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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE CIÊNCIAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

ROSILENE AIRES

QUILOMBOS DOS SERTÕES DE CRATEÚS-CE: ANCESTRALIDADES, LUTAS


E TERRITÓRIOS

FORTALEZA
2023
ROSILENE AIRES

QUILOMBOS DOS SERTÕES DE CRATEÚS- CE: ANCESTRALIDADES, LUTAS E


TERRITÓRIOS

Tese de Doutorado apresentada à Coordenação


do Programa de Pós-Graduação em Geografia da
Universidade Federal do Ceará, como parte dos
requisitos para obtenção do título de Doutora em
Geografia. Área de concentração: dinâmica
territorial e ambiental.

Orientador: Prof. Dr. Francisco Amaro Gomes de


Alencar.

FORTALEZA
2023
ROSILENE AIRES

QUILOMBOS DOS SERTÕES DE CRATEÚS: ANCESTRALIDADES, LUTAS E


TERRITÓRIOS

Tese de Doutorado apresentada a Coordenação


do Programa de Pós-Graduação em Geografia da
Universidade Federal do Ceará, como parte dos
requisitos para obtenção do título de Doutora em
Geografia. Área de concentração: dinâmica
territorial e ambiental.

Aprovada em ____/____/______.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________________________
Prof. Dr. Francisco Amaro Gomes de Alencar (Orientador)
Universidade Federal do Ceará (UFC)

______________________________________________________________
Profa. Dra. Cristiane Sousa da Silva
Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE)

______________________________________________________________
Profa. Dra. Danielle Rodrigues da Silva Matos
Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE)

______________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Albenise Farias Malcher
Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA)

______________________________________________________________
Profa. Dra. Sandra Haydée Petit (Externa ao Programa)
Universidade Federal do Ceará (UFC)

_____________________________________________________________
Profa. Dra. Tereza Sandra Loiola Vasconcelos
Universidade Estadual do Ceará (UECE)
As mulheres negras inesquecíveis:
Maria do Espírito Santo (bisavó),
Francisca das Chagas Nicolau (bisavó),
Maria José Aires (avó),
Hilda Faustino Aires (mãe),
Maria Faustino Aires (mãe de criação),
Maria Gecy Aires da Silva (madrinha),
Tereza Aires de Oliveira (madrinha),
Rosângela Maria Aires (irmã).
AGRADECIMENTOS

À força das entidades, Maria Padilha e Marabô, que conduzem os meus caminhos!
Aos que me incentivaram a ingressar no Programa de Pós-Graduação em Geografia
com suas leituras atentas ao meu projeto de pesquisa: Daniely Guerra e Kenia Edjane.
Às grandes parcerias inspiradoras, motivantes e desafiadoras de Tereza Sandra
Vasconcelos e Flávio Rodrigues do Nascimento.
À Fábia Santos e Léa Bessa, por representarem a extensão de minha família,
estando ao meu lado nos enfrentamentos da vida.
Ao presente ancestral que considero o meu encontro com o professor Amaro
Alencar, pois construímos uma parceria sincera, ética, compromissada e empática um com o
outro. Este caminho com meu mestre Amaro foi de muito aprendizado e tenho uma gratidão
infinita pelo nosso encontro na Universidade. Tive a honra de encerrar a sua jornada de
orientação no curso de Pós-Graduação em Geografia, celebrando junto aqueles e aquelas que
desenvolveram suas pesquisas com o Professor Amaro.
À Melina Dantas e Ângela Dias, companheiras de vida e dos trabalhos de campo.
Ao Anderson Felipe pela paciência e disponibilidade na elaboração e na
organização dos mapas.
À Rosana Marques, Adjoké Matos e Damares Oliveira pelo carinho e incentivo
cotidianos. Vocês me inspiram a cada dia mais. Fico feliz em estarmos juntas ocupando os
espaços acadêmicos nestes tempos.
Ao Marcos Encante e à Mãe Maria Toinha, que me inspiram e me fortalecem na
força dos encantados e nas travessias que percorremos juntos.
Ao Diêgo di Paula do Acervo Mucuripe, que me oportunizou navegar nas memórias
da cidade de Fortaleza onde encontrei uma parte da trajetória migrante da minha família.
Aos presentes ancestrais da Pós-Graduação em Geografia da UFC, Marcílio Moura
e Adeliane Vieira, que, mesmo distantes fisicamente, sempre trabalhamos e aprendemos juntos
todos os dias em nossas pesquisas com os conflitos, as dúvidas e os anseios.
Aos funcionários do Departamento de Geografia da UFC, especialmente à Edilene
e ao Erandir, que me orientaram e viabilizaram os processos relativos às formalidades
acadêmicas.
À Erinete dos Santos (Neta Quilombola), pela confiança e acolhida na sua
comunidade. Ao seu José Osmar, pai de Neta Quilombola, pela conversa que tivemos sobre a
sua trajetória.
Ao Francisco Anacélio Rodrigues, pela disponibilidade em conversar conosco, em
Lagoa das Pedras.
À Maria de Fátima (Tia Fátima), educadora que me inspira com as suas falas e os
seus saberes.
À Ana da Silva (Diana), pelo seu tempo e disponibilidade em conversar sobre a sua
ancestralidade negra e a associação de moradores da comunidade de Brutos.
Ao João Paulo Vieira, pelo diálogo no território quilombola da Barriguda.
À Albenise Malcher, Cristiane Sousa, Danielle Rodrigues, Sandra Petit e Tereza
Sandra Vasconcelos pela oportunidade de ouvi-las e aprender com as suas contribuições à esta
pesquisa.
Aos professores Levi Sampaio e Jawdat Abu-El-Haj, pelas aulas inspiradoras da
Pós-Graduação, nas turmas de 2019.2, na Universidade Federal do Ceará.
As equipes de trabalho e aos educandos das escolas estaduais de Fortaleza nas quais
desenvolvi minhas práticas pedagógicas.
As equipes pedagógicas da Secretaria Estadual de Educação do Estado do Ceará
(SEDUCCE) com as quais trabalhei e nessa caminhada construímos muitas parcerias, vivências
e saberes.
RESUMO

O aquilombamento geográfico é a conexão entre povo negro e o conhecimento geoterritorial.


No Estado do Ceará, encontram-se 87 comunidades quilombolas distribuídas em 41 municípios.
Atualmente, 50 estão certificadas pela Fundação Cultural Palmares (FCP) e buscam a sua
regularização fundiária. Neste sentido, discuto a formação socioterritorial cearense, referindo-
me aos territórios quilombolas de Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras, Brutos e
Barriguda, localizados no município de Tamboril. Para tanto, o objetivo desta tese é discutir e
defender o direito ao território dos povos quilombolas rurais na formação socioterritorial do
Ceará, através das nossas culturas ancestrais no Estado. A metodologia utilizada compreendeu
uma abordagem qualitativa com pesquisa bibliográfica, documental, de campo e com uma
abordagem multiescalar. Foram realizadas observações do cotidiano, entrevistas
semiestruturadas, estudo e reflexão de palestras e mapeamentos. No Ceará, os povos africanos
e afro-brasileiros enfrentaram apagamentos e silenciamentos históricos. O marcador da
ancestralidade afrodiaspórica constitui traços culturais herdados na formação dos territórios
quilombolas. O marcador da luta coletiva se materializou na organização social e política dos
movimentos coletivos com influências da Igreja e de entidades representativas nacionais e
estaduais na reafirmação de direitos no Ceará. O marcador territorial apontou que os quilombos
se desenharam a partir de sucessivos deslocamentos, da resistência na ocupação das terras e da
junção de troncos familiares multirraciais. A pesquisa contribuiu, na publicização de trajetórias
e da memória coletiva quilombola, bem como para o fortalecimento das lutas e das identidades
dos quilombos dos sertões de Tamboril. Os territórios quilombolas são, portanto, heranças de
uma presença africana que compõe a formação social, cultural, demográfica e territorial do
Ceará.

Palavras-chave: territórios quilombolas; territorialidade; movimento socioterritorial;


marcadores das africanidades; geografia histórica; geocartografia.
ABSTRACT

Geographical Quilombamento is connection between black peoples and the territorial


knowledge. In the State of Ceará, there are 87 quilombola communities distributed in 41
municipalities. Currently 50 (fithy) are certified by the Palmares Cultural Foundation (FCP)
and are sekinng land tenure regularization on their lands. In this regard, I discuss the socio-
territorial formation of Ceará, above all, quilombola territories of Encantados do Bom Jardim
and Lagoa das Pedras, Brutos and Barriguda, located in the municipality of Tamboril.
Therefore, the objective of this thesis is to discuss and to defender the right to territory of rural
quilombola peoples in the socio-territorial formation of Ceará, through our ancestral cultures in
the State. The methodology used comprised a qualitative approach with bibliographical,
documentary and field research with scales of reflection and approach in the state, regional and
municipal contexts. Observations of the quilombola daily life, semi-structured interviews, study
and reflection of lectures and mappings were carried out. I outlined some forms of traditional
quilombola use and occupation in mappings of the surveyed territories; finally, I understood
the quilombola territories in their struggles, ancestry and their geohistorical formation, based
on studies on the micro-region of Sertões de Crateús and the markers of africanities, in the
municipality of Tamboril and in the quilombola territories. In this study, I considered that, in
Ceará, African and Afro-Brazilian peoples faced historical erasures and silencing. The marker
of Afrodiasporic ancestry in Ceará territory constitutes inherited cultural traits, for example, in
the formation of quilombola territories. The marker of the collective struggle materialized in
the social and political organization of the highlighted movements with influences from the
Church and national and state representative entities in the reaffirmation of the rights of these
peoples in Ceará. The territorial marker pointed out that the quilombos were designed from
successive displacements due to enslavement and the joining of multiracial family trunks. The
research contributed, therefore, to the publication of trajectories and the collective memory of
the quilombola, as well as to the strengthening of struggles and identities in the quilombos of
the sertões of Tamboril. The quilombola territories are,therefore, legacies of an African people
that make up the social, cultural, demographic and territorial formation of Ceará.

Keywords: quilombola territories; territoriality; socioterritorial Movement; african markers.


historical geography; geocartography.
RESUMEN

Quilombamento geográfico significa construir una conexión entre los pueblos negros y la
construcción de saberes territoriales. Em el Estado de Ceará, existen 87 comunidades
quilombolas distribuídas em 41 municipios. Actualmente, 50 están certificados por la
Fundación Cltural Palmares (FCP) y buscan la regularización de la tenencia de sus tierras. Em
esse sentido, discuto la formación socioterritorial de Ceará, refiriéndose, sobre todo, a la
territorios quilombolas Encantados do Bom Jardim y Lagoa das Pedras, Brutos y Barriguda,
ubicados en el municipio de Tamboril. Por lo tanto, el objetivo de esta tesis es argumentar y
defender el derecho al territorio de los pueblos rurales quilombolas en la formación
socioterritorial de Ceará, a través de nuestras culturas ancestrales en el Estado. La metodología
utilizada comprendió un enfoque cualitativo con investigación bibliográfica, documental y de
campo con escalas de reflexión y abordaje en los contextos estatal, regional y municipal. Se
realizaron observaciones del cotidiano quilombola, entrevistas semiestructuradas, estudio y
reflexión de lecturas en línea y mapeos. En este estudio, consideré que, en Ceará, los pueblos
africanos y afrobrasileños enfrentaron borrados y silenciamientos históricos. El marcador de
ascendencia afrodiaspórica constituye rasgos culturales heredados, por ejemplo, en la
formación de territorios quilombolas en Ceará. El marcador de la lucha colectiva se materializó
en la organización social y política de los movimientos destacados con influencias de la Iglesia
y entidades representativas nacionales y estatales en la reafirmación de los derechos de estos
pueblos en Ceará. El mojón territorial señaló que los quilombos se diseñaron a partir de
sucesivos desplazamientos por la esclavitud y la unión de troncos familiares multirraciales. La
investigación contribuyó, por lo tanto, para la publicación de trayectorias y la memoria
colectiva de los quilombolas, así como para el fortalecimiento de luchas e identidades en los
quilombos de los sertões de Tamboril. Los territórios quilombolas son, por lo tanto, legados de
uma presencia africana que compone la formación social, cultural, demográfica y territorial de
Ceará.

Palabras-clave: territorios quilombolas; territorialidad; movimiento socioterritorial;


marcadores de africanidades; geografía histórica; geocartografía.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Reunião com moradores do território quilombola Encantados do


Bom Jardim e Lagoa das Pedras ..................................................... 68

Figura 2 Reunião com moradores do território quilombola Encantados do


Bom Jardim e Lagoa das Pedras ..................................................... 69

Figura 3 Espacialização do povo negro livre e/ou escravizado nas vilas


cearenses no ano de 1804................................................................ 113

Figura 4 Espacialização do povo negro livre e/ou escravizada nas vilas


cearenses de 1808............................................................................ 116

Figura 5 Espacialização do povo negro livre e/ou escravizado nas vilas


cearenses de 1813 ........................................................................... 119

Figura 6 Espacialização do povo negro livre e/ou escravizado nos


municípios/paróquias cearenses de 1872 ........................................ 123

Figura 7 Rua Coronel Salustiano Melo na sede do Município de Tamboril, 207


Ceará...............................................................................................

Figura 8 Praça Sales Campos na década de 1990 em Tamboril Ceará ........ 208

Figura 9 Igreja Matriz de Santo Anastácio de Tamboril ................................ 209

Figura 10 ........ 210

Figura 11 Registro da principal fonte hídrica de Tamboril, Ceará ................ 212

Figura 12 Serra do Encanto vista da comunidade Encantados do Bom Jardim 218

Figura 13 Vista da Lagoa das Pedras, Tamboril, Ceará................................... 219

Figura 14 Fisionomia da barriguda ou paineira-branca no semiárido


nordestino....................................................................................... 221

Figura 15 Registro de algumas residências na comunidade quilombola de


Lagoa das Pedras ............................................................................ 244

Figura 16 Entrada principal da comunidade quilombola Encantados do Bom


Jardim ............................................................................................. 245

Figura 17 Pastagem do rebanho de caprinos de Lagoa das Pedras, Tamboril,


Ceará .............................................................................................. 246
Figura 18 Prédio novo da Escola Municipal de Ensino Fundamental Joaquim
Ribeiro dos Santos .......................................................................... 248

Figura 19 Prédio antigo da Escola Municipal de Ensino Fundamental


Joaquim Ribeiro dos Santos............................................................ 249

Figura 20 Entrada do Posto de Saúde na localidade Encantados do Bom


Jardim ............................................................................................. 251

Figura 21 Entrada principal do território quilombola de Brutos, Tamboril,


Ceará .............................................................................................. 253

Figura 22 Painel de registros das apresentações da quadrilha junina de


Brutos nos anos 2000 ...................................................................... 255

Figura 23 Casa de mel no território quilombola da Barriguda, Tamboril,


Ceará .............................................................................................. 258
Figura 24 Sede da Associação dos Pequenos Produtores da Barriguda,
Tamboril, Ceará ............................................................................. 259

Figura 25 Lavouras no período seco no território da Barriguda, Tamboril,


Ceará .............................................................................................. 261

Figura 26 Hortas suspensas nos quintais de uma das casas no território da


Barriguda, Tamboril, Ceará ........................................................... 261

Figura 27 Cerimônia de assinatura do termo de posse da terra quilombola em


Tamboril em 2023.......................................................................... 274
LISTA DE MAPAS

Mapa 1 Localização dos territórios quilombolas de Encantados do Bom Jardim


e Lagoa das Pedras e de Brutos no município de Tamboril .................... 26
Mapa 2 Rotas da diáspora africana no Brasil ......................................................... 92
Mapa 3 Espacialização dos territórios quilombolas nos municípios do Ceará ...... 196
Mapa 4 Esboço das formas de uso e ocupação tradicional quilombola da terra-
território em Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras, Tamboril,
Ceará ........................................................................................................ 243
Mapa 5 Esboço das formas de uso e ocupação tradicional quilombola da Terra-
território de Brutos, Tamboril, Ceará ....................................................... 252
Mapa 6 Representação das formas de uso e ocupação tradicional quilombola da
Terra-território da Barriguda, Tamboril, Ceará ....................................... 257
LISTA DE QUADROS

Quadro 1 Grupos populacionais presentes nos levantamentos populacionais


do Ceará no século XIX ..................................................................... 40

Quadro 2 Principais marcadores das africanidades que atravessam trajetórias


negras e quilombolas na pesquisa ...................................................... 52

Quadro 3 Sujeitos e trajetórias quilombolas de tamboril entrevistados na


pesquisa ............................................................................................ 57

Quadro 4 Teses e dissertações que retratam o aquilombamento geográfico


(2013 a 2020) parte I ......................................................................... 77

Quadro 5 Teses e dissertações que retratam o aquilombamento geográfico


(2013 a 2020) parte II ........................................................................ 78

Quadro 6 Teses, Dissertações e/ou livros de aquilombamento cearense nas


diversas áreas do conhecimento (2011 a 2018) parte I ....................... 81

Quadro 7 Teses, Dissertações e/ou livros de aquilombamento cearense nas


diversas áreas do conhecimento (2011 a 2018) parte II ..................... 82

Quadro 8 Registros da diáspora africana na província do Ceará do século XV


ao século XIX .................................................................................... 101

Quadro 9 Toponímias ancestrais, europeias e cristãs presentes nas vilas do


século XIX ........................................................................................ 107

Quadro 10 Esboço dos grupos raciais que compõem a sociedade provincial


cearense na segunda metade do século XIX ...................................... 138

Quadro 11 Sociedades libertadoras do século XIX no Ceará .............................. 144

Quadro 12 Quilombos localizados nos municípios que compõem os Sertões de


Crateús no ano de 2019 ..................................................................... 204
LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 Distribuição territorial do povo negro livre e escravizado nas vilas


Cearenses de 1804 ............................................................................... 113

Gráfico 2 Distribuição territorial do povo negro livre e escravizado nas vilas


Cearenses de 1808 ............................................................................... 116

Gráfico 3 Distribuição territorial do povo negro livre e escravizado nas vilas


cearenses de 1813 ................................................................................ 119

Gráfico 4 Distribuição territorial do povo negro livre e escravizado nas vilas


cearenses de 1872 ................................................................................ 123
LISTA DE TABELAS

Tabela 1 Percentual do povo negro no total da população da Província do


Ceará no período de 1804 a 1872 ..................................................... 126

Tabela 2 Dinâmica socioterritorial e distribuição do povo negro nos Sertões


de Crateús no século XIX ..................................................................
201

Tabela 3 Quilombolas em processo de desterritorialização reterritorialização 230


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

APN Agente de Pastoral Negro


BEIQ Banco Estadual de Itens e Questões
CEBS Comunidades Eclesiais de Base
CEUs Centros Espíritas de Umbanda.
CEFOP Célula de Formação e Projetos da Sefor
CPT Comissão da Pastoral da Terra

COAVE Coordenadoria de Avaliação da Aprendizagem Educacional


CRQs Comunidade Remanescentes de Quilombos
CONAQ Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos
CEQUIRCE Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Ceará
DNOCS Departamento Nacional de Obra Contra às Secas.
DAS Secretaria de Desenvolvimento Agrário

EQRER Educação Escolar Quilombola para as Relações Étnico-Raciais


FCP Fundação Cultural Palmares
FNB Frente Negra Brasileira
GRUCON Grupo de União e Consciência Negra
GPS Global Positioning System
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INCRA Instituto Nacional de Reforma Agrária
IMOPEC Instituto de memória
MNU Movimento Negro Unificado
PAN Projeto Agrupamentos Negros

PNAD Pesquisa Nacional por Amostra em Domicílio


RTDI Relatório Técnico de Identificação e Delimitação
SARS-COV-2 Síndrome Respiratória Aguda Severa 2019-nCoV
SEDUC Secretaria de Educação do Ceará
UFC Universidade Federal do Ceará

UECE Universidade Estadual do Ceará


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................... 18
1.1 Objetivos .......................................................................................................... 32
1.2 Encruzando os capítulos ................................................................................. 33
2 CAMINHOS DA PESQUISA ......................................................................... 34
2.1 Marcadores das africanidades ........................................................................ 50
2.2 Estratégias de aquilombamento geográfico ................................................... 61
2.3 Aspectos socioterritoriais dos Quilombos/Mocambos/Kilómbòs ................ 70
3 O POVO NEGRO NAS ENCRUZILHADAS SERTANEJAS DO 85
CEARÁ ............................................................................................................
3.1 Na encruzilhada, a luta é ancestral ................................................................. 85
3.2 A diáspora congo-angolana, moçambicana e seus descendentes nos
sertões ............................................................................................................... 87
3.3 A população negra da Província do Ceará no século XIX ............................ 105
3.4 ......... 127
3.5 .............. 143
3.6 Ébós das mobilizações negras (1980 - 1992) e quilombolas (2000 - 2020)
no Ceará: influências, representações e conquistas ...................................... 156
3.6.1 Influências católicas na mobilização .............................................................. 161
3.6.2 A Universidade e a política na mobilização ...................................................... 167

3.6.3 Entidades representativas do movimento socioterritorial quilombola ............ 179


4 TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS NOS SERTÕES DE CRATEÚS
CEARÁ ............................................................................................................ 200
4.1 Presença negra do ontem e do hoje nos Sertões de Crateús .......................... 200

4.1.1 Os marcadores das africanidades em Tamboril, Ceará ................................... 206


4.2 Territórios Quilombolas Sertanejos: Encantados do Bom Jardim e Lagoa
das Pedras, Brutos e a Barriguda ................................................................... 215
4.2.1 Toponímias quilombolas .................................................................................. 215
4.2.2 Linhagens ancestrais e deslocamentos na formação dos territórios ............... 224
4.2.3 A Terra-Território: lutas, modos de ser e existir quilombola ........................ 232
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................... 264
6 PÓSFACIO ...................................................................................................... 274
6.1 Cerimônia de Imissão de título de posse da terra quilombola de
Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras ........................................... 274
REFERÊNCIAS .............................................................................................. 275
APÊNDICE A TERMO DE CONSSENTIMENTO LIVRE E
ESCLARECIDO APLICADO AOS ENTREVISTADOS DE
TAMBORIL .................................................................................................... 295

APÊNDICE B ROTEIRO ESTRUTURADO DE APLICADO AOS


ENTREVISTADOS (AS) DE TAMBORIL ................................................... 296

ANEXO A O PILÃO DE QUARTZO ROSA ............................................. 297

ANEXO B LISTA DOS MARCADORES DAS AFRICANIDADES ....... 298


18

1 INTRODUÇÃO

A ciência geográfica e a minha ancestralidade possibilitam a conexão com o meu


povo e a construção do conhecimento territorial. No entanto, o processo de aquilombamento na
Geografia, em seus conceitos e teorias, ou seja, voltada ao contexto racial, ainda é discutida de
maneira insipiente, escamoteada, enviesada. É preciso aquilombar a Geografia!
Por isso, é inconcebível realizar leituras geográficas do espaço sem considerar as
matrizes negra, indígena, ciganas, entre outras, que são os alicerces, regadas ao suor e sangue
na construção dos espaços, dos territórios, dos lugares, das regiões, das paisagens, em qualquer
que seja a escala e as nossas práticas cotidianas.
Assim, a escolha da temática é justificada por alguns fatores. Primeiro, por me
reconhecer negra no território cearense que recusa historicamente a nossa presença. Meu
autorreconhecimento e pertencimento afrodescendente se materializam e se manifestam na
família, em minhas vivências, no meu axé, na fé profetizada, na alimentação, nos modos de
viver e vestir, no fazer pedagógico e da pesquisa. Sobre pertencimento, os estudos de Osório
(2003) indicam que as categorias preta e parda resultam na composição do povo negro por
resguardar ancestralidade africana e afro-descendente no Brasil. Neste trabalho, ressalto vozes
que dizem quem fomos e somos hoje, quantos somos, que caminhos percorremos, onde estamos
e o que buscamos.
A classificação racial brasileira pode ser entendida como um conjunto de cinco
categorias de cor ou raça em que os sujeitos se enquadram, a partir de mecanismos simultâneos
de sua auto-declaração ou da heteroatribuição de pertença. (OSÓRIO, 2003). Sendo assim, a
minha linhagem familiar é mencionada tendo como base o registro civil e a auto-declaração. E,
a classificação racial dos participantes da pesquisa é destacada a partir da sua auto- atribuição
e heteroatribuição de pertença. (OSÓRIO, 2003. Desse modo, estou partindo das minhas
origens e das referências ancestrais quilombolas para refletir sobre as relações raciais.
Paixão e Carvano (2008, p. 48)
determinado ponto de consenso de que, com toda a imprecisão contida nos sistemas oficiais de
classificação de cor ou racial no Brasil, as categorias existentes refletem de forma aproximada
a composição de cor ou racial auto-percebi As categorias de
classificação racial de cor ou raça no Brasil são: parda, preta, branca, indígena e amarela. De
todo modo, discuto dados populacionais, aspectos culturais e de mobilização que reafirmam a
presença negra no Ceará.
19

A família materna da qual descendo compõe-se de agricultores sertanejos de


ascendência negra e indígena, nascidos em Senador Sá (bisavós) e Granja (avós), municípios
localizados na porção Noroeste do Ceará. Conforme Marques (2011), essa foi uma das regiões
cearenses mais concentradoras de população negra (escravizada e liberta) explorada pelos
, nas mais diversas atividades rurais e urbanas, tendo a sua ocupação
territorial ocorrido ao longo dos vales dos rios Acaraú e Coreaú.
Neste cenário, meu bisavó, Francisco Aires da Silva, e minha bisavó, Maria do
Espírito Santo, pais da minha avó Maria José Aires, viveram no município de Senador Sá, que
dista 268km de Fortaleza, capital do Estado do Ceará. Meus bisavós, João Faustino Soares e
Francisca das Chagas Nicolau, pais do meu avô Joaquim Faustino Soares, viveram no mesmo
município. Eu não cheguei a conhecê-los, mas as histórias que a minha vó Mazé contava da
bisa Maria do Espírito Santo dão conta de que era uma mulher branca de olhos azuis.
Enquanto o outro casal de bisavós, pais do vô Joaquim, eram pretos e se afastaram da família
por conflitos relacionados a herança de terras.
Conhecer a ancestralidade ou buscá-la cotidianamente é saber daqueles que vieram
antes de nós e eu sempre perguntava, organizava álbuns de fotografia, olhava os documentos e
escrevia sobre eles em nossos cadernos de reuniões familiares, que ocorrem, ainda hoje, uma
vez por mês nas casas dos/das diferentes irmãos e irmãs da minha mãe. Quando nos reunimos,
eles nos contam histórias que me conectam com a cultura negra e indígena sertaneja e me fazem
entender a nossa ancestralidade consanguínea1.
Vó Mazé nasceu em 1913. Era uma mulher parda com olhos verdes, cabelos lisos.
Ela usava longas saias, conhecia a importância das plantas e das ervas e utilizava
cotidianamente um pilão de quartzo rosa que marcou minha infância com sabores, cheiros e
histórias.2 O vô Joaquim, nascido em 1909, era um homem preto de olhos castanhos e fumava
um cachimbo perfumado. Com ele, aprendi a preparar o solo, a plantar e colher o feijão, o
milho, o coentro e a cebolinha nos quintais em que residimos.
O primeiro filho da família Faustino Aires foi o Tio Nelson. Registrado no cartório
como preto, ele nasceu em 1932, bem antes do casamento de meus avós, que só ocorreu em
1947 no cartório do município de Parazinho, pertencente à comarca regional de Granja. O vô

1
O povo Bantu tem a concepção filosófica de que viemos ao mundo carregando uma ancestralidade mítica, real e
familiar que compõe o nosso axé, ou seja, a nossa força vital (LOPES, 2014a). As nossas reuniões familiares
tiveram uma parada de 2 (dois) anos para o cumprimento do distanciamento social provocado pela ocorrência da
pandemia do SARS-COV-2.
2
Em homenagem a minha avó Mazé, compus a pilão de qua (Cf. ANEXO B).
20

Joaquim e a vó Mazé foram morar na zona rural daquele município que dista 300km de
Fortaleza.
Daqueles 12 filhos e filhas dos meus avós, somente 10 encontram-se vivos no ano
de 2023. Encontrei, nessa terceira geração das minhas tias e tios, uma diversidade de saberes e
práticas ancestrais. A minha madrinha é benzedeira, um tio é mateiro3, faz o lambedor para
combater as minhas alergias, outras tias são bordadeiras. Mateiro pode ser considerado uma
profissão relacionada ao conhecimento da natureza, pois trata-se daquele que coleta as ervas e
plantas para utilização medicinal, comercial, espiritual, entre outras. (STANISKI, 2016). Por
sua vez, o lambedor é um remédio caseiro fruto do conhecimento das ervas medicinais
misturadas ao açúcar. Essas misturas de sabores e cheiros têm origens nas práticas de cura
indígenas e africanas no Ceará (ARAÚJO, 2016).
Vale ressaltar que, mesmo após seu casamento, a vó Mazé continuou a assinar o
nome de solteira, Maria José Aires. O seu sobrenome prevalece no registro de todos os filhos e
filhas, indicando a sua influência na definição dos nomes e sobrenomes dos membros da
família, inclusive no meu primeiro nome, seguido de seu sobrenome de solteira,
A minha mãe é uma mulher parda, nascida em 1951, em Granja. É a filha mais nova
de 11 (onze) irmãos que compõe a terceira geração da família. Em 1975, foi mãe solo da minha
irmã mais velha, uma mulher preta de olhos e cabelos pretos. E, 5 (cinco) anos depois, mais
precisamente no dia 04 de julho de 1980, eu nasci e sou uma mulher parda. Ela conta que estava
de resguardo do meu nascimento, quando foi assistir o Papa João Paulo II passar na antiga
Avenida Dédé Brasil, hoje conhecida como Avenida Silas Munguba, em Fortaleza, Ceará. Na
ocasião dessa visita ao Brasil e ao Ceará naquele ano4, a minha mãe por ter alcançado essa
graça, tendo em vista suas convicções religiosas, decidiu que o meu nome seria Paula. No
entanto, a Vó Mazé não permitiu e determinou que o meu nome seria Rosilene, porque o nome
da minha irmã é Rosângela.
Minha irmã, eu e um casal de primos moramos com os nossos avós grande parte de
nossa infância e adolescência para que nossas mães pudessem trabalhar. A convivência deste
núcleo familiar intergeracional explica a irmandade que tenho com meus primos, bem como os

3
Desde o ano de 2018, no Ceará, os mateiros são considerados ultura e são diplomados por
resguardar saberes ancestrais. Mestres e Mestras da Cultura do Estado foram diplomados e Secult lança
edital com novas vagas. Disponível em: https://www.vicegov.ce.gov.br/2018/06/26/mestres-e-mestras-da-
cultura-do-estado-foram-diplomados-e-secult-lanca-edital-com-novas-vagas/. Acesso em 01 fev. 2022.
4
Reportagem da visita do Papa João Paulo II ao Brasil e à Fortaleza. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=7v5GHPW1U-U. Acesso em 01 fev. 2022.
21

saberes e as influências herdadas dos meus avós e da minha mãe criadeira, que é a tia Maria
Faustina Aires, a quem chamava carinhosamente de mãe Jandira (seu apelido).
O vô Joaquim era um homem preto, um agricultor que não detinha a posse da terra
e, ao longo de sua vida, trabalhou no sistema do arrendamento5. Ele arrendou a terra de um
fazendeiro no espaço rural de Granja em troca de moradia e da terra para plantio e trabalho na
terra com a família como forma de pagamento ao proprietário.
Eu ouvia a vó Mazé falar da seca dos sete e não compreendia o porquê de esse
acontecimento ser tão marcante para ela. No entanto, entendi que no contexto de uma família
negra, pobre, sem a propriedade da terra e diante das condições de semiaridez nos sertões de
Granja, a busca pela sobrevivência levou a família a sucessivos deslocamentos.
Assim, os meus antepassados iniciaram o processo de migração para Fortaleza e
Orós, especificamente, na década de 1970. Primeiro, foi o filho mais velho que migrou para a
cidade de Orós, localizada no Centro-Sul cearense, a fim de trabalhar junto ao Departamento
Nacional de Obra Contra às Secas (DNOCS), nas reformas e manutenções do Açude Orós.
Em seguida, migraram mais dois filhos para Fortaleza e adquiriram ocupação no
setor da construção civil. Em 1975, cinco filhas, inclusive a minha mãe, migraram para trabalhar
como domésticas nas casas de família 6. Os últimos a migrarem foram meus avós junto com
os quatro filhos que ainda estavam em Granja e vieram residir à favela Coaça, situada à antiga
Avenida Estados Unidos, em Fortaleza que, antes de 1961, era rua Rodolfo Teófilo (CEARÁ,
1961), e desde 1991 mudou de nome e passou a chamar Avenida Senador Virgílio Távora.
Atualmente, essa avenida abrange os bairros Dionísio Torres, Aldeota e Meireles, ou seja, meus
familiares moravam próximo às residências que prestavam serviços domésticos, hoje
consideradas de alto padrão econômico.
A favela Coaça foi removida para a construção das Avenidas Antônio Justa e
Senador Virgílio Távora. Assim, os custos de vida nessa parte da cidade, a falta de condições

5
É preciso ressaltar que, o início do século XX foi marcado pela transição camponesa do trabalho escravo para
o trabalho assalariado e os sistemas de parceria com outras formas de subordinação e dependência econômica
foram se configurando no território cearense. Essas são caracterizadas por Pinheiro (2008) e ocorrem quando
os proprietários de terras alugam parcelas de terra em troca da produção, moradia, ou seja, os trabalhadores
produzem e moram em terras alheias. E, muitas vezes, acumulam dívidas com o dono das terras. Além disso,
dependem das variações climáticas semiáridas.
6
Lembro-me que ao perguntar as minhas mães, Hilda e Jandira, sobre o trabalho delas em Fortaleza nos anos
de 1970, ambas ressaltam que faziam de tudo e a toda hora nas casas de família. Casas de famílias para quem?
Ou seja, esse é mais um exemplo de um espaço da elite que explorava a força de trabalho, não cumpriam as
garantias trabalhistas e impunham condições precárias às trabalhadoras. Trata-se de uma classe rica que
exerceu o domínio, a exploração e o controle de uma maioria da população pobre e oprimida.
22

para aquisição do imóvel e a especulação imobiliária nesse entorno, pressionaram a família a


se deslocar para os bairros da periferia de Fortaleza que, à época, estavam se formando.
Residiram em alguns bairros e acabaram por fixar moradia no bairro Bom Jardim,
a partir dos anos de 1990. Somente nos anos 2000, em função da idade avançada deles,
mudamos para o bairro Parque II Irmãos, com o objetivo de residir próximo às minhas tias e de
suas famílias. Esses deslocamentos e a forma como vivíamos me fizeram compreender que
compúnhamos a classe trabalhadora do Ceará, com baixo poder de compra, sem a propriedade
do imóvel para a moradia digna, com renda precária e, além disso, pouco usufruíamos das
políticas públicas e dos serviços que o Poder Público devia prover.
Os deslocamentos pela zona rural de Granja e pela zona urbana de Fortaleza
continuaram e influenciaram na dispersão familiar. Hoje, os membros da minha família residem
nas cidades de Fortaleza, Aracati, Caucaia, Maracanaú, Orós e na cidade de Manaus AM.
No período de 2017 a 2022, perdemos o Tio Nelson, a minha mãe criadeira Jandira
e, mais recentemente, perdemos a Tia Gercina, ambos eram os mais velhos da terceira geração
familiar, a quem tínhamos como referências na família. No ano de 2023, o grupo Faustino Aires
encontra-se em sua sexta geração, que é a dos tataranetos de meus avós. Vale ressaltar que no
período de 2018 e 2023, nasceram 12 (doze) tataranetos, ampliando, assim, a geração mais
nova. Por fim, chegamos ao total de 163 membros contando agregados, adultos e crianças
distribuídos em diversas cidades brasileiras, conforme citado anteriormente.
Aprendo com alguns desses parentes, os aspectos da espiritualidade, do sagrado e
do manuseio de algumas ervas no cotidiano, na alimentação e na proteção das nossas
residências. Busco a minha ancestralidade mística e reafirmo o meu pertencimento a um culto
de matriz africana, aprendendo e convivendo com os meus irmãos e irmãs, e com os pais e mães
de santo nos Centros Espíritas de Umbanda (CEU´s), Palácio das Águas na periferia de
Fortaleza e na Aldeia Real, localizado em Pacatuba-Ceará. Construo nos terreiros vínculos
familiares para além da consanguinidade que decorrem da vivência e do afeto. Entendo o poder
da cura física e espiritual das ervas sagradas e dos ensinamentos das entidades que trabalham
deixando suas mensagens, curas e estão sempre ao nosso lado em todos os caminhos.
Em relação ao reconhecimento das origens negro-indígenas a maioria da minha
família Faustino Aires, não construiu o sentimento de pertença negra e indígena, rejeitam os
cultos de matriz africana e as práticas curativas das ervas, o que me coloca no centro de
enfrentamentos cotidianos. Acredito que a baixa escolaridade, o proselitismo e o racismo
religioso, entre outros fatores, dificultam a leitura crítica da realidade causando a negação e a
23

rejeição. Além disso decorre, segundo Souza (2009), do senso comum sobre a percepção de si
e do coletivo que as impede de enxergar desigualdades raciais e sociais bem como seu
pertencimento afro-indígena cearense.
A força vital, conforme Oliveira (2005, p. anto, um atributo
individual, mas uma construção coletiva que, obedece uma rígida organização tradicional e que,
sem atualização, perde- O pertencimento ao terreiro, o cuidado de si
e do outro, a prática da escuta e as formações continuadas são vivências que fortalecem o meu
axé para o enfrentamento da intolerância religiosa e do racismo tão evidentes em nossa
sociedade e na escola.
Acredito que minha consciência racial foi sendo construída e fortalecida no terreiro
e nas formações continuadas das quais participei. Nos capítulos da tese, a linguagem de terreiro
se faz presente por ser uma das marcas que me atravessam como mulher negra e umbandista.
Assim como a ênfase no sertão e nos deslocamentos do povo negro que são marcas ancestrais
que carrego e se desdobram nas escolhas de pesquisa.
O segundo fato que justifica a temática é que ao identificar a marca consanguínea
da minha ancestralidade, ao conceber as minhas experiências e interpretações de pertencimento
ao território, a um povo, e a uma prática religiosa, estabeleço uma conexão com a cultura
africana afrodescendente e indígena que contribuiu para a minha formação identitária de
enxergar o mundo.
Neste sentido, entendo que a ancestralidade é um dos principais elementos da
cosmovisão africana que resulta em práticas culturais, representações e resistências sociais e
políticas do povo negro brasileiro e cearense (OLIVEIRA, 2005).
Entendo que a minha trajetória de vida se constitui uma resistência social e política
que rompeu ciclos de baixa escolaridade e condições de sobrevivência precárias, tendo em vista
as estruturas desiguais e racistas que oprimiram e excluíram historicamente o meu povo.
Sou da quarta geração familiar e, em relação à escolaridade, somente 06 (seis)
membros da minha geração conseguiram concluir o Ensino Superior. Já da quinta geração, 11
(onze) familiares tem Formação Superior concluída ou em andamento em instituições públicas
e privadas. A sexta geração é composta por crianças e adolescentes que se encontram no Ensino
Fundamental e Médio.
O meu percurso escolar se deu em diferentes escolas públicas. No ensino
Fundamental, estudei na Escola Municipal Professora Vicentina Campos Marinho Lopes, e, no
Ensino Médio, estudei na Escola Estadual Justiniano de Serpa, escolas públicas da cidade de
24

Fortaleza. Nessas instituições, lembro-me de cinco ou seis docentes negras e negros que
contribuíram com a minha formação.
E, paralelamente ao ensino regular, participei de cursos gratuitos e
profissionalizantes realizados pela Prefeitura de Fortaleza na área de Turismo. Percebi que
poderia viajar, conhecer pessoas e espaços trabalhando nessa área. No entanto, somente em
instituições particulares, na época, havia graduação ou cursos de nível técnico na área.
Chego, assim, ao terceiro motivo que justifica a minha pesquisa ao olhar para a
Universidade Pública e, diante destas vivências negras cotidianas, a minha escolha foi a
Geografia pela possibilidade de viajar e conhecer pessoas e espaços. O entendimento do
trabalho com a educação ocorreu somente ao longo do curso de Licenciatura. Sou licenciada,
bacharela e mestra em Geografia pela Universidade Estadual do Ceará. E, ao longo desse ciclo
formativo, que se estendeu de 2003 a 2009, encontrei quatro professores negros e uma
professora negra. E, infelizmente, as questões raciais não foram pautadas ao longo desses
percursos formativos.
O conhecimento é uma dívida que temos com a sociedade. O meu compromisso
ancestral, de mulher, de classe, político e racial aliado ao meu fazer acadêmico e pedagógico
são únicos, indissociáveis. Essa ligação umbilical está presente em vários momentos de minha
trajetória de vida e profissional: seja nas minhas aulas de Geografia, no Ensino Médio de 2010
a 2015, em duas escolas da periferia de Fortaleza, em que atuei dialogando com educandos
negros e negras (AIRES, 2012, 2016a; AIRES; VASCONCELOS, 2016), (AIRES, 2016b); seja
no Ensino Superior, quando pautei a temática racial, especificamente, na formação de
professores da rede estadual, compondo a Célula de Formação e Projetos da Sefor (CEFOP) de
2015 a 2016. Naquele período, o diálogo foi ampliado junto aos docentes dos diversos bairros
e escolas de Fortaleza (AIRES; VASCONCELOS, 2018; AIRES, 2017, 2020), para a
implementação da Lei 11.645/20087.
Em seguida, trabalhei com o suporte pedagógico na formação de professores da
Secretaria de Educação do Ceará (SEDUC), quando aceitei o desafio em 2017 de compor a
equipe da Coordenadoria de Avaliação da Aprendizagem Educacional (COAVE). Realizei
ações sobre a avaliação da aprendizagem escolar e participei da organização do percurso

7
A Lei n0 11.645, de 10 março de 2008, estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no
-
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm. Acesso em: 11 nov.
2021.
25

formativo docente da Crede de Iguatu, de Fortaleza e docentes da Prefeitura Municipal de


Pacajús, sobre o Banco Estadual de Itens e Questões (BEIQ).
Desse trabalho na COAVE ressaltou a importância da temática racial na elaboração
de itens e questões das avaliações internas e externas utilizadas por docentes. Problematizei e
publicizei a temática da Educação para as relações étnico-Raciais no repositório virtual,
disponibilizado no Beiq para toda a rede estadual de ensino (AIRES; OLIVEIRA, 2019).
Mais recentemente, no ano de 2019, ao integrar a equipe de Educação Escolar
Quilombola e para as Relações Étnico-Raciais (EQRER), contribuo com este grupo que realiza
a execução, na rede estadual de ensino, da política de igualdade racial. Juntos desenvolvemos
ações nas escolas da rede estadual compreendendo a formação continuada de professores,
(AIRES; TELEMACO; LEITE, 2019). Além disso, realizamos o acompanhamento técnico e
pedagógico da educação escolar quilombola (AIRES; SILVA, 2019), entre outras ações.
E durante a pandemia no Brasil (2020 a 2022) me descobri comunicadora na
Internet. E iniciei um trabalho pedagógico e antirracista com a produção de vídeos, a realização
de entrevistas ao vivo no canal do Youtube que valorizem vozes negras e não-negras, bem como
a curadoria de playlists de vídeos sobre as diversas manifestações culturais afro-brasileiras do
Ceará como o Maracatu, a Capoeira, o Reisado, Blocos Afro, entre outros. (AIRES, 2020).
Diante desses registros, percebo que a minha escala de atuação, abordagem e
alcance na implementação da Lei foi foram ampliados, saindo das duas escolas em que atuei,
passando pela equipe de formação em Fortaleza, chegando à equipe que pensa e discute a
política de igualdade racial para cerca de 736 escolas no Ceará. E, por fim produzindo e
comunicando conteúdos antirracistas na plataforma virtual do Youtube. Celebro os processos
vivenciados, as parcerias e os resultados na construção de uma sociedade antirracista pelo viés
da Educação em conexão com à Cultura.
Embora trabalhando em sala de aula, na formação de professores e no setor técnico
da educação com a implementação da Lei 11.645/2008, a minha chegada aos territórios
quilombolas é bem recente ocorrendo somente em 2018. Esses encontros ocorreram em
decorrência do trabalho na EQRER/SEDUC, no qual conheci as lideranças e os seguintes
quilombos: de Três Irmãos, no município de Croatá; de Alto Alegre, no município de Horizonte;
da Base, localizado em Pacajus e do Cercadão dos Discetas, no município de Caucaia. Busco,
portanto, o aporte teórico e científico da Geografia em diálogo com outras áreas do
conhecimento, para reafirmar o nosso modo de vida e a nossa cultura negada e rejeitada
historicamente, enxergando a categoria/conceito de território.
26

Os encontros com os territórios quilombolas ocorreram em formações continuadas


e nas reuniões técnicas e pedagógicas nos anos de 2018 e 2019. Por fim, o caminhar da pesquisa
me levou aos sertões de Crateús, especificamente, no município de Tamboril, sendo esse um
dos que concentram comunidades quilombolas, com a presença dos territórios.
Em sua maioria, as comunidades quilombolas encontram-se localizadas nos
espaços rurais do Ceará. Os territórios quilombolas do litoral, da serra e do sertão enfrentam
racismo, abandono, negação e conflitos territoriais. Desse modo, resistem e se mobilizam para
pressionar o Estado e o poder municipal no sentido do cumprimento da Política Pública na
garantia dos seus direitos. Essas articulações partem de associações de moradores de cada
território, passando por representações estaduais e nacionais que convocam os quilombolas a
lutar pela reafirmação de seus direitos. O reconhecimento da individualidade e da coletividade
do povo quilombola pelo Estado e a inserção destes nas Políticas Públicas é um processo que
se arrasta a passos lentos pela burocracia e à estagnação política da sociedade brasileira, quando
era obrigação do poder -estar dos cidadãos e cidadãs que o compõem.
(SOUZA, 2008, p. 172). Ao longo dos séculos, os nossos antepassados passaram por diversos
processos de genocídio8, ao longo da formação espacial brasileira, ao ser excluído do acesso à
terra, do mercado de trabalho e dos direitos que o Estado deve prover.
Ainda que de forma tardia, o quadro geral de reconhecimento dos territórios
realizado pela Fundação Cultural Palmares (FCP), em estados e regiões, aponta, no ano de 2021,
cerca de 3.500 territórios quilombolas ou Comunidades Remanescentes de Quilombos
(CRQ´s). E, no Nordeste, encontram-se um total de 2.195 territórios quilombolas
reconhecidos.9 Os dados de Girardi (2022) apontam que são 2.809 territórios reconhecidos e
223 com solicitação de certificação. São números ainda inferiores diante da quantidade de
territórios quilombolas espalhados pelo território brasileiro.
Conforme Aguiar, Santos e Alencar (2020), os territórios rurais quilombolas
percorrem cinco etapas para obter o direto a titularidade de suas terras. São elas: a primeira é a
autodefinição; a segunda é a elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação
(RTDI) e a publicação desse documento; a terceira é a publicação da portaria de
reconhecimento; e a última etapa é composta pelo decreto de desapropriação e a titulação.

