Você está na página 1de 140

A consolação da Filosofia

Severino Boécio
1ª edição — setembro de 2023 — CEDET
Título original: De consolatione philosophiae
Os direitos desta edição pertencem ao CEDET — Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico
Av. Comendador Aladino Selmi, 4630
Condomínio GR Campinas 2 — módulo 8
CEP: 13069–096 — Vila San Martin, Campinas-SP
Telefone: (19) 3249–0580
e-mail: livros@cedet.com.br
CEDET LLC is licensee for publishing and sale of the electronic edition of this book
CEDET LLC
1808 REGAL RIVER CIR - OCOEE - FLORIDA - 34761
Phone Number: (407) 745-1558
e-mail: cedetusa@cedet.com.br
Editor:
Felipe Denardi
Assistentes:
Daniel Araújo
Verônica Rezende
Tradução e notas:
André Gonçalves Fernandes
Tradução dos metros e revisão:
Leandro Costa
Preparação de texto:
Natalia Ruggiero Colombo
Diagramação:
Thatyane Furtado
Capa:
Lucas Gabriel Goes de Macêdo
Revisão de provas:
Andressa Gotierra
Tomaz Lemos
Conselho editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo

FICHA CATALOGRÁFICA
Boécio, Severino.
A consolação da Filosofia;
Severino Boécio; tradução de André Gonçalves
Fernandes; apresentação de Ricardo da Costa
– Campinas, SP: Vide Editorial, 2023.
isbn: 978-85-9507-198-8
1. Filosofia. 2. Filosofias antiga, medieval e ocidental.
3. Cristianismo.
I. Autor. II. Título.
CDD – 100 / 180 / 230

ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO


1. Filosofia – 100
2. Filosofias antiga, medieval e ocidental – 180
3. Cristianismo – 230
vide editorial — www.videeditorial.com.br
Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela
eletrônica, mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.
Sumário
MUITO MAIS QUE UM CLÁSSICO - RICARDO DA COSTA

AUDIÊNCIA GERAL - BENTO XVI

EDIÇÕES UTILIZADAS

A CONSOLAÇÃO DA FILOSOFIA
LIVRO I

LIVRO II

LIVRO III

LIVRO IV

LIVRO V

NOTAS DE RODAPÉ
MUITO MAIS QUE UM CLÁSSICO
Há livros e livros, autores e autores. E obras. E pensadores. E clássicos. E mais que clássicos. A consolação da Filosofia pertence ao
topo. Faz parte da formação do Ocidente. Qual seu mistério? Por que ajudou a forjar a forma com a qual lidamos — ou lidávamos
— com a vida e suas encruzilhadas, com as decepções, traições, ardis da existência? Tantos séculos nos separam de seu contexto,
do sofrimento de Boécio (†524), de suas sessões de tortura entre um parágrafo e outro que, perplexo, custo a crer que em pleno
século XXI , seu elevado misto de poesia e prosa literária e filosófica ainda seja continuamente redescoberto por gerações hoje
atônitas com o ocaso do Ocidente, sua ruína. E no Brasil! Pois esse é nosso atual contexto, e sua reflexiva consolação ainda
consegue encontrar eco em nossos conturbados espíritos.

Talvez essa seja a conexão entre seu tempo e o nosso, entre 2023 e 524 (quase 1.500 anos!): o mundo romano era destroços,
pura transformação barbarizante. O nosso o é. Tentamos sofregamente respirar em meio a nossa distópica disforia. Já Boécio
mantinha sua moral estóica — embora já fosse católico — e preservava as melhores tradições de seu código ético de defesa da
verdade no mais elevado ambiente político de então, o senatorial, ainda que já devassado, corrompido e devastado. Pagou o preço
por isso. Acusado de alta traição, abandonado pelos que defendeu, entregue aos leões, foi barbaramente torturado (como os
romanos, agora ostrogodos, sabiam tão bem fazer). E o mais inacreditável de tudo é que, entre uma sessão de tortura e outra,
encontrou ânimo e uma sublime inspiração para escrever a Consolação. Mentalmente visitado pela rainha Filosofia (uma alegoria
pagã da Virgem?), foi severamente admoestado por tê-la abandonado.

Esse é seu ambiente literário: um diálogo consigo próprio. E quando sinceramente dialogamos conosco, com nossas frustrações
e falsas esperanças, alçamos vôo e quase alcançamos a Humanidade. Temos a ilusória pretensão de ultrapassar nosso tempo,
nossa cronologia, e ilusoriamente ansiamos tocar a Eternidade. O profundo desejo da estética da escrita é chegar ao Belo, à Beleza,
que resplandece ainda mais quando se vê cercada pela miséria da feiúra, do grotesco, do horror.

A Sabedoria sabe: sempre trava um combate contra a estultícia, pois seu objetivo primeiro é desagradar os patifes, os maus, a
maldade. Por isso combate a Fortuna, caprichosa deusa da roda da sorte, do acaso, da inconstância. A sabedoria que educou
Boécio não é governada pelo governo da multidão, mas por sua consciência. Pois tudo provém de Deus.

A Filosofia então admoesta o filósofo (apesar de político, Boécio fora nela formado: apenas esquecera suas melhores tradições,
levado que foi pelas delícias do engano). Na verdade, é sua função primeira: espiritualmente consolar-nos, pois o mundo, desde
que foi mundo, é caos, desordem, estupidez. Cupidez. Tragicômico teatro de sordidezes. Para retornar ao sereno seio da
meditação consolatória, é preciso morrer para o mundo e, vivendo, morrer enquanto nele vive. Pois nada é mais precioso que nós
mesmos, de nós sermos senhores. Temos que ser tomados pela posse, possuirmos sem sermos possuídos, paciente e docemente
tolerarmos em silêncio as ofensas sofridas, os insultos recebidos. Só assim nossas mentes são libertas de nossos grilhões
conseguimos dirigir nossos olhos para os céus. Rumo ao Criador. Ao Amor que rege o cosmos e governa terras e mares.

A Consolação então dá voz à Filosofia. Todos os nossos afãs são voltados para se chegar à Felicidade, o maior de todos os bens,
estado completo, íntegro, total e satisfeito. A maior parte das pessoas, animais terrestres, crê que são os gozos pelos bens terrenos.
Mas estes nunca completam à saciedade. Pior que isso: a seguir, vem a angústia da incompletude, constante sensação de falta, de
não se chegar à auto-suficiência.

É então que o texto de Consolação se nos desvela uma de suas passagens mais pungentes: contemplemos toda a extensão do
céu, sua estabilidade e ao mesmo tempo célere movimento e deixemos de nos admirarmos por coisas vis. Seu azul é arrebatador,
sua beleza, magnífica. O que não tem partes e é uno por natureza é a constância da virtude, o Bem, por todos desejado, por
poucos alcançado. Quem quer chegar à Verdade deve se voltar para a luz da própria visão interior, de seu íntimo, do que se
encontra no fundo do coração. A Consolação nos ensina o caminho de volta à Pátria, que nada mais é do que o afastamento de
todas as vãs perturbações. É quando se chega à verdadeira felicidade: ser bom, praticar o bem. Não há maldade que possa ofuscá-
lo. E isso é espantoso: conformar o espírito às coisas melhores! Constatar que a Divina Providência nada mais é do que a forma
simples e imóvel de realizar as coisas. Ela não se preocupa com o mal, pois nada por causa dele acontece. Quanto a nós, incapazes
que somos de perceber a amplidão do todo, não compreendemos a divina cadeia dos acontecimentos, pois eles sempre nos
parecem caóticos, confusos. Isso ocorre porque não nos é lícito abarcar todos os mecanismos da belíssima obra de Deus. Eles nos
parecem misteriosos. Apenas podemos, por um breve momento, vislumbrar a eternidade do amor de Sua concórdia, invisível aos
incautos, paradoxal aos insensíveis.

Nesse locus amoenus é que a Consolação da Filosofia discorre a nós suas eternas meditações. E conclui com uma eterníssima
admoestação: devemos nos afastar dos vícios, cultivar as virtudes e erguer nosso espírito, com humildes preces, para as justíssimas
esperanças retas. Só o que realmente importa nesta vida é tentar vivê-la de modo honesto, pois todas as nossas ações são
apreciadas por aquele juiz que tudo vê, que recompensará os bons e castigará os maus. É n’Ele que devemos depositar nossas
esperanças.

Há algo mais eterno que isso?

Ricardo da Costa
é professor titular de História da Arte da UFES e
acadêmico correspondente no exterior da Reial Acadèmia de
Bones Lletres de Barcelona, Espanha.

AUDIÊNCIA GERAL - BENTO XVI


Boécio nasceu em Roma por volta do ano 480, da nobre linhagem dos Anísios, e entrou ainda jovem na vida pública, alcançando
já com 25 anos de idade o cargo de senador. Fiel à tradição da sua família, comprometeu-se na política, convencido de que se
podiam conciliar as linhas fundamentais da sociedade romana com os valores dos povos novos. E neste novo tempo de encontro
das culturas, considerou como sua missão reconciliar e unir estas duas culturas, a clássica romana com a cultura nascente do povo
ostrogodo. Foi igualmente ativo na política, mesmo sob Teodorico, que nos primeiros tempos o estimava muito. Apesar dessa
atividade pública, Boécio não descuidou os estudos, dedicando-se em particular ao aprofundamento de temas de ordem
filosófico-religiosa. Mas escreveu também manuais de aritmética, de geometria, de música e de astronomia: tudo com a intenção
de transmitir às novas gerações, aos novos tempos, a grande cultura greco-romana. Neste âmbito, ou seja, no empenho de
promoção do encontro das culturas, utilizou as categorias da filosofia grega para propor a fé cristã, também aqui em busca de uma
síntese entre o patrimônio greco-romano e a mensagem evangélica. Precisamente por isto, Boécio foi qualificado como o último
representante da cultura romana antiga e um dos primeiros intelectuais medievais.

Sem dúvida, a sua obra mais conhecida é o De consolatione philosophiae, que ele compôs no cárcere para dar um sentido ao
seu aprisionamento injusto. Com efeito, fora acusado de conspiração contra o rei Teodorico, por ter assumido a defesa em juízo
de um amigo, o senador Albino. Mas este era um pretexto: na realidade Teodorico, ariano e bárbaro, suspeitava que Boécio tivesse
simpatias pelo imperador bizantino Justiniano. De fato, processado e condenado à morte, foi justiçado no dia 23 de outubro de
524, com apenas 44 anos.

Precisamente por este seu fim dramático, ele pode falar do interior da sua experiência também ao homem contemporâneo e
sobretudo às numerosas pessoas que padecem a sua mesma sorte por causa da injustiça presente em muitas partes da “justiça
humana”. Nessa obra, no cárcere ele busca a consolação, a luz, a sabedoria. E diz que soube distinguir, precisamente em tal
situação, entre os bens aparentes, que na prisão desaparecem, e os bens verdadeiros, como a amizade autêntica, que mesmo na
prisão não desaparecem. O bem mais excelso é Deus: Boécio aprendeu e ensina-nos a não cair no fatalismo, que apaga a
esperança. Ele nos ensina que não é o acaso que governa, mas sim a Providência, e que ela tem um rosto. Pode-se falar com a
Providência, porque ela é Deus. Assim, também no cárcere mantém- se para ele a possibilidade da oração, do diálogo com Aquele
que nos salva. Ao mesmo tempo, também nessa situação, ele conserva o sentido da beleza da cultura e evoca o ensinamento dos
grandes filósofos antigos gregos e romanos, como Platão, Aristóteles — começara a traduzir estes gregos para o latim —, Cícero,
Sêneca e inclusive poetas como Tibulo e Virgílio.

A filosofia, no sentido da busca da verdadeira sabedoria, é segundo Boécio o autêntico remédio da alma (cf. livro I). Por outro
lado, o homem pode experimentar a verdadeira felicidade unicamente na sua interioridade (cf. livro II). Por isso, Boécio consegue
encontrar um sentido, pensando na sua tragédia pessoal à luz de um texto sapiencial do Antigo Testamento (cf. Sb 7, 30 – 8, 1),
que ele cita: “Contra a sabedoria, a maldade não pode prevalecer. Ela estende-se de um confim ao outro com força e governa com
bondade excelente todas as coisas” (cf. livro III , prosa 12, 21–22: PL 63, col. 780). A chamada prosperidade dos malvados, portanto,
revela-se falsa (cf. livro IV ) e evidencia-se a natureza providencial da adversa fortuna. As dificuldades da vida não somente
revelam como ela é efêmera e breve, mas chegam a demonstrar- se úteis para reconhecer e manter os relacionamentos genuínos
entre os homens. A adversa fortuna permite, efetivamente, discernir os amigos falsos dos verdadeiros e faz compreender que nada
é mais precioso para o homem que uma amizade autêntica. Aceitar de modo fatalista uma condição de sofrimento é
absolutamente perigoso, acrescenta o crente Boécio, porque “suprimem-se os únicos laços que unem o homem a Deus: a oração e
a esperança” (livro V , prosa 3, 34: PL 63, col. 842).

A peroração final do De consolatione philosophiae pode ser considerada uma síntese de todo o ensinamento que Boécio dirige
a si mesmo e a todos aqueles que viessem a encontrar-se nas suas mesmas condições. Assim escreve na prisão: “Portanto, afastai-
vos dos vícios; cultivai as virtudes; elevai vossos corações para a mais firme esperança e dirigi ao Céu as vossas mais humildes
orações. Se não quereis iludir a si mesmos, tomai a honestidade e a honra como vossa lei suprema, pois tudo o que fazeis está sob
o olhar de um juiz que tudo vê” (livro V , prosa 6, 47–48: PL 63, col. 862). Cada prisioneiro, independentemente do motivo pelo
qual terminou no cárcere, intui como é pesada esta particular condição humana, sobretudo quando é embrutecida, como
acontece com Boécio, pelo recurso à tortura. Particularmente absurda é, além disso, a condição de quem, ainda como Boécio, que
a cidade de Pavia reconhece e celebra na liturgia como mártir da fé,1 é torturado mortalmente, sem qualquer motivo que não seja
o das suas próprias convicções ideais, políticas e religiosas. Boécio, símbolo de um número imenso de aprisionados injustamente
de todos os tempos e de todas as latitudes, é com efeito a objetiva porta de entrada para a contemplação do misterioso Crucificado
no Gólgota. [...]

— BENTO XVI , em audiência geral no dia 12 de


março de 2008.

EDIÇÕES UTILIZADAS
A edição latina de referência foi a de G. Weinberger Viena, 1935, volume 67 da série Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum
Latinorum. Para cotejo, foram utilizadas as traduções de W. V. Cooper (Londres: J. M. Dent and Company, 1902) e de Leonor
Pérez Gomes (Madri: Akal, 1997).

1. Boécio foi beatificado no Natal de 1883 por Leão XIII . Sua festa é celebrada a 23 de outubro. Ele está sepultado ali na
igreja San Pietro in Ciel d’Oro, em Pavia — NE.
A CONSOLAÇÃO DA FILOSOFIA
LIVRO I
No cárcere, à beira da morte, o autor expõe os motivos das suas
aflições. A Filosofia aparece como uma dama de porte
majestoso e apresenta-se ao autor como uma fecunda solução,
pois faz com que ele reconheça que a origem do mal está no
esquecimento do verdadeiro sentido da vida, que é o de
retornar para Deus.

METRO 1
Quando jovem eu compus poemas alegres,

mas agora de pranto são feitos os meus versos.

Laceradas, as musas me ditam as palavras

da elegia que banha o meu rosto de lágrimas;

companheiras que não sucumbiram ao medo

e permanecem comigo em meu degredo;

glória antiga dos juvenis dias de graça,

agora só consolam a minha desgraça.

Como um sopro veio a velhice inesperada

por todas as dores da vida macerada.

De repente a cabeça cobriu-se de cinzas e o corpo inteiro enrugou-se em suas mínguas.

Se a vida chega ao seu termo na hora exata

é como um enfermo de sua angústia aliviada.

Mas à vista da miséria o fim se nega:

agora eu clamo a minha morte... e ela não chega.


Quando a Fortuna me ofertava os bens efêmeros

quase que a morte envolveu-me em seus enleios.

Mas agora que eu desvelei suas mentiras,

com crueldade ela ignora os meus gemidos.

Por que apontaram minha glória, meus amigos?

Quem se desvia nunca esteve no caminho.

PROSA 1
1. Enquanto eu refletia silenciosamente nesses sombrios pensamentos e, a chorar, registrava
minhas lamúrias no papel, vi surgir acima de mim uma mulher de rosto sereno e majestoso: seus
olhos fulguravam e seu olhar penetrava de uma maneira que não era humana. Sua compleição era
de um colorido vívido e de sua figura evolava um vigor inesgotável. Contudo, ela estava tão
afetada pelos anos que de modo algum se poderia dizer que fosse do nosso tempo.

2. Era muito difícil definir a sua estatura: ora ela tinha o tamanho humano, ora parecia alcançar
o céu com a ponta da cabeça. E, nos momentos em que levantava um pouco mais a cabeça,
penetrava no firmamento e ocultava-se dos nossos olhares.

3. As vestes que ela usava eram confeccionadas com perfeição: compostas por um material
indivisível e por fios extremamente finos. Mais tarde, ela me revelaria que ela mesma as tecera
com suas próprias mãos. Contudo, o resplendor dessas vestes havia sido coberto pela pátina do
tempo, como uma imagem que perdeu o brilho com o passar dos anos.

4. Na parte inferior das vestes estava gravada a letra grega π. E, na parte superior, a letra grega
θ.1 Entre as duas letras, era possível distinguir uma espécie de escada cujos degraus permitiam
que se ascendesse da parte inferior até a superior.

5. Todavia, muitas mãos rasgaram essas vestes com violência e cada homem arrebatou para si o
pedaço do tecido que conseguira arrancar.

6. Na mão direita, a mulher trazia os seus livros. Na mão esquerda, um cetro.

7. Quando ela viu as musas da poesia ao redor do meu leito, ditando-me versos para os meus
lamentos, perturbou-se e, com o olhar colérico, disse-lhes indignada:

8. “Quem permitiu que essas cortesãs de teatro se aproximassem desse doente? Além de não
poderem aliviar o seu sofrimento, elas o alimentam ainda mais com os seus doces venenos.

9. “São elas que, com os espinhos estéreis das paixões, destroem a colheita fecunda da razão e,
em vez de libertar as mentes dos homens, acostumam-lhes à enfermidade.
10. “Se, tal como ocorre com freqüência, os vossos encantos houvessem enfeitiçado um homem
inculto, eu consideraria menos grave, pois assim o meu trabalho não estaria sendo frustrado.
Porém, vindes atrair justamente a esse homem versado nos estudos eleáticos e acadêmicos!

11. “Afastai-vos, sereias de cantos mortais! Deixai que eu e as minhas musas cuidemos desse
enfermo”.

12. Assim repreendido, o coro baixou os olhos e, triste, com a vergonha estampada no rubor
das faces, deixou o quarto.

13. Quanto a mim, por estar com os olhos tão cheios de lágrimas não conseguia ver direito
quem era aquela mulher de autoridade tão imperiosa. Permaneci atônito e calado, com os olhos
fixos no chão, esperando o que ela faria.

14. Então ela se aproximou e, ao pé do meu leito, contemplando o meu rosto ensombrecido
pela tristeza e pela aflição, lamentou a condição da nossa alma com os seguintes versos:

METRO 2
“Ah, quão profundo uma mente submerge!

E, abandonando a razão, ainda intenta

atravessar as trevas exteriores,

quando as delícias da Terra lhe cativam

e alimentam sua angústia mais maligna!

Este homem habituado à liberdade

percorria o etéreo a céu aberto.

Discernia do sol sua luz rosácea

e as fases da lua multiforme.

Perscrutava a incerta órbita dos astros

e as reduzia à forma de seus cálculos.

Ele tinha por costume examinar

os mistérios que movem a natureza.

Conhecia a origem das tormentas

que estremecem as águas do oceano,


o espírito que anima o curso imóvel

dos círculos dos astros pelo orbe;

sabia por que o astro que mergulha

no ocaso se levanta no Oriente.

Conhecia a lei que rege as mais amenas

das horas da serena primavera

e faz com que sempre, ao fim do ano,

o outono espesse as uvas suculentas.

Mas agora ele jaz aqui prostrado,

desprovido da luz do seu espírito,

com a nuca oprimida por cadeias

e o corpo todo encurvado pelo peso,

a encarar tão-somente a terra inerte.

PROSA 2
1. “Eis que agora não é mais tempo de lamento, mas de consolo”, disse ela.

2. E, fixando em mim seu olhar penetrante, indagou-me: “Não foste tu que, outrora, nutrido
com o meu próprio leite, sustentado com meus alimentos, conquistaste a força de espírito que é
própria de um homem?

3. “Eu te supri com armas que, se as tivesse conservado, teriam permitido defender-te com
impávida firmeza.

4. “Não me reconheces? Por que calas? Qual é a causa desse silêncio: a vergonha ou o
abatimento? Antes fosse a vergonha! Mas não! Vejo que estás abatido, tomado pelo estupor”.

5. Quando ela viu que, completamente calado, eu era incapaz de pronunciar qualquer palavra,
colocou docemente a sua mão no meu peito e disse: “Não tenhas medo, é apenas uma letargia,
enfermidade freqüente nos espíritos enganados. Perdeste a consciência de si por um momento.

6. “Porém, tão logo me reconheças, recobrarás com facilidade a consciência. Para isso,
limpemos os teus olhos, tão obscurecidos que estão pela nuvem das paixões terrenas”.
7. Depois disso, ela pegou um pedaço de suas vestes e enxugou os meus olhos banhados de
lágrimas.

METRO 3
E então as trevas noturnas dissiparam-se,

e aos meus olhos voltou a antiga clareza.

Quando os ventos noroestes2 percorrem os céus

e as nuvens chuvosas adensam-se prestes,

os astros se escondem, o sol brilha oculto,

e a noite amortalha o corpo da Terra.

Mas se o vento do norte3 da Trácia se eleva,

ele devora as trevas... e a luz se descerra.

E, de repente, com raios cheios de fulgor,

em nossos olhos Febo acende o resplendor.

PROSA 3
1. As nuvens da tristeza foram dissipadas. Olhei a luz celeste e recobrei o discernimento
necessário para reconhecer a face daquela mulher que me consolava.

2. Quando voltei meus olhos em sua direção para fixar o seu olhar, reconheci aquela que de há
muito me nutrira, a Filosofia, que havia estado comigo desde a minha juventude.

3. Perguntei: “Que fazes aqui, ó mestra de todas as virtudes? Por que desceste dos altos céus até
a solidão do meu exílio? Porventura pretendes dividir comigo as acusações caluniosas?”.

4. Ela respondeu: “Como eu poderia abandonar um discípulo meu? Como não compartilhar
contigo do fardo que suportas por causa do ódio suscitado por meu nome?

5. “A Filosofia não tem o direito de deixar um inocente sem companhia em seu caminho.
Haveria eu de temer qualquer acusação? Deveria ficar assustada frente a meus acusadores como
se a censura fosse algo novo para mim?

6. “Tu realmente crês que é a primeira vez que uma sociedade corrupta ataca a Sabedoria? Não
é verdade que, no passado, ainda antes do tempo do nosso caro Platão, travamos grandes
embates contra a astúcia da imbecilidade? E o seu mestre Sócrates, mesmo comigo ao seu lado,
não mereceu a vitória de uma morte injusta?

7. “Mais tarde, uma multidão de epicuristas, estóicos e muitos outros, cada um por seu lado,
procurou apoderar-se da herança socrática. E, assim, apesar dos meus protestos e da minha
resistência, arrastaram-me como se eu fizesse parte de seu espólio, rasgaram as vestes que eu
havia tecido com minhas próprias mãos e, cada um estando de posse de um retalho, pensava ter
consigo a veste inteira.

8. “Como era possível distinguir nesses despojos uns poucos vestígios das minhas vestes, alguns
imprudentes tomaram esses malfeitores por meus discípulos e acabaram caindo no erro do
mundanismo profano.

9. “Se não ouviste falar nem do exílio de Anaxágoras, do veneno dado a Sócrates ou das torturas
sofridas por Zenão, porque são coisas longínquas, ao menos terás ouvido falar de Cânio, de
Sêneca e Sorano, pois sua memória não é antiga nem obscura.

10. “A estes, a causa que lhes conduzira à morte foi que, por terem sido educados segundo meus
princípios, mostraram-se em perfeito desacordo com o comportamento das pessoas desonestas.

11. “Por isso, não devemos nos surpreender se, no oceano desta vida, acaso sejamos sacudidos
em todas as direções pelas tempestades, pois é natural que os nossos firmes princípios morais
desagradem aos homens maus.

12. “Embora esses constituam um verdadeiro exército, eles não merecem a nossa atenção, pois
vivem desnorteados e são arrastados pela ignorância que lhes faz vagar sem ordem e sem
equilíbrio segundo os caprichos da Fortuna.

13. “E quando esse exército se lança contra nós com mais violência, a nossa guia nos defende
com as suas tropas e cria uma barreira intransponível, a eles restando apenas os despojos inúteis.

14. “Quanto a nós, ficamos no alto, a rir da inutilidade das coisas que eles roubaram, pois
estamos protegidos por uma fortaleza que não pode ser abalada por nenhum tumulto furioso
nem pelos assaltos da ignorância.

METRO 4
“Quem leva a vida assim bem ordenada

despreza do destino as artimanhas:

enfrenta sóbrio a boa e a má Fortuna

mantendo sua aparência imperturbável.

Não lhe atordoa a fúria ameaçadora

das ondas mais profundas do oceano;


nem o vórtex de fumo do Vesúvio

que explode em turbilhões de fogo e brasa;

muito menos o raio cintilante

que abala até as torres mais altivas.

Por que então os desgraçados se impressionam

com o poder ilusório dos tiranos?

Renuncia igual ao medo e à esperança

e o adversário perderá as suas armas.

Os que vacilam por temer ou esperar

pela falta de firmeza e de domínio

assolam a sua defesa e, desolados,

forjam a própria prisão em que se arruínam”.

PROSA 4
1. Perguntou-me ela: “Tu compreendes essas palavras? Elas penetram fundo no teu espírito? Ou
tu estás como o asno diante da lira?4 Por que te pões a chorar? Por que se desfaz em lágrimas?
Fala! Nada ocultes em teu coração. Para que um médico possa curar um enfermo, é preciso
conhecer a enfermidade”.

2. Então eu, que já havia recuperado todas as minhas energias, respondi: “Será que é mesmo
preciso dar alguma explicação? Não é visível por si mesma a dureza com que a Fortuna me trata?
O aspecto desse lugar não te comove?

3. “Acaso reconheces aqui aquela biblioteca que tu mesma elegeste em minha casa como o teu
mais seguro refúgio? É este o lugar em que refletíamos a respeito do conhecimento humano e
divino?

4. “Acaso a minha vida era como agora? Eu tinha esse semblante triste quando, juntos, nós dois
sondávamos os mistérios da natureza e tu me descrevias o movimento dos astros? Ou quando
dirigias o meu comportamento e os meus costumes conforme a maravilhosa ordem das esferas
celestes? Foi essa a recompensa que mereci por seguir teus ensinamentos?

5. “No entanto, foste tu que pela voz de Platão formulaste o seguinte pensamento: ‘Os povos
serão felizes quando forem governados por homens que amam a sabedoria e que a ela se
dedicam’.
6. “Foste tu que, pela boca deste mesmo homem, também nos ensinou que os sábios é que
devem governar os Estados, para impedir que o governo seja exercido por indivíduos desonestos
e inescrupulosos, transformando- se numa catástrofe e numa ruína para as pessoas honestas.

7. “E foi assim que eu, inspirado pela tua palavra de autoridade, pretendi, ilusoriamente, aplicar
aos assuntos governamentais as lições que recebi de ti nas plácidas horas de meu retiro.

8. “Assim como Deus, que te colocaste na mente dos sábios, tu sabes que a única coisa que me
levou à conquista do poder político foi a vontade de buscar o bem comum para os homens bons e
honrados.

9. “Foi então que nasceu a minha profunda e invencível discórdia com os homens maus; aí
despertei a cólera dos poderosos, aos quais sempre olhei com desprezo, pois sempre prezei pela
justiça e pelo direito, como o exigia a liberdade da minha consciência.

10. “Quantas vezes não persegui a Conigasto,5 quando sem piedade ele queria apoderar-se das
riquezas dos mais fracos! Quantas vezes não impedi que Triguila,6 intendente do Palácio Real,
perpetrasse os crimes e as injustiças que ele havia tramado! Quantas vezes não usei de minha
autoridade para proteger os pobres e desgraçados das impunes calúnias e perseguições dos
bárbaros! Jamais alguém me fez trocar a justiça pela injustiça.

11. “Quando os habitantes da província sofreram com as depredações dos seus vizinhos ou com
as pesadas cobranças de impostos feitas pelo Estado, sofri como se fosse comigo.

12. “Na época da grande fome que afligiu o país, a ameaça de uma requisição malévola7 iria
lançar a província de Campânia na mais aterradora miséria; foi então que, em nome do bem
comum, discuti com o prefeito do pretório,8 submeti o caso ao julgamento do rei e consegui que
anulassem a requisição.

13. “A fortuna do cônsul Paulino estava sendo devorada pelos projetos e intrigas dos cães do
Capitólio, e fui eu quem livrou o cônsul de tal matilha.

14. “Para salvar outro cônsul, Albino, quando sobre ele pendia uma condenação imposta por
uma acusação sem provas, não hesitei em afrontar a ira do delator Cipriano.

15. “Não irritei bastante os poderosos? É certo que eu deveria ter encontrado uma segurança
maior entre as outras pessoas, pois por causa do direito e da justiça não obtive para mim o favor
dos cortesãos. Quem foram aqueles que me denunciaram?

16. “Um deles foi Basílio, o qual, depois de ter sido demitido da corte, se viu endividado e
converteu-se em meu inimigo.

17. “Também Opílio e Gaudêncio, que foram condenados ao exílio por causa de suas inúmeras
fraudes e buscaram asilo em um convento; porém o rei foi informado do seu paradeiro e ordenou
que deixassem a cidade de Ravena num dia determinado. Caso contrário, ele os expulsaria à força
e marcaria suas frontes com ferro incandescente.
18. “Que poderiam fazer eles contra tal ameaça? Contudo, no mesmo dia apresentaram uma
denúncia contra mim, e a denúncia foi aceita.

19. “Acaso foi minha conduta que me fez merecer isso? É como se a condenação deles houvesse
tornado a sua palavra digna de fé. A Fortuna não se envergonhou de ver um inocente ser
acusado, nem ficou indignada com a vileza dos acusadores.

20. “E queres saber o crime que me imputaram? Acusaram- me de querer salvar o Senado.

21. “Queres saber como? Um delator pretendia declarar o Senado réu de um crime de lesa-
majestade e eu o impedi. Eis o crime de que me acusaram.

22. “Que pensas de tudo isso, Mestra? Deveria eu negar o crime para que tu não te envergonhes
de mim? Mas o caso é que eu sempre quis e sempre quererei aquilo de que me reprovam. Devo
confessar minha culpa? Nesse caso, teria sido inútil o meu esforço para deter os delatores.

23. “Então se pode considerar um crime o desejo de salvar aquela grande instituição? É certo
que, pelo modo como tratara a mim, bem se poderia dizer que o Senado e todos os que o
defendem merecem ser declarados criminosos.

24. “Mas o dever não pode estar sujeito às vontades humanas, sempre contraditórias; e eu, que
sou um fiel seguidor dos ensinamentos de Sócrates, não posso ocultar a verdade e consentir com
a mentira.

25. “Seja como for, confio no teu juízo e no arbítrio dos homens sábios. E para que a
posteridade conheça a realidade dos fatos, decidi escrevê-los, para que jamais se apaguem da
memória.

26. “Com que objetivo eu deveria falar daquelas falsas cartas das quais os meus inimigos se
valeram para me acusar de ter desejado a liberdade de Roma?9 A falsidade delas seria facilmente
comprovada se não me tivessem proibido de apelar ao testemunho dos próprios acusadores, que
nesse tipo de caso é o que constitui a mais convincente das provas.

27. “Nessa circunstância, que liberdade eu poderia esperar, caso existisse alguma? Eu poderia
responder com as palavras de Cânio, o qual, quando foi acusado por Gaio César, filho de
Germânico, de ter urdido uma conspiração contra ele, limitou-se a responder: ‘Se eu de fato
soubesse o que se passava, tu jamais chegarias a sabê- lo’.

28. “Contudo, a dor não perturbou a minha mente ao ponto de eu lamentar o fato de que
homens malvados planejaram ataques criminosos contra a virtude; o que me enche de assombro
é ver que eles conseguiram realizar os seus planos.

29. “De fato, desejar o mal não passa de uma fraqueza da natureza humana; o que não é natural,
e chega a ser espantoso, é que sob o olhar de Deus se cumpram os planos dos ímpios contra uma
vítima inocente.
30. “Foi por isso que um dos teus discípulos com razão se perguntava: ‘Se Deus existe, de onde
vem o mal? Mas, se Deus não existe, de onde vem o bem?’.

31. “Admitamos, pois, que os homens perversos, ávidos pelo sangue do Senado e das pessoas
honestas, tenham arquitetado a minha perdição porque sabiam que eu era um defensor dos bons
e daquela grande instituição.

32. “Contudo, era justo que eu recebesse um tratamento semelhante da parte dos senadores? Tu
estavas sempre ao meu lado, dirigindo minhas palavras e meus atos, por isso é certo que te
lembras do que aconteceu em Verona: o rei pretendia vingar-se de todos pelo crime de lesa-
majestade e fez recair sobre o Senado inteiro a acusação que era destinada somente a Albino,
então defendi a inculpabilidade do Senado com bastante serenidade frente ao perigo de perder a
própria vida.

33. “E tu sabes que digo isso apenas por ser a verdade e que jamais pretendi me vangloriar, pois
o mérito de uma consciência reta diminui se ela fica a ostentar a própria conduta, como se
estivesse buscando a recompensa da fama.

34. “Porém, vê o resultado da minha inocência: o prêmio pela minha virtude foi o castigo de um
crime imaginário.

35. “Alguma vez houve um crime cuja confissão por parte do réu tenha encontrado a
unanimidade absoluta na aplicação de um castigo severo? Não seria mais natural que um dos
juízes apresentasse atenuantes baseadas na fraqueza humana — que facilmente induz os homens
ao erro —, ou na arbitrariedade da Fortuna, que é sempre incerta com todos os mortais?

