamento utilizados pelas diversas ciências
(SANTAELLA, 1994, p.29).
23

A Semiótica Peirceana é uma teoria sígnica do conhecimento, de caráter amplo e


geral; uma teoria semiótica que se volta ao estudo de todo e qualquer tipo de representação,
inclusive das representações da comunicação. Para a semiótica peirceana, não há
comunicação sem signos, para tudo usamos signos e principalmente para a comunicação. Por
meio da comunicação e da semiótica peirceana, podemos entender e perceber que a
comunicação pode ser formada por signos; então, nada mais normal que a língua de sinais,
que é representada por signos e assim desenvolvem a comunicação na cultura surda.
A língua é uma forma de linguagem com signos, segundo Saussure, formados de
significado e significante. Esses signos nas línguas de sinais ocorrem de maneira visoespacial
por meio de combinações entre o povo surdo, havendo ainda o surgimento de novos sinais em
muitas áreas.

Quando alguma coisa se apresenta em estado nascente, ela costuma ser frágil e
delicado campo aberto a muitas possibilidades ainda não inteiramente consumadas e
consumidas. Esse é justamente o caso da Semiótica: algo nascendo e em processo de
crescimento. Esse algo é uma ciência, um território do saber e do conhecimento
ainda não sedimentado, indagações e investigações em progresso. (SANTAELLA,
1994, p1).

Os signos podem ser objeto, e também podem ser um fato ou um representante. Como
exemplo, temos a fumaça: a fumaça pode nos dizer se há fogo em certo lugar, como também
pode nos dizer se tem alguém ali, tudo irá depender da circunstância em que se encontra, ou
seja, de um contexto.
O objetivo de estudo da semiótica são os signos, que nada mais são que “algo” que
pode estar no lugar de “outra coisa”, para que uma pessoa possa entender ou interpretar o que
é, ou o que se mostra. A semiótica tem o poder de aprofundar e expandir a capacidade de
conhecimento, de descoberta e interação com o outro, com o mundo e com o conteúdo a ser
aprendido. Focalizando a língua de sinais e o desenvolvimento educacional do surdo, a
semiótica é imprescindível.
O estudo da semiótica define os códigos, todas as linguagens verbais e não verbais, e é
fundamental para um estudo, pois aborda a LIBRAS, que é um código de comunicação. A
semiótica abrange muitos assuntos como a fotografia, artes visuais, música, cinema, culinária,
literatura, sinais e ciência. A Semiótica investiga todas as linguagens possíveis, tendo como
objetivo os modos de constituição de todo e qualquer acontecimento como fenômeno de
produção de significado e sentido. A semiótica é um campo muito amplo, que estuda a
linguagem e suas formas variadas.
24

Saussure chama de linguística interna os estudos da língua, e de linguística externa os


estudos da fala, da literatura, da escrita. Entretanto, é usual chamar de linguística todos os
estudos relacionados à linguagem, distinguindo-se destes apenas os estudos sobre literatura.
Baseados no processo de mediação semiótica, vários estudos têm demonstrado que a
escolarização de crianças surdas deve considerar toda a sua experiência linguística e,
consequentemente, a importância da língua de sinais como ferramenta de alfabetização.
Portanto, é apresentado aqui um breve contraponto da percepção saussuriana com a
semiótica, trabalhando assim a relações figuradas nas obras literárias para crianças surdas.
Observamos que a teoria de Saussure garante um maior entendimento da definição de
símbolos e da relação dos significantes e seus significados; os quais, aplicados a um estudo
com línguas de sinais, ocasionam uma compreensão clara da interface semiótica entre a
linguagem dos clássicos contos de fada e a literatura infantil para crianças surdas.

4 A LÍNGUA DE SINAIS NA CULTURA SURDA.

A Língua de Sinais é uma língua completa, com estrutura independente da Língua


Portuguesa oral ou escrita, que possibilita o desenvolvimento cognitivo do indivíduo surdo,
favorecendo o seu acesso a conceitos e conhecimentos que se fazem necessários para sua
interação com o outro e o meio em que vive. Strobel (2009) define que:
A língua de sinais é uma língua prioritária do povo surdo que é expressa através da
modalidade espacial-visual. A partir da década de 1950 iniciaram-se estudos
aprofundados sobre as línguas de sinais como, por exemplo, o do Americano Willian
Stokoe (1965) e, no Brasil, dos ouvintes pioneiros, e depois vieram os pesquisadores
surdos; citamos como exemplo os ouvintes Lucinda Ferreira Brito (1986), Ronice
Quadros (1995, 2004), Tanya Felipe (2002) e Lodenir Karnopp (2004) e os surdos
lingüistas Ana Regina e Souza Campello (2007) e Shirley Vilhalva (2007), que
proporcionaram a valorização da língua de sinais, dando-lhe status de uma língua
legítima do povo surdo. (STROBEL, 2009, p. 49).