8
Há 42 anos, Nascimento (1978), no seu livro genocídio do negro brasileiro a violência contra
a população negra na sociedade brasileira, marcada pela escravidão perversa, pela exploração sexual da mulher
africana, pelo embranquecimento e a perseguição a cultura africana, além da folclorização da sua religiosidade.
9
Quadro Geral por UF e Regiões das comunidades Certificadas. Fundação Cultural Palmares. Disponível em:
http://www.palmares.gov.br/?page_id=37551. Acesso em: 22 abr. 2021.
27

Na última etapa do processo de regularização fundiária das terras quilombolas,


encontram-se em aberto cerca de 1.800 processos pelo Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA) (BRASIL, 2021). Portanto, são muitos processos aguardando a
decisão judicial e o referido documento. Trata-se de um atraso nacional na reparação histórica
e na resolução dos conflitos agrários com os povos quilombolas que historicamente ocupam
essas terras.
Em relação aos 87 (oitenta e sete) quilombos cearenses, distribuídos em 41
municípios, cerca de 50 comunidades estão certificadas pela FCP. E, nenhum território
conseguiu obter a titulação de suas terras (CEARÁ, 2019b).
Diante do exposto, os recortes espaciais nesta pesquisa geográfica aquilombada são:
primeiro, o território cearense e suas relações com o continente africano. E segundo, os
territórios quilombolas sertanejos. Acredito que ao refletir sobre a distribuição populacional
negra no território cearense, principalmente, nos séculos XVIII e XIX, compreendo alguns
aspectos da formação dos quilombos no Ceará.
Entendo a ancestralidade negra e defendo a tese de que os territórios quilombolas
cearenses são uma das heranças ancestrais de povos afrodiaspóricos de origens angolana,
congolesa e moçambicana que, juntamente com outros povos, contribuíram para a formação
social, tecnológica, demográfica e cultural do Brasil e do Ceará, rompendo as quizilas e ejós
dos apagamentos e disseminando os ebós da sua presença e resistência aos seus descendentes.
Nesse caminho cheguei aos sertões cearenses, especificamente, da microrregião dos
Sertões de Crateús, que concentra 16 (dezesseis) comunidades quilombolas, distribuídas em 06
(seis) municípios da porção Centro Oeste do Estado. Dentre estas, escolhi as que estão
localizadas no município de Tamboril.
Conforme os registros históricos visualizados em Marques (2009b), Tamboril foi
distrito da vila de Ipú até 1853, quando desmembrado e criado pela lei provincial n o 669 de 04
de outubro de 1854. Atualmente, limita-se ao norte com Nova Russas, Hidrolândia e Catunda;
a Leste, com Monsenhor Tabosa e Catunda; a Oeste, com Nova Russas, Ipaporanga e Crateús;
ao Sul, com Crateús, Independência e Monsenhor Tabosa. Possui seis distritos: Tamboril
(sede), Boa Esperança, Carvalho, Oliveiras, Sucesso, Holanda e Curatis. Dista 297 km da
capital do Estado do Ceará, Fortaleza. Compõe, junto com os demais municípios, a área
banhada pelas bacias hidrográficas dos Rios Acaraú e Parnaíba.
Esta escolha emana do meu encontro com a resistência ancestral negra nesses
sertões tamborilenses que confrontou a política de uso e ocupação do território baseada nas
28

doações de terras devolutas, no coronelismo, na escravização africana e afro-brasileira, por


parte de famílias de várias gerações que compõem, espacialmente, uma continuidade de terras
reconhecidas. Esta escolha decorre, ainda, por ser, estes quilombos, referência para o
movimento socioterritorial quilombola estadual e nacional, ao assumirem papeis de
mobilização e articulação política do movimento em âmbito estadual.
Assim, optei por destacar os 3 (três) territórios quilombolas de Tamboril, conforme
o Mapa 01, a seguir:
29

Mapa 1 Localização dos territórios quilombolas de Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras e de Brutos, no município de Tamboril

Fonte: Elaborado pela autora.


30

O Mapa 01 destaca Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras que se localizam
no distrito Bom Jardim, formam uma área contínua são um único território e distam cerca de
10 km da sede municipal. O território de Brutos, localiza-se no mesmo distrito e que dista 9 km
da sede municipal, Tamboril-CE. Além destes, o território da Barriguda, que dista 24 km de
distância da sede, encontra-se na porção Leste de Tamboril, chegando ao limite com o
município de Monsenhor Tabosa, conforme o Mapa 1. Com exceção da Barriguda, os demais
territórios são reconhecidos pela FCP e aguardam a regularização fundiária das suas terras.
De acordo com o Mapa 01, estes quilombos encontram-se entrecortadas pela
rodovia CE-157, no trecho entre os municípios de Tamboril e Catunda, a 287 km da cidade de
Fortaleza, e somente a Barriguda encontra-se em altitudes de 829 metros chegando na fronteira
Leste de Tamboril com o município de Monsenhor Tabosa.
Fazendo o recorte da população quilombola cearense no mapeamento destacado em
Ceará (2019b), revelam aproximadamente 4.899 famílias quilombolas, o que me permitiu
considerar que se cada família tem o mínimo de 2 (duas) pessoas, a estimativa da população
quilombola atendida no mapeamento totaliza, no mínimo, 9.798 pessoas naquele ano. Esses
números poderão ser confirmados ou refutados no Censo Demográfico do ano de 2023, no qual
ocorrerá o levantamento específico da população quilombola.
Em relação à população estimada em em Tamboril no ano de 2020, o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)10 apontou cerca de 26.225 habitantes. E, os dados
sobre a população quilombola com base nos levantamentos em campo, totaliza 709 habitantes,
em Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras, são 198 quilombolas. Em Brutos residem
419 quilombolas e na comunidade da Barriguda, estimou-se 92 quilombolas (CEARÁ, 2019a).
Em tempos de isolamento social devido a existência da Síndrome Respiratória
Aguda Severa 2019-nCoV-SARS-COV-211 que se expandiu pelo mundo em dezembro de 2019,
e no Ceará em março de 2020. Construir a tese sobre quilombos sertanejos do Ceará sem
conseguir encontrar de forma presencial as pessoas, nem percorrer pessoalmente os seus
territórios, e tampouco participar do cotidiano quilombola foram os maiores desafios
encontrados no percurso inicial.

10
Perfil básico de Tamboril. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/ce/tamboril.html.
Acesso em: 10 jun. 2021.
11
O Sars-CoV-2 é o patógeno causador do coronavírus ou da Covid-19. É chamado de novo coronavírus porque
ele faz parte de uma família maior, que possui membros já conhecidos pelos cientistas. Disponível em:
https://saude.abril.com.br/medicina/as-diferencas-e-semelhancas-entre-o-sars-cov-2-e-outros-coronavirus/.
Acesso em: 20 abr. 2021.
31

Contudo, aprendo cotidianamente em meu fazer geográfico que ser quilombola ou


aquilombar-se é pautar trajetórias de lutas e reafirmar-se no território cearense. Constituo-me,
então, uma professora pesquisadora em processo de aquilombamento geográfico,
desenvolvendo estudos, práticas e parcerias de reconhecimento e de valorização em ser negra
no Ceará
Algumas consequências da pandemia estão materializadas no trabalho, como a
realização de visitas às instituições com agendamento e tempo limitado para manuseio dos
arquivos; a mudança da área de pesquisa; a realização dos trabalhos de campo, porque os
municípios a serem visitados encontravam-se em isolamento social; a escolha das pessoas a
serem entrevistadas virtualmente, pois nem todos possuem o acesso à internet; a inserção de
ferramentas virtuais no diálogo com os quilombolas; o repensar dos mapeamentos quilombolas
diante dos trabalhos de campo impactados pela pandemia; não conseguir percorrer todos os
territórios quilombolas do município de Tamboril; a realização de trabalhos de campo com
distanciamento social, uso de máscara e higienização das mãos; apresentar os objetivos da
pesquisa de forma individualizada junto aos residentes e lideranças quilombolas, entre outros.
Por fim, considerei neste processo, a decisão de alguns moradores das comunidades que se
recusaram a me receber, presencialmente, por conta da pandemia.
No processo de atuação docente, técnica e mulher negra, surge o tema da pesquisa:
Quilombos dos Sertões de Crateús- CE: ancestralidades, lutas e territórios. Neste contexto o
território é a categoria de estudo por refletir formas de uso e ocupação do espaço (SOUZA,
2013), mediadas por relações de poder (RAFFESTIN, 1993), recursos naturais e, ainda, marcas
simbólicas que delimitam a extensão dos espaços a serem evidenciados.
O território quilombola me faz perceber as contradições, os conflitos, as lutas por
direitos e a diversidade étnica e cultural, no qual enxergo também a minha ancestralidade negra,
sertaneja e cearense. Acredito que a pesquisa contribui para o aquilombamento nos diversos
espaços em que transito e atuo, evidenciando o quilombo.
Assim, me coloco em escuta e diálogo sobre a agenda pautada pelo que considero,
a partir dos conceitos da Geografia, que o movimento quilombola é socioterritorial na medida
em que possui uma marca territorial. Devido a negação ou violação de direitos básicos a
sobrevivência dos povos quilombolas, o movimento articula as ocupações nos territórios, ou
seja, é a principal estratégia de sua resistência.
32

Diante deste panorama as questões que me auxiliam na compreensão das relações


entre o povo quilombola, o território e a luta pela terra, os marcadores presentes no cotidiano e
a ancestralidade, baseiam-se nos seguintes contextos:
a) Geohistórico: De que forma a presença africana e afro-brasileira no território
cearense marcou o século XIX e se materializou na hierarquização racial , nas
heranças ancestrais e na formação socioespacial dos territórios quilombolas do
Ceará do século XXI?
b) Dos movimentos negro e quilombola: Como se organiza a luta negra e
quilombola? Quais marcadores ancestrais estão presentes na reafirmação de seus
direitos no Ceará?
c) Da ancestralidade: De que forma os marcadores das africanidades atravessam
trajetórias sertanejas, negras e quilombolas?
Na busca de respostas às questões, elenquei os objetivos a seguir:

1. 1 Objetivos

Objetivo geral:

Discutir e defender o direito ao território dos povos quilombolas rurais, na formação


socioterritorial do Ceará, através das nossas culturas ancestrais no Estado.

Objetivos específicos:

a) Debater e espacializar a presença do povo negro no território cearense,


demarcando registros do século XVIII e XIX da ancestralidade afro-diaspórica
cearense;
b) Argumentar a existência de quizilas e éjós nas relações raciais nas encruzilhadas
dos sertões;
c) Discutir os ébos da resistência negra e quilombola, ressaltando aspectos
mobilizadores dos movimentos negro e quilombola no Ceará.
d) Defender os territórios quilombolas, suas lutas, ancestralidades e a sua
formação, a partir da formação socioespacial cearense.
33

1.2 Encruzando os capítulos

A estrutura do trabalho seguiu uma concepção SANKOFA de pesquisa. Sankofa12


é um dos adinkras, ou seja, um conjunto de ideogramas que compõem as escritas dos povos
voltar e recolher o que ficou para
trás. (LOPES, 2011; NASCIMENTO, 2003). O passado é ancestral sendo uma questão
presente ao longo do trabalho e fortalece o entendimento do contexto atual. Retorno às minhas
origens, assim como retorno às origens da diáspora africana no Ceará e das famílias
quilombolas. Entendi a origem do meu nome, assim como busquei entender as origens das
toponímias antigas do Ceará, de Tamboril e das toponímias quilombolas. Revelei identidades e
trajetórias negras de outrora que foram camufladas e apagadas. Ressaltei heranças
afrodiaspóricas constantemente sufocadas que resistiram a partir das formas de mobilização e
articulação social, bem como de políticas identificadas. Estas e outras considerações e levaram
a refletir sobre o Ceará de hoje me remetendo ao que parece ter ficado no ontem, mas que na
verdade ainda nos cercam de todos os lados. Desse modo, estruturei este trabalho nos capítulos
a seguir:
No capítulo 01, Introdução, destaco o meu reconhecimento e pertencimento
afroancestral, as questões iniciais, os objetivos e o encruzamento dos capítulos.
No capítulo 02, Caminhos da pesquisa, sinalizo o convite ao aquilombamento
geográfico, científico, individual e coletivo, tendo como referência as pesquisadoras negras
geógrafas e de outras áreas do conhecimento, no entendimento das concepções da palavra
quilombo no Brasil, na África e na Geografia. Discuto os conceitos de marcadores das
africanidades, território, territorialidade e movimento socioterritorial. Por fim, ressalto as etapas
percorridas e os procedimentos metodológicos da pesquisa.
No capítulo 03, O povo negro nas encruzilhadas sertanejas do Ceará, objetivo
reconstruir a diáspora africana no território cearense, ressaltando os caminhos da presença negra
nas vilas cearenses no período de escravização. Na continuidade, discuto as relações raciais
quizilentas e ejozentas entre as classes sociais, elencando contradições, principalmente, em
relação à propriedade da Terra. Identifico os ejós e a quizila da construção embranquecida de

12
Sanko = voltar; fa = buscar, trazer, ou seja, é trazer o passado ressignificado para o entendimento e a valorização
do conquistamos no presente. E ainda possibilitar projeções para o futuro (LOPES, 2011; NASCIMENTO,
2003).
34

uma falsa liberdade pelas sociedades libertadoras, pela imprensa e nos livros de pesquisadores
cearenses. Os ejós da falsa liberdade são apontados em torno do dia 25 de março, considerada
a Data Magna13 representativa da libertação dos escravizados no território.
De igual modo, reflito sobre as relações do movimento negro com o surgimento do
movimento socioterritorial quilombola. Destaco os diferentes ebós dos movimentos negro e
socioterritorial quilombola, na luta pela construção identitária de ser negra/negro no Ceará e na
reafirmação de direitos (Terra, Educação, Saúde, entre outros), que compõe a agenda e as
conquistas dos movimentos socioterritoriais.
No capítulo 04, Territórios Quilombolas nos Sertões de Crateús Ceará, o
ponto de partida é a caracterização da presença negra do ontem e do hoje na microrregião dos
Sertões de Crateús. Em seguida, elenquei os principais marcadores das africanidades no
contexto do município de Tamboril. A geografização dos três territórios quilombolas sertanejos,
ocorreu a partir das fontes primárias e secundárias sobre as toponímias quilombolas, as suas
linhagens ancestrais e os sucessivos deslocamentos na formação dos territórios, bem como a
relação dos povos com a terra-território em suas formas de ser e existir quilombola.
No capítulo 05, Considerações finais, apresento uma síntese do percurso da
pesquisa e as possibilidades de continuidade e aprofundamento da temática. Por fim, acrescentei
as referências, os apêndices e os anexos da pesquisa.

13
Estabelecida via Emenda Constitucional n0 73, de 10 de dezembro de 2012 acrescentada ao parágrafo único do
Art. 18 da Constituição Estadual do Ceará.
35

2 CAMINHOS DA PESQUISA

(AGNÈS VARDA,
2019\2020).14

Os processos de elaboração e efetivação da pesquisa são análogos ao processo de


preparação de um filme. A inspiração, ou a razão pela qual Agnès Varda realiza os seus filmes,
por exemplo, equivale à justificativa e/ou importância, aos objetivos e ao objeto de estudo da
pesquisa. A criação, segundo ela, é o roteiro a ser seguido no filme.
Esse roteiro representa a maneira pela qual construí as etapas e a escrita geográfica,
isto é, a escolha do método e da metodologia, das referências e dos conceitos. A partilha,
segundo a cineasta, é o público que assiste aos seus filmes, igualmente presente nos resultados
da investigação. A partilha representa os sujeitos históricos da pesquisa com quem conversei e
as demais pessoas envolvidas na produção de conhecimento e o público em geral.
De acordo com a cineasta as pessoas são o coração do seu trabalho e ao gravar os
filmes ela indica o caminho escolhido. Essa concepção me permite afirmar que as trajetórias,
as narrativas e os percursos do povo negro e quilombola são o coração do meu trabalho.
Representam o caminho que escolhi desde os objetivos, passando pela construção teórica, os
trabalhos de campo e a escrita de cada capítulo, tornando compreensiva a realidade pesquisada.

conhecimentos, leis e prin


Partindo-se das interações entre a teoria e a prática da pesquisa, considero a dimensão histórico-
cultural dos povos, buscando refletir sobre a presença negra e quilombola nos sertões.
A prática, segundo Demo (2004, p. 79), é condição de historicidade da teoria: caso
sa prática em que acredito decorre, também, do meu
posicionamento político-ideológico. Enxergo a relevância social da temática com a produção
de conhecimento a serviço da participação e dos interesses populares, na perspectiva de
conhecer e atuar na transformação da realidade (GABARRÓN; LANDA, 2006).
Trata-se de uma investigação que considera as subjetividades, as individualidades,
as particularidades, as contradições, as ambiguidades de forma complexa e desafiadora diante
dos cenários estudados, das narrativas escutadas e das realidades contraditórias e historicamente

14
Documentário Agnés Varda. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PFJ5uNMrfqQ. Acesso em:
10 jan. 2020.
36

superáveis (DEMO, 2004). Além disso, penso sobre as coexistências na perspectiva espacial
dos territórios quilombolas (SANTOS, 2017).
De acordo com Spósito (2004, p.
elaboração teórica do
Entendo que todo conceito possui uma natureza política, assim como todo campo do saber está
envolto em relações de poder (HAESBAERT, 2011). Em minhas reflexões, os conceitos
permitiram revelar marcas espaciais não só do passado, mas também, do presente e do futuro.
Ao problematizar as ancestralidades, as relações raciais e as classes sociais que
marcam o Ceará do passado e do presente, me refiro a formação socioterritorial. De igual modo,
enfatizo as relações que envolvem questões de caráter mais simbólico e cultural, como o
pertencimento negro e quilombola, bem como os movimentos negro e quilombola e a
construção identitária nos territórios quilombolas. A categoria território se junta aos conceitos
de quilombo, marcadores das africanidades e de movimentos socioespaciais e socioterritoriais
que se cruzam, se interpenetram e se sobrepõem a outros correlacionados.
Esta rede conceitual integrada possibilita enxergar uma teoria e uma prática. Ambas
convergem para o entendimento da realidade e das suas contradições, com base nos conceitos
destacados. Ferreira (2014 p. 63), pontua as relações teórico-práticas e as relações entre a vida
acadêmica e a vida cotidiana, afirmando que:

Academia e teoria atuam no mundo abstrato, da mente, do universo olímpico, o


cotidiano é a prática no mundo concreto, do corpo, da experiência e do universo.
Verifica-se, então, a impossibilidade de separar a vida acadêmica com suas abstrações
teóricas, da vida cotidiana, com sua prática e experiências vividas. (FERREIRA,
2014, p. 63).

Em minha busca acadêmica, a prática científica é voltada ao compromisso com a


construção do conhecimento e ao engajamento na questão racial. Inspiro-me, também, nas
palavras de Beatriz Nascimento, ao afirmar que em suas pesquisas sobre os quilombos
brasileiros, além de enfatizar a resistência e a sobrevivência é fundamental destacar a
continuidade histórica do povo negro (RATTS, 2006).
Para Demo (2004, p.
afirmar, confirmar, constatar, verificar, dizer Assim, recuso a neutralidade científica bem
como a elaboração de discursos contemplativos do povo negro e quilombola. Questiono os
dados oficiais e os registros históricos que enfatizam a hierarquização das raças com fins
políticos de dominação no Ceará. Ademais, optei por revelar os caminhos da pesquisa, os fatos,
37

os fenômenos, as memórias, os conflitos, outras narrativas, os significados das lutas coletivas e


os mapeamentos.
Nesta trajetória, a minha relação com o território e com os sujeitos da pesquisa é
dialógica, na construção e na realização das etapas buscando a análise-síntese-análise
geohistórica dos territórios quilombolas localizados na mesorregião dos sertões semiáridos
cearenses. Compreendo que o
visto como dialético, não como desenho estático. Neste contexto, optei
por destacar o meu povo, a sua trajetória e cultura historicamente negadas, silenciadas e
camufladas.
Constituem-se em inspirações para este trabalho as seguintes referências: Spósito
(2004); Gabarrón e Landa (2006); Ferreira (2014); Ratts (2006); Petit e Silva (2011); Demo
(2004); Godoi (1999); Brandão (1999); Rodrigues (2007); Denzin e Lincoln (2006); Rodrigues
(2007); Eco (1977), entre outros. Neste processo de construção teórico-prática, os aprendizados
foram mútuos na relação pesquisadora e sujeitos quilombolas, construída ao longo das etapas
de elaboração desta tese.
A definição da realidade pesquisada, dos sujeitos e das técnicas e instrumentos de
pesquisa constituíram esta primeira etapa. Diante dos diversos quilombos presentes no Ceará,
optei por enfatizar 03 (três) territórios quilombolas da região dos sertões semiáridos cearenses,
especificamente, nos Sertões de Crateús, abrangendo, o município de Tamboril que dista 297
km de Fortaleza.
Os dados de pesquisa advêm de fontes primárias e secundárias, além de fontes orais.
Utilizei dados subjetivos (das entrevistas) e objetivos (populacionais, extensão do território,
formas de uso da terra) combinados diante destas fontes. Considero, portanto,
o ambiente de aprendizagem, porque implica na reconstrução do conhecimento e sua
politicidade. , p. 113).
Analisei os relatórios antropológicos; espacializei dados demográficos do século
XIX e XXI; questionei registros oficiais sobre o 25 de março; caracterizei narrativas
quilombolas sertanejas; articulei registros visuais, técnicas de entrevistas e especializei dados
em mapeamentos; participei de rodas de conversa com as comunidades em 2022, conheci
histórias de vida e realizei a observação do cotidiano quilombola tamborilense nos 2 (dois)
trabalhos de campo realizados.
Portanto, o meu aquilombamento geográfico individual e coletivo baseia-se no
campo de possibilidades que as encruzilhadas apresentaram a cada escolha. Nesse contexto, o
38

autorreconhecer-se negra, de família pobre e sertaneja em que a figura feminina marcou a minha
formação como pessoa, denota a ênfase dada a ancestralidade, enquanto conceito pretagógico,
que conduz a minha jornada pela pesquisa.
Ao longo do percurso, alguns dos ensinamentos e princípios da Pretagogia me
atravessam e estão imbricados no percurso teórico-metodológico, são eles:

O autorreconhecer-se afrodescendente: assumindo uma postura afirmativa e


lembrando sempre a importância da raiz africana para a nossa construção como
pessoa;
A apropriação da ancestralidade, pois fazemos parte de linhagens que envolvem os
antepassados e os mortos. Implica, sobretudo, em valorizar os antepassados, a história
dos mais velhos e o aprendizado dos seus ensinamentos; é ainda o que fornece uma
identidade coletiva, propiciando um sentimento de pertencimento;
A tradição oral: valorizando o conhecimento que é repassado por meio da oralidade,
todas as formas de fala e vibração dos seres da natureza com as linguagens [...]. A
tradição oral reforça a interação com os elementos da natureza, os objetos simbólicos
e a coletividade enquanto corpo comunitário, passando pelo sentimento de tribo;
O entendimento da noção de território enquanto espaço-tempo socialmente
construído e perpassado da história de várias gerações e formado por uma complexa
rede de relações sociais, sendo este espaço perpassado pela sacralidade;
O reconhecimento e o entendimento do lugar social historicamente atribuído ao
negro, percebendo como o racismo está estruturalmente imbricado nas relações
sociais, políticas e econômicas da sociedade brasileira, recharçando a falácia da
democracia racial. (PETIT; SILVA, 2011, p. 84-87, grifos no original).

Estes princípios e ensinamentos reforçam as escolhas teórico-metodológicas que


conduzem a minha narrativa enquanto pesquisadora e o diálogo com os sujeitos, tornando-os
partícipes do processo de pesquisa.
A Pretagogia foi pensada para a formação docente na perspectiva afrocentrada.
Entendo que esse referencial resguarda elementos da cosmovisão africana, conecta-se
intimamente aos territórios quilombolas, tendo como centralidade o autoreconhecer-se
afrodescendente e quilombola, ou seja, a construção identitária de um grupo.

dinâmico, constituído em um contexto histórico-social, sendo continuamente baseada em


identificadores culturais e h Esse entendimento me fez buscar
nas diversas narrativas orais e escritas, os aspectos simbólicos (heranças culturais, saberes,
lugares e guardiões da memória) e territoriais (caminhos, demarcação, representação e
mapeamento), dos modos de ser e viver nos quilombos sertanejos do município de Tamboril.
Assim como a minha chegança aos territórios quilombolas de Tamboril ocorreu em
conexão com a presença negra na formação socioterritorial do Ceará, aliada à organização
social e política do movimento negro e ao movimento socioterritorial quilombola. Assim, a
caracterização de marcadores das africanidades que nos atravessam e demarcam o cotidiano e
39

das narrativas quilombolas é um modo de entender a ancestralidade africana que nos compõe,
tendo em vista que a identidade negra é uma construção processual que se inicia em nossa
relação com a África (NASCIMENTO, 2012).
Para tanto, me baseio na tradição oral africana que, conforme Hampaté Ba (2010,
p. 169),
Ela é ao mesmo tempo religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história,
Outra referência foi Petit (2015), que ressaltou alguns aspectos da
tradição oral africana relacionados a fala como força vital, como vibração que produz ritmo e
música, como forma de aprendizagem ou ainda como iniciação, entre outros.
A tradição oral é um dos princípios mais relevantes da Pretagogia, revela os modos
de vida no quilombo, se assemelha ao conceito de territorialidade quilombola, marcada por uma
identidade de ser e existir. Segundo Petit (2015, p. 110), em relação à cosmovisão africana e à
tradição oral africana:

[...] sabemos que, por motivos históricos de desvalorização do ser negro/a, elas não
são ensinadas na escola formal do Brasil. Seus valores são repassados explicitamente
ou não, de modo mais comum na família, nas práticas religiosas, nas práticas de
solidariedade, entre grupos comunitários, em práticas de artes tradicionais (diversas
artesanias), nas festas populares e em toda sorte de brincadeiras que envolvem o
coletivo.

A tradição oral se junta ao conceito pretagógico do pertencimento e ambos


destacam a construção e a reafirmação de nossa identidade racial e de classe por meio das
vivências representativas do povo negro e quilombola do Ceará.
Tradição oral e pertencimento se aliam a ancestralidade, ou seja, ao entendimento
do nosso passado que revela nossas origens e linhagens biológicas e simbólicas, assim como
nos conduz ao presente e ao futuro, conforme a cosmovisão de mundo africana (PETIT, 2015).
Nessa perspectiva, eu parti da minha linhagem ancestral, enfatizei alguns caminhos da diáspora
africana no Ceará do século XIX e caracterizei as linhagens ancestrais quilombolas de
Tamboril.
Diante dessa rede conceitual, enxergo as identidades raciais do povo negro e
quilombola, as quais foram determinadas no passado tão somente nas variações de coloração
cutânea definidora de raças humanas, criticadas por Paixão e Carvano (2008, p. 66),
são, cientificamente, uma construção social e devem ser estudadas por um ramo próprio da
sociologia ou das ciências sociais, que trata das identidades sociais. Estamos, assim, no campo
PAIXÃO; CARVANO, 2008, p. 66).
40

O percurso deste estudo é atravessado pelos grupos populacionais recenseados no


Ceará do século XIX e baseou-se nas seguintes referências: Souza (2017), sobre os negros e
mulatos que se tornaram senhores de cabedais na Ribeira do Acaraú, no período de 1709 a
1822; Silva (2011), que revelou a história da escravidão no Ceará, partindo dos últimos anos
do século XVII até o final do século XIX; Riedel (1988), que enfatizou aspectos antropológicos,
culturais e étnicos do escravo negro no Ceará; Girão (1956), que tratou da abolição no Ceará e
Funes (2002), que destacou a significativa presença dos negros, livres e cativos no processo
histórico cearense.
Cabe ressaltar, ainda, os estudos de Anjos (2006, 2011a, 2011b, 2013), sobre a
geopolítica da diáspora africana e a constituição de territórios étnicos e quilombolas; de
Munanga (1996, 2001), sobre as origens do quilombo africano e brasileiro; e Reidel (1988),
sobre a antropologia do escravo no Ceará. Os ciclos de escravização são discutidos com âncora
em Verger (1987), Anjos (2011b, 2013) e Gomes (2019), identificando algumas origens dos
escravizados africanos que chegaram nas províncias brasileiras.
Além das referências citadas, foram basilares para o entendimento da distribuição
territorial da população negra livre e escravizada do Ceará, os trabalhos de Paixão e Carvano
(2008), sobre a variável cor ou raça nos sistemas censitários brasileiros; Guimarães (2008), em
relação à raça, cor e outros conceitos analíticos; Pontes (2010), que sublinhou o percurso de
fragmentação do território em unidades político-administrativas tais como as antigas vilas e
paroquias que configuram os municípios cearenses; Batista (2011), que identifica a toponímia
cearense do século XIX e Brasil (1872), que contém o recenseamento da Província do Ceará.
Nascimento (2021, p. 36) considera ser a identidade negra:

[...] um processo dinâmico, constituído em um contexto histórico-social, sendo


continuamente baseada em identificadores culturais e históricos de matrizes africanas.
Eu acrescento ainda que a identidade negra se configura em um posicionamento
político e que os repertórios culturais sejam eles adquiridos, percebidos, reelaborados
enquanto fenômeno familiar, no movimento negro ou em outros lugares de
convivência social. São valores que se constituem em elementos essenciais na
atribuição positiva da identidade negra.

A identidade, assim como a raça, é construção social e resulta de contextos


geográficos carregados de elementos históricos. Nesse processo de construção identitária do
século XIX, verifico nos levantamentos populacionais estudados a raça enquanto categoria
biológica. Esse aspecto determinou as representações da África e dos seus descendentes no
Ceará como sendo ideologicamente inferiorizados, o que denota a tentativa de apagamento e de
dominação política e cultural do povo negro da formação populacional cearense.
41

Na perspectiva de entendimento dessa construção identitária e, ao mesmo tempo,


de enfatizar a nossa ancestralidade africana e afro-brasileira a partir da identificação dos grupos
populacionais que compunham o Ceará do século XIX em minhas análises, aponto distorções
que devem ser destacadas. A seguir, apresento o Quadro 01 contendo a classificação racial
presente nos levantamentos populacionais do Ceará referentes ao século XIX:

Quadro 1 Grupos populacionais presentes nos levantamentos populacionais do Ceará no


século XIX

Ano Grupos populacionais


1804 Brancos, pretos e pardos livres e pretos
e pardos cativos.
1808 Brancos, índios, pretos e mulatos.
1813 Brancos, pretos cativos livre e mulatos
cativos livres.
1872 Brancos, pardos, pretos e caboclos.
Fonte: Silva (2011); Riedel (1988); Pinheiro (2008); Funes (2002); Sobrinho (2011) e Brasil (1872).

Designei a população negra como sendo a junção dos quantitativos referentes às


categorias pretos, pardos, mulatos e mestiços que aparecem nos levantamentos. Entendo que
esse princípio parte de referências em estudos sobre a questão racial. Portanto, a junção desses
componentes poderá evitar uma sub-representação da população africana e afrodescendente no
Ceará do século XIX.
Entendo a complexidade e a diversidade da fronteira racial representada no grupo
, uma vez que pode designar um grande número de indígenas, caboclos, mulatos e
mestiços compondo estes dados (PAIXÃO; CARVANO, 2008). Compreendo ainda que,
conforme os manuais do século XVIII basilares aos levantamentos, o
o índio nascido da relação, muitas vezes não consentida15, entre um branco uma índia ou entre
um índio e uma branca. sentam essas lacunas
das relações violentas e não consentida entre brancos e negros. (MUNANGA, 2020, p. 26,
grifos meus).
Sobre os indígenas, cabe aqui reconhecer que enfrentaram e enfrentam
apagamentos históricos e racismo sob forte violência, principalmente, por parte do Estado

15
Grifo para ressaltar a relação racial construída entre esses grupos populacionais.
42

brasileiro. Contudo, não há como ampliar o leque de discussão sobre os dados de população
indígena por não ser esse o foco da pesquisa.
Sobre esse assunto, Lopes (2011) destaca contradições e desencontros nas formas

, e o senso comum utiliza em sua autodefinição um leque de expressões que

respinga na construção da identidade racial que cada sujeito social constrói ao longo da vida.
De todo modo, analisei a junção de pretos e pardos livres e cativos nos dados de
1804. Nos anos de 1808 e 1813 ocorreu a junção entre pretos e mulatos para representar a
população negra. Considero que nestes anos (1808 e 1813), os dados podem apresentar
distorções, tendo em vista às dificuldades de encontrar termos que representassem a diversidade
da população e, com isso, evitassem ambiguidades e contradições determinantes na
classificação racial de inúmeros ancestrais recenseados nestes levantamentos.
O ano de 1872 foi marcado pelo Censo que abrangeu um número maior de vilas
cearenses, o que permitiu uma análise mais abrangente. Entretanto, observei a presença do
ionais que, possivelmente, reforça o apagamento
dos povos indígenas do Ceará. De todo modo, ocorreu a junção de pardos e pretos para as
análises do ano de 1872 e a espacialização da população negra.
Portanto, identifiquei a população negra nos levantamentos sendo que cada cenário
foi representado em gráficos e mapas, utilizando o programa Excel. Trata-se de dados
secundários mencionados nos trabalhos de Silva (2011), Riedel (1988), Pinheiro (2008), Funes
(2002) e Sobrinho (2011) que foram ressignificados nesta pesquisa.
Das características dos levantamentos, o primeiro foi realizado no ano de 1804
abrangendo 09 (nove) de 12 (doze) vilas existentes; em 1808, realizou-se o segundo
levantamento que abrangeu 14 (quatorze) vilas; e o terceiro, no ano de 1813, apresentou dados
parciais de 07 (sete) vilas que foram recenseadas sendo, por último, o levantamento de 1872,
no qual analisei as 16 (dezesseis) vilas que registraram população negra acima de 6.000
habitantes. Destaquei, ainda, os percentuais da população negra em cada cenário diante do total
demográfico absoluto.
Em relação à população negra no contexto regional dos Sertões de Crateús, essa foi
destacada segundo os dados parciais. E, tendo em vista ausências nos levantamentos de 1804 e
1813, optei por enfatizar dados do Censo de 1872. Na análise, a principal referência territorial
43

foi a vila mais antiga nas proximidades dessa região denominada, atualmente, de Guaraciaba
do Norte. Para tanto, destaquei os quantitativos de pretos e pardos presentes no levantamento
das antigas vilas de Ipú, Tamboril e Santa Quitéria, além de outras pertencentes ao Piauí, à
época. Dessa forma, detectei um esboço regional e populacional negro no século XIX.
Para a espacialização desses dados populacionais em mapas, busquei os trabalhos
de Anjos (2004, 2011a, 2011b); Seemann (2011); Marques (2009b); Marques (2011); Carvalho
(2020), entre outros. Sobre esse assunto, Seemann (2011) afirma que o mapa tem as seguintes
funções: cognitiva (amplia o conhecimento espacial), comunicativa (amplia o conhecimento
para o leitor do mapa) e de suporte à tomada de decisões (norteia ações espaciais e de gestão
territorial). Considero, portanto, essa ferramenta geográfica viável ao entendimento da presença
e da diáspora africana, de seus descendentes.
Ratts (2016, p. 10) afirma que a étnica e racial, brasileira e
cearense, está sendo redesenhado nos tempos atuais As técnicas cartográficas contribuem para
traçar e destacar espacialidades do passado, assim como para elaborar diagnóstico do presente
e projetar espacialmente o futuro, como forma de visualizar fronteiras e limites, de localizar
elementos sociais e naturais considerados identitários dos povos negros e quilombolas. Entendo
que a configuração dos territórios quilombolas, caracterizada nos mapeamentos, torna-se um
instrumento de reafirmação do poder das comunidades na autogestão do seu território.
Em relação à análise dos dados e à representação da ancestralidade africana
cearense em mapas gerais, optei por algumas escolhas:
a) Para destacar a concentração populacional negra nas vilas coloniais elaborei os
gráficos correspondentes a cada cenário estudado. No panorama das primeiras
16 vilas do território cearense com suas fronteiras, a cartografia utilizada é do
período de 1699 a 1822 no Ceará, a qual demonstra vilas próximas as bacias
hidrográficas do Ceará, seguindo a lógica da distribuição sesmarial ocorrida
desde o século XVII. Compreendo a importância das fontes de água na formação
socioespacial do território cearense (SOUZA, 2017);
b) Os gráficos e as figuras dos cenários populacionais de 1804 e de 1813
abrangeram as vilas com população negra acima de 2000 habitantes. Em 1808,
destaquei as vilas que obtiveram população negra acima de 1000 habitantes. E
no recenseamento de 1872 analisei e espacializei as vilas com população negra
acima de 6000 habitantes, ou seja, as 16 vilas mais populosas foram analisadas
44

em 1872. Trata-se de um critério que possibilita representar a concentração


populacional negra cearense;
c) Nas figuras que retratam a distribuição da população negra livre e escravizada na
Província do Ceará do século XIX, utilizei as coordenadas geográficas do Ceará
para localizar cada vila ou município. Estas, foram associados a tabela de dados
populacionais. Apliquei a função de gráfico em formato de pizza no Excel, com
a imagem e as coordenadas geográficas inseridas, a fim de localizar os
quantitativos e a distribuição do povo negro no território cearense;
d) Ao espacializar os dados, resguardei a toponímia e a cartografia do Ceará do
período estudado. Utilizei os topônimos antigos (vila/município), seguidos dos
topônimos atuais entre parênteses das vilas do Ceará;
e) A espacialização da população nos anos de 1804, 1808 e 1813 tem uma base
cartográfica disponível em Pontes (2010). Na representação da população negra
em 1872, a cartografia representa a divisão territorial das 50 vilas do Ceará
disponível em Barboza (2013).
O outro caminho da pesquisa enveredou na continuidade do entendimento das
vivências negras, das relações raciais e de classe do século XIX no Ceará, até a minha
chegança aos quilombos de Tamboril, Ceará.
Ao realizar a primeira visita de campo, em novembro de 2020, ao Instituto
Histórico, Antropológico e Geográfico do Ceará (IHAG-CE) em Fortaleza, busquei dados em
fontes históricas do século XIX e início do século XX, sobre os contextos de lutas e resistências
do povo negro, em 02 (dois) contextos distintos. Assim, consultei e analisei as edições do Jornal
O Libertador de 1884, e do Jornal O Nordeste de 1934, a fim de conceber a narrativa propalada
em torno do percurso libertário cearense.
Diante desses estudos, refleti sobre o lugar social historicamente atribuído ao negro
cearense. Desse modo, estabeleci três cenários celebrativos da falsa liberdade que os opressores
construíram nesse ato político libertário em atendimento de seus próprios interesses. O primeiro
refere-se ao ano de 1884, ano em que ocorreu a abolição embranquecida no Ceará. O segundo
é o ano de 1934, que marcou as celebrações do cinquentenário dessa abolição, e o ano de 1984,
que representou o centenário da abolição.
Destaquei os ejós presentes nos registros de diferentes jornais comparando os
discursos celebrativos e os significados destes para a sociedade cearense. Em seguida, comparei
os discursos na construção da memória celebrativa em torno do centenário da abolição,
45

apresentando a visão de Abdias do Nascimento sobre aquele 25 de março de 1984. Defendo o


25 de março protagonizado pelo povo negro em suas festas, tendo o maracatu como um dos
principais símbolos da festa libertária no Ceará.

na vivência da exploração disseminada nos aspectos econômicos, políticos, ambientais e


culturais do cotidiano que permite o fazer- PEDON, 2013, p. 66). Uma outra razão

o Estado para que este produza, forneça e garanta políticas que ajudem a suprir as carências que

2008, p. 112).
Segundo Baiocchi (1999), a história brasileira registra apenas dois movimentos
sociais que se ampliaram em todo o território nacional e tornaram-se permanente: o Movimento
pela independência do Brasil (1822), de caráter burguês e o Movimento Quilombola, que se
inicia no século XVII com o quilombo de Palmares. Este último fechou um dos ciclos de lutas
nas últimas décadas do século XIX, com a abolição da escravatura (1888) e os testemunhos
históricos chegam até os dias de hoje.
Segundo Guimarães (1996), a classe escrava destaca-se por sua rebeldia. O
escravizado é um sujeito histórico, agente na luta de classes que resistiu ao capitalismo e as
opressões desde o início da escravização no Brasil. Portanto, os movimentos negro e
quilombola resultam dessa resistência, rebeldia e revolta contra os processos históricos que
excluíram e oprimiram o povo africano e seus descendentes no Ceará.
Ao reconhecer e entender o lugar do negro historicamente na sociedade, identifico
a resistência como sendo uma marca ancestral e contra-hegemônica negro-africana. São as
resistências quilombolas e os coletivos negros urbanos e rurais que trazem à tona, nos séculos
XIX, XX e XXI, as vozes, as trajetórias, as manifestações culturais e as lutas. Reis e Gomes
(1996) enfatizam que o povo negro resistiu nas mais diversas partes do Brasil. Apresentam
estudos sobre o fenômeno do aquilombamento e as rupturas na estrutura escravista da sociedade
brasileira.
A militância negra, historicamente, se constituiu, inicialmente, nos quilombos pois
ação
dos valores sociais e culturais dos africanos e seus descendentes em todas as partes nas quais a
sociedade latifundiário-
46

Diferentemente das simples manifestações coletivas, os movimentos sociais


possuem uma trajetória que se inicia na identificação de um problema e de sua origem como
resultado das contradições sociais (PEDON, 2013).
Como forma de caracterizar a continuidade de lutas recentes dos povos afro-
descendentes, me refiro ao movimento negro , destacando um conjunto de grupos que se
organizaram social e politicamente pelo reconhecimento e valorização das suas matrizes,
culturais africanas (FERREIRA, 2004; NASCIMENTO, 2012). E, a principal marca destas
coletividades em luta no Ceará é o combate aos racismos impetrados e sofridos, essencialmente,
na cidade. Os registros da trajetória do movimento negro me permitiram identificar e refletir
sobre as influências religiosas, acadêmicas e políticas que constituíram esse movimento, além
de enxergar o seu diálogo com os quilombos.
As mobilizações negras no Ceará ocorreram no início da década de 1980, a partir
das ações do movimento negro predominantemente católico e urbano que contribuiu para a
formação do movimento socioterritorial quilombola cearense, brotado, mais recentemente, no
século XXI. Esse recorte se justifica por constituir o tempo da efervescência nacional
mobilizatória do povo negro.
Ressalto os momentos históricos da mobilização negra com a fundação do Grupo
de União e Consciência Negra (GRUCON), a formação do subgrupo de Agente de Pastoral
Negros (APN´s), além da realização do Projeto Agrupamentos Negros (PAN), como forma de
elencar o protagonismo negro na história recente do Ceará.
Além disso, refiro-me ao movimento socioterritorial quilombola como sendo uma
mobilização que possui os seguintes elementos constituidores: a organização com escalas
distintas de alcance das ações do movimento, os valores relacionados à bandeira de luta e
articulação (expressos na agenda) e à ação pautada na crítica (ocupação e prática
reinvindicatória) (PEDON, 2013).
Busco refletir sobre a problemática da luta quilombola realizada por várias gerações
OUZA
2008, p. 104). O movimento social quilombola pode ser considerado, com base em Fernandes
(2005) e Pedon (2013), um movimento socioterritorial. Embora estes autores tenham abordado
outros movimentos sociais, utilizo suas concepções para afirmar que o movimento
socioterritorial quilombola surge no contexto da exclusão de terras e da violação de direitos dos
coletivos negros que, por sua vez, utilizam a ocupação territorial como estratégia de resistência.
(PEDON, 2013). Para aquele autor, a abordagem socioterritorial compreende um conjunto
47

maior de questões que envolvem o desenvolvimento da sociedade e sua relação com o território
(PEDON, 2013).
Acredito que é na luta pela reafirmação de direitos, que podemos trilhar caminhos
na construção da sociedade antirracista e que valorize os ancestrais do quilombo. Para tanto,
ressalto alguns aspectos da articulação quilombola em âmbito estadual, utilizando além de
fontes documentais, as entrevistas e palestras públicas de lideranças dos movimentos, a fim de
entender os percursos e as pautas de lutas. A análise das falas de integrantes dos movimentos
possibilitou a compreensão da articulação dos movimentos negro e quilombola do Ceará.
Devido a incompatibilidades de agendas das lideranças das entidades
representativas da CONAQ e da CERQUICE no Ceará, não foram realizadas entrevistas
individuais virtuais, nem presenciais com as lideranças do movimento. Optei por retratar falas
públicas de quilombolas que integram o movimento em âmbito nacional, como Givânia Maria
da CONAQ, assim como em âmbito estadual a fala de Aurila Maria da CONAQ/CERQUICE
do Ceará e o senhor Renato Ferreira dos Santos (Renato Baiano) da CERQUICE. O intuito foi
compreender as articulações que ampliaram o alcance do movimento socioterritorial
quilombola cearense no período de 2000 a 2020.
Os problemas da desigualdade racial e da concentração fundiária na sociedade
brasileira são contestados junto ao Estado com a mobilização coletiva no quilombo
-chave na construção
histórica do país, hoje dialoga com antagonismos distintos dos séculos anteriores, o que
pressupõe novas
movimento é pressionar o Poder Público pela execução de políticas públicas de reconhecimento
dos direitos quilombolas pelas instituições estatais.
O princípio pretagógico de território se insere nessa rede conceitual (ancestralidade,
pertencimento, tradição oral, lugar social do negro, movimento negro e quilombola), enquanto
espaço-tempo socialmente construído e perpassado da história de várias gerações formando
uma complexa rede de relações sociais. Os recortes territoriais e escalares possibilitaram o
entendimento geográfico da presença negra no Ceará, nos sertões de Crateús, no município de
Tamboril e nos quilombos Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras, Brutos e Barriguda,
buscando olhar o passado para construir subsídios ao entendimento do presente.
A denominação de Comunidades Remanescentes de Quilombos (CRQs) é
estabelecida no Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, em seu Art 20
grupos étnicoraciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria,
48

dotado de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada


sa definição relaciona-se, portanto, a uma
identidade, a um território, a uma territorialidade.
A perspectiva identitária que me conduz no entendimento do povo quilombola,
baseia-se em Souza (2008, p. 82), ao afirmar que, as famílias quilombolas compartilham
trajetórias no território. Desse modo, as expressões identitárias e o território são indissociáveis
e conduzem as formas coletivas de re-existir, defender e reafirmar o quilombo.
A identidade quilombola advém de um processo de autodeclaração bastante
dinâmico que não se reduz a um traço biológico como a cor da pele. É relevante destacar que é
uma marca identitária quilombola o compartilhamento do modo de vida, da organização política
e das lutas por direitos. A definição do que são e quem são os quilombos é fruto de suas próprias
classificações identitárias e não necessariamente, são produtos de classificações externas
(SOUZA, 2008).
Na geografização dos territórios quilombolas, as narrativas dos sujeitos foram
fundamentais ao processo de análise-síntese-análise entendendo os diferentes tempos e os
modos de vida nos Sertões de Tamboril. Enfatizo as territorialidades tendo como ponto de
partida as relações tecidas e vividas na terra-território como base da vida quilombola, portanto:

16
[...] a multidimensionalidade do territorial pelos membros de uma
coletividade, pelas sociedades em geral [...] se manifesta em todas as escalas espaciais
e sociais; ela é consubstancial a todas as relações e seria possível dizer que, de certa
, 1993, p. 158-163).

