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FILEBO

A diferença entre o bem REAL e o PROVISÓRIO, ou corpo e


inteligência no tecido do mundo

Esquema do diálogo

I. Prólogo [11 A – 14 B]
1. O problema ético: que é o bem para o homem, o prazer ou a inteligência?
2. Várias espécies de prazer e de conhecimento

II. A estrutura metafísico-numérica da realidade e a dialética [14C – 20C]


1. Unidade e multiplicidade
2. Limite, ilimitado e número
3. Exemplificação: as letras do alfabeto e as notas musicais
4. Unidade e multiplicidade, limite, ilimitado e número no prazer e na
inteligência

III. O problema da definição do Bem [20D – 23B]


1. As características formais do bem
2. As características do bem no prazer e na inteligência
3. O problema da hierarquia dos valores

IV. Conceitos fundamentais de ontologia, cosmologia e teologia [ 23C – 31B]


1. Os quatro gêneros mais universais
2. O ilimitado e o limite / infinito e finito
3. O gênero misto de finito e infinito
4. A melhor vida pertence ao gênero misto
5. Finalismo cósmico e inteligência ordenadora
6. A inteligência divina como causa ordenadora

V. Aplicação dos ganhos teoréticos precedentes [31B – 64B]


1. A origem fisiológica do prazer
2. A origem psicológica do prazer
3. Sensação, memória, desejo e prazer
4. O desejo pertence unicamente à alma
5. Prazeres verdadeiros e falsos
6. O prazer NÃO É ausência de dor/sofrimento
7. Os prazeres mesclados à dor
8. Os prazeres puros
9. Se o prazer é um devir não pode ser um bem
10. Diversos graus de exatidão das ciências e das artes
11. As ciências matemáticas puras e aplicadas
12. Superioridade da filosofia
13. Bem para o homem é a vida do pensamento junto com prazeres sãos e
puros

VI. Os fundamentos da Ética, o bem e a medida [64C – 66D]


1. Características estruturais do bem: beleza, proporção e verdade
2. Presença das características do bem na inteligência e no prazer
3. Hierarquia dos valores

VII. Conclusões [66D – 67B]

Personagens e data de composição

Nada se sabe a respeito de Protarco e Filebo, o par de amigos que discute com Sócrates. Talvez
sejam personagens fictícios. Já o fato de Sócrates protagonizar a obra é uma indicação clara da
continuidade entre o projeto socrático (ético, por excelência) e a filosofia platônica, que o
aprofunda e resolve reconduzindo-o a fundamentos metafísicos. O problema do bem, do estado
de espírito humano associado à felicidade, é central em Sócrates, assim como em toda a filosofia
antiga.

Filebo tem sido avaliado como o penúltimo diálogo publicado por Platão, o derradeiro tendo sido
Timeu. Embora não se tenha componentes para situar o diálogo no tempo, é uma obra de
maturidade.

Impacto permanente na história da filosofia ocidental

Filebo, como Político e Teeteto, é um diálogo cujas noções centrais irrigam toda a reflexão
filosófica do ocidente, tanto na antiguidade quanto posteriormente. Essa influência, muito clara
se abrirmos o livro I da Metafísica de Aristóteles (felicidade/realização máxima do ser
humano/contemplação), se estende até mesmo às noções de ser-humano formuladas nos
séculos XVII e XVIII, a partir das quais tratados éticos e políticos são erigidos. Particularmente
persistente é a definição de prazer e dor com relação à constituição ontológica dos homens (à
sua estrutura como ser específico). Supondo que os seres-humanos, integrantes da classe dos
seres-vivos, se incluam na classe dos seres formados de finito e infinito, dor e prazer são
percepções relativas, respectivamente:

a) à destruição dessa união entre finito e infinito (uno e múltiplo)


b) à conservação do seu ser

Filósofos do século XVII usam o termo “conatus” para se referir a essa “conservação do próprio
ser” na qual Platão situa a origem do prazer. E conatus será associado, na visão materialista do
ser-humano, ao instinto de sobrevivência, razão por que, em Hobbes, cada homem tem direito
a todas as coisas (uma vez que é natural ao ser-humano conservar seu próprio ser). Cf. V [31B –
64B]. Essa definição de prazer e dor como associados à perda ou conservação da harmonia do
ser reaparecerá, em Freud (provavelmente via Hobbes e sob um esquema fisiológico, e não
metafísico), como o binômio pulsão de morte-pulsão de vida.