36. “Se eu tivesse sido acusado de querer incendiar os templos, de assassinar os sacerdotes de
modo sacrílego ou de tramar a morte de todos os homens honestos, a sentença só seria cumprida
se eu confessasse os crimes ou se existissem provas irrefutáveis contra mim; mas agora decidem o
meu destino a mais de quinhentas milhas da minha presença,10 sem que eu possa falar qualquer
coisa ou me defender, e condenam-me à morte e ao confisco de todos os meus bens porque me
declarei a favor dos senadores. Oh, que ninguém merecesse ser condenado por um crime
semelhante!

37. “Ora, até os delatores perceberam que a acusação que faziam mostrava o quanto eu era
honrado e, por esse motivo, trataram de obscurecê-la, inventando também que eu cometera um
sacrilégio motivado por ambições políticas.11

38. “No entanto, tu vivias em mim, e afastavas do fundo da minha alma qualquer desejo por
bens efêmeros; e sob o teu olhar vigilante eu não poderia cometer nenhum tipo de sacrilégio. Tu
me inspiravas continuamente, fazendo ressoar nos meus ouvidos e na minha mente aquela
máxima pitagórica: ‘Segue a Deus!’.

39. “Nem era conveniente que eu recorresse ao auxílio dos espíritos inferiores, pois tu me
preparavas com excelência para a posição mais elevada: a de ser semelhante a Deus.
40. “Além disso, o caráter honesto do meu lar e a companhia de amigos completamente
íntegros, a ligação com o meu sogro, Símaco, que é a própria retidão em pessoa, alguém tão
respeitável como tu mesma, tudo isso deveria servir para descartar a suspeita de que eu pudesse
ter cometido um ato assim tão vil.

41. “Mas, ó, monstruosidade! Se agora me acusam desse crime horrendo, é justamente por
causa de ti, que sempre foi minha Mestra; acolheram a acusação de magia negra somente porque
eu estava imbuído dos teus ensinamentos e treinado na tua moral.

42. “Assim, não bastava ter sido inútil o culto que dediquei a ti, era preciso que tu também
recebesses os golpes com os quais querem me ferir.

43. “E o que agrava ainda mais o meu flagelo é o fato de que os homens não estão preocupados
com a verdade, mas apenas com os caprichos da Fortuna e seus resultados. De modo que eles só
vêem como obra divina os frutos da felicidade e se alguém — como eu, agora — se vê acometido
por uma desgraça, a primeira coisa que lhe falta é a estima dos demais.

44. “Prefiro nem falar dos rumores que circulam entre o povo, muito menos dos boatos
inúmeros e contraditórios. Só gostaria de dizer que o fardo mais pesado da desgraça é que as
pessoas tomem por verdadeira qualquer acusação feita a um homem e que, por isso, suponham
justas as provações que ele possa sofrer, ainda que seja inocente.

45. “Quanto a mim, vi-me privado dos meus bens, destituído de todos os meus cargos e com a
minha reputação manchada: tudo por ter feito o bem.

46. “Já antevejo os criminosos transbordando de júbilo e de alegria; os homens mais


monstruosos preparando novas intrigas; as pessoas honestas atemorizadas pela possibilidade de
sofrerem uma desgraça parecida com a minha; prevejo ainda outros criminosos sendo instigados
a perpetrar novos crimes devido à impunidade e às recompensas recebidas, enquanto os
inocentes se vêem privados não apenas da sua segurança, mas até mesmo da possibilidade de se
defender. É por eles que exclamo, com orgulho:

METRO 5
“Ó fundador do orbe constelado

que, do alto do trono sempiterno,

fazeis girar o céu em torvelinho

e impondes vossa lei aos astros todos:

Ora a lua reflete em plenitude

do seu irmão o brilho flamejante

e ofusca então as estrelas inferiores;


ora perde sua luz e empalidece

se sua face de Febo se aproxima.

E Vésper, que ao crepúsculo revela

a glacialidade das estrelas

à Vossa ordenação também se altera

e esvaece como Lúcifer na aurora.12

No inverno das frondes decadentes,

fazeis com que o dia seja breve.

No ápice do estio mais ardente,

abreviais da noite as horas leves.

As estações por Vós são ordenadas:

as folhas que se vão no vento norte13

retornam com os sopros mais amenos.14

Os grãos durante o outono semeados convertem-se na messe da canícula.15

Nada escapa à Vossa lei antiga

sem perder sua função originária.

A tudo governais com precisão

só não controlais a ação dos homens

para que a Vossa lei seja cumprida.

Por que, pois, a Fortuna assim nos toma

e enreda-nos em giros cambiantes?

As penas atormentam os inocentes,

mas os perversos postam-se no alto

e com atos injustos pisoteiam


a nuca dos santos veneráveis.

A virtude esconde-se nas trevas

e os justos pagam pelos pecadores.

Nenhum dano atinge aos que cometem

as inúmeras fraudes e perjúrios,

ornados pelas cores enganosas.

Contudo, se apetece a estes homens

demonstrar sua força temerosa

alegram-se por sua capacidade

de submeter até os reis excelsos

que infundem medo aos mais diversos povos.

Ó, tu, que unificais todas as coisas,

em perfeita harmonia, contemplai

a terra devastada por misérias.

Nós, homens, que da Vossa grande obra

não somos uma parte desprezível,

continuamente somos sacudidos

pelos redemoinhos da Fortuna.

Controlai as impetuosas ondas e

com a lei com que regeis o firmamento,

dai à Terra estável paz por cumprimento”.

PROSA 5
1. Quando terminei esse lamento, expressão da minha dor constante, a Filosofia, com um
semblante sereno, e sem demonstrar comoção pelas minhas queixas, disse:

2. “Quando vi a tua tristeza e as tuas lágrimas, percebi imediatamente que havias te convertido
em um exilado; porém, antes de ouvir as tuas palavras, eu não poderia adivinhar o quão remoto
era esse exílio.

3. “Entretanto, por mais distante que estejas da tua pátria, tu sabes que não foste expulso dela,
que apenas te encontras temporariamente afastado. Mas se ainda te consideras um desterrado,
sabe que foste tu mesmo quem provocou o próprio exílio.

4. “Se recordasses da pátria de onde vens, verias que ela não é governada, como a antiga Atenas,
pelo governo de todos. A tua verdadeira pátria é governada por um único Mestre e Rei, o qual se
alegra com o crescimento dos seus súditos, não com o seu exílio. Na verdade, a única liberdade
que existe é a de sujeitar-se aos limites impostos por Ele e a de submeter-se à Sua lei.

5. “Porventura tu ignoras aquela antiqüíssima lei da tua cidade, que proíbe o exílio de todo
cidadão que a tenha escolhido como pátria? De fato, ninguém que se mantenha sob o refúgio de
suas muralhas precisa temer o risco de ser desterrado; contudo, todo aquele que não mantém o
desejo de habitar dentro da cidade está renunciando, dessa forma, aos seus próprios direitos, e
assim fica sujeito ao exílio.

6. “É por isso que nem o aspecto desse lugar nem a tua triste compleição me comovem tanto;
tampouco me interessa a tua biblioteca decorada com vidros e marfim. O que mais me preocupa
é o interior da tua alma, na qual, em outro tempo, eu não depositara livros, mas aquilo que dá
vida aos livros: os antigos e sábios pensamentos.

7. “É certo que falaste com justiça a respeito dos serviços que prestaste ao bem comum, mas as
palavras que usaste não correspondem à quantidade dos benefícios por ti proporcionados.

8. “Ninguém poderá negar a falsidade dos crimes que a ti foram imputados, argumento que tu
apresentaste em favor de tua honra. Tens toda razão em exigir que se esclareçam os crimes e
fraudes dos teus delatores, porque a voz do povo, que não esquece nada, é o meio mais seguro e
mais eloqüente para fazer-se ouvido.

9. “Censuraste com veemência a conduta injusta do Senado para contigo; deploraste a acusação
feita a mim própria e lamentaste a perda da tua reputação, ofendida de modo injusto.

10. “Logo a tua ira se inflamou contra a Fortuna, e tu te queixaste do modo pelo qual as
recompensas são distribuídas, sem considerar o mérito individual das pessoas. E, finalmente,
deste voz à expressão de uma Musa irritada, pedindo que a paz que rege os Céus governe também
a Terra.

11. “O teu espírito está agitado por um grande tumulto de paixões e afetos. A dor, o pesar e a ira
estão a te desesperar de mil maneiras diferentes. Nesse estado de ânimo, ainda não te convêm os
remédios mais fortes.

12. “De modo que, por ora, me valerei de remédios mais suaves, a fim de romper a dura casca
do tumor que se criara pelo excesso de tuas perturbações; assim, mais tarde poderemos tratá-lo
de modo mais enérgico, depois que tivermos abrandado tua enfermidade com tais paliativos.
METRO 6
“Quando, sob o sol impiedoso

inflama-se a constelação de Câncer,16

aquele que guardou as suas sementes

abundantes em sulcos improlíferos,

iludido pela confiança em Ceres,17

que se dirija ao bosque dos carvalhos.

Que jamais vá ao bosque cor de púrpura

para colher violetas no momento

em que a planície se agita estridente,

tangida por furiosos Aquilões.

Que não procure fervorosamente

as vides recolher na primavera

se lhe apetecer comer as uvas.

Os dons de Baco são oferecidos

no outono, por sua preferência.

As estações por Deus são demarcadas

pela sua função na natureza

e Ele não permite que se altere

a ordenada seqüência de Seus ciclos.

Todo ato que abandona essa ordem fixa

e tenta adiantar-se ao tempo certo

não tem uma conclusão bem-sucedida.

PROSA 6
1. “Permite-me, pois, que te faça algumas perguntas para provar o teu espírito e saber qual é o
tratamento que te devo aplicar?”.

2. Respondi: “Pergunta-me tudo o que quiseres! Estou disposto a responder a qualquer


pergunta”.

3. E ela perguntou: “Tu pensas que o nosso mundo é movido pelas forças cegas da Fortuna ou
crês que é dirigido por uma Razão?”.

4. Respondi: “A mim seria impossível imaginar que um conjunto tão bem ordenado pudesse
depender das forças cegas do acaso; pelo contrário, estou persuadido de que é Deus que dirige a
obra que Ele mesmo criou, e jamais poderei pensar de outro modo”.

5. “Sim, expressaste isso muito bem nos teus versos. Deploraste a solidão dos homens que se
declaram independentes da vontade divina, e não hesitaste em declarar que todo o resto da
criação é governado por um poder inteligente.

6. “Ora! Fico extremamente surpreendida que estejas doente da alma apresentando


pensamentos assim tão elevados. Contudo, sondemos essa alma mais a fundo: tenho a impressão
de que te falta algo.

7. “Diga-me: se não duvidas de que Deus é quem governa o mundo, tu sabes quais são os meios
que ele emprega para governá-lo?”.

8. Então eu disse: “Compreendo apenas o sentido da tua pergunta, mas não é tão fácil assim
responder ao que desejas saber”.

9. Prosseguiu ela: “Eu já havia observado que havia um vazio em ti; foi por aí que, como por
uma pequena fenda aberta numa muralha, penetrou em tua alma a violenta perturbação das
paixões.

10. “Dize: porventura te esqueceste de qual é o fim de todas as coisas e o objetivo para o qual se
dirigem todos os esforços da natureza inteira?”. A essa pergunta, respondi: “Aprendi tudo isso,
mas agora minha memória está muito afetada pela dor”.

11. E ela: “E tu sabes qual é o princípio do qual provêm todas as coisas?”. “Sim. É Deus”,
respondi, “isso já sei, como lhe disse ainda há pouco”.

12. Ela retorquiu: “Como é possível que conheças o princípio de todas as coisas e ignores o seu
fim?

13. “Assim são as paixões: embora sejam capazes de comover o homem, não conseguem
arrancá-lo totalmente de si mesmo.

14. “Contudo, eu gostaria que me respondesses a outra pergunta: tu te lembras de que és um


homem?”. Respondi: “Como não me lembraria?”. E ela perguntou:
15. “Poderias explicar o que é um homem?”. E eu disse- lhe: “Sei que pretendes ver se sei que o
homem é um animal racional e mortal. Sei muito bem o que sou e compreendo que não sou
outra coisa”.

16. Disse ela: “Tens certeza de não ser nenhuma outra coisa?”. “Tenho certeza”, respondi.

17. Então ela disse: “Vejo agora que existe outra causa para o teu mal. E ela é, sem dúvida, a
causa mais influente: tu não sabes quem tu és. Acabo de encontrar a origem de todo o teu mal e
também o meio para te devolver a saúde.

18. “Sim, o que te cegou foi o esquecimento de si mesmo: por isso te queixaste do teu exílio e do
despojo dos teus bens.

19. “Por ignorar o fim de todas as coisas, tu crês que os homens perversos são poderosos e
felizes. Por teres te esquecido das leis invisíveis que regem o universo, julgas que a Fortuna e seus
caprichos caminham livremente no mundo. Bem, essas são causas que, além de enfermidade,
poderiam provocar até a morte... Portanto, demos graças ao Autor da vida porque a natureza não
te abandonou completamente.

20. “Temos aqui ao nosso alcance a centelha que acenderá a tua salvação: é a noção correta que
tens do mundo e de quem o governa; tu compreendes que o universo não está sujeito às forças
cegas da Fortuna, mas respeita uma ordem divina. Então, não é preciso temer mais nada: essa
pequena centelha se converterá numa chama tão poderosa que te devolverá o calor da vida.

21. “Entretanto, ainda não está no tempo de aplicarmos os remédios mais fortes, pois bem
sabemos que a alma humana, que em outras condições estaria completamente esclarecida,
quando se afasta da verdade se vê obscurecida pela nuvem das paixões que perturbam a sua
inteligência; por isso, primeiro tratarei de apaziguar a tua alma com os sedativos mais suaves;
mais tarde, quando as nuvens do engano já tiverem sido dissipadas, tu poderás encontrar
novamente o esplendor da verdadeira luz.

METRO 7
“Por negras nuvens

assim toldados

os astros ficam

apagados.
br/>
Se o fero Austro

o mar revolve

manchando a água
da superfície

que tem o aspecto

do céu que brilha,

areia e lama

funde indistintos

e turva a vista

com a imundície.

Existe um rochedo

que corta o fluxo

da água que desce

das altas montanhas

e impede o curso.

Também tu, se queres

conhecer a verdade

com a visão clara

e seguir um caminho

em linha reta,

renuncia ao medo

e à esperança;

renuncia aos prazeres

e também às dores;

que a alma fica

obscurecida

onde as paixões reinam”.


LIVRO II
Da verdadeira Fortuna, seus bens fictícios, e dos bens que se
podem encontrar numa Fortuna adversa.

PROSA 1
1. A Filosofia ficou em silêncio por uns instantes, despertando assim minha atenção, mas logo
continuou sua fala da seguinte maneira:

2. “Se não estou enganada ao considerar as causas e as manifestações do teu mal, creio que o
que mais te pesa é a perda da tua situação anterior. Tu imaginas que o que destrói a tua alma é a
abrupta mudança da Fortuna.

3. “Conheço os enganosos disfarces dessa feiticeira. Sei que ela distribui diversos bens àqueles
que ela pretende enganar, até que chega o dia em que, repentinamente, ela os abandona,
deixando-lhes numa desolação infinita.

4. “Porém, se te lembrares da tua verdadeira natureza, de quais são os seus costumes e o seu
valor, acabarás por ver que os bens que a Fortuna te propiciou não valiam nada; e que, portanto,
tu não perdeste grande coisa. E a mim não será difícil provar o que digo.

5. “Tu bem sabias como atacá-la com palavras duras, apesar de todos os bens que ela te
propiciava; e sei que era no meu próprio santuário que buscavas os pensamentos de que te servias
para combatê-la.

6. “Mas toda mudança abrupta no curso das coisas provoca uma alteração nos ânimos: por isso
perdeste um pouco da tua serenidade habitual.

7. “Já é hora de ministrar-te em pequenos goles um remédio suave que penetrará


gradativamente em tua alma e te preparará para os remédios mais fortes.

8. “Que venha, pois, a Retórica, com seu poder persuasivo, que sempre conduz ao caminho
correto se não se aparta dos meus princípios. Venha também a Música, jovem serva da minha
casa, para acompanhar a Retórica com as suas melodias ora graves e ora ligeiras.

9. “Ó mortal, qual é a causa da tua tristeza e do teu pranto? Parece que viste algo novo e
extraordinário. Crês que a Fortuna mudou para contigo... e estás enganado.

10. “Ela sempre conservou os mesmos costumes e o mesmo caráter. No teu caso, ela
demonstrou algo: como ela é constante na inconstância. Ela ainda é a mesma que te seduzia com
a isca de uma prosperidade ilusória.

11. “Surpreendeste a dupla face dessa potência cega. Para as outras pessoas ela permanece
oculta, mas para ti ela está completamente desmascarada.

12. “Se tu aprovas o comportamento dela, aceita ele sem queixas. Agora, se a perfídia dela te
aborrece, tu deves se afastar dela e rechaçar o seu jogo perigoso. E então aquilo que hoje é a
grande causa dos teus pesares seria o motivo da tua serenidade. Pois, na verdade, daquela que te
traiu não podemos esperar mais nada além da traição.

13. “Achas que uma prosperidade condenada ao desaparecimento é digna de estima? A Fortuna
presente não oferece nenhuma garantia de duração e, por isso mesmo, a sua perda provoca a
tristeza e o pesar. Como semelhante ilusão pode te cativar?

14. “É da natureza da Fortuna fazer com que todos que a possuem convertam-se em
desgraçados. Tu não podes sujeitar-lhe ao teu arbítrio. Assim, ela nada mais é do que o anúncio
das futuras desventuras.

15. “É preciso aprender a não se contentar apenas com a visão do presente; o homem prudente
deve saber prever o desfecho dos acontecimentos; e, justamente por causa da ambígua
instabilidade da Fortuna, não se deve temer as suas ameaças nem se aproveitar de seus favores.

16. “Em outras palavras: é necessário suportar com ânimo firme e constante todos os
acontecimentos trazidos pela Fortuna, uma vez que tenhas submetido o teu pescoço ao seu jugo.

17. “Poroutrolado, sepretendessescontrolarcaprichosamente a permanência e a partida daquela


que elegeste como guia, tu não estarias cometendo uma injustiça? A tua possível discordância ou
a tua impaciência não tornariam ainda mais penosa uma situação que não está sob o teu
controle?

18. “Se deixares as tuas velas à mercê dos ventos, não avançarás conforme os teus desejos, mas
irás para onde os ventos te levarem; se jogares as tuas sementes na terra, verás que existe um
equilíbrio entre os anos estéreis e os anos bons. Tu te entregaste à autoridade da Fortuna. De
modo que é teu dever obedecer àquela que escolheste para ser a tua senhora.

19. “Acaso tu pretenderias deter o curso da sua roda cambiante justo quando ela está em plena
potência? Ó, mais insensato dos mortais! Se fosse possível detê-la, a Fortuna deixaria de ser a
Fortuna.18

METRO 1
“Quando, com mãos orgulhosas, a Fortuna

como as correntes do Euripo19 desordena

a ordem natural das coisas plenas,


impiedosamente ela destrona

os reis que outrora foram os mais temíveis

e ostenta a face empoeirada dos vencidos.

Ela não presta atenção nem dá ouvidos

às lamentações dos infelizes

e escarnece, cruel, de seus gemidos,

que ela mesma, por sua vez, lhes provocara.

Eis a sua diversão e sua vanglória:

apresentar o prodígio deprimente

de um homem que é feliz, mas, de repente,

cai nas garras do azar na mesma hora.

PROSA 2
1. “Eu gostaria agora de te confrontar com as palavras da própria Fortuna, e tu me dirás se elas
são justas ou não:

2. Ó mortal, por que me acusas com as tuas queixas incessantes? Que injustiça eu cometi contra
ti? Acaso te despojei de algum bem que de fato possuías?

3. Convoca ao juiz que mais te aprouver e, na presença dele, discute comigo a respeito da
propriedade dos bens e honrarias; se conseguires provar que eles de fato pertencem a qualquer
um dos seres humanos, eu admitirei que aquilo que reclamas é de fato teu.

4. Quando a natureza te tirou do ventre da tua mãe, tu estavas completamente nu e


desamparado. Com meus recursos, te acolhi e te dei o calor do qual a tua vida necessitava; agora,
tu te queixas justamente porque, olhando para ti com a mesma ternura, concedi-lhe bens em
abundância e uma atenção desmedida.

5. Se hoje me agrada retirar minha mão do teu ombro, ainda assim tu me deves consideração,
pois desfrutaste daquilo que não te pertencia; tu não tens o direito de reclamar por teres perdido
bens que não eram da tua propriedade.

6. Por que, então, tantas lamentações, se não te fiz nenhum mal? As honras, as riquezas e tudo
aquilo que a elas diz respeito são de minha propriedade: eu as domino em qualquer lugar;
quando vou embora, elas vêm comigo.
7. Posso afirmar sem medo: se esses bens cuja perda tu lamentas fossem, de fato, de tua
propriedade, tu jamais os terias perdido.

8. Então só a mim é negado o exercício dos meus direitos? Ao céu é concedido o direito de
produzir dias transbordantes de luz para depois imergi-los nas trevas da noite escura; o ano tem o
direito de encher a superfície da terra com flores e frutos ou de oprimi-la com chuvas e geadas; o
mar ora pode derramar na areia a carícia das suas ondas serenas, ora pode se enfurecer com o
rugido da tempestade. Quanto a mim, deveria deixar-me acorrentar por uma imutabilidade
contrária à minha natureza só para satisfazer a insaciável cobiça dos homens?

9. Bem, aqui está o que sei fazer, o jogo incessante a que me entrego: faço girar com rapidez a
minha roda, e é meu deleite ver como sobe o que estava embaixo e como desce o que estava no
alto!

10. Tu podes subir nela se quiseres, mas com uma condição indissolúvel: quando, conforme as
regras do jogo, for a tua vez de descer, não consideres que a descida seja injusta.

11. Acaso não conhecias os meus costumes? Não te lembras de Creso,20 que um dia fora o terror
de Ciro, mas que, num súbito girar de minha roda, viu-se lamentavelmente entregue às chamas,
das quais só foi salvo por causa de uma tempestade enviada pelo céu?

12. Esquece-te de Paulo Emílio, que verteu lágrimas de compaixão pelas desgraças do seu
prisioneiro, o rei Perseu? Qual é o grande assunto dos cantos trágicos senão os cegos golpes da
Fortuna, capazes de abater até mesmo as mais fortes e poderosas monarquias?

13. Tu não aprendeste, quando criança, que na entrada do templo de Júpiter havia duas ânforas,
uma repleta de bens e a outra de males?

14. Assim, o que tens a dizer se até agora a tua sorte constituiu-se mais de bens do que males?
Se eu mesma não me afastei de ti completamente e se, tudo bem considerado, o meu caráter
mutável pode ser para ti um motivo de esperança em dias melhores? Não desanima! Encontra
novamente o teu lugar comum entre todos os mortais e não espera viver sempre numa situação
privilegiada.

METRO 2
“Se com mãos generosas, a Abundância21

derramasse riquezas infinitas

como os grãos de areia carregados

pelos ventos de Ponto22 incontroláveis;

ou dádivas na mesma quantidade


das estrelas numa noite constelada,

ainda assim não deixaria o ser humano

de lamentar continuamente suas tristezas.

Ainda que Deus ouvisse toda súplica

e prodigalizasse as honrarias

a todos que assim o desejassem,

as dádivas pareceriam nada:

a cobiça selvagem, devorando

tudo o que lhes foi oferecido

aumentaria ainda mais o seu vazio.

Que freios conteriam sua paixão,

que não conhece limite e se dilata

na medida dos desejos satisfeitos?

A abundância de graças recebidas

não aplaca o desejo ilimitado

daquele que mais quer quanto mais tem.

Não existe riqueza para o homem

se a fome insaciável lhe consome”.

PROSA 3
1. Prosseguiu a Filosofia: “Se a Fortuna quisesse defender-se das tuas recriminações com tais
palavras, tu nada terias para responder-lhe; contudo, se de alguma forma sabes como justificar
teus lamentos, podes fazê-lo: estou aqui para te escutar”.

2. Então eu disse: “Tudo isso não passa de uma argumentação bem engenhosa; essas palavras,
envoltas no mel da Retórica e da Poesia, só são agradáveis no momento em que as ouvimos; mas
as pessoas que sofrem dão um sentido mais profundo à sua própria desgraça; de modo que,
depois que cessam as palavras agradáveis, a tristeza que estava enraizada dentro do peito volta a
oprimir o coração”.
3. “Disso não há duvida”, replicou ela, “não se encontra aí a cura para o teu mal; é apenas um
primeiro remédio que, por ora, aliviará o peso da tua dor.

4. “No momento propício, te darei um remédio que penetrará na parte mais profunda da tua
alma. Contudo, não creias que és um desgraçado; porventura te esqueceste da proporção e do
alcance das tuas alegrias passadas?

5. “Quando o teu pai morreu, tu foste acolhido pelos homens mais distintos; freqüentaste as
casas dos homens mais estimáveis; por fim, foste eleito para fazer parte de uma das famílias mais
ilustres do Estado.

6. “A distinção e a linhagem dos teus sogros, a beleza e o recato da tua esposa, o orgulho de pai
por ter estreitado apenas filhos homens em teus braços, tudo isso não fez com que foste
considerado por todos como o mais feliz dos mortais?

7. “Nem mencionarei, por ser algo já bastante sabido, os cargos e posições que te foram
oferecidos ainda na juventude, e que foram negados aos mais velhos. Quero destacar aquilo que
te levou ao cúmulo da tua felicidade.

8. “E se não há dúvidas de que os bens efêmeros podem proporcionar alguma felicidade, não é
possível que as adversidades presentes tenham apagado da tua memória aquele célebre dia em
que viste os teus dois filhos, já nomeados cônsules, saírem de tua casa no meio do cortejo dos
senadores, aclamados pelo entusiasmo da multidão.23 Um dia memorável, no qual, enquanto eles
sentavam- se nas cadeiras curuis,24 tu, como orador, pronunciavas elogios ao rei, o que te fez
merecer o reconhecimento do teu talento e da tua eloqüência; ou aquele dia em que, no circo, ao
lado dos teus dois filhos cônsules, tu saciaste a expectativa da multidão que vos cercava com as
honras do triunfo.

9. “A Fortuna te parecia boa quando te acariciava como seu favorito; quando conseguiste dela
aqueles bens que a nenhum outro mortal são concedidos. E agora tu queres prestar contas com
ela?

10. “Agora é a primeira vez que ela olha para ti com um olhar maléfico. Contudo, se
ponderasses a medida e a quantidade das tuas tristezas e das tuas alegrias, tu não poderias negar
que tens sido feliz até o presente momento.

11. “E se tu pensas que não podes se considerar afortunado porque as tuas alegrias passadas
foram extintas, tampouco tu podes considerar-te um desgraçado, porque aquilo que agora é um
infortúnio também desaparecerá.

12. “Porventura esta é a primeira vez que tu assistes ao teatro da vida como se não fosse um
mero espectador? Como chegaste a pensar que pode haver estabilidade nas coisas humanas se o
próprio homem pode se ver reduzido a nada num breve instante?

13. “Mesmo naquelas situações raríssimas em que os bens da Fortuna parecem permanentes, o
último dia da vida também será o fim dela, por mais duradoura que se tenha pensado que ela
seria.

14. “Assim, que te importará abandoná-la na hora da morte? Ou ainda: que diferença faz se ela
te abandona agora?

METRO 3
“Quando em seu carro róseo Febo ascende

inundando de luz o céu inteiro,

as constelações empalidecem

ofuscadas por seus raios poderosos.

Se no bosque onde sopra o tenro Zéfiro

trazendo a primavera para as rosas

ruge a fúria de Austro tempestuoso,

restam poucos indícios da beleza:

as espinhentas hastes sem as pétalas.

A superfície do mar ora assemelha

um espelho calmo, límpido e sereno,

mas se o Aquilão desferra suas procelas

a lisa superfície se oblitera.

Se a beleza não dura sobre a Terra,

tão sujeita ao destino cambiante,

acreditar em efêmeras fortunas

é crer nas alegrias mais fugazes.

Pois há uma eterna lei estabelecida:

nenhuma criação é definitiva”.

PROSA 4
1. Então respondi: “Ó Mestra de todas as virtudes! Reconheço a verdade das tuas palavras. Não
posso negar que a minha prosperidade se deu de modo extremamente rápido.

2. “E é justamente isso o que mais acentua o meu tormento: em todos os reveses da Fortuna, a
maior das desgraças é a de ter experimentado a glória”.

3. Disse a Filosofia: “Se a causa do teu suplício é um erro de julgamento, não podes culpar o
destino. Se a vã aparência de um bem-estar efêmero é capaz de te seduzir, considera agora a
abundância e a extensão dos bens que podes encontrar em mim.

4. “Graças à Providência divina, tu conservaste intacto aquilo que há de mais precioso entre
todos os bens que te foram concedidos pela Fortuna. Assim, tu poderás queixar-se de uma
desgraça quando ainda manténs a posse dos melhores bens?

5. “Teu sogro, Símaco, honra do gênero humano, goza de lucidez e de boa saúde; além disso,
esse homem, símbolo da ciência e da virtude, indiferente a todos os ultrajes que tem suportado,25
chora pelo teu destino desafortunado — honra que tu não hesitarias em pagar com a tua própria
vida.

6. “Está viva também a tua esposa, mulher discreta, notável pelo seu recato e pela sua pureza e,
para resumir as suas qualidades, similar a seu pai em todas as virtudes; está viva, repito, e ainda
que o mundo a entristeça, por ti ela conserva o ânimo da vida. Embora eu não possa negar que o
fato de ela chorar pelo medo de te perder seja um motivo de tristeza.

7. “Que direi eu dos teus filhos, elevados à dignidade consular, nos quais resplandece a imagem
da juventude e os talentos tanto de seu avô quanto de seu pai?

8. “E, assim, posto que a maior preocupação dos mortais seja a de permanecer vivo, como eu
poderia não te considerar um homem feliz, conhecendo os bens que ainda possuis, os quais, aos
olhos de todos, são mais valiosos do que a própria vida?

9. “Enxuga, então, estas lágrimas, pois a Fortuna não te abandonou completamente, e a


tempestade que te envolve não é assim tão pavorosa: tuas âncoras são sólidas e reservam para ti o
consolo do dia de hoje e a esperança do dia de amanhã”.

10. Então eu disse: “Sim! A única coisa que peço é que não me abandonem. Enquanto eu tiver a
garantia dessas âncoras, qualquer que seja a minha sorte estarei a salvo do naufrágio. Mas veja a
que ponto rebaixei a minha dignidade!”.

11. Ela continuou: “Vejo que estamos progredindo: já não te encontras mais tão descontente
com o teu destino. Mas não posso tolerar as exigências da tua sensibilidade irritada quando tu te
queixas com amargura de que falta algo para a tua felicidade.26

12. “Afinal, quem é tão absolutamente feliz ao ponto de não precisar fazer nenhuma objeção às
circunstâncias de sua vida? O desejo ansioso é o destino de todas as alegrias humanas, que nunca
são plenas, nem perpetuamente duradouras.
13. “Um possui inúmeras riquezas, mas a sua origem humilde lhe envergonha; outro é de
origem nobre e ostenta o nome de sua linhagem, mas preferiria ser um completo desconhecido
porque possui um escasso patrimônio.

14. “Alguns são nobres e ricos, mas lamentam o fato de não serem casados; outros, casados,
lamentam o fato de não terem filhos, pois acumulam riquezas para um herdeiro que não leva o
seu sangue; outros, satisfeitos com sua descendência, reclamam da má-conduta dos filhos e das
filhas.

15. “De modo que ninguém está contente com a sua situação; em todas as condições existe algo
que é desejado por quem não as conhece; algo que, depois de experimentado, provoca
aborrecimento em vez de satisfação.

16. “Além disso, quanto mais feliz é um homem, mais exigente ele se torna; e se ele tem tudo o
que deseja a seu alcance, torna-se incapaz de lidar mesmo com a menor das dificuldades, pois
não sabe sofrer; é por isso que os mais afortunados nunca são completamente felizes, pois
qualquer adversidade é capaz de destruir a sua alegria.

17. “Consegues imaginar o grande número de homens que se acreditariam deuses se pudessem
alcançar ao menos uma pequena parte dos despojos da tua fortuna? O lugar que tu chamas de
desterro é a pátria de quem habita nele.

18. “As desgraças da vida só existem na imaginação. Por outro lado, todo destino é alegre para
aquele que sabe encará-lo de maneira equilibrada.

19. “Quem é tão feliz que não deseje mudar de condição uma vez que tenha fracassado em seu
propósito?

20. “A felicidade humana está cheia de amarguras! A Fortuna satisfaz aquele que a desfruta, mas
ninguém pode impedi- la de ir embora quando ela assim o deseja.

21. “Por aí tu podes ver quão miserável é a felicidade humana, pois não sacia os que nunca se
satisfazem e nem dura para sempre para os que facilmente se contentam.

22. “Ó, mortais! Por que buscais nas coisas exteriores a felicidade que está dentro de vós?

23. “O erro e a ignorância vos confundem. Mostrarei qual é o fundamento da verdadeira


felicidade. Acaso existe para o ser humano algo que lhe seja tão valioso quanto ele mesmo? ‘Não!’,
tu responderás. Portanto, se fores dono de ti mesmo, possuirás um bem que a Fortuna jamais
poderá tirar de ti.

24. “Acompanha o meu raciocínio e tu haverás de ver que a felicidade não pode estar nos bens
fortuitos que dependem da sorte.

25. “Se para o ser racional a felicidade é o bem supremo, e se esse bem não pode ser arrebatado
por nada — pois se pudesse ser subtraído de alguma forma já não seria superior àquele que não
se pode perder —, então é evidente que a Fortuna, instável por natureza, não pode de modo
algum aspirar à felicidade.

26. “Além disso, aquele que se deixa seduzir pela desprezível felicidade advinda dos bens
mundanos, ou sabe que ela é transitória ou não o sabe; se não o sabe, que felicidade poderá
encontrar se está imerso na cegueira da sua ignorância? Se o sabe, é inevitável que tema a perda
de um bem que lhe é aprazível, o que resultará numa inquietude e numa ansiedade contínuas,
que afinal o impedirão de ser feliz. É provável que tu argumentes que, se ele perder esses bens
fugazes, não pensará mais neles.

27. “Se assim for, essa será mais uma prova da inconsistência de tais bens, cuja perda se pode
sofrer com total indiferença.