Santos e Cunha Júnior (2018, p.


ancestrais, e devemos considerá-
materiais relacionam-se aos recursos ambientais, aos locais construídos e aos objetos utilizados
no cotidiano. Assim, as formas imateriais são os aspectos simbólicos como as heranças
culturais, os saberes, lugares de memória, os encantados, a culinária, a dança, entre outros.
A territorialidade pode ser considerada como sinônimo de cultura na medida em
que é uma forma de comunicação do indivíduo e do grupo com o universo, é uma herança.
Mas também um reaprendizado das relações profundas entre o homem e o seu meio, um
resultado obtido por intermédio do próprio processo de viver. (SANTOS, 2007, p. 81). São
essas modos de viver quilombola no espaço que assinam uma territorialidade cultural negra.

Grifo do autor.
49

processo de reconhecimento da identidade negra brasileira para uma maior autoafirmação


ses
relaciona-se com a distribuição dos quilombos atuais, uma vez que alguns territórios se
originaram a partir das fugas de escravizados das antigas fazendas ou vilas que concentravam
população negra escravizada ou liberta, no século XIX.
É necessário dialogar com a perspectiva da autodefinição das comunidades que
são atravessadas pelo racismo. É preciso considerar a diversidade nacional e estadual de povos
quilombolas e, por fim, não se pode perder de vista que a formação socioterritorial quilombola
está imbricad o racismo é um elemento
estrutural da sociedade brasileira e indissociável da questão agrária, que é igualmente um

Nogueira (2018, p.
sa autora, este conceito

culturais que, a partir da identidade, identificam a apropriação do espaço no qual o território se


(NOGUEIRA, 2018, p. 35). O
,
2017, p. 37).
Parto dos 3 (três) aspectos definidos em Sodré (1988, p. 50), sobre o território como
sendo: - localização, limites - da ação do sujeito; 2) especificidade de um
espaço social, que o distingue do resto da sociedade ou de outros territórios; 3) zona de limites
entre o social e [...] o não-
Diante do exposto, espacializo e caracterizo os territórios de Encantados do Bom
Jardim e Lagoa das Pedras e do território de Brutos com base na delimitação do RTDI,
visualizado em Marques (2009a, 2011) e no mapeamento de Carvalho (2020). As principais
formas de uso apontadas foram áreas de residências, agricultura, corpos hídricos, afloramentos
rochosos e reserva legal. Nos trabalhos de campo, realizados no ano de 2021, foi possível
identificar alguns pontos, usos e ocupação das terras nos territórios. No caso da Barriguda, que
ainda não possui uma delimitação territorial, o mapeamento refere-se aos pontos coletados em
campo que constituem espaços relevantes para o território projetando-os na imagem de satélite.
Não foi possível mapear todos os territórios de Tamboril, especificamente o
quilombo de Torres, devido às condições de acesso e a ocorrência do SARS_COV_2.
50

Desse modo, correlaciono essa espacialização quilombola aos marcadores


ancestrais que foram diluídos na pesquisa, ao reconstruir ancestralidades, territórios, trajetórias,
cotidianos e lutas do povo negro em escala estadual, regional e municipal de outrora e de agora.
Enfatizei os marcadores mais representativos à pesquisa, os quais serão caracterizados no
próximo tópico.

2.1 Marcadores das africanidades

Sou negra, sou quilombola

A estrada é muito longa


Mas precisamos caminhar
A luta é permanente
Nunca podemos parar.
Ser negra e ser quilombola
Fui aos poucos descobrindo
Refletindo a Pretagogia
E a negritude foi fluindo.17

Olhar o passado com vistas a entender a nossa ancestralidade africana no Ceará


perpassa pelo estudo e análise da distribuição dos povos quilombolas no território, a partir do
movimento migratório africano forçad
das produções fundamentadas nas (RODRIGUES
JÚNIOR, 2016, p. 03). O caminho percorrido é, portanto, composto por deslocamentos teóricos,
analíticos e espaciais.
Segundo Oliveira (2005), ancestralidade é tradição, é modo de vida, é
pertencimento, é movimento, é encantamento, é objetivo e metodologia, é origem e finalidade,
é ponto de partida e de chegada. Assim, olhar o mundo a partir da cosmovisão africana
possibilita que acolhamos e respeitemos a alteridade, a ancestralidade e a construção coletiva
do conhecimento (PETIT, 2015).
No primeiro momento, enfatizei a diáspora africana no Ceará, a distribuição da
população negra nas vilas cearenses e as classes sociais da Província cearense. Além disso,
discuti os movimentos negro e quilombola no Estado. No segundo momento, destaquei a
presença negra, a formação socioterritorial dos Sertões de Crateús, do município de Tamboril
com ênfase nos territórios quilombolas.

17
Este é um trecho do poema de Cláudia Oliveira da Silva, a Cláudia Quilombola, como é conhecida no Ceará. É
uma mulher negra e professora pertencente ao território quilombola da Serra do Juá no Município de Caucaia-
Ceará. O poema encontra-se na íntegra em Silva (2012, p. 112).
51

Nesse processo me baseio em Rodrigues Júnior (2018, 2016); Oliveira (2005);


Hampaté Bâ (2010); Petit e Silva (2011); Petit e Farias (2015); Petit (2015); Silva (2016), Bosi
(2003), entre outros. De acordo com Petit e Farias (2015, p. 138), a palavra marcador refere-se

dos traços fenotipais [...] estão na nossa memória familiar e coletiva, no cotidiano, nos embates

Desse modo, as marcas ancestrais em nossos corpos são compostas por influências
culturais de nossos antepassados africanos e indígenas e estão presentes na formação
socioterritorial do Ceará e nas territorialidades quilombolas de Tamboril.
A espacialização territorial dos quilombos é correlacionada aos marcadores das
africanidades que compõem a trajetória dos povos afro-diaspóricos e dos seus descendentes no
Ceará. Ao relacionar o passado ao presente dos descendentes dos povos afro-diaspóricos no
Ceará, o tensionamento desses tempos possibilitou a identificação da memória coletiva e das
trajetórias, levando em conta as narrativas dos sujeitos e as fontes documentais.
Assim, enxerguei mudanças nas configurações territoriais, bem como na
organização social e política do povo negro e quilombola. Acredito que a análise do povo negro
na Província do Ceará me conduz ao conhecimento sobre a marca da africanidade que nos
conecta nos diferentes tempos. Essas marcas ancestrais se ampliam desde os membros da nossa
linhagem, nas práticas religiosas e espirituais, artísticas, de saúde, nas culinárias e arquiteturas,
presentes no cotidiano, entre outros (PETIT; FARIAS, 2015).
A reinterpretação dos dados demarca a significativa presença negra no território ao
longo do século e fortalece a nossa relação com a África, à medida que possuímos heranças
ancestrais vindas do além-mar.
Sabendo que a ancestralidade africana não necessariamente associa-se à cor de pele,
tonalidade, matriz ou especificidades anatômicas, mas sim, ao fato de ter, cultural e fisicamente,
raízes africanas, favorece-nos muito mais um posicionamento afirmativo e identitário enquanto
povo afrodescendente (FERREIRA, 2004).
Nesse sentido, busquei discutir a ancestralidade como forma de reconexão com os
povos africanos, por meio de presenças e trajetórias, heranças culturais e dos caminhos
percorridos pelos nossos antepassados. Os marcadores das africanidades que atravessam essas
trajetórias, heranças e caminhos ancestrais estão representados no Quadro 02, a seguir:
52

Quadro 2 Principais marcadores das africanidades que atravessam trajetórias negras e


quilombolas na pesquisa

Marcadores das africanidades Caracterização dos marcadores na tese


Destaquei aspectos da minha trajetória enquanto mulher negra
cearense;
01. História do nome/topônimos Realcei os topônimos do município e dos territórios quilombolas
02. História da linhagem familiar como forma de revelar relações de poder e tentativas de
inclusive agregados. apagamentos das trajetórias e memórias ancestrais africanas e afro
06. Pessoas de referência na família e na brasileiras;
comunidade e pessoas negras do mundo Enfatizei a minha linhagem familiar e algumas linhagens
significativas para mim. familiares dos territórios quilombolas de Tamboril;
Identifiquei as pessoas de referência do movimento negro e
quilombola;
Refleti sobre as narrativas dos guardiões da memória que
constituem as principais referências negras nas comunidades;
Compreendi o papel das pessoas de referência educativa nos
territórios quilombolas.
Enfatizei a origem congo angolana e moçambicana do povo negro
cearense como uma das representações/das relações com a África;
04. Histórias do lugar de pertencimento\ Discuti a presença negra nas vilas cearenses do século XIX na
comunidade\ territorialidades e intenção de revelar nossas origens africanas no Ceará;
desterritorialidades negras (movimentos Considerei os dados populacionais que revelam a presença negra
de deslocamentos geográficos, corporais na formação socioterritorial dos Sertões de Crateús, de Tamboril;
e simbólicos) Sublinhei ainda a formação socioterritorial quilombola em
18. Representações da África\ relações Tamboril, considerando as suas territorialidades quilombolas;
com África. Apresentei os diversos deslocamentos das famílias quilombolas
que compõem a formação do território quilombola.
Compilei um esboço das relações raciais cearense como forma de
evidenciar as tentativas de apagamentos da população negra ao
17. Povos indígenas e quilombolas- longo da História;
resistência e força. Destaquei os ebós do conhecimento e comportamental
20. Racismos e estereótipos. representativos do movimento negro e do movimento
29. Relação com a terra (vivências e socioterritorial quilombola do Ceará;
simbologias). Caracterizei as pautas de lutas e a desconstrução da memória
racista implantada no processo da falsa abolição cearense;
Debati a relação entre a terra-território e os modos de vida
quilombola;
Elaborei mapeamentos e caracterizei os usos da terra-território
quilombola de Tamboril.
Fonte: Elaborado por Rosilene Aires, com base em Petit; Farias (2015), Petit; Silva (2011) e Petit (2015).

De acordo com o Quadro 02, trabalhei, principalmente, com 08 (oito) dos 30


marcadores, definidos por Petit e Farias (2015). Esses potencializam e ampliam os
conhecimentos sobre a nossa ancestralidade africana, afro-brasileira e indígena nas entrevistas,
na construção teórico-metodológica, no estudo e análise de dados primários e secundários, e,
também, na escrita dos capítulos da tese.
Os marcadores foram numerados na mesma sequência destacada nos estudos de
Petit e Farias (2015), Petit e Silva (2011), e no sentido de facilitar a discussão (Cf. Anexo B).
Alguns marcadores se complementam nas análises e reflexões dos dados e das narrativas
53

quilombolas e, ao mesmo tempo, estes me atravessam enquanto educadora, Geógrafa e mulher


negra cearense. Por esses motivos, encontram-se agrupados em três blocos que se diluem ao
longo do trabalho.
A trajetória de um sujeito ou de um grupo é iniciada a partir da escolha do seu nome,
ou seja, é iniciada pelo marcador 01 (um) sobre o entendimento das origens dos nossos nomes
e dos topônimos afro-cearenses e quilombolas.
A origem dos nomes dos lugares revela alguns marcadores das nossas
africanidades. Entendo que tudo começa com o nome, especialmente, os das vilas coloniais e
povoados do Ceará, ou seja, os seus topônimos. Estes, possibilitam ressaltar relações com a
África, no contexto social e cultural cearense do século XIX.
Desse modo, a reflexão sobre a origem das toponímias quilombolas, também
reafirma africanidades. Para tanto, relaciono o ato de nomear os lugares e as localidades
quilombolas a partir dos elementos do lugar de pertencimento à uma territorialidade. Essas
toponímias quilombolas decorrem de deslocamentos geográficos, corporais e simbólicos,
observados e discutidos a partir das narrativas quilombolas que já se conectam a memória
coletiva sobre as histórias do lugar, do território, conforme o marcador 04 (quatro).
Trata-se de re-conceituação, de re-interpretação crítica, positivada e que mobiliza
politicamente os povos negros e quilombolas (ALMEIDA, 2000). Esses interlocutores me
permitiram buscar, com base em Godoi (1999), o fio condutor da memória para entender os
processos de ocupação de suas terras.
Os marcadores 02 (dois) e 06 (seis) referem-se à história da linhagem familiar e ao
reconhecimento de pessoas negras de referência, respectivamente. Trata-se da construção de
referências e de relações diversas que compõem as identidades. Ao longo da vida, construímos
relações, sejam a partir da família, ou na escola, no bairro, e até na comunidade, entre outros
espaços e contextos. Essas relações se materializam em referências para nossas vidas.
Portanto, o ponto de partida para conexão desses marcadores foi o entendimento
das linhagens que compõem a minha família, assim como as linhagens familiares quilombolas.
Do mesmo modo, as pessoas de referências na minha família possibilitaram enxergar outras
pessoas importantes para os movimentos negro e quilombola que são referência no Brasil e no
Ceará, e outras pessoas quilombolas e não-quilombolas de referência nos territórios de
Tamboril.
Os marcadores 04 (quatro) e 18 (dezoito) se correlacionam à medida que enfatizei
a origem congo angolana e moçambicana do povo negro cearense como uma das
54

representações/das relações com a África, discutindo a presença negra nas vilas cearenses do
século XIX na intenção de revelar nossas origens africanas. Além disso, os dados populacionais
da presença negra na formação socioterritorial dos Sertões de Crateús e de Tamboril, ao longo
do século XIX, são facetas da História do lugar no qual formaram-se os territórios quilombolas.
Em relação ao marcador 17 (dezessete), cabe ressaltar que a concepção segundo a
qual no território cearense não existiam negros, além da ideia de uma escravização propagada
iu conflitos identitários, mudanças sociais e políticas junto ao povo
negro e quilombola, impulsionou a força e a resistência destes povos que, aos poucos, se
tornaram pautas contínuas de luta pela desconstrução ideológica dessas concepções e pelo
fortalecimento da identidade negra. egros sim
e o seu sertão é um dos palcos históricos de luta e resistência ancestral afro-indígena e
.
Dos racismos sofridos e impetrados (marcador 20), a presença negra no século XIX
no território cearense é uma herança, um patrimônio que resistiu ao racismo e as tentativas de
apagamento da história. A organização política e social do movimento negro e quilombola do
Ceará contra os racismos e estereótipos (perpetrados e sofridos) possibilitou identificar os
caminhos percorridos pelos movimentos que confrontaram silenciamentos do povo negro na
formação socioterritorial do Ceará e no município de Tamboril. As marcas do racismo se fazem
presentes na trajetória dos antepassados, dos movimentos, no ato de nomear as comunidades
quilombolas e na forma como são tratados na execução de Políticas Públicas.
O racismo pode ser entendido como um processo histórico e político que cria
condições diretas ou indiretas para que grupos socialmente identificados, no caso o povo negro
e quilombola, sejam discriminados (ALMEIDA, 2022). Ess
constituído pelas relações ontológicas entre: discursos, ideologias, doutrinas ou conjunto de
ideias (cultura); ações, atitudes, práticas ou comportamentos (agência); estruturas, sistemas ou

Por fim, o marcador 29 (vinte e nove) representa as formas de ocupar e viver na


Terra, as relações de trabalho, as suas vivências e as simbologias com a Terra, que é a principal
pauta da luta coletiva tendo como elemento fundante a permanência e a resistência ancestral de
incontáveis linhagens familiares pela regularização fundiária que garanta a reprodução dos seus
modos de vida.
A relação com a terra é essencial para construir as bases sociais dentro e fora do
território quilombola. O trabalho de roça, na criação de animais, no extrativismo, na produção
55

de mel dos quilombolas de Tamboril expressa suas relações de parentesco e vizinhança. Assim,
s tradições se caracterizam na forma como as famílias se apropriam das terras. Nesse
contexto, a família, o trabalho e a terra são unidades gestoras do modo de vida quilombola.
(MALCHER, 2017, p. 134).
Sendo assim, a principal luta quilombola é por regularização fundiária dos
territórios, ou seja, é o seu direito de viver na Terra. O sentido da coletividade é, portanto, a
base da territorialidade quilombola tendo em vista que, de acordo com Pedon (2013,

Ancestralidade, identidade, relações raciais, território, territorialidade e marcadores


das africanidades são alguns dos conceitos condutores desta análise geohistórica, que evidencia
o pertencimento e as re-existências dos povos negros e quilombolas no Ceará. Os marcadores
destacados constituem a reflexão e revelam a nossa ligação com a África ao longo de nossa
trajetória de vida (PETIT; SILVA, 2011).
Ressaltar os marcadores das africanidades, de certa forma, materializa
representações e tradições culturais de origens africana e afro-brasileira quando nos referimos
às linhagens das famílias, as lutas pela terra, à toponímia do lugar, à memória coletiva, às
práticas de cura, culturais e religiosas, entre outros.
Nessa perspectiva, a caracterização dos marcadores foi tecida ao longo das buscas
teóricas, ao longo da minha trajetória, bem como a partir das escutas do povo negro e
quilombola de Tamboril. A fala, nesse contexto tão significativo da tradição oral, compõe a
pesquisa por meio das entrevistas com os quilombolas, sendo que as suas narrativas revelam
pertencimentos, trajetórias, memórias e tradições e a formação do seu território. Desse modo:

[...] as entrevistas e as narrativas e falas são também ações significativas para os


próprios entrevistados e não apenas para o pesquisador, mas constituem também, em
certo sentido, uma descoberta para quem (re) vive uma história (sua ou do grupo).
(GODOI, 1999, p. 35)

A memória coletiva é um conjunto de lembranças que permeiam o imaginário de


um grupo e surgiu nos encontros virtuais e presenciais realizados ao longo da pesquisa. Resulta
de fatos, vivências e histórias de determinada época, quando me debrucei, por exemplo, sobre
as narrativas dos antigos moradores dos territórios quilombolas tamborilenses.
A memória dos mais velhos do territórios quilombolas é uma mediação entre o

existem mediadores formalizados constituídos pelas instituições (a escola, a igreja, o partido


político etc.) e que existe a transmissão de valores, de conteúdos, de atitudes, enfim, os
56

constituintes da cultura (BOSI 2003, p.15). Portanto, a memória é geradora de pertencimentos


e conexões culturais, econômicas, religiosas, entre as distintas gerações e, ao mesmo tempo,
une e mobiliza o povo quilombola em prol do seu território.
O entendimento das trajetórias de luta nas comunidades foi tecido a partir de um
olhar acerca das vivências e das narrativas quilombolas. Optei por citar nas referências cada
uma das pessoas entrevistadas na pesquisa, entendendo que seus saberes e dizeres são tão
importantes quanto os demais referenciais teóricos utilizados. No Quadro 03, a seguir,
apresento a trajetória das/dos entrevistadas/os na pesquisa.
57

Quadro 3 Sujeitos e trajetórias quilombolas de Tamboril- CE, entrevistados na pesquisa


Registro Trajetória
Meu nome é Maria de Fátima dos Santos Ribeiro. Nasci no dia 09 de
setembro de 1955 numa comunidade chamada Campo Nobre, onde
morava meus avós materno e a minha mãe dessa comunidade chamava-
se Maria Ferreira dos Santos. Casou com José Vitório dos Santos que
era nascido em Jikié- Bahia. A minha mãe teve 16 filho e estamos com
13 irmãos vivos em Tamboril e São Paulo. Somos unidos e
barulhentos. Me casei com meu primo José Antônio sobrinho de minha
mãe. Desse casamento tivemos sete filhos e Deus levou um no
nascimento. Tenho hoje cinco mulher e um homem. Desses, a mais
velha que reside em São Paulo, tem duas filhas que são cuidadas por
mim: Maria Vitória é deficiente auditiva e a Maria Fernanda de 15
anos. Ensinei meus parente e alfabetizei eles. Chegando aqui, em 1987
e 1988, fiquei engajada na comunidade trabalhando nas construções,
nas celebrações da igreja e na organização sindical. Gosto de uma
touca, turbante e sou negra quilombola e sou muito feliz na minha
comunidade.

Idade: 68 anos

Registro Trajetória
Sou José Firmino de Oliveira, conhecido como José Osmar.
Minha mãe é daqui do território e meu pai é de Granja e casou
com ela tendo 15 filhos. Eu me casei com a Graça, que é
minha prima e tivemos 09 (nove) filhos e tivemos 15 netos,
mas nem todos vivem aqui. Desde os meu 10 anos comecei a
trabalhar para ajudar a criar os meus irmãos. Sou agricultor
hoje aposentado e represento a resistência da minha
comunidade. Diariamente cuido das minhas roças, porque
não aceito parar. Acredito que é uma forma de se manter na
ativa.
Sou uma das lideranças da comunidade. Sou analfabeto, mas
tenho integridade e sou doutor em vivências da vida. Sou um
pai maravilhoso e um grande homem.

Idade: 74 anos
58

Registro Trajetória

Sou Erinete dos Santos Oliveira (Neta), nascida aos 05 dias do mês de
maio do ano de 1975, na sede do município de Tamboril. Tenho 46
anos. Vivi na comunidade de Encantados do Bom Jardim até o ano de
1990, quando precisei sair para estudar. Sou negra, mulher, mãe,
professora, catequista e membro do conselho da mulher. Tenho 03
filhas, um companheiro e sou casada no religioso, desde 1998. Filha de
José Firmino de Oliveira, analfabeto das letras, mas formado nas
leituras de mundo. É uma liderança na minha vida e na comunidade.
Minha mãe, dona Maria das Graças dos Santos Oliveira mulher de
quem carrego muito orgulho. Da família de 9 irmãos, eu sou a 5°. Sou
uma mulher que carrega consigo a missão de ser feliz. Tenho formação
acadêmica, graduação em Letras e Pós-graduação em Gestão Escolar e
Psicopedagogia.

Idade: 46 anos

Registro Trajetória

Eu me chamo Francisco Anacélio Rodrigues. A minha comunidade


Lagoa das Pedras e Encantados do Bom Jardim foi fundada em 1998 e
certificada no dia 04 de março de 2004. Do meu pai, que foi a primeira
liderança na minha comunidade, carrego a capacidade de lutar por
direitos e dar continuidade. Ele também integrou o sindicato de
trabalhadores rurais de Tamboril. Atualmente faço parte do movimento
quilombola integrando a CEQUIRCE. Sou suplente na CONAQ e
integro a comissão estadual de educação quilombola. Trabalhei no
mapeamento estadual das comunidades quilombolas de 2019. Em
Tamboril, faço parte do conselho municipal tutelar do CRAS no setor
de alimentação escolar. Tenho formação em Letras, mas não exerço a
profissão docente. Sou negro, tenho 34 anos de idade e sou produtor
rural na minha comunidade quilombola.

Idade: 34 anos
59

Registro Trajetória
O meu Nome é Ana da Silva Moreira, mais todo
mundo aqui me chama de Diana. Tenho dois filhos
e sou casada. Tenho pai, mãe e 7 (sete) irmãos. Eu
nasci nas Serras das Matas, vim de lá para cá
pequena. Aqui cresci, estudei, trabalhei e com um
certo tempo mais ou menos aos 25 anos eu comecei
a me interessar pela comunidade. [...] A gente
começou a falar com as pessoas, fazer rodas de
conversa, até se organizar e buscar fundar uma
associação para se fortalecer. Foi quando eu me
tornei a liderança da comunidade e a presidente da
associação de moradores.

Idade: 40 anos

Registro Trajetória
Sou João Paulo Sousa Vieira. Resido com minha família na
comunidade Quilombola de Barriguda no município de
Tamboril. Sou casado e tenho 02 filhas de coração. Sou
presidente da Associação Quilombola e dos Pequenos
Produtores da Barriguda. Me formei bombeiro civil. Sou
membro da Comissão de Educação Escolar Quilombola do
Ceará. Integro o grupo da mini fábrica de bolos do projeto
Zumbi. Integro o grupo da Apicultura da comunidade. Fui
pesquisador de campo do mapeamento das comunidades
quilombolas do Estado do Ceará.

Idade: 41 anos

Fonte: Arquivos da autora (2021).


60

Os perfis dos sujeitos quilombolas se distinguem na idade, nas funções exercidas e


nas áreas de sua atuação profissional, conforme destacados no Quadro 03. Os diálogos
ocorreram com os moradores mais antigos, gestores escolares, educadoras e algumas lideranças
quilombolas.
A escuta de cada quilombola possibilitou conhecer trajetórias e memórias por meio
de narrativas individuais que foram sendo tecidas ao longo de entrevistas e conversas informais.
O intuito foi publicizá-las e fortalecê-las com a pesquisa. Foram entrevistados membros dos 3
(três) territórios quilombolas de Tamboril, mediante um roteiro pré-definido contendo nome,
idade, função, comunidade, raça/cor, e a forma de apresentação e da biografia de cada
participante.
Esses (as) entrevistados (as) refletiram sobre a trajetória de suas famílias e a partir
dessas narrativas, elenquei os marcadores mais representativos dessas vivências quilombolas
tamborilenses (Cf. Apêndice B).
Vale ressaltar que as etapas da pesquisa e os instrumentos foram flexibilizados à
medida que o fator de saúde pública, ocorrido no mundo no final do ano de 2019 no Brasil em
fevereiro de 2020, o que causou algumas modificações nas relações sociais com o isolamento
e o distanciamento social. Desse modo, os diálogos ocorreram de forma virtual e presencial.
61

2.2 Estratégias de aquilombamento geográfico

Tempo de nos aquilombar18


É tempo de caminhar em fingido silêncio,
e buscar o momento certo do grito,
aparentar fechar um olho evitando o cisco
e abrir escancaradamente o outro.
É tempo de fazer os ouvidos moucos
para os vazios lero-leros,
e cuidar dos passos assuntando as vias
ir se vigiando atento, que o buraco é fundo.
É tempo de ninguém se soltar de ninguém,
mas olhar fundo na palma aberta
a alma de quem lhe oferece o gesto.
O laçar de mãos não pode ser algema
e sim acertada tática, necessário esquema.
É tempo de formar novos quilombos,
em qualquer lugar que estejamos,
e que venham os dias futuros, salve 2020,
a mística quilombola persiste afirmando:

Eu aquilombo. Tu aquilombas Ela/Ele aquilomba. Nós aquilombamos. Vós


aquilombais. Elas/Eles aquilombam. Aquilombar é movimentar, é enxergar o coletivo, é resistir
aos antagonismos sociais, é compartilhar e ressignificar existências. É tempo de aquilombar na
Geografia! É hora de ampliar olhares, narrativas e trajetórias negras e quilombolas. Que se
abram os caminhos geográficos neste processo.
Para os quilombolas, o ato de aquilombar-
(SOUZA (2008, p.13). O estudo dos
quilombos e para os quilombos é a minha busca geográfica pelo entendimento do conjunto de
relações entre o povo quilombola e o seu território com marcos espaciais, temporais e ancestrais
que os caracterizam.
Na concepção de Leite (2000, p. 349), aquilombar-
reacesa para, na condição contemporânea, dar sentido, estimular, fortalecer a luta contra a

caminhos percorridos pelo povo negro ressaltando as suas lutas e ancestralidades. Desse modo,
a definição do que vem a ser o quilombo e quem são os quilombolas contemporâneos faz

18
Poema de Maria da Conceição Evaristo romancista e escritora mineira. Disponível em:
https://www.xapuri.info/cultura/tempo-de-nos-aquilombar/. Acesso em: 02 fev. 2020.
62

339).
A expressão quilombos contemporâneos é usada legalmente no Brasil para:

[...] designar as comunidades negras rurais que agrupam descendente de escravos,


vivendo da cultura de subsistência e onde as manifestações culturais tenham forte
vínculo com o passado. Aos remanescentes de antigas comunidades quilombolas que
permaneçam ocupando suas terras, a Constituição Federal reconhece a propriedade
delas, com direito a título definitivo. (LOPES, 2006, p. 139).

O quilombo contemporâneo é uma territorialidade negra, circunscrita pelas relações


da coletividade que lhe dá múltiplos significados. Os quilombos cearenses podem ser assim
classificados, tendo em vista à identificação e o reconhecimento recente de sua formação.
Segundo Souza (2008, p. 13), para os quilombolas, o ato de aquilombar-se é um

estudar os quilombos e para os quilombos, pretendo fazer uma geografia política, militante,
comprometida ao entender o conjunto de relações entre o povo quilombola e o seu território
com marcos espaciais, temporais e ancestrais que os caracterizam.
Ser quilombo abarca uma dimensão secular de resistência e luta de africanos e seus
descendentes, muitas vezes em co . Nesse percurso, as
principais referências foram Aguiar, Santos e Alencar (2020); Carvalho (2020); Almeida
(2011); Silva (2016); Marques (2009b); Anjos (2011a, 2013); Oliveira (2005); Petit (2015);
Rodrigues Júnior (2016, 2018); Barroso (2019), entre outros.
No aquilombamento individual e coletivo no qual estou inserida, compreendo que:

A pesquisa nos impõe uma investigação rígida e leituras dedicadas para continuarmos
falando de negros e indígenas sem ousarmos ser porta-vozes, pois têm suas
organizações e suas formas de interpretar a sociedade. O pesquisador, é somente mais
uma voz tergiversando sobre as diferenças étnicas. (RATTS, 2009, p. 20).

Evidenciar a questão quilombola significa, conforme o autor, possibilitar que as


vozes, as verdades e os anseios dos quilombos sejam ouvidos, considerados e reafirmados
na/pela ciência geográfica e na sociedade. Conforme Ratts (2016, p.
negros, quilombolas e indígenas, rurais ou urbanos, organizados (ou não)19 enquanto
Logo, o seu
.

Acréscimos da pesquisadora.
63

Esse autor indica que para retratar a indianidade e a negritude em terras cearenses é
indispensável uma abordagem qualitativa dessas coletividades.

de pesquisar se dá, portanto, implicitamente a partir da perspectiva da transformação de uma


SILVA, 2011, p. 89).
É tempo de aquilombar na Geografia, tendo em vista as concepções teóricas que
camuflam, distorcem e reduzem o quilombo e a questão quilombola. Exemplo disso é a visão
geográfica de Souza (2013, p. 224), de que o conceito de quilombo é formado a partir de
-
uma concepção tradicional e simplista, historicamente construída segundo o olhar colonizador
em uma geografia ainda não aquilombada, que reduz a função social e política do quilombo.
Outro viés teórico ultrapassado da questão quilombola na Geografia é tratá-la como
racial, e dialogando com a

(SANTOS, 2020, p. 62). Segundo Souza (2008, p. 76, grifo no original


comum, reflete muitas vezes a perspectiva de
em sua grande maioria, remetem à perspectiva congelada e ultrapassada de quilombo enquanto
comunidade do período colonial.
O termo quilombo me remete ao Brasil e à África na ânsia de buscar ancestralidades
míticas, origens, histórias e memórias. Nesse sentido, a minha primeira estratégia de
aquilombamento é olhar o passado, enxergando a ancestralidade africana no Ceará e no
território quilombola.
O aquilombamento geográfico tem como base teórica o conhecimento dos sujeitos
acadêmicos que produzem conhecimentos20; dialoga com o passado ao representar a diáspora
africana e os quantitativos populacionais negros distribuídos nas vilas coloniais cearenses;
evidencia o lugar social historicamente atribuído ao negro na sociedade, a partir das distorções
e contradições históricas da sua construção identitária racial e de classe; estes aspectos são
materializados no recorte territorial dos quilombos sertanejos de Tamboril.
Gomes (2015) elencou 7 (sete) tipos de quilombos no Brasil: os agrícolas, existentes
em toda parte; os extrativistas, presentes nas regiões amazônicas; os mercantis, que realizavam

20
A expressão sujeitos acadêmicos utilizada aqui, advém do homo academicus de Bordieu e é repensada por
Ferreira (2014). O sujeito acadêmico representa quem produz conhecimento no Ensino Superior em qualquer
grau de ensino e vínculo com as instituições. Os sujeitos acadêmicos são, de modo geral, intelectuais,
especialistas e pesquisadores da Geografia, além de pesquisadores com formações diversas.
64

trocas com diversos grupos; os mineradores, em áreas de Minas Gerais; os pastoris, no Sul do
Brasil; os de serviço, instalados nos subúrbios ou periferias das cidades; e os itinerantes ou
predadores, que em várias regiões viviam de saques.
Entendo que a população africana e afrodescendente distribuídas nas vilas coloniais
do território ao longo de todo o processo de escravização contribuíram para a formação dos
nossos quilombos. É provável que tenhamos menos informação e registros dos quilombos
cearenses, antes do século XIX, dado os apagamentos históricos, os inúmeros deslocamentos,
as diversas fugas causadas pelos seus perseguidores, representantes do poder hegemônico. De
todo modo, a maioria dos quilombos cearenses certificados pela FCP encontra-se no campo, ou
seja, eles localizam-se em áreas rurais.
Portanto, ressalto a expressão territorial quilombola na medida em que estabelece
uma expressão político-organizativa, considerando-a, ainda, uma categoria jurídica e de direito.
Reflito sobre o povo quilombola na mesorregião dos Sertões de Crateús, tendo em
vista que, grande parte das pesquisas está voltada para a mesorregião do litoral cearense.
Acredito que é fundamental destacar os povos quilombolas sertanejos. E, as referências
geográficas de outras áreas do conhecimento nesse entendimento me afetam e me conduzem
aos diversos aquilombamentos e rupturas com as perspectivas teóricas ultrapassadas. Considero
que o meu processo de aquilombamento geográfico ocorre de três formas.
Primeiro, individual e coletivo, na construção de minhas referências. Enquanto
educadora e pesquisadora adotei a postura da minha afrodescendência e me coloco no interior
da realidade quilombola, assumindo o papel de escuta e de aprendizado sobre a autoafirmação
e a luta.
descendência africana têm como princípio a relação sujeito-sujeito, buscando-se a superação
89).
Segundo, ocorre de modo dialógico com as outras áreas do conhecimento e com os
povos quilombolas, pois eu não analiso o território e o modo de vida dos outros, mas sim
entendo-o como parte de uma construção territorial cearense, contínua, contraditória, desigual
e racista que atravessa a minha própria existência. Nessa perspectiva geohistórica, pesquisar
territórios quilombolas é, antes de tudo, evidenciar o seu percurso histórico e a sua formação
territorial. Nas palavras de Andrade (2001, p. 78), trata- m
que eles se formaram, como se distribuíram pelo território, [...] como os seus membros se
organizaram interna e externamente, como se defenderam dos ataques das forças militares que
65

tentavam dizimá- política, suas lutas


coletivas e os modos de viver em territórios quilombolas sertanejos no Ceará.
A terceira forma é teórico-metodológico, compreendendo, assim, as minhas
escolhas conceituais e procedimentais. As questões e as descobertas ou as respostas me fazem
exercer o compromisso ético e racial com uma postura crítico-reflexiva na relação sujeito-
sujeito, diante dos povos quilombolas que envolve valores de respeito e sensibilidade para com
os mesmos (PETIT; SILVA, 2011).
O ponto de partida e de chegada de minha travessia nesse aquilombamento
(divergências) e os (limpezas)
envoltos nas relações de poder, no qual sobressaem os desdobramentos histórico-territoriais da
população negra nas vilas cearenses.
21
A palavra é de origem ioruba ou Yorubá (uma das línguas
faladas na Nigéria, no Benin, e outros países africanos e no Brasil). Significa confusão, conflito,
problema ou fofoca e está presente na formação da sociedade cearense. Ressaltar os èjós, é
enfatizar as dificuldades que o povo negro enfrentou na construção de sua trajetória.
A palavra , em português, , em , em
quinguana, significa, conforme Lopes (2011, p. 1084),
É originada do tronco linguístico Bantu22 e, para Assis Júnior (1967, p. 120),
kijila

alguns alimentos ou comportamentos, optei por refletir o seu sentido em português23, que
significa: antipatia, repulsão natural e sem motivos por algo ou alguém. É o sentimento de
aborrecimento, de impaciência ou de mal-estar, ou ainda a divergência de opiniões briga. Daí,
o contexto quizilento das relações raciais tecidas ao longo dos séculos XVIII, XIX, XX e XXI,
ou seja, no percurso histórico do estado do Ceará. Apresento um esboço desses grupos raciais
refletindo sobre as contradições que compõem a sociedade colonial cearense até os anos de
1884 no século XIX.

21
ÉJÓ OU IJOGBON. In: Dicionário on-line Yorubá/Português. 5. ed. Disponível em: http://umbanda-
candomble.comunidades.net/dicionario-yoruba-portugues. Acesso em: 10 dez. 2019.
22
É uma designação apenas linguística dos integrantes negros-afr

físicas comuns e um modo de vida determinado por atividades afins e algumas línguas são faladas, a exemplo
de: kimbundo, kikongo, bakongo, ovimbundo, entre outras (LOPES, 2014a).
23
QUIZILA. In: Dicionário de Português on-line. Disponível em: https://www.dicio.com.br/quizila/. Acesso em:
10 dez. 2019.
66

ebó24 que é
uma palavra do tronco linguístico Iorubá25. Significa oferta, presente, oferenda, sacrifício às
divindades africanas e afro-brasileiras na busca de proteção, limpeza e/ou cura espiritual e
prosperidade (TESSEROLLI, 2009; LOPES, 2011). Esse ebó geográfico representa, primeiro,
a presença negra enquanto maioria no território cearense; e segundo, o caminho percorrido pela
resistência e luta do movimento negro e quilombola na busca por mudanças e reafirmação de
direitos.
Reconhecer e espacializar a presença negra nas vilas coloniais e nos atuais
municípios cearenses, ainda que de forma aproximada devido as distorções dos dados, é,
portanto, o èbó da ancestralidade negra que demarcou influências ancestrais africanas e afro-
brasileiras na formação socioterritorial cearense do século XIX. Além desse, o ébó negro
regional resulta de análises parciais de dados sobre a população negra nos Sertões de Crateús e
da vila de Tamboril que constituem, de certo modo, a ancestralidade dos povos afro-diaspóricos
presentes nessa porção do território cearense, ou seja, são os ancestrais negros e quilombolas.
Da celebração do centenário da abolição, ressalto o ebó das palavras de Abdias do
Nascimento. E, a resposta à exclusão e opressão, destaco o ebó do conhecimento ofertado pelo
movimento negro no entendimento da identidade negra no Ceará. Esse ebó possui marcas
contra-hegemônicas e constituiu umas das referências na mobilização socioterritorial
quilombola.
Destaco que o ebó do quilombo é comportamental. Advém das vozes quilombolas,
com suas trajetórias de luta, e no reconhecimento de seus direitos pela sociedade. É carregado
de simbolismos, modos de viver e se relacionar com a terra apreendidos pelos seus ancestrais.
O roteiro de entrevista caracterizou-se por ser semiestruturado, e, a partir do diálogo
nas entrevistas, as questões foram sendo complementadas. O roteiro das perguntas, antes de
cada encontro, foi enviado aos quilombolas via e-mail. (Cf. Apêndice B). Além disso,
encaminhei o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Cf. Apêndice A), tanto por e-mail,
antes dos encontros virtuais, como impresso, entregando-o nas visitas presenciais.
Ao longo dos encontros, registrei o áudio das falas por meio de gravador, papel e
caneta, além de registros fotográficos dos encontros virtuais e presenciais. Posteriormente,

24
EBÓ. In: Dicionário Yorubá/Português on-line. 5ª edição. Disponível em: http://umbanda-
candomble.comunidades.net/dicionario-yoruba-portugues. Acesso em: 10 dez. 2019.
25
Conforme Lopes (2011, p. 663), refere-se ao povo negro-africano localizado na África Ocidental, especialmente
da Nigéria e no Benin, com marcas linguísticas relacionadas ao nagô, ewe, fon, ketu entre outras.
67

trabalhei na transcrição das narrativas. Por fim, selecionei dados e falas das narrativas
quilombolas para compor as reflexões da tese.
Conversamos sobre as relações do movimento negro com o movimento quilombola,
da criação da CEQUIRCE, das ações nas comunidades para o enfrentamento do SARS-COV-
2, e dos desafios da luta quilombola. Além disso, busquei opiniões sobre os aspectos positivos
e negativos do mapeamento das comunidades quilombolas do Ceará, realizado em 2019.
Os primeiros encontros ocorreram via telefone e, em seguida, via Internet, por meio
de chamadas realizadas na plataforma do Google Meet, com duração de 60 minutos. O única
entrevista virtual completa foi realizada encontro virtual ocorrido no dia 12 de março de 2021
com Erinete (Neta Quilombola), educadora e gestora da Escola Quilombola. O segundo
encontro virtual ocorreu no dia 12 de abril com o senhor Renato Ferreira dos Santos, liderança
estadual do movimento quilombola. Em ambos, apresentei a minha trajetória, os objetivos e os
instrumentos de pesquisa e indaguei sobre a disponibilidade destes entrevistados em contribuir
com a pesquisa, ainda que de forma virtual.
Devido a disponibilidade de tempo maior no encontro com a Neta, assumi o papel
de ouvinte da sua trajetória e das histórias de Encantados do Bom Jardim, bem como da luta
coletiva e dos principais desafios sociais, educacionais e econômicos indicados pelas suas
percepções. Enquanto que no encontro com o seu Renato, como o nosso tempo foi restrito,
solicitei alguns contatos e documentos relacionados aos territórios.
Os encontros presenciais foram adiados de 2020 para 2021, devido a pandemia, e
somente no período de 22 a 25 de junho de 2021 foi possível realizar a primeira visita ao
município de Tamboril para a continuidade das conversas com as lideranças e moradores mais
antigos. Nestas visitas as entrevistas ocorreram de forma individualizada, com o distanciamento
social, uso de máscaras e de álcool em gel.
Foram encontros com duração média de 60 minutos e alguns moradores mais
antigos se recusaram a nos receber por motivos de saúde, tendo em vista a ocorrência do SARS-
COV-2, nas comunidades quilombolas.
A segunda entrevista com a Neta ocorreu no dia 23 de Junho de 2021 na Escola
Quilombola do território Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras e, neste encontro, ela
foi mostrando a escola e conversando sobre a sua rotina de trabalho. Além dela, conversei com
Maria de Fátima dos Santos Ribeiro (conhecida como Tia Fátima), que foi a primeira professora
da comunidade de Encantados do Bom Jardim, e outro morador mais antigo, o senhor José
Firmino (apelidado de José Osmar) pai da neta sobre a trajetória de sua família.
68

Neste mesmo dia cheguei em Lagoa das Pedras e entrevistei Francisco Anacélio
que é produtor rural e membro da CERQUICE. E, ao chegar em Brutos, conversei com Ana da
Silva Moreira (conhecida como Diana), a liderança da comunidade.
Nessa visita aos quilombos, além das entrevistas, coletei dados geocartográficos
dos territórios para os mapeamentos dos territórios. Observei o cotidiano quilombola do
território Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras e do território de Brutos, no sentido
de evidenciar o modo de vida do povo quilombola, bem como o uso e a ocupação das terras.
Desse modo, percorri os diversos espaços, tais como: escola, associação de moradores, áreas
agrícolas e de criação de animais, espaços sagrados de convivência e lazer e o campo de futebol.
O segundo encontro presencial ocorreu no período de 13 a 15 de setembro de 2021.
Na ocasião, continuei as conversas com a Neta Quilombola e o Anacélio Rodrigues, no
território Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras no dia 14 de Setembro de 2021.
Participei de uma reunião no território quando fui apresentada aos membros presentes,
conforme mostra as Figuras 01 e 02.

Figura 1 Reunião com moradores do território quilombola Encantados do Bom Jardim e


Lagoa das Pedras

Fonte: Arquivo da autora (2021).