Outro ponto de extraordinária relevância quanto ao nexo do diálogo com outras obras filosóficas
é a refutação socrática da tese segundo a qual “prazer = ausência de dor”. Essa ideia retornaria
à filosofia como cerne do epicurismo, prática filosófica que buscava alcançar a felicidade através
da aponia (ausência de dor/sofrimento físico) e ataraxia (imperturbabilidade mental), mas
Epicuro é posterior a Platão. Portanto, o fundador do Jardim resgataria da tradição filosófica
grega esse componente já circulante no período clássico, e cuja inconsistência Sócrates procura
demonstrar neste diálogo. Exemplos maiores: descrição de casos particulares em que prazer e
dor são simultâneos e interdependentes, ou misturados. Do ponto de vista físico, coçar uma
ferida consequente das sarnas, ou aliviar a comichão da coceira. Do ponto de vista psicológico,
a comoção no teatro (que Aristóteles nomeia “catarse” na Poética) ou o riso na Comédia (estado
de prazer associado à percepção da desgraça e do ridículo em nós ou no próximo, o ridículo,
portanto, tipo de dor). No campo psicológico ainda, mas investigando os afetos, Sócrates cita
ainda o tipo de prazer desencadeado pela inveja. Esta é sempre dor/sofrimento. O prazer de ver
uma pessoa que invejamos cair em desgraça é uma mescla indissociável de alegria/prazer e
dor/sofrimento justamente porque não existiria se não existisse a inveja, que é dor. A
investigação minuciosa dos variados estados de alma experimentados pelo homem, portanto,
mostra a inconsistência da tese segundo a qual prazer é o estado em que não sentimos
dor/ausência de sofrimento.

Forma e ritmo

Todo o diálogo se elabora em analogia às corridas. O prêmio é a proximidade maior ao bem, uma
vez que, logo de início, já se descarta a possibilidade de o prazer ou a inteligência/pensamento
serem sinônimos do bem. Sócrates aposta que “seu cavalo”, a inteligência/pensamento, levará a
melhor sobre o cavalo de Filebo, o prazer/alegria.

A certa altura da conversa, Protarco incita Sócrates a retomar a corrida, uma vez que, por falta
de saber o caminho rumo ao prêmio, ele e Filebo se viram empacados. E o sábio reconduz a
discussão ao movimento, imagem marcante da própria busca pelo conhecimento, o diálogo,
como expressão da tensão permanente entre os princípios de unidade e multiplicidade. Esse
jogo de forma e fundo é perfeito nessa obra e revela o domínio absoluto da coesão na obra
literária platônica. Outra marca notável é o duplo caráter, ético e metafísico, da busca pelo
conhecimento do bem, cuja síntese opera numa corrida, lado a lado, entre finito e infinito nos
campos sensível (prazer) e inteligível (inteligência/pensamento). Toda a estrutura da realidade
conforme a concebe Platão se faz moldura invisível do diálogo, como a protologia é a moldura
invisível dos seus diálogos maiores. No final, como veremos, o único tipo de prazer admitido na
hierarquia do Bem, além de chegar em último lugar, é aquele puro, espontâneo e não
determinado pela dimensão da necessidade. Os prazeres associados às necessidades do corpo
são justamente aqueles mesclados à dor (fome/saciedade, saúde/doença, desejo
sexual/consumação, etc.).
Imagem notável com relação ao caráter oracular da obra platônica (que não descreve a
protologia, doutrina não-escrita, mas apenas a aponta) é a alusão à inspiração divina, por parte
de Sócrates, quando se trata de apontar à estrutura metafísica que emoldura a busca particular.
“Alguma divindade me faz lembrar certas coisas”, diz Sócrates remetendo ao nexo entre acesso
à verdade e caráter divino (conhecimento é a verdade infundida na inteligência, pois ela participa
da inteligência do cosmo, ou divindade); e “eu teria ouvido em sonhos ou acordado, acerca do
prazer e da sabedoria, sobre não ser o bem nenhum dos dois, mas uma terceira coisa, diferente
daqueles e melhor do que ambos”. Aqui, temos a síntese numa coisa (UNO/BEM) diferente
daqueles (gêneros que consistem em vários/expressão do uno desdobrado, ou marcado pelo
múltiplo) e melhor do que ambos (UNO/BEM supera as ideias examinadas, prazer/sabedoria).

Curiosamente, embora a escrita, corpo, não seja capaz de exprimir o conhecimento máximo e
mais valioso, ela é capaz de aludir a ele, ordenar-se de modo a se constituir como metáfora para
que o vejamos com a inteligência através do texto lido com os olhos.