28. “Como sei que tu estás persuadido e, por vários motivos, convencido da imortalidade da
alma humana — e estando claro que a morte é o destino certo de toda alegria fugaz advinda dos
bens materiais —, é certo que, se a morte pode acabar com a tua felicidade, todos os seres
humanos se fundem num sofrimento eterno quando chegam ao fim da vida.

29. “Por outro lado, muitos são os que buscaram a felicidade não apenas na morte, mas também
na dor e nos suplícios. Então como é possível que a vida presente faça com que sejamos
desgraçados, se nem o seu fim é capaz de fazê-lo?

METRO 4
“O homem prudente que deseja

fundar um lar perdurável sobre a Terra

sem dobrar-se às ensurdecedoras

rajadas do Euro27 dardejante,

e a desprezar também as ameaças

das violentas vagas do oceano,

que não construa sua casa nas montanhas

nem sobre as areias movediças.

Nas alturas, o Austro impetuoso

manifesta-se com todas as suas forças.

As areias, por sua vez, são muito instáveis

e não podem servir como alicerce.


Sob a beleza do espaço estão escondidos

perigos a princípio impercebíveis.

Lembra-te da lição que recebeste:

‘Constrói a tua casa sobre a pedra’.

O vento soprará com violência

e o mar se agitará incansavelmente

tu estarás tranqüilo em teu refúgio

contente pela solidez da rocha.

Os anos passarão serenamente

e tu zombarás das fúrias da Natura.

PROSA 5
1. “Vejo que os meus argumentos aliviam a tua debilidade, então é hora de recorrer a remédios
mais fortes.

2. “Ainda que os bens da Fortuna não fossem efêmeros, há algo neles que possa fazê-los
verdadeiramente teus? Ou ainda: sob um exame atento e minucioso, há algo nesses bens que não
se revele vil e desprezível?

3. “As riquezas devem o seu valor ao homem ou à sua própria natureza? O que é preferível: um
lingote de ouro ou um monte de moedas?

4. “Ora, o que dá mais valor ao dinheiro não é o ato de acumulá-lo, mas o de gastá-lo; por isso a
avareza inspira aversão, mas a generosidade é digna de aplausos e glória.

5. “E como não é possível conservar aquilo que é dado a outro, então o dinheiro tem mais valor
quando é generosamente passado para outras mãos, e então deixamos de possuí-lo.

6. “Se um único indivíduo pudesse acumular todo o dinheiro do mundo em suas mãos, todos os
outros homens ficariam empobrecidos; diferente da voz humana, que chega inteira e em toda a
sua potência a todos os ouvidos que a escutam, as riquezas não podem ser distribuídas da mesma
forma, sob a condição de dividirem-se e assim deixarem na miséria aqueles que delas se
desfazem.

7. “Ó, vede a mesquinhez e a miséria de todas as riquezas humanas! Ninguém pode possuir a
todas elas: quando um as acumula, todos os demais se vêem pobres!
8. “O brilho das pedras preciosas atrai o vosso olhar? Ora, se há algum valor nessa luz
cambiante, ele é propriedade da pedra e não do homem. Então é muito estranho que vós o
admireis.

9. “Pois como pode uma coisa destituída de vida e de movimento, sem um organismo, parecer
bela aos olhos de um ser dotado de vida e de razão?

10. “A pedra preciosa até pode ter uma beleza relativa — seja por mérito intrínseco, seja pelo
labor do Artífice que a criou —, mas por mais que se queira realçá-la, ela estará sempre abaixo da
vossa condição de seres humanos, de modo que não deveria de modo algum provocar a vossa
admiração.

11. “Acaso a beleza dos campos vos encanta? É óbvio que sim. E não sem motivo, pois não é a
natureza parte da obra mais formosa de todas?

12. “Do mesmo modo, é agradável contemplar a serena majestade do oceano; e o céu, os astros,
a lua e o sol maravilham-nos incomensuravelmente: porventura alguma destas magnificências
pertence aos homens? Vós poderíeis jactar-se de haver acendido essa luz, ou de ter concedido o
esplendor a pelo menos uma das estrelas?

13. “Acaso sois responsáveis pela elegância que as flores exibem na primavera, ou pela
fecundidade da vida que se expande nos frutos do verão?

14. “Por que te deixas seduzir pelos prazeres vãos? Por que prendes teu coração aos bens que se
encontram fora de ti, menosprezando aqueles que já fazem parte do teu ser? Deves convencer a ti
mesmo, de uma vez por todas, de que a Fortuna jamais te dará o que a própria natureza te negou.

15. “É verdade que os frutos da terra não têm outro destino senão o de servir de alimento para
os viventes; mas, se queres satisfazer às tuas necessidades — àquilo que basta à tua natureza —
não há motivos para aspirar à saciedade trazida pela Fortuna.

16. “De fato, a natureza contenta-se com poucas coisas; tudo o que passa do limite da saciedade
torna-se desagradável ou transforma-se em algo pernicioso.

17. “Por exemplo: se tu pensas em distinguir-se pela quantidade das tuas vestes, a vaidade
lisonjeará apenas a aparência externa delas, de modo que o que chamará a atenção será a
qualidade do tecido e o talento do costureiro que as terá elaborado.

18. “Pensas que uma multidão de criados poderá te trazer felicidade? Veja: se eles tiverem maus
costumes, serão um fardo perigoso para a tua casa e uma desgraça para o dono; se forem
honrados, como a honradez alheia aumentará as tuas riquezas?

19. “De todos esses exemplos, podes deduzir que, na verdade, tu não possuis nenhum dos bens
que julgas possuir. Assim, se intrinsecamente eles não contêm nenhuma bondade desejável, por
que tu haverias de lamentar a sua perda ou de regozijar com a sua posse?

20. “Se essas coisas são desejáveis por sua natureza, o que isso tem a ver contigo? Mesmo que
elas não te pertencessem, ainda assim seriam desejáveis.

21. “Em outras palavras: se tais coisas possuem algum valor, isso não se deve ao fato de serem
tuas; pelo contrário: tu só as colocaste entre as tuas riquezas justamente porque, antes, elas já
eram apreciáveis.

22. “Por que, então, tantos clamores à Fortuna? Parece- me que procuras aplacar a necessidade
por meio da abundância.

23. “Quando é justamente assim que se chega a um resultado contrário, pois a manutenção da
riqueza requer muito mais recursos. Há muita verdade naquele famoso ditado que diz que
‘quanto mais coisas se tem, maiores são as necessidades e as preocupações’. E, ao contrário disso,
não têm grandes preocupações aqueles que limitam as suas posses aos bens necessários para
satisfazer às necessidades naturais e não aspiram às coisas supérfluas oferecidas pela abundância.

24. “Não conservas nenhum bem no fundo do teu ser? É mesmo necessário que saias à procura
de bens exteriores?

25. “De tal maneira foi subvertida a ordem do mundo, que um ser cuja razão quase o torna
divino pensa que sua glória depende da posse de coisas inanimadas!

26. “A verdade é que os outros seres se contentam com seus próprios dons; mas vós, a quem a
inteligência torna semelhantes a Deus, pretendeis adornar a altivez de vossa natureza com a posse
de coisas vis, sem perceber a injúria que estais a cometer contra o Criador.

27. “Ele quis e determinou que a espécie humana fosse superior às demais, mas vós rebaixais a
vossa dignidade a um nível inferior ao das coisas.

28. “Com efeito, se em aparência um bem tem mais valor do que aquele que o possui, quando
considerais as coisas insignificantes como bens, com razão se pode dizer que o vosso juízo vos
torna inferiores a tais coisas.

29. “A natureza humana só é soberana entre todas as outras coisas quando conhece a si mesma.
Por outro lado, quando abandona o conhecimento de si, ela se rebaixa a um nível inferior ao dos
animais. Porque é natural que os outros seres vivos não se conheçam a si mesmos, mas no ser
humano tal ignorância é uma depravação.

30. “Que gravíssimo erro vós cometeis quando pretendeis demonstrar a dignidade de uma coisa
com bens que não lhe pertencem de fato!

31. “Certamente isso é um absurdo: pois se um objeto se destaca por um ornamento que lhe é
exteriormente acrescentado, o que se aprecia não é o objeto em si, mas o ornamento. Debaixo
dessa aparência exterior o objeto continua sendo exatamente o mesmo.

32. “De minha parte, afirmo que não existe bem verdadeiro que seja nocivo a quem o possui. E
estou certa de que tu não me contradirás.
33. “Muitas vezes as riquezas arruínam seus proprietários. Por exemplo: quando os piores
dentre os homens — e por isso mesmo os mais cobiçosos dos bens alheios — acreditam ter o
direito de guardar para si todo o ouro e as pedras preciosas que existem.

34. “Assim, aquele que hoje geme angustiado diante de uma espada ou de um punhal, se
trilhasse o caminho da vida com as mãos vazias, poderia regozijar-se à vista de um ladrão.

35. “Oh, que estranha felicidade esta, proporcionada pelas riquezas deste mundo: para obtê-la é
preciso abdicar da própria tranqüilidade!

METRO 5
“Felizes eram os homens primitivos!

Contentavam-se com as dádivas da terra:

não se perdiam por luxos dispensáveis

e aguardavam pacientes o momento

em que a Natura aplacasse sua fome.

Ainda não sabiam misturar

as dádivas de Baco ao puro mel;

nem sabiam tingir os radiantes

tecidos de Seres28 com a púrpura.

A relva era suave para o sono

a água era bastante para a sede

e o enorme pinheiro fornecia

a sombra necessária ao refrigério.

Eles não desbravavam os mares fundos

para praticar sua mercancia

nem desembarcavam como estranhos

nas costas ainda inexploradas.

Outrora não soava pelos ares


a trompa anunciadora das batalhas,

e ainda não vertera sobre os campos

o sangue derramado pelo ódio.

Quem se atreveria a provocar

o primeiro combate já sabendo

que o sangue derramado não traria

favor nenhum além da agonia?

Se ao nosso tempo ao menos retornassem

os costumes dos homens primitivos!

Porém mais destrutiva do que o Etna

ferve a paixão ardente da cobiça!

Ah, quem foi o primeiro a revelar

os tesouros enterrados sob a terra,

as pedras que queriam estar ocultas

— os valiosos perigos escondidos?

PROSA 6
1. “Ora, que direi eu acerca dessa honra e desse poder que para vós — que ignorais o verdadeiro
poder e a verdadeira honra — parecem o próprio céu? Quando elas caem nas mãos de indivíduos
corruptos, não há incêndio provocado pelas chamas do Etna, ou qualquer dilúvio, que possa
equiparar-se à destruição que então é produzida.

2. “Sem dúvida tu recordas que, quando os teus antepassados aboliram o poder consular,
princípio de todas as liberdades, isso se deveu à insolência dos cônsules; foi também por isso que,
em Roma, foi banido o título de rei.29

3. “Ao contrário, quando o poder e a honra são conferidos às pessoas honestas — o que é algo
muito raro —, qual é o alvo da estima senão a virtude e a honestidade? Logo, concluímos que
nenhum cargo é capaz de conferir virtudes: são as virtudes de quem desempenha um cargo que
acabam por engrandecê-lo.

4. “Que poder tão cobiçado é esse com o qual sonhais? Não percebeis, ó mortais habitantes da
Terra, quem são esses seres que julgais comandar? Se acaso um rato arrogasse para si o poder e a
autoridade sobre os demais seres, vós conseguiríeis conter a mais estrepitosa das gargalhadas?

5. “Contudo, não existe corpo físico que seja mais frágil que o do homem, o qual muitas vezes
encontra a morte na picada de um inseto insignificante ou em um pequeno verme que acaso
penetre em suas entranhas.

6. “E mesmo com um corpo frágil desse modo, que meio tem o homem de exercer qualquer
autoridade senão por essa sua parte inferior, que é a corpórea, ou ainda, a partir de algo ainda
mais baixo, que são seus bens?

7. “Quem consegue impor sua lei a um espírito livre? Quem pode perturbar uma mente que,
lastreada em sólida instrução, chegou a ser dona de si mesma?

8. “Certa vez, um tirano pensou que o suplício obrigaria um homem livre a denunciar os
cúmplices de uma conspiração urdida contra o primeiro: o acusado cortou a própria língua com
os dentes e a cuspiu na cara do tirano. O tormento infligido que, para o tirano, foi uma
oportunidade de exercer a sua crueldade, para o herói convertera-se em um ato de virtude.

9. “Que mal podeis fazer a outros que não precisarás temer da parte deles?

10. “A história nos conta que o rei Busíris mandava degolar os estrangeiros que chegavam a seu
país. Hércules, ele mesmo estrangeiro e hóspede de Busíris, acabou por degolar o rei com suas
próprias mãos.

11. “Régulo aprisionou um grande número de cartagineses, mas acabou tendo de entregar suas
mãos às cadeias daqueles que o venceram.30

12. “Acreditas, pois, que tem algum poder real o homem que não pode evitar que lhe façam a si
o que ele hoje pode fazer aos outros?

13. “Além disso, se os cargos e as honrarias possuíssem algum valor intrínseco, os homens
corruptos jamais poderiam recebê-los; porque, em essência, os elementos contrários não se
unificam: a natureza repugna semelhante união.

14. “De modo que, sendo incontestável que muitas vezes são os perversos que exercem os altos
cargos, fica evidente que tais cargos não podem ser intrinsecamente bons, pois, se assim o fossem,
não poderiam ser exercidos por quem é mau.

15. “E o mesmo se aplica aos bens da Fortuna, os quais geralmente são desfrutados em grande
abundância por aqueles que são os menos honrados.

16. “A respeito desse tipo de bens, deve-se considerar o seguinte: ninguém nega a força daquele
que demonstrou que é forte; e ninguém nega a velocidade daquele que se demonstrou veloz.

17. “Do mesmo modo, a arte musical educa os músicos, a medicina forma os médicos, a retórica
forma os oradores, pois cada coisa atua segundo a sua natureza, não se confunde com aquilo que
lhe é contrário, e afasta tudo o que lhe é oposto.

18. “Ora, as riquezas não podem saciar nem extinguir a avareza; o poder nunca conseguirá fazer
dono de si mesmo a quem é prisioneiro de seus próprios vícios; uma honraria conferida a um
perverso não o torna digno dela, mas antes o trai revelando a sua indignidade explícita.

19. “Por que acontece isso? Simplesmente porque os homens gostam de dar nomes falsos às
coisas, atribuindo a elas uma natureza bem distinta da que elas possuem na realidade; contudo,
os fatos desvelam as mentiras: e é por isso que nem as vossas riquezas, nem o vosso poder, nem as
vossas honrarias merecem ser chamados por esses nomes.

20. “Isso se aplica também à Fortuna e a tudo o que ela proporciona: pois ela não tem nada que
seja desejável ou que possua algum valor intrínseco. Além disso, nem sempre ela favorece os
homens bons; e, quando favorece os maus, isso não os torna melhores de nenhum modo.

METRO 6
“Conheces a história do tirano

que tantas ruínas produzira:

incendiou a cidade; assassinou

senadores; envenenou seu irmão

e manchou as duas mãos com o sangue rubro

da sua própria mãe sem nenhum escrúpulo.

Aproximando-se do gélido cadáver,

em vez de verter lágrimas, passou

a julgar a beleza já defunta.

No entanto, era ele quem reinava

sobre os povos por Febo contemplados

quando ergue-se longínquo no Oriente

ou mergulha os seus raios no oceano.

Também sobre os povos oprimidos

pelos gelados ventos noroestes.


E os povos causticados pelo árido

e violento sopro do Siroco.

Porventura puderam as potestades

abrandar o coração do cruel Nero?

Desditoso destino, quando se unem

o veneno mortal e a espada injusta”.

PROSA 7
1. Então respondi: “Sabes muito bem que a ambição pelos bens deste mundo nunca teve poder
sobre mim; se eu quis participar do governo, foi com a intenção de exercitar minhas virtudes,
para que elas não permanecessem inertes”.

2. Respondeu a Filosofia: “Só uma coisa seduz as inteligências superiores que ainda não
atingiram o cume da perfeição moral: a paixão pela glória, a honra de haver prestado à República
os serviços mais relevantes.

3. “Mas eu gostaria que tu considerasses o quanto esse ideal é mesquinho e sem sentido. Tu
sabes, tal como ensinaram os astrônomos, que, quando comparado à infinita extensão do
cosmos, o espaço ocupado pela Terra não passa de um pequeno ponto; ou seja, em relação à
esfera celeste, a Terra quase não ocupa espaço.

4. “Dessa parte tão pequena do universo, apenas uma quarta parte está povoada por seres
conhecidos pelo homem, tal como demonstrou Ptolomeu.

5. “E se tirares dessa quarta parte o espaço ocupado pelos mares e pela imensidão
correspondente aos desertos áridos, sobrará uma superfície bem reduzida para a habitação do
homem.

6. “Ora, é neste ínfimo ponto de um ponto, onde te encontras como se estivesses preso e
amurado por todas as partes, que buscas fazer o teu nome conhecido? Diga- me: que grandeza ou
que magnificência pode haver dentro de limites assim tão pequenos e mesquinhos?

7. “Além disso, esse pequeno ponto está ocupado por numerosos povos, que diferem entre si
pelo idioma, pelos costumes e pelos hábitos de vida; de modo que, tanto pela dificuldade de
comunicação quanto pela própria diversidade da linguagem e pela falta de contato regular, a
muitos desses povos o renome e a fama são inacessíveis, e não falo apenas dos indivíduos, mas
também das cidades e povoados.

8. “Na época de Marco Túlio Cícero, por exemplo, tal como consta em uma de suas obras, a
fama da República Romana ainda não havia tocado as montanhas do Cáucaso; e Roma já era uma
nação emergente, temida pelos partos e por outros povos daquelas regiões.
9. “Não vedes, pois, quão estreita é a glória que vos esforçais para propagar? Será possível que a
glória de um cidadão romano seja reconhecida ali aonde o renome de Roma não chega?

10. “Além disso, cada povo possui seus próprios costumes e suas próprias instituições, e eles são
tão diferentes entre si que aquilo que uns julgam digno de elogio, outros julgam um crime que
merece ser punido com o suplício.

11. “Por aí tu podes ver que aqueles que são seduzidos pela paixão da glória não conseguem
levar o seu nome a um grande número de povos.

12. “Eles terão de se conformar com uma fama difundida apenas entre os seus amigos e
familiares; e, para a maioria das pessoas, essa ilustre imortalidade que é conferida pelo renome
não passará das fronteiras de sua nação.

13. “Quantos nomes, ilustres em seu tempo, não sucumbiram ao esquecimento porque os
escritores não se recordaram deles! Contudo, de que serviriam os escritos se eles e os seus autores
também serão sepultados na longínqua noite dos tempos?

14. “No entanto, pensais que a vossa imortalidade está garantida quando sonhais com a vossa
glória futura!

15. “Se comparásseis a duração do tempo com a infinita eternidade, veríeis que a longevidade
da fama não significa nada.

16. “Ora, quando comparamos a duração de um instante à de dez mil anos, é possível perceber
que existe uma diferença entre os dois períodos de tempo; mas ainda assim há algo em comum
entre eles: as duas quantidades são limitadas, uma é fração da outra; contudo, quando
comparamos esse número de anos, ou qualquer outro, por maior que seja, à eternidade,
percebemos que não existe comparação possível.

17. “Porque, com efeito, as coisas finitas podem ter uma medida comum, mas o que é finito
jamais pode equiparar-se ao que é infinito.

18. “Logo, a duração da fama de um homem, por mais longínqua que se suponha, parecerá bem
curta, ou até mesmo nula, quando comparada à eternidade.

19. “Mas vós não sabeis fazer o bem se não for pelo estímulo da popularidade e da bajulação;
desprezais a superioridade da consciência e da virtude para buscar vossa recompensa em vazios
comentários lisonjeiros.

20. “Considera a seguinte anedota acerca desta arrogância estúpida: um homem resolveu
insultar vigorosamente certo farsante que se dizia filósofo; o farsante não nutria nenhum amor
pela verdade, queria apenas gozar da vanglória da posição; o insultador, por sua vez, queria
averiguar se o outro era, de fato, um verdadeiro filósofo, pois, se o fosse, toleraria
impassivelmente todas as injúrias; o falso amante da filosofia conseguiu conservar- se em silêncio
por um tempo, mantendo seu sangue-frio, mas, em determinado momento, não se conteve e
disse ao outro, cheio de soberba: ‘Percebes, agora, que sou um verdadeiro filósofo?’. E o outro,
com uma mordacidade mal disfarçada, respondeu: ‘Eu teria me convencido se tu tivesses
permanecido em silêncio’.

21. “Por qual razão os homens superiores — pois é deles que estamos falando, dos que buscam
atingir a glória mediante o cultivo das virtudes —, repito, por qual razão eles se importam tanto
com a fama após a dissolução do corpo?

22. “Vê: se, como dizem, a morte é mesmo o fim absoluto de todas as coisas — pensamento
com o qual não posso concordar racionalmente —, então a glória não é nada, pois aquele que a
tinha já não existe.

23. “Por outro lado, se uma alma consciente dos seus méritos logra atingir os Céus e libertar-se
de sua prisão terrena, não irá ela desprezar tudo o que seja deste mundo, uma vez que, tendo
experimentado de uma alegria incomparável a qualquer alegria terrestre, regozijará por ter
deixado a Terra?

METRO 7
“Todo aquele que busca a todo custo

a fama e o renome mais que tudo

deveria olhar a vastidão do espaço

e contrastá-la à pequenez da Terra.

Por maior que seja, a glória humana

não preenche esse espaço limitado

e assim torna-se causa de vergonha.

Por que os espíritos soberbos

pensam que a morte não os atinge?

Ainda que a fama atravesse as nações

e as línguas dos homens celebrem um nome,

e o nome se cubra de títulos vários,

a morte despreza a fama e a glória.

A morte arrebata o humilde e o célebre


iguala o mais baixo ao mais elevado.

Onde estão os ossos do fiel Fabrício?

Que é feito de Bruto ou de Catão?

Agora são apenas letras mortas

de nomes que não querem dizer nada.

Acaso o eco desses nomes nos permite

conhecer os que desapareceram?

Nenhuma glória pode libertá-los:

a morte condena os homens todos

ao desconhecimento mais completo.

Quem julga que a glória humana pode

prolongar de alguma forma a existência,

quando o futuro arrebatar seu nome,

experimentará de novo a morte.

PROSA 8
1. “Mas não quero que me julgues inexorável para com a Fortuna. Há muitas ocasiões em que
os homens se dão conta da debilidade dos bens que ela oferece: quando ela revela quem é de
verdade, quando ela desmascara o seu rosto ou quando deixa conhecer as suas artimanhas.

2. “Talvez tu não estejas compreendendo a minha linguagem; e é certo que o que pretendo te
explicar é algo de muita singularidade, por isso tenho dificuldade em encontrar as palavras
adequadas para traduzir meu pensamento.

3. “O que quero dizer é que, na verdade, os homens se beneficiam mais da Fortuna quando ela
lhes é adversa; pois quando ela se demonstra propícia, engana os homens com a falsa aparência
de felicidade; mas quando ela é adversa, não pode deixar de ser sincera, e então demonstra a
instabilidade de suas reviravoltas.

4. “A Fortuna propícia engana; a Fortuna adversa instrui; a primeira seduz os homens com
falsos bens para aprisionar a alma daqueles que chegam a prová-los; a última liberta o espírito,
pois lhe dá o conhecimento da fragilidade de toda felicidade humana. Assim, podes perceber que
a boa Fortuna é instável, está sempre à mercê dos ventos e é ignorante de si mesma; já a má
Fortuna é discreta, judiciosa e prudente — a experiência da desgraça conferiu-lhe grande
sabedoria.

5. “Em síntese: a Fortuna próspera usa de suas carícias sedutoras para afastar os homens do bem
verdadeiro; já a Fortuna adversa, tendo prendido os homens com seu anzol, faz com que eles
retornem muitas vezes ao caminho da verdadeira felicidade.

6. “Tu pensas que essa Fortuna cruel e adversa não te foi de nenhum valor? Essa foi a Fortuna
que te revelou o coração dos teus amigos fiéis; que te permitiu distinguir os amigos sinceros dos
falsos; ao partir, ela levou com ela os maus e conservou em tua vida apenas os teus familiares.

7. “Quanto tu não pagarias por esse discernimento quando te encontravas em liberdade e crias
que era afortunado? Tu até podes lamentar os bens perdidos, mas hás de reconhecer que
ganhaste o bem mais estimável de todos: os amigos verdadeiros.

METRO 8
“Se o mundo em fidelidade

alterna ciclos estáveis

e se elementos opostos

respeitam um pacto eterno;

se Febo em seu carro de ouro

traz de manhã a luz rósea

para que Febe31 governe

noites guiadas por Vésper,

é para que o mar contenha

suas águas na linha fixa e

para que a terra inconstante

não expanda os seus confins.

A lei das terras e mares

e o céu, todo constelado,

e muitos outros fenômenos


são pelo Amor controlados.

Se ele afrouxasse suas rédeas,

entre os que agora se amam

logo haveria uma guerra,

e então a máquina do mundo

que o seu movimento anima

com coerência e beleza

num instante se arruinaria.

É o Amor que mantém o pacto

sagrado que une os povos

e estreita os sublimes laços

dos matrimônios virtuosos.

E é ele quem dita as leis

aos companheiros fiéis.

A raça humana teria

felicidade infinita

fosse o coração fiel

ao Amor que rege o Céu”.


LIVRO III
A Filosofia ensina que todos os homens buscam naturalmente a
felicidade, mas que a sua fonte não pode estar nos bens
particulares, apenas no Bem Supremo e universal, que é Deus.

PROSA 1
1. Ela havia terminado o seu canto. Eu, de minha parte, permaneci estupefato e ansioso por
ouvi-la, com meus ouvidos atentos à harmonia suave dos seus versos. Então exclamei:

2. “Ó tu, consolação suprema dos espíritos abatidos! Como o encanto da tua voz e a
profundidade dos teus conselhos me reanimam! A partir de agora, já não me sentirei incapaz de
resistir aos golpes da Fortuna. Acredito que já estou preparado para aqueles remédios que tu
julgavas fortes demais para mim. Agora eles me seriam muito estimáveis. E em meu desejo de
escutar-te peço que os não me negues”.

3. “Eu já havia adivinhado”, prosseguiu ela, “quando vi que me escutavas no mais atento
silêncio; e já esperava de ti esse novo estado de ânimo em que agora te encontras; na verdade, eu
mesma te conduzi a ele. O que ainda tenho para te dizer poderá soar amargo no princípio; mas se
te aprofundares no sentido das minhas palavras, experimentarás de uma doçura incomparável.

4. “Tu dizes que estás ansioso por ouvir-me? Pois não suportarias a ânsia infinita que terias se
soubesses aonde pretendo levar-te”.

5. “Para onde?”, perguntei. E ela respondeu: “Pretendo levar-te à felicidade suprema, com a qual
tu sempre sonharas, mas que agora não podes ver porque tua alma encontra-se ofuscada pelas
aparências enganosas”.

6. Eu disse: “Pois imploro que o faças e mostre-me sem hesitar qual é a suprema felicidade”.

7. E ela: “Será um prazer fazer o que me pedes. Mas primeiro tentarei descrever em palavras a
felicidade que tu já conheces; depois que tiveres a visão bem clara desse estado conhecido, tu
serás capaz de olhar para o lado oposto e reconhecer prontamente a aparência da felicidade
verdadeira.

METRO 1
“Quem quer semear um campo virgem
primeiro livra a terra das mazelas,

corta o mato e os silvados com a foice

para que Ceres traga o trigo novo.

Melhor é o sabor do mel de abelhas

se o provamos depois de um gosto acerbo;

mais intenso é o brilho das estrelas

se elas surgem depois que cessa a fúria

de Noto com suas torrentes de chuva.

A luz da aurora brilha com mais força

quando a estrela da manhã afasta as trevas.

Eis a moral que te ensina a natureza:

depois de contemplar os falsos bens,

liberta-te do jugo que te oprime

e começa a levantar tua cabeça

para que os bens verdadeiros se revelem

e a verdade em tua alma amadureça”.

PROSA 2
1. Então ela fixou os olhos por um momento, como se estivesse recolhida em seu santuário
interior, e disse assim:

2. “Todas as preocupações e paixões dos mortais os levam a caminhos diferentes, mas para tudo
isso só há um único fim: conquistar a felicidade. Porque o bem proporcionado pela felicidade é
de tal natureza que aquele que chega a lhe possuir não consegue desejar nenhuma outra coisa.

3. “A felicidade é a síntese de todos os bens e contém a todos eles;32 se lhe faltasse apenas um de
qualquer outro bem, ela já não seria mais o bem supremo, porque então ainda restaria algo que,
fora dela, poderia ser desejado. Portanto, é incontestável que a felicidade consiste em um estado,
que é perfeito por ser a reunião de todos os bens que existem.

4. “Como eu disse antes, é um estado a que todos os mortais esperam atingir, ainda que o façam
pelos mais variados caminhos. O anseio pelo bem verdadeiro foi impresso pela natureza no
coração humano, mas o erro desvia os homens e faz com que eles busquem por falsos bens.33

5. “Alguns julgam que o supremo bem é estar livre de todas as necessidades materiais, e então se
esforçam desmesuradamente para acumular riquezas; outros pensam que o supremo bem é o
acúmulo de cargos e honrarias, e então lutam sem descanso para serem respeitados por seus
semelhantes.

6. “Há também aqueles que vêem no poder mundano o ideal do supremo bem, e então desejam
serem reis, ou pelo menos o braço direito de algum monarca. Outros sonham com a fama, e
buscam tornarem-se célebres a todo custo, cultivando as artes da paz ou da guerra.

7. “São inúmeros os que consideram o gozo como o supremo bem: para esses, não existe outra
aspiração senão a de embriagar-se de prazer.

8. “Nesta busca insensata, quantos não confundem os meios com o fim! Uns buscam as riquezas
para desfrutar do poder e dos prazeres; outros aspiram ao poder para aumentar suas riquezas ou
para tornar o seu nome famoso.

9. “E na cobiça desses bens são gastos os esforços humanos, quer limitem-se a meros desejos,
quer traduzam- se em ações. Os homens desejam os altos cargos e a popularidade porque
acreditam que eles podem tornar- lhes célebres; desejam uma mulher e filhos pelo prazer que isso
pode lhes proporcionar; apenas as amizades são consideradas matéria de virtude e não da
Fortuna; todas as outras relações são estabelecidas por causa do poder ou do prazer que delas
possam resultar.

10. “Quanto a certas condições físicas, é óbvio que estão relacionadas ao que acabo de
enumerar. De modo que a força física e um porte robusto parecem reforçar o poder; a beleza e a
agilidade trazem a fama consigo; e a saúde concede prazer.

11. “Em todos esses casos é possível perceber que o que de fato se busca é a felicidade, pois o
bem supremo é aquilo que se deseja acima de todas as outras coisas. Como já definimos a
felicidade como a posse do bem supremo, é evidente que uma pessoa, quando deseja um estado
em preferência a todos os outros, julga que esse estado é o bem supremo.

12. “Tens aí então, diante dos teus olhos, a síntese dos bens humanos: riquezas, honras, glória,
poder e prazeres. Além das alegrias, Epicuro não encontrava nada na vida que pudesse ser
chamado de bem; por isso, em sua doutrina, ele considerou o prazer como o supremo bem; pois,
pela lógica, todos os outros bens proporcionam prazer ao coração do homem.

13. “Mas voltemos ao que constitui os desejos do espírito: ainda que sua memória esteja
obscurecida, ele não cessa de almejar o bem supremo, por mais que se desvie do caminho que
leva até ele, à maneira do bêbado que não consegue voltar para casa.

14. “Será que estão mesmo enganados aqueles que buscam se libertar de todas as necessidades?
Pois é provável que nenhuma outra coisa proporcione felicidade do mesmo modo que a
abundância de todos os bens, quando não se precisa das coisas alheias e tudo o que se tem é
suficiente.

15. “E os que julgam que o bem supremo é atingido mediante as honrarias, estão errados? De
modo algum; pois, de fato, um bem para o qual se dirigem todos os esforços dos mortais não
pode carecer de valor nem ser considerado desprezível.

16. “E o poder, como não haveria de ser um bem real, se o estado que se considera superior aos
demais não pode se sustentar em bases débeis e vacilantes?

17. “E a fama, não há nenhum valor nela? Pelo contrário: todo aquele que se destaca ofusca os
demais com o seu brilho.

18. “Acredito que nem seja necessário recordar-te de que a felicidade não conhece nem a
angústia nem a tristeza, que não está sujeita nem à dor nem à pena; pois mesmo nas menores
coisas os homens buscam por algum tipo de prazer.

19. “Esses são os bens que os homens desejam alcançar. E se eles desejam riquezas, honrarias, a
própria realeza, a glória e os prazeres, é porque entendem que, ao possuir tais coisas, terão
também a abundância, o respeito, o poder, a fama e o prazer.34

20. “A felicidade é o que buscam os mortais, apesar da diversidade dos seus desejos; e isso
demonstra a grande potência da natureza, pois, ainda que os pensamentos sejam opostos, e até
mesmo contraditórios, eles coincidem em um aspecto: o fim almejado, que não é outro senão o
supremo bem.

METRO 2
“Tanjo as cordas da lira calmamente

e muitas coisas revelo no meu canto:

as mãos com as quais, suprema, a natureza

preserva as leis que regem o imenso orbe

e sustém cada um dos elementos

nos liames de sua ordem indestrutível.

Ainda que os leões cartaginenses

ostentem magníficas correntes,

tomem das mãos do homem o alimento

e temam as ameaças do seu mestre,


se o rubro sangue sobe às suas mandíbulas

recobram o caráter mais ferino

e retornam à sua antiga natureza

com sonoros rugidos poderosos.

Libertando-se, então, de suas correntes,

sem nada que constranja-lhes a nuca,

acionam as suas presas sangüinárias

e o domador, que antes lhes calava,

vira a primeira vítima da fúria.

A ave que cantava na ramagem

agora jaz no interior da jaula.

E ainda que as amigáveis mãos dos homens

lhe dediquem solícita atenção,

ofereçam-lhe alimentos abundantes

e bebidas adoçadas pelo mel,

se ao saltar pela jaula ela vislumbra

uma pequena porção da sombra verde

das agradáveis árvores do bosque,

rejeita e pisoteia o alimento

e a sua voz suave só lamenta

desejando voltar à natureza.

Sob uma intensa pressão o ramo encurva-se

flexionando a sua ponta até o chão.

Mas se subitamente a mão que o verga

liberar a pressão da extremidade,


ele apruma-se prestes, retesando-se

e apontando seu cimo para o céu.