A autora ressalta que a língua de sinais teve o seu reconhecimento como uma língua
possuidora de regras gramaticais próprias somente a partir da década de 1960, com os estudos
do americano William Stokoe. A partir de então, passou a ser pesquisada por linguistas em
todo o mundo, no sentido de compreender sua estrutura e sua aplicação na educação e na vida
do surdo.
Gesser (2009) deixa claro que: “A língua de sinais dos surdos é natural, pois evoluiu
como parte de um grupo cultural do povo surdo. Consideram-se “artificiais” as línguas
construídas e estabelecidas por um grupo de indivíduos com propósitos”. (GESSER, 2009, p.
25

12). Sendo assim, as línguas de sinais podem ser comparáveis a quaisquer línguas orais, tanto
em relação à sua complexidade, quanto à sua expressividade.
Em virtude de sua modalidade viso-gestual, utilizam-se as mãos, expressões faciais e o
corpo, no intuito de produzir os sinais linguísticos que, por sua vez, são percebidos pelos
olhos; enquanto as línguas orais possuem a modalidade oral-auditiva, em que sons articulados
são percebidos pelos ouvidos. Além disso, as diferenças não se restringem apenas ao canal de
comunicação, mas também às estruturas gramaticais de cada língua.
A língua de sinais, como sistema linguístico, possui um conjunto de elementos
linguísticos diferentes de todos os fenômenos da expressividade corporal e da gestualização.
Dessa forma, a língua de sinais especifica a utilização da visão para captar a mensagem e
movimentos, principalmente das mãos, para transmitir as mensagens.
A língua de sinais é fundamental para o sujeito criar uma ligação com o povo surdo,
imprescindível para ter acesso às informações e conhecimentos, e para construir sua
identidade. Conforme afirma Strobel (2009):
A língua de sinais é uma das principais marcas da identidade de um povo surdo, pois
é uma das peculiaridades da cultura surda, é uma forma de comunicação que capta
as experiências visuais dos sujeitos surdos, sendo que é esta a língua que vai levar o
surdo a transmitir e proporcionar-lhe a aquisição de conhecimento universal.
(STROBEL, 2009, p. 47).

É por meio da língua de sinais que a criança surda adquire de forma espontânea, sem
que seja preciso um treinamento específico, Ela ainda é, porém, considerada por muitos
profissionais apenas como gestos simbólicos. A língua de sinais representa um papel
expressivo na vida do sujeito surdo, conduzindo-o, por intermédio de uma língua estruturada,
ao desenvolvimento pleno, ainda que a comunicação seja mais visual.
O seu sistema linguístico, sua modalidade visual-gestual, sua estrutura gramatical
próprias podem transmitir ideias e fatos pelas pessoas surdas brasileiras e conhecedores da
LIBRAS, como acontece com outras línguas. Gesser destaca que:
A língua de sinais tem todas as características linguísticas de qualquer língua
humana natural. É necessário que nós, indivíduos de uma cultura de língua oral,
entendamos que o canal comunicativo diferente (visual-gestual) que o surdo usa
para se comunicar não anula a existência de uma língua tão natural, complexa e
genuína como é a língua de sinais. (GESSER, 2009, p. 22).

A língua de sinais brasileira é uma língua usada pela comunidade surda brasileira. A
mesma propiciou a verificação da construção de uma comunidade que se transformou
atualmente em uma cultura que dispõe de uma língua visoespacial, recentemente pela lei
regulamentada Nº. 10.436 de 20/04/2002 que dispõe:
26

Art. 1o É reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua


Brasileira de Sinais - Libras e outros recursos de expressão a ela associados.
Parágrafo único. Entende-se como Língua Brasileira de Sinais - Libras a forma de
comunicação e expressão, em que o sistema lingüístico de natureza visual-motora,
com estrutura gramatical própria, constituem um sistema lingüístico de transmissão
de idéias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil.
Art. 2o Deve ser garantido, por parte do poder público em geral e empresas
concessionárias de serviços públicos, formas institucionalizadas de apoiar o uso e
difusão da Língua Brasileira de Sinais - Libras como meio de comunicação objetiva
e de utilização corrente das comunidades surdas do Brasil. (BRASIL, Lei Nº 10.436
que reconhece a Língua Brasileira de Sinais. 2002).

Após muitas lutas, os surdos conquistaram o reconhecimento da língua por meio de


regulamentação da Língua de Sinais Brasileira. Existem diferentes línguas de sinais para cada
comunidade de surdos.
A língua de Sinais é diferente do conhecido alfabeto manual, em que a língua escrita
serve de base e as palavras são digitadas por meio das mãos. Já na LIBRAS, existe uma
codificação contextualizada em torno de símbolos e sinais que resultarão em diálogos
linguísticos interativos . Gesser (2009) cita que: “Linguísticamente, pode-se afirmar que a
língua de sinais É língua porque apresenta características presentes em outras línguas naturais
e, essencialmente, por que é humana”. (GESSER, 2009, p. 27).
Assim, mediante um sistema de comunicação que não depende de representação
acústica, mas da configuração das mãos, do movimento, do ponto de articulação e da
orientação da mão, as pessoas surdas criaram sua própria linguagem. Como a palavra, o sinal
possui as duas propriedades do significado. Ou seja, é portador do significado, que mantém
uma relação direta com o objeto, e do sentido, que se relaciona com o contexto. Gesser (2009)
ressalta que:
A língua de sinais, como já vimos, tem uma gramática própria e se apresenta
estruturada em todos os níveis, como as línguas orais: fonológico, morfológico,
sintáticos e semânticos. Além disso, podemos encontrar nela outras características: a
produtividade/criatividade, a flexibilidade, a descontinuidade e a arbitrariedade.
(GESSER, 2009, p. 27).

