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AGRUPAMENTO DE ESCOLAS DE SAMPAIO

PORTUGUÊS — 11.º ANO


Almeida Garrett — FREI LUÍS DE SOUSA

Ato I, Cena I
Funções da didascália inicial

• Fornece-nos informações sobre:


– O enquadramento histórico, referindo que a ação se passa nos «princípios do século XVII».
– O espaço físico, fazendo-nos saber que as personagens se encontram numa casa com janelas que dão
«para um eirado que olha sobre o Tejo e donde se vê toda Lisboa».
– O espaço social, precisando o enquadramento social através de referências ao «luxo e caprichosa
elegância portuguesa» da casa, aos objetos requintados que a decoram («Porcelanas, charões, sedas,
flores […]»), designadamente o retrato de um cavaleiro da ordem de S. João de Jerusalém, que pertence,
inegavelmente, à aristocracia, como acontecia com todos os cavaleiros de Malta, que eram escolhidos
tendo em conta o seu estrato social.
• No início da peça, D. Madalena encontra-se a ler o episódio de Inês de Castro, n’Os Lusíadas.
– Esta passagem da obra épica de Camões relaciona-se diretamente com a personagem, que, pela sua
situação e temperamento, dá preferência a momento literário cuja temática é o amor.
– Os versos escolhidos servem a caracterização do estado emocional de D. Madalena, que projeta nesta
leitura as condições da sua própria existência, identificando-se, pois, com Inês de Castro.
– A identificação entre ambas funciona ainda como indício trágico, anunciando acontecimentos futuros
nefastos: um amor feito de «engano de alma», «Que a fortuna não deixa durar muito», ou seja, D.
Madalena, à semelhança de Inês de Castro, será uma vítima do amor.
• O seu monólogo revela uma personagem que sofre em segredo («que o não saiba ele ao menos»), que
vivencia «contínuos terrores», que lamenta nunca ter gozado «um só momento de toda a imensa felicidade»
que deveria estar associada ao facto de amar e ser amada.
– Neste monólogo são utilizados vários recursos expressivos para comunicar o pensamento inquieto e
temeroso da protagonista feminina, veicular os seus desejos e os seus sentimentos conturbados,
revelando uma linguagem hesitante e contraditória, própria de uma personagem dominada pelas emoções.
Assim, ela emprega:
– A repetição:
✓ «um engano, um engano de poucos instantes que seja…» (l. 6);
✓ «que o não deixe durar muito […] que o não saiba, […] que não suspeite…» (ll. 7-9);
✓ «imensa felicidade […] o seu amor. Oh! que amor, que felicidade…» (ll. 10-11).
– A suspensão da frase:
✓ «Com paz e alegria d’alma…» (l. 6);
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✓ «Mas eu!...» (l. 8).


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– A interrogação retórica:
✓ «E que importa que o não deixe durar muito a fortuna?» (l. 7).
– A exclamação:
✓ «Mas eu!...» (l. 8);
✓ «Oh! que o não saiba […]» (l. 8);
✓ «[…] que desgraça a minha! (l. 11).
– A antítese:
✓ «Viveu-se, pode-se morrer.» (l. 8);
✓ «[…] que felicidade… que desgraça […]» (l. 11).

Ato I, Cena II
Funções desta cena

• Dar a conhecer aos espectadores/leitores os antecedentes da intriga, bem como a situação atual;
• Apresentar/caracterizar direta e indiretamente as personagens mais relevantes;
• Esboçar os contornos do relacionamento entre os principais intervenientes na ação;
• Referenciar aspetos históricos;
• Veicular, já, alguns indícios trágicos.

Contexto histórico e valores expressos pelas personagens

• Valorização da obra de Camões:


– Para Madalena, Os Lusíadas constituem o reflexo da sua vida pessoal e um modelo estético: «E é um
bonito livro este! O teu valido, aquele nosso livro» (ll. 5-6);
– Para Telmo, a importância da épica camoniana é equiparada à da Bíblia: «livro para damas e para
cavaleiros… e para todos: um livro que serve para todos; como não há outro, tirante o respeito devido ao
da palavra de Deus!» (ll. 7-9)
• Marcas do contexto histórico:
– O aio de D. Madalena faz referência às ideias da Reforma: «isto da palavra de Deus estar assim noutra
língua, numa língua que a gente… que toda a gente não entende… confesso-vos que aquele mercador da
Rua Nova, que aqui vem às vezes, tem-me dito suas coisas que me quadram… E Deus me perdoe, que
eu creio que o homem é herege desta seita da Alemanha ou da Inglaterra.» (ll. 21-28)
– Telmo evidencia, na passagem, a sua simpatia pelo pensamento reformista. Considera que, como
defendiam os protestantes, o livro sagrado deve ser acessível a todos através da sua tradução para as
línguas vernáculas (ll. 21-28). Esta posição vai ao encontro da ideia partilhada pelo Romantismo de
«democratização» da cultura, permitindo definir Telmo como um homem progressista.
– São também sublinhadas as ideias sebastianistas, partilhadas pelo escudeiro e por Maria de Noronha e
relacionadas com a perda da independência e o domínio filipino.

Caracterização de personagens
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• D. Maria de Noronha (filha de D. Madalena e de Manuel de Sousa Coutinho)


– «Tem treze anos feitos» (l. 36).
– Apresenta um desenvolvimento físico e intelectual avançado para a sua idade: «tem crescido demais» (l.
34).
– «Um anjo como aquele… uma viveza, um espírito!... e então que coração!» (ll. 39-40).
– É bela e bondosa: «a fazer-se-me um anjo tal de formosura e de bondade» (ll. 74-75).
– Tem um espírito muito atento, curioso e sagaz: «tantas outras coisas tão altas, tão fora de sua idade, e
muitas de seu sexo também, que aquela criança está sempre a querer saber, a perguntar.» (ll. 64-66);
«Maria tem uma compreensão…» (l. 87).
– É fisicamente frágil: «não é uma criança… muito… muito forte. / É… delgadinha, é.» (ll. 67-68).
• D. Manuel de Sousa Coutinho (segundo marido de D. Madalena de Vilhena)
– É definido por Telmo como pessoa de grande cultura e de temperamento grave:
• «acabado escolar» (l. 14), tal como seu pai («grande homem» — ll. 16-17);
• «Muitas letras, e de muito galante prática» (ll. 17-18), ou seja, pessoa de conhecimento, de vastas leituras
e que se exprime de forma elegante, com domínio da linguagem (não esquecer que Frei Luís de Sousa
foi um escritor português);
• «e não somenos as outras partes de cavaleiro: uma gravidade!... Já não há daquela gente.» (ll. 18-20).
– É um aristocrata das mais nobres famílias da Península Ibérica: «Manuel de Sousa Coutinho, fidalgo de
tanto primor, e de tão boa linhagem como os que se têm por melhores neste reino, em toda a Espanha.»
(ll. 107-110).
– Ao comparar os dois maridos de D. Madalena, Telmo afirma que «Manuel de Sousa Coutinho é guapo
cavalheiro, honrado fidalgo, bom português… […] mas não é, nunca há de ser, aquele espelho de cavalaria
e gentileza, aquela flor dos bons» (ll. 179-181) que foi D. João de Portugal.
• D. João de Portugal (primeiro marido de D. Madalena de Vilhena)
– Para Telmo, D. João de Portugal é a figura ideal do cavaleiro aristocrata, um «espelho de cavalaria e
gentileza, aquela flor dos bons» (l. 181).