Todos os dias Febo se esconde

nas ocidentais águas da Hespérida,

mas por secreto caminho reconduz

o róseo carro ao ponto de partida.

Todas as coisas buscam sua origem

e alegram-se se acaso a reencontram.

Nenhuma ordem dura sobre a Terra

senão aquele curso que unifica

o fim de toda coisa ao seu princípio

e estabiliza o orbe com seus ciclos”.

PROSA 3
1. Disse a Filosofia: “Vós também, ó criaturas terrestres, sonhais com a vossa origem, ainda que
a imagem que conservais dela seja vaga e imperfeita; em vossos pensamentos, é possível entrever
o verdadeiro fim da vossa felicidade; e mesmo que isso se dê de modo pouco claro, essa memória
está gravada em vós; e é por isso que, por um impulso natural, vos sentis atraídos para a
verdadeira felicidade, da qual vos aparta um erro que se multiplica incessantemente.

2. “Agora, considerai se os meios pelos quais os homens pretendem alcançar a felicidade


podem, de fato, levá-los até o fim pelo qual buscam.

3. “Pois se as riquezas, as honras e outros bens desse tipo fossem capazes de criar para o homem
um estado no qual nada lhes faltasse, eu mesma reconheceria que a posse de tais coisas poderia
trazer a felicidade.

4. “Mas se esses bens não podem conceder aos homens aquilo que prometem, e ainda fazem
com que muitos outros bens sejam excluídos, não é certo concluir que a sua aparência de
felicidade é falsa e enganosa?

5. “Quero que tu mesmo, que até pouco tempo gozavas de muitas riquezas, quero que tu me
respondas: quando vivias no meio da opulência ilimitada, não te aconteceu nenhuma vez de te
sentires perturbado depois de ter recebido uma injúria?”.
6. Respondi: “Ah! Não me lembro de ter conservado o espírito sempre tão sereno, sem que
nenhuma inquietude o perturbasse”.

7. E ela prosseguiu: “Não é verdade que ou te faltava algo que desejavas ou estava presente algo
que tu não gostarias que estivesse?”. “Sim. Era exatamente assim”, concordei.

8. “Então tu desejavas possuir uma coisa e ser privado de outra?”. “Exatamente!”, disse eu.

9. “De modo que a pessoa que deseja alguma coisa sente falta dela?”. “Sim”. “E quem sente falta
de alguma coisa, é alguém completamente auto-suficiente?”. “É evidente que não”, respondi.

10. “Então, tu, rodeado de riquezas, vias-te obrigado a suportar essa insuficiência?”. E eu disse:
“Como eu poderia negá-lo?”.

11. Prosseguiu ela: “Logo, podemos concluir que as riquezas não livram o homem das suas
necessidades e não podem fazer com que ele seja auto-suficiente, que era justamente o que elas
pareciam prometer.

12. “Assim, penso que é importante nos lembrarmos de que o dinheiro é de tal natureza que
não há nele nada que garanta que ele não possa ser retirado de quem o possui”. “Tens razão”,
respondi.

13. Ela continuou: “E como tu poderias não reconhecer isso, se todo dia vemos algum homem
poderoso tomar o dinheiro de alguém mais fraco de modo injusto? Afinal, não é desse fato que
procedem as queixas dos tribunais, nos quais se reclamam quantias consideráveis de dinheiro que
foram arrancadas de seus proprietários contra a sua vontade?”. “Certamente sim”, concordei.

14. “Portanto, para manter o seu dinheiro seguro, o proprietário necessita de uma ajuda
exterior”, prosseguiu ela. Respondi: “Não há como negar”.

15. “Contudo, se o dinheiro que se possui não pudesse ser perdido, não haveria necessidade de
tal ajuda”. “Sem dúvida”, disse eu.

16. “Então chegamos a um resultado contrário ao que se devia esperar, porque essas riquezas
são aquelas cujo dono pensava que bastavam a si mesmas, mas vemos que, por causa delas, ele se
vê convertido em alguém que necessita da ajuda alheia.

17. “Em todo caso, como poderiam as riquezas libertar os homens de suas necessidades?
Porventura os ricos não sentem fome e sede, nem experimentam em seus corpos os rigores do
duro inverno?

18. “Tu podes objetar que os ricos possuem meios de aplacar a fome, a sede e de se proteger
contra os rigores do inverno. Contudo, observa que, ainda que as riquezas possam atenuar tais
necessidades, elas não as excluem totalmente. E nos momentos em que tais necessidades se fazem
sentir, elas provocam uma ansiedade angustiante; e mesmo depois de satisfeitas, elas ainda
retornarão, prova inequívoca de que sempre resta um vazio por preencher.
19. “Sem falar do fato de que as necessidades da natureza são muito pequenas, enquanto que as
criadas pela ambição são infinitas. Assim, faço-te a seguinte pergunta: Se as riquezas, em vez de
afugentarem a necessidade, aprofundam-na ainda mais, que motivo tu tens para pensar que elas
sejam suficientes por si mesmas?

METRO 3
“Em meio a uma torrente de riquezas, o rico

amontoa bens que não aplacam a sua cobiça.

Ainda que ele adorne o seu pescoço, pesando-o

com as bonitas pérolas do Mar Vermelho,

e que centenas de bois lavrem seus campos,

a angústia não o abandonará durante a vida,

embora lhe faltem os bens na hora da morte.

PROSA 4
1. “Falemos agora dos cargos que proporcionam honrarias aos que deles desfrutam e os fazem
merecer o respeito dos demais. Acaso a magistratura pode conferir virtudes aos que a exercem ou
purificá-los dos seus vícios?

2. “Pelo contrário! Em vez de diminuir a ruindade, a magistratura serve para deixá-la mais
explícita. E é por isso que é motivo de grande indignação quando os homens mais vis ocupam
tais cargos. Eis porque Catulo deu a Nório o apelido de ‘estruma’,35 que apesar de seu caráter
sentava-se numa cadeira curul.

3. “Vês como os cargos honoríficos cobrem os homens perversos de vergonha? Sua indignidade
será menos perceptível quanto menos destacado seja o posto que ele ocupe.

4. “Quantos perigos induziram a ti mesmo quando pensaste em aceitar o exercício de uma


magistratura na companhia de Decorato, quando percebias nele o espírito do bufão mais imundo
e de um delator?

5. “De fato, não é possível julgar dignos de respeito àqueles que não merecem exercer os cargos
que exercem.

6. “Por outro lado, a um homem que tu sabes estar dotado de sabedoria, tu o julgarias indigno
do respeito ou dessa mesma sabedoria?”. “De maneira nenhuma”, respondi.

7. “Sim. A virtude sempre carrega consigo uma dignidade que lhe é própria e que é adquirida
espontaneamente por todo o homem que a pratica.

8. “Mas com os cargos públicos não ocorre o mesmo. Por isso é evidente que não há neles essa
beleza que é conferida pela dignidade.

9. “A esse respeito, é preciso observar que, se a vileza de um indivíduo é tanto maior quanto
mais ele é desprezado pela maioria das pessoas, a investidura de um cargo público — que por si
mesma não torna ninguém digno de honra — revela mais claramente a baixeza daqueles que
expõe ao desprezo.

10. “E isso acarreta outra conseqüência: os homens maus tornam desprezíveis os cargos que
ostentam, pois os conspurcam com sua vileza.

11. “Agora, para que compreendas de vez como essas honrarias fugazes não refletem a
verdadeira honra, escuta este raciocínio: se um cidadão, eleito várias vezes cônsul, se apresentasse
para um povo ou para um país estrangeiro, crês que ali as pessoas lhe renderiam alguma honraria
em virtude de seu cargo?

12. “Se as honras fossem intrínsecas aos cargos, não perderiam sua prerrogativa em nenhuma
parte do mundo e em nenhum momento da história; por sua vez, em todos os tempos e em todos
os lugares o fogo é uma fonte de calor.

13. “Porém, como os cargos não possuem um valor próprio além daquele que lhes é atribuído
pela equívoca opinião dos homens, é natural que o seu esplendor esmoreça frente aos que não
vêem neles nenhuma honra ou dignidade.

14. “Isso é o que acontece nas nações estrangeiras; mas pensemos: no lugar em que foi criado,
será que o cargo durará eternamente?

15. “Antigamente, o pretor detinha um poder imenso; hoje, pelo contrário, é apenas um cargo
qualquer, reduzido a um nome vago e, pior ainda, a uma pesada carga para o orçamento do
Senado.36 Do mesmo modo, a função de prefeito de abastecimento dos povoados, que era tida em
alta conta, agora é tão baixa que já ninguém quer exercê-la.

16. “O que carece de valor intrínseco possui um valor ilusório: hoje parece brilhar, mas amanhã
será eclipsado, conforme o gosto da opinião pública.

17. “Assim, se os cargos não podem tornar os homens respeitáveis; se, além disso, eles são
conspurcados pelo contato dos homens vis; se eles perdem o seu esplendor com as vicissitudes do
tempo e, se, finalmente, a opinião dos homens é capaz de rebaixá-los, que bondade ou beleza
pode haver neles ou podem por eles ser conferidas aos homens?

METRO 4
“Ainda que adornado com o esplendor
das púrpuras de Tiro e mais as pérolas,

todos o detestavam, o cruel Nero,

devido aos seus maléficos excessos.

Às vezes o tirano oferecia

cargos vis a senadores veneráveis.

Quem seria feliz com uma honraria

concedida pela mão de um miserável?

PROSA 5
1. “A realeza e a amizade dos reis são capazes de fazer um homem poderoso? Como não, tu
dirás, se a sua felicidade perdura eternamente?

2. “Contudo, a Antigüidade e até mesmo a nossa época oferecem exemplos de reis que
encontraram a ruína depois do esplendor. Ó grande poder, que sequer é capaz de conservar a si
mesmo!

3. “Além disso, se a realeza fosse uma fonte de felicidade, não seria correto pensar que, onde ela
falte, a felicidade diminuirá e imperará a desgraça?

4. “Assim, por maior que seja o número dos que estão submetidos à autoridade dos reis, é certo
que é muito maior o número dos que a ela não estão submetidos.

5. “E aí, no lugar em que não existe a autoridade que torna os reis felizes, entra a impotência
que os torna miseráveis; dessa forma, portanto, deve haver entre os reis uma porção maior de
miséria do que de felicidade.

6. “Foi por esse motivo que um tirano, que conhecia a tenuidade de sua condição, simbolizou os
temores inerentes à realeza com uma espada terrível que pendia sobre a sua cabeça.37

7. “Que poder é este que não pode afastar os desgostos da ansiedade e não pode escapar das
inquietações do medo? É certo que os reis gostariam de viver em uma pacífica serenidade, mas
não podem. E mesmo assim vangloriam- se de seu poder!

8. “Tu consideras poderoso um homem que almeja o que não pode ter? Que cerca a si mesmo
com uma guarda numerosa? Que teme muito mais do que é temido? Que depende de seus
cortesãos para demonstrar o seu poder?

9. “O que dizer então dos familiares e das pessoas próximas dos reis, depois que demonstramos
a inconsistência da realeza? Sua condição é ainda mais precária e muitas vezes eles sucumbem até
quando o rei permanece incólume; e, obviamente, se o rei cai, ele os arrasta em sua queda.
10. “Nero obrigou Sêneca, seu familiar e mestre, a escolher o tipo de morte que ele preferisse.
Papiano, que por muito tempo fora o mais poderoso de todos os cortesãos, foi entregue por
Antônio à espada dos seus soldados.

11. “E os dois tentaram renunciar ao poder e aos favores de que gozavam. Sêneca chegou a
oferecer toda a sua fortuna a Nero para poder se retirar da vida pública. Mas nenhum deles
conseguiu o que queria: ambos sucumbiram ao peso de sua influência imperial.

12. “Vê: que tipo de poder é esse que é temido por aqueles que o detêm? Que não pode ser
exercido senão com o sacrifício da própria tranqüilidade, e que não pode ser abandonado quando
o queremos largar?

13. “Será que podemos confiar na ajuda de amigos cuja amizade é fruto da Fortuna e não da
Virtude? Aquele que se tornou teu amigo no tempo da prosperidade se transformará em inimigo
quando chegar o tempo da desgraça.

14. “E aqueles que um dia já nos foram familiares são os piores inimigos.

METRO 5
“Quem busca pelo poder

que domine suas paixões

e não se entregue ao prazer!

Ainda que nos rincões

da Índia ouçam tuas leis,

e que trema Tule ao som

da tua voz, não julgueis

que há poder verdadeiro

onde o desejo é que é rei.38

Aí só o vício é inteiro.

PROSA 6
1. “E a glória? Quão vergonhosa e enganadora ela pode ser! Com razão exclamava Eurípedes: Ó,
glória! A quantos mortais sem mérito tu conferiste uma vida de grandezas.39

2. “De fato, são muitos os que devem sua glória à falsa opinião do povo. Será que existe algo
mais vergonhoso do que isso? Porque é muito provável que, em sua consciência, aqueles que são
prezados sem ter mérito sintam uma profunda vergonha de si mesmos.

3. “E mesmo os aplausos justificados não significam nada para um homem sábio, que não mede
a sua felicidade pela opinião vulgar, mas por sua própria retidão moral.

4. “Além disso, se ter o nome conhecido e propagado é considerado algo notável, logicamente
que não o ter é considerado algo ruim.

5. “Entretanto, como já expliquei há pouco, existem muitos povos e lugares em que não chega a
fama de um indivíduo; de modo que aquele que tu consideras cheio de glória, em outra região
será um completo desconhecido.

6. “Tratando-se dos meios pelos quais se adquire a fama, nem considero que o clamor popular
seja digno de menção; pois ele não procede de nenhum juízo sério e nem possui firmeza para ser
algo duradouro.

7. “Quanto aos títulos de nobreza, quem não vê sua patente futilidade? O brilho que acaso eles
possam conferir não pertence àqueles que os ostentam, mas parece ser uma homenagem rendida
ao mérito dos antepassados.

8. “Agora, se são os elogios que produzem a celebridade, é inevitável que sejam célebres aqueles
que recebem os elogios; mas isso não confere nenhum mérito aos homens célebres, porque a
glória não produz mérito, mas apenas celebridade.

9. “E se há algo bom na nobreza, creio que é apenas o fato de que ela traz consigo um ideal de
virtude, herdado dos antepassados, do qual os descendentes não devem se afastar.

METRO 6
“Todos os homens da Terra partilham da mesma origem.

Só existe um Pai do Universo. Só Ele a tudo governa.

Ele deu a Febo seus raios e à lua as suas fases cambiantes,

e pôs os homens na Terra como pôs no céu as estrelas.

Encerrou nos corpos as almas provindas da Altura Celeste;

uma nobre semente, portanto, engendrou todos os seres.

Por que alardeais a vossa linhagem e ancestralidade?

Considerai vossa origem divina e a nobreza comum a todos:

todos são igualmente nobres a menos que a ela reneguem


e entreguem sua alma aos vícios, desprezando assim sua origem.

PROSA 7
1. “Falemos agora dos prazeres sensíveis: o desejo por eles enche os homens de ansiedade, mas a
sua satisfação deixa um agoniante remorso.

2. “Ó, quantas enfermidades, quantas dores insuportáveis, frutos do vício, são trazidas pelos
prazeres àqueles que a eles se entregam!

3. “Não compreendo o que atrai os homens aos impulsos do prazer; mas todo aquele que
recorde os males provocados por sua própria volúpia compreenderá que os prazeres sempre
terminam na tristeza e no desânimo.

4. “E se os prazeres do corpo conferissem alguma felicidade, não haveria nenhuma razão para
não considerar felizes os animais, pois eles não aspiram a mais nada além da satisfação dos
desejos do seu corpo.

5. “Que nobilíssimo seria o prazer que podem proporcionar a esposa e os filhos. Contudo, sem
ir contra a natureza, é muito conhecido aquilo que alguém já disse a respeito dos filhos, a quem
chamava de torturadores. Qualquer que seja a condição dos filhos, eles sempre são uma
preocupação para os seus pais. Penso não ser preciso recordar-te de que, em outras ocasiões, tu
mesmo pudeste comprovar isso, e ainda hoje é algo que te enche de preocupações.

6. “Nesse assunto, aprovo o que disse o meu discípulo Eurípedes, que afirmou que aquele que
não tem filhos é feliz em seu infortúnio.40

METRO 7
“O prazer é sempre assim:

como um enxame de abelhas

ele excita os corações,

mas depois do mel sorvido

ele, atroz, desaparece

e os que dele se aproveitam

levam a alma marcada

com o gosto da doçura

que jamais é alcançada.


PROSA 8
1. “Assim, é incontestável que esses caminhos da felicidade são muito esquivos e que não levam
ninguém ao destino que prometem levar.

2. “Em poucas palavras, te mostrarei agora os males e as calamidades que estão encerrados
neles.

3. “Tu sonhas em acumular dinheiro? Então será necessário retirá-lo daqueles que o possuem.
O esplendor das honrarias te seduz? Então tu serás obrigado a suplicá- las àqueles que podem
conferi-las; e, ao fazer isso, tu, que desejas destacar-te, acabarás reduzido à humilhante condição
de um pedinte.

4. “Ou é o poder que tu desejas? Pois bem, exposto às intrigas dos teus súditos, viverás sempre
em perigo.

5. “Almejas a glória? Seus caminhos são ásperos e, ao percorrê-los, acabarás por perder a
direção e a segurança dos teus passos.

6. “Queres levar uma vida de prazeres? Então tu serás considerado a criatura mais vil e
desprezível, pois assim são vistas as pessoas que são escravas do seu próprio corpo.

7. “Se te vanglorias do teu poder físico, considera o quanto ele é uma coisa mesquinha e
perecível: por acaso tu és maior do que o elefante, mais forte do que o touro ou mais ágil do que o
tigre?

8. “Levanta teus olhos para contemplar a imensidão dos céus, sua majestade e seu movimento
incessante, e então já não te maravilharão mais essas coisas vis que agora te deslumbram. Vê:
ainda mais admirável que o próprio céu é a Lei que lhe governa!

9. “O fulgor da beleza, como desvanece rapidamente! Passa de modo veloz, fugaz, com a
inconstante rapidez de uma flor da primavera.

10. “Examina o que disse Aristóteles: se os homens tivessem os olhos de Linceu,41 capazes de
penetrar os obstáculos, o corpo de Alcebíades,42 por exemplo, que é formosíssimo em seu aspecto
exterior, não pareceria feiíssimo e repugnante em suas entranhas? Logo, não é a tua natureza que
te faz parecer belo, mas a visão deficiente daqueles que te contemplam.

11. “Podeis estimar o quanto quiseres as qualidades do corpo, desde que nunca esqueçais de que
tudo aquilo que admiras nele pode ser destruído por uma ardente febre de três dias.

12. “De tudo isso, podemos concluir o seguinte: as coisas que não podem garantir os bens que
prometem, e nem apresentam a perfeição que resultaria da síntese de todos os bens, são
caminhos que não conduzem à felicidade, nem possuem em si mesmas a capacidade de fazer o
homem feliz.
METRO 8
“Ó vós, pobres mortais que andais perdidos

nos caminhos da funesta ignorância!

De fato, não buscais ouro nas árvores

nem pedras preciosas nos vinhedos;

não estendeis as redes nas montanhas

para pescar peixes em abundância; e

se acaso desejásseis caçar cervos

é certo que não os procuraríeis

no meio dos abismos do Tirreno.

Os homens conhecem bem os oceanos

e o que está oculto sob as ondas.

Sabem onde devem buscar pérolas

ou onde achar a púrpura brilhante.

Conhecem o litoral que dá mais peixes,

e onde encontrar o espinhento ouriço.

Mas o lugar do bem que mais cobiçam

pouco lhes importa ignorá-lo.

Em vez de vislumbrar o que há além

do orbe imensamente constelado,

eles mergulham o olhar na terra parca.

Que insulto poderia descrever

comportamento assim tão insolente?

Que se percam na busca por riquezas!

Quando reconhecerem o vazio


que existe sob as falsas honrarias,

seus olhos aprenderão a contemplar

os verdadeiros bens que estão ocultos”.

PROSA 9
1. Disse a Filosofia: “Até agora não fiz outra coisa senão mostrar as aparências da felicidade
enganosa; já é hora de te mostrar onde se encontra a verdadeira felicidade”.

2. Respondi: “Compreendi tudo. Já sei que as riquezas não trazem independência, que a
monarquia não confere poder, que os cargos não conferem nem honra nem respeito, que a glória
não traz celebridade e que os prazeres não trazem a alegria”. E ela perguntou: “Mas descobriste
também o porquê de as coisas serem assim?”.

3. Eu disse: “Consigo entrever as causas, como que através de uma pequena fenda, mas gostaria
que tu me explicasses tudo mais claramente”.

4. “Não é algo difícil de compreender. O problema é que, por causa do erro, o homem divide
aquilo que é uno por natureza, transformando o verdadeiro e perfeito no falso e imperfeito.
Acaso tu crês que aquilo que não necessita de nada está desprovido de poder?”. “Claro que não”,
respondi.

5. “E tens razão. Pois se algo se demonstra fraco em algum aspecto, é óbvio que carece da ajuda
de outrem”. “Sem dúvida”, respondi.

6. Ela prosseguiu: “Portanto, a independência e o poder são de natureza idêntica”. E eu disse:


“Sim, parece-me que é assim”.

7. “E tu crês que algo que reúna em si os atributos da independência e do poder deve ser
desprezado ou, pelo contrário, deve merecer a admiração de todos?”. “Para mim não há dúvida
de que merece a admiração”.

8. “Bem. Acrescentemos então o respeito ao poder e à independência; assim poderemos


constatar que essas três qualidades são a mesma coisa”. “Assim o devemos fazer, se queremos
reconhecer a verdade”, disse eu.

9. Ela continuou: “E tu achas que algo dotado de tais qualidades permanecerá na obscuridade,
ou será antes a coisa mais evidente e explícita acima de qualquer outra?

10. “Pensa bem se aquilo que admitimos não carecer de nada, ser poderoso e merecedor da
estima que lhe conferem, pensa se é algo que pode carecer de prestígio, cuja ausência pode torná-
lo vil em alguma medida”.

11. Respondi: “Não posso deixar de admitir que algo que detenha todos esses atributos não seja
também dotado de grande celebridade”.
12. E ela: “Logo, fundamentalmente a fama não difere dos três primeiros atributos
mencionados”. “Certamente não”, disse eu.

13. “E um ser que não necessita de nenhum outro, que tudo consegue por seus próprios meios,
que se vê dotado de fama e é merecedor do respeito geral, não será também possuidor da mais
plena felicidade?”.

14. “Sequer consigo imaginar”, disse eu, “que qualquer tipo de tristeza se insinue em um ser de
tais qualidades; portanto, é necessário reconhecer que ele desfruta da mais plena satisfação, se
todas essas condições forem cumpridas”.

15. Disse, então, a Filosofia: “Logo, segundo o mesmo raciocínio é fácil de compreender que
ainda que a independência, o poder, a fama, a celebridade e o respeito tenham nomes diferentes,
eles são substancialmente a mesma coisa”. “Sim. É necessário que reconheçamos isso”, respondi.

16. Ela prosseguiu: “Por aí tu podes ver como, tomados pela ignorância ou pela malícia, os
homens fragmentam o que é uno por natureza; e assim, ao perseguir apenas uma parte dessa
unidade, não conseguem alcançá-la, pois sozinha ela não é nada, e também não alcançam a
unidade, pois não lhe procuram”.

17. “Como compreender isso?”, perguntei. E ela disse: “Aquele que acumula riquezas não se
preocupa com o poder, prefere permanecer desconhecido, priva-se de muitos prazeres naturais,
tudo para não perder o dinheiro acumulado.

18. “Dessa maneira, ele não conquista a independência, pois carece de poder, a inquietude o
atormenta, a vileza o rebaixa e o anonimato o obscurece.

19. “Por outro lado, aquele que só deseja o poder desperdiça as riquezas, desdenha dos prazeres
e das honrarias que não conferem poder, e não valoriza de modo algum a verdadeira glória.

20. “Porém, vê como lhe faltam muitas coisas: chega um dia em que ele não tem nem o
necessário; suas ambições desmesuradas lhe tiram a tranqüilidade; e, como se vê incapaz de
solucionar sua própria situação, jamais chega a atingir sua aspiração última, que é o poder, pois
esse foge de suas mãos.

21. “Podemos dizer o mesmo a respeito das honrarias, da glória e dos prazeres; porque todas
essas coisas são um único bem, e aquele que pretende alcançar apenas um deles excluindo todos
os outros não atinge nem o pouco que almejava”.

22. Então perguntei: “Mas e se alguém quiser alcançar todas essas coisas de uma única vez?”. E
ela respondeu: “É certo que buscaria então pela felicidade suprema; mas seria possível encontrá-
la em bens que, como vimos, não são capazes de proporcioná-la?”.

23. “De modo algum”, respondi. E ela: “Assim, não devemos buscar a felicidade em bens
individuais que apenas aparentam reunir em si todos os bens”. “Compreendo; não há nada mais
certo do que isso”, respondi.
24. “Bem, agora tu já conheces a aparência e as causas da falsa felicidade. Volta os olhos do teu
espírito para a direção oposta, e verás imediatamente a verdadeira felicidade que te prometi”.

25. Respondi: “Até um cego poderia vê-la, e eu posso dizer que tu a mostraste para mim quando
revelaste as causas da falsa felicidade.

26. “Se não estou enganado, será verdadeira e perfeita aquela felicidade que nos conceda, ao
mesmo tempo, independência, poder, honra, celebridade e prazer.

27. “E para te persuadir de que os teus ensinamentos penetraram de fato em minha alma, direi
ainda mais: para mim está claro que a felicidade que permita ao homem possuir apenas um
destes bens será a felicidade total, pois todos eles são a mesma coisa”.

28. “Ó, meu discípulo amado!”, ela disse, “como te considero feliz ao ver que pensas desse
modo! Contudo, é preciso acrescentar uma precaução”. “Qual?”, perguntei.

29. “Acaso tu crês que nesse mundo mortal e perecível existe algum bem que te pode levar à
posse da verdadeira felicidade?”. Respondi: “De modo algum, pois tu demonstraste claramente
que qualquer outro pensamento seria superficial”.

30. Prosseguiu ela: “Portanto, os bens deste mundo concedem aos homens uma vaga
semelhança da felicidade verdadeira ou satisfações incompletas que não são capazes de saciá-los,
mas nunca a felicidade perfeita e verdadeira”. “Concordo plenamente”, respondi.

31. “Assim”, continuou ela, “como já sabes qual é a felicidade real e qual é a felicidade falsa,
agora só te falta descobrir onde poderás encontrar a verdadeira”. E eu disse: “É o que eu mais
desejo desde há muito tempo”.

32. “Contudo, como muito bem disse o meu discípulo Platão em seu diálogo Timeu,43 até
mesmo nas situações mais simples da vida nós devemos implorar pelo socorro divino; assim,
pois, o que tu pensas que devemos fazer para conseguir encontrar o santuário desse bem
supremo?”, perguntou ela.

33. Respondi: “É necessário invocar o Pai de todos os seres, sem o qual não é possível iniciar
nada”. E ela disse: “Tens razão”. E em seguida começou a cantar assim:

METRO 9
“Ó Vós que governais todo o universo

segundo a Vossa origem sempiterna,

Criador do Céu e da Terra, que em um momento

de lá da eternidade deste a ordem


para inaugurar o fluxo do tempo.

O Universo e suas leis giram em torno

do Vosso trono instável e inabalável.

Imóvel, impulsionais o movimento

de todos os elementos que criastes.44

Vossa imensa bondade deu origem

à inspiração que dá forma ao que era informe.

Não conheceis a inveja ou o egoísmo;

nada inspirou a criação deste universo,

senão o supremo bem que em Vós habita.

Pela ordem celeste modelastes

todas as coisas criadas neste mundo.

Vós, que sois a essência da beleza,

emprestais Vossa imagem aos elementos

e a Vossa perfeição engendra a própria

perfeição de cada um dos fragmentos.

Unificais todas as coisas em harmonia

segundo a Vossa lei peremptória:

o frio que coexiste com as chamas,

o seco que convive com o úmido,

tudo em proporção bem ordenada.

O fogo, em sua pureza, não se evola

e a terra com seu peso não sucumbe:

repousa em equilíbrio sobre o abismo


e sob o peso dos grandes oceanos.

Em exata medida Vós dispondes

os elementos da tríplice natura

da Alma que tudo movimenta

e os distribuís em harmonia

por todos os membros do universo.

Essa alma, em duas partes dividida,

estabelece assim um duplo circuito,

e depois gravita em torno do Espírito

para então retornar à sua origem.

Dessa forma explora todos os espaços

dispondo os sóis, os planetas e os astros

em celeste perfeição, como modelo.

Deste mesmo princípio nascem as almas

e as formas de vidas inferiores:

a cada uma concedestes uma estrela

e a fixastes no alto com o intuito

de que seja um veículo na volta

quando chamá-las, por vossa lei benévola,

a retornar para Vós, purificadas

pelo fogo que tudo clarifica.

Permiti, ó Pai, que eu possa me elevar

e a meu espírito permiti aproximar-se

de Vossa augusta morada, onde reside

a fonte de todo bem, que está em Vós.


Concedei-me a contemplação da luz;

que ela ofusque toda coisa que me afasta

da excelsa visão da Vossa alma.

Dissipai todas as nuvens e o peso

dessa massa terrestre que me oprime.

Fazei resplandecer todas as luzes!

Pois vós sois o repouso e a paz dos justos

e contemplar-Vos é o nosso fim último.

Sois a origem e o fim, a eternidade e o tempo,

o guia, o condutor, o caminho e o destino.

PROSA 10
1. “Agora que já sabes como é o bem imperfeito e que já tens idéia de como deve ser o bem
total, creio ter chegado o momento de te mostrar no que consiste a verdadeira felicidade.

2. “Mas, antes de tudo, penso ser necessário averiguar se existe no mundo um bem de tal
natureza, isto é, perfeito, tal como tu definiste há pouco; precisamos fazer isso para que não
sejamos enganados por uma vaga aparência do espírito, afastada do que de fato pode ser
analisado.

3. “E é inegável que existe tal bem e que ele é a fonte de todos os outros bens, pois uma coisa só
é imperfeita na medida em que é inferior ao que é perfeito.

4. “Daí, depreende-se que, se conhecemos seres imperfeitos de uma determinada categoria, é


necessário que exista um ser perfeito da mesma categoria; pois, se suprimirmos a idéia da
perfeição, não se pode nem imaginar a origem disso que nos parece imperfeito.45

5. “A natureza das coisas não pode ter iniciado a partir de coisas pequenas e incompletas; ao
contrário, seu ponto de partida é o intacto, o perfeito, e é a partir daí que ela vai se degradando
até chegar ao que é baixo e deficiente.

6. “Se, como vimos anteriormente, existe uma felicidade imperfeita, constituída por um bem
desprezível, isso só acontece porque antes dela houve uma felicidade perfeita e substancial”.
Respondi: “Certamente. Aí está uma conclusão sólida e irrefutável!”.

7. “Vejamos então onde se encontra essa felicidade. Deus, que é o primeiro de todos os seres, é o
próprio bem, como o confirma o consentimento unânime de todos os homens; já que não existe
nada melhor do que Deus, é inegável que o melhor dentre todos os seres é o próprio bem.

8. “Assim, a razão demonstra que Deus é um bem e, além disso, ela prova que Ele é o Bem
Supremo.

9. “Pois, se não fosse assim, Deus não poderia ser o primeiro de todos os seres, porque existiria
então outro ser superior, possuidor do Sumo Bem e, por isso mesmo, ele seria anterior a Deus,
pois é evidente que as coisas perfeitas são anteriores às imperfeitas.

10. “Portanto, para que não prolonguemos demais esse raciocínio, é preciso recordar que Deus,
ser soberano, possui em Si mesmo o sumo e perfeito bem; e, como a felicidade está no Sumo Bem
— como já o demonstramos —, daí resulta necessariamente que a felicidade está em Deus
soberano”. Respondi: “Compreendo. Não há nada que se possa objetar razoavelmente contra tal
afirmação”.

11. “Contudo”, disse ela, “peço-te que prestes muita atenção à profundidade e à seriedade da tua
confirmação de que Deus soberano é o Sumo Bem”.

12. “Em que sentido?”, perguntei. E ela respondeu: “Não penses que o Pai de todos os seres
tenha recebido do exterior esse bem supremo cuja posse Lhe atribuímos. Nem penses que Ele o
possui por sua natureza, pois a substância da felicidade possuída não é diferente da substância do
Deus que lhe possui.

13. “Pois se acaso cresses que este Sumo Bem tivesse origem exterior, tu poderias pensar que
quem concedeu o bem é superior a quem o recebeu; e isso é incompatível com o que provamos
antes: que Deus é infinitamente superior a todos os outros seres.

14. “E se tu supusesses que o Sumo Bem está em Deus por natureza, mas que é algo distinto
d’Ele, a quem reconhecemos como princípio de todas as coisas, não seria uma contradição
imaginar o ser que une estes dois princípios, Deus e o Sumo Bem?

15. “Afinal, tudo o que é distinto de um ser, seja ele qual for, não é o ser do qual se considera
distinto; portanto, o que por natureza for distinto do Sumo Bem não pode ser o Sumo Bem: e
nem sequer podemos pensar isso a respeito de Deus, pois, como eu já o disse, ele é superior a
qualquer outro bem.

16. “Na verdade, nada pode ser, por sua natureza, melhor do que o seu princípio; e é por isso
mesmo que se pode afirmar que aquilo que é o princípio universal é também o Sumo Bem”.
“Certamente sim”, respondi.

17. “Mas tu admitiste que o Sumo Bem é a Felicidade”, disse ela. “Sim”, confirmei. “Então”, ela
prosseguiu, “é preciso que admitas que Deus seja a própria Felicidade”. Respondi: “Não posso
objetar nada aos teus raciocínios e é evidente que essa é a conclusão a que necessariamente levam
as tuas premissas”.
18. “Vejamos”, prosseguiu ela, “se podemos chegar ao mesmo resultado por um caminho mais
seguro: é impossível que existam dois bens supremos, distintos um do outro.

19. “Porque, se dois bens são distintos, é evidente que um não é o outro e, conseqüentemente,
nem um nem outro podem ser perfeitos, porque ao primeiro faltará o segundo, e vice-versa;
agora, um bem que não é perfeito não pode ser o Sumo Bem. Logo, é impossível que haja dois
sumos bens distintos entre si.

20. “Porém, como já vimos anteriormente, tanto Deus quanto a Felicidade são o Sumo Bem;
portanto, a Suma Felicidade é a mesma coisa que a Suma Divindade”.