69

Figura 2 Reunião com moradores do território quilombola Encantados do Bom Jardim e


Lagoa das Pedras

Fonte: Arquivo da autora (2021).

Devido as mudanças nos trabalhos de campo em decorrência da pandemia de SARS-


COV-2 somente nesse encontro (Figuras 01 e 02) foi possível apresentar aos moradores os
objetivos da pesquisa e agradecer as parcerias construídas. Entreguei as lideranças o mapa com
a localização das comunidades e o painel das fotos do primeiro trabalho de campo realizado, a
fim de publicizar as ações até aquele momento da pesquisa. Aproveitamos para corrigir a
legenda do mapa e de algumas fotos com a indicação correta dos lugares mapeados, a partir das
observações dos quilombolas.
No dia 15 de Setembro de 2021, realizei a segunda entrevista com Francisco
Anacélio Rodrigues. Falamos sobre o trabalho que ele desenvolveu no mapeamento dos
quilombos cearenses enquanto pesquisador, destacando as suas percepções. E, no mesmo dia
na Barriguda, conversei com João Paulo, que é a principal liderança quilombola do território.
Na Barriguda, além da entrevista, visitei alguns pontos do território como a
associação de moradores, os quintais produtivos, uma das moradoras mais antigas e o local de
processamento de mel. Observei o cotidiano quilombola, realizei registros fotográficos e coletei
alguns dados geocartográficos para o mapeamento do território.
As narrrativas quilombolas indicam a descendência de povos africanos e carregam
consigo os elementos constituintes de seus modos de vida, as memórias, a manifestações
culturais, as ancestralidades e as lutas coletivas em conexão com os antepassados tendo o
território como centralidade luta e trajetória, aspectos enfatizados no próximo tópico.
70

2.3 Aspectos socioterritoriais dos Quilombos/ Mocambos/ kílómbòs

A resistência negra é baseada nas trocas culturais e nas alianças sociais feitas
intensamente entre os próprios africanos, oriundos de diversas regiões africanas e com os
habitantes locais: negros e mestiços, aqui nascidos, além de índios e brancos, que formaram os
quilombos/Kilómbòs/mocambos.
No Brasil colonial, o primeiro termo a surgir foi mocambo, para indicar as
comunidades de fugitivos. Essa expressão se difundiu pelo
em Kikondo (línguas de várias partes da África Central), significava pau de fieira, tipo de

10). Os mucambos eram as estruturas para erguer casas e se tornaram os quilombos, ou seja, os
acampamentos situados no Brasil.
Somente no final do século XVII, o termo quilombo apareceu na documentação
colonial do século XVII,
afri
2015, p. 11), designando o surgimento dos territórios de resistência à escravização brasileira.
Para Munanga (1996, p. 58), ginária
dos povos de língua Bantu (kí-lómbò, aportuguesado: qui-
significado no Brasil relacionam-se a alguns povos bantus trazidos e escravizados, os quais
compõem, para Riedel (1988, p. 35), os seguintes grupos étnicos predominantes em Angola:

Luanda; congos, na região setentrional; lunda-chôcue e ganguela (Nganguela), no leste e


sudeste; nianeca-
A relação Brasil Angola denota alguns fatores coincidentes na formação do
Quilombo dos Palmares e da prática quilombola na África, tais como: a denominação do líder
africano de Palmares (Ganga Zumba) e a do rei Imbagala (Gaga Zumba); a estética e a
corporeidade dos líderes que se apresentavam de forma semelhante diante das autoridades; as
estratégias de guerra, entre outros (NASCIMENTO, 2014).

quibunda (a maioria de seus fundadores talvez fosse da bacia do Congo); os colonialistas o


traduziam por Angola Pequena; os historiadores, mais tarde, consagraram o apelativo quilombo
71

O quilombo Bantu resulta da diversidade étnica em Angola e destaca os povos da


diáspora26, contribuindo para a territorialização dos quilombos brasileiros. A exemplo disso,
entre os primeiros quilombos do século XVII, Nascimento (2014) considera que Palmares, no
Brasil, é o fenômeno paralelo à resistência da etnia jaga contra as invasões portuguesas até
1569, em Angola. Segundo essa autora, 10 (dez) anos mais tarde, no século XVI, a resistência
se dá com os imbangalas, aliados aos mbundo,
transversalmente as estruturas de linhagem e estabelecia uma nova centralidade de poder diante
NASCIMENTO, 2014, p. 67).
A matriz linguística, Banto ou Bantu, origina diversas línguas africanas faladas em
diversos países, bem como uma área geográfica contígua e um complexo cultural na África
negra. O quilombo (ki-lombo) é uma palavra de língua umbundu (MUNANGA, 2001). No
dicionário da língua Kimbundu, verifica-se a mudança de grafia na palavra e a semelhança de
significado, pois Kílómbò compreende e reunião
ou sanzala de trabalhadores. Pessoa de vista turva, ou cujos olhos não miram na mesma
127).
Observo que dos significados distintos na língua Kimbundu, o principal marcador
negro é o agrupamento de pessoas, que constroem o lugar a partir da coletividade e com um
objetivo de resistir ou reagir a algo. O quilombo é considerado, portanto, o abrigo, a casa e o
lar, evidenciando um sentimento comunitário, denotando a reinvenção da África com a
socialização das práticas culturais.
O kilombo ou mukambu é terra, é movimento, é luta, é território e territorialidade.
Em sua extensão territorial (espacial), revela o fazer cotidiano com especificidades ancestrais,
ou seja, é carregado de simbolismos que ultrapassam unicamente a posse da terra e a existência
de uma fronteira ou uma linha demarcada, constituem territorialidades. Percorro alguns
significados dessas palavras, olhando o Brasil, a África e o contexto colonial. Ademais reflito
acerca do cenário contemporâneo do povo quilombola.

ter sido utilizado pelos cativos como língua geral, seja por outro motivo, é fora de dúvida ter o

40). O recurso linguístico materializa as influências dos africanismos na língua escrita oficial
do país e no significado dessas palavras, em Língua Portuguesa. Importa ressaltar que mocambo

26
Essa palavra significa dia (através, por meio de) e speirõ (dispersão, disseminar ou dispersar) (CASHMORE
2000, p. 169).
72

ou quilombo designavam um lugar secreto, normalmente encoberto ou escondido em meio ao


mato, em que ficavam ou para onde iam os escravos fugidos. A localidade era povoada por
negros que haviam fugido do cativeiro, sendo dividida e organizada internamente; geralmente,
também havia índios ou brancos.27
Segundo Almeida (2002), é notório o estigma do pensamento jurídico colonial na
definição do quilombo como sinônimo de desordem, indisciplina ao trabalho, autoconsumo,
cultura marginal e periférica. A concepção, por parte do Estado brasileiro, de ilegalidade do
local e, ao mesmo tempo, de uma organização social marcam a definição do mocambo
brasileiro. Por outro lado, são espaços de resistência e rebeldia, com a presença de negros, e,
além destes, dos índios ou mulatos que seriam os brancos pobres, o que hoje resulta em
quilombos carregados de diversidade étnico-racial.
Os quilombos contemporâneos resguardam relações com a África e, ao mesmo
tempo, são compostos por elementos multiétnicos em sua formação. Um destes elementos são
as origens dos povos que o constituíam, com a predominância de africanos das mais diversas
origens. Os quilombos resguardaram, também,
encontravam em situações sociais de exclusão, como aqueles em situação de pobreza e os

Conforme Santos (2012, p. 43), os quilombos têm:

[...] aspectos espaciais, temporais e culturais próprios. Constituem uma herança


africana que ao longo de décadas realizam naturalmente no fazer de todos os dias
transmissão de conhecimentos técnicos, científicos, religiosos e culturais de origem
africana.

As heranças do quilombo bantu, no Brasil, são marcantes e assumem múltiplos


significados:

[...]

, com relevo e condições climáticas comuns na


336).

A característica principal de reduto ou agrupamento social camponês e alternativo


à expansão capitalista e à exploração do trabalho escravizado demonstra que tudo é para a

27
MOCAMBO OU QUILOMBO. In: Dicionário de Português on-line. Disponível em:
https://www.dicio.com.br/quilombo/. Acesso em: 03 mar. 2020.
73

coletividade rompendo, assim, a estrutura social e racial no Brasil. Os seus significados


relacionam-se às diferentes realidades vivenciadas na imensa e complexa colônia brasileira, ao
longo dos séculos, contribuindo, desse modo, para a formação socioterritorial de Regiões,
Estados e Municípios.
No Brasil do século XVIII, por exemplo, os quilombos constituíram uma das mais
completas e complexas formas de reação à escravização com fortes repressões de tropas
militares. Segundo Guimarães (1996, p.

Um dos antecedentes históricos dessa resistência é o período posterior a 1888; trata-


se de uma falsa abolição, tendo em vista que, conforme
da desigualdade a população negra de modo geral e as comunidades quilombolas, em especial,

Tais aspectos têm relação, segundo Moura (1991), com a ameaça que a
quilombagem despertava no poder hegemômico. O receio de constantes atos de rebeldia e
insubmissão que trincam as estruturas sociais desiguais e ocasionam inúmeras opressões ao
povo negro e quilombola. O movimento de rebeldia e resistência, portanto, é partícipe do
processo histórico em que os ancestrais viveram, lutaram e formaram as territorialidades
quilombolas. São diversos olhares que concebem o quilombo ou mocambo.
Ao longo dos 3 (três) séculos e meio de escravização, foram os quilombos que
configuraram como sendo as únicas sociedades da democracia racial em que a raça nada influi
na atribuição dos papéis sociais no Brasil (SANTOS, 2015b). Ao mesmo tempo, esse autor
difunde a concepção de que o ajuste conceitual no conceito de quilombo nos estudos recentes
dá conta de constituir-se

plurirracial (SANTOS, 2015b p. 102).


Para Santos e Cunha Júnior (2018, p.
com inclusão precária na sociedade devido às lutas pela posse da terra e os desmandos dos
Assim, o quilombo brasileiro apresenta influências transculturais, à
medida que foi reconstruído pelos escravizados de diversas origens como forma de resistir à
opressão da escravização (MUNANGA, 2001). Ou seja, os quilombos vão se distanciando do
modelo africano, procurando um caminho de acordo com suas necessidades em território
brasileiro (NASCIMENTO, 2014).
74

Lopes (2011, p. 19) afirma que as afinidades entre o Brasil e a África Negra advêm

essas duas grandes porções da superfície terrestre que, um dia, há milhões e milhões de anos, a
natureza caprichosamente separou , pela ocorrência da separação dos continentes americano e
africano. Nesse sentido, ao comparar as características dos quilombos africano e brasileiro
compreendo que:

O quilombo africano, no seu processo de amadurecimento, tornou-se uma instituição


política e militar transétnica, centralizada, formada por sujeitos masculinos
submetidos a um ritual de iniciação. Como instituição centralizada, o quilombo era
liderado por um guerreiro entre guerreiros, um chefe intransigente dentro da rigidez
da disciplina militar. O quilombo brasileiro é, sem dúvida, uma cópia do quilombo
africano reconstituído pelos escravizados para se opor a uma estrutura escravocrata,
pela implantação de uma outra estrutura política na qual se encontravam todos os
oprimidos. Imitando o modelo africano, eles transformaram esses territórios em
espécie de campos de iniciação à resistência, campos esses abertos a todos os
oprimidos da sociedade (negros, índios e brancos). (MUNANGA 1996, p. 63).

De fato, a presença e a iniciação masculina nos quilombos africanos derivam de


rituais que constituem as identidades desses guerreiros e líderes na África. No Brasil, essa
iniciação se dá pela resistência ao sistema colonial opressor, com a presença de povos de origens
diversas. Assim, os territórios negros se tornavam espaços de luta, de resistência e de construção
coletiva das estratégias de sobrevivência definidas, em sua maioria, por homens egressos da
escravização que se rebelavam contra governos e/ou regimes opressores em Angola e no Brasil.
Além disso, os quilombos agregaram a classe dos oprimidos das mais diversas origens étnicas
africanas, indígenas e europeias que resistiam à exclusão e ao domínio das classes dominantes.
Os quilombos, conforme Souza (2008, p. 43),
e de atualização dos laços étnico e ancestrais afro- s comunidades
descendentes desses antigos quilombos:

Emergiram e estão presentes no movimento do campesinato brasileiro e dentro das


demandas de políticas afirmativas e de reparação social do país e, principalmente, nos
revelam que não foram poucos os sítios quilombolas formados durante a escravidão
no território brasileiro. (ANJOS, 2013, p. 146).

Enquanto fator de mobilização do povo negro, o surgimento dos quilombos


brasileiros reafirmou o movimento, assumindo a função social de luta, e se tornaram focos de
oposição física e cultural ao domínio europeu.
Para Sodré (1988), a ideia de território revela a questão da identidade, à medida que
se
75

sobre o território quilombola resguarda, portanto, identidades, culturas e as lutas dos povos.
-tempo
s FARIAS, 2015, p. 136). Além disso, um campo
, 2013, p. 20) que se imbricam nas
relações raciais e refletem a Geografia das territorialidades quilombolas cearenses. As
interfaces entre as territorialidades quilombolas e a questão agrária cearense
toda sua força histórica na questão do território e, portanto, no âmbito dos poderes do Estado
nacional (MARTINS, 1999, p. 27). Esse fato nega o direito à terra ao povo negro e quilombola
desde a abolição camufladora das desigualdades.
A territorialidade significa, sobretudo:

[...] a terra, base geográfica, posta como condição de fixação, mas não como condição
exclusiva para a existência do grupo. A terra é o que propicia condições de
permanência, de continuidade das referências simbólicas importantes à consolidação
do imaginário coletivo. (LEITE, 2000, p. 344).

Considerada uma faceta dos estudos territoriais, a territorialidade pode ser


quilombola rural ou urbana ou apenas territorialidade negra. Conforme Santos (2012 apud
Anjos, 2011a, p. 59
territorialidade é uma noção semelhante à de nacionalidade, aquilo que nos faz brasileiro é,

Igualmente, Malcher (2017) ressalta que o sentimento de pertença, as relações de


parentesco, de vizinhança e a produção agro-extrativista são marcadores da identidade
quilombola. A territorialidade quilombola transpõe a dimensão geométrica e constrói o direito
das comunidades negras rurais de nela estar e nela permanecer manifestada na luta pela
permanência no território.
O território traduz relações de poder que configuram divisões espaciais, sendo
fruto de relações materiais e simbólicas efetuadas pelos grupos nas disputas pela apropriação
do território. (FLÁVIO, 2013, p. 92). Neste sentido, considero os seus aspectos físico e
simbólico desvendando-os por meio das relações sociais, dos registros históricos e
cartográficos, e das memórias que constituem as territorialidades quilombolas.
A noção de territorialidade, portanto, vai muito além das fronteiras físicas. É
vínculo cultural, histórico e social dos territórios quilombolas com o espaço em que habita
(SOUZA, 2008). A fim de pensar a construção teórica desta noção territorial, considero-a
76

ritórios que produzem


06).
As bases teóricas que compõem a pesquisa têm como ponto de partida um recorte
de pesquisas recentes sobre a temática racial na Geografia e nas demais áreas do conhecimento,
no Ceará e no Brasil. Acredito que essas pesquisas ressaltam a cultura negra na formação
territorial do Ceará, assumem um caráter de combate à redução da trajetória do povo à
escravização, e o quilombo ao espaço de escravos fugitivos negros ligados somente às
atividades agrícolas (ALMEIDA, 2011).
Apresento a síntese de pesquisas em dois quadros teóricos sendo o primeiro
composto por estudos geográficos que dialogam com territórios negros e quilombolas
realizadas por mulheres negras e não-negras no período de 2013 a 2020 em cursos de Pós-
Graduação em Geografia. Destaquei, nos Quadros 4 e 5, a seguir, o título, os objetivos, as
palavras-chave e o campo geográfico específico de cada uma das minhas referências de
pesquisa.
77

Quadro 4 Teses e dissertações que retratam o aquilombamento geográfico (2013 a 2020) parte I
Anos 2017 2015 2013 2013
Autoras VIEIRA, Daniele SOUZA, Denise Martins de. CHAVES, Leilane Oliveira COSTA, Marcella Escobar da.
Machado.
Título Territórios Negros em Da luta pela terra à territorialização Terra quilombola de Nazaré: Um negro olhar sobre o
Porto Alegre (1800-1970): quilombola: o caso da comunidade organização social e espacial, desenvolvimento: análise de uma
Geografia histórica da Porto Velho, Iporanga/SP. município de Itapipoca-Ceará. comunidade quilombola.
presença negra no espaço
urbano.
Objetivo Elaborar uma cartografia Refletir a perspectiva geográfica de Identificar formas de Discutir a perspectiva de
dos espaços ocupados pela como estes sujeitos sociais constroem organização social e espacial do desenvolvimento vivenciada por
população negra na cidade suas relações no território quilombola, quilombo de Nazaré em essa comunidade, ressaltando os
de Porto Alegre. sua organização comunitária e Itapipoca traços identitários.
sociabilidade, e as transformações no
âmbito material e imaterial.
Palavras- Territórios negros. Campesinato. Conflito. Luta pela terra. Quilombos. Organização social e Quilombolas. Mediações político-
chave Geografia histórica. Quilombo. Resistência. espacial. Itapajé. culturais. Desenvolvimento.
Cartografia. Territorialização.
Transformações urbanas.
Sub-área Geografia urbana e Geografia Humana e Agrária Geografia da população e Geografia política e cultural
geográfica cartográfica cartográfica
Fonte: Elaborado pela autora.
78

Quadro 5 Teses e dissertações que retratam o aquilombamento geográfico (2013 a 2020) parte II
Anos 2020 2019 2018 2017
Autoras CARVALHO, PEREIRA, Camila da Silva. NOGUEIRA, Azânia MALCHER, Maria Albenize Farias.
Natália Lídia Garcia de. Mahin Romão
Título Negros do sertão no chão da terra da Identidades (Re) descobertas e a luta Territórios negros em O olhar geográfico: a formação e a
luz: a territorialidade quilombola de quilombola por direitos territoriais no Florianópolis. territorialização de comunidades
encantados do Bom Jardim e Lagoa estado do Rio Grande do Norte, quilombolas no município de São Miguel
das Pedras, Tamboril/CE. Brasil. do Guamá, Pará.
Objetivo Investigar as territorialidades das Analisar o processo de (re)descoberta Investigar os territórios Estudar a territorialidade quilombola de
Comunidades Quilombolas e reconhecimento oficial das negros a partir de sua quatro comunidades da Amazônia
Encantados do Bom Jardim e Lagoa identidades quilombolas e a luta por construção conceitual e paraense.
das Pedras a partir do processo de direitos territoriais no estado do Rio espacial.
autorreconhecimento dos sujeitos com Grande do Norte.
sua identidade quilombola.
Palavras- Quilombolas. Geografia Agrária. Território. Territorialidades. Geografia. Territórios Território Quilombola. Regularização
chave Território. Identidade étnica. Luta quilombola. negros. Segregação Fundiária.
Direitos territoriais. racial. Geografia
decolonial.
Sub-área Geografia Agrária Geografia Agrária Geografia epistemológica Geografia Agrária
geográfica
Fonte: Elaborado pela autora.
79

As concepções das autoras no Quadro 04 estão co-relacionadas às discussões


conceitual e espacial dos quilombos na Geografia. No tocante ao método, enxergo algumas
escolhas e caminhos com vistas à produção do conhecimento, à ação transformadora mediante
a participação dos sujeitos. As palavras-chave indicam o foco no quilombo, no território e nas
suas derivações, além da questão agrária.
Conforme as autoras, o território representa uma forma de apropriação
(territorialização) e enseja a identidade camponesa e quilombola (territorialidade) em constante
transformação e luta por direitos. Essas produções sinalizaram que a Geografia aquilombada
está cada vez mais preocupada e engajada com a questão racial.
As três dissertações do Quadro 04 referem-se ao Ceará. A primeira é de autoria da
pesquisadora negra Marcella Escobar da Costa, que estudou o quilombo Conceição de
Caetanos, localizado no município de Tururu, estado do Ceará. E a segunda, de Leilane Oliveira
Chaves, que abordou o quilombo de Nazaré, localizado em Itapipoca-Ceará. A terceira foi
defendida em 2020 por Natália Lídia Garcia de Carvalho, que destacou as territorialidades das
Comunidades Quilombolas Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras localizadas no
município de Tamboril- Ceará. Estas pesquisas resultam de contextos quilombolas cearenses.
As outras dissertações são da região Sul do Brasil, sendo uma de autoria de Azânia
Mahin Romão Nogueira e a outra de Daniele Machado Vieira. São pesquisadoras negras e
defenderam a temática em 2018 e 2017, respectivamente, enfatizando as questões
epistemológicas e cartográficas da formação dos territórios negros. Destaco, ainda, uma
pesquisa da região Sudeste, defendida em 2015, de autoria de Denise Martins de Souza que
abordou a temática da territorialização quilombola no estado de São Paulo.
Apresento, por fim, 2 (duas) teses, uma defendida em 2019 no Ceará, por Camila
Pereira da Silva sobre a cidade de Pau dos Ferros RN, e a outra defendida em 2017 no Ceará,
de autoria da curumin e quilombola da etnia Temé, Maria Albenize Malcher, da Região Norte
do Brasil. A primeira autora investigou os quatro territórios quilombolas do Oeste Potiguar, no
Rio Grande do Norte. Por sua vez, a segunda autora destacou quatro territorialidades
quilombolas do Pará.
O quadro 6 reuniu trabalhos recentes que demarcam a presença negra ao longo da
formação socioterritorial cearense e o aquilombamento de sujeitos acadêmicos em diversas
áreas que desenvolveram estudos relacionados aos territórios quilombolas, as relações raciais e
a cultura negra no Ceará.
80

Quadro 6 Tese, Dissertações e/ou livros de aquilombamento cearense nas diversas áreas do conhecimento (2011 a 2018) parte I
Anos 2018 2018 2018 2014
Autor SILVA, Samia Paula dos Santos. SILVA, Cristiane Sousa da. SANTOS, Ana Paula dos. SILVA, Carlos Alberto
es/as SANTOS, Marlene Pereira dos. Alencar, MILITÃO, João
CUNHA JÚNIOR, Henrique. BIÉ, Wanderley Roberto.
Estanislau Ferreira. SILVA, Maria
Saraiva da. (Orgs.)
Título Afro Ceará Quilombola. Do Quilombo Sítio Veiga à Educação Escolar Quilombola no Histórias de luz: 100 anos
universidade: uma experiência Cariri Cearense: africanização da sem Dragão do mar -130 da
extensionista antirracista no Sertão escola a partir de pedagogias de Abolição no Ceará.
Central Cearense quilombo.
Objetivo Aprofundar o olhar sobre as Analisar ações extensionistas do Investigar fatores do repertório Dirigir outros olhares e
comunidades núcleo Multidisciplinar em cultural afrocarcarense que são lançar outras luzes sobre as
de quilombos do Ceará e da Ensinamento Quilombola importantes para o currículo histórias do Chico da
história e cultura dos (NUMEQ), e sua contribuição para escolar quilombola na comunidade Matilde, o Dragão do mar,
descendentes de africanos em uma educação antirracista no Ensino em questão, tendo como por conta de seus 100 anos de
dispersão. Superior privado em Quixadá- referências, a Lei 10.639/03. falecimento e os 130 anos da
Ceará. libertação dos escravizados
no Ceará.
Palavras- Quilombola. História. Afroceará. Educação antirracista. Extensão Cariri cearense. Quilombo História do Ceará. Abolição.
chave Brasil. universitária. Experiência Carcará. Pedagogia do quilombo. Ceará. Dragão do Mar.
antirracista.

Áreas História e Educação Educação Educação História do Ceará


Fonte: Elaborado pela autora.
81

Quadro 7 Tese, Dissertações e/ou livros de aquilombamento cearense nas diversas áreas do conhecimento (2011 a 2018) parte II
Anos 2011 2011 2012 2016 2016
Autores/as SOBRINHO, José Hilário JÚNIOR, Henrique NASCIMENTO, SILVA, Cláudia
Ferreira. Cunha, SILVA, Joselina Joelma Gentil. Oliveira da.
da, NUNES, Cícera
(Org.).
Título Catirina, minha nêga, tão Artefatos da Cultura Memórias organizativas do Construindo o
querendo te vendê: Negra no Ceará. (Livro) movimento negro cearense: pertencimento
escravidão, tráfico e algumas perspectivas e afroquilombola através
negócios no Ceará no século olhares das mulheres das contribuições da
XIX (1850-1881). militantes na década de pretagogia no quilombo
oitenta. da Serra do Juá-
Caucaia/CE
Objetivo Destacar os registros da Reunir uma coletânea de Contribuir com a discussão Ampliar o significado
presença negra no Ceará do textos e pesquisadores acerca de alguns aspectos do pertencimento
século XIX. que levantam um organizativos do afroquilombola na
conjunto de movimento negro no Serra do juá em
conhecimentos das Ceará, na década de Caucaia- Ceará.
africanidades e oitenta, do século XX.
afrodescendências
cearenses.
Palavras- Tráfico interprovincial. Cultura negra. Educação. Movimento negro Pertencimento.
chave Condições sociais. Lei 10.639/2003 cearense. Mulheres Afroquilombola.
Ceará. militantes. Mulheres Pretagogia.
negras. Movimento social
negro.
Áreas História do Ceará História e Educação Educação Educação
Fonte: Elaborado pela autora.
82

A obra de José Hilário Ferreira Sobrinho é uma referência sobre o tráfico


interprovincial no século XIX. De igual modo, é uma das referências para o entendimento da
distribuição da população negra no território cearense. Os dados e reflexões estão imbricados
na escrita, na elaboração dos gráficos e mapas da distribuição da população negra no território
cearense, no século XIX, que compõem o Capítulo 03.
O livro dos artistas cearenses, Carlos Alberto Alencar Silva e João Wanderley
Roberto Militão, reúne artigos relacionados à vida de Dragão do Mar e ao processo de abolição,
desconstruindo, portanto, os mitos de que não tem negros e negras no Ceará e inexistem
quilombos em nosso território. Questiono a falsa liberdade e as relações entre raça e classe na
sociedade cearense.
Além desses, as 2 (duas) dissertações e a tese destacadas no Quadro 04 são de
autoria das pesquisadoras negras: Cristiane Sousa da Silva, Ana Paula dos Santos e Cláudia
Oliveira da Silva, respectivamente. As 2 (duas) primeiras estudiosas retratam perspectivas
distintas dos quilombos. A primeira trabalhou com o quilombo na Região do Sertão Central e
a segunda pesquisou no cariri localizado na Região Sul do Ceará. A terceira autora, por sua vez,
é quilombola e pesquisou o pertencimento afroquilombola na Região Metropolitana de
Fortaleza.
As pesquisadoras trabalharam concepções de Educação, quilombo, oralidade,
memória, marcadores das africanidades, Pretagogia, de Educação Escolar Quilombola em
espaços formais e não formais. Esses percursos constituem as referências para o entendimento
das territorialidades quilombolas do Ceará.
Os livros Afroceará Quilombola e Artefatos da Cultura Negra nem grupos de
pesquisas cearenses e demais autores parceiros de outros estados com seus estudos relacionados
à História do Ceará, à Educação Escolar Quilombola, aos povos quilombolas do Cariri cearense
e do município de Horizonte, conforme observados nas áreas de conhecimento e nos títulos,
destacadas no Quadro 06.
Quanto às palavras-chave presentes no segundo quadro teórico, destacam-se:
quilombo, Ceará, abolição, História e Educação, entre outras. Os(as) autores(as) e as suas
pesquisas e práticas pedagógicas no contexto estadual, promovem o aquilombamento
geográfico com as diversas áreas do conhecimento, ampliando, assim, o entendimento
Geohistórico dos quilombos do Ceará.
No intuito de romper com as percepções reducionistas do quilombo, estou partindo
desses olhares, ora de quilombolas, ora de intelectuais negras, negros e brancos, indígenas, entre
outras referências, que abordam as formas de ser e estar no mundo de povos afro-diaspóricos.
83

Essas referências teóricas me fortalecem durante a travessia e revelam contextos e


fazeres de diferentes regiões do país e do Ceará, da Geografia, de outras áreas do conhecimento,
engajadas politicamente na construção da sociedade antirracista. Essas produções sinalizaram
que a Geografia aquilombada está cada vez mais preocupada e engajada com a questão racial.
Com o intuito de reconstruir, ainda que parcialmente, alguns caminhos da presença
do povo negro no território cearense, o capítulo seguinte demarcou registros, principalmente,
dos séculos XVIII e XIX e caracterizou quizilas, éjós e ébós nas relações raciais, nas
encruzilhadas dos sertões.
Entendendo a Geografia como sendo a ciência do território a partir de Sanzio
(2013), esta tese buscou as marcas da historicidade ancestral e espacial e registrou agentes que
atuaram nas lutas do povo negro e quilombola cearense. Além disso, capturou as linhas de força,
ou seja, os marcadores das africanidades, que compõem as trajetórias quilombolas sertanejas.
84

3 O POVO NEGRO NAS ENCRUZILHADAS SERTANEJAS DO CEARÁ

Padê de Exu28-libertador

Exu, tu que és o senhor dos caminhos da libertação do teu povo


Sabes daqueles que empunharam teus ferros em brasa
Contra a injustiça e a opressão
Zumbi, Luzia Mahin, Luiz Gama, Cosme Isidoro e João Cândido
Ofereço-te exu o ebó das minhas palavras
Neste padê que te consagra, Laroiê!
(NASCIMENTO; TRINDADE, 1981).29

3. 1 Na encruzilhada, a luta é ancestral

Apresento os caminhos das vilas litorâneas, sertanejas e serranas da capitania do


Ceará, a fim de quantificar e mapear a presença do meu povo no território. Enxergo a cada
encruzilhada percorrida, um ponto de força que atuou, especificamente, ao longo do século XIX
e provocou movimentos: sejam eles populacionais e culturais, sejam econômicos. Laroiê!30
Salve Exu! Salve as encruzilhadas!
As encruzilhadas são os domínios e reinos de Exu: divindade cultuada nas religiões
de matriz africana e afro-brasileira da Quimbanda, Umbanda e no Candomblé. Olhar para as
encruzilhadas de Exu é movimentar-se em prol da transformação que impulsiona a enxergar
outros horizontes. É na encruzilhada em que são apontados os diversos caminhos e as
possibilidades nas travessias.
Exu é a força que me movimenta e me inspira a comunicar. O cruzamento vibratório
entre 2 (duas) pessoas me gerou, logo é onde está Exu, ou seja, no cruzamento de minha
trajetória e dos meus ancestrais que percorreram as encruzilhadas dos sertões cearenses.
Exu reside nos entrecruzamentos de ruas ou estradas e acompanhou o povo africano
e seus descendentes. Exu é a própria ambiguidade da sociedade brasileira com suas ideologias
e hierarquias raciais e sociais reveladas na formação socioterritorial da província cearense.

28
Exu, além de ser um orixá da tradição iorubana, é a síntese do princípio dinâmico que rege o universo, possibilita
a existência, sendo, também, a mais polêmica entre as forças invisíveis que regem as concepções filosóficas
jejes-iorubanas na África e na Diáspora (LOPES, 2011).
29
Compilei um trecho do poema Padê de Exu Libertador, de Abdias do Nascimento e Solano Trindade, escrito e
publicado em 1981. Disponível em: https://ipeafro.org.br/acervo-digital/audio/poesia/. E outro trecho do
poema exibido no filme Exu Rei Abdias do Nascimento. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=tIIqqtve-cI. Acesso em: 01 out. 2019.
30
É uma saudação a Exu. Do ioruba Làróyé. É um dos nomes de Exu (LOPES, 2011). A saudação: Láròyé
significa ele é controverso! àróyé significa debate, controvérsia, discussão (ALEXANDRE, 2021).
85

Exu intervém nos opostos ilusórios para a evolução dos filhos na Terra, como por
Ess
transformação, das imprevisibilidades, trocas, linguagens, comunicações e toda forma de ato
ODRIGUES JÚNIOR, 2016, p. 02). Situo-me na percepção dos autores quando
afirmam que Exu se manifesta como princípio epistêmico, dialógico, do conflito, do saber, do
ser, do sentir, do pensar. Já a encruzilhada é o lugar em que ocorrem os deslocamentos físicos,
cognitivos, as práticas científicas e pedagógicas.
Percebo, em levantamentos oficiais, por exemplo, o èjó da hierarquização racial em
relação à escravização africana no Ceará e o èjó do apagamento da formação dos quilombos
consideradas, entre outras, reações de inconformismo e resistência.
No entanto, é preciso entender que escravos ou libertos, de origens étnicas diversas,
os povos africanos têm uma historicidade que, segundo Funes (2002, p. 103):

[...] não pode ser percebida de forma dicotomizada e muito menos analisada entre o
conformismo e a resistência. Há toda uma experiência social construída
historicamente pela etnia (pretos, pardos e mulatos), marcas visíveis de sua
sociabilidade, de seu engajamento no mundo do trabalho, de suas práticas culturas e
lutas contra a discriminação e o preconceito.

No contexto das relações raciais quizilentas no Ceará, o surgimento das Sociedades


Libertadoras Cearense ressaltou os èjós, ocasionados pelos brancos da elite abolicionista com
o apagamento histórico dos trabalhadores mulatos e libertos que protagonizaram a resistência
e a luta por liberdade, no 25 de março de 1884.
Na perspectiva do dia 25 de março ressignificado, os registros na imprensa de 1884,
bem como no cinquentenário da abolição, em 1934, e as suas relações com as sociedades
libertadoras e com o Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará (IHGACE),
revelam a construção da memória e das celebrações em torno do dia 25 de março oficial.
Nos jornais, O Libertador, relacionado ao ano de 1884, e O Nordeste, referente ao
ano de 1934, ressalto os èjós que silenciam vozes negras cearenses. Questiono, portanto, os
sentidos da falsa liberdade e suas implicações para a sociedade cearense.
Para que se deixe morrer em paz as versões oficiais do 25 de março embranquecido
e elitista dos livros, da Imprensa, das pesquisas e da história distorcida, apresento o discurso do
militante, artista, intelectual e deputado federal, Abdias do Nascimento, no centenário da
abolição.
Relaciono, ainda, as festas de negros no 25 de março de 1984 ressignificado,
elencando os maracatus Az de Ouro e Vozes da África, alguns dos mais antigos e atuantes,
86

como símbolos da verdadeira festa que representa a liberdade, a partir de notícias na Imprensa
e da pesquisa de Marques (2009a).
Ressignifico o ebó dos caminhos, o ebó de comportamento, o ebó de proteção e da
limpeza, na busca de afastar o carrêgo do colonialismo e da opressão, e de seguir os caminhos
abertos pela organização social e política do movimento socioterritorial quilombola na busca
de exigir políticas públicas reparadas das desigualdades raciais.
Para Munanga (2020, p. 13), o movimento
ideologias capazes de atingir as bases populares e convencê-las de que em adesão as novas

A nossa presença enquanto maioria do povo cearense e, ao mesmo tempo, o


combate aos diversos tipos de violação dos direitos, inclusive do acesso à terra que as
populações negra e quilombola cearense enfrentaram nos últimos 4 (quatro) séculos e ainda
enfrentam em pleno século XXI, constituem um dos principais marcadores das africanidades
que nos circunda. Entendo, portanto, que a luta coletiva que é ancestral, contínua e fortalece os
povos negro e quilombola do Ceará.

3.2 A diáspora congo-angolana, moçambicana e seus descendentes nos sertões cearenses

O entendimento da diáspora africana revela as características herdadas pelo povo


afrodescendente cearense. Logo, possibilita realizar uma conexão com as diversas culturas,
línguas e religiões transplantadas para o Brasil e para o Ceará de forma autoritária durante o
processo de escravização.
O tráfico demográfico da África para o Brasil, segundo Anjos (2013, p. 140, grifos
no original
[...], a ponto de se tornar impossível precisar o número de africanos retirados de seu habitat
com sua bagagem cultural [...] para a formação de uma nova realidade .
Os estudos de Anjos (2011b, 2013), Gomes (2019), Alencastro (2018), Alpers
(2018), Parés (2018) e Slenes (2018) indicam aproximações de 10 a 13 milhões de vidas
africanas em diáspora. Nesse contexto, dos africanos desembarcados vivos no Brasil entre 1500
e 1867, cerca de 75% vieram da África Centro - Ocidental (Gabão-Congo-Angola) e 25% são
oriundos da África Ocidental ou Costa da Mina (Baía do Benim, Senegâmbia, Senegal, Gabão
e Nigéria) e da África Oriental, principalmente, de Moçambique. (ALENCASTRO, 2018;
ALPERS, 2018; PARÉS, 2018; SLENES, 2018; GOMES, 2019).
87

Vale ressaltar que, no Brasil, o número de africanos legal e ilegalmente


desembarcados é controverso, diante dos registros e das estatísticas que foram mascaradas para
esconder fraudes contábeis e fiscais à coroa portuguesa. Desse modo, este estudo afro-
diaspórico ressignifica e reinterpreta as origens de africanos e afrodescendentes com vistas às
aproximações dos ancestrais em diáspora que chegaram ao Ceará.
Abordar a diáspora africana é compreender quais foram as nações africanas e as
suas identidades reveladas no Brasil. Resultam dessas relações diaspóricas transatlânticas, a
presença africana e afrodescendente na composição populacional, na formação cultural do
povo, na construção das vilas coloniais, na mão-de-obra das fazendas e engenhos de açúcar, no
comércio e na formação dos quilombos.
Ressalto que, o conceito geográfico de diáspora relacionado
a dispersão de uma população e das suas matrizes culturais e tecnológicas. [...] Podemos
identificar a construção , 2011b, p. 263).
Nesse sentido, compreendo que a construção de territorialidades quilombolas materializa essa
perspectiva da dispersão negra no Ceará e representa uma das resistências africanas e afro-
brasileiras contínuas que ocorreram desde a saída do continente africano até as fugas das
propriedades rurais para o quilombo.
Entendo que as fugas são reações significativas à opressão escravista, ao mundo
capitalista, à exploração de uma nação sobre outra e à hierarquização das raças, buscando a
recriação dos modos de vida africano no território cearense.

(RODRIGUES JÚNIOR, 2016, p. 05), a diáspora africana ao cruzar o Oceano Atlântico


e encruzar os diversos povos, incidiram diversos caminhos e abordagens epistemológicas. Esta
abordagem sobre a diáspora partiu da concepção de Anjos (2011b), que considera os séculos
de deslocamentos forçados como agentes que estabeleceram fronteiras constituídas e impostas
com o objetivo de expandir o capitalismo.
A palavra diáspora , de acordo com Lopes (2011), tem origem grega e significa
dispersão. O fluxo afro-diaspórico pode ser considerado um movimento migratório violento e
autoritário do tráfico de escravizados que espalhou negros africanos por todos os continentes.
No campo da Geografia da População, percebe-se que a diáspora configurou-se como um
movimento migratório que dispersou povos africanos no mundo com a finalidade comercial nas
colônias das matrizes europeias. Esse fenômeno compreende dois momentos:
88

O primeiro, gerado pelo comércio escravo, ocasionou a dispersão de povos africanos


tanto pelo Atlântico quanto pelo oceano Índico e mar Vermelho, caracterizando um
verdadeiro genocídio, a partir do século XV quando talvez mais de 10 milhões de
indivíduos foram levados, por traficantes europeus, principalmente para as Américas.
O segundo momento ocorre a partir do século XX, com a emigração, sobretudo para

também para designar, por extensão de sentido, os descendentes de africanos nas


Américas e na Europa e o rico patrimônio cultural que construíram. (LOPES 2011, p.
453).

Segundo Cashmore (2000, p. 169-171), emergem três enfoques da noção de


diáspora, seja como categoria social, seja como forma de conscientização, ou ainda de produção
cultural.

Na primeira o termo refere-se a uma comunidade cujas redes sociais, econômicas e


políticas atravessam as fronteiras das nações-estado. Na segunda, refere-se à
consciência individual de uma extensão de conexões descentralizadas e
multilocalizadas, de estar
Na terceira, a ênfase recai sobre a fluidez dos estilos construídos e das identidades
entre os povos na diáspora. Trata-se da produção e reprodução de formas hibridas de
cultura. (CASHMORE 2000, p. 169-171).