A hierarquia final

Bem

1º Medida #8B0000

2º Simetria

3º Sabedoria

4º Conhecimentos variados

5º Prazeres isentos de dor

Observações complementares

1. Recapitulação do propósito desse curso: a renovação do vínculo com as referências


que moldaram a civilização a que pertencemos.
Assim como ouvir histórias sobre a nossa ascendência nos permitem construir uma
espécie de mapa pessoal, a compreensão dos pilares do pensamento ocidental nos
conduz ao desenho de um mapa civilizacional.
2. O diálogo Filebo encerra uma primeira e clara redescoberta da relação entre os antigos
e o mundo, através da Filosofia.

Sócrates traz à tona o “homem interior ”, a interioridade, cultivada ao buscar:

Reflexão
Discurso verdadeiro
Sentido interior das ações, ou moral

Platão, por sua vez, amplia o projeto Socrático. A interioridade conquistada por
Sócrates é conduzida, por Platão, à visão da “interioridade da própria rea lidade”,
ou metafísica. Platão se ocupa de três esferas:

Verdade/Princípios das coisas


Distinção entre o absoluto e o relativo
Sentido primeiro da vida – O Bem

Sócrates, através da reflexão, pela qual aprendemos o discurso verdadeiro, encontra o sentido
interior das ações, ou moral.

Platão, partindo da verdade, ou princípios, das coisas, distingue o absoluto


(ideias/conhecimento/inteligência) do relativo (fenômenos/opinião/linguagem), de modo a
alcançar o sentido primeiro da vida – o Bem.

O Filebo sintetiza o alcance que Platão deu ao projeto Socrático através da Metafisica. É um
diálogo em que Sócrates, personagem, revela/sinaliza as descobertas de Platão que dobram o
seu legado – dobram no sentido de amplia-lo.

A essência desse legado está na atenção à vida humana.

No artigo chamado “Os modelos de felicidade propostos pelos filósofos antigos”, Pierre Hadot
indica que a felicidade, na antiguidade, era atinente aos deuses, de modo que um modelo
antigo e preponderante de felicidade àquela cultura era a participação na felicidade dos
deuses. Platão e Aristóteles oferecem uma versão intelectualizada desse modelo de felicidade
por participação no divino.

“Aquele que morre após uma vida inteiramente justa e piedosa vai, após a morte, para a ilha
dos bem-aventurados onde ele descansa protegido de todos os males, em perfeita felicidade”.
(Górgias, 523b)

Essa passagem repete um tema caro ao Fédon. Sócrates é o pilar de uma tradição segundo a
qual a participação na felicidade divina se funda na presença de Deus na alma humana e se
realiza, em última análise, no amor ao Bem.

O que lemos na Apologia? Sócrates dizer que “O maior dos bens para um homem é se ocupar
todos os dias com a virtude e outros assuntos sobre os quais vocês me ouvem discorrer,
quando examino os outros e a mim mesmo, e uma vida que não é sujeita a um tal exame não é
digna de ser vivida”. (38a)

No diálogo Timeu, dirá Platão: “Aquele que cuida do divino que há nele mesmo, esse sim é,
necessariamente, feliz ao extremo”. 90c
Segundo Hadot, “É sobretudo regrando seus pensamentos, aplicando-os às coisas divinas, que
o homem poderá alcançar essa felicidade extraordinária.

O Filebo é u diálogo sobre o Bem que parte da possibilidade de vínculo entre o prazer e o
alcance do bem, ou da felicidade. Todo o diálogo, contudo, é um exercício especulativo. A
resposta à pergunta inicial, e a aposta de Sócrates no pensamento como cavalo favorito na
corrida, está encenada no diálogo inteiro. O diálogo em si, o que nele acontece, é a resposta à
pergunta sobre o que é o bem.

Embora Platão e Aristóteles tenham se interessado muito por política, prevalece a acusação, de
ordem marxista, de que o “pensar demais” é contrário à preocupação com a ação concreta,
como se o “mundo concreto“ fosse algo DISTINTO do universo intelectual. A especulação
filosófica é um esforço supremo de ganhar altura para ver melhor e mais longe tudo o que se
passa ao nosso redor, ou seja, ver o mundo com o alcance necessário para, ao retomar a visão
dos fatos particulares, entende-los de fato.

Mas às filosofias da era helenística se fez acusações de fuga do mundo. Nem elas, contudo, o
merecem, uma vez que todas as filosofias antigas têm por finalidade a felicidade na mesma
perspectiva que a compreensão da ordem do mundo e do modo correto de a natureza humana
adequar-se a ela. A felicidade é sempre uma participação; um participar da ordem invisível
sobre a qual o mundo repousa.

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