21. Respondi: “Nada mais exato. A tua argumentação é muito sólida; ao mesmo tempo, nada é
mais digno do próprio Deus”.

22. E ela prosseguiu: “Ora, a partir dessas conclusões, seguindo o procedimento que os
geômetras chamam de porismata (deduções), inferidas das proposições demonstradas, te darei
uma espécie de corolário.

23. “Posto que os homens tornam-se felizes quando alcançam a felicidade, e posto que a
felicidade seja a divindade, é inegável que nos tornamos felizes quando alcançamos a divindade.

24. “O justo chega a ser justo pela justiça, o sábio chega a ser sábio porque adquiriu a sabedoria;
da mesma forma, aquele que alcança a divindade converte-se em deus.

25. “Logo, todo homem a quem podemos chamar de feliz é um deus; essencialmente, Deus é
um só; mas, por participação,46 nada impede que haja muitos”.

26. “Que bela conclusão!”, exclamei. “Quer se chame ‘dedução’ ou ‘corolário’, a verdade é que é
digna da maior atenção”.

27. Disse ela: “Mas existe outro pensamento ainda mais belo que podemos ligar logicamente ao
anterior”.

28. “Qual?”, perguntei. Respondeu ela: “Parece que a felicidade é constituída por vários
elementos; assim, podemos perguntar: acaso todos eles formam um conjunto único, com partes
ligeiramente diferentes, ou há algum desses elementos que é a essência da felicidade, e todos os
outros são como que complementos dele?”.

29. Respondi: “Eu gostaria que tu esclarecesses melhor a pergunta. Especificando quais são esses
elementos”. Então ela perguntou: “Não concordamos que a felicidade é o bem?”. “Não apenas o
bem, mas o Sumo Bem”, respondi.

30. Ela continuou: “Pois tu podes chamar a todos os bens individuais por este nome de Sumo
Bem: porque a independência, o poder, as honras, a fama e o prazer, quando possuídos em seu
grau máximo, são sinônimos de felicidade.
31. “Porém, eu gostaria de te perguntar: todas essas coisas — a independência, o poder e as
demais — são consideradas um bem na medida em que são partes da felicidade, ou relacionam-se
com o bem por serem degraus que devem ser escalados até o cume em que ela se encontra?”.

32. “Entendo o problema”, disse eu, “mas gostaria de saber como solucioná-lo”.

33. “Considera, pois, o seguinte: se todos esses bens enumerados fossem partes da felicidade,
eles seriam distintos entre si, porque é próprio das partes reunirem sua diversidade para
constituir um todo.

34. “Mas já vimos que todos esses bens são a mesma coisa; logo, não são partes. Pois, se o
fossem, a felicidade seria apenas uma parte ou membro de algo, o que é impossível”.

35. Então eu disse: “Parece-me que esse raciocínio é muito justo, mas eu gostaria de conhecer
sua conclusão”.

36. Prosseguiu ela: “É evidente que as coisas que faltam estão relacionadas com o bem; pois, de
fato, quando alguém busca a independência, por exemplo, é porque a considera como um bem; e
o mesmo se aplica ao poder, às honras, à fama e aos prazeres.

37. “Disso depreende-se que o bem é a essência e a razão de todos os desejos; e que tudo o que
não contém em si um bem, real ou aparente, não deve ser de nenhum modo desejado.

38. “Por outro lado, basta que uma coisa tenha a aparência do verdadeiro bem, ainda que não
seja uma coisa boa, para que a vontade humana a busque. E isso demonstra que o bem é a
qualidade considerada como essência, fundamento e razão de todos os desejos, pois o que se
busca em todas essas coisas é o bem.

39. “Ora, quando há uma causa que induz alguém a desejar alguma coisa, o que na verdade se
deseja é o bem. Por exemplo: se alguém pretende viajar a cavalo por ser algo bom para a saúde, o
que se busca não é precisamente o exercício, mas a saúde.

40. “Assim, se todas as coisas são desejadas pelo bem que elas proporcionam, o que se deseja
não são as coisas, mas o próprio bem.

41. “Porém, como já vimos, a felicidade é o que move todos os desejos; logo, a felicidade é o
objeto de todos os desejos humanos.

42. “E então fica evidente que o bem e a felicidade são a mesma coisa”. Respondi: “Na verdade,
não vejo como é possível negar isso”.

43. “Mas já ficou demonstrado”, continuou ela, “que Deus e a verdadeira Felicidade são a
mesma coisa”. “Assim é”, respondi. E ela concluiu: “Portanto, podemos afirmar com toda certeza
que a essência de Deus reside no bem, que é o próprio bem e nenhuma outra coisa.47

METRO 10
“Vinde, todos vós, que estais cativos,

prisioneiros das cadeias vergonhosas

da enganosa paixão que habita o espírito.

Aqui é o porto plácido e sereno,

refúgio para todo desgraçado,

onde estareis libertos das fadigas.

As areias auríferas do Tejo,

ou as margens do Hermo, refulgentes,48

ou o tórrido Indo,49 em cujas águas

correm diamantes e esmeraldas,

nada disso aclararia os vossos olhos,

mas os eclipsaria em suas trevas.

Tudo isso que seduz a mente humana

foi gestado na sombria escuridão.

Mas o esplendor que anima o azul do céu

esquiva-se das trevas que há na alma.

Quem tenha visto um pouco dessa luz

jamais dirá que o sol é um ser brilhante”.

PROSA 11
1. “Não posso senão concordar contigo”, disse eu, “pois tudo o que tu disseste apóia-se em
raciocínios muito sólidos”.

2. Prosseguiu a Filosofia: “Estimarias saber o que é o próprio bem?”.

3. Respondi: “Tal conhecimento seria de valor infinito, sobretudo se ao mesmo tempo também
me fosse concedido o conhecimento de Deus, que é o Sumo Bem”.

4. “Pois bem”, continuou ela, “revelarei o próprio bem a partir de um raciocínio absolutamente
irrefutável, desde que não te esqueças das conclusões a que já chegamos”. “Não me esquecerei
delas”, respondi.

5. E ela: “Não ficou demonstrado que os bens desejados pela maioria dos mortais não são
verdadeiros e perfeitos — posto que sejam distintos entre si — e que, na medida em que falte a
qualquer um deles algo que outro possua, eles não podem proporcionar o bem total e absoluto?
Também não ficou demonstrado que o verdadeiro bem só surge quando todos os bens se
reúnem, por assim dizer, numa só forma e numa só potência; de modo que a independência, o
poder, a honra, a fama e o prazer, a não ser que sejam uma só e a mesma coisa, nada possuem
isoladamente que nos leve a considerá-los como bens desejáveis?”.

6. “Sim”, respondi, “assim ficou demonstrado e ninguém pode duvidar”.

7. Prosseguiu ela: “Portanto, se estes bens considerados isoladamente não são verdadeiros e só
adquirem realidade quando constituem uma única coisa, isso não significa que para serem
considerados bens desejáveis eles precisam adquirir a unidade?”. “Assim me parece”, respondi.

8. Perguntou ela: “Então tu admites que tudo o que é bom o é pelo fato de participar do bem?”.
“Sim”, confirmei.

9. “Portanto”, disse ela, “tu deves admitir que a Unidade e o Bem são a mesma coisa; porque as
causas que naturalmente produzem os mesmos efeitos precisam ser da mesma substância”. “É
impossível negá-lo”, respondi.

10. “Sim”, continuou ela, “tu não vês que as coisas existentes permanecem enquanto conservam
sua unidade e, pelo contrário, perecem e destroem-se quando a perdem?”.

11. “Como assim?”, perguntei. E ela: “Tomemos os seres animados como exemplo: enquanto a
alma e o corpo permanecem unidos, formando um todo, pode-se dizer que aquele ser vivo existe;
mas, quando a unidade é destruída pela separação dos elementos, o ser vivente deixa de existir.

12. “Da mesma maneira, enquanto o corpo conserva a sua estrutura orgânica por causa da
união dos seus membros, ele identifica-se com um corpo humano; mas se as partes que lhe
integram são separadas e desintegradas, ele deixa de ser o que era.

13. “Se considerarmos todos os seres, quaisquer que sejam, veremos claramente que só existem
enquanto permanecem unos; e, no momento em que perdem a sua unidade, morrem”. “Estou
trazendo muitos seres à minha memória”, disse eu, “e vejo que, de fato, todos eles obedecem a
esta lei”.

14. Ela perguntou: “Será então que existe um ser que, atuando contra a sua própria natureza,
perca o instinto de preservação e deseje a corrupção e a morte?”.

15. “Se observo os seres viventes”, respondi, “que possuem alguma faculdade natural de querer
ou não querer, não encontro nenhum que, sem o influxo de pressões externas, abandone o
instinto da existência e deseje voluntariamente sua própria morte.
16. “De fato, todo ser vivente se esforça para conservar a saúde e tenta evitar a morte e a
destruição.

17. “Contudo, nessa matéria, tenho sérias dúvidas a respeito das árvores e dos seres
completamente inanimados”.

18. Ela disse: “Não há razão para teres dúvida acerca disso; observa como as plantas nascem nos
terrenos apropriados, em harmonia com a sua natureza, motivo pelo qual não secam nem
perecem facilmente.

19. “Umas nascem nas planícies, outras nas montanhas; outras nascem nos pântanos, e há
aquelas que prosperam nas rochas e nos penhascos. E até mesmo as areias aparentemente estéreis
mostram sua fecundidade com a variedade de plantas que nelas nascem; se essas plantas fossem
transportadas para outro terreno, elas secariam e morreriam.

20. “A natureza dá a cada ser aquilo que lhe é mais adequado; e dispõe tudo de modo a impedir
que o ser pereça enquanto suas próprias condições lhe permitam existir.

21. “Como explicar que todas as plantas absorvam seu alimento das raízes, essas espécies de
bocas afundadas no interior da terra; e que retirem do solo a seiva que dá vida à sua madeira e à
sua casca?

22. “E tu não vês que as partes moles, como a medula, por exemplo, ficam no interior e são
protegidas por partes exteriores que são mais duras e resistentes, sendo a casca uma espécie de
escudo que permite suportar as intempéries?

23. “Vê ainda como a natureza é diligente em propagar todas as espécies por meio da
multiplicação das sementes.

24. “Quem não sabe que essas sementes são organismos capazes não apenas de assegurar a sua
própria existência, mas também de perpetuar a vida ininterruptamente?

25. “Não é verdade que mesmo as coisas aparentemente inanimadas buscam, cada uma delas à
sua maneira, aquilo que é mais próprio da sua natureza?

26. “Ora, por que a leveza da chama faz com que ela se eleve para o alto, ou por que o peso da
terra faz com que ela seja arrastada para baixo, senão pelo fato de que esses diferentes
movimentos e posições são os que mais combinam com cada respectivo elemento?

27. “Assim, pois, as coisas são preservadas conforme o que está de acordo com a sua natureza; e
perecem por tudo que lhes é contrário e hostil.

28. “Os corpos duros, como as pedras, possuem grande coesão entre as partes que lhes
constituem e dificilmente se fragmentam.

29. “Já os corpos fluídos — como o ar e a água — cedem com muita facilidade a qualquer
esforço externo que tenda a dividi-los; contudo, quando cessa a causa que alterou o seu
equilíbrio, eles voltam imediatamente ao seu estado primitivo; o fogo, por sua vez, resiste a todo
tipo de separação.

30. “E nem falo precisamente dos movimentos voluntários da alma consciente, mas das
tendências naturais: assim, sem que o percebamos, digerimos os alimentos que ingerimos; e
também de modo inconsciente respiramos durante o sonho.

31. “Porque mesmo nos seres animados o desejo de permanência não depende da vontade, mas
obedece a uma lei natural.

32. “É certo que, muitas vezes, sob a influência de causas exteriores, a vontade deseja a morte,
embora a natureza a rechace com horror; da mesma forma, às vezes a vontade é capaz de refrear a
única coisa que assegura a perpetuação das espécies mortais: a reprodução, algo que a natureza
busca de modo incessante.

33. “Daí se pode concluir que o amor-próprio não advém de um movimento intencional da
alma, mas de uma exigência da natureza. Pois, como uma espécie de motivação essencial, a
Providência dotou as suas criaturas com o instinto que lhes motiva a desejar a permanência na
medida em que seja possível existir.

34. “Conseqüentemente, não existem razões para duvidar de que todas as coisas que existem
buscam naturalmente pela permanência e naturalmente evitam a dissolução”.

35. “Confesso”, disse eu, “que agora compreendo mais claramente o que antes ainda não estava
tão claro para mim”.

36. “Contudo”, prosseguiu ela, “aquilo que deseja sobreviver e permanecer deseja ser uma
unidade, pois, sem unidade, nada pode conservar sua própria existência”. “Sem dúvida”,
respondi.

37. “Portanto, todos os seres aspiram à unidade”. “Concordo que sim”. “E já vimos que a
Unidade e o Bem são a mesma coisa”. “Sem dúvida”.

38. “Logo”, retomou ela, “todos os seres aspiram ao bem, que pode ser definido desta maneira:
em essência, o bem é aquilo que todos os homens desejam”.

39. “Não posso imaginar nada mais certo do que isso”, respondi, “pois, na verdade, ou todos os
seres tendem ao aniquilamento e, privados da unidade, que viria a ser como que sua cabeça,
caminham sem piloto à mercê das ondas; ou, pelo contrário, existe um princípio para o qual
todas as coisas do mundo se dirigem, e esse princípio é o Sumo Bem”.

40. E ela respondeu: “Fico muito feliz, meu discípulo, em ver que encontraste a verdade; e, ao
mesmo tempo, que confessas conhecer o que ainda há pouco tu dizias ignorar completamente”.
“O quê?”, perguntei.

41. Disse ela: “O fim universal de todas as coisas, que, sem dúvida, também é o que todos
desejam. Ora, como concluímos que o que todos desejam é, precisamente, o bem, é inevitável
reconhecer que o bem é o fim universal de todas as coisas.50

METRO 11
“Quem busca a verdade seriamente

e não deseja ser ludibriado

deve deixar brilhar sobre si mesmo

aquela luz da visão interior

e concentrar os amplos movimentos

da alma em um círculo perfeito;

os tesouros que se buscam pelo mundo

já estão secretamente em nossa alma.

Eis a compreensão suficiente para

dissipar do erro as nuvens negras

e fazer com que a verdade brilhe mais

que Febo com seus raios refulgentes,

pois o corpo e sua matéria não conseguem

obliterar completamente a luz da alma.

No interior do homem permanece

uma pequena semente de verdade

capaz de iluminar a alma inteira.

Não saberias nada com justeza

se em teu coração não existisse

essa luz que é capaz de iluminá-lo;

Se a Musa de Platão diz a verdade

todas as coisas aprendidas


são memórias das coisas esquecidas”.51

PROSA 12
1. Então eu disse: “Concordo plenamente com Platão; pois agora, por tua causa, é a segunda vez
que me lembro do que antes havia esquecido; primeiro pelo contato com esse corpo material,
depois por causa da opressão provocada pelas desgraças que se abateram sobre mim”.

2. A Filosofia respondeu: “Se tu pensares bem a respeito das conclusões precedentes a que
chegamos, não demorará que te recordes de outra coisa, que tu há pouco confessaste
desconhecer”. “Que coisa é esta?”, perguntei.

3. Ela disse: “Os princípios pelos quais o mundo é governado”. Respondi: “Sim. Lembro-me de
ter admitido minha ignorância a respeito desse assunto; contudo, embora eu consiga vislumbrar
o que tens a me dizer, desejo ansiosamente que me expliques esse assunto com mais clareza”.

4. Ela disse: “Ainda há pouco tu consideraste que ninguém pode duvidar de que o nosso mundo
é governado por Deus”. Respondi: “Ainda penso da mesma maneira. Pensarei assim para sempre.
E te explicarei os motivos que sustentam as minhas conclusões.

5. “Nosso mundo é formado por partes bastante diferentes e muitas vezes contraditórias;
dificilmente essas partes formariam um todo se não existisse um ser capaz de ordenar elementos
assim tão díspares.

6. “Além disso, mesmo quando tais elementos estivessem unificados num todo, a diversidade de
suas naturezas — que faz com que sejam mutuamente inarmônicos — faria com que eles se
separassem e se dispersassem, se não houvesse um ser que os mantivesse unidos.

7. “Não haveria também essa ordem calculada que podemos contemplar no mundo: as
diferentes partes não criariam uma relação tão harmônica no que diz respeito ao lugar, ao tempo,
aos efeitos das causas, ao espaço e às qualidades, se não houvesse um ser que, sendo estável por
natureza, controlasse a variedade dessas mudanças.

8. “A este ser, seja ele quem for — graças a quem as coisas criadas permanecem ao mesmo
tempo estáveis e em movimento — chamo-o pelo nome de ‘Deus’, usando a palavra empregada
por todos os povos da Terra”.

9. Ela respondeu: “Já que pensas deste modo, pouco me resta a fazer para que voltes à tua pátria
são e salvo, consciente do teu destino e seguro do teu bem-estar.

10. “No entanto, consideremos com atenção as nossas conclusões: não é verdade que incluímos
a independência como um dos elementos da felicidade, chegando à conclusão de que Deus é a
própria felicidade?”. “Sim”, respondi.

11. Prosseguiu ela: “Contudo, para governar o mundo, Deus não pode necessitar de nenhuma
ajuda exterior; pelo contrário, se Ele necessitasse de alguma coisa — por menor que fosse —, a
Sua independência já não seria plena”. “Exatamente. É preciso reconhecê-lo”, disse eu.

12. “Conseqüentemente”, continuou ela, “Deus cria e governa todas as coisas por si mesmo”.
“Exatamente!”, acedi.

13. “Também ficou demonstrado que Deus é o próprio Bem”. “Sim, recordo-me disso”,
respondi.

14. “Portanto, se de fato governa tudo sozinho, Ele ordena todas as coisas em virtude do Bem. E
todas as coisas são arranjadas tendo em vista atingir o Bem, pois, como reconhecemos
anteriormente, Deus é o Sumo Bem e, de certa maneira, o Bem é o instrumento que mantém a
máquina do universo estável e incorruptível”.

15. “Estou inteiramente de acordo”, eu disse, “já há algum tempo previ que tu irias dizer isso,
embora fosse apenas um pressentimento”.

16. “Acredito em ti”, ela prosseguiu, “pois vejo que agora tens os olhos melhor preparados para
discernir a verdade; por isso, penso que compreenderás claramente o que direi a seguir”. “A
respeito de quê?”, perguntei.

17. “Podemos pensar que Deus governa tudo em virtude do Bem; e que todas as coisas,
conforme ensinei anteriormente, possuem em si uma tendência natural para o Bem. Tendo isso
em vista, é inegável que todas as coisas deixam-se governar voluntariamente e que
espontaneamente se colocam às ordens d’Aquele que as dirige”.

18. “É necessário que assim seja”, respondi, “pois não seria feliz um governo que se convertesse
em um jugo de rebeldes, em vez de ser a salvação dos obedientes”.

19. E ela: “Portanto, não há nada que consiga preservar sua própria natureza e ao mesmo tempo
se opor contra Deus?”. “Não”, disse eu.

20. “Além disso”, continuou ela, “será que uma oposição desse tipo lograria algum sucesso,
visto que iria contra Aquele em quem reside todo o poder e que é dono da Suprema Felicidade?”.
“Não teria nenhum efeito”, respondi.

21. Prosseguiu ela: “Logo, não existe nada que possa ou queira se opor a esse Bem Supremo?”.
“Acredito que não”, disse eu.

22. “Portanto”, disse ela, “o Bem Supremo governa tudo com firmeza e organiza tudo com
suavidade”.

23. Respondi: “Não são apenas a síntese dos teus raciocínios e as conclusões a que chegamos
que me fazem sentir uma grande satisfação; o que mais me deleitam são as palavras que tu
empregas, de tal modo que a estupidez fica envergonhada de si própria!”.

24. Disse ela: “Tu leste a fábula dos gigantes que atacaram o Céu; foi uma força benigna que os
colocou justamente em seu devido lugar, segundo a justiça divina”.52

25. “Mas queres que acumulemos os argumentos, fazendo com que se choquem uns com os
outros? De uma junção dessas talvez possa surgir uma bela fagulha de verdade”. “Como queiras”,
disse eu.

26. E ela: “Ninguém pode duvidar de que Deus é o mais poderoso dos seres”. Ao que respondi:
“Ninguém em pleno juízo pode alimentar tal dúvida”.

27. “Mas para quem mantém o poder de fazer todas as coisas não há nada que seja impossível”,
disse ela. “Nada”, concordei.

28. “Acaso Deus pode praticar o mal?”. “De modo nenhum”, respondi.

29. “Portanto, o mal não existe, visto que não pode ser praticado por Aquele que é onipotente”.

30. Então eu disse: “Tu queres me confundir, construindo um inextricável labirinto de


argumentos? Acabaste de entrar no lugar de onde há pouco havias saído e saíste exatamente onde
entraste — ou estás a traçar de forma complexa o maravilhoso círculo da simplicidade divina?

31. “Ainda há pouco, começando com a idéia da felicidade, dizias que esta consistia no Sumo
Bem e que residia em Deus.

32. “Depois, demonstravas que Deus era o Bem Supremo e a Felicidade mais perfeita, de onde
tiravas a seguinte conclusão, que me oferecias como um presente: ninguém pode ser feliz se não
se converter em Deus.

33. “Posteriormente, tu declaravas que o bem é a substância de Deus e da felicidade; e me


ensinavas que a Unidade é o bem e que toda a natureza possui uma tendência essencial para a
Unidade.

34. “Afirmavas ainda que o instrumento pelo qual Deus governa o mundo é a bondade; que
todas as coisas Lhe obedecem espontaneamente e que o mal não existe.

35. “E tu me explicavas tudo isso sem recorrer a nenhuma premissa externa, mas com
argumentos bem encadeados, fazendo com que uma coisa tornasse a outra verossímil”.

36. Respondeu a Filosofia: “Não penses de modo algum que isto seja um jogo para te confundir;
essas são as verdades mais importantes de todas, e só chegamos a tais conclusões com a graça de
Deus, a quem acabamos de invocar.

37. “Pois tal é a essência da natureza divina que não pode diluir-se em realidades externas, nem
admitir em seu seio nada que lhe seja estranho. Como disse Parmênides: Ela é semelhante a uma
esfera perfeitamente redonda e faz girar a esfera móvel do mundo, permanecendo em sua imóvel
estabilidade.53
38. “Por isso, não te admires pelo fato de que os argumentos expostos tenham sido deduzidos a
partir dos próprios tópicos de que estávamos tratando; pois, como aprendemos com Platão, as
palavras devem possuir uma relação imediata com o assunto que está sendo explicado.

METRO 1254
“Feliz é quem contemplou

a fonte de luz do bem,

e quem logrou libertar-se

de suas cadeias terrestres.

Outrora um poeta trácio

chorava a morte da esposa;

com sua melodia triste

consternou todos os bosques

e fez moverem-se as árvores;

deteve o curso das águas;

sem medo o cervo postou-se

ao lado dos leões ferozes.

A lebre não temeu o cão

amansado pelo canto.

Uma vez que um fogo ardente

o coração lhe abrasava

— e embora o seu canto houvesse

conquistado o mundo inteiro

não pôde ele conquistar

o Criador do universo —,

o poeta lamentou
a crueldade dos céus

e decidiu dirigir-se

às regiões infernais.

Cantou seus suaves cantos

nas cordas de sua lira;

e colocou em lamentos

tudo o que havia aprendido

com a sua mãe, Calíope:55

aquilo que lhe inspirava

sua pena inconsolável,

e o amor que mais ainda

redobrava sua tristeza.

O poeta espalhou seu canto e,

tendo comovido Tártaro,56

faz um pedido súplice

para os senhores das trevas.

Seu canto provoca inúmeras

conseqüências lá no Inferno:

ele imobiliza Cérbero,

o guardião de três cabeças;

e faz derreterem-se em lágrimas

todas as deusas da vingança,

terror dos que sentem culpa;57

paralisa a roda de Íxion;58


e embora com muita sede

Tântalo desdenha d’água;59

enlevado pela música

o abutre já não mais come

o fígado do pobre Tício;60

por fim o juiz das sombras

diz: ‘Estamos vencidos’.61

E apiedado postula:

‘Que esse homem leve sua esposa!

Eis o prêmio por seu canto.

Porém há uma condição:

antes que cruze o Tártaro

estará ele proibido

de olhar para trás e vê-la’.

Porém o amor só obedece

a uma lei que lhe é única,

e a dois passos do Tártaro,

Orfeu contemplou Eurídice

perdendo-a, assim, para sempre.

Essa história diz respeito

a todos os que desejam

conduzir a própria alma

para a luz que está nos Céus.

Se baixamos nossos olhos


para a sombra além do Tártaro,

aquilo que em nós trazemos

de mais precioso na alma

perde-se por contemplarmos

as paragens infernais”.
LIVRO IV
A Filosofia explica por que convivem no mundo a bondade
divina e o mal, e explica a diferença entre o Destino e a
Providência.

PROSA 1
1. A Filosofia concluiu o seu canto de modo suave e harmonioso, sem nunca perder a dignidade
do seu semblante ou a gravidade da sua postura, mas eu ainda não havia me esquecido da dor que
perturbava a minha alma, e a interrompi quando ela estava prestes a continuar.

2. “Ó, tu”, disse eu, “que prenuncias a verdadeira luz! Quando examino as palavras que me
ofereceste, percebo nelas o fulgor divino que as inspira e a força irrefutável dos teus argumentos.
Todas as coisas que me disseste não me eram completamente desconhecidas, embora eu as tenha
esquecido devido ao desgosto provocado pelas injustiças que sofri.

3. “Contudo, o que mais me inquieta é que o mal exista — e permaneça impune — em um


mundo que é governado por um ser supremo repleto de bondade. Tu hás de compreender o
espanto que tal fato provoca.

4. “E ainda há algo pior: enquanto a perversidade progride e prospera, a virtude não é apenas
privada de recompensa, mas é atirada aos pés dos perversos, os quais, humilhando-a, condenam-
na ao castigo que seria destinado aos criminosos.

5. “Ninguém pode deixar de se surpreender ou de se queixar o suficiente devido ao fato de que


existam semelhantes coisas no reino de Deus que tudo pode, tudo sabe e que só quer o bem de
todos”.

6. A isso ela respondeu: “Seria mesmo uma monstruosidade terrível, digna de provocar um
espanto sem medida — conforme tu o julgas —, se na casa tão bem organizada de tão grandioso
pai de família se estimassem as coisas mais vis e se desprezassem as coisas de maior valor.

7. “Mas as coisas não são assim. Na verdade, se ainda te lembras das conclusões a que chegamos
ainda há pouco, pela ação do próprio Criador desse reino do qual agora estamos falando tu
chegarás a compreender que as pessoas virtuosas são sempre poderosas, e que as pessoas vis são
sempre fracas; que não há vício sem castigo nem virtude sem recompensa; que a prosperidade é a
herança dos bons e a desgraça é a herança dos maus; conhecerás também muitas outras verdades
que aplacarão os teus lamentos e te concederão uma firmeza inabalável.
8. “Já te mostrei no que consiste a verdadeira felicidade; agora, depois de algumas explicações
que considero necessárias, te mostrarei o caminho pelo qual poderás retornar à tua casa.

9. “Darei asas ao teu espírito para que ele se eleve até as alturas e, quando toda inquietude
estiver dissipada, tu retornarás são e salvo para a tua pátria, guiado pelos meus conselhos,
seguindo o meu caminho e sendo conduzido pelos meus meios.

METRO 1
“Possuo velozes asas

para chegar às alturas;

quando revestem minha alma,

ela desdenha da terra

vai em direção às nuvens,

para além do ígneo éter,62

e surge por entre estrelas

tomando a rota de Febo,

unindo-se ao grande Marte,

acompanhando Saturno,

navegando pelo círculo

em que as estrelas cintilam

e onde a noite se ilumina.

Depois, a alma satisfeita

por ter chegado a seu termo,

voará para além da esfera

de todas a mais distante,

até o ponto mais alto

em que é possível contemplar

o mais divino espetáculo.


Lá onde o Senhor dos reis

ao empunhar o seu cetro

comanda todo o universo,

governa o alado carro,

e julga todas as coisas.

Se porventura chegares

até esse lugar divino

sem que te lembres como,

por certo recordarás:

‘Esta é a mais verdadeira

de todas as minhas pátrias.

Aqui é meu lugar de origem

e o meu destino final’.

E se acaso desejares

olhar a noite terrestre

que terás abandonado,

os tiranos temerosos

que oprimem os tristes povos,

parecerão exilados

quando os olhares do alto”.

PROSA 2
1. Então eu disse: “Ó, que grandiosas coisas tu prometes! Não duvido que possas realizá-las;
mas agora que despertei para essa nova luz, peço que não demores a levar-me até ela”.

2. “Antes de tudo”, prosseguiu ela, “é necessário que tu compreendas que o poder sempre está
com os bons; e que os maus não possuem força alguma. Eis duas proposições que se deduzem,
reciprocamente, uma da outra.
3. “Pois o bem e o mal são coisas contrárias. Assim, uma vez que fique demonstrado que o bem
é poderoso, conseqüentemente deverá se deduzir que o mal é fraco; de maneira inversa, uma vez
que se comprove a debilidade do mal, fica também demonstrada a firmeza do bem.

4. “Porém, para que não haja nenhuma dúvida quanto às minhas afirmações, demonstrarei a
verdade pelas duas perspectivas, ora a partir de um, ora de outro raciocínio.

5. “Há dois fatores que estão presentes na realização de todos os atos humanos: o poder e a
vontade. Se um dos dois estiver ausente, nenhuma ação é realizada.

6. “Se a vontade está ausente, nenhum ato pode sequer ser iniciado, pois não é possível que se
realize aquilo que ninguém quis; e se não existe a capacidade de realização de um desejo, toda
vontade é inútil.

7. “Ou seja: se acaso visses alguém que pretende realizar algo, mas não consegue fazê-lo de
maneira alguma, com certeza tu dirias que falta poder a esse indivíduo”. “Obviamente”, disse eu.

8. “Por outro lado, se tu visses que esse alguém consegue realizar as coisas que ele deseja, acaso
tu duvidarias do seu poder ou das suas capacidades?”. “De maneira alguma”, respondi eu.

9. “Pois bem”, continuou ela, “então podemos julgar que a pessoa que consegue realizar alguma
coisa é poderosa; e que a pessoa que não pode realizar as coisas é fraca”. “Admito que sim”, disse
eu.

10. E ela: “Tu te lembras de que, em nossa argumentação anterior, chegamos à conclusão de que
a vontade humana está em contínua busca pela felicidade, perseguindo-a em todas as suas
diferentes manifestações?”. Respondi: “Sim. Recordo-me perfeitamente”.

11. “E sem dúvida tu também recordas de que a felicidade é o bem supremo e que, portanto,
quando o homem busca pela felicidade, ele não está buscando outra coisa senão o bem”. “Não
preciso me esforçar muito para recordar isso, pois tenho essa idéia gravada em minha memória”.

12. “Portanto”, disse ela, “todos os homens buscam o bem, tanto os bons quanto os maus,
indistintamente”. “Sim”, respondi, “é lógico”.

13. “Mas tu sabes que aquele que atinge o bem se torna bom”. “Sim, por certo”. “Quer dizer,
então, que os bons conseguem aquilo que desejam?”. Respondi: “Assim me parece”.

14. “Logo, se os maus conseguissem o bem que desejam, não poderiam ser maus”. “Exato”,
respondi.

15. “Assim, se tanto os homens bons quanto os homens maus buscam pelo bem, mas os
primeiros o alcançam e os últimos não, é inegável que os bons são poderosos, pois possuem
capacidade, e os maus, por sua vez, não o são, pois não a possuem”.

16. Respondi: “Duvidar disso seria demonstrar-se incapaz de compreender a natureza das
coisas ou a lógica da tua argumentação”.
17. Ela acrescentou: “Suponhamos dois seres que naturalmente possuam os mesmos objetivos;
um deles, agindo de forma natural, alcança sua finalidade, mas o outro não consegue seguir o
plano de sua própria natureza e, em virtude de uma lei que lhe é contrária, a única coisa que faz é
imitar o primeiro. Qual dos dois lhe parece ser dotado de maior capacidade?”.

18. “Já compreendo aonde queres chegar”, respondi, “mas eu gostaria que tu me explicasses isso
com mais clareza”.

19. Prosseguiu ela: “Tu negas que o ato de andar é um movimento natural para os homens?”.
Respondi: “Não. Eu nunca pensaria em negá-lo”.

20. “Então tu também não negas que, por sua natureza, os pés estão destinados a realizar esse
movimento?”. “Quem poderia duvidar disso?”, indaguei.

21. “Assim, se um pode andar utilizando os pés, e outro, acaso privado de tal faculdade natural,
serve-se das mãos para realizar o movimento, qual dos dois será considerado dotado de maior
capacidade?”.

22. Então eu disse: “Podes prosseguir com a tua argumentação, pois para mim não há dúvidas
de que o que pode realizar a sua função natural possui uma capacidade maior do que aquele que
não pode realizá-la”.

23. Continuou ela: “O Bem Supremo é o objetivo último estabelecido tanto para os homens
bons quanto para os homens maus; os primeiros tentam alcançá-lo pelo caminho natural da
virtude; os outros, por outro lado, tentam alcançá-lo seguindo as suas paixões, e essas, na
verdade, não são o meio natural para se atingir o bem; tu pensas de outro modo?”.

24. “Não”, respondi, “pois é evidente que as coisas são assim; e, uma vez que tenhamos
admitido isso, é inevitável concluir que os homens bons são fortes e que os homens maus são
fracos, pois não conseguem adaptar-se”.

25. Ela acrescentou: “Exato. E vejo que te adiantas em expor o que eu estava prestes a dizer-te; e
isso é um sintoma — como dizem os médicos — de que a tua natureza está se recuperando e de
que estás adquirindo novas forças.

26. “E como percebo que estás preparado para me compreender melhor, farei novas e mais
variadas demonstrações. Observa, com efeito, como é grande a fraqueza dos homens viciosos,
incapazes de alcançar aquilo a que a tendência natural os conduz.

27. “O que seria deles, se estivessem privados desse auxílio — tão poderoso e quase invencível
— que lhes presta a natureza, ensinando-lhes o caminho verdadeiro?

28. “Considera quão fatal é a impotência que aprisiona os malvados. Porque o Bem Supremo
não é uma recompensa fútil, como essas que se ganham nos jogos; o bem que eles são incapazes
de alcançar é o bem mais elevado, mais essencial. Como são desgraçados! Pois não conseguem ser
bem-sucedidos naquilo em que meditam dia e noite, e é justamente aí que os homens bons
demonstram o seu poder e a sua capacidade!