Trata, aqui, do primeiro momento da diáspora africana, com a chegada dos povos
nas principais províncias brasileiras recebedoras de milhões de escravizados. No segundo
momento, discuto as origens e as heranças dessa dispersão no território cearense. Para tanto,
considero os pontos de embarque, na África, e de desembarque, no Brasil, dos povos que
chegaram nas rotas do tráfico. Ademais, ressalto alguns aspectos influenciadores na produção
e na reprodução das culturas africanas no Ceará.
Percebo que os 3 (três) enfoques da diáspora estão presentes na formação do povo
brasileiro e cearense. Na vivência afro-diaspórica, nas práticas culturais e nos modos de ser e
estar no mundo, quando são re-construídos, re-inventados, re-significados e re-conectados pelos
povos africanos diante dessa migração forçada.
Desse modo, é desafiador e instigante costurar essa narrativa negra e quilombola
que, muitas vezes, sofreu ameaças e apagamentos da sua memória e de sua trajetória diante de
um sistema capitalista em expansão. E, a busca pelo lucro de seus algozes, obrigava estes a,
muitas vezes, negar suas origens afro-diaspóricas.
Os registros históricos são marcados por estereótipos e lacunas quanto às origens
dos africanos e afrodescendentes que viveram nas vilas coloniais cearenses, salvo os estudos
baseados em fontes orais e nas trajetórias de vida dos ancestrais negros. Nesse sentido, persigo
evidências históricas que indiquem a presença, as origens e os caminhos percorridos pelos
povos africanos e pelos seus descendentes no Ceará.
89

Em se tratando dos momentos distintos da diáspora, esses se relacionam aos


períodos e rotas do tráfico transatlântico. Os estudos de Verger (1987, p. 9) apontam quatro
períodos, são eles o ciclo dos países de língua Bantu,
principalmente, o Congo e Angola (século XVII); o ciclo da Costa da Mina (século XVIII); e o
ciclo da Baía do Benin (até meados do século XIX). Verger, baseou-se em documentos e
registros náuticos entre os países, com ênfase nos maiores polos do tráfico de escravizados de
África-Brasil/Nordeste, inclusive, concentrando-se no comércio entre a Bahia e o Benim. É
interessante perceber que desses povos africanos escravizados que desembarcaram na Bahia,
constitui uma das rotas da dispersão africana interprovincial, especialmente, para o Ceará
(SOBRINHO, 2011).
Nas trilhas dos estudos de Verger (1987), os 4 (quatro) períodos do tráfico negreiro,
estabelecidos em Gomes (2019), possuem a mesma escala cronológica daquele autor, ou seja,
do século XVI a meados do século XIX. Os estudos de Alpers (2018) acrescentam as análises
de Verger, ao considerar que o último período histórico da escravidão foi a dos africanos
orientais vindos, principalmente, de Moçambique. Esse representou, portanto, uma segunda
etapa da chegada do povo de língua Bantu ao Brasil e ao Ceará (SOBRINHO, 2011; RIEDEL,
1988).
Em função da escravização, os pontos de embarque de homens e mulheres
provenientes de diversos países africanos e de microssociedades caracterizavam-
descentralizadas da Alta Guiné e da Senegâmbia como de impérios e reinos do Daomé, Oyó,
Ndongo, Ketu, Matamba e outros; ou de cidades como Uidá e Luanda, nas áreas ocidentais e
centrais africanas, entre savanas e florestas.
Outra perspectiva da diáspora, são os estudos de Anjos (2011b, 2013) que revelam
4 (quatro) rotas da diáspora africana, indicam os territórios africanos mais atingidos pelo tráfico
transatlântico, remontam às origens e os destinos desses deslocamentos com a representação
gráfica por meios de mapeamentos dos quantitativos de africanos transportados nessas rotas da
escravização transatlântica.
Baseada nesse autor, apresento as 4 (quatro) rotas da diáspora africana, as regiões
de embarque nos países africanos e os destinos dos povos vítimas do tráfico e da escravização
transatlântica no território brasileiro. Esses fluxos estão sintetizados no Mapa 2:
90

Mapa 2 Rotas da diáspora africana no Brasil (Século XVI-XIX)

Fonte: Adaptado por Rosilene Aires a partir de Anjos (2011b, p. 264; 2013, p. 144) e Alpers (2018).
91

Conforme os estudos de Anjos (2011b) e o Mapa 2, no século XVI, a rota da Alta


e Baixa Guiné correspondeu aos limites internacionais que, atualmente, compreende os
seguintes países: Serra Leoa, Senegal, Guiné, Guiné-Bissau, Nigéria, Benin, Burkina, Faso,
Gana, Costa do Marfim, Libéria, Mali e Gâmbia. Os quantitativos africanos tinham destinos
diversos ao chegar ao Brasil, tais como: Pernambuco, Bahia, Maranhão e Grão-Pará.
Esse é o ciclo da Guiné, representado no primeiro quadro do Mapa 02, tendo como
portos de origem o Senegal, a Senegâmbia e Guiné-Bissau, passando por Cabo Verde
(VERGER, 1987; GOMES, 2019; ANJOS, 2011b). Conforme Parés (2018), a Alta Guiné
corresponde à região que se estende desde o rio Senegal (atual Senegal) até o cabo Monte (atual
Libéria) e o cabo Lopez (atual Gabão), e constituiu o ponto de embarque no século XVI. Nessa
região, algumas das línguas faladas são até hoje: wolof, serer, balanta, fula, temne, além da
matriz mandê (mandinga, soninke, bambara), ou seja, é uma região que apresenta uma
diversidade cultural dos povos.
O segundo quadro representa a rota nos séculos XVII e XVIII, em que, além da
Guiné, prevalecia a Costa de Angola e
corresponde atualmente aos países de: Angola, Gabão, República Democrática do Congo e
Guiné- (ANJOS, 2011b, p. 263). Os destinos dos africanos no Brasil foram: Bahia,
Pernambuco, Alagoas, Rio de Janeiro, São Paulo e outras regiões do Centro-Sul do Brasil.
Estabelecida no século XVII, essa rota de escravização congo-angolana, de onde
vieram a maioria dos escravizados, se estendeu até 1850. Na África, o maior porto de embarque
foi Luanda, hoje capital de Angola, de onde saíram 2,8 milhões de escravizados neste período
(ANJOS, 2011b; GOMES, 2019).
O outro ponto de origem foi a antiga Costa da Mina, compreendida, atualmente,
pelos territórios nacionais: Costa do Marfim, Libéria, Burkina Faso, Mali, Niger, Congo, Gana,
Togo, Benin, Nigéria, Camarões. Os principais destinos no Brasil destes escravizados foram:
Grão-Pará, Maranhão e Rio Grande do Norte.
O quadro 03 (três) do Mapa 2 representa a rota do século XVIII e os estudos de
Verger (1987) sobre a região da Costa da Mina e do Benim com o Brasil, considerada a principal
rota dominada pelos baianos sendo os seus maiores traficantes. O segundo maior ponto de
embarque nesse ciclo foi Ajudá, na cidade de Uidá, no Benim, com 1 (um) milhão de pessoas
embarcadas. E, o terceiro foi a província angolana de Benguela, com 764 mil pessoas
embarcadas (GOMES, 2019).
92

No século XIX, segundo Anjos (2011b), a rota do povo Bantu tem origem na Costa
Angolana e na Costa de Moçambique e não destacou os destinos brasileiros desse período
devido à proibição do tráfico e os consequentes apagamentos de registros dos quantitativos
africanos escravizados.
O último quadro do Mapa 2 constitui as rotas no século XIX vindas, principalmente,
de Moçambique, da Costa da Mina e da Costa de Angola. Conforme Alpers (2018), os africanos
embarcados na foz do

Tanzânia. Os registros de grupos étnicos distintos como os makuas (Norte de Moçambique), os


mucenas (vale do Zambeze) e os yaos da África-Centro-Oriental, indicam as distorções das
identidades africanas na diáspora.
Em menor proporção e no período mais recente da diáspora a presença dos africanos
orientais foi ocasionada, segundo Alpers (2018), devido ao baixo preço que atraiu os
mercadores portugueses, além da anulação prévia da Coroa em relação ao tráfico direto entre
Moçambique e o Brasil. Esses são alguns fatores que possibilitaram, durante a primeira metade
do século XIX, a efetivação do embarque de escravizados da ilha de Moçambique e dos portos
de Ibo, Quelimane, Inhabane e da baía da Lagoa.
Em síntese, as regiões da Costa da Guiné e a Costa da Mina, portanto, são os lugares
que sediaram o embarque e o comércio dos dois primeiros ciclos de dispersão africana no Brasil.
Tem-se, assim, uma maioria de povos com origem Bantu, embarcados nos diversos portos de
origem africana, destacados no Mapa 2.
Os grupos étnicos que constituem os povos Bantus da África Centro - Ocidental,
provavelmente, escravizados no Brasil, foram os fangs e seus aparentados mbulus e betis
(Gabão); os bacongos, com seus subgrupos (Angola/Congo); os ovimbundos, localizados em
Benguela (Angola); os bundos, localizados na área litorânea ao Norte de Luanda (Cuanza); e
os hereros (Angola e Namíbia); os congos, localizados na Região Setentrional de Angola; além
dos ba-ronga, ba-tonga, bashope, ba-senga, ba-ngon (nguni) e da Àfrica Oriental, os macua e
ajaua (Moçambique) (LOPES, 2014a; RIEDEL, 1988).
Em relação ao primeiro ciclo, os africanos eram vendidos como sudaneses ou

tempo, os navios negreiros procedentes do Congo e de Angola tinham que pagar impostos na
a, p. 27). Esses aspectos
93

explicam possíveis erros históricos e científicos ao retratarem a origem africana dos diversos
povos correlacionando-os somente aos pontos de embarque quando, na verdade, foram
capturados de diversos países.
Nesse primeiro momento, a região da Amazônia traficou 142 mil escravizados.
Desse total, o Maranhão e o Pará receberam cerca de 97 mil escravizados vindos,
possivelmente, da Costa Ocidental Africana da chamada Senegâmbia composta pelo Senegal,
Gâmbia, Guiné-Bissau e Guiné-Conacri (GOMES, 2019).
Neste período, as etnias africanas escravizadas nas fazendas e engenhos brasileiros
eram diversas. Essas reagiam a condição imposta, enfrentando determinados estereótipos e
perseguições. Em fins do século XVI, autoridades consideravam um dos principais inimigos da
, em geral, os africanos escravizados),
fugitivos que viviam em algumas serras e faziam assaltos às fazendas e engenhos (GOMES,
2015). Certamente, essas foram as primeiras resistências afro-diaspóricas no território
brasileiro.
Um dos registros dessa resistência africana ocorreu no século XVII, na conhecida
República de Palmares, localizada no atual Estado de Alagoas. Ocorria o aquilombamento do
povo Bantu dos atuais territórios nacionais de Angola e Zaire, os quais enfrentaram uma forte
repressão e inúmeras violências de autoria, principalmente das autoridades imperiais
pernambucanas, entre outras (FUNARI, 1996; PRICE, 1996).
O ciclo da Costa da Mina, isto é, do Benin, ocorreu a partir do século XVIII e
constituiu uma das últimas rotas do tráfico de escravos para o Brasil, no qual os iorubas e malês
chegaram às províncias brasileiras (LOPES, 2014a; RIBEIRO, 2014). Esses povos foram
transportados na condição de escravizados, sendo os malês das peules (fulas, fulbés ou fulanis)
e os tucolores que se localizam basicamente no território senegalês. Além dos hauças,
mestiçados com os fulas, da Nigéria; os mandingas da Guiné-Bissau e de Gana; os fulas do
Senegal, do norte da República dos Camarões, incluindo o norte da Nigéria e países vizinhos,
e , que podem ser negros mandingas, nagôs, fulas, tucolores, hauças, etnias que mais
deram negros islamizados ao Brasil. (LOPES, 2014a, p. 53 grifo do original).
Dos africanos ocidentais, Parés (2018) indica que vieram, principalmente, do
Benin, dos povos do seu entorno além da Nigéria. Foram chamados de escravos da nação
-se pela Bahia (75,6%), em menor número, em Pernambuco (11,4%), no
Maranhão (8,2%), e no Sudeste (4,2%).
94

O escravo mina era definido como aquele vindo da África Ocidental, ou seja, da
chamada Costa da Mina, sobretudo, do Golfo do Benim. Tratava-se de um nome genérico para
designar os nagôs (iorubas), jejes (aja-fon, daomeanos), haussás (aussá, ussá). Eram africanos
de Cabo Verde, Gabão, São Tomé, Calabar, entre outros. (REIS, 2010; SCHWARTZ, 1996).
O povo Iorubá encontrado, principalmente, no Benim e na Nigéria, foram
transferidos para o Brasil e ficaram conhecidos, também,
ijexá, eubá ou egbá, ketu, Ibadan, yebu ou ijebu e grupos menores). Essas etnias africanas
aportaram no Brasil e grande parte era islamizada. Foram escravizados e resistiram às opressões
desse sistema, ao longo do século XIX, em terras baianas.
É comum agrupar as revoltas dos malês em dois ciclos: no primeiro, as que
ocorreram entre 1807 e 1814; e no segundo, as revoltas ocorridas entre 1822 e 1835. Esses
levantes promoveram o êxodo de escravos e libertos para a Corte do Rio de Janeiro, como
tentativa de desarticulação e sufocamento da revolta africana malê. (SANTOS, 2015b;
RIBEIRO 2013; LOPES, 2011; REIS, 2010).
A rebelião de 1807 ainda que revelasse uma organização cuidadosa só provocou
pânico entre a elite dos senhores e autoridades e sofreu uma forte repressão. (SANTOS, 2015b).
A rebelião de 1814 foi a do povo haussá que atacou fazendas e engenhos. Esses se constituíam
apenas por 6% dos escravizados na Bahia, além dos libertos que viviam na cidade de Salvador
e em seus arredores. Posteriormente, os africanos das diversas origens e já aquilombados
recrutavam pessoas nos cantos que eram realizados por grupos de trabalho em vários pontos da
cidade de Salvador:
Benguela etc), entre outros. Nos c
1996, p. 383).
A revolta de 1830 eclode em um ataque viole 18
rebeldes e termina com mais de uma centena; os cabeças, nagôs muçulmanos, se vestem de
camisas azuis e vermelhas; [...] Seguiu- b, p. 111).
Ao passo que muito povos africanos foram traficados para Salvador, as revoltas foram
significativas para resistir as opressões da escravização, tornando-se inspiração para as demais
Províncias.
Nesse contexto, a cidade de Salvador pode ser considerada a segunda mais
populosa, em 1830, sendo a primeira o Rio de Janeiro, principal ponto de desembarque do
tráfico. Assim,
de Oyó e circunvizinhança, aqui incluindo Ilorin 2010, p. 36). Salvador foi o segundo
95

porto negreiro brasileiro, recebendo cerca de 1,6 milhão de escravizados que, aos poucos,
migraram para as outras Províncias, dentre elas a Província do Ceará.
A grande insurreição de 1835 ocorre nesse cenário. Os nagôs se vestiam de branco,
tinham capitães e decidiram que os inimigos eram todos os brancos, pardos e crioulos. A
articulação foi realizada fora da cidade, com escravizados do Recôncavo Baiano e ainda com
281, sendo 5 condenados à
, p.112).
Mais da metade desses povos africanos veio da chamada Costa dos Escravos, entre
o Benim e a Nigéria (GOMES 2019). A diversidade étnica e a mestiçagem entre as etnias estão
presentes nos minas e nos iorubás, em diáspora, refletidas nas re-existências de suas culturas e
tradições em diversos lugares do Brasil e no culto às divindades africanas, por exemplo.
Reexistir significa, reviver e adaptar as práticas dos ancestrais africanos ao contexto brasileiro
e cearense.
De acordo com Rodrigues Júnior (2016, p. 08
populacional forçada da história foi, também, o cruzar de infinitas sabedorias e experiências

Essas rotas transatlânticas e os registros das lutas quilombolas são algumas pistas
das origens africanas dos escravizados no Brasil, que se concentraram no Nordeste para se
dispersar no Sudeste e no Norte brasileiro.
Nessa perspectiva regional, Recife, estado de Pernambuco, constituiu o terceiro
porto negreiro brasileiro com um fluxo de 854 mil pessoas. Quase 90% destes desembarcados
saíram de Angola e Congo, dispersando-se nessa rota migratória para o Ceará (GOMES, 2019).
Em relação à diáspora africana na porção do Norte brasileiro nesse ciclo, destaco o
tráfico de 12 mil escravos da Companhia do Comércio do Grão-Pará e Maranhão (1755-1777).
Ocorre que se iniciou um tráfico humano intenso que culminou com a importação de outros 40
mil africanos escravizados durante as primeiras décadas do século XIX, evidenciando uma
terceira via migratória de escravizados africanos que podem ter chegado ao Ceará provenientes
de Guiné e Angola (ASSUNÇÃO, 1996; GOMES, 2015).
A relação direta entre os portos africanos e o norte brasileiro ressalta que aos poucos
a presença africana ocorreu no cotidiano da sociedade amazônica. Como maioria dos
escravizados africanos identificados predominav
Beijogo, Guiné, Benguela, aparecendo em menor número os de Mina e Moçambique, entre
outros. (FUNES, 1996, p. 470).
96

No Maranhão, consta que os grandes quilombos coloniais eram liderados por


31
africanos, como João Congo. E, nos quilombos tardios ,a
, e portanto, mais
integrados à cultura sincrética afro- , p. 461). Uma
das lideranças do quilombo tardio no Maranhão foi Cosme Bento das Chagas, conhecido como
Negro Cosme. Muito pouco se sabia de sua origem, somente que era de Sobral, uma das vilas
colônias da Província do Ceará e que tinha mais ou menos 40 (quarenta anos). Conquistou a
sua liberdade em 1830, era alfabetizado e tinha a fama de ser feiticeiro.
Ao longo dos ciclos do tráfico houve, portanto, inúmeras ações de resistências dos
povos africanos. A correlação entre os pontos de embarque e os seus respectivos portos de
destino no território brasileiro, especialmente, nas Províncias, são aspectos fundamentais para
o entendimento da diáspora africana do Ceará.
Das culturas africanas transplantadas para o Ceará, o povo Bantu por exemplo, é
- 30). Portanto,
os africanos bantos (Congo e Angola) e makuas (Moçambique) compõem, assim, alguns dos
principais grupos étnicos africanos centro-ocidentais e orientais que chegaram ao território
cearense.
Algumas pistas indicam os caminhos percorridos e as ligações com o continente
africano e com as migrações internas das Províncias da Bahia, de Pernambuco, Maranhão e
Piauí e a formação dos territórios quilombolas no Ceará. O primeiro aspecto a ser considerado
nesse processo é associar a presença africana na formação socioterritorial do Ceará, a partir das
seguintes frentes colonizadoras ou dos caminhos do gado:

[...] uma tinha seu núcleo de procedência na B


ncia,
Pernambuco, Rio Grande do Norte e P
capitania e , 1979, p. 327).

Estes são alguns dos caminhos da ocupação do território que seguiu cursos dos rios
do sertão para o litoral, formando as 16 (dezesseis) vilas coloniais iniciais em diferentes partes
da Província, com o estabelecimento de pequenos núcleos urbanos, a implantação de fazendas
voltadas à pecuária e os engenhos de açúcar. Embora não seja dito pela história, as frentes
sertanejas de dentro e de fora, recebiam quantitativos populacionais negros do tráfico

31
, na perspectiva dos ciclos de escravização, , na perspectiva histórica
(ASSUNÇÂO, 1996).
97

interprovincial que dinamizaram os ciclos econômicos com a inserção dessa força de trabalho
escravizada no Ceará.
De acordo com Prado Júnior ((2011, p.45) o povoamento do Ceará é configurado
da seguinte forma:

São as serras32, que em maciços isolados se alinham sucessivamente ao longo da costa


e captam um pouco da umidade atmosférica; destacam-se por isso essas elevações
como oásis de terras férteis e cultiváveis em meio da aridez que as cerca. Tais serras
(Ibiapaba, Sobral Uruburetama, Baturité) atraíram e fixaram algum povoamento que
procura sua saída pelo mar próximo, dando lugar a pequenos portos que se arranjaram
como puderam nesta costa difícil: Camocim, Acaraú, Fortaleza- que será a capital da
capitania graças a sua posição central [...] O último porto cearense para leste, e
também o mais notável, Aracati[...]. Afora esses núcleos o litoral cearense é
desabitado. (PRADO JÙNIOR, 2011 p.45).

São os sertões e as serras que compõem núcleos de povoamento e, mais tarde


algumas vilas coloniais do litoral conforme destacado. Confirmando essa tendência Sobrinho
(2011, p. 53) afirmou que
dos rios, fazendo com que a ocupação do Ceará, assim como a do Piauí, fosse no sentido
Assim, a ocupação do sertão cearense ocorria mediante à atuação de grupos
militares com expedições, aldeamentos missionários e com a criação de imagens e concepções
distorcidas da realidade, quando a região era considerada oposta ao litoral, lugar distante, vasto,
vazio, quente, desabitado, sem lei nem regras (PINHEIRO, 2017). O sertão no Ceará
lugar da expansão, que esbarrava na resistência oferecida pelos negros, quilombolas e pelos
(PINHEIRO, 2017, p. 43).
Souza (2017) considera que a sociedade colonial no sertão cearense era colorida na
pigmentação da pele e nas disputas por terras, por cargos e pela luta para manter a vida. Ou

(PINHEIRO, 2017, p. 44).


Para Lima, Souza e Morais (2000), as superfícies sertanejas cearenses são
macrocompartimentos cristalinos e sedimentares submetidos a climas semiáridos secos e
semiúmidos, abrangendo cerca de 93% do território cearense. O principal marcador geográfico
do Ceará, portanto, é o domínio dos sertões
15). A presença negra no Ceará
ocorre nos sertões, especialmente no Sertões de Crateús que será destacado no Capítulo 4.

32
Grifo do autor.
98

No domínio sertanejo, a economia estava, assim, subordinada às condições de

agressiva ao extrem , 2019, p. 15), em que foram desenvolvidas atividades


agropecuárias, na maioria das vilas coloniais.
É, portanto, nos caminhos do gado que surgem as primeiras vilas coloniais do sertão
cearense. Além dessa atividade, nos séculos XVIII e XIX, ocorreu, ainda, o desenvolvimento
da lavoura algodoeira nos sertões e o cultivo do café nas áreas de serra (SOBRINHO, 2011).
Nesse contexto, a formação socioterritorial cearense é marcada pelo encontro de 3
(três) etnias continentais: a do ameríndio, a do conquistador branco e o africano. Segundo
Barroso (2019), os africanos que aqui chegaram, em sua maioria,
angolas, que em tudo acrescentaram o estilo conciso de seus desenhos, o apimentado e a doçura
de sua cozinha. Também eles conheciam os metais e artes outras, como a tecelagem e de fios e
BARROSO, 2019, p. 17).

para outra, seja pela compra ou por outras razões, não deve ser entendido como exclusivo do

escravizados realizado nessas frentes colonizadoras se tornaram as correntes de povoamento e


de ocupação da Província do Ceará, vindas de Pernambuco, Maranhão e Bahia, além de
escravizados vindos pelos portos de São Luís e de Recife.
Esse movimento populacional é confirmado em Girão (1956, p. 44-45), quando
afirma que,
primeira década de 1800 não entravam levas negreiras no Ceará. [...] Esses negros vinham da
Bahia e de Pernambuco, por terra. Só nos princípios do século XIX, é que se iniciara a

Estabelecer um olhar para a diáspora africana no território cearense a partir de


processos de migração forçada intercontinentais e interprovinciais é desafiador diante do
apagamento e da incompletude dos dados sobre os povos africanos na Província do Ceará.
Entendo que os caminhos percorridos possibilitaram enxergar, ainda que parcialmente, alguns
registros da presença africana e afrodescendente no território ao longo dos ciclos de
escravização que até o século XIX chegaram ao Ceará entrecortando os caminhos por outras
Provínicas.
Essas heranças negras sertanejas de resistência atravessaram o Oceano Atlântico e
os séculos na luta por liberdade, pela recriação do modo de vida africano, pela inclusão social,
99

pela permanência na terra e por igualdade racial. O Quadro 8, a seguir salienta a presença
africana ao longo dos ciclos de escravização no Ceará, inclusive, em estudos sobre a formação
dos territórios quilombolas contemporâneos:

Quadro 8 Registros da diáspora africana na província do Ceará do século XV ao século XIX

Sequência Origens Fontes Origem Destino Ano/século


africanas provincial
1º Negros Girão (1956) Pernambuco Cariri/ Sul do Ceará. 1618
d´Angola
2º Negros Girão (1956) Pernambuco, Cariri/Sul do Ceará. 1649
d´Angola Maranhão
3º Costa da Mina Bezerra (2012) Bahia Iracema/Quilombo de 1700
Bastiões.
4º Costa da Guiné Oliveira (1979) Sem registro Sem registro 1742

5º Angolanos e Riedel (1988) e Sem registro Cariri/Sul do Ceará. 1756


Costa da Guiné Oliveira (1979)
6º Sem registro Chaves (2013) Sem registro Itapipoca/Quilombo XVIII
de Nazaré.
7º Costa da Guiné Riedel (1988) Sem registro Uruburetama/Quilom 1881
bo Conceição dos
Caetanos.
8º Sem registro Ribeiro (2019) Maranhão/ Croatá/Quilombo XIX
Piauí Três Irmãos.
9º Sem registro Marques (2009b, Bahia/ Piauí Quilombos de XIX
2011) Tamboril
Brasil (1872)
Carvalho (2020)
Fonte: Elaborado pela autora.33

A presença africana no território cearense ocorre, inicialmente, da Região Sul do


Estado para o sentido dos Sertões e para o Litoral, conforme Girão (1956), Riedel (1988),
Oliveira (1979) e Sobrinho (2011). Esses autores argumentam sobre o comércio interprovincial
nos dois primeiros ciclos do tráfico de escravizados.
A origem africana destacada pode assumir 2 (dois) significados. O primeiro é
referência ao ponto de embarque nos países africanos para o Brasil; e o segundo é a origem
territorial daquele povo escravizado. Diante disso, compreendo que em diáspora são inúmeras
as camadas de identificação étnica e, ao mesmo tempo, é um desafio encontrar registros da
origem africana dos territórios quilombolas cearenses.
O primeiro registro da presença africana no Ceará, conforme Girão (1956), ocorre
, expressão utilizada pelo autor para designar

33
As escolhas dos registros intencionam fazer uma cronologia que identifique e localize os antepassados africanos
e afro-brasileiros escravizados no território cearense, bem como aqueles e aquelas que deram origem aos
troncos familiares que constituem os povos quilombolas do século XXI no Ceará.
100

aqueles escravizados que vinham de Pernambuco como pagamento a Pero Coelho por levantar
no território o forte São Tiago, consolidando, assim, o domínio lusitano. O segundo registro
data de 1649 de escravizados vindos de Pernambuco e do Maranhão que pertenciam ao invasor
Mathias Beck, reafirmando o domínio holandês no território à época.
Uma pista da relação do Ceará com a Bahia, no contexto da escravização e da
disseminação africana, é observada no terceiro registro localizado na comunidade negra rural
de Bastiões, no município de Iracema, na porção Sudeste do Ceará que compõe a microrregião
de Pereiro, sendo contígua à serra de mesmo nome. No mito de origem do quilombo de
Bastiões, conforme Bezerra (2012), é contada a saga de 2 (duas) mulheres negras que fugiram
da Bahia e compraram terras na região nos anos de 1700.
Nesse período, os baianos despontavam no comércio de escravizados da região da
Costa da Mina e da Costa dos Escravos, o que indica os possíveis portos de embarque dessas
ancestrais para a Bahia e, posteriormente, para o Ceará. Há discordâncias quanto ao nome
daquelas que originaram, no princípio do século XVIII, essa comunidade negra, assim
denominada pela autora.
No entanto, considero ser esse um dos registros da presença africana na formação
dos quilombos cearenses mais antigos. A pesquisa de Bezerra (2012) baseou-se em fontes orais
e documentais do quilombo de Bastiões.
Na virada do século em 1742, ocorre o quarto registro da presença africana, segundo
o estudo de Oliveira (1979), que apontou a chegada de um carregamento de escravizados vindos
diretamente da Costa da Guiné via marítima. Segundo ess
OLIVEIRA, 1979, p. 331).
Quanto ao destino desse grupo de africanos, não foram encontrados registros.
O quinto registro dos povos africanos no Ceará apontou a sua chegada pela região
Sul do Estado, em 1756 com destino a exploração de ouro pela Companhia das Minas de São
José dos Cariris (OLIVEIRA, 1988). De acordo com esse autor, chegaram 69 africanos,
provavelmente, de origem angolana. No entanto, Oliveira (1979) registra esse grupo de
escravizados diferenciando-os quanto a sua origem e o seu valor de mercado, quando diz que

m a maioria
OLIVEIRA, 1979, p. 332).
O sexto registro, conforme Chaves (2013), salienta a presença de um grupo de
escravizados trazidos para trabalhar nas terras de brancos no povoado de Arapari (conhecido
101

hoje como Itapipoca). O território quilombola foi fundado no século XVIII, por lideranças que
fugiram desse contexto e ocuparam as terras até se tornarem trabalhadores livres ou
assalariados. Não são mencionados nomes das lideranças, tampouco, suas origens africanas. De
igual modo, não há registro das datas exatas de formação do território.
Por outro lado, o sétimo registro refere-se a um exemplo da porção Norte do Estado:
trata-se do homem livre, Caetano José da Costa, que escolheu o seu nome, possivelmente, em
homenagem à Costa da Guiné, e a origem de seus ancestrais. A identificação dessa origem
poderá indicar que os seus ancestrais africanos chegaram ao Brasil nos primeiros ciclos do
tráfico transatlântico. Resta saber se os ancestrais africanos de Caetano têm essa origem étnico-
geográfica ou se apenas embarcaram na Guiné rumo ao Brasil, sendo de outra etnia ou território.
De todo modo, Caetano contribuiu para a formação do quilombo de Conceição dos
Caetanos, o que indica uma das possíveis origens africanas das famílias que residem nessa área,
nas proximidades dos atuais municípios de Uruburetama e Tururu, desde 1881. O território
quilombola de Conceição dos Caetanos é um dos mais antigos do Ceará. Sua existência ressoou
como um suspiro de liberdade diante da opressão escravista. Essas terras ficaram isoladas por
50 (cinquenta) anos, como forma de sobrevivência (RIEDEL, 1988).
No oitavo registro da presença africana, ressalto a influência maranhense. De
acordo com Ribeiro (2019), as ancestrais do quilombo Três Irmãos, Nega Ana e Luzia Maria
da Conceição, foram escravizadas e vendidas no Maranhão com destino à Fazenda Angicos,
localizada no município de Croatá, na porção sudoeste do Ceará.
As mulheres fugiram da fazenda e fundaram o território atual do quilombo ao longo
do século XIX (RIBEIRO, 2019; AIRES; SILVA, 2019). Embora não se tenha registro de
quando formaram o quilombo nem das suas origens africanas, o caminho percorrido por essas
mulheres, desde o embarque até sua chegada no Ceará, configurou-se, possivelmente, em
função da corrente migratória maranhense que contribuiu, também, para a dispersão africana
no Ceará.
O último registro refere-se à presença africana de origem, tanto baiana, quanto
piauiense nos sertões, para trabalhar nas fazendas da vila colonial de Santo Anastácio de
Tamboril (atual município de Tamboril). De acordo com Brasil (1872), a população negra livre
ou escravizada daquela vila chegava a 7.846 habitantes. Conforme Marques (2009b) e Carvalho
(2020), esses povos livres ou escravizados trabalharam nas terras, resistiram às opressões e à
exploração econômica. Com a abolição, as famílias ocuparam as terras, compraram outras
partes e formaram os territórios quilombolas no entorno das antigas fazendas conhecidos como:
102

Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras, além do território de Brutos. Quanto às origens
africanas dos seus antepassados, as famílias quilombolas desconhecem e/ou não mencionaram.
A continuidade dos estudos e análises dos territórios quilombolas cearense
associadas às memórias e às narrativas quilombolas possibilita revelar outras pistas sobre as
suas origens africanas, tendo em vista que a diáspora negra é:

[...] um acontecimento em aberto, é um contínuo. [...] Assim, continua a reverberar


poderes de reinvenção da vida, seja cruzando e invocando potências ancestrais, seja
produzindo novos sentidos a partir de um imaginário em África. (RODRIGUES
JÚNIOR, 2016, p. 09).

Sobre essas heranças africanas, segundo Martins (2012), a população escrava no


Ceará, na segunda metade do século XIX em diante era majoritariamente nascida no território
brasileiro. -brasileiros têm consciência de quem são, de onde
vieram, e para onde vão. É problemático este apagamento quando sabemos que toda pessoa é
a, p. 58). Esses
aspectos ressaltam o desafio em enxergar as origens africanas nos levantamentos populacionais,
bem como de correlacioná-las aos ancestrais quilombolas.
O fato é que esses povos construíram a identidade afro-brasileira, afro-cearense e
sertaneja, juntamente com os povos originários. E os quilombos são, portanto, uma das heranças
afrodiaspóricas deixadas no território. No entanto, identifico o éjó da negação existencial dessa
diversidade étnica e a tentativa de apagamento identitário da diversidade africana com a
omissão de dados e documentos que revelem essas origens, por exemplo, nos primeiros
levantamentos populacionais da província do Ceará, nos anos de 1804, 1808, 1813 e 1872.
Para Damiani (2002, p. 08),
modo, compreendo que a maioria que chegava ao território cearense
tinha origem ou descendência africana diversa. Ao longo dos séculos, o povo africano e
afrodescendente compôs a maioria da população cearense, reafirmando o ebó dos caminhos e
da proteção ancestral nas encruzilhadas sertanejas que, mesmo diante das privações de
liberdade, participaram/participam da formação socioterritorial do Ceará.

3.3 A população negra da Província do Ceará no século XIX

No surgimento de algumas vilas e na distribuição da população negra cearense,


percebo que as rotas migratórias de outras Províncias foram determinantes no século XVII e
XVIII para a composição da identidade negra no Ceará e para a espacialização dos povos
103

africanos e afro-brasileiros nesse território. A esse respeito, Pontes (2010) destaca as duas fases
de fundação das vilas cearenses:

Foram erguidas à princípio nas regiões litorâneas, ratificando a hipótese de defesa,


tendo em vista que a economia pecuária nascente se fazia no sentido contrário, do
sertão para o litoral, ou internamente no sentido leste e oeste, quase que
reconfigurando os caminhos dos primeiros migrantes baianos e pernambucanos.
(PONTES, 2010, p. 22).

Na primeira fase, as vilas erguidas nas regiões litorâneas ratificam a necessidade


das bases de defesa do território, tendo em vista que a economia pecuária se fazia do sertão para
o litoral. Neste sentido, Aquiraz (1699), Fortaleza (1725) e Aracati (1747) são as primeiras vilas
criadas, também, com esta finalidade. Dessa forma, garantiam a defesa do território e, ao
mesmo tempo, faziam o entreposto para comercializar a produção econômica das vilas
sertanejas.
Podem ser destacadas, ainda na primeira fase de fundação das vilas, edificadas em
função do aldeamento indígena, as localidades de: Viçosa do Ceará (1759), Caucaia (1759) e
Baturité (1762), as quais aparecem com topônimos distintos, no levantamento populacional da
Província.
Em termos de morfoestrutura da paisagem, o Ceará é composto por três feições:
litoral, serras úmidas e secas e os sertões que abrangem a maior parte do território (LIMA et
al., 2000). Os sertões constituem uma região climática e socioeconômica classificada como
(LIMA et al.,
2000, p.16).
26 e 28º C, insolação superior a 3.000 horas/ano, umidade relativa do ar em torno de 65%,
precipitação pluviométrica abaixo de 800mm mal distribuídas a longo do ano, solos com baixa

Em termos de sobrevivência Prado Júnior (2011) destaca o sertão como um espaço


de liberdade com o afastamento de autoridades. Para este autor, viver no sertão representa uma
forma de escapar da vida organizada e adaptada dos grandes centros de povoamento da colônia.
Nesse contexto, as vilas sertanejas e semiáridas de Sobral, Icó e São João do
Príncipe (Tauá) dedicavam-se à pecuária e à agricultura, o que as tornava mais vulneráveis às
condições climáticas semiáridas do que as vilas do Crato, Fortaleza e Aquiraz, por exemplo.
Conforme Cunha Júnior (2011, p. 102), a força de trabalho
como uma produção de africanos e descendentes, portadores de conhecimento de base
104

Na segunda fase, intensificam-se o criatório e o comércio do gado, bem como o


beneficiamento da carne e do couro para o mercado interno, fatos que impulsionaram a
formação de outras Vilas, a saber:

Na bacia do Banabuiu-Quixeramobim prosperou a primeira Vila da região central do


Estado, que foi a de Quixeramobim (1789); As bacias do Acaraú e do Coreaú
tornaram-se os berços das vilas de Sobral (1766), Granja (1776) e Guaraciaba do Norte
(1791); assim como a bacia do Rio Jaguaribe deu origem às vilas de Russas (1799) e
Tauá (1801) na bacia do Salgado foram criadas as Vilas de Jardim (1814) e Lavras da
Mangabeira (1816) Assim, em pouco mais de um século, entre 1699 a 1822, já havia
uma relativa concentração populacional e de Vilas ao longo dos Rios Jaguaribe-
Salgado, Acaraú e do Coreaú, com menor destaque para as bacias do Banabuiu -
Quixeramobim. (PONTES, 2010, p. 24).

A dependência da Capitania de Pernambuco pelo Ceará cessou somente no ano de


1799, com a separação das 2 (duas) províncias. E, aos poucos, as margens fluviais dos rios
cearenses foram preenchendo-se com os currais, as fazendas e erguendo vilas e povoados. Além
disso, a emancipação política da província cearense iniciou um novo ciclo econômico, o do
algodão nos sertões.
Em escala nacional, as cidades e as vilas compunham a rede de dominação colonial
que, de acordo com Ribeiro (1995, p. 195),
através da importação e contrabando, e a prestação de serviços aos setores produtivos, na
quali
outras funções.
Em relação ao ato nomeativo de alguns topônimos, Batista (2011, p. 38) aponta que,
não é feito de forma aleatória, mas é motivado por condições sociais, culturais e ambientais,
Assim como, através dos topônimos são
feitas homenagens à pessoas ilustres e em memória de fatos históricos (BATISTA, 2011, p. 41).
A origem dos nomes de algumas dessas unidades político-administrativas no Ceará encontra-
se sintetizada no Quadro 9, a seguir:
105

Quadro 9 Toponímias ancestrais, europeias e cristãs presentes nas vilas do século XIX
Origens dos topônimos Topônimos de algumas vilas
Aquelas nomeadas a partir da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção e Santa Cruz de Aracati.
relação com os santos portugueses.
Aquelas nomeadas a partir de Viçosa Real da América, Nova D´el Rey, Real e Monte-Mor o
topônimos portugueses. Novo da América, Real de Sobral, Granja, Real do Crato e Nossa
Senhora da Conceição de Mecejana da América, Nova de Campo
Maior e Nova Soure ou Nossa Senhora dos Prazeres de Soure.
Aquelas nomeadas a partir da Aquiraz, Arraial da Ribeira dos Icós ou Arraial Novo, Mombaça,
relação com a cultura indígena e Mulungu, Mucambo, Mucambinho e Tamboril-Mirim.
africana.
Aquelas nomeadas para homenagear São João do Príncipe e São Bernardo de Russas.
figuras ilustres.
Fonte: Elaborado pela autora, com base em Batista (2011); Brasil (1972); Cunha Júnior (2011) e Marques (2009b).

Os topônimos denotam, entre outras, origens de natureza física e antropocultural.


Em relação à toponímia africana, destaco Mombaça e Mulungu, que são designações de origem
Bantu, encontradas na atualidade no Quênia e em Moçambique (CUNHA JÚNIOR, 2011;
ALPERS, 2018). Conforme destacado em Santos (2011b), os topônimos podem nos conectar
com as nossas ancestralidades africanas e afro-brasileiras.
Essa toponímia poderá sugerir a existência de quilombos não registrados pela
documentação escrita, ou ainda marcas da diáspora africana e afro-brasileira nos sertões
cearenses. Esse é o caso de algumas localidades denominadas de: Mombaça, na mesorregião
dos Sertões de Senador Pompeu; Mulungu, no Maciço de Baturité; Mucambo e Mucambinho,
nos arredores da região Norte e de Sobral, Tamboril- Mirim, na microrregião dos Sertões de
Crateús etc. Outros topônimos cearenses, destacados no Quadro 9, refletem aspectos cristãos,
ideológicos, culturais e sociais das influências embranquecidas no contexto sociocultural
cearense do século XIX.
Ao analisar o processo de formação socioterritorial do Ceará, no contexto brasileiro,
entendo que:

[...] é profundamente marcada pela sociedade agrária, pelo desenvolvimento das


forças produtivas e da relação de produção no mundo agrário. Se fôssemos
especificar: a história da escravatura é agrária; o problema da abolição é agrário; o da
proclamação da República é agrário, [...] se nota que a história da sociedade brasileira
é uma história do desenvolvimento de uma sociedade de cunho eminentemente
agropastoril. (IANNI, 2004, p. 143).

A província do Ceará é o reflexo do contexto agrário brasileiro, à medida que sua


formação social é pautada pela propriedade da Terra por minorias de origem branca e europeia
que exploraram e dizimaram uma maioria de indígenas, africanos, pardos, mulatos e caboclos
nas vilas em prol da expansão das atividades agropastoris.
106

A presença negra no Ceará colonial é atravessada por uma estrutura econômica


nacional geopolítica, baseada na grande propriedade, na monocultura, no trabalho escravizado,
na economia de exportação, no enriquecimento da sociedade emergente que perdura, ao longo
dos séculos e impulsiona, por sua vez, a fragmentação territorial com a fragmentação do
território para a criação de novas vilas coloniais.
Pontes (2010) afirma que a condição de vila pode ser equivalente ao que se
denomina município na atualidade, compondo, assim, unidades territoriais menores com
autonomia política, administrativa e exercendo múltiplas funções comerciais. As primeiras
vilas do Ceará firmaram-se como:

[...] células básicas originais, com múltiplas funções dentro da economia pecuária,
como: produtoras, comerciais, administrativas, industriais e de serviços. Algumas
com mais de uma função adotada em períodos diferentes, e com movimentos de
crescimento e de estagnação na história do Ceará e do Brasil. (PONTES, 2010, p. 28).

Da funcionalidade das vilas destaco:

Tauá, Sobral e Icó foram as demais vilas de maior atração populacional. Suas funções
administrativas e suas bases terciárias de comércio e serviços formaram as principais
razões para manter a população ali residente, embora não se comparassem a Vila de
Crato. (PONTES, 2010, p. 32).

Em termos econômicos, as vilas litorâneas exerciam funções administrativa e


comercial, enquanto a vila de Aracati concentrou a produção de carne seca para exportação.
Essas funções econômicas contribuíram, entre outros aspectos, para modificar os totais de
população negra evidenciados nesses territórios. Os mecanismos de acesso à terra eram muito
restritos como a compra, a herança ou a doação através de dotes, e não constituíam a realidade
da maioria populacional negra, pobre, livre ou escravizada, as quais foram excluídas e
expropriadas da terra.
O Cariri localiza-se no extremo sul do Estado. Trata-se de uma região que abrange
25 municípios e estava, no século XIX, arrodeado pelos seguintes caminhos e encruzilhadas:

Pelo menos, três estradas; não apenas à da própria Província, como também às que lhe
faziam fronteira, como Paraíba, Pernambuco e Piauí. Eram elas: a estrada do rio
Salgado, a Crato-Oeiras e a estrada do Rio São Francisco, feita passando por Exu, no
Pernambuco. (IRFFI, 2017, p. 81).

A primeira estrada do Rio Salgado, também conhecida como estrada do Icó na


porção Leste, interligava o Cariri cearense juntamente com as vilas de Icó, Fortaleza e Aracati,
passando pela estrada geral do Jaguaribe, via de passagem do comércio no Ceará. A segunda
107

estrada Crato-Oeiras ficava a Oeste e tinha como destino final o Piauí, passando pelas vilas de
Saboeiro, Telha (Iguatu) entre outras.
A terceira estrada do Rio São Francisco realizava uma comunicação com vilas
pernambucanas e paraibanas, passando pelas vilas de Barbalha, Missão Velha, Milagres e
Lavras da Mangabeira. Esses caminhos construídos atendiam interesses mercantis e disputas
econômicas entre as Províncias.
Nesse Brasil Colônia, o C
centros de irradiação colonizadora, [...] desde São Paulo, passando pela Bahia e Pernambuco e
indo até o Maranhão, que nele se estabeleceram com fazendas de gado e engenhos de rap
(BARROSO, 2019, p. 33).
Enquanto em Pernambuco produzia-se o açúcar, no Ceará, em pequenas e médias
propriedades, produzia-se e ainda se produz aguardente e rapadura, sendo ess
razões da colonização com mão de obra escravizada que singulariza o estado do Ceará e torna
diferente a cultura da cana-de-açúcar e da formação dos engenhos, quando comparados aos da
, 2011, p. 102).
Na diâmica político-administrativa cearense ocorreu uma fragmentação territorial
em função de interesses políticos e econômicos, ampliando-se de 16 vilas para os atuais 184
municípios cearenses. Enxergar os quatro cenários populacionais referentes aos anos de 1804,
1808, 1813 e 1872 possibilita entender a importância do povo negro para a formação
socioterritorial cearense.
Contudo, identifiquei e espacializei a população negra na Província, mesmo com a
parcialidade estatística e algumas limitações encontradas nos levantamentos. Desse modo,
corroboro com Lopes (2011), no sentido de que ocorreram quizilas que confundem e distorcem
as origens e reproduzem branqueamentos com uma classificação racial que minimizou as
participações do indígena e do negro na composição da população brasileira. A identificação
racial brasileira é, portanto, permeada por conflitos e contradições diante da mestiçagem, do
embranquecimento do povo inseri , da
ausência de letramento racial, ou seja, da consciência racial dos povos, do racismo institucional
nos levantamentos, o que nos distanciou ao longo dos séculos do nosso pertencimento Afro e
Negro.
Nos levantamentos populacionais, aos diversos povos foram atribuídas identidades
criadas
originalmente na sociedade escravocrata brasileira, em que negro tinha um lugar e esse lugar
108

era a escravidão; os índios, por sua vez, não tinham lugar, foram dizimados e apagados
(GUIMARÃES, 2008), com o objetivo de reforçar a discriminação racial e fortalecer os ideais
de branqueamento da população.
Os grupos populacionais representativos da população cearense do século XIX
ocupavam um lugar social na sociedade que remetia a sua classe social atravessada pela raça
como variável indicadora da posição ocupada. No tocante às identidades raciais preta e parda,
como representantes do povo negro, apresento algumas justificativas, a saber:

i) no fato das condições sociais de ambos os grupos serem na maioria das vezes
semelhantes entre si; ii) pelo fato de que, quando dos estudos das desigualdades
raciais, ser necessário levar em conta não apenas os efeitos das formas de auto-
classificação de cada indivíduo, mas, também das possíveis formas de inserção de
cada um no interior da sociedade circundante; iii) mais uma vez insistimos que essa
questão não deve ser entendida desde sua fundamentação biológica, mas, sim, social.
Isto é, independentemente das efetivas origens de uma pessoa de cor ou raça
autodeclarada parda, o fato é que seus correspondentes indicadores sociais
apresentados sugerem que as mesmas estão imersas no interior de uma sociedade que
não valoriza suas marcas raciais, conquanto atenuadas em termos de seus traços
africanos típicos; e iv) na realidade de que, ainda que no plano subjetivo as pessoas
pardas, ou mesmo pretas, não se identifiquem enquanto negras, no plano político, o
uso da terminologia negra se justifica no interior da busca de construção de uma
identidade social comum. v) muitas vezes a necessidade de agregação de pretos e
pardos em um grupo comum decorre da baixa densidade amostral daquele primeiro
grupo exigindo essa agregação por finalidades estatísticas. (PAIXÃO; CARVANO,
2008, p. 50-51).