Assim, a língua de sinal revela a necessidade de uma revisão dos termos utilizados até
agora no campo dos estudos linguísticos e semióticos. Ela também contribui com dados sobre
os princípios que regem uma língua natural e, ainda, possibilitam a compreensão mais
específica sobre a capacidade humana de utilizar a linguagem gestual associada às produções
linguísticas. O estudo dos gestos, por muito tempo, foi relatado apenas superficialmente.
27

Atualmente, ele pode fornecer muito mais informações sobre as capacidades inatas do ser
humano á comunicação.
Portanto, a Língua de Sinais se organiza no cérebro do mesmo modo que a língua
falada. Além disso, ela não é simplesmente um conjunto de mímicas e gestos soltos utilizados
pelos surdos para facilitar a comunicação. As Línguas de Sinais têm suas próprias estruturas
gramaticais. Deste modo a linguagem gestual nasceu da necessidade que as pessoas surdas
têm de se expressar no seu contexto sócio-cultural. Esse tipo de linguagem encontra-se
sistematizado atualmente, de modo que cada país possui uma língua de sinais específica;
sendo, assim, uma grande conquista para comunidade surda.

4.1 A LITERATURA SURDA E AS SUAS ESPECIFICIDADES PARA OS SURDOS.

A Literatura Surda é toda literatura desenvolvida para surdos, com o objetivo de


difundir, registrar a cultura, a comunidade surda e a língua de sinais. As obras de literatura
surda retratam tanto histórias próprias, criada por surdos, ou integrantes da cultura surda,
como adaptações de clássicos da literatura repensadas sob a visão da comunidade surda. Para
Strobel:
A literatura surda refere-se ás várias experiências pessoais do povo surdo que,
muitas vezes, expõem as dificuldades e/ou vitórias das opressões ouvintes, de como
se saem em diversas situações inesperadas, testemunhando as ações de grandes
líderes e militares surdos, e sobre a valorização de suas identidades surdas.
(STROBEL, 2009, p. 62).

A autora ressaltou logo acima que a Literatura Surda está relacionada com a cultura
surda. A literatura contada na língua de sinais de determinada comunidade linguística é
constituída pelas histórias produzidas em língua de sinais pelas pessoas surdas, pelas
histórias de vida que são frequentemente relatadas, pelos contos, lendas, fábulas, piadas,
poemas sinalizados, jogos de linguagem e muito mais. Strobel (2009, p. 65) enfatiza que:
“A literatura surda também envolve as piadas surdas que exploram a expressão facial e
corporal, o domínio da língua de sinais e a maneira de contar piada naturalmente. São
consideradas extraordinárias na comunidade surda.”
A literatura surda está presente na comunidade surda e é relevante o registro dessas
histórias, pois pode proporcionar principalmente às escolas, um material baseado na cultura
das pessoas surdas. Strobel assegura que:
[...] A história cultural de surdos é longa e complexa, existe há dezenas de milhares
de anos. Os povos surdos usam inúmeros meios de se comunicar através da língua
de sinais, desenhos, expressões faciais, corporais e imagens visuais. Como vemos,
com o passar do tempo, os povos surdos tiveram a necessidade de registrar suas
28

atuações do cotidiano, como as várias conquistas, língua de sinais, tradições


culturais, entre outras, e como isso surgiu a literatura surda! (STROBEL, 2009, p.
67).

A Literatura Surda atual, surgiu com as inovações tecnológicas e a partir do


reconhecimento da LIBRAS, por meio de gravação de histórias por meio de CDs e DVDs, de
textos que apresentam imagens, livros, fotos ou legendas em Português, que possibilitaram
formas visuais de registro dos sinais. A mesma representa uma tradição em sinais e
eventualmente, registrada em filmes, vídeos e livros. Karnopp2 cita em um de seus
artigos3 que “[...] Literatura surda é a produção de textos literários em sinais, que entende a
surdez como presença de algo e não como falta, possibilitando outras representações de
surdos, considerando-os como um grupo lingüístico e cultural diferente”.
Deste modo, como é difícil conceituar a Literatura em geral, também não há uma
definição única para Literatura Surda. Ela envolve representações produzidas por surdos, onde
se produzem significados partilhados em forma de discurso; sem eles, não há representação
surda. Os significados são modificados dentro do círculo da cultura. E o sujeito não cria a
cultura sozinho, já que sempre há o coletivo produzindo significados. De acordo com Strobel:

(...) um ser humano, em contato com o seu espaço cultural, reage, cresce e
desenvolve sua identidade, isto significa que os cultivos que fazemos são coletivos e
não isolados. A cultura não vem pronta, daí porque ela sempre se modifica e se
atualiza, expressando claramente que não surge com o homem sozinho e sim das
produções coletivas que decorrem do desenvolvimento cultural experimentado por
suas gerações passadas. (STROBEL, 2008, p. 21).

Assim, pode-se afirmar que a Literatura Surda envolve representações de surdos de


forma discursiva.
Portanto essas representações se repetem por meio de ideias e fatos vivenciados pelos
surdos dentro e fora da cultura surda. A respeito do artefato Literatura Surda Karnopp deixa
bem claro que:
A expressão “Literatura Surda” é utilizada no presente texto para histórias que têm a
língua de sinais, a identidade e a cultura surda presentes na narrativa. Literatura
surda é a produção de textos literários em sinais, que traduz a experiência visual, que
entende a surdez como presença de algo e não como falta que possibilita outras
representações de surdos e que considera as pessoas surdas como um grupo
lingüístico e cultural diferente. (KARNOPP, 2006, p.05).