29. “Ora, se caminhando a pé alguém fosse tão longe quanto se é possível ir, sem dúvida o
julgarias muito poderoso; da mesma maneira, também é necessário que consideres poderoso
aquele que consegue alcançar o objetivo último de sua vida, para além do qual não existe mais
nada.

30. “Fazendo o raciocínio inverso, é possível observar a total impotência dos homens maus.

31. “Se não for assim, por que é que abandonam a virtude e entregam-se ao vício? Se é por
ignorância do bem, existe algo mais débil do que a cegueira provocada pela ignorância? E se
conhecem o fim a que aspiram e são afastados do verdadeiro caminho pelos vícios, acaso
sucumbir às paixões não é um sinal de debilidade? Por isso mesmo devem ser considerados
fracos, pois não possuem temperança para resistir ao vício.

32. “Ou será que é de modo consciente que abandonam o bem para se entregar ao mal? Se essa
for a sua motivação, eles não apenas perdem todo o poder, mas também a sua própria existência,
porque quem abandona o fim universal de todos os seres, deixa de existir no mesmo momento
em que o faz.

33. “À primeira vista, pode parecer estranho dizer que os maus — que são a maioria dos
homens — não participam da existência, mas de fato é assim que as coisas são.

34. “Não nego que os homens maus sejam maus; mas digo pura e simplesmente que eles não
existem.

35. “Tu chamarias um cadáver de ‘homem morto’, mas não dirias que é um homem,
simplesmente. Da mesma maneira acontece com os homens viciosos: podemos dizer que são
homens maus, mas não podemos dizer que existam verdadeiramente.

36. “Com efeito, tudo o que existe é algo que guarda certa ordem e respeito pela natureza;
aquele que se afasta de sua natureza renuncia igualmente ao ser que recebeu dela.

37. “Tu poderás dizer que os malvados são poderosos; não nego que o sejam, mas é preciso que
reconheças que a base do seu poder não é a força, mas a debilidade.

38. “Eles possuem o poder de praticar o mal, mas seriam incapazes disso se houvessem
conservado a faculdade de praticar o bem.

39. “E esse falso poder demonstra que, na verdade, eles não possuem poder algum; pois, como
ficou demonstrado, o mal não é nada; e se os homens maus só possuem o poder de praticar o
mal, então é evidente que o seu poder é ilusório”. “Está claro que sim”, disse eu.

40. Continuou ela: “Para compreenderes o verdadeiro alcance de tal poder, observa como não
há nada no mundo que possa igualar-se em potência ao Sumo Bem, tal como demonstrei
anteriormente”. “Sim. Não há nada como o Sumo Bem”, confirmei. “Mas o Sumo Bem não pode
praticar o mal”, disse ela. “É evidente que não”, respondi.
41. Então ela me perguntou: “Existe alguém que pense que os homens podem tudo?”. Respondi:
“Só se estiver fora de seu juízo”. Ela retorquiu: “Mas os homens são capazes de praticar o mal”.
Exclamei: “Oxalá nunca tivessem tal poder!”.

42. Prosseguiu ela: “Portanto, se quem pode tudo é apenas Aquele que só pratica o bem, e
aqueles que praticam o mal não podem tudo, é evidente que os homens maus são menos
poderosos.

43. “Acrescente-se a esse raciocínio o que dissemos antes: todo poder deve ser contado entre os
bens desejáveis, os quais, por sua vez, estão todos relacionados com o Sumo

Bem, que é a síntese de todos eles.

44. “Mas a possibilidade de cometer o crime, de fazer o mal, não está relacionada com o bem;
logo, não é algo desejável. E como todo poder é desejável, podemos concluir que o poder de
praticar o mal não é um poder verdadeiro.

45. “Todas essas considerações demonstram com clareza e sem sombra de dúvidas como o
poder dos bons é grandioso e como a fraqueza dos maus é inquestionável. Pois é absolutamente
verdadeira aquela opinião de Platão:63 apenas os sábios possuem o poder de realizar suas
aspirações; os malvados podem satisfazer alguns caprichos, mas nunca poderão cumprir seus
desejos verdadeiros.

46. “Com efeito, eles fazem tudo o que lhes agrada, imaginando que podem alcançar o bem nas
coisas que lhes deleitam; mas nunca alcançam esse bem, pois a maldade nunca pode conduzir à
felicidade.

METRO 2
“Estes reis que tu vês sentados agora em tronos altivos,

em púrpuras magníficas e rodeados de armas sinistras,

cujo olhar denuncia o orgulho e a raiva que eles carregam,

se acaso perdem os adornos de sua majestade frágil,

revelam as estritas cadeias que prendem o seu espírito:

os desejos devastadores das paixões que inquietam a alma;

a cólera que atordoa como as ondas que agitam os mares;

a deprimente tristeza ou a tortuosa esperança.

Se o coração de um rei pode assim servir a tantos senhores,


sua liberdade é ilusória — ele é escravo dos próprios tiranos”.

PROSA 3
1. Disse a Filosofia: “Tu não vês, pois, a imundície em que se revolve a maldade e a luz com que
resplandece a virtude? Isso fará com que tu compreendas que ao bem sempre chega o seu prêmio,
assim como o castigo sempre chega para o vício.

2. “Pois é racionalmente certo considerarmos que a recompensa de uma ação é o próprio objeto
que a motivou: como a coroa conferida ao corredor que chega ao primeiro lugar numa
competição de velocidade.

3. “E como já ficou demonstrado que a felicidade é a mesma coisa que o bem, o qual, por sua
vez, é o verdadeiro objetivo de todos os atos praticados no mundo, é inevitável que consideremos
o bem como a recompensa comum a todos os atos humanos.

4. “Porém, o bem é inseparável das pessoas boas, pois não poderíamos chamar de ‘bom’ a
alguém que carecesse do bem; de modo que uma conduta virtuosa sempre alcança a recompensa
que merece.

5. “Os homens maus podem ficar irritados o quanto o desejarem, isso não afeta em nada a
recompensa dos bons, porque a maldade alheia não tem o poder de diminuir a glória do homem
honrado.

6. “Se as honrarias externas fossem a fonte de sua glória, é óbvio que elas poderiam ser
facilmente roubadas por qualquer pessoa — até mesmo por quem as tenha conferido; mas
quando a recompensa de um homem é a sua própria virtude (algo que está dentro dele), ele só
pode perdê-la se acaso deixar de ser virtuoso.

7. “Por fim, se uma recompensa é buscada por ser considerada um bem, ninguém pode pensar
que um homem bom está desprovido de sua recompensa.

8. “Que recompensa é essa? Trata-se da mais bela e grandiosa dentre todas: lembra-te daquele
importantíssimo corolário que demonstrei há pouco, e raciocina a partir dele.

9. “Se a felicidade é o próprio bem, está claro que os homens bons são felizes pelo mero fato de
serem bons.

10. “E, comoficouprovadoquetodohomemverdadeiramente feliz converte-se em deus, é inegável


que os homens bons possuem uma recompensa que nunca perecerá, que não poderá ser
diminuída por nenhum poder humano, nem obscurecida por nenhuma perversidade: a
possibilidade de chegar a ser um deus.

11. “Sendo assim, o homem sábio não pode duvidar de que o castigo dos maus é inevitável;
como o bem e o mal são contraditoriamente opostos — assim como o são o ‘prêmio’ e o ‘castigo’
— é necessário que à recompensa pela bondade corresponda, do lado oposto, o castigo pela
maldade.

12. “Assim, se os homens honrados têm a sua própria honradez como recompensa, também é
verdade que a perversidade dos maus é o seu próprio castigo. E todos aqueles que sofrem um
castigo sabem que estão suportando um mal.

13. “Portanto, se um homem mau faz um juízo de si de modo imparcial, poderá ele julgar-se
livre de todo castigo, vendo que não foi apenas atingido, mas corroído pela perversidade, o maior
mal de todos?

14. “Observa agora o castigo carregado pelos homens maus, em contraposição à recompensa
dos homens bons. Há pouco te ensinei que tudo o que existe é uno e que tudo o que é uno é bom;
daí depreende-se que tudo o que existe é bom.

15. “Assim, tudo o que se afasta do bem deixa de ser. Logo, os homens maus deixam de ser o
que eram antes. Foram homens, como é possível ver pelo aspecto do seu corpo; contudo, ao
entregar-se à maldade, acabaram por perder sua natureza humana.

16. “E da mesma maneira que a honra pode elevar um homem acima de todos os outros, a
maldade, que o afasta de sua natureza, o coloca abaixo de tudo aquilo o que constitui os valores
humanos; logo, aquele que se deixou transformar pelo mal e pelo vício não pode ser considerado
um homem.

17. “O que se fez ladrão inflama-se pelo desejo das coisas alheias: não parece um homem, mas
um lobo.

18. “Outro, urdidor de intrigas, não dá repouso à sua língua feroz: pode muito bem ser
comparado a um cachorro.

19. “Aquele outro se regozija pelas coisas conquistadas por meio de fraudes: é uma raposa.

20. “Este ruge de ira, incapaz de dominar sua cólera: poderíamos dizer que tem um coração de
leão.

21. “Outro, medroso e tímido, estremece frente a perigos imaginários, como um cervo.

“Há aqueles que vivem entorpecidos pela estupidez e pela inércia: vivem como asnos.

22. “Há outros que, incertos e inconstantes, a todo tempo mudam de gostos e interesses: não
são muito diferentes das aves.

23. “E há aqueles que, escravizados pelo prazer, afundam-se na lama das paixões imundas e
vergonhosas, como os porcos.

24. “Assim, pois, todo aquele que abandona a virtude deixa de ser homem e, incapaz de chegar a
ser um deus, converte-se numa besta.
METRO 3
“O barco do rei de Ítaca

e os outros barcos da frota

que andavam no mar perdidos

pelo Euro tempestuoso

foram todos conduzidos

até a ilha de Circe;

Pois que era mestra das ervas,

a deusa do sol nascida

deu a todos os seus hóspedes

uma poção magnífica

por ela manipulada

para mudar-lhes o aspecto:

um deles assume a forma

de um pesado javali;

outro se vê transformado

num grande leão de Mármara,

crescem-lhe unhas e garras;

um ganha a forma dos lobos,

quer chorar, mas sai um uivo;

outro acorda transformado

em belo tigre do Indo,

pensa ser afortunado

e ronda, calmo, o palácio.

Mercúrio se compadece
do rei Ulisses de Ítaca

e do resto de seu povo

que tanto havia sofrido,

mas os outros marinheiros

já haviam tocado as taças

e bebido a poção de Circe,

e em porcos se transformaram;

Agora eles preferiam

as bolotas de carvalho

ao trigo novo de Ceres.

Perderam sua antiga forma:

sua voz e seus corpos, tudo

havia desaparecido.

Mas suas almas jaziam

por baixo da forma nova,

e deploravam o destino.

Ó ilusória magia,

e ineficácia das ervas,

que podem mudar os corpos,

mas a alma não alteram!

A natureza de um homem

está dentro de si mesmo

guardada secretamente

em sua própria cidadela.

As poções mais poderosas


são as que fazem o homem

esquecer-se de si mesmo.

Essas, sim, penetram fundo,

pois sem macular o corpo

atingem o espírito em cheio”.64

PROSA 4
1. Então eu disse à Filosofia: “Compreendo tudo muito bem; não é sem razão que se diz que os
viciosos conservam a forma humana exteriormente, mas, em seu interior, não são diferentes das
bestas; mas eu queria que esses espíritos sombrios e criminosos não pudessem contaminar os
homens bons, provocando-lhes a ruína”.

2. Ela respondeu: “E eles não podem, como demonstrarei oportunamente; porém, se por um
momento eles se vissem privados desse poder aparente, o seu castigo seria muito mais brando.

3. “Porque, com efeito — e isto parecerá inacreditável a alguns — a desgraça dos homens maus
é maior quando eles conseguem realizar os seus desejos do que quando não o conseguem.

4. “Pois se desejar o mal é algo lamentável, dispor dos meios de realizar um mau desejo é algo
muito pior, pois, sem essa capacidade, a vontade não teria efeito algum.

5. “E, visto que cada um carregue sua própria miséria, é inevitável concluir que os homens maus
são atormentados por um sofrimento triplo: primeiro, eles desejam o mal; depois, eles dispõem
dos meios de realizá-lo; e, por último, cometem o crime”.

6. “Reconheço que é assim”, disse eu, “e por isso desejo vivamente que sejam privados desse
falso poder para que se vejam livres de tal sofrimento”.

7. Ela respondeu: “Ah, mas eles ficarão livres desse sofrimento mais depressa do que tu pensas,
e mais depressa do que eles próprios possam imaginar. Pois, como a alma é imortal, tudo o que se
passa dentro dos limites desta vida breve parece-lhe demasiadamente rápido.

8. “Não é raro que a grande esperança dos homens maus e as elevadas maquinações de seus
crimes sejam destruídas por um fim repentino e inesperado. E é precisamente isso que determina
a medida da sua miséria; pois, se a perversidade torna um homem desgraçado, quanto mais
tempo perdurar a sua maldade, mais desgraçado ele será.

9. “A desgraça dos perversos seria infinita se a morte não os detivesse em seu caminho; pois, se
chegamos à conclusão de que a maldade é um sofrimento, é evidente que, se a maldade não
tivesse fim, esse sofrimento também seria eterno”.
10. Então eu disse: “É um corolário surpreendente! E embora seja difícil de aceitá-lo é preciso
reconhecer que ele está de acordo com todas as proposições admitidas até agora”.

11. “Tu estás certo”, disse ela, “mas, quando há relutância em se concordar com determinada
conclusão, é justo que se faça uma destas duas coisas: demonstrar que as premissas são falsas, ou
provar que o seu encadeamento lógico não conduz necessariamente à verdade; contudo, uma vez
que as premissas sejam admitidas, não existe motivo para se duvidar da conclusão.

12. “Também te surpreenderá o que te direi em seguida; mas, depois de eu mostrar as provas, tu
serás obrigado a concordar comigo”.

13. “E o que é?”, perguntei. Ela respondeu: “Os homens maus são mais felizes quando são
castigados por seus crimes do que quando escapam dos rigores da justiça.

14. “E, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, não quero dizer que a má-conduta é
corrigida pelas sanções e que o medo da punição faz com que as pessoas sigam o caminho da
retidão; nem que o castigo serve de exemplo aos outros, para que evitem cometer atos
reprováveis. É outro o motivo pelo qual penso que os criminosos impunes são os mais
desgraçados — sem levar em conta a sua possível correção ou qualquer tipo de castigo exemplar”.

15. “E que motivo é esse?”, perguntei. Respondeu ela: “Não chegamos à conclusão de que os
bons são felizes e os maus, por sua vez, são desgraçados?”. Concordei que sim.

16. Prosseguiu ela: “Logo, se a desgraça de um indivíduo é aliviada por um bem, não será este
mais feliz do que aquele cuja desgraça é absoluta, sem que seja aliviada por qualquer tipo de
bem?”. “Parece-me que é assim”, acedi.

17. Continuou a Filosofia: “E se esse mesmo desgraçado — já privado de todo bem — vê


acrescentar-se uma nova desgraça àquelas que já lhe oprimem, não é certo que o consideremos
muito mais miserável do que aquele que teve sua desgraça aliviada pelo acréscimo de um bem?”.
“É certo que sim”, respondi.

18. Então ela disse: “Quando os maus são castigados, um bem lhes é concedido: o castigo, que
consiste na aplicação da justiça; agora, se logram escapar da pena que lhes cabe, um novo mal
lhes sobrevém: a impunidade, que consiste em uma injustiça”.

19. “Não posso negar”, respondi. E ela continuou: “Assim, os perversos são muito mais
desgraçados quando permanecem impunes do que quando se submetem ao castigo justo, porque
a impunidade é uma injustiça.

20. “Portanto, é justo que os maus sejam castigados e é injusto que permaneçam impunes”.
“Quem poderia dizer o contrário?”, indaguei.

21. Disse ela: “Também não se pode contradizer o fato de que tudo aquilo que é bom é justo e
que, de modo inverso, tudo aquilo que é injusto é mau”.

22. Respondi que tal afirmação era uma coisa evidente e acrescentei: “Tudo isso é uma
conseqüência lógica das conclusões a que chegamos há pouco. Mas eu gostaria de saber: não
reservas nenhum castigo para as almas depois da morte?”.

23. “É certo que sim”, disse ela, “e não são castigos pequenos. Penso que alguns desses suplícios
são castigos, e por isso mesmo são duríssimos; outros, por sua vez, são aplicados como um meio
de purificação, e por isso são mais brandos; contudo, não falaremos dessa questão agora.

24. “Até este momento, meu objetivo foi o de te fazer compreender que o poder dos maus —
que era algo que tanto te indignava — é na verdade inexistente; tu deploravas a impunidade dos
malvados, pois eu quis demonstrar como eles jamais escapam do castigo ocasionado por sua
maldade; tu desejavas o fim da liberdade dos maus, e eu demonstrei como essa liberdade é de
curta duração e como ela os faria muito mais desgraçados se fosse prolongada, e ainda: como os
afundaria no mais terrível dos sofrimentos se ela fosse eterna. Daí é possível concluir que o
perverso é mais desgraçado quando goza de uma impunidade injusta do que quando sofre uma
retribuição justa.

25. “A partir dessa conclusão chegamos ao seguinte corolário: quando os malvados parecem
estar livres de todo castigo, na verdade estão sendo oprimidos pelo mais angustiante dos
suplícios”.

26. Então eu disse: “Quando considero os teus argumentos, penso que não há nada mais
verdadeiro; mas se pensarmos no juízo comum dos homens, quem aceitará tais raciocínios ou os
julgará dignos de serem escutados?”.

27. Ela respondeu: “De fato é assim. Seus olhos estão tão acostumados com as trevas que eles já
não conseguem elevá-los para contemplar a luz da verdade, que os ofuscaria; são como aquelas
aves cuja vista a noite ilumina e o dia cega. Já não olham mais para a realidade e para a ordem das
coisas, mas apenas para as suas impressões e seus sentimentos — imaginam que praticar o mal e
permanecer impunes constitui a felicidade máxima.

28. “Agora, considera como funciona a lei eterna: se ordenares teu espírito seguindo o exemplo
dos melhores não precisarás de um juiz que te julgue e te premie: já estarás situado na esfera do
bem, que é a maior das recompensas.

29. “Por outro lado, se voltares teu coração para o mal, não precisarás buscar fora de ti a alguém
que venha vingar o mal cometido, pois tu mesmo já terás te rebaixado ao nível dos homens mais
desprezíveis. Assim, se olhares de modo alternado para o céu elevado e para a Terra repleta de
vícios, sem se deixar levar por influências exteriores, tua própria razão te fará crer que ora estás
na altura das estrelas e ora estás submerso na lama.

30. “Contudo, os homens vulgares não compreendem tais raciocínios; mas haveremos nós de
igualarmo-nos àqueles que, como vimos, são semelhantes às bestas?

31. “Considera a seguinte situação: um homem perdeu completamente a visão e nem se lembra
de que um dia teve olhos. Ele pensa não lhe faltar nada para ser humanamente perfeito. Agora te
pergunto: nós, que conservamos a visão, vemos as coisas da mesma maneira que esse homem
cego?

32. “Os homens vulgares nem sequer aceitariam esta outra verdade baseada em argumentos
sólidos: aquele que comete uma injustiça é muito mais desgraçado do que aquele que a sofre”.

33. Então eu disse: “Eu mesmo gostaria de ouvir esses argumentos”. Ela respondeu: “Tu não
negas que toda pessoa má é merecedora de castigo, negas?”. “De modo algum”, respondi.

34. “Porém é evidente que os homens maus são desgraçados”. “Sem dúvida”, disse eu. E ela:
“Então tu não tens dúvidas de que os desgraçados são merecedores de castigo?”. Respondi: “Não.
É certo que o são”.

35. “Portanto, se tu fosses o juiz, quem tu julgarias ser merecedor do castigo: aquele que
cometeu a injustiça ou aquele que a sofreu?”. Respondi: “Não pensaria duas vezes: eu daria
satisfação à vítima da injustiça através do sofrimento do criminoso”.

36. Prosseguiu a Filosofia: “Então tu concordas que o criminoso seria mais desgraçado do que a
vítima?”.

37. “Sim”, disse eu, “essa é a conclusão lógica do raciocínio. Conseqüentemente, esta e outras
causas fazem com que o criminoso seja muito mais desgraçado do que a vítima, pois são causas
apoiadas naquele fundamento comum — segundo o qual a maldade, por sua própria natureza,
torna os homens desgraçados”.

38. “Contudo”, disse ela, “os advogados fazem o contrário: procuram convencer os juízes
apelando aos sofrimentos da vítima, quando, na verdade, o criminoso é muito mais digno de
compaixão; ele deveria ser tratado com clemência e com generosidade pelos acusadores, e não
com indignação; deveria ser apresentado ao tribunal como um paciente frente ao médico, a fim
de que o castigo a ele infligido pudesse libertá-lo de sua doença moral.

39. “Assim, a atuação do defensor já não faria tanto sentido; ou, em todo caso, para ser útil de
alguma forma ela seria limitada a uma mera acusação.

40. “Os próprios homens maus, se não tivessem os olhos obscurecidos e pudessem ver de
alguma forma a virtude que abandonaram e compreender que ao submeter-se ao castigo estariam
libertos da sordidez dos seus vícios, eles mesmos veriam que, em compensação, recobrariam sua
honestidade e sua honra; e então nenhuma pena lhes pareceria rigorosa, de modo que recusariam
a ajuda dos defensores e se colocariam sem medo à disposição dos juízes e dos acusadores.

41. “É por isso que, entre os homens sábios, não existe lugar para o ódio. Quem, a não ser
alguém muito estúpido, odiaria os homens bons? E odiar os maus não faz nenhum sentido.

42. “A perversidade é uma doença moral assim como a paralisia é uma doença física; e nós não
odiamos aqueles que sofrem de uma doença física, mas nos compadecemos deles; da mesma
maneira, seria mais sábio lastimar os homens maus em vez de persegui-los, pois seu espírito está
oprimido pelo mal, o que é muito pior do que qualquer doença física.
METRO 4
“De que vale suscitar tal desordem

provocando o destino desse modo?

Se buscas pela morte, não te aflijas:

por si mesma ela vem e vem com pressa.

A serpente, o leão, o tigre, o javali

e o urso atacam os homens com suas presas,

mas o homem ataca o outro com a espada.

Por que uns contra os outros os homens travam

tais guerras cruéis e injustas batalhas?

Seria por suas simples diferenças

de certezas, costumes e maneiras?

Mas nada justifica essa violência.

Se tu queres a justiça para os homens,

compadece-te dos maus e ama os bons”.

PROSA 5
1. Então eu disse: “Agora consigo ver como a felicidade é a herança dos bons e como a miséria é
a merecida recompensa dos maus.

2. “Contudo, no que diz respeito ao que chamamos de azares da Fortuna, parece que o bem e o
mal estão entrelaçados; porque não existe homem prudente que prefira o desterro, a miséria e a
ignomínia a viver uma vida de glória em sua pátria: rodeado de honrarias, coberto de riquezas e
respeitado por seu poder.

3. “Ora, a sabedoria fica mais evidente e exerce uma influência maior quando o governante
partilha do seu bem-estar com o povo pelo qual ele é responsável; por outro lado, a prisão e as
demais penas impostas pelas leis parecem ser mais bem destinadas aos cidadãos perigosos, para
os quais foram elaboradas.

4. “É por isso que eu fico profundamente admirado de ver esses papéis trocados: que os bons
sofram as sanções pelos crimes e que os maus gozem do prêmio reservado à virtude. Eu gostaria
que tu me explicasses o motivo dessa confusão tão injusta.
5. “Meu espanto não seria tão grande se eu soubesse que essa desordem do mundo é
determinada pelos caprichos da Fortuna, mas fico tremendamente espantado porque sei que,
apesar de tudo o que vemos, há um Deus que governa o mundo.

6. “É certo que muitas vezes Ele concede alegrias aos bons e pesares aos maus, mas em geral o
que acontece é que os primeiros sofrem duras provas e os últimos têm os seus desejos atendidos;
em tais circunstâncias, no que essa ordem se diferencia dos caprichos da Fortuna? Eu gostaria
que tu me elucidasses este assunto”.

7. Então ela respondeu: “Quando desconhecemos o princípio que existe por trás da ordem, não
é paradoxal que as coisas pareçam confusas e aleatórias. Mas mesmo que tu desconheças a causa
de tão grande ordenação, nunca duvides de que todas as coisas ocorrem do jeito certo; porque
Aquele que governa o mundo é verdadeiramente bom.

METRO 5
“Quem ignore que a constelação de Arturo

se move lentamente em torno ao pólo,

ou não saiba por que Boötes conduz65

o carro pelo céu sem pressa alguma

e mergulha as suas luzes no oceano,

mas de manhã levanta-se tão célere,

ficará assombrado frente às leis

que lá no alto regem as esferas.

Se a luz da lua cheia empalidece

quando as sombras da noite lhe acobertam,

e depois de encobrir os astros, Febe66

os revela de novo em seu eclipse,

a ignorância dos homens se perturba

e então se enche o ar com o som dos címbalos.

Ninguém fica espantado quando o Coro

açoita o litoral com as suas vagas,


ou quando o gelo espesso se derrete

se acaso Febo o abrasa com seus raios.

Na Terra as causas são mais discerníveis,

os fenômenos do céu é que confundem

o perturbado coração dos homens.

As coisas que no tempo são mais raras

confundem as multidões com a novidade.

Contudo, todo o espanto cessaria

se as nuvens dessa vil ignorância

não encobrissem mais a mente humana”.

PROSA 6
1. Então eu disse à Filosofia: “Tu tens razão. De fato as coisas são assim. Mas já que é teu ofício
revelar as causas dos fatos inexplicáveis e descobrir os princípios que estão ocultos pelas trevas,
rogo-lhe que me explique qual é o teu juízo a respeito de tais assuntos. Pois este é um milagre que
me impressiona demais”.

2. Após um breve sorriso, ela respondeu: “A questão que tu me propões é a mais profunda de
todas, e dificilmente poderemos esgotá-la.

3. “A matéria é de tal ordem que, resolvida uma dúvida, logo surgem outras, inumeráveis, como
as cabeças da Hidra;67 e o único jeito de fazê-las cessar é sujeitando-as à soberana luz do espírito.

4. “Outros assuntos são estudados dentro dessa questão: a simplicidade da Providência; a


sucessão encadeada dos fatos do Destino e da Fortuna; a ciência e a predestinação divinas; o livre-
arbítrio. Todos esses assuntos são de grande importância, como tu mesmo podes ver.

5. “Mas como o estudo de tais assuntos faz parte do teu tratamento, não deixarei de abordá-los,
ainda que de modo breve, pois o tempo de que dispomos não permitirá que seja de outra forma.

6. “Se acaso a música dos versos te deleita, reprime teu gosto enquanto exponho os meus
argumentos em sua devida ordem”. “Como queiras”, respondi.

7. Então, como se fosse revelar novos princípios, ela continuou: “A geração de todas as coisas, e
todo o progresso das naturezas mutáveis — e tudo que se move de alguma forma —, tudo isso
tem suas causas, sua ordem e sua forma determinadas pela estabilidade da mente divina.
8. “Encerrada na cidadela de sua própria simplicidade, a mente divina estabeleceu um complexo
modo de operação para governar todos os seres e coisas. Quando esse modo é contemplado
considerando-se, principalmente, a pureza da Inteligência Divina, então ele é chamado de
Providência; quando, por outro lado, ele é observado a partir dos fatos e dos acontecimentos que
provoca e ordena, então é chamado de Destino, tal como o chamaram os antigos.

9. “É fácil de compreender que a Providência e o Destino não são a mesma coisa. Basta
examinar o efeito que cada um exerce sobre a mente. Porque a Providência é a própria Razão
divina, é ela que ordena todas as coisas, pois consiste no supremo princípio universal; o Destino,
por sua vez, é inerente às coisas mutáveis; é por meio do Destino que a Providência relaciona
todas as coisas, colocando-as no lugar que lhes é próprio.

10. “Porque a Providência abrange todas as coisas, por mais diversas que sejam — e ainda que
sejam em um número infinito; por sua vez, o Destino separa as coisas, distribuindo-as em
movimentos, lugares, formas e tempos; quando este desenvolvimento das coisas no tempo é visto
em sua unidade pela Inteligência Divina, o chamamos de Providência; quando ele se manifesta e
se concretiza em tempos específicos, o chamamos de Destino.

11. “Embora o Destino e a Providência sejam coisas distintas, um depende do outro; pois a
ordem do Destino depende da simplicidade da Providência.

12. “Da mesma maneira que o artista concebe em sua mente a obra que vai realizar e depois dá
uma forma concreta a ela, transferindo para a ordem temporal aquilo que havia contemplado em
uma idéia simples, assim também Deus, através da Providência, dispõe as coisas dentro da
unidade e da estabilidade, e através do Destino administra essas coisas, diversificando o tempo e
as formas em que elas acontecem.

13. “Agora, quer o Destino seja exercido pelos espíritos divinos da Providência, quer seja
movido pela Alma do Mundo, ou pela ação da natureza, ou pelo movimento dos astros celestes,
ou por uma potência angélica, ou pelo fecundo engenho dos demônios, ou por algumas dessas
forças em particular, ou por todas elas em geral, é evidente que a Providência é a forma imóvel e
simples de realização das coisas, e o Destino, por sua vez, é o nexo móvel e o desenvolvimento
temporal das coisas que a divina simplicidade dispôs para serem realizadas.

14. “Daí resulta que tudo aquilo que está sujeito ao Destino também está sujeito à Providência,
inclusive o próprio Destino; mas há coisas que, estando acima do Destino, são regidas apenas
pela Providência: são aquelas que, por estarem próximas da Divindade, firmemente fixadas,
mantêm-se alheias à mobilidade temporal do Destino.

15. “Podemos fazer uma comparação com círculos que giram em torno do mesmo eixo: o mais
interior participa em maior grau da unidade e da imobilidade do centro, confundindo-se com ele,
às vezes; mas o círculo mais exterior se vê arrastado por um movimento circular muito mais
amplo; além disso, quanto mais o círculo se afasta do centro (que é uno e indiviso), maior é o
espaço que ele precisa percorrer; assim ocorre também a um ser que se afasta da Inteligência
Divina, mas se vê enrolado nas redes do Destino; por sua vez, o círculo que está mais próximo do
centro escapa da complexidade e da dispersão ocasionadas pelo movimento; e assim também
acontece com os homens que, quanto mais próximos do centro, encontram-se mais livres da
influência do Destino.

16. “E aquele que conquista a estabilidade do supremo espírito, livre de todo movimento, se vê
acima das leis fatais do Destino.

17. “O que o raciocínio é para a inteligência, o que a criatura é para o Ser, o que o tempo é para
a eternidade e o que o círculo é para o centro, assim é o desenvolvimento evolutivo do Destino
em relação à Providência.

18. “Em virtude do nexo estabelecido pelo Destino é que se põem em movimento o céu e as
estrelas; é ele que regula a ação dos elementos entre si e que, impondo-lhes sucessivas mudanças,
faz com que adquiram diferentes formas; ele renova todos os seres através do nascimento e da
morte, assegurando a progressiva evolução dos animais e das plantas.

19. “Com uma conexão indissolúvel entre os efeitos e as causas, a cadeia do Destino também
condiciona os atos e até mesmo a sorte dos homens; e tal cadeia é imutável, pois foi originada
pela Providência, que é imutável por essência.

20. “Pois esta é a melhor maneira de governar as coisas: quando a simplicidade inalterável da
mente divina confere uma ordem inevitável às coisas do mundo; pois a estabilidade dessa ordem
condiciona as coisas mutáveis que, se estivessem abandonadas a si mesmas, acabariam por perder
o rumo de sua existência, pois se degradariam ao acaso.

21. “E ainda que tu não compreendas esta ordem universal de coisas e que tudo lhe pareça
dominado pela confusão e pela desordem, o fato é que todos os seres ocupam o seu lugar próprio
na existência e existe uma lei que orienta tudo para o bem.

22. “Pois nada do que acontece tem a maldade por objetivo, nem mesmo os atos dos homens
maus; pois, como já ficou amplamente demonstrado, é o erro que os desvia da busca pelo bem.
Da mesma maneira, essa ordem que procede do centro universal que é o Bem Supremo jamais se
desvia do seu princípio.

23. “Tu dirás: poderá haver confusão mais contrária à justiça do que o fato de que os homens
bons encontram tanto o sucesso como a adversidade, e que, da mesma maneira, aos homens
maus acontecem tanto as coisas que eles desejam quanto aquelas que odeiam?

24. “Eu te responderei: será que o juízo dos homens é suficientemente exato para que
necessariamente sejam bons ou maus aqueles que eles declaram como tais?

25. “Não. Precisamente neste ponto, são contraditórios os juízos dos homens: aqueles que uns
consideram dignos de recompensa, outros consideram dignos de castigo.

26. “Ainda que houvesse alguém que pudesse distinguir com toda certeza os homens bons dos
homens maus, seria possível conhecer aquilo que podemos chamar de temperamento íntimo das
almas, para empregar um termo que designa a disposição dos corpos?
27. “Para aqueles que desconhecem as causas dos fenômenos, não é diferente de um milagre o
fato de que uns gostem do doce e outros do amargo; e que, quando estão enfermos, uns sejam
curados por medicamentos suaves enquanto outros precisam de medicamentos mais fortes.

28. “Contudo, nada disso provoca a perplexidade do médico, que compreende o funcionamento
e a complexidade da saúde e das doenças.

29. “Pois bem: qual é a raiz da saúde das almas senão a virtude? Qual é a sua enfermidade senão
o vício? E quem é o único que pode curá-las e apartá-las do mal, senão Deus, o Supremo guia e
médico das almas?

30. “É Ele que, contemplando o mundo da torre da sua Providência, conhece o que convém a
cada um, e dá às pessoas o que sabe ser apropriado para elas.

31. “E este é o milagre do Destino: um Ser com conhecimento ilimitado faz coisas que deixa os
ignorantes estupefatos.

32. “Atendo-se apenas ao que a razão humana pode conceber a respeito da insondável
divindade, te direi que é possível que as pessoas que tu consideras por demais justas e honradas
podem ser muito diferentes aos olhos da Providência, que tudo conhece.

33. “Se a causa dos vencedores agradou os deuses, a dos vencedores agradou a Catão, tal como
nos ensinou o nosso companheiro Lucano.