Nesse contexto, as semelhanças entre os grupos populacionais destacados e a


construção da sua identidade racial justificam a agregação de pretos, pardos e mulatos enquanto
grupos que compõem a população negra na discussão dos dados.
No tempo presente, os povos excluídos compõem grupos populacionais nos

soment
os totais de pretos, pardos e mulatos simboliza o quantitativo de população negra na Província
cearense.
É preciso dizer que existem fronteiras raciais impostas ao longo dos séculos, em
que a , evidenciada nos levantamentos brasileiros, possui um
caráter ambíguo e distorcido:

Quanto à cor parda, o problema é que esse termo acaba agregando em sua rubrica
pessoas de origens distintas (africanas, indígenas, caboclos, certos tipos de árabes etc).
Dentro da mesma lógica, existem ressalvas quanto à junção de pretos e pardos em
uma única categoria denominada de negra. Refletindo sobre esta segunda objeção, de
fato, somos obrigados a constatar que na ausência de um campo, no questionário das
pesquisas demográficas, que remeta às origens étnicorraciais dos indivíduos, tal
lacuna não terá como ser enfrentada. (PAIXÃO; CARVANO, 2008, p. 49).
109

Dada estas ressalvas, agrupei as categorias de pretos, pardos e mulatos por


compreender a importância das categorias destacadas enquanto grupos populacionais que
poderão se aproximar das identidades raciais e da descendência africana. Outro aspecto é que
os movimentos de resistência negra no Ceará, buscam valorizar o lado africano dos pardos,
reconhecendo-os enquanto descendentes de africanos no âmbito das cotas nas Universidade e
nos Concursos Públicos.
Contudo, a primeira distorção que observei na reflexão dos dados do século XIX
foi a forma como -
que evidencia a hierarquização das raças e o estabelecimento da escala de importância de um
grupo racial em detrimento de outros, nos estudos da população. Isso compromete, de certo
modo, o registro mais aproximado da presença negra no Ceará do século XIX (MUNANGA,
2003; DAMIANI, 2002).
A segunda distorção é que esses documentos oficiais geraram exclusões das
populações negra e indígena, em alguns cenários. Afinal, existiu no Ceará uma diversidade de
povos africanos e indígenas, embora os registros históricos não destaquem.
Embora os dados sejam compostos por lacunas e discriminação racial, entendo que
as análises possibilitaram identificar e espacializar a presença dos ancestrais africanos e afro-
descendentes excluídos que resistiram ao processo histórico falseado e excludente de sua
participação na formação socioterritorial do Ceará. A seguir, o Gráfico 01 e o Figura 3, retratam
a distribuição e a espacialização da população negra livre ou escravizada em vilas coloniais
cearenses, referentes ao ano de 1804.
111

A distribuição territorial da população no Gráfico 01 e no Figura 3 refere-se


somente as 09 (nove) vilas das 16 já criadas no Ceará. Esse censo, infelizmente, não registrou
os totais demográficos de: Fortaleza;
Norte); Lavras da Mangabeira; Caucaia; Baturité e Jardim.
Destas, optei por discutir os totais de população negra nas 09 (nove) vilas
recenseadas que apresentaram população negra acima de 2.000 habitantes, além disso,
compreendo que os totais da Província poderiam ser muito maiores naquele ano. A ausência de
dados das demais vilas pode indicar a intenção de camuflar a realidade do território cearense
ao Império. Conforme Silva (2011), portanto, a população total da Província naquele ano,
provavelmente, é maior que os 85.726 habitantes evidenciados no levantamento.
Há fragmentação e incompletude das informações, à medida que o levantamento
tem um caráter local, no qual foram definidos somente três grupos populacionais: brancos,
pretos e pardos livres, pretos e pardos cativos, excluindo-se a população indígena cearense.
Sobrinho (2011) infere que, nesse cenário, o apagamento dos indígenas ocorreu com a
disseminação das concepções de que esses viviam fora das cidades, assim como a visão de que
eram seres inferiores e selvagens, não sendo vistos como pessoas dignas a serem recenseadas.
Outro aspecto desse levantamento é que o termo pardo é uma tentativa de identificar
negros de pele mais clara, sugerindo, portanto, diferenciações do povo negro. Ocorre, ainda, a
divisão da população escravizada quanto ao sexo (homens e mulheres) e quanto ao estado civil
(caso, solteiro ou viúvo) (SOBRINHO, 2011). Os dados de 1804 apontou uma distinção jurídica
(livres, escravizados ou cativos) dos pretos, pardos, mulatos e mestiços. Em relação ao quesito
raça-cor, nesse levantamento, os mestiços e mulatos devem ter sido classificados como
pardos. (SOBRINHO, 2011, p. 68). Isso provavelmente influenciou os totais da população
negra no território. Para Silva (2011, p. 68 grifos do original),
, o que ampliou ou totais de
população negra.
Sobrinho (2011) diverge de Silva (2011), em relação ao termo caboclo, indicando
que este relaciona-se à origem indígena, e o seu uso, nos levantamentos, ressalta a miscigenação
entre brancos e indígenas. Além disso, a supressão do termo caboclo, nos levantamentos, é uma
tentativa de apagamento dos povos originários.
Por fim, considerei os totais de pretos e pardos livres e escravizados para a reflexão
e a representação dos dados, sendo que os maiores quantitativos absolutos de pretos e pardos
localiza-se em Crato (13.884); Sobral (7.171); São João do Príncipe (Tauá) (5.087); Icó (5.027);
112

Campo Maior (Quixeramobim) (4.256); São Bernardo (Russas) (3.712); Aquiraz (2.847);
Aracati (2.592) e Granja (2.455). Nesse primeiro cenário, a maioria da população é negra nas
vilas cearenses de 1804.
Considero que os dados são limitados e incompletos e criam apagamentos, tendo
em vista não abrangerem todas as vilas cearenses e silenciarem completamente os povos
indígenas. Além disso, as origens étnicas africanas dos pretos e dos pardos livres e escravizados
não foram identificadas. Os apagamentos são tentativas de silenciar a diversidade de povos
originários e africanos presentes no território cearense.
De igual modo, é notória a tentativa de camuflar o tráfico interprovincial com a
sonegação de impostos sobre a exportação de escravizados. Registrar o escravizado implicava
em pagar
compra ou troca de cativos. [...] (SOBRINHO, 2011, p. 40). E no pagamento do passaporte de

conhecimento de quitação com a coletoria, justificação da idade, documento de exportação e o


(SOBRINHO, 2011, p. 41). Tratam-se de quantitativos
populacionais negros que são inferiores ao contexto real das vilas.
Uma das formas de entender esses resultados que concentram populações em
determinadas vilas coloniais, segundo Sobrinho (2011), é a partir do predomínio da
monocultura, do latifúndio e do sistema escravista nas Províncias do Nordeste brasileiro.
De todo modo, percebi que o levantamento de 1808 correspondeu a 14 vilas
cearenses, abrangendo os grupos populacionais de brancos, índios, pretos e mulatos. Optei por
destacar as vilas com população negra maior que 1000 habitantes, no sentido de elencar as
localidades de agrupamento populacional negro.
Considerei pretos e mulatos para a discussão representada no Gráfico 2 e no Figura
4, enquanto grupos componentes da população negra nas vilas cearenses de 1808, ora
recenseadas e representadas:
114

O Gráfico 2 e a Figura 4 apontam que nas vilas de Sobral (10.506) e Icó (10.460)
encontram-se os maiores quantitativos populacionais, seguidas pelas vilas do Crato (7.863),
Fortaleza (5.724) e Aquiraz (5.201). Fortaleza que não tinha sido recenseada em 1804,
apresentou totais de população preta e mulata maiores do que em São João do Príncipe (Tauá)
(3.908), uma das antigas vilas dos sertões do Ceará.
Esses resultados indicam a importância crescente das vilas litorâneas no território
cearense, influenciando, assim, possíveis deslocamentos da população negra do sertão para o
litoral.
Dessas vilas coloniais, algumas foram classificadas em função dos aldeamentos
indígenas, a exemplo de Almofala (Itarema), Soure (Caucaia), Arronches (Parangaba) e
Mecejana (Messejana), as quais aparecem no levantamento. No entanto, nas localidades em que
população negra registrada foi menor que 500 habitantes, essas não foram destacadas no
Gráfico 2.
Somente na vila indígena de Viçosa Real (Viçosa do Ceará), a população negra
totalizou 1.834 habitantes e os menores quantitativos negros desse cenário localizam-se nas
vilas de Monte Mor Novo (Baturité), com 1.814 e de São Pedro Ibiapina, com 1.048 habitantes.
Em relação às mudanças nos totais populacionais, nos séculos XVIII e XIX,
Sobrinho (2011, p.
passando em 1808, para 125.878, ou seja, mais de 100%. Uma população marcadamente de
Isso implicou na acentuação das condições de escravização nos anos em que
separam os levantamentos, possibilitando a migração interna ou de outras Províncias, realizada
de maneira autoritária. Uma parcela da população negra passou a se concentrar em algumas
vilas sertanejas e a outra parcela ocupava vilas do litoral.
No sertão, destaque para a vila de Icó que é o centro urbano mais antigo do Estado
e constituiu um dos polos de concentração populacional negra, ao longo dos levantamentos
(BARROSO, 2019).
Na região Sul do Ceará, a vila do Crato concentra uma parte da população, tendo
em vista que era um dos caminhos das prováveis correntes migratórias interprovinciais que
entrecortavam o território cearense com quantitativos de escravizados sendo transportados.
s trabalhadores dos engenhos e sítios que ficavam situados no território do
Crato, elevada à cidade em 1853 83).
É preciso dizer que em meio a esses levantamentos, o Ceará destacava-se com a
pecuária que, de acordo com Pontes (2010), foi a responsável pela permanência do homem no
115

sertão, nas fazendas de gado que se estendiam às margens dos rios, assim como por sua
movimentação comercial que teria viabilizado a expansão dessas áreas e a concentração
populacional nas vilas sertanejas, conforme os dados destacados do ano de 1804. A outra
atividade econômica no território era a lavoura canavieira com influências migratórias baianas
e pernambucanas ao longo do curso dos rios (SOBRINHO, 2011).
No terceiro cenário de 1813, ou seja, passados cinco anos do último levantamento,
os dados são restritos, abrangendo somente 07 (sete) vilas. As categorias evidenciadas foram:
brancos, pretos cativos e livres e mulatos cativos e livres, o que denota, mais uma vez, a
ausência de informações sobre a população indígena e sobre as demais vilas. Considerei os
totais acima de 2000 habitantes pretos e mulatos escravizados ou livres, a fim de evidenciar a
presença da população negra no território.
A seguir, são representados os dados do cenário populacional de 1813, no Gráfico
3 e na Figura 5:
117

De acordo com o Gráfico 3 e a Figura 5, a maior concentração de população negra


no território encontra-se na vila do Crato (31.080), seguida de Campo Maior (Quixeramobim)
(11.093); ao litoral, as vilas de Fortaleza (7.495) e Aquiraz (5.998), concentraram os maiores
totais populacionais.
De modo geral, houve acréscimos nos totais de população preta e mulata das vilas
em comparação aos anos anteriores, excetuando-se as de Aracati e São Bernardo (Russas).
Diante disso, indago: até que ponto esses dados das vilas recenseadas representam a realidade?
O cenário em destaque é contraditório, visto que não representa todas as vilas coloniais do
Ceará.
De certo modo, os dados apresentam distorções e camuflam, sobretudo, as
condições de escravização existente na Província do Ceará. Essas distorções perpetuam a
sonegação de impostos ao poder Imperial. Além disso, disseminam a ideia de que o povo negro,
em sua maioria, era livre, fruto de uma escravidão branda ou insipiente no Ceará.
No entanto, é válido ressaltar que s cativos não deixavam de fazer seus protestos
no Cear (CANDIDO, 2017, p. 66). Portanto, a luta do povo negro compõe a formação
socioterritorial do Ceará, em suas diversas formas de resistências aos silenciamentos e às
violências da escravização, por exemplo.
Em relação aos levantamentos, uma lacuna de 59 anos é registrada, e ao longo desse
lapso, ocorreu a fragmentação territorial e o surgimento de novas vilas. Não encontrei registros
que apontem as justificativas para esse intervalo de tempo nos estudos da população cearense,
ocasionando uma ausência de dados. Somente no Censo Imperial, realizado em 1872, que a
Província do Ceará consegui compreender a configuração aproximada de sua população. Paixão
e Carvano (2008, p. 39) afirmam que o Censo de 1872, -se do primeiro recenseamento

No entanto, é salutar esclarecer que, no ínterim desse lapso temporal, algumas


medidas desafiavam a escravização, a exemplo da Lei Euzébio de Queiroz, que determinou o
fim do tráfico Brasil-África. Uma de suas consequências foi a obrigatoriedade dos proprietários
de cativos, no Brasil, em registrar seus escravos nas bases municipais (SOBRINHO, 2011).
Como resultado disso, os dados serviram para corrigir informações da população escravizada
no Censo que seria realizado em 1872.
Desse modo, trabalhei com o levantamento de 1872 que difere dos anteriores em
abrangência, compreendendo 46 vilas do Ceará, definidas como municípios/paróchias e 59
freguezias que equivalem as sub-regiões pertencentes aos municípios. Diante disso, entendo
118

que os dados revelam uma maior aproximação da realidade em comparação aos levantamentos
anteriores, porém, com algumas distorções.
Uma delas refere-se ao uso do termo caboclo no levantamento populacional. Esse
termo é consequência do relatório da Assembleia Provincial de 1863, que declarou não existir
índios aldeados ou bravios na Província do Ceará (ANTUNES, 2012). O caboclo, enquanto
grupo representativo populacional, é uma tentativa perversa de apagamento da existência e da
diversidade dos povos originários cearenses e da descaracterização de identidade indígena em
função da miscigenação, acaboclando o índio no levantamento oficial da população do Ceará.
Outra distorção é o uso do termo pardo, que apresenta uma complexidade de origens dos povos,
pois à medida que indígenas e até mesmo brancos podem ter sido classificados nesse grupo.
Feitas essas considerações, a linha metodológica de análise dos dados refere-se ao grupo dos
pretos e pardos de 1872.
Outra distorção do levantamento de 1872 corresponde as informações sobre a
origem dos respondentes. Incluíra as províncias brasileiras e alguns países europeus,
denominando aqueles de origem negra como sendo somente da África, desconsiderando, assim,
que os povos africanos escravizados tinham:

[...] origens múltiplas, todos eles foram transformados na visão dos europeus
em africanos, como se houvesse homogeneidade para inúmeros povos, línguas,
culturas e religiões. Entre os escravizados havia reis, príncipes, rainhas, guerreiros,
princesas, sacerdotes, artistas e um sem-número de agricultores, mercadores urbanos,
conhecedores da metalurgia e do pastoreio. Ao atravessar o Atlântico, entraram em
contato com um ambiente de trabalho intenso, de exploração e de produção de
riquezas. (GOMES, 2015, p. 7).

Desse modo, a origem de pretos e pardos é destacada no Censo como africana,


ignorando a diversidade dos 55 países e, em cada um, as diferenças dos povos negros como
Bantu, de origem Congolesa, Angolana, Moçambicana, entre outras; e as populações Yorubá
ou Nagô que têm origem Nigeriana, Beniense, Senegalesa, entre outros, que desembarcavam
em condição de escravizados na província baiana e, posteriormente, nas demais Províncias
brasileiras, naquele período (GOMES, 2019, SOBRINHO, 2011; ANJOS, 2011b; MARQUES,
2009; RIBEIRO, 1995; VERGER, 1987; LOPES, 2014; RIBEIRO, 2014; RIEDEL, 1988).
O fato de negar as origens africanas exprime as marcas da inferioridade de raças
não-brancas nos dados populacionais com repercussões históricas:

Em primeiro lugar, suprimir dados é um modo de suprimir fatos. A precariedade das


estatísticas permite negar ou minimizar os fatos. [...] Em segundo lugar, o negro e o
mulato são uma presença cotidiana, que não se pode negar. Em terceiro lugar, quem
decide sobre as estatísticas a serem produzidas são os brancos (ou seus subalternos)
119

interessados em localizar, dramatizar ou resolver problemas. Em quarto lugar, ao


branco é conveniente que o negro e o mulato não saibam quantos são, onde se acham,
como vivem e de que forma participam da renda, da cultura e das decisões. (IANNI,
1987, p. 110).

Ou seja, os dados apresentados foram e são a base de inúmeras ações estatais e de


pesquisas sobre a História do Ceará. À medida que os quantitativos populacionais negros
revelam a sua presença nas vilas cearenses, enxergo as formas de luta e resistência e as relações
de poder enfrentadas, tendo em vista que:

Embora tolhidos pelas adversas condições da escravatura e pela heterogeneidade de


sua origem, os africanos e seus descendentes diretos, os crioulos, deram ao Brasil, em
várias oportunidades, provas sobejas de saberem organizar-se socialmente, em
quilombos. Também demonstraram certa solidariedade social quando, unidos, se
opunham à opressão dos brancos mediante revoltas. (RIEDEL, 1988, p. 28).

A dispersão africana e afro-brasileira rompida com as mobilizações geradas pela


formação dos quilombos e pelas articulações do movimento negro na cidade, em particular em
Fortaleza. A população negra no território enfrenta um imaginário coletivo embranquecido,
construído pela elite com o uso do poder voltado aos interesses dessa parcela da sociedade,

(RAFFESTIN, 1993, p. 67).


Embora não se tenha menção do povo negro no quilombo e na cidade, considerei
aquelas vilas que obtiveram acima de 6.000 habitantes no total de população negra, o que
permitiu ressaltar a sua distribuição e a sua concentração no ano de 1872, conforme o Gráfico
4 e a Figura 6, a seguir:
121

Das vilas ou paróchias identificadas no Censo destaco os totais de população negra


em: Sobral (18.328), Baturité (17.514), Ipú (13.354) e Cascavel (12.981), com maiores
concentrações do que nas vilas antigas de Fortaleza (10.978) e Crato (10.913). Baturité e
Cascavel apareceram com destaque, pois não havia dados expressivos nos levantamentos
anteriores. Além daquelas vilas, destacam-se Icó (9.366), Lavras da Mangabeira (9.331) e
Quixeramobim (9.283) com quantitativos populacionais representativos. É evidente que o
território se fragmentou e originou novas vilas. Assim, a população negra acompanhou esse
processo, demarcando presença nas diversas localidades do Ceará, tendo em vista que a força
de trabalho escravizado, constituiu a base das atividades econômicas.
É evidente a presença do povo negro no litoral, em algumas serras e nos sertões do
Ceará em 1872. Acredito que as condições de vida e de trabalho nos sertões dificultaram a
permanência diante das mudanças e, ao mesmo tempo, resguardaram a identidade e a resistência
negra dos que ficaram nesse território, além das tradições, da cultura, das linguagens, memórias
e as relações com a terra.
Conforme Souza (2000) e Silva (2011), as condições geomorfológicas, climáticas

presença de solos rasos, recobertos por caatingas de padrões fisionômicos diversos e banhados

-
longo dos rios cearenses. (SILVA, 2011, p. 27).

(BARROSO, 2019, p. 25). O gado, o couro e a carne de charq


cultura do gado e repensarmos a questão da intensidade de mão de obra escravizada utilizada
, p.28).
Nesta segunda metade do século XIX, a província cearense se tornava uma das
principais exportadoras de mão-de-obra escravizada para compor as lavouras de café e de cana
na região Sudeste (SOBRINHO, 2011).
O Ceará é redesenhado com o fluxo e o refluxo do tráfico interno e com a falta
cíclica de chuvas e as crises econômicas que foram evidentes nas encruzilhadas dos sertões
cearenses. As atividades agropecuárias, açucareiras, lavouras de algodão e o cultivo do café,
entre outras constituíram as bases de formação territorial da Capitania estavam comprometidas
pelas condições climáticas semiáridas e perdiam seu potencial econômico, tendo em vista que:
122

[...] com as constantes secas, as lavouras e gados se perdem, as fazendas se esvaem de


gentes e capitais, para novamente serem reocupadas, quando as chuvas voltarem a
cair. Nesse processo, os escravos que muitas das vezes eram as únicas riquezas dos
fazendeiros, eram vendidos para o Sul do Império onde a economia mais dinâmica,
reclamava por braços ao trabalho. (MARTINS, 2012, p. 61).

A realidade que circundava o povo negro escravizado era o fato de que a qualquer
momento é possível se apartar de sua família e partir devido à venda sistemática que ocorria
internamente ou
escravos foi o único recurso para a aquisição de dinheiro, sendo numerosos os compradores
110).
O comércio de escravos entre as vilas cearenses ou até mesmo para outras
Províncias, possivelmente, influenciou a diminuição dos quantitativos negros no Censo de
1872. Para Cunha Júnior (2011, p. 103),
são menores que os demais estados, mas são compatíveis com
Assim, a dinâmica econômica e o quantitativo populacional das vilas sofreram mudanças
significativas.
Percebo que essas informações não representaram a realidade. A análise criteriosa,
crítica desses levantamentos indica que a minha história, a minha origem ou dos povos negros
foi negada ou, no mínimo, parcialmente revelada. Ao mesmo tempo, outras formas de pesquisar
e refletir sobre a Geografia histórica do Ceará são necessárias em decorrência da importância
dos povos negros para a construção socioterritorial do Ceará. As nossas pesquisas geográficas
devem, também, revelar as contradições e reconhecer vozes e trajetórias negras cearense.
As contradições inseridas nas relações sociais cearense são reforçadas, segundo
Cunha Júnior (2011, p. 106), ao afirmar que

persistente da inexistência dos negros no Ceará, e os dados de população negra exprimem


exatamente o contrário.
Para Munanga (2020, p. 18), o processo de formação da identidade nacional, no
Brasil recorreu aos métodos eugenistas visando o embranquecimento da sociedade. O branco,
o negro, o mulato entre outros são categorias cognitivas herdadas dessa colonização perversa.
Como consequência desse projeto de dominação, identifico os seguintes éjós de apagamento: a
negação das origens africanas; a classificação dos grupos populacionais com base na cor da
pele, a hieraquização das raças; a omissão dos dados de população negra no território; e o
123

domínio da propriedade da Terra por uma classe social. Diante disso, o combate ao ejó do
apagamento é um processo contínuo.
No entanto, o povo negro encontrava-se presente em todo o território brasileiro ao

elemento negro na população brasileira se exprime por números elevados: só os escravos


dos dos levantamentos populacionais,
esta tendência nacional é confirmada no Ceará.
Eis o primeiro ebó do povo negro nos caminhos das vilas coloniais, que é a sua
presença no território cearense. Apresento as variações percentuais de crescimento e
decréscimo das populações negra livre e escravizada diante do total populacional da Província,
descritas na Tabela 1:

Tabela 1 Percentual de negros no total da população da Província do Ceará, no período de


1804 a 1872

Ano População Total de População


total Vilas Negra (%)
1804 85.726 09 55
1808 125.878 14 56
1813 148.745 07 61
1872 721.686 16 56
Fonte: Funes (2002, p.104-105), Pinheiro (2008, p. 115-119) e Brasil (1972).

Conforme a Tabela 01, o povo negro, em 1804, significava 55% da população da


Província, ano em que se obteve o menor percentual. Enquanto, 1813, com 61 %, representa o
maior percentual do povo negro na população. Verifico que, em 1813, o crescimento foi de 5%,
em relação a 1804. Estima-se que esse percentual seja maior, pois o total refere-se aos dados
restritos somente as sete vilas recenseadas naquele ano.
O Censo de 1872 conseguiu abranger um número maior de vilas e o total da
população da Província foi de 721.686 mil habitantes, sendo 56% o percentual de população
negra. O decréscimo em relação a 1813 chegou a 5%. Vale ressaltar as influências das crises
econômicas e sanitárias, bem como o tráfico negreiro interprovincial que deslocaram de forma
autoritária uma parte dos escravizados nas vilas do Ceará para trabalhar, principalmente, nas
lavouras de café do Sudeste (MARTINS, 2012; SOBRINHO, 2011; IANNI, 2004). Abrem-se
perspectivas para outros estudos de percentuais da população negra nos levantamento
subsequentes, ou seja, junto aos dados populacionais que representam o século XX.
124

O próximo tópico aborda as quizilas e os éjós das relações raciais cearenses, no


final do século XIX e início do século XX.

3.4 Quizilas éjós das relações raciais cearense

Diante de levantamentos considerados parciais, destaco um artigo que camufla


criminosamente a diminuição da população negra cearense com dados distorcidos e
tendenciosos ao discurso abolicionista embranquecido. A exemplo, o artigo de Pinto (1934),
sobre a libertação no Ceará da população escrava, é um estudo referente aos anos de 1835, 1872
e 1890, ou seja, no período anterior e posterior à abolição.
No artigo, as palavras e expressões revelam o preconceito de raça e de cor, muito
evidente na sociedade cearense, que acompanha o povo escravizado, são elas: grupo aryano
(branco); eliminação do negro da massa da população nacional; seleções étnicas; coeficiente
negro; purificação da raça nacional e cálculos meticulosos. O texto exalta a supremacia do povo
branco na imposição das teorias do embranquecimento que chegariam, no início do século XX,
e a teoria da democracia racial brasileira propalada nos anos de 1930. O artigo em tela mascara
a falsa abolição e camufla a integração do povo liberto na sociedade no atendimento de seus
direitos.
Esse artigo é o reflexo de uma autoimagem brasileira construída no período entre
os anos de 1900 a 1950 de democracia racial que propagava a seguinte relação entre os grupos
populacionais:

Sendo a convivência entre brancos e negros descrita como harmoniosa e igualitária.


[...] No Brasil o mito da democracia racial encobre preconceito e torna mais difícil o
combate efetivo da injustiça para com os indivíduos e grupos etno-raciais diversos do
branco-europeu. Assim, a discriminação opera no nível dos indivíduos de maneira
inconsciente e nem sempre identificável como tal. (FERREIRA, 2004 p. 30/31).

A relação era de igualdade e a realidade escamoteada que escancara no plano


ideológico de valores e concepções, o lugar do povo negro na sociedade da época. Estes
aspectos buscam, sobretudo, controlar e inferiorizar socialmente o povo negro, reforçando a
miscigenação, os preconceitos, os silenciamentos, os racismos e os estereótipos na formação
socioterritorial do Ceará.
Como exemplo disso, as justificativas para a diminuição populacional negra na
Província de acordo com o artigo foram: a proibição do tráfico; a alta mortalidade e vício da
embriagues do preto; e ainda, as seleções naturais e sociais. Ressaltou, ainda, o aumento no
125

total de brancos e exaltou o crescimento natural da família aryana e as benesses da imigração


europeia para eliminar as marcas da negritude no povo.
A escravização dos povos africanos é o abuso de poder na construção de uma
sociedade de classes sociais distintas, sobretudo, pela cor da pele. A questão racial do Ceará
reflete o processo de formação social da sociedade brasileira, tendo como um dos seus
elementos centrais que (RAFFESTIN, 1993, p. 52).
A formação social é definida em Poulantzas (1986, p. 68) como
de vários modos de produção, um dos quais detém o papel dominante. Segundo Santos (1977,
p. 86),
(produção propriamente dita, circulação, distribuição, consumo) são histórica e espacialmente

Essa formação social, corroborando com Moraes (2006, p. 47


Assim, a formação social é histórico-
geográfica e a formação socioterritorial sinaliza o estabelecimento de fronteiras que podem ser
físicas ou simbólicas nos diversos territórios construídos em um movimento contínuo que
expressa combates e antagonismos entre interesses e projetos sociais (MORAES, 2006).
As fronteiras raciais e de classe, portanto, são marcas definidoras do processo de
formação socioterritorial cearense. Este processo é permeado por desigualdades, ataques a vida
dos povos indígenas e africanos para o seu domínio, racismos, tentativas de apagamento e
silenciamentos de indígenas e afro-descendentes.
O modo de produção capitalista, presente no território colonial brasileiro e
cearense, é caracterizado por grupos
deveriam empregar centenas de escravos - indígenas e/ou africanos -, colocando-os a trabalhar,

1987, p. 6).
Nesse contexto, predominava uma camada de latifundiários com interesses
vinculados a grupos mercantis europeus como os traficantes de escravos. Desse modo, se
estabelecia uma força de trabalho formada por escravizados africanos (BOSI, 2003).
Nesse processo, segundo Jaguaribe (1986, p. 98),

historicamente, marcadas por algumas quizilas, são elas: a negação da negritude e as


desigualdades raciais e de classe.
126

O conceito de raças puras


legitimar as relações de dominação e sujeição entre classes sociais (Nobreza e Plebe), sem que
houvesse diferenças morfo-biológicas notáveis entre os indivíduos pertencentes a ambas as
003, p. 01).

produzidas e reforçadas pelos discursos de poder, a exemplo do racismo, [...] resultaram na


opressão, negação e exclusão de determinadas classes sociais tidas como minorias, entre elas
37).
Paixão e Carvano (2008, p. 52) sugerem que os hiatos encontrados entre pretos e
pardos possam, de fato, estar expressando diferentes graus de preconceito e discriminação racial
de acordo com a intensidade das marcas raciais, prejudicando de forma mais dura, justamente,
os pretos. Portanto, as quizila , os éjós e èbós das relações raciais estão intrínsecas na
hierarquização das classes que ocorrem em função da hierarquização das raças para legitimar o
domínio de um grupo em detrimento de outro.
Estamos diante de um Brasil negro e um Brasil branco. Nesse contexto, prevalece
a hiperracialização,
11). Como
consequência disso, a estratificação social e diferenciação étnica no Ceará assumem as
seguintes características:

colonizadores, grandes proprietários rurais e burocratas do reino, com ascendência


reconhecida e preservada ciosamente por seus membros, não obstante ter havido
durante a colonização muito cruzamento racial deles com negros e índios. Do outro a

desenvolvimento das vilas. (SILVA, 2001, p. 49).

A distinção social dos grupos populacionais presentes nas vilas cearenses é vista a
partir das pessoas ditas de procedência que têm a capacidade de exercer seu poder econômico
e constituir a classe social dominante. É correto afirmar que a palavra gentinha diminui e
desonra as origens ou a procedência daqueles povos que não detinham bens ou poder econômico
e constituem classes sociais dominadas e oprimidas. Portanto, tem-se uma distorção do sentido
da palavra ascendência que significa origem ou relaciona-se a genealogia e a origem familiar
de todas as pessoas.
O poder é um conceito crucial dentro das relações raciais e étnicas que se refere:
127

À capacidade de determinar exatamente o grau de aquiescência ou obediência a outros


de acordo com a vontade de algo ou alguém. O poder pode ser investido em
indivíduos, grupos, sociedades inteiras ou até em blocos de sociedades: a
característica que os distingue é a capacidade de influenciar os outros a agir e talvez
até a pensar de acordo com as demandas de quem o detém. (CASHMORE, 2000, p.
418).

Da natureza do poder nas relações, elenquei duas proposições:

1. As relações de poder não estão em posição de exterioridade no que diz respeito a


outros tipos de relações (econômicas, sociais, etc), mas são imanentes a elas;
2. Onde há poder há resistência e no entanto, ou por isso mesmo, esta jamais está em
posição de exterioridade em relação ao poder. (RAFFESTIN, 1993, p. 53).

A configuração da sociedade brasileira é marcada, portanto, pela concentração da


terra, da renda e da riqueza. O poder se constitui neste cenário como privilégio de poucos.
-se, então, uma sociedade autoritária, conservadora, individualista, não-democrática e
desumana. (FIGUEIREDO, 1991, p. 117).
Pensando as relações raciais cearenses, enxergo o quanto elas são permeadas pelo
estabelecimento de classes sociais. Neste sentido, a minha tentativa é entender a raça na
formação socioterritorial cearense. Busco, sobretudo, discutir a importância do
seio da constituição do Estado e da sociedade de classes, desvendando a sua resistência a
processos homogeneizadores (DAMIANI, 2002, p. 65).
A formação social do território cearense é permeada por contradições econômicas
e políticas, desde a sua gênese, assim como a do território brasileiro. Estes processos têm a
finalidade de servir aos interesses do capitalismo e expansionismo europeu, bem como ao
mercado de escravização, do açúcar e do ouro no Brasil.

Em se tratando do final do século XVIII, essa base socioterritorial é caraterizada


por acentuada hierarquização social entre classes dominantes e subalternas, situando-se no
dominar uma produção camponesa. (PINHEIRO
2008, p. 21).
O caráter concentrador da propriedade fundiária com apoio das rubricas estatais,
além das marcas de violência e das precárias condições de sobrevivência dos povos
escravizados e dos seus descendentes, compõe o território colonial cearense.
A exemplo de uma destas rubricas estatais, tem-se a política estatal da doação
sesmarial no Ceará, exercida de 1678 a 1824 e relembrada em Pontes (2010), enquanto
definidora da localização das primeiras vilas cearenses. Essa política contribuiu para a
128

concentração da propriedade fundiária junto a uma minoria rica, com a formação de um grupo
econômico concentrador de bens e riquezas.
As fazendas de criar e algumas vilas coloniais cearenses surgiram, sobretudo, no
contexto dessa política sesmarial que doava terras àqueles que prestavam serviços diversos à
Coroa. Além de terras, recebiam alforrias ou títulos militares e aceitavam plenamente os valores
fundamentais do mundo luso-brasileiro.
Surge, então, no Ceará, uma parcela da classe dominante e intermediária de origem
branca ou negra livre que era proprietária de títulos militares ou de terras adquiridas às custas
das vidas ceifadas na luta em favor da colonização, do capitalismo e da escravização.
Ao comparar os que receberam as 2.462 cartas de sesmarias, até 1824, encontro
apenas 1.565 pessoas de 148.745 habitantes em sete vilas recenseadas. Isso corresponde a um
pouco mais de 1,3% da população que era livre (PINHEIRO, 2008). Este dado revela a
concentração de terras e poder de uma reduzida parcela da sociedade cearense do século XIX.
Perseguir, capturar ou eliminar os povos originários e os escravizados
aquilombados ou fugitivos que reagiam ao poder da coroa portuguesa abria o acesso à posse de
terra com a doação das sesmarias no Ceará. Portanto, a doação das terras, realizada pelo Estado,
beneficiou uma minoria populacional de brancos e negros livres.
De acordo com Souza (2017, p. 22), pelos serviços prestados algumas famílias
negras se tornaram proprietárias de terras quando contempladas entre o século XVII e as
primeiras décadas do século XIX, com a política sesmarial de doação das terras. Receberam as
terra , com a finalidade de criatório de gados , plantar lavouras e povoar.
A História de negros e mulatos da família dos Dias e Coelho, nas ribeiras do Acaraú, em
Canindé, cidades do Ceará, reflete esse contexto à medida que se tornaram sesmeiros no período
entre 1679 a 1824, devido aos serviços prestados à coroa portuguesa na conquista do território
cearense. De acordo com Souza (2017), no livro de sesmarias, registram-se 70 pedidos das
famílias citadas, além de algumas terras já concedidas.
Segundo Martins (1995, p. 42):

O modo como se deu o fim da escravidão foi, aliás, o responsável pela


institucionalização de um direito fundiário que impossibilita desde então uma
reformulação radical da nossa estrutura agrária. [...] A Lei de Terras de 1850 que
instituía um novo regime fundiário para substituir o regime de sesmarias. Proibia a
abertura de novas posses, estabelecendo que ficam proibidas as aquisições de terras
devolutas por outro título que não fosse o de compra. Transformava as terras devolutas
em monopólio do Estado e Estado controlado por forte classe de grandes fazendeiros.
(MARTINS, 1995, p. 42).
129

O intuito das sesmarias era desenvolvimento rural com o cultivo de cereais e


garantir os trabalhadores para o campo. O problema é que dificilmente as sesmarias coloniais
eram devolvidas ao rei. Assim, as terras que eram para ser devolutas tornar-se-iam terras ainda
não doadas ou desenvolvidas, improdutivas, abandonadas e, portanto, sem o controle de uso
pelo Estado. Conforme Fernandes, Welch e Gonçalves (2014), o sistema de sesmarias é muito
antigo e data de 1375, sendo uma espécie de direito agrário, no qual era reservada a titularidade
da terra apenas aos indivíduos que realizassem o cultivo efetivo da terra pela coroa portuguesa.
Essa configuração territorial e econômica do Ceará gerou intensa estratificação
social, formada, de um lado, por grandes proprietários de terra ou latifundiários, cuja dominação
política ocorreu nas fazendas de criação do gado e na produção do algodão, entre outros; e do
outro lado, por indígenas, africanos e seus descendentes. Essa sociedade apresentava-se
formada por agricultores e pecuaristas, artesãos e comerciantes, transportadores, soldados e
comerciantes de escravizados.
É dessa estrutura de poder colonial que, ainda hoje, se manifestam e se materializam
as desigualdades raciais e a concentração da renda e da Terra, com a ampliação da pobreza e da
miséria. Os povos negro e pobre colonial e contemporâneo travam lutas contínuas pelo acesso
à terra e à transformação de sua realidade.
Do ponto de vista jurídico, correram algumas mudanças em meados do século XIX
com a Lei Eusébio de Queirós e a Lei de Terras no Brasil. As duas leis foram estabelecidas no
ano de 1850. A primeira denomina-se Lei Eusébio de Queirós, que proibiu o tráfico negreiro
no Brasil, considerando-o pirataria passível de punição no país. A segunda foi a Lei de Terras,
instituída para expressar a vontade e o poder imperial na manutenção das desigualdades sociais
e raciais no Brasil, inviabilizando o acesso (por meio da compra) à Terra pelas populações
tradicionais (indígenas, negros e libertos), assegurando o direito à propriedade privada às terras
do Estado por compra ou doação.
Segundo Souza (2008), a Lei de Terras buscou conformar a sociedade brasileira na
perspectiva da propriedade privada de terras. Assim, muitas comunidades foram expropriadas
da terra pois, neste modelo, excluía-se os vários outros tipos de uso baseados na coletividade
que poderia estar associada aos quilombos.
Sobre esse assunto, Pinheiro (2008, p. 59) enfatiza:

O que se pode perceber, na capitania do Ceará, é que se deu um processo de adequação


à legislação à realidade local, ou quando não havia adequação era simplesmente
ignorada, tornando-se letra morta. Desta forma, na capitania do Ceará, tendo como
referência o processo de apropriação de terra, não é possível afirmar que a legislação
se antecipa à realidade, ou dito de outra forma, a lei não cria a realidade.
130

O èjó da desobediência à legalidade pelos proprietários de terra tinha a chancela


institucional e jurídica do Estado, o que acentua as dificuldades pela posse de terras pela maioria
da população pobre cearense.
Para Nogueira (2018, p. estigmatização
territorial, não apenas deixa de mitigar a pobreza, mas a produz, por naturalizar a ausência de
.
Essa Lei beneficiava, essencialmente, grupos dominantes e, excluía, portanto, os
povos negros libertos, os indígenas e os demais povos pobres que não conseguiam obter a posse
de terras. Como consequência, percebo a intensificação do tráfico negreiro interprovincial e os
conflitos raciais no acesso a propriedade da Terra pelas camadas mais excluídas da sociedade
cearense (SOBRINHO, 2011; VERGER, 1987; ANDRADE, 1987).
Nesse contexto, chamo atenção para o papel da Igreja Católica na manutenção de
ejós racistas em termos de conteúdo e de processo junto à população negra escravizada ou
liberta. De conteúdo, destaco o poder clerical, exercido nos topônimos de lugares e espaços
públicos, na aquisição de bens e acúmulo de privilégios e no estabelecimento de normativas
religiosas a serem seguidas por todos no território cearense.
O processo de manutenção da ideologia dominante branca e cristã ocorre tanto na
catequização dos povos originários quanto na desafricanização dos povos escravizados. De
acordo com Reginaldo (1995, p. 11 Igreja, assim como o Estado, após a abolição, vê a
população negra como um problema social que, paulatinamente, se extinguiria. A

No levantamento populacional de Brasil (1972), a Igreja Católica exerceu


influências cultural e ideológica nos topônimos, ou seja, as localidades eram denominadas
paróchias seguido do nome de uma santidade católica. Identificou-se, por exemplo, as
freguezias de São José da Fortaleza, Nossa Senhora da Conceição de Mecejana e Nossa Senhora
dos Prazeres de Sourem localizadas em Fortaleza. Além dessas, no município de São João do
Príncipe, são destacadas as freguezias de Nossa Senhora do Rosário de São João do Príncipe,
Nossa Senhora do Carmo de Flores e Jesus, Maria José de Marrecas. Quanto aos demais,
observei uma ou duas sub-regiões de Fortaleza, com topônimos influenciados pela religião
católica. Neste levantamento de 1872, um dos elementos identificados foi a religião, que
revelou a única crença quando aparece como única opção de resposta pois, conforme os dados,
ou se era católico ou não católico.
131

A religiosidade dos demais povos não europeus foi excluída. Essa recusa às
religiosidades negra, indígena e dos demais povos europeus demonstra a inserção da religião
no projeto político e ideológico colonizador, branco e católico na manutenção das estruturas
sociais na Província.
Uma terceira rubrica que tensiona a reforma agrária e as relações do povo negro
com a terra, no século XX, é o Estatuto da Terra, promulgado na Lei no. 4.504, de 30 de
novembro de 1964, período do regime militar no Brasil. Esse documento buscava desenvolver
a agricultura brasileira e a reforma agrária com a distribuição de terras.
O foco desenvolvimentista, voltado para o mercado e com base na especulação da
terra, intensificou os conflitos e a disputa por terra.
p. 126).
Na prática, as oligarquias rurais obtiveram grandes investimentos com o apoio estatal e
continuaram no controle territorial, enquanto a classe trabalhadora foi expropriada mais uma
vez de suas terras quilombolas, indígenas e camponesas, ocasionando o êxodo rural de uma
parte dessas populações para a periferia das grandes cidades. As lideranças populares foram
substituídas e os sindicatos se transformaram em órgãos assistencialistas (SOUZA, 2008;
FERNANDES; WELCH; GONÇALVES, 2014; PEDON, 2013).
Pedon (2013, p. 22) afirma que o Estado:

[...] atua na garantia da reprodução das relações sociais constitutivas e fundamentais


da sociedade existente, agindo tanto com o fim da manutenção das relações de
produção essenciais à reprodução ampliada do capital quanto para impedir que as
produções de relações de relações sociais de outra natureza se estabeleçam ou
prevaleçam.

A parcialidade e o favorecimento ao capital ocorrem quando o poder estatal é usado


legalmente para beneficiar um grupo étnico em detrimento de outro por força de das Leis aqui
destacadas, entre outros. Os representantes do Estado estão envolvidos, segundo Souza (2008),
em uma teia de relações contraditórias que operam em favor da parcela rica da sociedade e
desarticula os grupos mais pobres na recusa de promover seus direitos cidadãos.
Uma forma de burlar a Lei em benefício próprio foi o avanço das terras griladas,
principalmente nas décadas de 1970 e 1980. A apropriação indevida é realizada por grandes
proprietários com a documentação falsificada daquelas terras consideradas públicas, o que
empaca os processos de titulação de terras quilombolas, indígenas, entre outros. Resultante da
parcialidade estatal na província cearense, ocorre a geração de uma quizila institucional pois:
132

O papel do Estado metropolitano, obedece os interesses em jogo; quando era para


coibir os povos nativos e sustentar os interesses do projeto colonial, esse se mostrava
eficaz; por outro lado, quando se voltavam para combater as ilegalidades dos parceiros
do projeto colonial, o mesmo Estado se mostrava ineficaz. (PINHEIRO, 2008, p. 53).

O Estado é decisivo para a construção dos èjós de classe e raça, quando exclui povos
subalternizados que precisam ser contidos e sufocados pelo projeto de poder colonial, branco e
europeu dominante. Somente 100 anos após a abolição no Brasil, o Estado, na Constituição de
1988, em seu Art. 216, reconhece as comunidades remanescentes de quilombos, o que
demandou outras formas de mobilização contínua na busca pela efetivação do seu direito à
terra, estabelecido somente no século XXI, a partir do Decreto de Lei no 4.887, de 20 de
Novembro de 2003, que regulamentou o processo de titulação das terras ocupadas por
remanescentes das comunidades de quilombos de que trata Art. 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias. Esses processos de luta e reinvindicação por direitos enfrentam o
projeto de poder hegemônico que atravessam os séculos e os interesses dos agentes estatais.
Guimarães (1996, p. 146 s configuram (e estão no centro
de) uma realidade conflituosa da qual participam diferentes se não todas
Assim, as diferenciações raciais e a concentração fundiária se ampliam entre as parcelas da
população.
No contexto agropecuário e escravocrata cearense, são apresentadas as condições
de sobrevivência a seguir:

A condição de proprietário, criador de gado, escravista definia a identidade social do


setor dominante. [...] Na outra ponta, estava uma parcela quase equivalente composta
de escravos, inicialmente predominantemente indígena e, posteriormente, com
predominância de africanos e seus descendentes. O terceiro grupo social, composto
pelos despossuídos. (PINHEIRO, 2008, p. 21).

As distintas condições de sobrevivência são reveladoras da produção, do mercado,


dos modos e estilos de viver e sobreviver. Em termos proporcionais, de um lado, classe
dominante: uma minoria que impunha os seus valores ideológicos, religiosos, culturais e detém
a posse da terra; e, do outro lado, uma classe formada por grandes contingentes populacionais,
ou seja, a classe dependente oprimida e subalterna enfrentou genocídios culturais, físicos,
ideológicos e religiosos e, ao mesmo tempo, busca garantir a sobrevivência com a sua força de
trabalho.
De acordo com Poulantzas (1986, p.
de pessoas que se encontram em uma mesma situação de classe definida, principalmente, pelos
Das principais classes sociais brasileiras e o poder compreendo que:
133

Seu comando natural são as classes dominantes. Seus setores mais dinâmicos são as
classes intermediárias. Seu núcleo mais combativo, as classes subalternas. E seu
componente majoritário são as classes oprimidas. Estas, geralmente estão resignadas
com seu destino, apesar da miserabilidade em que vivem, e por sua incapacidade de
organizar-se e enfrentar os donos do poder. (RIBEIRO, 1995, p. 209).

O comando e o controle na produção da pobreza e da exclusão social por meio da


exploração servil são exercidos, principalmente, pelos fazendeiros e proprietários de terras dos
sertões cearenses, deixando aos seus descendentes os privilégios e bens econômicos. A
subordinação é enfrentada com muita resistência pelas classes oprimidas na busca da
transformação da realidade.

(POULANTZAS, 1986, p. 68)34.


Para esse autor,
(POULANTZAS, 1986, p. 96).
A condição de vida escravizada, de pobreza, de resistência subalterna ao poder,
caracteriza os modos de viver da maioria da sociedade cearense, no século XIX. Essa condição
de classe subalterna camponesa negra é, portanto, um marcador racial resultante da construção
histórica da formação socioterritorial cearense. A ordem social do contexto colonial e
escravocrata é representada por um esboço da hierarquização de classes que operam na
construção da desigualdade racial entre parcelas populacionais.
No Quadro 10, sintetizo esses grupos raciais e as camadas sociais da sociedade
cearense, na segunda metade do século XIX.

34
É preciso destacar, segundo Poulantzas (1986 p. 59), os conceitos de classe em si e classe para si que demarcam
a cisão teórica weberiana sobre um duplo estatuto das classes sociais
, temos duas classes sociais distintas: a dos proprietários de terras, que detém
maiores proventos e a dos pobres trabalhadores possuidores de menores proventos. A segunda representa a luta
de classe em si como fator de transformação da estrutura econômica Isso reflete as resistências e as lutas do
povo negro contra a opressão exercida pela escravização.
134

Quadro 10 Esboço dos grupos raciais que compõem a sociedade provincial cearense na
segunda metade do século XIX
Grupos raciais Camadas Sociais
Brancos ricos europeus e seus descendentes Classes dominantes (descendentes dos
além de pretos e mestiços. colonizadores; grandes proprietários rurais;
burocratas do reino; servidores da coroa na conquista
do território; membros do alto escalão da igreja e das
forças militares).
Brancos e negros alforriados. Classe intermediária (comerciantes estrangeiros e
seus descendentes; mulatos livres; membros do
baixo escalão da igreja e das forças militares e
intelectuais)
Pretos, mestiços, mulatos e pardos, livres ou Classes subalternas (trabalhadores livres ou
escravizados; escravizados)
Indígenas e caboclos livres ou escravizados;
Brancos pobres europeus e seus descendentes;
Brancos pobres, indígenas, caboclos, negros Classes oprimidas (despossuídos de bens, de
livres ou escravizados. trabalho, de moradia, pessoas que cometeram crime
ou vivem em mendicância)
Fonte: Adaptado de Ribeiro (1995, p. 208 - 213).