Relação entre personagens

• A relação entre Telmo e D. Madalena de Vilhena


– Telmo era o «aio fiel» (l. 50) de D. João de Portugal (primeiro marido de D. Madalena de Vilhena) e já fora
«O amigo e camarada antigo de seu pai» (l. 53) — «o companheiro de trabalhos e de glória de seu ilustre
pai, aquele nobre conde de Vimioso» (ll. 119-120).
– Conheceu D. Madalena quando esta se casou pela primeira vez e tornou-se também para ela «o escudeiro
valido, o familiar quase parente, o amigo velho e provado de teus amos» (ll. 44-45). Por ser alguém que
evidenciava um carácter nobre e uma grande sabedoria, despertou-lhe uma simpatia e reverência
pessoais: «quase que vos tomei a mesma amizade que aos outros [os membros da casa de Vimioso,
família de seu primeiro marido]… chegastes a alcançar um poder no meu espírito, quase maior… —
decerto maior — que nenhum deles.» (ll. 121-123).
– Quando aos 17 anos ficou viúva, Telmo foi o pai que ela perdera: «Depois que fiquei só, depois daquela
funesta jornada de África que me deixou viúva, órfã e sem ninguém… sem ninguém, e numa idade… com
dezassete anos! — em vós, Telmo, em vós só, achei o carinho e proteção, o amparo que eu precisava.
Ficastes-me em lugar de pai» (ll. 130-133).
– A relação de profundo respeito e amizade foi-se estreitando ao longo dos anos, tendo Telmo
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presentemente um grande ascendente na vida de D. Madalena: «O que sabeis da vida e do mundo, o que
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tendes adquirido na conversação dos homens e dos livros — porém, mais que tudo, o que de vosso
coração fui vendo e admirando cada vez mais — me fizeram ter-vos numa conta, deixar-vos tomar,
entregar-vos eu mesma tal autoridade nesta casa e sobre a minha pessoa… que outros poderão
estranhar…» (ll. 123-127).
• A relação entre Telmo e D. Maria de Noronha
– No início, Telmo nutria pela criança animosidade («não a podia ver» — l. 72), pois a menina era fruto do
segundo casamento de D. Madalena, que o aio nunca aprovara por considerar que era uma relação
ilegítima, já que nunca se provara, definitivamente e sem sombra de dúvida, a morte de D. João de
Portugal.
– Porém, à medida que a menina foi crescendo, «a olhar para mim com aqueles olhos… a fazer-me
meiguices, e a fazer-se-me um anjo tal de formosura e de bondade» (ll. 73-75), o escudeiro criou-lhe uma
amizade tão profunda, que parecia suplantar a dos próprios pais: «que lhe quero mais do que seu pai» (ll.
75-76) e «Do que vós.» (l. 77).
– Por seu lado, a jovem também nutria pelo aio uma grande afeição e, segundo palavras de D. Madalena,
Telmo tomou um «ascendente no espírito de Maria… tal que não ouve, não crê, não sabe senão o que lhe
dizes» (ll. 59-60). A menina desenvolveu uma intimidade e uma ligação ao escudeiro como se ele fosse
«a sua dona, a sua aia de criação» (l. 60).
– (Considere-se que, no contexto da educação aristocrática, os aios eram figuras mais importantes na
educação das crianças do que os próprios progenitores.)
• Os sentimentos de D. Madalena relativamente aos seus dois maridos
– D. João de Portugal: Nas palavras de Telmo, o seu amo nunca foi verdadeiramente amado pela esposa.
Como virtuosa esposa que era, foi-lhe fiel, mas não lhe concedeu o seu coração: «Que o pobre de meu
amo… respeito, devoção, lealdade, tudo lhe tivestes, como tão nobre e honrada senhora que sois… mas
amor!...» (ll. 172-174);
– Manuel de Sousa Coutinho: Segundo Telmo, D. Madalena amou Manuel de Sousa Coutinho desde
sempre: «Não sois feliz na companhia do homem que amais, nos braços do homem a quem sempre
quisestes mais sobre todos?» (ll. 171-172); «Mas os ciúmes que meu amo não teve nunca — bem sabeis
que têmpera de alma era aquela — tenho-os eu por ele: não posso, não posso ver…» (ll. 176-178). Numa
perspetiva profundamente romântica, Madalena contrapõe que o amor constitui uma fatalidade, ninguém
comanda o seu coração («Não está em nós dá-lo, nem quitá-lo» — l. 175).

Antecedentes da ação / situação atual

• 1578 (Desastre de Alcácer Quibir):