34. “Então, quando observares as coisas que ocorrem no mundo, ainda que elas sejam
contrárias ao que esperavas, lembra-te que elas fazem parte de uma ordem; e que é só por causa
da tua inteligência limitada que tudo lhe parecerá uma confusão provocada pelo mal.

35. “Suponhamos que exista um homem tão moralmente perfeito que assim seja considerado
tanto por Deus quanto pelos homens. Entretanto, esse homem possui um caráter tão fraco que,
ao primeiro contratempo, já abandona a virtude, pois ela não foi capaz de conservar a sua
felicidade.

36. “A Providência poupará esse homem, pois ela é sábia e olha com compaixão para aqueles a
quem a desgraça poderia degradar moralmente; assim ela evita que alguns homens sofram aquilo
que não poderiam suportar.

37. “Consideremos agora outro homem, honrado e virtuoso. Um santo, alguém muito próximo
de Deus: é provável que a Providência julgue conveniente que a esse homem não aconteça
nenhuma adversidade, que nem mesmo as enfermidades corporais possam tocá-lo.

38. “Pois, como já foi dito por alguém com mais autoridade do que eu: ‘O corpo dos homens
santos foi edificado pelas potências celestes’.

39. “Às vezes, a Providência também confere um grande poder aos homens bons, com o
objetivo de reprimir os abusos dos malvados.
40. “A outros, a Providência destina uma mistura de felicidade e de infortúnio, conforme a
condição de seus espíritos: às vezes tais homens ficam feridos, para que uma prosperidade muito
prolongada não os adormeça; outras vezes, a Providência permite que esses homens sejam
duramente perturbados pela desgraça, para fortalecer sua virtude com o exercício da paciência.

41. “Alguns receiam desgraças que suportariam com facilidade; outros subestimam sofrimentos
que não suportariam: a Providência conduz a todos através de diferentes provas até que eles
cheguem a conhecer a si mesmos.

42. “Há aqueles que adquiriram um renome duradouro mediante uma morte gloriosa; outros,
inquebrantáveis frente aos tormentos, demonstraram que a verdadeira virtude não se dobra ao
sofrimento. Ninguém pode duvidar de que essas coisas acontecem conforme uma ordem
previamente estabelecida, e que ocorrem para o bem daqueles que sofrem tais provações.

43. “A mesma explicação serve para os homens maus, que ora encontram-se repletos de
satisfações e ora são perturbados pelas contrariedades do Destino.

44. “Ninguém estranha de vê-los na desgraça, pois todos pensam que eles a mereceram; e os
castigos que sofrem não servem apenas para emendá-los, mas também servem de exemplo para
os outros, que assim se afastarão do crime. A aparente felicidade de que desfrutam os homens
maus é uma lição bastante eloqüente para os bons, pois lhes mostra como devem encarar uma
felicidade desse tipo, que com freqüência está à disposição dos perversos.

45. “Considera também que, muitas vezes, a riqueza é providencial na vida de alguns
indivíduos, pois faz com que se tornem mais virtuosos. Trata-se de indivíduos tão altivos e
orgulhosos que, se sofressem com a pobreza, é certo que se precipitariam numa vida de crimes.

46. “Por outro lado, sentindo sua consciência manchada pela culpa e desfrutando do bem-estar
proporcionado pela riqueza, eles temem perder tais vantagens; por causa disso mudam sua
conduta e, finalmente, abandonam os caminhos que os levariam ao mal.

47. “Muitos foram à ruína por causa de sua fortuna adquirida de modo ilícito; a outros foi
concedido o poder de castigar, para que os bons fossem provados e os malvados sofressem suas
merecidas sanções.

48. “Na verdade, assim como não há acordo entre os bons e os maus, também não existe acordo
apenas entre os malvados.

49. “E como poderia ser de outro modo se, tendo suas consciências destruídas pelo vício,
sentem que não são quem deveriam ser e fazem as coisas que gostariam de não ter feito?

50. “Dessa circunstância resulta algo muito singular: o fato de que, muitas vezes, os homens
maus serviram de instrumento da Providência para fazer com que outros homens maus se
fizessem bons.

51. “Pois há muitos homens maus que, quando são vítimas de uma injustiça provocada por
homens ainda piores do que eles, enchem-se de ódio e regressam à virtude, para se diferenciar
daqueles que odeiam.

52. “Só o poder divino pode converter o mal em bem, quando sabiamente se serve dele para
obter bons efeitos.

53. “Existe uma ordem geral que abrange o universo inteiro; e tudo o que se afasta do seu lugar
correspondente pode ser novamente integrado nessa ordem, ainda que a partir de outra
circunstância, pois não existe acaso no reino da Providência.

54. “Para mim, é difícil ter de explicar todas essas coisas, como se eu fosse um Deus.68

55. “Um ser humano não possui inteligência suficiente para compreender e nem palavras para
explicar a ordem universal da obra divina.

56. “Por ora, baste-nos termos visto que Deus, criador de todos os seres, ordena-os e orienta-os
para o bem; e, com o objetivo de que todas as criaturas sejam semelhantes ao seu Criador, Ele
afasta dos seus domínios todo o tipo de mal, mediante o rigoroso encadeamento dos fatos
sujeitos ao Destino.

57. “Assim, ainda que, à primeira vista, o mal pareça ter invadido a Terra, quando
consideramos a Providência divina compreendemos que o mal não existe em parte alguma.

58. “Mas vejo que te cansas devido à profundidade do assunto. Acredito que um poema
agradável seria um bom alívio nesse momento. Reconforta-te, pois, com o poema que declamarei
para que, mais tarde, o teu intelecto possa empreender novos esforços.

METRO 6
“Quem busca conhecer com a alma pura

as leis d’Aquele que é altissonante

deve contemplar os altos cimos

do céu onde em virtude da harmonia

os astros vivem em sua paz antiga.

O sol com o seu fogo flamejante

não perturba a órbita de Febe;

a Ursa que percorre seu trajeto

no vértice mais alto das alturas,


nunca para si teve o desejo

de submergir nos mares do Ocidente

ainda que ela veja os outros astros

mergulharem suas flamas no oceano.

Vésper anuncia-nos a noite

e a estrela-da-manhã nos traz o dia.

É assim que o Amor recíproco governa

os astros e suas órbitas eternas.

Existe lá no céu uma harmonia

que todos os elementos equilibra.

O seco não se contrapõe ao úmido,

as chamas convivem com o frio,

o fogo leve eleva-se às alturas

e a terra por seu peso se rebaixa.

É por isso que, na morna primavera,

exalam as flores mais de mil perfumes;

o verão caustica as searas de Ceres;

o outono retorna com os seus frutos;

e traz o inverno as chuvas copiosas.

Tudo o que tem vida sobre a Terra

se nutre dessa perfeita harmonia.

Também é ela que traz à criação

a morte com seu fim inelutável.

No entanto, no fluxo das coisas,

sentado no seu trono, o Criador


empunha as rédeas do Universo,

como o soberano rei: fonte e origem

de toda a justiça que há no mundo.

É ele que movimenta os seres

e apóia àqueles que vacilam.

Se ele não corrigisse as trajetórias

como mantém os astros em suas órbitas,

tudo o que obedece a uma ordem estável

apartado, então, de sua fonte,

fatalmente se desintegraria.

De Sua perfeita harmonia participam

todas as coisas que aspiram ao bem.

E tudo converge a Ele no final.

Esse Amor onde tudo se origina

também sustenta tudo em sua vida.

Por isso não há outra forma de viver

senão retribuindo o Amor divino

para voltar à origem do seu ser.

PROSA 7
1. “Tu consegues ver agora a conseqüência lógica de tudo o que dissemos?”. Respondi: “Qual
é?”.

2. Ela disse: “Toda Fortuna é sempre boa”. “Como é possível?”, perguntei.

3. Prosseguiu ela: “Presta bem atenção: se toda Fortuna serve não apenas para recompensar ou
pôr à prova os bons, mas também para punir ou corrigir os maus, qualquer Fortuna é boa,
porque ou ela é justa ou é útil”.
4. “De fato”, respondi, “esse raciocínio é muito verdadeiro, pois está apoiado em argumentos
bastante sólidos, conforme o que me explicaste há pouco a respeito do Destino e da Providência.

5. “Contudo, se não te importas, acredito que essa afirmação deva ser qualificada como
inaceitável e contraditória, como algumas outras que anteriormente tu expuseste”.

6. “Por quê?”, perguntou a Filosofia. Respondi: “Porque se há algo que ouvimos com bastante
freqüência é as pessoas queixando-se de ter uma má Fortuna”.

7. Então ela disse: “Tu queres, pois, que nos aproximemos da linguagem das pessoas comuns,
para que não pareça que perdemos o contato com o gênero humano?”. “Como queiras”,
respondi.

8. E ela continuou: “Pois bem, tu admites que aquilo que é bom também é útil?”. “Admito”,
respondi.

9. “Admites que seja boa a Fortuna que, quando não corrige os homens maus, exercita a virtude
dos homens bons?”. “Admito”, respondi novamente.

10. “Então”, prosseguiu ela, “essa Fortuna é boa?”. “E por que não seria?”, indaguei. E ela: “Essa
é a Fortuna daqueles que, conhecendo e praticando a virtude, lutam contra as adversidades e,
afastando-se do mal, seguem o caminho do bem”. “Sim. Isso é algo que não posso negar”,
confirmei.

11. Então ela perguntou: “E o povo considera má a boa Fortuna que chega como um prêmio
para os bons?”. Respondi: “Não. Ao contrário: as pessoas a consideram muito boa, como de fato
ela é”.

12. Prosseguiu ela: “Finalmente, acaso o povo pensa ser boa a Fortuna que trata com aspereza os
homens maus?”.

13. “De modo algum”, disse eu, “essa Fortuna é geralmente considerada a maior desgraça que se
pode imaginar”.

14. Disse, então, a Filosofia: “Sejamos cautelosos. Que não seja o caso de, ao seguir a opinião
vulgar, acontecer que cheguemos a conclusões contraditórias e inaceitáveis”. “Quais poderiam ser
tais conclusões?”, perguntei.

15. Respondeu ela: “De tudo o que foi dito anteriormente depreende-se que aqueles que
possuem, praticam ou adquirem a virtude sempre têm uma boa Fortuna, qualquer que seja ela;
por outro lado, a Fortuna sempre é má para aqueles que vivem afundados nos vícios”.

16. Então eu disse: “Isso está muito correto, embora ninguém queira reconhecer essa verdade”.

17. Ela continuou: “É por isso que o homem sábio não deve se irritar quando precisa lutar com
a Fortuna, do mesmo modo que o homem corajoso não se irrita quando soa a trombeta que lhe
convoca para a guerra.
18. “Porque, para ambos, nesse aparente infortúnio está o seu próprio objetivo: ao guerreiro é
oferecida a oportunidade de adquirir mais glória, e ao sábio a de consolidar suas virtudes.

19. “É isto que justifica a própria palavra ‘virtude’, que significa valor: apoiando-se em si
mesma, ela não se deixa vencer pela adversidade; quem pretende cultivar as virtudes não deve
amolecer o seu espírito com confortos e facilidades, nem definhar na busca por prazeres.

20. “Se quiserdes seguir a virtude, vosso coração deverá empreender uma luta sem tréguas
contra a Fortuna; pois, se ela for boa, não devereis se deixar seduzir por ela; e, quando for má,
não podereis permitir que ela vos faça esmorecer.

21. “Usai todas as vossas forças para vos manter no justo caminho do meio: tudo o que fica
abaixo ou além daquilo que é devido implica em abandonar a felicidade sem alcançar o prêmio
pelo vosso esforço.

22. “Na verdade, a vossa Fortuna depende inteiramente de vós: ainda que ela pareça má, não
vos esqueçais de que ela serve também para exercitar as virtudes e para corrigir ou castigar a
conduta dos homens.

METRO 7
“Depois de dez anos de batalha

o Atrida destruiu a Frígia.

Foi assim que com justiça ele vingou

o rapto de Helena, sua cunhada.

Quando por fim sua esquadra partiria

para amainar os ventos, esse Atrida

ofereceu à Diana uma dádiva

de seu próprio sangue: a sua filha,

a quem com impiedade degolara.

Ulisses lamentou o triste fim

dos seus companheiros de viagem,

que o feroz Polifemo, em sua caverna,

devorara com muita crueldade.


Porém logo em seguida, ele pagou

com lágrimas amargas seus prazeres:

pois perdera a visão do único olho,

ferido que fora por Ulisses.

Hércules conquistou a sua fama

depois de dificílimos trabalhos:

ele domou os centauros orgulhosos;

arrancou a pele do leão;

trespassou com suas certeiras setas

os horrendos pássaros do Estínfalo;

roubou as maçãs de ouro do dragão;

capturou o cão de três cabeças;

dominou as éguas de Diomedes

fazendo com que elas devorassem-no;

fez a Hidra de Lerna perecer

nas chamas do seu próprio veneno;

com a face desonrada, o Aqueló

escondeu o rosto em fundas águas;

derrotou Anteu no chão da Líbia;

trouxe muita alegria para Evandro

com a derrota do gigante Caco;

os ombros que sustentariam o mundo

manchou-os com o javali de Erimanto;

em seu último trabalho segurou

o firmamento sem curvar o pescoço,


e como recompensa do trabalho

o herói mereceu o próprio Céu.

Vós que guardais em vosso sangue

a coragem dos valentes, caminhai

seguindo esse modelo de nobreza!

Por que esmoreceis covardemente?

Por que virais as costas com tristeza?

São os que se elevam sobre a Terra

que conquistam o prêmio das estrelas”.


LIVRO V
A Filosofia mostra a harmonia que existe entre a Providência
divina e a vontade livre dos homens.

PROSA 1
1. Tudo isso disse a Filosofia. E ela estava disposta a mudar o tom do seu discurso para tratar de
outras questões.

2. Então eu disse assim: “Os teus conselhos são muito sábios e de fato são muito dignos da
autoridade de que desfrutas; mas ainda há pouco tu disseste que a questão da Providência está
relacionada a muitas outras questões; e só agora começo a compreendê-lo.

3. “Diga-me, por favor: tu crês que o acaso existe de verdade? E, caso ele exista, qual é a sua
natureza?”.

4. Ela respondeu: “Cumprirei logo minha promessa para te mostrar o caminho pelo qual tu
poderás retornar à tua pátria.

5. “Contudo, é importante que tu saibas que, ainda que essas questões sejam muito
interessantes, elas podem nos afastar do nosso propósito; e é de se recear que, fatigado pelas
digressões, tu não conserves as energias necessárias para atingir o objetivo”.

6. A isso, respondi: “Não temas por isso; para mim, aprender as coisas que me interessam é um
descanso.

7. “E, uma vez que tenhas estabelecido os teus argumentos de maneira inequívoca, não haverá
nenhuma dúvida a respeito do que vier a seguir”.

8. “Farei como queres”, disse ela, e prosseguiu assim: “Se o que se entende por acaso é um
acontecimento ou uma série de acontecimentos que ocorrem por acidente, fora do encadeamento
natural das causas, então é preciso dizer que ele não existe; e que nem a própria palavra ‘acaso’ faz
sentido, pois não encontra nenhum referente na realidade; pois se todas as coisas acontecem
segundo uma ordem estabelecida por Deus, não existe lugar para as coisas fortuitas ou
imprevistas.

9. “Na verdade, os filósofos antigos estavam corretos em afirmar que ‘do nada, nada vem’; tanto
que ninguém se atreveu a refutar tal pensamento, ainda que ele não tenha sido formulado para
descrever o princípio criador e agente do universo, mas apenas a matéria criada, ou seja, a
natureza dos seres.
10. “Se houvesse um acontecimento que não tivesse causa, é como se ele tivesse saído do nada;
e, da mesma forma que isso é impossível, também será impossível que exista o acaso, tal como o
definimos agora há pouco”.

11. “E então”, disse eu, “não existe nada a que possamos chamar de ‘acaso’ ou de ‘sorte’?
Porventura existe algo, ainda que seja desconhecido do povo, que pode levar esse nome?”.

12. “Em sua Física, o meu discípulo Aristóteles definiu essa palavra de maneira concisa e muito
próxima da verdade”.69 “Como?”, perguntei-lhe.

13. Respondeu ela: “Sempre que uma ação realizada com um propósito determinado resulta em
algo diferente daquilo que se esperava, costuma-se falar em acaso. Por exemplo: um homem
pretende cultivar o solo, mas, ao cavar a terra, encontra um pote de ouro.

14. “É comum que se pense que isso aconteceu por acaso; mas, na verdade, o acontecimento
não nasceu do nada, ele tem suas causas próprias; é apenas a confluência inesperada e imprevista
dessas causas que parece criar o que chamamos de acaso.

15. “Pois nenhum ouro teria sido encontrado se ninguém o tivesse depositado ali naquele lugar
e se o lavrador não tivesse cavado a terra.

16. “Foram essas as causas do lucro inesperado, as quais, por sua vez, resultaram de outras
causas externas e simultâneas que se cruzaram e confluíram, e não da intenção de um agente.

17. “Nem aquele que enterrou o seu dinheiro nem o que cavou a terra tinham a intenção de que
o ouro fosse descoberto; contudo, tal como eu disse anteriormente, uma série de causas externas
e simultâneas confluíram e influíram nos fatos de um haver enterrado o ouro e do outro tê-lo
descoberto.

18. “Poderíamos, pois, definir o acaso da seguinte maneira: é um acontecimento imprevisto que
um conjunto de causas confluentes fez entrar na cadeia das ações realizadas com um objetivo
determinado.

19. “A afluência e a confluência das causas procede da inflexível ordem do universo, a qual,
tendo sua origem na Providência, determina o lugar e o tempo de todas as coisas.

METRO 1
“No meio das rochas do monte aquemênio onde os guerreiros

evadidos se escondem para flechar seus perseguidores,70

de uma única fonte nascem os rios Tigre e Eufrates;

depois suas águas repartem-se e vai cada um para um lado.


Se porventura formassem de novo um único curso,

tudo que cada um carrega se juntaria à carga do outro:

como troncos na corrente as embarcações se chocariam,

e os cursos unidos traçariam um caminho caótico.

Mas os seus movimentos são regidos pelas leis do fluxo

das águas e pela forma que assumem o relevo e a terra.

Da mesma maneira, parece que o acaso caminha à deriva,

mas como o curso dos rios, ele obedece a uma lei suprema”.

PROSA 2
1. Então eu disse: “Compreendo tudo o que me dizes e percebo que as coisas são exatamente do
modo como tu descreves.

2. “Mas eu gostaria de saber o seguinte: nessa seqüência de causas tão estreitamente ligadas
umas às outras, existe liberdade para o nosso arbítrio? Ou todos os movimentos do espírito
humano estão sujeitos à fatalidade do Destino?”.

3. Ela respondeu: “Existe, sim, o livre-arbítrio; pois nenhum ser dotado de razão pode viver sem
ele.

4. “Na verdade, todo aquele que por sua natureza pode servir-se da Razão é capaz de estabelecer
distinções entre as coisas; portanto, o ser dotado de razão pode distinguir por si mesmo o que
deve ser buscado e o que deve ser desprezado.

5. “Assim, ele buscará pelas coisas apetecíveis e desprezará as desprezíveis.

6. “Portanto, todo ser dotado de razão também é dotado da liberdade de querer ou não querer;
contudo, é necessário admitir que nem todos possuem o mesmo grau de liberdade.

7. “Porque as substâncias divinas e superiores têm à sua disposição um julgamento perspicaz,


uma vontade incorrupta e um poder eficientíssimo para realizar os seus desejos.

8. “Por sua vez, as almas humanas são necessariamente mais livres quanto mais se preservam na
contemplação da mente divina; sua liberdade diminui à medida que descem aos corpos, e
diminui mais ainda quando são aprisionadas pelos membros da matéria terrena.71

9. “A escravidão mais extrema ocorre quando as almas entregam-se aos vícios e perdem a
propriedade da razão, que é sua característica essencial.
10. “Porque uma vez que tenham descido da contemplação da Luz soberana e da Verdade para
o mundo inferior e tenebroso, as almas são envolvidas pela escuridão da ignorância, onde são
perturbadas pelas paixões mais funestas; e se consentem com tais paixões e cedem a elas,
reforçam a escravidão a que estão submetidas, e acabam aprisionadas dentro de sua própria
liberdade.

11. “No entanto, lá da eternidade, o olhar da Providência observa tudo, percebe todas as coisas e
as dispõe em uma determinada ordem, predestinando cada uma conforme seus próprios méritos.

METRO 2
“Homero, o das mais doces palavras,

canta que o claro Febo, com luz pura,

‘é aquele que tudo vê e tudo ouve’.

Mas Febo é incapaz de perscrutar

as entranhas da terra ou do oceano,

pois seus raios são fracos para tanto.

O mesmo não sucede ao Criador

do magnífico orbe: aos olhos d’Ele

que tudo contempla lá do alto

não pode existir nenhum obstáculo.

Nem a massa da terra tão espessa

ou o negrume da noite nebulosa.

Ele consegue ver tudo o que foi,

o que agora está sendo e o que será,

com uma única expressão do seu olhar.

Se só Ele contempla tudo o que há

é a Ele, pois, que deveríeis chamar

de único e verdadeiro Sol”.


PROSA 3
1. “Pois bem”, disse eu, “eis que uma ambigüidade mais difícil me confunde”.

2. “Que dificuldade é esta?”, perguntou ela, “já estou a adivinhar o que te inquieta”.

3. Respondi: “Parece-me haver um profundo paradoxo entre o conhecimento prévio que Deus
tem de todos os acontecimentos e a existência de algum livre-arbítrio.

4. “Porque se Deus prevê todas as coisas sem que possa equivocar-se, sempre há de suceder
aquilo que já foi previsto pela Providência.

5. “Logo, se lá da eternidade Ele conhece os atos, os propósitos e as vontades dos homens, não
pode existir o livre-arbítrio; pois nenhum outro ato e nenhuma outra vontade podem existir a
menos que a infalível Providência divina os tenha previsto.

6. “Pois se os acontecimentos pudessem seguir uma direção diferente daquela que foi prevista,
já não poderíamos falar de presciência,72 mas apenas de uma incerta conjectura; e penso ser
errado atribuir tal equívoco a Deus.

7. “Por outro lado, parece-me de todo inaceitável a série de argumentos com que alguns
pretendem resolver essa questão.

8. “Dizem que as coisas não acontecem porque a Providência as previra, mas que se passa o
contrário: como determinados fatos acontecerão necessariamente, eles não podem ser ignorados
pela infalível Providência, e assim a necessidade recai sobre a parte contrária. Mas isso não é uma
solução, apenas uma inversão do problema.

9. “Porque, para os que defendem tal argumento não é necessário que aconteça aquilo que foi
previsto, só é necessário que as coisas que vão acontecer sejam previstas. Como se o problema
consistisse em determinar a relação das causas — isto é, se o conhecimento prévio dos
acontecimentos futuros é a causa da sua necessidade ou se a necessidade dos acontecimentos
futuros é a causa da Providência. Mas queremos demonstrar exatamente isto: seja qual for a
relação entre as causas, é necessário que aconteça aquilo que foi previsto, ainda que o
conhecimento prévio dos eventos futuros não pareça implicar na necessidade de eles
produzirem-se.

10. “Por exemplo: se uma pessoa está sentada, o juízo que afirma que ela está sentada está
necessariamente certo; de modo recíproco, se o juízo que afirma que a pessoa está sentada está
correto, necessariamente a pessoa está sentada.

11. “Nos dois casos, existe, pois, uma necessidade: no segundo caso, a necessidade de que a
pessoa esteja sentada; no primeiro, a necessidade de que seja verdadeiro o juízo que assim o
afirma.

12. “Mas a pessoa não está sentada pelo fato de o juízo ser verdadeiro; em vez disso, o juízo é
verdadeiro por ter sido precedido pelo fato de a pessoa estar sentada.
13. “Assim, nos dois casos há a mesma necessidade, ainda que a causa da verdade proceda de
apenas um dos lados.

14. “Podemos raciocinar da mesma maneira acerca da Providência e dos acontecimentos


futuros: com efeito, se é pelo fato de virem a acontecer que são previstos, não é verdade que
aconteçam por tê-lo sido. Porém, no que diz respeito à Providência, é necessário que tudo o que
acontecerá seja previsto e que tudo o que seja previsto de fato aconteça. E com isso o livre-
arbítrio humano desaparece.

15. “Contudo, seria um absurdo imenso afirmar que o desenvolvimento temporal dos
acontecimentos é a causa da presciência divina.

16. “Crer que Deus prevê as coisas futuras porque elas precisam acontecer é a mesma coisa que
supor que os feitos passados são a causa da Suprema Providência.

17. “Por outro lado, se eu sei com certeza que uma coisa existe, é necessário que ela exista; da
mesma forma, se sei igualmente que uma coisa virá a existir, um dia ou outro ela necessariamente
existirá; ou seja, é infalível a realização de uma coisa prevista.

18. “Por fim, se alguém pensa que uma coisa é diferente daquilo que ela é na realidade, não
podemos chamar a isso de conhecimento, mas apenas de uma idéia falsa, que em tudo é oposta à
verdade do conhecimento.

19. “Portanto, é possível prever a realização de um acontecimento cuja realização não é certa
nem necessária?

20. “Pois assim como a própria ciência não se mistura com a falsidade, as coisas por ela
concebidas não podem ser diferentes da sua concepção.

21. “Se a verdadeira ciência não conhece a mentira é porque as coisas são necessariamente da
maneira como ela as representa.

22. “Então, de que forma Deus consegue prever os futuros incertos?

23. “Se Ele pensa ser inevitável a realização de acontecimentos que não podem produzir-se, Ele
está equivocado; e para nós, pensar que isso possa acontecer é um grande sacrilégio; dizê-lo,
então, é um sacrilégio ainda maior.

24. “Por outro lado, se Ele julga que essas coisas são exatamente do jeito que são — de modo
que elas tanto podem quanto não podem acontecer —, que tipo de presciência divina seria essa,
que não comporta nada tão estável e definido?

25. “Em que sentido tal presciência diferiria daquela absurda profecia feita por Tirésias no
seguinte verso de Horácio: O que quer que eu diga será ou não será? 73

26. “Se a Providência considerasse incertos os acontecimentos cuja realização é duvidosa, em


que ela seria superior à opinião humana?

27. “Assim, se não pode haver incerteza naquela que é a fonte mais segura de todo
conhecimento, é certa a realização de todas as coisas que a Providência prevê com certeza.

28. “Logo, não existe liberdade nem nos atos nem na vontade humana, pois a Inteligência
Divina que prevê tudo de maneira infalível e encadeia e relaciona todos os acontecimentos entre
si o faz de tal modo que necessariamente os conduz a um fim determinado.

29. “Admitindo-se tal doutrina, é fácil perceber como desmorona o edifício das ações humanas.

30. “Será inútil prometer recompensas aos bons ou ameaçar com castigos os maus, pois eles não
mereceram nem uma coisa nem outra, uma vez que os movimentos de suas almas não são livres e
voluntários.

31. “De modo que aquilo que hoje se considera como o símbolo máximo da eqüidade — a
recompensa dos bons e o castigo dos maus — não passa de uma máxima injustiça, pois não é a
sua vontade própria que leva os homens a praticarem o bem ou o mal, mas a inevitável
necessidade das coisas que devem fatalmente acontecer.

32. “Conseqüentemente, nem os vícios nem as virtudes existiriam, mas apenas uma informe e
desordenada confusão de méritos. Além disso, se a ordem universal procede da Providência, e se
a vontade humana não possui o poder de escolher — ó, pensamento ímpio! —, até mesmo os
nossos vícios têm a sua origem naquele que é o autor de todo o bem.

33. “Assim, não existe motivo algum pelo qual devamos esperar ou pedir algo mediante a
oração. Porque o que se pode esperar, ou o que é possível suplicar, se tudo o que é apetecível está
sujeito a leis inflexíveis?

34. “Com isso, inclusive, suprimem-se os únicos laços que unem o homem a Deus: a oração e a
esperança. Com efeito, cremos que pelo mérito de uma justa humildade nós conquistamos o
incomparável favor da graça divina;74 e esse é o único meio de falar com Deus; de nos unirmos,
mediante a adoração, à Sua luz inacessível, ainda antes de possuí-la integralmente.

35. “Contudo, se todos os acontecimentos futuros são necessários e a esperança e a oração não
possuem nenhuma eficácia, que laço pode nos unir ao Princípio universal?

36. “Por tudo isso é inevitável que o gênero humano sucumba, pois o homem ‘fatalmente se
desintegra’, quando está ‘apartado de sua fonte’, tal como tu mesma disseste em teus versos.

METRO 3
“Que causa discordante poderia

infringir as regras do universo?


Que deus decidiria sabiamente

entre duas verdades que apresentam

firmes existências isoladas,

mas que juntas são incompatíveis?

Talvez não haja nenhuma divergência

entre as duas verdades, e ainda

elas sejam perfeitamente coesas,

mas a alma encerrada em corpo cego,

tendo apagada a chama de sua luz,

torna-se incapaz de distinguir

os nexos sutis da realidade.

Por que se inflama a alma com o desejo

de encontrar sinais ocultos da verdade?

Teria ela algum indício vago

daquilo que procura com impaciência?

Contudo, quem se anima a conhecer

as coisas fartamente já sabidas?

Se a alma desconhece o que procura

por que ela ainda insiste em sua busca?

Como encontrar o que desconhecemos

se nem sabemos onde procurar,

nem temos um indício de sua forma?

Como, enfim, reconheceríamos

uma forma que nunca conhecemos?

Apenas se lograrmos contemplar


a Inteligência Divina, saberemos

distinguir o que é detalhe e o que é essência.

Por ora a alma encontra-se no corpo

confundida por sua obscuridade.

Contudo, ela conserva ainda a memória

de sua verdadeira natureza

e é capaz de distinguir o essencial,

ainda que não tenha a compreensão

dos detalhes de cada uma das coisas.

O homem que dedica-se à verdade

vive num estado intermediário:

não sabe nem ignora plenamente;

recordando o que contemplou um dia,

ele quer preservar o essencial,

e tenta unir as coisas esquecidas

às que a memória pôde conservar”.

PROSA 4
1. Então a Filosofia disse: “É bem antiga esta discussão acerca da Providência. Marco Túlio a
abordou com calor e entusiasmo quando tratou da adivinhação;75 tu mesmo a estudaste de
maneira séria e prolixa. Contudo, até agora ninguém encontrou uma explicação satisfatória,
sólida e exata para a questão.76

2. “A causa dessa escuridão é a incapacidade do raciocínio humano de compreender a


simplicidade da presciência divina: se o homem pudesse sequer concebê-la, não haveria
nenhuma dificuldade nem incerteza quanto a esta questão.

3. “Cuidarei de explicá-la e elucidá-la para ti, começando pelas dúvidas que te afligem.

4. “Não entendo por que consideras pouco conclusivo o argumento daqueles que oferecem uma
solução para o assunto; a presciência divina não cria a necessidade dos acontecimentos futuros e,
portanto, não se opõe ao livre- arbítrio.

5. “O teu argumento a favor da necessidade dos acontecimentos futuros se reduz a isto: se eles
foram previstos, então necessariamente precisam ocorrer.

6. “Portanto, se a presciência não implica na necessidade da ocorrência dos acontecimentos


futuros — algo que tu mesmo admitiste há pouco — por que motivo a realização voluntária das
coisas estaria sujeita a um resultado predeterminado?

7. “Bem, apenas para testar as conseqüências lógicas do argumento, admitamos, por ora, que
não existe presciência.

8. “Atenhamo-nos, pois, a esta hipótese: se não existe presciência, acaso os atos da vontade
humana serão impelidos por alguma necessidade?”. “De modo algum”, respondi.

9. Prosseguiu ela: “Agora suponhamos que exista, sim, a presciência, mas que a sua existência
não imponha nenhuma necessidade aos acontecimentos futuros: assim, a liberdade da vontade
ficará intacta e absoluta.

10. “Tu me dirás: ‘Mesmo que a presciência não implique na imposição de uma necessidade aos
acontecimentos futuros, ainda assim ela é um sinal de que tais acontecimentos deverão
necessariamente realizar-se’.

11. “Nesse caso, mesmo que não existisse a presciência, a realização dos acontecimentos futuros
ainda seria necessária; porque o sinal indica algo que já existe, ele não dá origem às coisas que ele
designa.

12. “Portanto, é preciso demonstrar que tudo acontece por necessidade; e a presciência será um
símbolo dessa necessidade; do contrário disso, se a necessidade não existe, a presciência não
poderá significar uma coisa irreal.

13. “E para que uma demonstração seja sólida, ela não pode fundamentar-se em signos ou
argumentos externos, mas precisa estar fundada em razões intrínsecas e necessárias.

14. “É possível que os acontecimentos previstos não se realizem? Como pode acontecer isso?
Tal suposição equivaleria a dizer que, ainda que Deus tenha presciência de todos os
acontecimentos futuros, estes nem sempre se cumprem; ou ainda: mesmo quando são realizados,
não há em sua natureza nenhuma causa intrínseca que lhes torne necessários.

15. “Penso que tu mesmo podes encontrar facilmente a resposta para esta questão.
Consideremos um número de acontecimentos enquanto se estão realizando; por exemplo: o
espetáculo dos aurigas conduzindo e guiando suas quadrigas,77 e outras coisas desse tipo.

16. “Existe alguma causa que faz com que esses acontecimentos se realizem exatamente como
nós os observamos?”. “Nenhuma”, respondi, “todo o esforço da arte seria inútil, e até supérfluo,
se tudo se movesse por obrigação e por necessidade”.

17. “Portanto, as coisas que carecem da necessidade de existir enquanto estão acontecendo
também não tinham tal necessidade antes de serem realizadas.

18. “Logo, existem coisas que podem acontecer, mas cuja realização está livre de toda a
necessidade.

19. “Ora, ninguém dirá que um fato que está acontecendo agora não estava prestes a acontecer.
Portanto, estamos falando aqui de um acontecimento previsto, mas cuja realização é livre.

20. “Porque se o conhecimento do presente não implica na necessidade dos acontecimentos que
se realizam, a previsão dos acontecimentos futuros também não implica na mesma necessidade.

21. “Tu objetarás que a dificuldade está em saber se é possível prever fatos cuja realização não
seja necessária.

22. “Aí parece mesmo existir uma contradição: tu pensas que a necessidade é a conseqüência
lógica das coisas que são previstas; que não existe a possibilidade de previsão se a necessidade está
ausente; que nada pode ser conhecido se não for uma coisa clara e bem definida.