Conforme o esboço apresentado e diante do trabalho de Ferreira (2004), a elite ou


classe dominante brasileira e cearense se auto identifica e assume características do branco
europeu. É representada por sua superioridade étnica, política e social enquanto grupo
populacional de brancos e seus descendentes além de poucos pretos e mestiços ideologicamente
embranquecidos.
Em contrapartida, os negros das mais diversas origens, condições sociais e jurídicas
compõem as classes intermediárias, subalternas e oprimidas por serem vistos como tipo étnico
e cultural inferior.
Nas classes intermediárias, estão, em maioria, os brancos e seus descendentes, e,
em minoria, negros alforriados. A presença negra nessa classe ocorria devido ao prestígio de
pertencer as irmandades negras, ou ainda pela atuação militarizada na ocupação e na conquista
da capitania do Ceará. Alguns grupos lutavam contra os flamengos, os bárbaros, os tapuios e
os gentios da terra, em nome da coroa portuguesa nos sertões, especificamente, das ribeiras do
rio Acaraú, em Sobral e em Monsenhor Tabosa (SOUZA, 2017; FUNES, 2000).
Entendia-se, no século XIX, que as pessoas escravizadas que compunham as classes
sociais subalternas esboçadas no Quadro eram sinônimas de propriedade, tendo em vista à
restrição de direitos que lhes eram impostas. Isso implica em um elenco de quizilas e éjós que
separa econômica e culturalmente os grupos raciais e sociais do Ceará. Estes éjós de raça
construíram as camadas sociais e repercutem ao longo da História do Ceará e do Brasil.
135

Ao contrário, as pessoas escravizadas se fortaleciam e resistiam às opressões e

limitado por um estatuto social, conseguia espaço para negociar, manifestar-se como agente

(FUNES, 1996, p. 472). Assim, abriam-se brechas que permitiam aos grupos dominados
pleitear uma revisão dos seus direitos e conquistar algumas posições (ANDRADE, 1987). A
questão, portanto, é entender cada categoria social (senhores, escravizados e libertos) e a luta
pelo acesso e a posse de terras.
Da relação conflituosa entre senhores e escravizados e da ambiguidade dos papéis
das pessoas escravizadas ra no
interior da classe escrava, fazendo com que uma parte dela lute contra os senhores e a outra
parte a favor deles , p. 151).
Os detentores do poder exerceram um certo controle, destruindo e dizimando
grupos e povos contrários ao projeto luso-brasileiro. E, exerciam o comando dos povos
submetidos aos seus interesses de forma autoritária e violenta, tornando-os, grupos
subalternizados e oprimidos, representados em sua maioria, pelos negros e indígenas e seus
descendentes escravizados ou livres, além de uma minoria branca e pobre.
A sociedade colonial capitalista tem, portanto, o Estado, a Igreja Católica e os
proprietários de terras que constituem as classes dominantes, como sendo os principais agentes
organizadores do espaço e mediadores nas relações de domínio das classes subalternas e
oprimidas.
Nessa relação de dominação e sujeição, a distribuição dos negros e brancos, para
Ianni (1987, p. reta das condições econômicas de cada camada
ses convivem no mesmo espaço geográfico e encontram-se sob o
poder do Estado.
As relações quizilentas, diante do poder legitimado pela posse da terra no Ceará,
demonstram a força de mando da classe dominante rica, branca e cristã. E nas demais classes,
encontram-se os grupos raciais negros, indígenas e brancos pobres que se diluem nas camadas
sociais e caracterizam-se pela dependência econômica, social e política.
O esboço da hierarquização de classes é o reflexo de uma escala social de valores
sociais que excluem ou incluem o povo negro, definida em Ferreira (2004), como sendo um
gradiente étnico. Na escala social superior, encontram-se aquelas pessoas cujas características
são próximas ao tipo branco, passando a ser mais valorizada. Na escala social inferior,
136

encontram-se aquelas pessoas cujas características são próximas ao tipo negro, que tende a ser
mais desvalorizado e socialmente repelida.
Segundo Ferreira (2004), essa lógica é uma criação histórica da concepção de que
a miscigenação é um processo necessário para que os afrodescendentes sejam respeitados e
tenham possibilidades de ascender socialmente na escala social. Trata-se de uma ideologia do
branqueamento que serviu para afirmar que, com a miscigenação, os povos se aceitam e
convivem sem preconceitos.
Além desse controle ideológico, as classes dominantes brasileiras rodeavam a
monarquia brasileira e realizavam o controle social do trabalho com:

O desenvolvimento de vários sistemas de exploração dos trabalhadores agrícolas tais


como a meação, o arrendamento, a prestação de serviços gratuitos, em troca do uso de
pequenas porções de terras. [...] A revolta contra estas formas de exploração foi feita
pelos agricultores, pelo homem do campo através das mais diversas formas de luta.
(ANDRADE, 1987, p. 09).

No Ceará, assim como no Brasil, o comando é, essencialmente, branco e a


subordinação é direcionada, essencialmente, aos povos escravizados indígenas, africanos e seus
descendentes, despossuídos de bens e direitos, que constituíam, ora grupos de pequenos
proprietários de terra, ora grupos de trabalhadores sem a posse da terra e dependentes dos
latifundiários, fazendeiros, entre outros.
O cenário colonial cearense baseava-se no controle da produção, na obtenção do
lucro e na exploração do trabalho servil e livre por classes sociais dominantes e burocratas do
reino pretos e mestiços embranquecidos.
No entanto, Scott (1992, p.
tendem, em condições equivalentes, a provocar reações e formas de resistência também
Grande parte dos subalternos e oprimidos reagiu ao longo dos três séculos
de escravização de forma anárquica, individual e coletiva com levantes que ocasionaram
algumas consequências: suicídios, fugas, denúncias judiciais dos castigos, a gênese de
quilombos, entre outros (FUNES, 2002; SOBRINHO, 2011; ANDRADE, 1987).
Diante das classes sociais, no século XIX, da ideologia do branqueamento e do
domínio servil, essa estrutura social e o sistema colonial entrariam em crise, tendo em vista que
à condição social de escravização não foi impedimento para a existência da luta de classe que
se fazia no cotidiano, na construção de uma contraordem escravista (FUNES, 1996). Desse
modo, a derrota da instituição servil no país era uma possibilidade de transformação da
137

realidade, à medida em que as divergências das classes dominantes contribuíram para a


resistência negra.
Conforme Candido (2017, p. 65-66), enquanto os principais centros escravistas e
agroexportadores do país se preocupavam com o controle das camadas subalternas
concentradas nas comunidades de senzala e quilombos, considerando-os focos de resistência e
rebeldia, nos sertões cearenses, a vigilância voltava-se, principalmente, para as populações
rurais de negros livres pobres, igualmente dispostos a lutar por sua autonomia e liberdade.
Neste sentido, a obediência e a subordinação não pertencem aos povos africanos. A
população negra escravizada não foi passiva frente a ess
constantes, as formas de organização e superação das adversidades eram ações permanentes,
16).
Conforme Sobrinho (2011, p. 42):

A ideologia escravista, em que o negro era inferior ao branco, era extensiva aos
africanos a afrodescendentes libertos e livres, prática presente no cotidiano da
sociedade cearense, levando este segmento social a buscar estratégias de
sobrevivência vivenciando experiências comuns de sociabilidade, solidariedade e
resistência.

As estratégias negras de inclusão social de resistência, as opressões de sociabilidade


e solidariedade ocorrem na participação de irmandades de pardos libertos e livres; na aquisição
de terras para construção de patrimônio familiar; na formação dos territórios quilombolas, entre
outros.
No Censo de 1872, a população preta e parda livre totalizou 368.100 habitantes,
enquanto o número de escravizados, naquele ano, foi de 31.913 habitantes. Esses dados revelam
que a presença negra foi marcante no território e nas diversas camadas sociais do Ceará, no
século XIX. A expressão demográfica desse período não se coadunava com a imagem que os
cearenses de vários segmentos sociais tinham de si, e o Ceará não é visto como uma Província
nem como um estado de maioria negra no passado e no presente (RATTS, 2016).
Quando uma parcela de trabalhadores que, para ter acesso à terra, depende de
outros, ocasiona-se a subordinação dessa classe trabalhadora em fins do século XVIII, perdura
nos séculos XIX, XX, e demarca processos libertários, que desumanizavam povos africanos
negando-lhes direitos, dentre os quais, o acesso à propriedade da terra.
Como forma de resistência à desigualdade e às violências da escravização, foram
desencadeadas fugas e revoltas negras no Ceará. Nos dias atuais, a regularização fundiária se
138

arrasta na pauta de luta das classes subalternas e oprimidas e constitui conflitos seculares no
Ceará.
Essa foi a tela desenhada com o sangue da realidade concreta do cotidiano que
representa o século XIX e desnuda a questão da abolição dos povos escravizados e as lutas pela
posse e pelo uso da terra. De um lado, os agentes hegemônicos que detinham o poder da posse
da terra, o poder político e econômico representado por classes dominantes com algumas
famílias negras.
Esses eram os opositores ao movimento abolicionista, argumentando sempre o seu
direito de posse dos bens adquiridos ou herdados. O direito à propriedade alegado referia-se,
inclusive, às vidas africanas e de seus descendentes, além da terra. Propriedades privadas,
construídas às custas de vidas africanas e indígenas e, também, dos impostos sonegados a fim
de garantir a permanência de privilégios aos seus descendentes.
Do outro lado, sem nenhuma garantia de direitos e bens, havia os agentes
hegemonizados que detinham a sua força de trabalho, alguns sobreviviam na condição de
escravizados e outros eram libertos e pobres, ambos representam a classe social oprimida e
subalterna que produziram histórias complexas de ocupação agrária, de criação de territórios,
da disseminação da cultura material e imaterial próprias baseadas no parentesco e no uso e
manejo coletivo da terra (GOMES, 2015, p. 7).
O contexto cearense é o reflexo do cenário -
abolição, não efetivou [...] o reconhecimento da população negra em sua diversidade e construiu
ao longo dos séculos XIX, XX e XXI, um complexo enredo de desigualdade racial. (SOUZA,
2008, p. 108). Infelizmente, percebo que a situação da maioria da população negra não mudou,
em pleno século XXI, isso torna cada vez mais necessário aquilombar-se na luta por igualdade
racial. Trata-se de um atraso histórico na equiparação de direitos das populações negras e
quilombolas cearenses.
Além disso, parece-me que há, de fato, um retrocesso teórico na análise e na
interpretação do processo abolicionista cearense, o que me coloca no comprometimento de
enfrentar o debate e ressignificar o processo libertário, destacando entre outros aspectos, a
presença de memórias, manifestações culturais e lutas contra-hegemônicas, no próximo tópico.

3.5

É inegável que a situação racial cearense é marcada por profundas quizilas e éjós,
ao longo da formação socioterritorial cearense, que perduram de outras formas até hoje, pois,
139

-escravo da cidadania, continua a separar hoje a população negra


70).
Estudar a abolição, segundo Cerqueira (1991, p.
se sentido, ressalto,
enquanto permanência, a falsa liberdade que, materializada no discurso histórico de agentes
hegemônicos, propaga ideologias, esconde, embaralha a memória e camufla os protagonistas
negros contra a opressão escravista.
Para tanto, retorno às encruzilhadas condutoras do processo libertário do século
XIX, entendendo que estava circunscrito por interesses econômicos e políticos das classes
hegemônicas:

alvoroçados. O escravo assistia quase atônito às manifestações em tôrno. Mas era


movimento das elites, ganhara os salões, a imprensa, a Academia, a Assembleia,
governo. [...] É preciso integrar o Ceará ao processo de desmoronamento da
escravatura no Brasil, durante a segunda metade do século XIX. (MARTINS, 2012,
p. 30-31).

Os grupos políticos mais avançados reconheciam a necessidade de que os libertos


precisavam de terras para organizar suas pequenas propriedades, evitando, portanto, sua
absorção e destruição pela grande propriedade. No entanto, as classes dominantes não
enxergavam desse modo, assim, o movimento gerou, na verdade, uma falsa liberdade, tendo
em vista que mesmo libertos não ocorreram ações que garantissem a inserção do povo negro à
sociedade (FERNANDES, 1964).
A versão oficial da libertação no Ceará se deu em etapas sucessivas, tendo como
protagonistas os movimentos das elites embranquecidas. Porém, aboliu-se o quê? Quem
construiu as narrativas e protagonizou a luta pela liberdade? Qual o sentido dos festejos e das
memórias em torno da Data Magna no Ceará? As celebrações do 25 de março valorizam ou
menosprezam o povo negro?
Diante da presença majoritária do povo negro no Ceará, a primeira estratégia dos
protagonistas brancos, na segunda metade do século XIX, segundo Girão (1956), Silva (2011),
Sobrinho (2011) e Xavier (2011), foi o desenvolvimento da agenda pré-abolicionista no Ceará.
Essa agenda incluía a criação, entre 1870 e 1883 de sociedades libertadoras com a ideia de
propagar ideais de liberdade e uma memória oficial na imprensa com escritos embranquecidos,
tornando público os heróis do processo em toda a Província.
Segundo Xavier (2011), buscava-se construir uma narrativa histórica no Ceará, na
qual os atores principais da redenção dos escravos não fossem os próprios escravizados, mas
140

sim a elite intelectual das sociedades libertadoras, notadamente citadas e homenageadas nos
livros e na imprensa. O Quadro 11, a seguir, retrata o cronograma de fundação de algumas
sociedades libertadoras, no Ceará, que ganhariam, mais tarde, espaço na Imprensa, nas
celebrações e nos escritos históricos:

Quadro 11 - Sociedades libertadoras do século XIX no Ceará


Nomenclatura/localidade Data de fundação
Sociedade Libertadora de Baturité 25 de março de 1870
Sociedade Manumissora Sobralense 25 de junho de 1870
Sociedade Perseverança e Porvir de Fortaleza 28 de setembro de 1879
Sociedade Cearense Libertadora de Fortaleza 8 de dezembro de 1880
Clube dos Libertos 26 de maio de 1882
Sociedade Redentora Acarapense 8 de outubro de 1882
Centro Abolicionista de Fortaleza 19 de dezembro de 1882
Sociedade das Cearenses Libertadoras 6 de janeiro de 1883
Fonte: Adaptado de Girão (1956), Silva (2011) e Sobrinho (2011).

Essas associações libertadoras foram criadas com o objetivo de difundir a ideologia


libertária nas vilas da Província. Além desses coletivos, a imprensa representada p
, criado em 1884, publicizava a escrita de artigos e os discursos políticos que
ressaltavam o protagonismo branco no processo abolicionista. Entretanto ra houvesse
liberto publicando em jornais, o que de alguma forma poderia expressar suas ideias e
sentimentos naquele momento [...] a ,
2009, p. 43).
Heroísmo, glória, santidade, patriotismo, santidade, popularidade, entre outros
valores são evidenciados em torno do 25 de março de 1884, por Girão (1956), quando esse
apresenta os doze apóstolos da santa causa homens predominantemente jovens, da elite
embranquecida que trabalhavam como comerciantes e funcionários públicos, em sua maioria;
ou ainda, quando ess
anunciação da Vi para citar exemplos da máscara da liberdade! (GADELHA,
2014, p.14).
Corroboro com a concepção de Scott (1992, p.
A construção embranquecida dessa história libertária
indica que são os sócios das agremiações citadas, os grandes responsáveis pelos feitos
141

abolicionistas propagando, assim, a ideia de que o povo negro precisava dessa ajuda pois não
era capaz de fazer a liberdade acontecer no Ceará. (XAVIER, 2011).
A imprensa, o Estado e os intelectuais cearenses, então, comprometem-se com a
historiografia das classes dominantes e dos seus personagens brancos e cristãos a fim de
legitimar seus privilégios, discursos e domínio sob as experiências, saberes e resistências do
povo negro.
A representação do ápice libertário de autoria da elite embranquecida se materializa
em torno da Data Magna, celebrada em 25 de Março de 1884, a qual é mascaradora de uma
falsa liberdade dos povos negros. A liberdade aparece como presente, caridade ou obrigação.
Quanto ao elemento servil que comparecia à festa da redenção, o papel que lhe era reservado
era o de receber a carta de alforria e assim materializar a glória do movimento (MARQUES,
2009).
Penso nos sentidos das celebrações dessa data que simboliza a abolição no Ceará.
Destaco a edição comemorativa do jornal O Libertador, do dia 25 de Março de 1884. A chamada
principal daquela Terça-feira em Fortaleza foi intitulada homenagem a Província do Ceará pela
libertação total de seus escravizados. A chamada secundária saúda os abolicionistas da
Sociedade Libertadora Cearense, listando 33 nomes de homens e Francisco José do
Nascimento, o Dragão do Mar que não foi escravizado: era um homem mulato que integrou
esse coletivo. A terceira chamada convida à leitura do texto intitulado uadro de luz listando
os 58 municípios considerados pelo jornal livres da escravização na província cearense (O
LIBERTADOR, 1884, p. 01).
Quanto aos demais textos escritos, os autores são originados da Igreja Católica
baiana, que abençoa o Ceará; em seguida, a benção do bispo do Ceará, e por fim, as palavras
do governador Satyro Dias que dedicou aos abolicionistas o feito cívico. Para fechar a primeira
página do jornal, as palavras dos abolicionistas ressaltam o marco histórico do processo
abolicionista cearense. São encontradas palavras e expressões como: avante; o Ceará progride;
a escravidão é um roubo; aos libertadores, obreiros do progresso; e o povo que veio das trevas.
A leitura dessas palavras e expressões nos textos que compõem uma edição jornalística
dedicada à celebrar a liberdade do povo negro escravizados serve, sobretudo, à exaltação de
heróis embranquecidos e cristãos. (O LIBERTADOR, 1884, p. 02-04).
A capa do Jornal O Libertador, de 1884, é uma síntese da leitura das demais páginas
que apontam os ejós da edição comemorativa do 25 de Março, oficial embranquecido. Afinal,
142

a quem interessava à construção dessa memória celebrativa? O que representava para o povo
negro essa tal liberdade?
Escancara-se, assim, a disparidade entre a elite branca abolicionista e os negros
escravizados e libertos que ficavam à margem da sociedade no Ceará. Era dispensada ou
silenciada a participação de mulheres negras e homens negros nas sociedades libertadoras e na
imprensa, o que evidencia o apagamento destes, inclusive, em atos cívicos e celebrativos. O
sentido da celebração favorecia a construção de uma memória permeada pelas ações de heróis
brancos pertencentes a uma parcela da sociedade que, segundo Sousa (2006), excluía o negro
de qualquer esfera de participação política e social e desprezava a cultura afro-brasileira
mantendo, obviamente, as relações sociais desiguais.
A quizila identificada na capa do Jornal O Libertador revela um erro ou distorção
de acordo com os estudos de Marques (2009); Martins (2012); Sobrinho (2011); Silva (2011);
Pereira (s/d); Silva e Militão (2014). Em relação ao município de Milagres, que aparece na lista
dos municípios livres no jornal, cabe destacar que, na verdade, essa cidade não libertou os
escravizados até 1889, o que gerou conflitos e questionamentos ao processo libertário e ao
significado da Data Magna, estabelecida pelos movimentos.
Acredito que os cinco ejós encontrados na edição festiva do jornal respondem, em
parte, aos meus questionamentos sobre os sentidos dessas celebrações da falsa liberdade: o
primeiro ejó foi o silenciamento de vozes e escritas negras na imprensa e nas sociedades
libertadoras; o segundo ejó trata de representatividade, pois nem todas as vilas fundaram os
coletivos libertários com a participação de negros libertos, por exemplo; o terceiro ejó refere-
se às mulheres da sociedade libertadora que, em sua maioria, eram pessoas brancas e da classe
dominante; o quarto ejó é o apagamento, na imprensa e nos registros históricos e científicos da
época, das vozes quilombolas e das mulheres negras que insurgiram e resistiram à escravização;
e, por último o quinto ejó é referente à exclusão nos atos cívicos das festas dos negros, nas quais
celebravam-se:

[...] coroações de reis negros nas irmandades do Rosário, autos de rei congo, reisados,
maracatus, reuniões em sambas entre outros, que constituíam muito mais do que
instrumentos para exercício de liberdade eram projeções dos negros como sujeitos da
, p. 56).

O preconceito e o medo da concorrência das festas de negros com as festas cívicas


dos abolicionistas brancos fizeram com que a elite construísse uma máscara da liberdade,
apontada por Gadelha (2014), ou ainda, um negócio de brancos, apontado em Oliveira (2009),
143

na escrita histórica do 25 de março oficial e na defesa do Ceará enquanto a terra da liberdade,


feitos atribuídos exclusivamente ao mérito branco.
A celebração cívica publicizada na imprensa cearense interessava e alimentava,
portanto, o poder das elites intelectual, científica e religiosa que buscavam conflitar com o poder
central, além de galgar ascensão política e destaque nacional das suas figuras e da Província,
no tocante ao pioneirismo das ações abolicionistas.
A imagem estereotipada e preconceituosa em relação ao povo negro era construída
no contexto libertário e patriótico de 1884, o que me permite realizar um contraponto em relação
ao que existiu e não foi noticiado: as festas negras que, para seus sujeitos, eram diversão, mas,
também, instrumentos de conquista de espaços físicos e simbólicos na cidade (MARQUES,
2009a). A festa representava, portanto, a verdadeira liberdade!
Essa intenção perdura no período considerado da pós-abolição no Ceará. A Data
Magna ora é lembrada, ora é esquecida, mas sempre é reforçada a importância do

2011, p. 31 grifo da autora).


O Instituto Histórico, Antropológico e Geográfico do Ceará (IHGB), fundado em
1887, é uma das criações intelectuais para a perpetuação do ideário liberal na linha da
Revolução Francesa, defendendo uma ciência distorcida da realidade e o abolicionismo branco
no Ceará (CHACON, 1991). Para Sousa (2006, p. 57), a produção científica do Instituto
s preconceitos, equívocos e silêncios em torno da história do negro e da

Esse instituto era composto por uma intelectualidade que resguardaria, nos fins do
século XIX, e ao longo do século XX, a tradição histórica embranquecida cearense na
construção dos traços identitários do povo, mascarando dados e construindo histórias que
dominam e, ao mesmo tempo, excluem o protagonismo do povo negro.
No início do século XX, a escrita dos pesquisadores na Revista do Instituto do
Ceará, em artigos de 1934, ou seja, nas celebrações do cinquentenário da abolição, apresenta
dados parciais e tendenciosos sobre as populações branca e negra da Província.
O equivocado e preconceituoso texto de Sousa Pinto é um exemplo disso, quando
intencionou, sobretudo, reforçar o aumento da e a eliminação aos poucos do
da composição identitária cearense, o que ocasionou repercussões
desastrosas ao pertencimento étnico-racial negro no Ceará.
144

Além disso, embranquecidos da abolição são lembrados


nos escritos, na imprensa e nas datas comemorativas, o que me leva a considerar que essa festa
cívica e a criação do Instituto e da Revista foram ações de uma agenda pós-libertária que
camuflou as ações do povo negro e enalteceu as ações do povo branco. Nesse sentido, os
estereótipos e as teorias científicas que inferiorizavam o povo negro e ressaltavam as políticas
públicas, baseadas na eugenia, são a base dessa escrita dita científica que, na verdade, é
equivocada. Considero que os dados e as análises citadas na Revista do Instituto se tornaram
ferramentas ideológicas que reforçaram os valores elitistas embranquecidos e o racismo à
cearense (SOUSA, 2003).
A Data Magna do Ceará, para além da Revista do Instituto, é lembrada na
imprensa cearense no seu cinquentenário, especificamente, no Jornal O Nordeste, com a mesma
intencionalidade elitista e embraquecida. Observei que, durante todo o mês de março de 1934,
o jornal veiculou notícias, artigos, orientações às escolas para a celebração do cinquentenário
da abolição.
A edição comemorativa de 20 páginas do Jornal O Nordeste, que é de origem
Católica, circulou em um Sábado no dia 24 de março de 1934. A edição foi composta pelas
seguintes chamadas de capa: terra da luz, o tigre da abolição, Antônio Bezerra e a abolição,
orientações para as festas da abolição e convocava o povo cearense para a celebração do dia
seguinte, no Domingo, dia 25 de março de 1934.
O primeiro ejó encontrado nesse jornal é o silêncio mais uma vez das vozes e das
trajetórias negras ao reafirmar a fala de um herói como José do Patrocínio, que nem cearense é,
mas tinha sua foto com o texto denominando-o o tigre da abolição. Além desse, são destaques
outros textos em homenagem aos abolicionistas cearenses: Antônio Bezerra, Barão de Studart,
Justiniano de Serpa, Isaac do Amaral, entre outros. Há uma nota do representante da Igreja
Católica no Estado que, na época, era o Monsenhor Bruno de Figueiredo, reafirmando uma
mera repetição dos jornais de 1884, reafirmando, assim, as influências católica e branca nas
celebrações do cinquentenário da abolição.
O segundo ejó encontrado é a distorção da importância do Dragão do Mar. O jornal
destacou características físicas e enfatizou o seu merecimento em compor a diretoria da
Libertadora, referindo-se à Sociedade Libertadora Cearense. Por outro lado, o José Napoleão,
um dos protagonistas negros da greve dos jangadeiros, sequer fora mencionado nas páginas
daquela edição de 1934.
145

O terceiro ejó se materializou em algumas expressões que dão o sentido cristão de


ser cearense abolicionista como: inspiração da caridade evangélica; passado heroico de nossas
tradições; saudação ao 25 de março; a palavra de Deus é o código dos códigos; o operário e a
abolição; sobreviventes do movimento emancipador; além disso, as palavras patriotas e cristãos
fazem referência aos heróis, intelectuais brancos e cristãos. Excluiu-se, portanto, as narrativas
e as referências negras de religiões não cristãs, as festas de negros como os maracatus, entre
outros elementos da cultura afro-brasileira que deveriam ser mencionados e ressaltados.
Em se tratando da insurgência negra no início século XX, o contexto político
nacional é marcado pelas lutas do movimento negro com a criação do Clarim da Alvorada, em
1924 e da Frente Negra Brasileira, em 1934, em São Paulo, assim como o Movimento Brasileiro
contra o preconceito racial, em 1935, no Rio de Janeiro. Esses movimentos se conectavam,
mesmo diante das dificuldades, com a África e com a luta negra internacional. Ademais,
contestavam a pejorativa identificação do negro com a condição escrava e almejavam alcançar
para a coletividade dos ex-escravizados uma participação efetiva na sociedade brasileira
(NASCIMENTO, 2014; FERNANDES, 1964).
Diante das resistências negras nacionais, o povo negro cearense era silenciado e
apagado da História que marcou o 25 de março dos anos de 1884 e 1934. Para Xavier (2011 p.
42), a data de:

25 de março foi sendo lembrada ao longo dos anos por intelectuais que participaram
ativamente da campanha abolicionista, bem como por decretos e leis estaduais que
procuraram regulamentá-la, tornando as comemorações responsáveis não apenas de
um grupo de ex-abolicionistas, mas de toda a sociedade, a qual deveria cultuar o dia
e os personagens com a efeméride.

A intenção da celebração é, sobretudo, repetir o mérito branco e silenciar vozes


negras que protagonizaram a resistência à escravização e a luta por liberdade em terras
cearenses. No jornal O Libertador, publicado em 1884, tampouco no Jornal O Nordeste no ano
de 1934, passados cinquenta anos do ato midiático-libertário e das edições mencionadas,
conclui-se que a imprensa cearense continuava a silenciar as vozes e as manifestações afro-
brasileiras nas celebrações da falsa liberdade.
Percebo o quanto as disputas pelas verdades históricas carregadas de ideologias
embranquecidas contaminaram instituições de pesquisa, a imprensa cearense e a sociedade em
geral, gerando inúmeras quizilas junto ao povo cearense. E, ao escolher a história que não foi
contada, a minha intenção é enfatizar, diante deste contexto, permanências negras nesse
146

processo, marcadamente resistentes. Desse modo, pode-se inferir que a insurgência negra
esteve presente em todo o processo libertário, inclusive em fins do século XIX.
Embora os registros dessas resistências sejam restritos ou inexistam na imprensa ou
em documentos históricos se constituíram em importantes instrumentos para os negros se
afirmarem como sujeitos da história. Um exemplo disso são as festas tradicionais ou festas de

(MARQUES, 2009a, p. 22).


As festas de negros compõem uma diversidade de manifestações culturais
especificadas nos sambas, congos (ou autos de rei congo), maracatus, e nas coroações de reis e
rainhas negros na Irmandade do Rosário dos Pretos, além de outros ajuntamentos de caráter
festivo vivenciados por negros (MARQUES, 2009a, p. 23). Além dessas, Sousa (2003)
acrescenta que as tradições do Bumba-meu-boi, da Capoeira, também chamada de Maculelê ou
Maneiro Pau e da Umbanda cearense, pertencem à cultura afro-brasileira.
Por outro lado, a opressão a essa diversidade cultural afro-brasileira foi notória com
perseguições o Ceará, as manifestações culturais do povo negro ao longo do século XX
03, p. 109).
Diante desse universo cultural de resistência, no ano de 1936, nasceu o primeiro
maracatu com influências pernambucanas, intitulado Az de Ouro. Esse maracatu foi fundado
por Raimundo Alves Feitosa, o Raimundo Boca Aberta ou Mundico e, até hoje, apresenta
o ritmo solene, o andamento lento e o negrume nos rostos de seus brincantes. Em todos os dias
do carnaval de Fortaleza, naquela época, os grupos de maracatus e folguedos desfilavam na Rua
24 de maio e na Rua 25 de março, compondo, assim, uma diversidade rítmica e musical. Nesse
cenário, entendo o maracatu, portanto, como sendo uma dessas tradições culturais que se
constituiu em resistência negra; é, portanto, uma herança africana deixada ao povo negro
cearense.
Somente na ocasião do centenário da abolição do Ceará, o Maracatu ganhou
destaque na Imprensa local. O primeiro grupo fundado no Ceará, o Az de Ouro, desfilou pela
avenida Beira Mar, em Fortaleza, com o seu cortejo na avenida celebrando o momento
histórico. Além desse evento, a edição do jornal apontou vários pontos da cidade que celebrava
mais uma vez aquele 25 de março com inauguração de monumentos, seminários em
Universidades e eventos escolares (O POVO, 25/03/1984, p. 23).
Os maracatus se destacam, resistem ao tempo e se reinventam tendo em vista a sua
importância para o povo negro celebrar, até os dias de hoje, a cultura e a liberdade nas ruas em
147

cortejo, seja com o tom musical solene ou o com um toque musical mais cadenciado, como na
letra cantada pelo maracatu Az de Ouro, no desfile público:

Ceará terra da luz, berço da liberdade35


Nosso batuque é pra saudar a liberdade
Vai ecoar nos quatro cantos da cidade
Na Fortaleza, terra dos maracatus
Salve o Dragão do Mar, Ceará, Terra da Luz
Hoje tem festa, gira, gira, girassol
Estrelas no azul do céu
Salve os deuses da floresta
Nosso negrume, nosso axé, nosso tesouro
Vem cantar a liberdade Maracatu Az de Ouro

O surgimento desse cortejo cearense, nas ruas de Fortaleza, ocorreu no final do


século XIX e se tornou uma forma de luta e resistência na ocupação de espaços. Conforme
Militão (2012), pseudônimo do artista cearense Pingo de Fortaleza, os maracatus formavam
grupos de homens pintados de pretos que seguiam em cortejo solene e lento por várias ruas
tocando reco-reco36 e maracás37, partindo das sedes e percorrendo algumas áreas da cidade, a
saber:

Maracatu Morro do Moinho: área próxima ao Arraial moura Brasil; Maracatu do


Outeiro; área a partir da rua 25 de Março no sentido leste Colégio Militar de
Fortaleza; Maracatu Beco da Apartada Hora: área próxima à atual Governador
Sampaio; Maracatu da Rua São Cosme: atual Rua Padre Mororó, e Maracatu do
Manuel Conrado. (MILITÃO 2012 p. 22).

Esses maracatus participavam, portanto, de várias festas negras (carnaval,


coroações dos reis negros das Irmandades de Nossa Senhora do Rosário ou até autos de congo),
no contexto pós abolicionista. Essa manifestação cultural se reinventou diante dos tempos e se
tornou uma agremiação carnavalesca, incorporando elementos ressignificantes das expressões
da cultura africana, novos ritmos e cores, assim como agregou a população negra brincante das
festas, dos folguedos e dos antigos remanescentes dos maracatus do século XIX (MILITÃO,
2012).
Conforme Marques (2009a), os maracatus resistem desde as últimas décadas do
século XIX e perduram até o século XXI. O maracatu constitui uma faceta da nossa diversidade

35
A loa é o tema em forma de letra e canção entoada pelos brincantes, ao longo dos desfiles e nas apresentações
culturais do Maracatu Az de Ouro do ano de 2004. A canção tem a autoria de Calé Alencar (SILVA; MILITÃO,
2014), e a principal mensagem é celebrar a liberdade no Ceará, com os batuques e o axé do povo negro que
pede passagem.
36
É um instrumento musical do maracatu.
37
É um instrumento musical do maracatu.
148

cultural afro-brasileira em Fortaleza - Ceará. Uma das mudanças que enxergo no século XX,
além do fortalecimento dos maracatus já existentes, é o surgimento de uma outra resistência
negra urbana, denominada Associação Cultural Maracatu Vozes d`África. Essa agremiação
carnavalesca diferencia-se do maracatu Az de Ouro pelas mudanças rítmicas e pela inserção de
coreografias em suas alas38, com fantasias com plumas e muito brilho nos desfiles de seus
brincantes.
Sua criação foi inspirada na existência anterior do maracatu Estrela Brilhante, que
marcou época nos carnavais de Fortaleza da década de 1950. Além daquele, existia, entre os
anos de 1950 e 1960, outros três grupos de maracatus: O Az de Ouro, o Az de Espada e o Leão
Coroado. O maracatu Vozes d´África foi fundado no dia 20 de novembro, durante a II semana
da Consciência Negra, realizada em Fortaleza na sede do museu Arthur Ramos em 1980. Esse
maracatu surgiu de uma iniciativa do jornalista Paulo Tadeu Sampaio, apoiado pelo Centro
Social Urbano Presidente Médici e um grupo de escritores, folcloristas e carnavalescos da
cidade (O POVO, 20/11/1982, p. 46; MILITÃO, 2012). Além da luta pela cultura negra ser a
essência desse maracatu, a sua existência: [...] se propõe a volta às raízes do autêntico maracatu
cearense, e com as cores branca e preta, [...] utiliza a batida e instrumentos tradicionais e
totêmicos POVO, 20/11/1982, p. 46).
Percebo o quanto o traço de ancestralidade africana é resguardado pelo maracatu
no Ceará, com a sua musicalidade, cores e roupas, e ainda por representar nas histórias da África
congo-angolana uma forma de coroação e de festejar os reis Congo. Trata-se, portanto, de uma
das heranças culturais africanas que nasceu com influências pernambucanas (MARQUES,
2009).
É interessante perceber que a história da manifestação afro-brasileira se conecta
com o tempo em que eu nasci e, o meu primeiro contato visual e físico com os maracatus
ocorreu em uma formação continuada de professores, em 2015, na qual ocorreram as
apresentações e debates com os seus brincantes.
Em seguida, identifiquei estudantes em uma das escolas que trabalhei que
participavam das agremiações e busquei realizar diálogo com o Maracatu Kizomba, na escola,
ocorrendo, assim, a minha segunda interação educativa e de divulgação cultural dos maracatus
na cidade de Fortaleza. Desde então, participo de apresentações, desfiles e registro os maracatus
de Fortaleza.39

38
Significa cada uma das partes temáticas que o maracatu traz no seu desfile público.
39
Construí uma playlist de vídeos chamada aracatus de Fortaleza que tem o objetivo educativo e de
divulgação cultural desse patrimônio aos educandos e educadores que utilizam os vídeos em suas aulas.
149

No sentido da institucionalização e valorização cultural dessa manifestação cultural


na cidade, no dia 3 de dezembro de 2016, o Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio
Histórico e Cultural de Fortaleza (Comphic) o reconheceu como patrimônio imaterial, sendo
registrado pela Prefeitura Municipal de Fortaleza por se tratar de uma manifestação que
demarca as memórias, as identidades, as histórias e a cultura dos habitantes fortalezenses,
conforme o Decreto nº 13.769, de 14 de março de 2016, que recomendou:

[...] o registro do Maracatu Cearense como Patrimônio Imaterial de Fortaleza, bem


como por sua inscrição no "Livro de Registro dos Saberes", onde são inscritos os
conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades, tendo em
vista a presença de participantes do Maracatu Cearense, como batuqueiros, tiradores
de loas, desenhistas, figurinistas, além de alguns personagens como Balaieiro,
Calungueira e Rainha, que são pessoas detentoras de especial e indispensável saber
para a prática dessa manifestação. (CEARÁ 2016, p. 01).

Trata-se de uma demanda antiga, tendo em vista que, desde 2013, a política de
cultura do município executava um projeto intitulado todo dia 25 é dia de maracatu sendo o
dia oficial o 25 de março. Essa vitória é comemorada pelo fundador e presidente do maracatu
Vozes da África, Francisco Aderaldo de Oliveira, ao afirmar que:

[...] o maracatu conseguiu ter o dia 25 de março só para ele. Essa é mais uma vitória
para nós que fazemos parte do movimento negro. Agora é só comemorar e nunca
deixar morrer o maracatu. Meu sonho é que aqui fosse a cidade dos maracatus, porque
é uma das coisas mais bonitas da cultura afro-brasileira. (JORNAL DIÁRIO DO
NORDESTE, 2016, p.16).

Que possamos refletir sobre o verdadeiro sentido da liberdade no Ceará, a partir das
manifestações culturais negras como forma de valorização da memória ancestral. Essa é uma
forma de reconhecimento e incentivo aos brincantes que fizeram e fazem esse patrimônio
cultural imaterial da cidade. Além disso, quase 140 anos depois do percurso abolicionista, me
pergunto, enquanto professora de Geografia, quais abordagens são adequadas para o 25 de
março?
Eu não tenho memória de infância, nem na escola ou de livros, tampouco na família,
de menção ou celebração a essa data. Somente na adolescência que associei a data à figura do
Dragão do Mar. A minha geração é fruto, portanto, do processo de construção da memória e do
imaginário cearense com narrativas e registros históricos distorcidos,

Disponível em: https://youtube.com/playlist?list=PLhj8BicZlnbQxj0ugZluqepig-J-KxIlb. Acesso em


14.jan.2021.
150

Enquanto professora, é fundamental refletir sobre a história negra que não foi
contada e seus desdobramentos para o povo negro na abordagem pedagógica de um 25 de março
crítico. É chegada a hora de caducar narrativas de dor, sofrimento e de redenção realizadas por
jovens brancos. Não cabe mais o saudosismo aos mascarados de heróis nas festas cívicas. Não
cabe mais ressaltar os feitos embranquecidos e elitistas!
Nesse sentido, as práticas pedagógicas contribuem para a insurgência negra ao
possibilitar outros olhares e abordagens na busca de modificar comportamentos, atitudes e
visões de mundo, fortalecendo trajetórias e trabalhos culturais e políticos que fazem os
maracatus e o movimento negro da cidade.
É necessário ressaltar a trajetória histórica dos maracatus, destacando os 14
(quatorze) grupos organizados institucionalmente, na cidade de Fortaleza (MILITÃO, 2012).
Além disso, é fundamental reforçar as lutas e as trajetórias dos principais protagonistas negros
e negras que viveram no Ceará, nos séculos XIX e XX e que contribuíram para a valorização
de nossa história e dos nossos antepassados. Nesse sentido, alguns nomes do século XIX, no
Ceará, devem ser estudados; esse é o caso, por exemplo, de Dragão do Mar, José Napoleão e a
Preta Tia Simôa. No século XX, temos algumas referências como os artistas Descartes Gadelha,
Carlos Alberto Alencar (Calé Alencar), João Wanderley Roberto Militão (Pingo de Fortaleza)
e Raimundo Alves Feitosa (Raimundo Boca Aberta). Além de militantes do movimento negro,
Maria Lúcia Simão, William Augusto Pereira e Alecsandro Ratts. Essas referências são
necessárias em nossas narrativas, escritas e práticas de ensino.
Que se deixe viver uma data de referência para questionar e revisar a história,
honrando as trajetórias e as vozes negras protagonistas da liberdade, com outras existências e
narrativas que são tecidas baseadas em memórias ancestrais.
Deixar o cortejo passar rememorando as lutas e as resistências do povo negro
cearense é simbolicamente um ebó de limpeza, comportamental e de consagração da verdadeira
celebração pela liberdade nas festas protagonizadas por negros no Ceará.
Procurei me remeter ao enfrentamento das quizilas do apagamento, do
silenciamento e do racismo que nós educadoras/educadores temos que enfrentar. Existe um
mérito e um protagonismo negro na luta por liberdade no Ceará que enfatizei a partir de diversos
elementos históricos e espaciais.
O segundo ébó do povo negro, revela sua trajetória de luta no processo de
mobilização social e política que atravessou os séculos com resistências, a ser destacado no
próximo tópico.
151

3.6 Ebós das mobilizações negras (1980 - 1992) - quilombolas (2000 - 2020) no
Ceará: influências, representações e conquistas

No tempo dos meus bisavós, foi celebrada a liberdade do povo negro. Na juventude
dos meus avós, Maria José Aires (22 anos) e Joaquim Faustino Soares (25 anos), em 1934,
celebrava-se o cinquentenário do que denominei de falsa liberdade. Na idade adulta de minha
mãe, Hilda Faustino Aires (33 anos), e na minha primeira infância (2 anos), as articulações do
movimento negro se ampliaram em 1982 e, mais tarde, em 1984, comemorou-se o centenário
da falsa liberdade. Foram esses os cenários que desenhei como forma de contradizer e
ressignificar o processo.
No tempo em que eu nasci, os estudos geográficos sobre os movimentos
socioterritoriais se transformavam, indicando a construção de outras narrativas históricas ao
enxergar o movimento negro e a luta quilombola, por exemplo. Assim, ao longo dos anos de
1970 e 1980, a Geografia brasileira produziu um conhecimento sobre os movimentos sociais
urbanos e rurais pelo viés marxista e na crítica da ação estatal (PEDON, 2013).
O contexto da minha infância ocorria de um lado, e as celebrações do centenário da
abolição, do outro; de todo modo, ampliava-se a resistência negra do século XX na cidade e no
campo (NASCIMENTO, 2012). Diante desses cenários, optei por destacar os movimentos
negro e quilombola, tendo como referência esse tempo em que eu nasci. Considero ser esse o
momento em que essas articulações sociais, religiosas e políticas dialogam e se tornam ainda
mais abrangentes com diversas ramificações ideológicas de alcance estadual e nacional. Nesse
sentido, acredito que esses momentos de resistência negra-quilombola coincidem com a minha
trajetória de mulher negra -geógrafa.
Pedon (2013) afirma que ocorre uma divisão na Geografia para fins de análises dos
estudos dos movimentos sociais em rurais e urbanos. Para esse autor, os estudos sobre
movimentos sociais urbanos se desenvolveram independentes dos estudos sobre os movimentos
sociais rurais. Na década de 1980, as pesquisas predominantes dedicavam-se aos movimentos
sociais urbanos, como os estudos de caso, tendo o recorte territorial como base de referência e
as reivindicações voltadas ao Estado. E, as pesquisas sobre os movimentos sociais rurais
assumiam um caráter generalista, desconsiderando especificidades e os objetivos dos coletivos
mobilizatórios, o que provocou a redução dessas à apresentação a sociedade de modelo único e
hegemônico de mobilização no campo.
152

Somente na década de 1990, os estudos geográficos adquiriram relevância à medida

espaço no interior do quadro de conflitos contemporâneos. No plano teórico, essa relevância


caminhou rumo a uma maior acuidade no tratamento conceitual que foi dispensado aos
.
Fernandes (2005) complementou a produção teórica sobre os estudos dos
movimentos sociais na Geografia, destacando uma nova forma de (re)conceituar as
manifestações sociais de resistência e luta popular, utilizando as seguintes denominações:
movimentos socioterritoriais e movimentos socioespaciais. A primeira tem como objetivo a
conquista do território. A segunda tem o espaço como base de ação, mas não questiona nem
interfere nas territorialidades construídas. O intuito de Fernandes (2005) é realizar uma
(re)leitura da dinâmica social da luta de classes imbricada nas ações dos movimentos
socioterritoriais e dos movimentos socioespaciais. Os movimentos negro e quilombola são
abordados, portanto, nessa perspectiva geográfica.
Em se tratando dos movimentos negros no Ceará, enxergo uma articulação que
construiu um processo político contínuo de reinvindicações integradas. Sua essência é se inserir
em estruturas espaciais já existentes e questionar as relações sociais nesses espaços, dialogando
com um quadro mais amplo de lutas pelo acesso ao mercado de trabalho, à educação, à
construção identitária e transformação da realidade do povo negro (PEDON, 2013;
FERNANDES, 2005).
O percurso do movimento negro no Ceará pode ser destacado a partir da
recolocação da questão racial no centro do debate e do enfrentamento à exclusão e às tentativas
de apagamento do povo negro e, principalmente, de povos quilombolas.
Entendendo que
dizer, se estiver inserido numa totalidade na qual a classe é uma categoria que engloba o
PEDON, 2013, p. 47). Nesse sentido, as articulações do
movimento negro cearense, no período de 1982 a 1992, foram desenvolvidas por militantes
pertencentes a classe trabalhadora (SOUSA, 2006; NASCIMENTO, 2012).
O Movimento Negro Unificado (MNU) é socioespacial, pois não coloca em questão
os recortes político-administrativos de ocupação dos espaços, diferindo, assim, do movimento
quilombola, que é socioterritorial, que legitima a luta pelo território e confronta as formas
impostas na apropriação dos espaços, essencialmente, capitalistas.
153

Nos anos de 1990, o movimento socioespacial negro enxerga a dimensão territorial


a partir da relação construída com o movimento socioterritorial quilombola do Ceará. O levante
quilombola, portanto, defende pautas coletivas produções
espaciais e territoriais (materiais e simbólicas) que se concretizam ao erigir marcos e limites.
[...] (PEDON, 2013, p. 167). A militância de trabalhadores rurais, em sua maioria, converge na
territorialidade, nos modos de viver, na memória, na ancestralidade e na luta por direitos. O
movimento socioterritorial quilombola objetiva, portanto, a defesa do território que é o seu
trunfo de luta e mobilização.
Enxergo, portanto, que essas articulações negras e quilombolas constituem-se em
ebós compostos de um carrêgo40 de anseios, expectativas e simbolismos. O sentido do termo
denominado de ebó41, que é uma palavra do tronco linguístico Iorubá42, relaciona-se à oferta, a
presente, à oferenda, a sacrifício às divindades africanas e afro-brasileiras, na busca de proteção,
limpeza e/ou cura espiritual e prosperidade (TESSEROLLI, 2009; LOPES, 2011).
Esse ebó geo-negro-quilombola representa a resistência e a luta desses povos, na
busca por mudanças e na reafirmação de direitos realizada pelas diversas gerações. Representa,
ainda, cada conquista coletiva nas encruzilhadas percorridas. São oferendas que transformam a
realidade. O ebó do movimento negro e quilombola pode ser considerado um ritual dividido em
etapas e caminhos cumpridos ao longo dos tempos e de forma coletiva, na busca da efetivação
das Políticas Públicas voltadas ao povo.
O conflito, o diálogo e a busca por mudança constituem o processo de limpeza
ancestral de um ebó. Esse ritual simboliza o caminho escolhido pelos movimentos destacados
e os resultados das suas ações que abriram os caminhos à organização social e política na luta
pela terra, confrontando as estruturas de poder hegemônico.
Ao mesmo tempo, os ebós dos movimentos socioespaciais e socioterritoriais
promove encontros entre a matriz de conhecimento africano com o conhecimento acadêmico
contemporâneo afro-brasileiro.