– «Depois que fiquei só, depois daquela funesta jornada de África que me deixou viúva […] com dezassete
anos […] D. João ficou naquela batalha com seu pai, com a flor da nossa gente.» (ll. 130-132, 137-138).
• 1578-1585:
– D. João de Portugal foi procurado em vão, no Norte de África: «durante sete anos, incrédula a tantas
provas e testemunhos de sua morte, o fiz procurar por essas costas de Berberia, por todas as séjanas de
Fez e Marrocos, por todos quantos aduares de Alarves aí houve… Cabedais e valimentos, tudo se
empregou; gastaram-se grossas quantias; os embaixadores de Portugal e Castela tiveram ordens
apertadas de o buscar por toda a parte; aos padres da Redenção, a quanto religioso ou mercador podia
penetrar naquelas terras, a todos se encomendava o seguir a pista do mais leve indício que pudesse
desmentir, pôr em dúvida ao menos aquela notícia que logo viera com as primeiras novas da batalha de
Alcácer. Tudo foi inútil; e a ninguém mais ficou resto de dúvida…» (ll. 139-148).
• 1585:
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– Dá-se o casamento de D. Madalena com Manuel de Sousa Coutinho: «[…] eu resolvi-me por fim a casar
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com Manuel de Sousa; foi do aprazimento geral de nossas famílias, da própria família de meu primeiro
marido, que bem sabeis quanto me estima; vivemos […] seguros, em paz e felizes... há catorze anos.» (ll.
184-187).
• 1586:
– Nasce a filha do casal, Maria de Noronha: «Temos esta filha, esta querida Maria que é todo o gosto e ânsia
da nossa vida. Abençoou-nos Deus na formosura, no engenho, nos dotes admiráveis daquele anjo...» (ll.
187-189).
• 1599 (presente):
– Telmo continua a acreditar que D. João de Portugal não morreu e regressará («a ninguém mais ficou resto
de dúvida… / Senão a mim.» — ll. 148-149), com base numa «carta escrita na própria madrugada do dia
da batalha, e entregue a Frei Jorge, que vo-la trouxe» (ll. 155-156). Nela D. João afirmava que «”vivo ou
morto, Madalena, hei de ver-vos pelo menos ainda uma vez neste mundo.”» (l. 159). Como não aparecera
o seu cadáver, isso levava Telmo a pensar que o seu amo ainda estaria vivo e, como homem de palavra,
algum dia havia de regressar para cumprir o prometido: ver a esposa nem que fosse pela última vez. Nesse
sentido, apesar da sua lealdade a D. Madalena, do seu profundo carinho por Maria e até da sua relutante
admiração por Manuel de Sousa Coutinho, Telmo continua preso pela sua afeição e lealdade ao seu
primeiro amo, D. João de Portugal.
– O fiel escudeiro apresenta-se como a voz da consciência que constantemente atormenta D. Madalena,
infundindo-lhe receios e remorsos: «as vossas palavras metem-me um medo… Não me façais mais
desgraçada.» (ll. 169-170). Também a nobre dama teme que o primeiro marido não esteja morto e isso
ensombra-lhe a existência de negros pressentimentos, impedindo-a de vivenciar plenamente o seu amor
por Manuel de Sousa Coutinho.
– O reavivar constante das suspeitas de Telmo surge como o espelho da desonra familiar, já que sugere a
ilicitude do segundo casamento de D. Madalena e, portanto, a ilegitimidade de Maria: «[…] E és tu o que
andas, continuamente e quase por acinte, a sustentar essa quimera, a levantar esse fantasma, cuja
sombra, a mais remota, bastaria para enodoar a pureza daquela inocente, para condenar a eterna desonra
a mãe e a filha!...» (ll. 192-197).

Indícios trágicos / Premonições / Ideias Sebastianistas

• Telmo agoira que, em breve, o destino virá testar a lealdade das pessoas da casa, nomeadamente no que diz
respeito ao amor por Maria: «E veremos: tenho cá uma coisa que me diz que, antes de muito, se há de ver
quem é que quer mais à nossa menina nesta casa.» (ll. 80-81).
• As ideias sebastianistas estão intimamente ligadas à fatalidade que impende sobre a união matrimonial de D.
Madalena, pois o regresso de D. Sebastião evoca também o retorno de D. João de Portugal: «[…] as tuas
palavras misteriosas, as tuas alusões frequentes a esse desgraçado rei D. Sebastião, que o seu mais
desgraçado povo ainda não quis acreditar que morresse, por quem ainda espera em sua leal incredulidade!»
(ll. 201-205)
• Surgem constantemente premonições trágicas: «[…] esses contínuos agouros em que andas sempre de uma
desgraça que está iminente sobre a nossa família...» (ll. 205-206).

Dados geográficos

• Localização da ação:
– Na última fala de D. Madalena, ficamos a saber que o palácio de Manuel de Sousa Coutinho se situa na
outra margem do Tejo, com vista para a cidade de Lisboa (Almada, pois faz-se referência ao pontal de
Cacilhas), e que o mesmo terá ido à capital, numa falua, causando a sua demora alguma preocupação a
D. Madalena.
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