2
Lodenir Becker Karnopp Doutora em Linguística e professora na Universidade Luterana do Brasil (ULBRA,
Canoas, RS). Intérprete da Língua de Sinais Brasileira.
3
Literatura Surda. In: Literatura, Letramento e práticas educacionais- Grupos de estudo surdos e Educação.
Campinas: ETD- Educação, 2006.
29

Literatura surda é a produção de textos literários em sinais, que entende a surdez como
presença de algo e não como falta, possibilitando outras representações de surdos,
considerando-os como um grupo linguístico e cultural diferente. Mourão (2011) em sua tese
“Literatura Surda: produções culturais de surdos em Línguas de Sinais” o mesmo descreve
que:
As mãos, na língua de sinais, produzem as palavras, voam como a velocidade da luz,
atravessam a visão do outro, desembarcam no aeroporto dos olhos, automaticamente
as malas vão ao cérebro, explodindo os maiores parques do mundo, onde podem
brincar de roda gigante, carrossel, montanha russa. Com palavras gritando, entre uns
e outros, são produzidas linguagens que se conectam alem do
significante/significado, se tornam signos e logo nasce o compreender e entender das
palavras. (MOURÃO, 2011, p. 38).

Desta forma, Mourão (2001) demonstra a magia e o encanto que se tem ao comunicar-
se na Língua de Sinais. Portanto, a Literatura Surda também vem influenciando, e muito, a
literatura infantil, na qual se solidifica como um ponto de encontro entre a leitura e a criança
surda que faz parte da cultura surda. Ela é capaz de despertar o imaginário, a fantasia,
colaborar para a formação de cidadãos críticos, além de transmitir saber e conhecimento.

4.2 A LITERATURA INFANTIL PARA CRIANÇA SURDA

Este tema é inovador e muito pertinente. Porém surgiu da necessidade da cultura surda
registrar a identidade do povo surdo. Sendo assim, passaram a existir livros, vídeos e contação
de histórias entre outros, mas que foram adaptados na linguagem dos surdos. Alguns desses
materiais existentes são os que demonstram os textos clássicos da literatura universal e
brasileira para a LIBRAS. Entre as diversas editoras do ramo, cito aqui a Arara Azul, uma das
que disponibilizam coleções de clássicos da literatura em CD em LIBRAS para o Português,
no qual tem uma equipe de tradutores que faz a tradução da língua portuguesa para LIBRAS.
A respeito do ensino de Literatura Surda, encontramos pouquíssimas pesquisas. Mas
vale citar aqui duas das mais importantes estudiosas do ramo: as Professoras Rosa Hessel
Silveira e Lodenir Becker Karnopp, ambas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. As
mesmas trabalham com as várias representações dos surdos contidas nos livros de literatura
infantil e pesquisas de iniciação científica com seus alunos surdos para adaptações de
clássicos da literatura infantil. Estas pesquisas tiveram como consequência duas obras que
foram publicadas em 2003, “Cinderela Surda” e “Rapunzel Surda”, adaptadas por surdos com
a inserção da história para comunidade surda. De acordo com Karnopp (2006, p. 3):
30

A literatura surda começa a se fazer presente entre nós, se apresentando talvez como
um desejo de reconhecimento, em que busca ‘um outro lugar e uma outra coisa’. A
literatura do reconhecimento é de importância crucial para as minorias lingüísticas
que desejam afirmar suas tradições culturais nativas e recuperar suas histórias
reprimidas. Esse fato, entretanto, nos aponta os perigos da fixidez e do fetichismo de
identidades no interior da calcificação da cultura surda, no sentido de trazer um
romanceio celebratório do passado ou uma homogeneização da história do presente.
(KARNOPP, 2006, p.3).

Foi a partir daí que surgiu o trabalho de adaptação dos clássicos. Livros pertencentes à
literatura clássica como “O alienista”, Machado de Assis, e “Iracema”, José de Alencar,
passaram a ser traduzidos para LIBRAS e disponibilizados, gratuitamente, às escolas.
Paralelamente, um projeto de criação de literatura surda começou a ser desenvolvido por um
grupo de pesquisadores surdos e ouvintes. Por literatura surda, esse grupo entende recriação
do original com inserção da temática da surdez e da Língua de Sinais, ou seja, a adaptação de
contos de fada como “Chapeuzinho Vermelho”, “Rapunzel” e “Cinderela”, cujos
protagonistas passaram a ser surdos.
Além dessa, há a Cinderela que é surda e, quando ao vai ao baile, acaba perdendo suas
luvas (e não o sapatinho) e o príncipe, que também é surdo, vai ao encontro da moça que
tenha as mãos que caibam naquela luva. Há o Patinho Surdo que não encontra aceitação no
seu grupo por não se comunicar como os demais. Há também a Chapeuzinho Vermelho que
não bate na porta da vovó quando vai lhe entregar a cesta de doces, pois ambas são surdas.
Elas se comunicam em LIBRAS entre si e com o lobo também.
E é dessa forma que a comunidade surda vai contando e registrando suas experiências
visuais com o universo encantado da literatura. Assim, as crianças descobrem o sentido da
vida por meio da literatura, tornando-se indivíduos mais reflexivos dentro da sua cultura. As
crianças surdas desenvolvem aprendizagens por meio da leitura e da experiência visual.
Porém, sozinhas, não se formam como leitores visuais. Elas necessitam do livro, de textos, de
imagens para que possam desenvolver sua capacidade visual e de leitura.
As crianças precisam encontrar significados que ultrapassem o sentido da leitura.
Preferencialmente, devem ser estimuladas pelos familiares e trazer de casa uma relação
afetiva com os livros, construída e estimulada por meio da LIBRAS. Karnopp (2008, p. 5)
ressalta que:
A Língua de Sinais Brasileira é uma língua visual-gestual e recentemente seus
usuários têm utilizado a escrita dessa língua em seu cotidiano. A escrita dos sinais
(Sign Writing) é a forma de registro das línguas de sinais, mas raras são as obras
literárias produzidas que utilizam essa escrita. Além disso, também são poucas as
escolas que incluem a escrita dos sinais em seus currículos. Acreditamos, no
entanto, que além das produções em vídeo (DVD), a escrita da língua de sinais
(SignWriting) é uma forma potencial de registro da literatura surda, pois possibilita
31