23. “Pois se os acontecimentos cuja realização é incerta são tomados por certos, tu pensas que
isso consistiria numa conjectura confusa, e não em um verdadeiro conhecimento da realidade.

24. “O erro está em pensar que todo conhecimento resulta exclusivamente da essência e da
natureza daquilo que é conhecido.

25. “Na realidade, porém, sucede exatamente o contrário: as coisas não são conhecidas em
função de sua essência, mas em função do sujeito que as conhece.

26. “Explicarei isso com um breve exemplo: a forma redonda de um objeto pode ser percebida
de modos diferentes pela visão e pelo tato. De longe, a visão percebe a esfericidade ou redondeza
em seu conjunto; o tato, por sua vez, precisará se aproximar e tocar o objeto para poder perceber
que ele é redondo.

27. “O homem mesmo é percebido de diferentes maneiras pelos sentidos, pela imaginação, pela
razão e pela inteligência.

28. “Os sentidos limitam-se a conhecer a forma a partir da perspectiva da matéria; a


imaginação, por sua vez, atenta- se à forma, sem levar em conta a matéria.

29. “A razão vai ainda mais além, e considera todas as coisas singulares a partir de sua
universalidade, determinando, assim, a espécie de cada coisa.

30. “O olhar da inteligência é superior ao da razão. Transcendendo a esfera do universal, a


inteligência intui as formas simples em si mesmas, penetrando-as com a sua luz.
31. “É preciso lembrar, ainda, que o conhecimento de ordem superior também inclui o
conhecimento de ordem inferior; embora o inverso não se verifique.

32. “De fato, os sentidos não podem nada fora da matéria; a imaginação não chega à
universalidade e a razão não alcança as formas simples. Mas a inteligência, ao olhar todas as
formas concebidas a partir de uma perspectiva superior, consegue discernir também tudo o que
está abaixo delas; e assim também consegue conhecer a forma simples das coisas, a que só ela
consegue chegar.

33. “As características universais apreendidas pela razão; as formas contempladas pela
imaginação; as impressões proporcionadas pela matéria; tudo isso é captado pela inteligência, e
sem a necessidade da razão, da imaginação ou dos sentidos, mas apenas por uma simples ação do
espírito, que permite observar tudo ao nível da forma simples.

34. “Do mesmo modo, a razão também não precisa nem da imaginação nem dos sentidos para
conhecer o universal das coisas imagináveis ou sensíveis.

35. “Este é um dos universais da razão: o homem é um animal bípede e racional.

36. “Se há uma noção universal a respeito de alguma coisa, todos compreendem que ela está
relacionada com os domínios da imaginação e dos sentidos; mas não são eles que conferem à
coisa o seu caráter de universalidade, mas a razão, mediante o seu trabalho de abstração.

37. “Quando quer representar as formas da realidade, a imaginação também parte da


observação dos sentidos; mas logo os abandona para examinar o sensível não pelo conhecimento
que procede dos sentidos, mas por um processo propriamente imaginativo.

38. “Percebes agora que o mais importante em todo processo de percepção é a atividade do
sujeito e de sua faculdade cognitiva e não as faculdades do objeto?

39. “E é natural que seja assim. Pois se todo juízo procede de um ato daquele que julga, é
necessário que ele seja realizado em virtude da sua própria potência e não de um poder exterior.

METRO 4
“Nos tempos de outrora

o Pórtico78 nos legara

obscuros anciãos!

Eles criam ser possível

que as imagens sensíveis

evolavam-se dos corpos


e imprimiam-se nas almas

assim como o estilete

traça suas letras na tábua

que antes estava lisa.

Mas se a alma vigorosa

nada explica por si mesma

com seus movimentos próprios

e fica assim reduzida

a uma função passiva

sofrendo a impressão dos corpos,

refletindo, como um espelho

as vãs imagens das coisas,

de onde recebe o espírito

a sua sabedoria

e o seu discernimento?

Que potência que escrutina

as coisas em suas partículas,

decompõe o conhecido

considera o que é possível,

realiza a sua síntese

e toma um caminho inverso,

ora atingindo os píncaros,

ora indo ao que é mais baixo,

e em seguida por si mesma,

com a ajuda da verdade,


contraria a falsidade?

É uma causa eficiente

que é muito mais poderosa

do que aquela que consiste

em receber impressões

marcadas em sua matéria.

Contudo o que vem primeiro,

esse impulso inicial,

que desperta a força da alma

é uma impressão corpórea:

a luz que bate nos olhos,

o som que toca os ouvidos.

É aí que a alma se anima

e acende o que lhe é inato:

as imagens interiores

que comparam-se aos signos,

aos sinais que vêm de fora,

essas imagens sensíveis,

que só refletem as formas

que existem dentro da alma.

PROSA 5
1. “No ato da percepção, ainda que os objetos sejam percebidos a partir das impressões externas
recebidas pelos órgãos dos sentidos; e ainda que a atividade do espírito seja precedida por uma
sensação física que ativa a ação da inteligência e desperta as formas que estavam nela
adormecidas, isso não significa que o espírito seja condicionado pela experiência física, pois é a
partir de sua própria luz que ele julga as informações oferecidas pelas sensações. Assim, seria
razoável inferir que os seres livres de toda influência corpórea — e, portanto, independentes do
mundo externo no que diz respeito à formulação dos seus juízos — possuem uma inteligência
muito mais livre.

2. “Foi em função disso que surgiram múltiplas formas de conhecimento, conforme a variedade
de seres e de substâncias existentes.

3. “Com efeito, a sensação é a única forma de conhecimento disponível aos seres imóveis, como
os que vivem fixos no fundo do mar; por sua vez, os animas que se movimentam possuem
imaginação, pois parecem experimentar desejos e repugnâncias.

4. “A razão, porém, é privilégio da raça humana. E a inteligência é exclusiva da Divindade. O


que demonstra que essa é a maior faculdade de todas, posto que a sua natureza não conheça
apenas aquilo que é do seu domínio, mas também todas as coisas que dizem respeito aos outros
modos de conhecimento.

5. “O que aconteceria, pois, se os sentidos e a imaginação se revoltassem contra a razão,


negando o caráter universal das suas percepções?

6. “Eles poderiam alegar que o sensível e o imaginado não podem ter um caráter universal; ou
então que só o juízo emitido pela razão é verdadeiro e, conseqüentemente, as coisas sensíveis não
existem; ou ainda: poderiam alegar que é inútil o trabalho operado pela razão (de universalizar o
sensível e o particular), uma vez que a maior parte das coisas conhecidas pela razão depende dos
sentidos e da imaginação.

7. “Se a razão respondesse que ela examina os dados dos sentidos a partir de uma perspectiva
universal — que não pode ser acessada nem pela imaginação nem pelos sentidos, pois sua esfera
de conhecimento está limitada às formas corporais — e dissesse que é preciso se concentrar no
conhecimento mais seguro e perfeito, de que lado nós ficaríamos? Não ficaríamos do lado da
razão, visto que nós mesmos possuímos a capacidade de julgar, de sentir e de imaginar?

8. “Pois é justamente isso que acontece com os homens, quando crêem que a Inteligência
Divina só consegue ver o futuro da mesma maneira que a razão humana.

9. “Tu pensas deste modo: se os acontecimentos não se cumprirem de maneira certa e


necessária, então não podem ser previstos.

10. “E, a partir desse pensamento, concluis que não existe a presciência divina; e, quando
supões que ela exista, pensas que tudo o que é por ela previsto deve ser necessariamente
consumado.

11. “Ora, nós possuímos a faculdade da razão e a colocamos acima dos sentidos e da
imaginação. Da mesma maneira, se a Inteligência Divina estivesse ao nosso alcance, nós a
colocaríamos acima da razão humana, pois compreenderíamos a Sua superioridade.

12. “Por isso, se nos for possível, elevemos o nosso espírito até o ápice daquela Inteligência
Suprema. E então a razão verá todas as coisas que não pode perceber por si mesma, e
compreenderá como até mesmo os acontecimentos cuja realização não é certa podem ser objeto
da presciência divina, que é essencialmente precisa e verdadeira, e que isto não é uma simples
conjectura, mas uma ciência simples e absoluta, que não possui limitação alguma.

METRO 5
“Quão grande é a variedade de formas e estruturas

das bestas e animais que habitam a natureza!

Alguns têm o corpo longo e por sobre o pó rastejam,

enquanto outros cortam os ares com suas rápidas asas;

outros no chão imprimem as marcas dos passos firmes

e povoam os verdes bosques ou as áridas planícies.

São todos tão diferentes em suas características,

mas curvam-se para o solo por causa dos seus instintos.

Só os altivos humanos elevam a excelsa cabeça

e com os seus corpos eretos olham a terra de cima.

No entanto, de nada adianta elevar a cabeça e os olhos

e como um animal entregar a alma ao poder dos corpos.

PROSA 6
1. “Vimos anteriormente que o conhecimento das coisas não depende da sua natureza, mas do
sujeito que as conhece. Assim, tanto quanto seja humanamente possível, examinemos qual é a
substância da natureza divina, para que possamos conhecer também como se dá o seu
conhecimento.

2. “A razão unânime de todos os povos consente que Deus seja eterno.

3. “Consideremos, pois, o que é a eternidade; assim nós descobriremos também a natureza de


Deus e o caráter da Sua sabedoria.

4. “A eternidade é a posse total e simultânea da vida interminável. Essa definição fica mais clara
quando a observamos em comparação com as coisas temporais.

5. “Todo ser que existe no tempo vive em um presente, avançando do passado para o futuro,
sendo incapaz de abarcar de uma só vez toda a duração da sua existência: ainda não alcançou o
dia de amanhã, mas já perdeu o dia de ontem. E na sua vida atual não vive senão um momento
breve e transitório.

6. “Ora, tudo aquilo que sofre a condição do tempo — mesmo uma coisa que, tal como pensou
Aristóteles a respeito do mundo, não tenha um princípio nem um fim, e cuja existência pode se
prolongar indefinidamente — enfim, o que sofre a condição do tempo não é de natureza que
possa ser considerada eterna.

7. “O que está no tempo não consegue abarcar de uma só vez toda a duração da vida ilimitada:
pois não está no futuro, mas também não está no passado.

8. “Portanto, com razão se pode dizer que é eterno o ser que consegue abarcar e possuir, em sua
totalidade, a plenitude de uma existência sem limites (de modo que não lhe falte nenhum
instante do futuro ou do passado). Além disso, o ser eterno sempre possui a si mesmo no
presente e, ao mesmo tempo, também possui a infinidade do tempo móvel.

9. “Isso nos mostra o erro daqueles que, ao conhecer a explicação de Platão segundo a qual o
mundo não teve começo e nem terá fim, imaginaram que o mundo criado compartilha da
eternidade do seu Criador.

10. “Contudo, sãoduascoisasbemdistintas: oprolongamento indefinido de uma existência sem


limites — o qual, segundo Platão, é um atributo próprio do mundo — e a posse total, simultânea
e atual de todos os momentos dessa existência ilimitada, o que evidentemente só é acessível à
Inteligência Divina.

11. “Não se deve julgar que Deus seja anterior às coisas criadas por causa de uma relação
temporal; ele é anterior a todas as coisas devido à propriedade da Sua natureza simples.

12. “Com efeito, o infinito movimento das coisas temporais imita, de algum modo, o estado
atual da vida imóvel; estado que tal movimento não consegue reproduzir ou igualar de nenhuma
maneira. Assim, o movimento descende da imobilidade; e a infinita quantidade de instantes que
compõe o presente e o passado descende da simplicidade do presente. Ainda que esse movimento
não possua a plenitude de sua existência em sua totalidade, de alguma maneira ele parece se
assemelhar com aquela imobilidade inatingível, pois, de uma forma ou de outra, ele nunca deixa
de existir, incorporando-se à atualidade do momento presente, que é breve e fugaz. Como essa
atualidade é muito semelhante à atualidade do presente eterno, os entes que a experimentam
parecem ter atingido o estado de existência.

13. “Contudo, o infinito fluir do tempo é uma conseqüência da impossibilidade de se atingir a


imobilidade. E é por isso que o movimento infinito do mundo é apenas o prolongamento de uma
existência cuja plenitude não pode ser atingida, posto que não seja possível alcançar a
estabilidade.

14. “Portanto, para que denominemos as coisas de maneira adequada, devemos dizer — como
Platão — que Deus é eterno e o mundo é perpétuo.79
15. “Como o juízo abarca o objeto conforme a natureza de quem conhece; e como Deus
participa de um presente eterno, o Seu conhecimento, elevando-se acima de todo o movimento
do tempo, conserva a simplicidade do estado presente; e, ao abarcar o curso infinito do passado e
do futuro, esse conhecimento considera todos os acontecimentos dentro de sua simplicidade,
como se tudo acontecesse no presente.

16. “É por isso que não podemos pensar que a presciência universal é igual à presciência tal
como os homens a concebem. O conhecimento divino é o mais certo e mais verdadeiro de todos,
pois é o conhecimento de um presente sempre atual.

17. “E também por isso, em vez de referirmo-nos ao divino conhecimento do futuro como
‘presciência’, seria melhor falarmos de Providência; pois, ao enxergar tudo lá do alto, distante dos
outros seres, a Providência vê todas as coisas como se estivesse no ápice do mundo.

18. “Por que tu queres, pois, que se tornem necessárias as coisas iluminadas pela luz divina, se
nem os homens impõem tal necessidade às coisas que eles vêem?

19. “Acaso aquilo que tu vês neste momento presente adquire alguma necessidade apenas pelo
fato de estar sendo visto por ti?”. “De jeito nenhum”, respondi.

20. Prosseguiu ela: “Se há alguma comparação adequada entre a percepção divina e a percepção
humana, talvez seja correto dizer que, tal como vós vedes os acontecimentos em vosso presente
transitório, Deus os contempla no eterno presente de Sua existência.

21. “Assim, a Providência divina não transforma nem a natureza e nem as propriedades das
coisas: estando todas as coisas presentes ante Deus, Ele as observa tal como um dia elas serão
dentro do tempo.

22. “Ele não confunde os juízos acerca dos seres; apenas um olhar da sua divina inteligência é
suficiente para distinguir o que está e o que não está sujeito à necessidade. O mesmo sucede
convosco, quando, por exemplo, vedes um homem que caminha pela terra na hora em que nasce
o sol. Aí, vós presenciais dois acontecimentos simultâneos — a ação do homem e a ação da
natureza —, mas conseguis distinguir a diferença que existe entre eles, reconhecendo que o
nascer do sol é uma coisa necessária, e o caminhar do homem, voluntária.

23. “De modo que Deus não altera o caráter das coisas ao contemplá-las; e, em relação ao
tempo, os mesmos acontecimentos que para Ele são todos presentes são considerados futuros
pelos homens.

24. “Portanto, o conhecimento que Deus tem de que determinado fato será produzido no
tempo não é uma mera conjectura, mas um conhecimento certo e verdadeiro. Além disso, Ele
sabe que tal fato não acontecerá por necessidade.

25. “Tu dirás que um fato visto por Deus no futuro deverá ocorrer obrigatoriamente; e que,
nessa circunstância, ele ocorrerá devido a uma necessidade. Devo confessar que há aí uma
verdade inegável, mas ela só está ao alcance de quem consegue contemplar as coisas divinas.
26. “Responderei que um acontecimento futuro só é necessário quando visto pelo
conhecimento divino; quando considerado em sua própria natureza, ele mostra- se livre e
independente.

27. “Existem dois tipos de coisas necessárias: as absolutas, como o fato de que os homens são
mortais; e as relativas, como o fato de uma pessoa estar andando quando se sabe com certeza que
ela está realizando tal ação.

28. “Se um fato é conhecido, ele não pode ser diferente do que é conhecido; mas isso não
implica na necessidade absoluta de sua existência.

29. “Nesse caso, a necessidade não advém da natureza do fato, mas de uma condição ou
circunstância que se liga a ele; pois não há nada que obrigue um homem a caminhar quando o faz
voluntariamente; contudo, quando ele está caminhando, necessariamente se verifica o fato da
caminhada.

30. “Do mesmo modo, se a Providência vê um fato no presente, é necessário que ele esteja
acontecendo, mas, por sua natureza, ele não ocorre por nenhuma necessidade.

31. “É certo que Deus observa os fatos futuros que surgem do livre-arbítrio; conseqüentemente,
quando considerados com relação à intuição divina, esses fatos são necessários; mas, se
considerados em si mesmos, eles não perdem o seu caráter livre, que é próprio de sua natureza.

32. “É inegável, pois, que se realizarão todos os acontecimentos futuros previstos por Deus;
contudo, alguns deles procederão do livre-arbítrio, e a sua realização não implica na perda de sua
natureza própria, pela qual não poderiam mesmo acontecer antes de serem realizados.

33. “Tu dirás: que importa que tais fatos não sejam necessários, se, estando condicionados ao
conhecimento divino, eles acontecerão de qualquer modo, como se fossem necessários?

34. “Bem, quero que te recordes do exemplo que expus agora há pouco. Do homem que
caminha enquanto nasce o sol: no momento em que os dois fatos são percebidos, eles não podem
senão estar acontecendo; contudo, o nascimento do sol, ainda antes de realizar-se, já levava em si
a necessidade de acontecer; mas o caminhar do homem não era uma ação sujeita à necessidade.

35. “Assim ocorre com os fatos que estão presentes diante de Deus: eles são inevitáveis; mas
alguns procedem da necessidade, e outros resultam da vontade livre de quem age.

36. “Portanto, foi com razão que dissemos que os atos livres são necessários apenas da
perspectiva divina; quando considerados em si mesmos, eles estão isentos de toda necessidade. O
mesmo acontece com o conhecimento sensível: considerado pela razão, reveste-se de um aspecto
universal; considerado em si mesmo, não perde o seu caráter particular.

37. “Tu poderás objetar: ‘Se posso alterar o meu propósito, posso anular a Providência, pois é
possível alterar suas previsões’.

38. “Sim, é verdade que tu podes modificar as tuas decisões; mas, em sua certeza eternamente
presente, a Providência sabe que tu possuis tal faculdade e também prevê os prováveis usos dela;
por isso, a ti é impossível fugir do conhecimento divino do futuro — do mesmo modo que é
impossível fugir do olhar de alguém que está nos observando —, embora a tua vontade seja livre
para dirigir as diferentes ações que podes executar.

39. “Tu ainda poderás dizer: ‘Minha atuação pessoal pode mudar o conhecimento de Deus, que
sofrerá alterações conforme minhas preferências’. E eu responderei que de modo algum isso pode
acontecer.

40. “Porque todo acontecimento futuro é precedido pela contemplação divina, que o traz até a
presente atualidade do seu próprio conhecimento. O modo de conhecimento da Providência
divina não pode ser alterado, tal como tu crês; mas, em seu presente eterno, de uma só vez e
simultaneamente, a Providência prevê e abarca todas as mudanças possíveis, sejam elas
voluntárias ou não.

41. “Para Deus, essa atualidade universal que abarca e percebe tudo não ocorre em virtude do
desdobramento dos fatos futuros, mas em virtude de Sua suma simplicidade, que é própria da
Sua natureza.

42. “Isso também resolve a questão que colocaste agora há pouco: de que seria indigno
dizermos que os fatos futuros provocavam o conhecimento prévio que Deus possui deles.

43. “As coisas não se dão dessa maneira, pois esse conhecimento é tão poderoso que, abarcando
tudo em sua eterna atualidade, impõe às coisas a Sua maneira de ser, sem depender em nada dos
fatos futuros.

44. “Sendo assim, o livre-arbítrio dos mortais permanece intacto; ou seja, a vontade está isenta
de qualquer necessidade; por isso não há injustiça nas leis que determinam os castigos e os
prêmios.

45. “Além do mais, Deus está acima de todos os outros seres, e Ele contempla nossos atos lá do
alto; com o seu conhecimento prévio e o seu olhar eternamente presente ele conhece o interior de
cada um de nós, e adequadamente ele recompensa os bons e castiga os maus.

46. “Assim, não é nem um pouco vã a esperança que o homem deposita em Deus; tampouco
são inúteis as nossas orações: se elas brotam de um coração reto, elas não deixam de ser eficazes.

47. “Portanto, afastai-vos dos vícios; cultivai as virtudes; elevai vossos corações para a mais
firme esperança e dirigi ao Céu as vossas mais humildes orações.

48. “Se não quereis iludir a si mesmos, tomai a honestidade e a honra como vossa lei suprema,
pois tudo o que fazeis está sob o olhar de um juiz que tudo vê”.
NOTAS DE RODAPÉ
1 Pi e Theta correspondem às abreviaturas das palavras práxis, “prática”, e theorein, “teoria”.

2 O vento Coro.

3 O vento Bóreas.

4 Provérbio grego que expressa o entendi- mento obtuso, a incapacidade do ignorante de apreciar o verdadeiro valor
das coisas.

5 Conigasto era um godo, um dos favori- tos de Teodorico.

6 Triguila, outro godo, diz-se que além do mais era amante de uma das filhas de Teodorico.

7 As “requisições” eram uma espécie de monopólio sobre uma determinada zona comercial que se estabelecia em
circunstâncias excepcionais, geral- mente para a alimentação de tropas oficiais.

8 Instituídos por Augusto no segundo ano de seu império, os praefecti praetorii eram os oficiais que comandavam as
infantarias do exército romano. Durante os séculos ii e iii, ficaram responsáveis pela ju- risdição criminal de toda a Itália,
com exceção de Roma. No governo de Diocleciano (284–305), chegaram a ser os funcionários de finanças mais
importantes do Esta- do. Quando Constantino dissolveu a guarda pretoriana em 312, os prefeitos perderam a sua
autoridade militar e tornaram-se governadores das quatro divisões do Império: a Gália, a Itália, a Ilíria e o Oriente. Na
época de Boécio, o cargo equivalia a de um chefe do governo. Nessa passagem específica, Boécio está se referindo a Flavio
Anicio Probo Fausto Niger, que foi cônsul no ano de 490 e prefeito do pretório de 507 a 511. Os conflitos entre eles se
iniciaram em 509.

9 A expressão libertas romana servia para des- crever um regime político diferente; para os godos, ela significava uma
oposição direta a Teodorico. Consciente da impossibilidade histórica dessa restauração, Boécio protesta contra a
inconsistência da acusação sofrida por ele.

10 Boécio foi preso na cidade de Pavia, que fica a mais ou menos 400 km de Roma, onde aconteceu o seu julgamento.

11 O que Boécio chama de “sacrilégio” é a magia teúrgica neoplatônica, o contato com espíritos inferiores (ou
demônios), e seus praticantes poderiam ser presos e condenados à morte.

12 Vésper (“estrela da tarde”) e Lúcifer (“portador da luz”) são os dois nomes com os quais os poetas se referiam ao
planeta Vênus, conforme o horário do dia em que se dá a sua aparição.

13 Bóreas, símbolo do inverno.

14 “Ventos amenos” eram os Zéfiros, que anuncia- vam a chegada da primavera.

15 Sirius altas urat segetes. A aparição da estre- la Sirius (Canícula) precedia a manhã no solstício de verão. Essa
coincidência explica que, já desde a época de Homero (cf. Ilíada xxii, 30), se atribua a Sirius o calor estival que seca as
colheitas.

16 O aparecimento da constelação de Câncer indi- ca o começo do verão.

17 Equivalente romana de Deméter, deusa dos cereais.

18 A Fortuna era representada como uma mu- lher com uma roda cujos giros determinam o destino dos homens. Em
sua versão mais popular, geralmente aparecem quatro figuras humanas nos pontos cardeais da roda, cada uma delas
representando a posição do indivíduo, considerada a partir da imagem da majestade como símbolo do poder: o desejo
pelo poder (regnabo, “devo reinar”); a posse do poder (regno, “eu reino”); a destituição do poder (reganvi, “eu reinei”); e a
im- possibilidade de qualquer desejo, o estado de desgraça absoluta (sum sine regno, “não tenho reino”). Na Idade Média,
essa imagem iconográfica da Fortuna seria po- pularizada justamente pela obra de Boécio.
19 Canal que separa do continente a ilha grega de Eubéia, famoso pelo fenômeno da inversão das corren- tes, que
mudavam de direção pelo menos quatro vezes por dia, produzindo agitações no mar.

20 A história de Creso foi contada por Heródo- to, onde se lê este episódio: após ter sido vencido pelo persa Ciro, no
ano de 546, os deuses salvaram Creso da morte na fogueira, a que ele havia sido condenado, por uma forte tempestade
que apagou as chamas. Por causa do milagre, Ciro perdoou Creso e o nomeou um dos conselheiros de sua corte.

21 Copia: a deusa da abundância é uma figura geralmente representada por uma mulher carregando um cesto de
vime em formato de corno (cornucópia), repleto de flores, frutas e moedas.

22 Divindade do mar aberto, ou das profundezas do mar.

23 O cargo de cônsul era o mais alto dentro da hierarquia política romana. A nomeação dos filhos de Boécio se deu
em 552, um pouco antes da nomeação do próprio Boécio como mestre de ofícios, também um dos cargos mais elevados
do Império Bizantino. A Filosofia está chamando a atenção de Boécio para esse aconte- cimento porque era pouco
comum que dois ocidentais ocupassem o consulado ao mesmo tempo. Ou ainda: todo ano eram eleitos dois cônsules, e
era raríssimo que os dois fossem da mesma família. Isso significa que Boé- cio era uma pessoa influente e tinha muitos
amigos que ocupavam altos cargos em Constantinopla, onde eram tomadas as decisões sobre o consulado.

24 A “cadeira curul” era uma cadeira em que apenas os magistrados romanos (cônsules, pretores, censores, etc.)
tinham o privilégio de se sentar. Cultural- mente, mais tarde, o objeto viria a se transformar num símbolo do poder,
adotado até hoje em alguns contex- tos. Geralmente era feita ou revestida de marfim, com pernas curvas, no formato de x,
para poder ser dobrada e facilmente transportada.

25 Já durante o período em que Boécio esteve pre- so, é provável que Símaco já fosse considerado suspeito de
conspirar contra Teodorico, e mais tarde seria pro- cessado.

26 A enumeração que se seguirá é inspirada direta- mente por Aristóteles (Ética a Nicômaco 1099b).

27 Euro ou Siroco é o vento cálido do Sudeste.

28 A região de Seres ficava na Ásia oriental, num local que vagamente se identifica com a China, e onde se produzia
seda de boa qualidade.

29 O consulado romano foi constituído após o declínio da monarquia, em 509 a.C.; ele se transforma- ria num
símbolo das instituições republicanas. Entre os séculos v e vi a.C., os cônsules foram substituídos por tribunos militares,
não tanto por sua “arrogância” — como afirma Boécio —, mas pelo conflito que existia entre os patrícios e os plebeus,
pois os últimos também pretendiam ser cônsules, o que lhes foi concedido em 455 a.C. Após ter sido substituído pela
tribuna militar, o consulado seria restaurado em 367 a.C. Na época de Boécio, embora a sua organização fosse
ligeiramente diferente de quando fora pela primeira vez instaurado, o consulado estava ativo. É provável que, nesse
trecho, o autor estivesse fazendo uma referência à criação dos tri- bunos da plebe como uma forma de oposição ao poder
consular.

30 Régulo foi um herói romano da Primeira Guer- ra Púnica (264–241 a.C.). Capturado pelos cartagine- ses, foi
enviado a Roma para propor um acordo de paz cujas condições seriam inaceitáveis para os romanos; se fracassasse,
deveria voltar a Cartago como prisioneiro. Em vez de apresentar o acordo para tentar defender a própria liberdade e a
própria vida, Régulo foi a Roma e, com eloqüência, demonstrou porque seus termos eram uma desonra; voltou então a
Cartago, onde foi aprisio- nado, torturado e morto.

31 Equivalente da deusa lunar Ártemis.

32 Cf. Filebo 60b.

33 Cf. Ética a Nicômaco 1094b.

34 Boécio resume aqui os cinco bens que, em conjunto, constituem o summum bonum: sufficien- tia, reverentia,
potentia, celebritas e laetitia, aos quais os homens atribuem cinco valores materiais que são falsamente tomados por bens:
divitiae, dignitates, regna, gloria e voluptates. Esse sistema procede da descrição platônica e aristotélica da eudaimonia.

35 Estruma ou escrófula era uma doença infeccio- sa, espécie de tuberculose, que era caracterizada pela inflamação
dos gânglios linfáticos e provocava altera- ções da pele e da mucosa, podendo provocar tumores e úlceras.

36 O cargo de pretor já fora uma das maiores magistraturas da República Romana; contudo, na era imperial o seu
poder foi diminuindo gradativamente, até esse título converter-se numa vaga honraria.

37 A espada de Dâmocles.

38 A Índia e Tule representavam para os romanos o limite do mundo conhecido.

39 Andrômaca 319–320.

40 Andrômaca 418 ss.

41 Um dos argonautas. Segundo a lenda, a sua visão era tão boa que atravessava grandes distâncias e permitia que ele
enxergasse através dos objetos sólidos.

42 Político ateniense célebre por sua extravagância e por sua beleza extraordinária, é um personagem cor- rente na
literatura filosófica clássica e mais tarde passa- ria para a tradição filosófica popular.

43 Cf. Timeu 27c.

44 Cf. Timeu 30a.

45 Cf. Aristóteles, Fragmentos 16w, e Santo Agosti- nho, Cidade de Deus 8, 6.

46 A methexis platônica, como em Fédon 100c.

47 Cf. Górgias 470e.

48 Na Antigüidade, tanto o Rio Tejo quanto o Rio Hermo eram famosos pelo ouro que podia ser encon- trado em
suas areias.

49 Acreditava-se que o Rio Indo era repleto de pedras preciosas. O rio ficou famoso na Antigüidade por causa de uma
expedição de Alexandre, o Grande, ao Oriente.

50 Cf. Plotino, Enéadas vi, 9.

51 Cf. o Mênon, e também o Fedro.

52 Filhos de Gaia (Terra) e Urano (Céu), os gigan- tes eram seres enormes dotados de uma força invencível e de um
aspecto horrível. Assim que nasceram ameaça- ram o céu e foram derrotados por Atenas e por Zeus. A gigantomaquia
(ou luta de gigantes) foi uma das figuras proverbiais da resistência à ordem divina e foi também um dos temas favoritos
das artes plásticas da Antigüida- de, especialmente na ornamentação dos templos.

53 Verso do poema Sobre a natureza citado por Platão no Sofista 244e.

54 O poema narra o mito de Orfeu, que perdeu sua amada Eurídice ao voltar os olhos para trás antes de sair do
Inferno.

55 Deusa da poesia, principalmente da poesia épi- ca.

56 Segundo o mito, “Tártaro” era um promontório situado na região da Lacônia, no qual havia uma gruta pela qual se
podia entrar nos Infernos. Tornou-se, por metonímia, sinônimo dos próprios lugares e potências infernais.

57 As “Fúrias” ou “Erínias” (Alecto, Megera e Tisí- fone).

58 Íxion é um personagem que violou a deusa Hera. Seu castigo foi ser atado a uma roda flamejante que nunca parava
de girar.

59 Tântalo foi castigado a sofrer fome e sede eter- nas: submerso na água até o pescoço, sempre que ele aproximava a
boca do líquido, este se afastava, sendo impossível bebê-lo. Sobre a sua cabeça pendia um ramo de frutas suculentas, mas
sempre que ele erguia as mãos para apanhar uma delas, o ramo se elevava rapidamente, ficando fora do seu alcance.

60 Tício sofreu um castigo parecido com o de Pro- meteu: foi condenado a ter o seu fígado continuamente devorado
por abutres e serpentes.

61 A referência não é clara, mas pode tratar-se de Hades, de Plutão ou de Minos, lendário rei de Creta e juiz do “outro
mundo”.

62 A esfera do éter, correspondente ao elemento fogo, envolvia a esfera do ar. Segundo Aristóteles, o movimento do
éter sobre a atmosfera era responsável por “signos de fogo”, como os cometas e os meteoritos da Via Láctea. Segundo
Platão, a esfera da Terra estava no centro do universo. Depois vinha a esfera do ar, que envolvia a primeira; depois a do
fogo, a dos planetas, a das estrelas fixas e, finalmente, a esfera do céu (Cf. Fé- don 109b; Timeu 58d). Na Antigüidade
tardia, a esfera do éter era considerada como o caminho pelo qual as almas seguiam antes de atingir as “moradas mais
altas”.

63 Cf. Górgias 466d–e e Fédon 246b.

64 O poema faz alusão ao episódio homérico de Ulisses e Circe. Circe era “uma bela deusa nascida da estirpe do sol”.
No caminho de volta para casa, Ulisses e sua frota são arrastados pelos ventos até a ilha da deusa, que transforma todos
em feras com uma poção mágica. Ulisses vence Circe com a ajuda de Mercúrio, que lhe mostra uma erva capaz de torná-
lo imune à poção da deusa.

65 Arturo é a estrela mais brilhante da constelação de Boötes, ou do Boieiro. É citada na Odisséia, como re- ferência
no céu quando Ulisses parte da ilha de Ogígia.

66 Um dos titãs, filha de Gaia e Urano.

67 A Hidra de Lerna é uma serpente de várias ca- beças. Se acaso uma delas fosse cortada, nascia outra no lugar.

68 Ilíada xii, 176.

69 Física, livros iv e v, e também Ética a Nicômaco iii, 5 e Metafísica 1025a, 14 e ss.

70 O “monte aquemênio” refere-se às montanhas do Tauro, onde se encontram as nascentes dos rios Tigre e Eufrates.
Refere-se também aos partos da Alsácia, que eram famosos por seus arqueiros extremamente habili- dosos, os quais,
quando em batalha, fingiam partir em retirada e induziam que os seus inimigos os seguissem até uma posição propícia
para atacá-los com flechas.

71 Cf. Fedro 247d.

72 O termo “presciência” (praescientia) pertence à terminologia dos Padres da Igreja. O primeiro autor a empregá-lo
foi Tertuliano.

73 Sátiras 2, 5, 59.

74 Esta é a única vez que aparece, no texto da Consolação, a palavra gratia empregada com um senti- do próximo
daquele com que é empregada no contexto cristão.

75 No tratado Sobre a adivinhação.

76 O tema da Providência era o tópico mais discu- tido nas escolas platônicas. A Filosofia está se referindo a estudos
anteriores realizados por Boécio.

77 Os aurigas eram os condutores dos carros de guerra (quadrigas).

78 “Pórtico” (porticus) é a tradução latina do grego stoa, que designa a escola estóica fundada por Zenão. A escola
tinha esse nome porque era localizada na Stoa Pokilé (Pórtico Pintado) de Atenas.

79 Cf. Timeu 37d.

Você também pode gostar