que os textos sejam impressos e que circulem em diferentes tempos e espaços.


(KARNOPP, 2006, p. 5).

A Literatura Surda encontra-se em desenvolvimento. No entanto existem vários


recursos inovadores que apontam essa trajetória. Temos como exemplo histórias contadas e
representadas: através de CDs, DVDs, vídeos e livros impressos, a tecnologia pode contribuir
na educação de crianças surdas, oferecendo recursos inovadores para auxiliar na
aprendizagem. Por meio desses recursos visuais e interativos, é possível tornar a
aprendizagem do aluno surdo mais atrativa e eficiente, visando à qualidade na comunicação
numa abordagem inclusiva.
Analisando as interações com o outro e as mediações entre os sujeitos e os signos,
percebe-se que possibilitam o aprendizado, a socialização e a significação. Pode-se dizer que
uma proposta pedagógica que utilize como recursos os instrumentos semióticos disponíveis
na cultura estará favorecendo o aprendizado ao sujeito surdo, fazendo com que o
conhecimento e a significação do mundo aconteçam de maneira construtiva e com sentido.
No que se refere à surdez, as propostas recentes reconhecem a Língua de Sinais como
a língua do surdo, a ser adotada preferencialmente desde o berço. Essa concepção contrapõe-
se à ênfase de recursos comunicativos, considerando-se que a aquisição da Língua de Sinais
permite o uso da linguagem com todas as funções e possibilita a constituição do surdo
enquanto sujeito que pensa, sente e se expressa.
Finalmente, cabe lembrar algumas garantias conseguidas, pela comunidade surda, por
meio do Decreto 5.626 de 22 de dezembro de 2005:
“Art. 23. As instituições federais de ensino, de educação básica e superior, devem
proporcionar aos alunos surdos os serviços de tradutor e intérprete de Libras -
Língua Portuguesa em sala de aula e em outros espaços educacionais, bem como
equipamentos e tecnologias que viabilizem o acesso à comunicação, à informação e
à educação. § 1º Deve ser proporcionado aos professores acesso à literatura e
informações sobre a especificidade linguística do aluno surdo”. (BRASIL, Decreto
5.626 de 22 de dezembro de 2005).

Além do registro das produções culturais de pessoas surdas por meio da escrita em
língua de sinais Sign Writing e de traduções para a escrita da língua portuguesa, outros
formatos de documentação, como filmagens, são essenciais para o registro de formas literárias
que vão se perdendo ou se transformando. Para uma comunidade de surdos manter as várias
possibilidades artísticas e expressões da língua de sinais, os registros visuais são
indispensáveis na criação visual que podem oferecer para uma escrita futura, por meio da
32

escrita de sinais e de adequadas traduções para o português. De acordo com Stumpf4 (2009,
p.13):
[...] a leitura e a escrita dos sinais pelo sistema SignWriting as crianças precisam
tanto interpretar, como produzir os elementos e suas relações, a partir da
reconstrução do sistema. A forma de fazer isso é ir adquirindo a representação
simbólica pela observação dos sinais escritos. (STUMPF, 2009, p. 13).

Ao trabalhar a leitura e a escrita com a criança surda, a interpretação, a observação do


desenho e o registro fazem com que a criança aprenda melhor. Portanto a criança surda
percorre caminhos próprios e se adapta aos novos métodos de ensino e aprendizado da
Cultura Surda. O registro da literatura surda começou a ser possível principalmente a partir
do reconhecimento da LIBRAS e graças ao desenvolvimento tecnológico, que possibilitara
formas visuais de registro dos sinais.

5 METODOLOGIA

A metodologia adotada para a construção desse trabalho foi a pesquisa bibliográfica, a


fim de embasar com uma revisão teórica a temática desenvolvida. Esta pesquisa foi
desenvolvida a partir da perspectiva exploratória realizada por meio de estudos bibliográficos
tendo como foco o tema ‘A Literatura Infantil para Criança Surda’.
Este trabalho destina-se, no método de averiguação de métodos inovadores de ensino
da literatura infantil (realizada por meio da análise de duas obras literárias infantis
contemporâneas para cultura surda infantil), a uma pesquisa que pretende fazer a interface
entre os ensinamentos de Saussure e a semiótica dentro do processo de adaptação de clássicos
literários e verificar como a literatura interfere na formação das crianças surdas leitoras - com
referenciais teóricos voltados para essa modalidade, demonstrando a importância da leitura
para criança surda, em diferentes maneiras e adaptações para a cultura surda.
Este trabalho confirma a relação que existe entre as versões clássicas de “Cinderela” e
do “Patinho feio” e as versões próprias para cultura surda das mesmas obras (“Cinderela
surda” e “Patinho surdo”); relação esta verificada por meio da aplicação das ideias de
Saussure e da interface com a semiótica. A semiótica é o estudo de signos ou significações,
ela ajuda a entendermos como interpretar mensagens, obras de arte, textos ou até mesmo
como se comunica pessoas por meio de sinais como a Língua Brasileira de Sinais.
A análise foi realizada em dois livros de literatura infantil adaptados para crianças
surdas, sendo esses “Cinderela Surda” (HESSEL; ROSA; KARNOPP, 2003) e “Patinho
4
Marianne Rossi Stumpf - Professora Doutora de Informática na Educação
33

Surdo” (Rosa e Karnopp 2005)”. O trabalho tem como público alvo a Cultura Surda em geral.
Por meio dessas análises foi possível comprovar que ainda tem poucos recursos a respeito da
Literatura infantil para crianças surdas.
Comprova-se, por meio dessas análises de clássicos literários infantis adaptados para
crianças surdas, que há escassos estudos a respeito das complexidades das relações entre a
criança surda e a literatura surda e das discussões relativas ao ensino da literatura infantil para
crianças surdas.
Observamos que a teoria de Saussure garante um maior entendimento da definição de
símbolos e da relação dos significantes e seus significados, os quais, aplicados nas análises
das obras para crianças surdas, trazem uma compreensão clara da interface da semiótica entre
a linguagem dos contos de fada para surdos e a Língua Brasileira de Sinais.
Os materiais analisados apresentam objetivos, textos, ilustrações e formas diferentes
de apresentação dos surdos e da língua de sinais. Alguns têm o objetivo de realizar a tradução
de textos clássicos para a LIBRAS, outros apresentar histórias da cultura surda em língua de
sinais. A partir da análise dos materiais disponíveis da literatura surda, podemos destacar a
existência de traduções e adaptações na cultura surda.
Para finalizar, a Literatura Surda está relacionada com a cultura surda. A literatura da
cultura surda, contada na língua de sinais de determinada comunidade linguística, é
constituída pelas histórias produzidas em língua de sinais, pelas histórias de vida que são
frequentemente relatadas, pelos contos, lendas, fábulas, piadas, poemas sinalizados, literatura
surda e os jogos de linguagem.

5.1 TIPO DE PESQUISA

A pesquisa utilizou a metodologia bibliográfica, com abordagem na análise de dois


livros clássicos de literatura infantil. Porém estes foram adaptados para crianças surdas,
fazendo assim uma interface com os ensinamentos de Saussure e a semiótica.
A pesquisa foi feita analisando dois livros de literatura infantil para crianças surdas,
sendo a “Cinderela Surda” e “Patinho Surdo” as obras que foram adaptadas para crianças
surdas e para Cultura Surda. Foram utilizados também referenciais teóricos de estudiosos
sobre o tema; foram observados os métodos inovadores para crianças terem contato com a
literatura desde cedo em sua cultura; foi analisada a interface dos ensinamentos de Saussure e
o estudo da semiótica na cultura surda e nas obras infantis (que atualmente encontram-se
muito visuais), enfim, nos clássicos que foram adaptados para a cultura surda.
34

5.2 ANÁLISE DAS OBRAS LITERÁRIAS INFANTIS PARA CRIANÇAS SURDAS.

Os clássicos infantis “Cinderela Surda” e “Patinho Surdo” são duas histórias que
fazem uma releitura dos clássicos da literatura e apresentam aspectos da língua, cultura e
identidade surda. Traduzir as histórias que são contadas em língua de sinais na comunidade de
surdos foi o objetivo inicial dos autores dessas obras. A apresentação dos textos está numa
versão bilíngue, ou seja, as histórias estão escritas em português e também na escrita da língua
de sinais (SignWriting). As ilustrações acentuam as expressões faciais e os sinais, elementos
que demonstram a aparência da experiência visual. O texto é, portanto, rico em ilustrações.
“Cinderela Surda”, obra publicada em 2003, é uma adaptação do clássico “Cinderela”,
totalmente voltada para a Língua Brasileira de Sinais, Identidade e Cultura dos Surdos
Brasileiros. A primeira obra analisada contém 36 páginas; foi redigida por Carolina Hessel,
Fabiano Rosa e Lodenir Karnopp; foi ilustrada pelos desenhos de Carolina Hessel; e impressa
na Editora da Universidade Luterana do Brasil - Ulbra. É a primeira obra literária do Brasil
escrita na Língua Brasileira de Sinais e também na Escrita de Sinais (SignWriting). Segundo a
própria apresentação do livro, “não sabemos quem contou esta história pela primeira vez. Ela
foi sendo recontada entre os surdos e nós resolvemos registrar e divulgar este belo texto”.
(HESSEL; ROSA; KARNOPP, 2003, p. 5).
“Cinderela Surda” contou com a colaboração da Professora Doutora Marianne Stumpf,
surda, que tem especialidade na área de escrita de sinais e atuou como consultora na
elaboração do conteúdo de SignWriting da obra. O livro “Cinderela Surda” (2003) é uma
adaptação. Muitas histórias são adaptadas, traduzidas e produzidas para Educação de Surdos,
mas ainda há poucos materiais sobre a literatura surda. Como os próprios autores do projeto
comentam na apresentação da obra que:
A maioria das pessoas conhece a clássica história da Cinderela. Nosso objetivo,
nesse texto, é recontar essa história a partir de outra cultura, uma cultura surda.
Assim, este livro foi construído a partir de uma experiência visual, com imagens,
com o texto reescrito dentro da cultura e identidade surda e da escrita da língua de
sinais, conhecido também como SignWriting. (HESSEL; ROSA; KARNOPP, 2003,
p. 5).

Diferente da “Cinderela” clássica, nossa personagem principal é surda e a história nos


mostra que ela mora com a madrasta e as duas irmãs que são más e sabe pouco a língua de
sinais. Depois de muito sofrer, Cinderela consegue uma ajuda de uma fada para ir ao baile que
foi promovido pelo príncipe do Reino. Segundo os autores, “O encontro com o príncipe é
surpreendente, pois, ele é surdo e comunica-se com Cinderela em sinais”. (HESSEL; ROSA;
KARNOPP, 2003, p. 5).
35

Em vez de deixar com o príncipe o sapato, Cinderela deixa uma linda luva rosa.
Depois disso, o príncipe ordena aos seus empregados que procurem em todas as casas do
reino pela moça cuja mão cabe perfeitamente naquela luva, pois ela seria a mulher com que
ele iria se casar. Depois de muito procurar, encontraram a casa de Cinderela, que estava
trabalhando na cozinha e por isso não os viu entrando.
Mas, depois da madrasta mentir dizendo que suas filhas eram surdas e ver que a luva
não serviu em nenhuma delas, o empregado mandou-a que chamasse a empregada surda que
estava trabalhando. Daí, Cinderela provou a luva e serviu perfeitamente. Todos ficaram
felizes, o príncipe a encontrou e, segundo os autores: “(...) casaram-se e foram felizes por
muito tempo”. (HESSEL; ROSA; KARNOPP, 2003, p. 32).
A obra “Cinderela Surda” para crianças surdas ensina que as crianças surdas podem
ter acesso a esse tipo de literatura, que retrata a cultura surda, uma cultura que contém uma
língua, literatura clássica, poesias, piadas; enfim, recursos inovadores que vêm surgindo na
área de educação e ensino para crianças surdas. A inserção da luva, em substituição ao
tradicional sapatinho de cristal, está associada ao símbolo por excelência da comunidade
surda. As luvas remetem às mãos, que apontam os sinais e a língua dos surdos.
Já na obra “Patinho Surdo” (Rosa e Karnopp 2005) conta a história de um patinho
surdo que nasceu em um ninho de ouvintes. Quando encontra patos surdos, aprende com eles
a Língua de Sinais da Lagoa e descobre sua história de vida. O texto aborda as diferenças
linguísticas na família e na sociedade, além de apresentar a importância do intérprete na
comunicação entre surdos e ouvintes. As ilustrações são em preto e branco e há um glossário
ao final do livro.
Os autores da obra “Patinho Surdo”, possibilitou que os leitores compreendessem os
conceitos sobre o que é o diferente na cultura da comunidade surda. Isso fortalece a idéia de
artefato cultural surdo e que a Literatura Surda, sem dúvida, é o meio e o modo de práticas
que vêm evoluindo e se adaptado para que o povo surdo compreenda com mais facilidade os
artefatos de sua própria cultura.
A literatura da cultura surda, contada na língua de sinais de determinada comunidade
linguística, é constituída pelas histórias produzidas em língua de sinais pelas pessoas surdas,
pelas histórias de vida que são frequentemente relatadas, pelos contos, lendas, fábulas, piadas,
poemas sinalizados, jogos de linguagem, literatura e muito mais. Obras de literatura que
tematizam a experiência de pessoas surdas são escassos.
No entanto, as histórias são narradas e circulam na língua de sinais, que relembra, de
uma geração para outra, os valores, o orgulho de ser surdo, as histórias de vida e as
36

dificuldades de participação em uma sociedade que os exclui pela diferença linguística e


cultural que têm. Desse modo, a literatura surda é, num certo sentido, uma tradição em sinais
e é, eventualmente, registrada em filmes, vídeos e livros impressos. Outras formas de registro
são as traduções das histórias para a língua escrita do país, por exemplo, as histórias que são
contadas na língua de sinais brasileira e que são, em seguida, traduzidas para a escrita da
língua portuguesa.
Nas histórias analisadas, os autores buscam o caminho da autorrepresentação do grupo
de surdos na luta pelo estabelecimento do que reconhecem como suas identidades, por meio
da legitimidade de sua língua, de suas formas de narrar as histórias, de suas formas de
existência, de suas formas de ler, traduzir, conceber e julgar os produtos culturais que
consomem e que produzem.
Neste sentido, utilizamos a expressão Literatura Surda para as produções literárias que
apresentam a língua de sinais, a questão da identidade e da cultura surda presentes nos textos
e nas imagens. As histórias “Cinderela Surda” e “Patinho Surdo” tematizam a importância da
língua de sinais, da cultura e identidade surda.
A obra explora o visual, o desenho, além da história registrada na língua portuguesa.
Esses elementos registram histórias dos clássicos da literatura, a partir de uma cultura visual,
em que ocorre uma aproximação com as histórias de vida e as identidades surdas.
Concentraremos nossa análise, neste texto, nos livros “Cinderela Surda” e “Patinho Surdo”.
Explicando essa teoria, a semiológica de Saussure apresenta a formação de uma ponte
teórica a fim de elucidar as relações eventuais entre significante, significado e significação,
que permeiam os símbolos presentes na história de “Cinderela” e na versão brasileira para
surdos, “Cinderela Surda”.
As ilustrações acentuam as expressões faciais e os sinais, elementos que traduzem
aspectos da experiência visual. Sobre os livros de literatura surda, no Brasil, Lebedeff (2005,
p. 179) afirma:
As propostas anteriormente descritas foram extremamente válidas, pois eram os
primeiros passos de uma tentativa brasileira de aproximação da literatura com a
cultura surda. Entretanto, foi apenas em 2003 que apareceram no mercado editorial
os primeiros textos impressos escritos por surdos e para surdos que refletem
aspectos interessantíssimos da cultura surda, através de uma intertextualidade
intencional. (LEBEDEFF, 2005, p. 179).

A análise feita por Lebedeff (2005, p. 179) inclui o texto e as imagens das duas
histórias infantis. Diz a autora:
Os textos, que são duas histórias infantis Cinderela Surda foram escritos por dois
estudantes universitários surdos e por uma Doutora em linguística que apresentam
no texto inserções que vão desde dados da história dos surdos como adaptações das
37

histórias à cultura surda. Outra adaptação bem interessante realizada na Cinderela


Surda é o fato de que a protagonista deixa cair sua luva no baile, não o sapato. Com
certeza, as mãos são muito mais importantes e o cair da luva emprega muito mais
dramaticidade para os surdos do que perder um sapato. (LEBEDEFF, 2005, p. 179).

Sobre “Cinderela Surda”, além dos itens analisados por Lebedeff, é importante
mencionar o fato de que foi proposital a referência à infância da menina Cinderela e do
príncipe. O texto assim inicia: “Cinderela e o príncipe eram surdos e aprenderam a Língua de
Sinais Francesa quando eram pequenos” (HESSEL; ROSA; KARNOPP, 2003, p. 6).
A necessidade de explicar que Cinderela aprendeu a Língua de Sinais com a
comunidade de surdos, nas ruas de Paris, evidencia a forma como a maioria dos surdos
adquire e desenvolve sua língua, ou seja, uns com os outros, em lugares informais, com outros
usuários dessa língua. Outro fato recorrente na comunidade surda é o de compartilhar as
histórias de vida, ou seja, se nasceu surdo, quando entrou em contato com outros surdos,
quando começou a usar a língua de sinais.
Essa interface semiótica que existe entre a versão clássica de “Cinderela” e do
“Patinho Feio”, a que foi adaptada para a Cultura Surda, que é a “Cinderela Surda” e “Patinho
Surdo”. Os contos de fadas são utilizados como forma de análise, por meio de sua linguagem
simples e objetiva, que desperta mais a atenção das crianças, procurando dentro delas um
campo de identificação favorável, atingindo assim suas consciências. Isso faz com que as
mesmas levem de forma consciente para o inconsciente todo esse sistema de símbolos,
diferenciando suas emoções diante da leitura de um conto adaptado para cultura surda.
38

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao término desta pesquisa certifico aqui a necessidade de ampliar essa área da


literatura para crianças surdas. Percebe-se que muito já foi feito, mas ainda existe a
necessidade de potencializar outros conhecimentos para que a Literatura Surda propicie
momentos de desenvolvimento da sua própria identidade cultural.
A formação da criança surda leitora é um acontecimento que geralmente se realiza nos
espaços escolares e o ideal seria que essa formação fosse justa, democrática, acolhedora e
desprovida de qualquer tipo de discriminação.
Por meio da pesquisa e da análise dos livros, verificamos que os ensinamentos de
Saussure e a interface com a semiótica fazem parte da cultura surda, fazendo assim a
confirmação de que a cultura surda, assim como a literatura, está em constante
desenvolvimento; a cultura surda vem conquistando o seu espaço.
É importante constatar a nossa experiência, na qual pudemos compreender que tudo
está ligado ao nosso sistema simbólico. Sugerimos, como base do trabalho, a visão de
Saussure, que nos proporcionou um maior entendimento da definição de símbolos e da
relação dos significantes e seus significados; teoria essa que, embasada no estudo que envolve
os contos de fadas e a língua de sinais, nos proporcionou uma real compreensão da interface
semiótica entre a linguagem dos contos de fada e a Língua Brasileira de Sinais.
A literatura infantil, em qualquer cultura, é um acontecimento que está em constante
construção. As mudanças de estilos e temas acontecem devido aos sujeitos de tais culturas
vivenciarem experiências múltiplas que transformam constantemente a sua forma de se
perceber no mundo. Assim, a tradição literária surda brasileira nasceu e agora precisa que os
muitos surdos produzam tal arte para construir um legado significativo que represente o
orgulho cultural surdo.
39

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