40
CARRÊGO. In: Dicionário informal on-line. Disponível em: Acesso em: 10 jan. 2022.
https://www.dicionarioinformal.com.br/sinonimos/carrego/ refere-se ao peso de algo. Simbolicamente, essa
palavra nas religiões de matriz africana refere-se ao acúmulo de negatividades que adquirimos em nossas vidas.
O ebó é passado no corpo para limpá-lo dessas energias.
41
EBÓ. In: Dicionário Yorubá/Português on-line. 5. edição. Disponível em: http://umbanda-
candomble.comunidades.net/dicionario-yoruba-portugues. Acesso em: 10 dez. 2019.
42
Conforme Lopes (2011, p. 663), refere-se ao povo negro-africano localizado na África Ocidental, especialmente
da Nigéria e no Benin, com marcas linguísticas relacionadas ao nagô, ewe, fon, ketu, entre outras.
154

Diante da negação dos valores ancestrais africanos e afro-descendentes, o sentido


de reconstruir valores afrodiaspóricos é uma das principais respostas do ebó do conhecimento
originado pelo movimento socioespacial negro, dado o seu caráter formativo e mobilizador.
O ebó do movimento socioespacial negro cearense contesta os sentidos do
centenário da abolição, no contexto dos anos de 1980 e 1990, e movimentou os grupos negros
em torno da questão racial. Sendo assim, destaco alguns aspectos dessa luta ao longo dos anos
de 1980, que pode ser considerada a década da sua articulação social e política no Ceará.
Combateu, portanto, racismos e estereótipos sofridos e impetrados e as desigualdades raciais
que desconstruíram concepções de uma suposta democracia racial.
Nesse sentido, ressalto o ebó das palavras de Abdias do Nascimento: teórico,
professor, militante e artista negro que registrou racismos, lutas, quilombismos e pan-
africanismos e se conectou ao movimento negro cearense, contribuindo para o debate sobre a
celebração do centenário da abolição (NASCIMENTO, 1978; NASCIMENTO, 2002; BRASIL,
1984).
Considero que a razão de ser do movimento social é a articulação e organização dos

direitos ao mesmo tempo que estabelecem laços de cooperação, contribuindo para o


Nessa perspectiva,
relaciono as influências do movimento negro com a ampliação e articulação do movimento
quilombola no Ceará.
Os quilombos rurais, embora invisibilizados, sempre existiram em quantidade e
qualidade incalculável desde o século XVI e continuaram a se organizar e a expandir suas
atividades econômicas e seus territórios (PEREIRA, 2019). Nessa perspectiva, avisto às lutas
das comunidades quilombolas que, em sua maioria, são rurais, emergir no Brasil.
É um levante rural, quilombola, de base popular campesino e socioterritorial que
dialoga com MNU, do Sudeste brasileiro e do Ceará (REGINALDO, 1995; SOUSA, 2006).
Além disso, a mobilização quilombola fortalece a reprodução social e econômica dos povos e
amplia a luta quilombola de base étnica, territorial e camponesa (PEREIRA, 2019).
A minha estratégia de aquilombamento é refletir, também, sobre o ebó do
movimento socioterritorial quilombola, nos anos de 2000 a 2021, considerando esse recorte
temporal como sendo um período de sua maior articulação nacional e estadual. A reflexão
ocorre, portanto, a partir de suas instâncias representativas, das principais demandas e algumas
de suas conquistas.
155

Neste processo de ampliação do movimento, enxergo que os povos quilombolas


dialogam com a produção do conhecimento geográfico e de outras áreas na Universidade em
escala estadual, à medida que as pesquisas, relatórios técnicos e livros destacam coletividades,
existências, resistências e lutas quilombolas, em diversos municípios cearenses, a exemplo de:
Tamboril (CARVALHO 2020; MARQUES, 2009b; 2011); Quixadá (SILVA, 2018); Caucaia
(SILVA, 2016); Tururu (ALVES, 2018); Potengi (SANTOS, 2018); Horizonte (SANTOS,
2012); Itapipoca (CHAVES, 2013; AGUIAR; SANTOS; ALENCAR, 2020); Croatá
(RIBEIRO, 2019), entre outros. Há, também, pesquisas geográficas nos demais estados
nordestinos, próximos ao Ceará, no rumo do Piauí e do Maranhão, como o trabalho de Barboza
(2013) e o trabalho de Pereira (2019), no rumo do Rio Grande do Norte.
Esse panorama evidencia uma Geografia que se aquilomba teórico-
metodologicamente ao desenvolver estudos que reafirmam a importância das comunidades
remanescentes de quilombos na formação socioterritorial nordestina e cearense. Essa Geografia
assume uma postura que combate a opressão secular vivenciada pelas populações negras e
questiona o poder enraizado na sociedade. Nessa perspectiva, uma das categorias principais
dessas abordagens é o território, tanto em sua dimensão material (dimensões, limites), quanto
imaterial (modos de ser e ocupar o espaço).
A discussão contribui para outros sentidos, significados e narrativas de ser e fazer
uma Geografia aquilombada. Nesse sentido, a principal contribuição deste trabalho é destacar
o ebó do conhecimento, que parte do enfrentamento aos silenciamentos e às tentativas de
apagamentos das trajetórias negras e quilombolas.
Defendo o ebó que publiciza trajetórias negras e quilombolas combatentes como
forma de reparação histórica do nosso povo no Brasil e no Ceará. Este é o ébo dos quilombos,
que assumiu vários sentidos e um deles é comportamental. A partir das vozes, trajetórias e lutas
quilombolas, busquei demonstrar a necessidade da mudança comportamental na garantia de
direitos que possibilitem a reparação histórica desses povos quilombolas.

conhecimento praticado, os ritos de encante e as inúmeras sabedorias negro-africanas transladas


A exemplo disso, destacam-se os terreiros de Umbanda e
Candomblé, os maracatus e afoxés, os grupos ou escolas da capoeira, os guardiões da memória,
educadoras e lideranças comunitárias nos quilombos, entre outros, que constituem
territorialidades negras em luta nos espaços urbano e rural do Ceará. Diante das alternativas do
povo negro, nos contextos de escravização e abolicionista e estendendo-se ao século XX, houve
156

aqueles que se revoltaram e pautaram as questões raciais em suas lutas. As rebeliões negras; a
formação dos quilombos; as festas de negros; os cortejos de maracatus; as irmandades negras
católicas; as Comunidades Eclesiais de Base (CEB´s); a Comissão Pastoral da Terra (CPT); o
Grupo de União e Consciência Negra (GRUCON); ;a
Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas
(CONAQ); e a CERQUICE, entre outros, são alguns dos principais coletivos da resistência,
rebeldia e revolta aliados aos povos negro e quilombola, nos séculos XIX, XX e XXI, no Ceará.
São esses coletivos, atuantes em diferentes espaços, que construíram as bases da militância do
MNU e do Movimento Quilombola no Ceará.
As influências católicas e acadêmicas se fazem presentes na formação do
movimento socioespacial negro e na gênese do movimento socioterritorial quilombola,
conforme destacado nos tópicos a seguir.

3.6.1 Influências católicas na mobilização

O Estado e a Igreja se complementam nas suas ações em defesa dos interesses da


classe dominante em detrimento daqueles que compõem as outras camadas sociais. Ambos
trabalharam em conjunto para integrar o povo escravizado de maneira subalterna à sociedade
luso-brasileira, sendo as alternativas para o povo negro: a fuga para os quilombos, a opressão e
a escravização.
A instituição religiosa deixou sua marca na invisibilidade de negros e quilombolas,
no Censo de 1872 realizado no Ceará, ao estabelecer a religião católica como única a ser
reconhecida. Além disso, a adoção compulsória do nome cristão nesse Censo, bem como do
sobrenome do dono, representava para o africano, a verdadeira e trágica amputação da sua
identidade, do seu pertencimento.
Essas ações consideradas pela Igreja como cristãs compõem o processo de
desafricanização da diáspora que, segundo Lopes (2011), é um processo psicológico e cultural
de desconstrução das expressões identitárias dos africanos e seus descendentes dispersos. Nessa
lógica, essa imposição cristã relaciona-se tanto para controlar o crescimento da população
escrava e liberta, no final do século XIX, quanto para combater a ascensão dos cultos religiosos
afro-brasileiros, no século XX.
Quanto às irmandades negras católicas, cabe dizer que essas refletiam diferenças
em meio à população de cor do Ceará, a exemplo o grupo de pardos que se dividia conforme a
157

condição jurídica (escrava ou livre), a condição social e com relação aos pretos africanos e
crioulos (SOBRINHO, 2011; REGINALDO, 1995).
Ao mesmo tempo, esses grupos negros constituíram encontros, autonomias e
sociabilidades entre libertos e livres ao promover relações de afeto e de solidariedade aos
escravizados com suas alforrias; com auxílio para uma boa morte; ao proporcionar ascensão
social dos pretos e pardos na sociedade, tendo em vista os cargos internos de prestígio e poder;
ao contribuir para o culto aos orixás-santos e as coroações de reis e rainhas do Congo (NUNES;
CUNHA JÚNIOR, 2011).
Como forma de continuar fortalecendo suas bases religiosas, a Igreja assumiu uma
postura de combate e de temor diante do sucesso das religiões de origem africana, como a
Umbanda e o Candomblé, por exemplo.
ordem têm ocorrido na história das

-consumidor
1995 p. 100, grifo do autor).

nativos e os negros, a fé cristã, os estava impedindo de continuar com suas identidades. Ledo
se autor, as resistências a desafricanização na Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário dos Homens Pretos, se materializava nas práticas de um catolicismo preto,
desde a primeira metade do século XVIII, identificadas na vila de Fortaleza que se estendeu até
a segunda metade do século XIX.
A presença desse catolicismo negro construiu espaços de liturgia afro como as
Igrejas do Rosário, erguidas em várias vilas cearenses à época: Fortaleza; Aracati; Sobral;
Quixeramobim; Barbalha; Icó; Milagres; Crato e Sobral (SOBRINHO, 2011; MARQUES,
2009a; NUNES, 2010). Nesse cenário, Sodré (1988) afirma que não havia sincretismo religioso
devido à incompatibilidade desses sistemas simbólicos:

[...] o Catolicismo é apenas religião, comprometida com uma economia industrializada


vocacionada para a dominação do espaço humano, enquanto o culto gêge-nagô tem
motivações patrimonialistas de grupo, ecológicas, e não de define exclusivamente por
parâmetros ideológicos de religião. (SODRÉ 1988, p. 58).

Nesse contexto religioso diverso, estava a militância negra que era capturada pela
instituição religiosa católica ao buscar dialogar com as demandas do povo negro. A Igreja
enxergava uma oportunidade de controlar as práticas religiosas afro-brasileiras que constituíam
uma das bases do MNU nacional, nos anos de 1970 e início dos anos de 1980.
158

Ao fincar-se no movimento negro, a Igreja criou uma articulação nacional para


profetizar, refletir e conscientizar as principais questões raciais no interior eclesiástico,
garantindo aos grupos recursos financeiros para ações mobilizatórias. Surgiram novas
organizações que fortaleceram articulações da sociedade civil nos movimentos ecológicos, do
campo, feministas, étnico e outros, reunidos nas CEB´s. (NASCIMENTO, 2012).
Além disso, a Igreja exerceu um papel significativo para o fortalecimento da luta
pela inserção dos povos negro e quilombola no cenário legislativo nacional em apoio às lutas
no campo. De acordo com Pereira (2019), esse marco se dá com a criação da CPT a nível
nacional em 1975, no mesmo contexto de oficialização do Movimento Negro Unificado. Trata-
se de uma outra pastoral que desenvolvia ações junto às populações do campo.
Percebo ramificações ideológicas que articulavam o movimento e contribuíam para
divergências nas formas de mobilização. São construídas articulações políticas e ideológicas
junto às instituições e espaços de poder, como: as Universidades, os Partidos Políticos de
esquerda e os movimentos sociais (SOUSA, 2003). Um exemplo disso é que, na década de
1980, os negros mobilizados e vinculados ao catolicismo também se voltam ao Candomblé
como guardião da cultura negra, exercendo, em alguns contextos, a liturgia afro que
incomodava uma parte da comunidade eclesiástica (REGINALDO, 1995).
De acordo com Reginaldo (1995), na semana da Pátria de Setembro de 1988,
representantes católicos dos diversos estados brasileiros fundaram o Grupo de União e
Consciência Negra (GRUCON) que:

[...] desde o início de sua organização não assumiu-se claramente como um grupo da
Igreja Católica, inaugurou uma série de discussões á nível teológico-pastoral, litúrgico
e político que abriram as portas para o surgimento de um intenso movimento de
(REGINALDO, 1995, p. 13).

Esse grupo centralizava ações a partir da cidade de São Paulo para as demais
cidades brasileiras, como foi o caso de Fortaleza, no Estado do Ceará. Essa era uma tentativa
de apoiar a mobilização negra nos espaços religiosos.
O aspecto católico, portanto, constituiu uma das características desse início do
movimento que é destacado no recorte temporal das pesquisas de Sousa (2006) e Nascimento
(2012), ambos estudaram as características do movimento ao longo da década de 1980. Em suas
análises, Sousa (2006) constatou a prevalência do discurso católico nos diversos momentos da
história do movimento e na organização posterior da maioria dos militantes com resquícios
observados na atualidade nos movimentos.
159

Ao mesmo tempo, no final da década de 1980, surgiu a entidade chamada União de


Negros pela Igualdade (Unegro) na Bahia. Uma organização fundada em razão da dissidência
do MNU que foi se espalhando para os estados de Goiás, Rio de Janeiro e São Paulo
(FERREIRA, 2004).
Nascimento (2012, p.72), analisa o movimento negro a partir de suas dissidências
e mudanças, e estratégias, [...] de diversas
sa autora, a década de 1980 foi um
referencial organizativo para a luta em geral e para reafirmar a luta de gênero na questão racial,
contribuindo, assim, para mudança de postura e de vínculos identitários.
Como consequência, a militância diversificava-se e os caminhos político-
ideológicos tornavam-se distintos do Brasil e do Ceará. Nesse sentido, a fundação do
GRUCON, no Ceará em 1982, reafirmou uma das bases do movimento negro centrado
politicamente nas ações da Igreja Católica de São Paulo. O GRUCON cearense pode ser

uma Pastoral afro, teve na sua constituição representação da igreja Lute


(NASCIMENTO 2012, p. 72).
Esse foi o primeiro grupo mobilizador no Ceará vinculado à Igreja e ao povo negro.
E, as lideranças cearenses desse nascedouro foram: Maria Lúcia Simão e o seu esposo William
Augusto Pereira; além do Padre Francisco Roserlânio de Sousa, José Hilário Ferreira Sobrinho,
Francisca Maria Rodrigues Sena e o Alecssandro José Prudêncio Ratts, entre outros (SOUSA,
2006; NASCIMENTO, 2012).
O grupo era composto por militantes negros, especificamente, de alguns bairros da
cidade de Fortaleza como Jardim Iracema, Piedade e Jangurussu. Esses bairros se tornaram os
principais núcleos do movimento negro no Ceará e se caracterizavam pela localização afastada
do centro da cidade, possuindo um contingente populacional de maioria negra.
No Jardim Iracema, alguns de seus habitantes e militantes do movimento negro
possuíam relações de parentesco com as comunidades negras de Lagoa do Ramo em Aquiraz e
Conceição de Caetanos de Uruburetama, Ceará indicando relações e diálogos com comunidades
quilombolas de diferentes municípios
Como forma de homenagear esse bairro e reafirmar uma manifestação cultural
negra predominante naquele espaço no qual residiam, fundaram a Associação Cultural e
Educacional Afro-Brasileira Maracatu Nação Iracema, que desde o ano de 2005, impulsiona a
mobilização social negra.
160

O bairro do Jangurussu é caracterizado pela presença negra marcante. Ademais,


inúmeros grupos culturais surgiram nesse bairro como os Filhos da África, o Maracatu Kizomba
e o Maracatu Obalomi. Esse fenômeno no bairro denota uma mobilização que reafirma
manifestações e tradições culturais de origens africana e afro-brasileira.
Piedade é outro bairro em que a juventude negra se encontrava envolvida em
pastorais da Igreja Católica conservadora o que, ao longo dos anos de 1980, desencadeou o
rompimento de vínculos por parte de seus integrantes, a exemplo do professor José Hilário
Ferreira Sobrinho que seguiu sua militância desvinculada na Igreja (SOUSA 2006; CHAVES
2013; CRUZ 2011; NASCIMENTO 2012).
No contexto nacional, o primeiro grupo dissidente do GRUCON foram os APN´s.
Essa pastoral juvenil e militante surgiu no ano de 1988, tendo em vista que:

[...] cresce assustadoramente e passa a ser a principal referência das discussões em


torno da questão do negro, dentro da Igreja Católica, tomado, de um ponto de vista
institucional e, principalmente, a nível de práticas pastorais diretamente ligada às
comunidades católicas, o espaço aberto pelo Grupo de União e Consciência Negra.
(REGINALDO, 1995, p. 13).

Esse subgrupo foi, portanto, um dos principais e mais numerosos coletivos negros
a se afirmar no movimento negro, tornando-se referência para o trabalho pastoral negro no
Brasil. A pastoral tem origem na classe trabalhadora católica e se inspirou na Teologia da
Libertação43 e na experiência dos movimentos sociais negros, principalmente na década de 70
(REGINALDO, 1995). Essa doutrina social da Igreja é progressista e a sua prática de traduziu
A e CONDURU, 2013). 44 Assim, um grupo de religiosos
negros articulou-se na composição dos APN´s no C
baseada na fé que agregasse deferentes orientações
p.130).
A articulação negra do MNU, no Ceará, se fez, portanto, com a junção das seguintes
entidades jurídicas: Grupo União e Consciência Negra (GRUCON), de 1982; os Agentes de
Pastorais Negros (APN´s), em 1988; os Grupos de Mulheres Negras de Fortaleza em 1991 e a
Seção Fortaleza do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1995. (SOUZA 2013;
NASCIMENTO, 2012).

43
A Teologia da Libertação tem como uma de suas bases de apoio a Sociologia marxista, os teólogos da libertação
se consolida com
a criação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e das várias pastorais populares. (REGINALDO, 1995,
p. 14).
44 Grifo dos autores.
161

Segundo Nascimento (2014a, p. 83), o movimento negro brasileiro ansiava por uma
segunda abolição da escravatura, tendo em vista que a própria Constituição de 1934 e a ciência
assinalavam uma atribuição da inferioridade congênita do povo negro.
Essa era a tônica no Ceará, quando se tem a população afro-brasileira liberta em
1884 e, mais tarde no Brasil, em 1888, na situação de analfabetismo, sem direito a saúde, ao
mercado de trabalho e a moradia digna? Trata-se de uma falsa liberdade, conforme destacado
anteriormente. O processo libertário sinalizou o quanto a opressão exercida pelas classes
dominantes é socialmente instituída, promovendo injustiças e desigualdades que devem ser
confrontadas e modificadas como forma de reparação histórica às gerações de famílias negras
e quilombolas do Ceará.
Enquanto alguns militantes católicos se tornaram APN´s, outros discordavam dessa
ligação afetiva e efetiva com a Igreja, devido à posição dessa instituição em relação ao povo
negro brasileiro (NASCIMENTO, 2012). Surge, assim, o segundo grupo de militantes
universitários que exercem o enfrentamento aos discursos distorcidos que camuflam a
participação do povo negro na formação socioterritorial cearense. Esse grupo desenvolveu
pesquisas junto a mulheres negras militantes, a documentação dos tempos de escravização e
nos quilombos. Além disso, promoveram eventos que dialogaram com nomes nacionais do
MNU.
Portanto, uma das matrizes do movimento socioespacial negro cearense é católica
e configurou-se na formação de grupos pastorais de caráter bairrista coordenados por diretrizes
da Igreja Católica do Sudeste nas ações mobilizatórias.
Outras matrizes do movimento socioespacial negro são partidárias e acadêmicas.
Essas matrizes desenvolveram formas diversas de organização e atuação do MNU, no Ceará,
ora destacada no próximo tópico. Além dessas, destaco as entidades representativas do
movimento socioterritorial quilombola para a articulação dos territórios no Brasil e no Ceará.

3.6.2 A Universidade e a política na mobilização

Voltando ao início do século XX, eu diria que o coletivo negro que antecedeu o
MNU foi a Frente Negra Brasileira (FNB), a qual surgiu entre o final dos anos 1920 e início
dos anos de 1930, com a participação de pessoas negras no movimento, várias representações
foram construídas nos estados de Pernambuco, Minas Gerais, Bahia, Rio Grande do Sul, entre
outros. E, em seguida, no ano de 1937, a FNB transformou-se em partido político e incentivou
162

a construção de movimentos em outros estados brasileiros (PEREIRA, 2019). Vale ressaltar


que a FNB, embora tenha atuado em um curto período de tempo, constituiu as bases ideológicas
e políticas do MNU, nos anos de 1970.
O movimento chega à segunda metade do século XX imprimindo sua marca contra-
hegemônica. No cenário brasileiro de ditadura militar, o MNU surge no dia 07 (sete) de julho
de 1978. A tônica do movimento era desenvolver instrumentos de luta contra a opressão
policial, o desemprego e a marginalização da comunidade negra. Vale ressaltar que, o seu marco
inicial confrontou a violência policial e a discriminação racial no esporte, conforme o contexto
destacado a seguir:

O marco inicial de fundação foi uma manifestação pública ocorrida em São Paulo, um
ato de protesto contra a violência policial desferida contra negros, representada pela
tortura e morte do operário Robson Silveira da Luz, e contra a discriminação racial
em relação a quatro garotos negros impedidos de participar de um time de voleibol no
clube de regatas Tietê. Foi uma manifestação de 2.000 pessoas, em frente ao Teatro
Municipal. A partir desse episódio foram criados núcleos do MNU em vários estados.
O MNU, em 1978, passou a organizar-se em diversos bairros e centros urbanos,
realizando movimentos nas ruas para enfrentar a ditadura militar. (FERREIRA, 2004,
p. 87).

As manifestações foram atos de resistência, rebeldia e revolta do povo negro contra


a exclusão, a opressão, os silenciamentos, os apagamentos e as violências com suas vozes, seus
corpos e suas potencialidades. O enfrentamento se deu nas ruas, na ocupação dos espaços, no
grito coletivo contra violências e discriminações raciais aos corpos negros. Nas últimas décadas
do século XX, o nascimento do MNU centraliza-se, incialmente, no principal centro urbano
nacional que era São Paulo e, estrategicamente, formaram-se as seções do movimento em outras
cidades brasileiras.
Corroborando com Pereira (2019), as lutas do movimento negro tiveram início na
década de 1930 e se ampliaram na década de 1970, principalmente com o apoio de instituições
religiosas na estruturação do movimento. Além dos episódios citados que ocasionaram as
manifestações em São Paulo, acredito que o aumento de casos de racismo e os assassinatos de
negros nas principais capitais do Brasil fizeram surgir mobilizações para criar representações
do movimento e contribuir, entre outros aspectos, com a mobilização quilombola.
Além desse enfrentamento nacional ao racismo, o MNU se dedicava a volta às
origens, a afirmação da negritude e da africanidade dos afro-brasileiros. Conforme Pedon
(2013, p. 90),

Nesse percurso, construir uma expressão da identidade negra positiva baseada em motivações
163

ideológicas, religiosas, culturais, diversas dos seus militantes e gerou divergências e divisões
internas ao movimento socioespacial negro com a criação de outros grupos mobilizatórios já
destacados anteriormente.
O MNU, no Ceará surgiu, especificamente:

[...] no dia 18 (dezoito) de Junho do ano de 1978 como sendo: uma entidade
reinvindicativa constituída por pessoas sem distinção de sexo ou instrução e tendo
como finalidade principal o combate ao racismo, a luta constante contra a
discriminação e preconceito racial e toda a forma de opressão existente na sociedade
brasileira, e também a mobilização e a organização da comunidade negra na luta da
emancipação política, econômica, social e cultural. (JORNAL O POVO 1984, p. 23).

É caracterizado por possuir uma base popular, católica e centralizada em Fortaleza,


capital do Ceará, local em que seus membros dialogavam com o Sudeste do país, seja com as
pastorais católicas, seja com a militância negra universitária e artística na realização de ações
mobilizatórias.
A luta do MNU cearense se constituía, entre outros aspectos, no enfrentamento
contínuo às inverdades e aos estereótipos racistas e de exclusão social historicamente
construídos pelo Estado, pela Igreja Católica, pelos veículos de comunicação em massa e pelas
instituições educacionais e culturais, durante quatro séculos. As suas ações partiram da escala
local nos diversos bairros fortalezenses, ampliando-se para a escala estadual bem como em
diálogo com os territórios quilombolas.
José Hilário Ferreira Sobrinho, militante negro cearense, integrou a luta no bairro
da Piedade, em Fortaleza - Ceará. A sua ruptura com a igreja Católica conservadora o levou
para o Candomblé e, assim, ampliou as suas vivências negras no Maranhão. Além disso, as suas
articulações com intelectuais do movimento negro conhecidos nacionalmente possibilitaram
discussões sobre: raça e classe, população negra, mercado de trabalho, datas importantes como
o 20 (vinte) de novembro e o 13 (treze) de maio.
Esse intelectual negro contribuiu com uma das primeiras articulações do
movimento negro de abrangência na cidade de Fortaleza e no Estado do Ceará, ocorrida no 20
(vinte) de novembro de 1982, com a organização da Semana da Consciência Negra, trazendo
intelectuais engajados para contribuir com o debate no Ceará, como o artista e intelectual
Abdias do Nascimento e a antropóloga Lélia Gonzalez.
Sobre esse primeiro evento, Abdias do Nascimento, em entrevista ao jornal local,
silenciosos e perdoamos ou esquecemos o holocausto de
milhões sem conta africanos friamente assassinados, torturados, estuprados e raptados durante
164

Tal questionamento é uma das pautas de luta do movimento que combate


apagamentos e silenciamentos da sociedade, reforçando a importância histórica da participação
africana e afro-descendente na formação socioterritorial cearense.
Além disso, as mulheres assumem uma importância no movimento e na
organização de coletivos negros no Ceará. Tanto é que uma das convidadas para o debate com
estas foi a antropóloga e professora Lélia Gonzalez que, em sua conferência, ressaltou:
-econômico não mudar, tanto os negros, quanto as mulheres vão
continuar oprimidos, assim como vão continuar existindo as classes dominantes e a maioria

Percebo que, neste período, o discurso contra hegemônico do movimento adentrou


o espaço universitário e a Imprensa cearense, convocando, pincipalmente, a comunidade
universitária ao engajamento. Nas palavras da professora Lélia, o conflito de classes é o
resultado de um modelo econômico excludente que deve ser questionado e rompido. Ao mesmo
tempo, convoca as mulheres a exercerem papéis de participação e luta nessa construção social
transformadora da realidade desigual vigente.
Dois anos após a Semana da Consciência Negra, os membros do movimento negro
preparavam as comemorações do centenário abolicionista no Ceará. Percebi as duas versões
antagônicas em torno dessa data: uma representada pelos interesses das elites brancas e cristãs,
que ansiavam à manutenção de silenciamentos das trajetórias negras, e a outra era representada
pelas vozes negras do movimento.
No primeiro contexto, a celebração ocorreu em um Domingo, na data de 25 de
março de 1984, e fora marcada
jornalísticas, acadêmicas, culturais, estudantis, para assinalar a importância do feito cearense

O discurso da classe dominante e do Estado se materializava, ainda, na edição da


Revista do Instituto do Ceará em homenagem ao centenário da abolição, em 1984. Foram
divulgados 10
protagonismo e a cultura negra no centenário da falsa liberdade. As intencionalidades dos textos
reforçam os seguintes estereótipos: a fé católica liberta os oprimidos, o negro é o sujeito
relacionado tão-somente à escravização, e a abolição foi uma dádiva das elites embranquecidas
(SOUSA, 2006).
De acordo com as fontes destacadas, após um século da falsa liberdade cearense,
m comparação aos brancos,
165

(MARQUES, 2009, p. 43). O Estado realizava desfiles militares e inauguração de estátuas,


enquanto a imprensa, com seus artigos que remontam o século anterior e são assinados pela
intelectualidade do Instituto Histórico e geográfico do Ceará, não ressignificou dados, nem
reconstruiu histórias e trajetórias negras, veiculando nesse cenário festivo tão-somente uma
memória fabricada para reforçar estereótipos e racismos no Ceará.
No segundo contexto, uma voz negra ecoou nacionalmente, e chega ao Ceará o ebó
de suas palavras. Destaco a publicação da Assembleia Legislativa Federal, no ano de 1984, a
edição em homenagem ao centenário da abolição no Ceará intitulada: s Cem Anos de
Liberdade . A publicação reuniu os discursos de quatro Deputados Federais, são eles: Lúcio
Alcântara, Evandro Ayres de Moura, Paes de Andrade e Abdias do Nascimento.
Destes parlamentares, remeto-me ao discurso de Abdias do Nascimento, enquanto
um ebó que representa um tempo de luta pela reafirmação de direitos. É uma voz negra de
referência na luta pela igualdade racial e, além disso, um intelectual que tem vínculos políticos
e ideológicos com a mobilização negra brasileira e cearense.
Trata-se de um representante do povo, um negro eleito para o exercício federal da
representação política. Esse artista e escritor negro, que participou de evento mobilizatório no
Ceará no ano de 1982 (SOUSA, 2003), se tornou uma das vozes nacionais do MNU, assumiu
lutas antirracistas e o seu discurso ressoou 100 anos após a abolição no Ceará e no Brasil, com
as seguintes reflexões:

É em nome do meu partido, o PDT, que assomo a esta tribuna para assinalar o
centenário da libertação dos escravos da Província do Ceará, ocorrida a 25 de março
de 1884, portanto, quatro anos antes da tardia e inoperante Lei Áurea. O movimento
antiescravocrata teve seu ponto alto, naquela Província, precisamente a 8 de dezembro
de 1880, quando foi fundada a Sociedade Cearense Libertadora, constituída por
líderes de todas as classes sociais, com a participação de homens de negócios
progressistas, clero, estudantes, operários e intelectuais.[...] É claro que o povo
formou ao lado da Libertadora Cearense, cujos chefes eram João Cordeiro, os irmãos
José e Isaac do Amaral, João Teles Marrocos e o glorioso jangadeiro Francisco José
do Nascimento, cognominado "Dragão do Mar". Era um simples homem do povo,
mas ao mesmo tempo um negro sábio em amor à justiça, à liberdade e à dignidade
humana dos africanos escravizados. Francisco exercia função de Prático-Mor do porto
de Fortaleza. [...] Acontecimento único em nossa História, pois não houve decreto e
sim uma proclamação do Governo Sátiro Dias, numa praça pública, sob aplausos
delirantes da multidão. Foi na classe social mais humilde que surgiram dois titãs na
luta de vida e morte contra a escravatura, ambos jangadeiros: Francisco José do
Nascimento, na intimidade Chico da Matilde, como se chamava sua mãe, e José
Napoleão, o qual, voluntariamente, passou a liderança dos praieiros ao Dragão do
Mar. [...] Faltava, porém, um tribuno que incendiasse as massas. José do Patrocínio
desembarcou em Fortaleza a 30 de novembro de 1882 e logo passou a discursar em
praça pública ao lado de Nascimento. Com seu verbo de fogo, Patrocínio ajudou a
destruir os grilhões, os eitos, as gargalheiras e outros instrumentos de tortura
utilizados pelos comerciantes negreiros, para os quais o negro não era um ser humano,
166

mas uma besta de carga, um mero semovente. [...] No dia 1 de janeiro de 1883, caiu
o primeiro reduto escravagista, a cidade de Acarape, hoje Redenção. Foi o começo da
queda da Bastilha e o fim de uma era degradante. É oportuno lembrar que a primeira
lei mandando acabar com a escravatura foi apresentada pelo deputado cearense Silva
Guimarães na sessão de 02 de Agosto de 1859, sabotada pelo Barão de Cotegipe,
descendente de africanos e que comandava a bancada do Partido Conservador, cujo
gabinete governou de 1849 a 1852. [...] A Lei Áurea não foi uma doação imperial.
Pelo contrário. Foi, sim, uma lei imposta pela vontade do povo, com implicações
internacionais de interesses mercantis, e frustrada em seus justos propósitos pela elite
dominante. Alguns historiadores insistem em apontar o Imperador D. Pedro II e a
Princesa Isabel como defensores dos escravos. A história verdadeira é diferente. [...]
O Brasil era o único país das Américas que mantinha a escravatura. Era uma vergonha
internacional ainda maior quando o mundo havia assistido a derrota das tropas
francesas no Haiti e a libertação dos seus 500 mil cativos. Foi na verdade uma guerra
anticolonial dirigida pelo grande líder negro Toussaint Uouverture, no final do século
XVIII. O povo cearense jamais acreditou na propalada benemerência da família
imperial e, dia a dia, via crescer a massa popular nos comícios. Finalmente, surge a
manhã luminosa de 25 de março de 1884, quando o Governador Sátiro Dias anunciou

II não perdoou o Governador, demitindo-o sumariamente. O Governador saiu do


Palácio nos braços do povo. Como representante dos negros brasileiros na Câmara
dos Deputados, saúdo o povo do Ceará, na pessoa do jangadeiro negro Francisco José
do Nascimento, e, como descendente dos africanos escravizados neste País, participo
do júbilo dos cearenses pela data de 25 de março de 1884, quando Joaquim Nabuco
disse: "O Ceará é o começo de uma Pátria livre!" O povo afrobrasileiro espera,
confiante, que os cearenses dos nossos dias continuem sustentando aquela chama
libertária de 1884. [...] o Ceará prossegue trilhando o caminho da liberdade e da
dignidade para todos os homens e mulheres, iguais em sua origem essencial, porém
diferentes em suas vivências de história, etnia, cultura e religião. Termino registrando
na História desta Casa do Povo as manifestações ocorridas em todas as comunidades
negras do País pelo transcurso, a 25 de março último, do Dia Internacional de Luta
contra o Racismo, instituído pelas Nações Unidas em lembrança do massacre de 69
negros, em Sharpeville, na África do Sul, em 1960, quando lutavam pacificamente
contra o racismo institucionalizado do Apartheid (BRASIL, 1984, p. 26-29).

O discurso de Abdias do Nascimento, na Câmara Federal, despeja as contradições


do centenário de liberdade cearense para o Brasil. As suas palavras são uma oferenda ao reativar
as memórias e os esquecimentos, ao reconhecer alguns nomes e as negritudes, e ainda explicitar
alguns ejós do processo falseadamente libertário.
Ele inicia reconhecendo os abolicionistas da elite cearense e do Brasil. Em seguida,
cita nomes importantes, mas que foram silenciados nesse processo no Ceará. Foram citados os
nomes de Francisco José do Nascimento, conhecido por Chico da Matilde ou Dragão do Mar;
o José Napoleão, negro liberto que foi uma liderança cearense; Joaquim Nabuco, liderança no
Nordeste e José do Patrocínio, uma liderança nacional.
Segue historicizando as contradições que levaram à Data Magna, ou seja, o que
marca a conquista do povo negro cearense, mesmo diante dos pormenores históricos que são
problemáticos, ou seja, das quizilas e dos ejós do processo que foram camuflados, disfarçados
167

e suprimidos do conhecimento do povo. Abdias, em seu discurso, critica a liberdade


conservadora nascida no seio das disputas pelo poder e pelo mercado capitalista.
Apesar de não mencionar o movimento negro contemporâneo cearense, ele convoca
o povo a lutar pela permanência da liberdade e da dignidade para todos os homens e mulheres,
iguais em sua origem e diferentes em suas vivências de história, etnia, cultura e religião. O que
indica a necessidade de qualificar as demandas históricas a partir da luta coletiva.
Diante dessas ações mobilizatórias, é correto afirmar que, os caminhos do
movimento socioespacial negro no Ceará, foram ampliados no diálogo com a Universidade,
pautando debates raciais. O ano de 1984 simbolizou o centenário da falsa liberdade e a ocasião
que ocorreram os enfrentamentos do movimento negro a memória falsadamente construída,
provocando a sociedade a construir outras referências históricas.
A manutenção da memória coletiva no século XX e da celebração da falsa abolição
se tornaram, portanto, um dos principais embates do movimento socioespacial negro cearense.
Afinal, é da contradição do Estado junto às classes capitalistas, que surgem uma diversidade de
manifestações coletivas, algumas portadoras de um considerado nível de institucionalidade e
outras não, mas têm como objetivo afetar as relações de classe e o aparelho de Estado (PEDON,
2013).
Retomando o ebó das palavras de Abdias, ainda que não tenha mencionado
diretamente a luta das comunidades negras rurais que compõem os quilombos nem as lutas das
mulheres negras, estes grupos se inserem no movimento, ao longo da década de 1990 e dos
anos 2000. Ou seja, os silenciamentos e apagamentos dos quilombos e das mulheres foram, aos
poucos, enfrentados com pesquisas, narrativas, reconstrução de trajetórias negras quilombolas
e/ou femininas, formação de coletivos e associações, entre outros.
Em se tratando da continuidade do ebó das palavras, destaco a pesquisa de caráter
documental do militante José Hilário Ferreira Sobrinho, pela UFC, como um contínuo do ritual
que ressignifica a presença negra no Ceará. Esse autor destacou, a partir de suas fontes
documentais, o mercado da escravização africana e afro-brasileira na Província do Ceará, no
século XIX. Apresentou, entre outros aspectos, dados populacionais de povos africanos que
aqui viveram e compuseram a maioria da população cearense daquele século distribuído nas
vilas coloniais.
A sua pesquisa se transformou em livro (SOBRINHO, 2011) e revelou, sobretudo,
uma presença congo-angolana e moçambicana e de seus descendentes no cotidiano da Província
168

nos diversos municípios cearenses. A obra possibilita, ainda, pensar a formação e distribuição
de territórios quilombolas no Estado do Ceará.
No sentido da ampliação do movimento e das demandas, destaco outro ebó das
palavras, materializado na Dissertação de Mestrado da militante negra, Joelma Gentil do
Nascimento, que mobilizou outras mulheres negras em diversos bairros da cidade de Fortaleza
a exercerem seus papeis na luta feminista negra. A sua pesquisa revelou o protagonismo de
mulheres no movimento da década de 1980. Em suas palavras, ressaltou que
organizadas tiveram uma nova postura política diante dos novos contextos político-
(NASCIMENTO, 2012, p. 63). Assim, ocorreu o enfrentamento às relações de poder e ao
machismo dentro do próprio movimento negro cearense, o que indicou uma mudança estrutural
na dinâmica da luta do povo negro cearense. Para essa autora, o ativismo é o cotidiano coletivo,
pois bricação entre vida e militância, o individual torna-se coletivo no processo de
É notório
que essas pesquisas desenvolvidas pela militância evidenciam, também, uma parte de suas vidas
dedicadas à luta no MNU do Ceará, bem como reverberaram as conexões e abriram caminhos
para outros trabalhos.
O início do diálogo do movimento negro com o quilombo ocorre na pesquisa
coordenada pelo Geógrafo-militante45, Alecssandro José Prudêncio Ratts, conhecido por Alex
Ratts. Considero este o início do ebó comportamental, ou seja, uma oferenda que modifica e
redimensiona teórico-politicamente o pensamento por meio de seus resultados.
Esse pesquisador realizou investigações em algumas comunidades negras
quilombolas do Ceará. Essas foram as ações do Projeto Agrupamentos Negros (PAN),
realizadas nos anos de 1991 e 1992. Inicialmente, a concepção era que esses agrupamentos
constituíam comunidades e famílias que mantinham relações de parentesco e se reconheciam
enquanto grupo diferenciado, ocupando um determinado espaço (SOUSA, 2006).
A pesquisa ocorreu naqueles agrupamentos negros com os quais os militantes do
GRUCON mantinham relações de parentesco nos municípios de Aquiraz (Lagoa do Ramo,
Lagoa do Mato, Goiabeiras e Estrada Nova), de Uruburetama (Conceição dos Caetanos), de
Tururu (Água Preta) e em alguns bairros de Fortaleza, predominantemente negros (Jardim
Iracema, Antônio Bezerra, Olavo Oliveira, Quintino Cunha e Comunidade do Trilho próximo
ao Mucuripe). (SOUSA, 2013). Os resultados reuniram dados, entrevistas e mapeamentos

45
Esse pesquisador é formado em Geografia e, ao mesmo tempo, é um dos membros do movimento negro, de
modo que a sua pesquisa é um dos resultados de sua militância.
169

publicados na cartilha Comunidades Negras do Ceará pelo Instituto da Memória do Povo


Cearense (IMOPEC), no ano de 1998.46
Acredito que o olhar geográfico de Ratts, na condução do PAN, proporcionou a
primeira espacialização territorial quilombola, com o mapa das comunidades negras do Ceará.
O movimento negro, a comunidade científica, os agentes das políticas públicas passaram a
enxergar os territórios quilombolas na formação socioterritorial cearense com esses resultados,
compreendendo étnica e racial brasileira e cearense, está sendo
redesenhado , 2016, p. 08).
Os territórios negros urbanos e rurais possuem fronteiras simbólicas representativas
da cultura e da tradição africana e afro-brasileira. Esse ebó do conhecimento modificou,
portanto, concepções e formas de luta do povo negro na década de 1980 e se deslocou do
contexto urbano para o rural quando reforçou narrativas e pertencimentos do povo quilombola
nos anos de 1990. Portanto, as práticas culturais e de mobilização diversas conduziram a uma
articulação negra e quilombola contínua em prol de seu reconhecimento e valorização neste
século XXI.
Segundo Gomes (2015), os quilombos antigos eram verdadeiras microcomunidades
camponesas que emergiam de norte a sul do Brasil. Os descendentes dos povos africanos
escravizados ao longo dos séculos constituem a classe trabalhadora, que enfrenta a exclusão
social e o racismo diante do poder estatal e das classes dominantes, ou seja, a luta das
comunidades negras rurais, ontem e hoje sempre estiveram pautadas na questão da terra e
também do território. São, portanto, marcadas pelas relações de poder que as delineiam
(COSTA, 2013, p. 20).
No Ceará, a ampliação da luta quilombola foi incentivada, entre outros fatores,
pelas ações do PAN, na década de 1990. Sousa (2006) destaca que, as pesquisas empíricas dos
militantes negros sobre os agrupamentos revelaram que essas representam uma realidade
complexa, pois as origens de algumas comunidades quilombolas estão situadas no período pós-
abolição, assim como as origens de outras são do século XX.
As pesquisas do PAN revelaram que o vínculo com a Terra dos agrupamentos
pesquisados se originou, muitas vezes de doação, arrendamento ou compra por algum ancestral
da comunidade. E o primeiro mapeamento das comunidades negras do Ceará foi realizado pelo

46
O IMOPEC é uma instituição da sociedade civil, de direitos privados, sem fins lucrativos e reconhecida na Lei
n0 11.980/1992, enquanto instrumento de utilidade pública ao povo do Ceará.
170

PAN, nos anos de 1990, compondo, portanto, o ebó do conhecimento sobre o modo de vida do
povo quilombola nessas terras.
A mobilização quilombola se apresenta no século XX, dialogando com o MNU,
principalmente, nas décadas de 1970 e 1980. Antes do PAN, ou seja, até os anos de 1980, esse
movimento enxergava as comunidades negras quilombolas pelo olhar da história tradicional,
associando-as ao passado da escravização.
Essa perspectiva tradicional do quilombo mudou no Brasil a partir da Constituição
Federal de 1988 que, em seu Art. 216 e parágrafo 50, ressalta o patrimônio cultural brasileiro e
os bens de natureza material e imaterial:
detentores de Essa concepção legal
resguardou o quilombo enquanto patrimônio e herança às gerações de famílias negras que
ocuparam e ocupam seus territórios.
Diante dessa normativa e da realização das pesquisas nos anos de 1990, o
movimento negro reconheceu as comunidades quilombolas enquanto remanescentes de antigos
quilombos que vivenciam a sua territorialidade, portanto, questão quilombola é incorporada
como expressão da luta do povo negro e como a valorização da História e cultura afro-
2008, p. 45).
O processo de autodefinição e reconhecimento que constitui a primeira etapa para
a titulação de um território quilombola não tinha sido efetivada nos territórios até as pesquisas
do PAN. Os estudos articularam vozes dos movimentos negro e quilombola que se tornaram
referência para outros estudos sobre os remanescentes de quilombos, e contribuíram para a
inserção daquelas comunidades na Política Pública de Titulação das Terras Quilombolas, nos
anos 2000.
Nessa perspectiva, ocorreu um redimensionamento teórico-político do MNU, ao
enxergar as comunidades negras quilombolas do Ceará como uma oferenda que provocou
mudanças significativas, uma vez que a:

[...] luta pela posse da terra, compreendida agora, não apenas como lugar mas como
um direito ao espaço histórico (onde os antepassados concretizaram a sua existência),
simbólico (em torno do qual passaram a se perceber como sujeitos) e político (lugar
de articulação familiar e social onde estabeleceram novos embates). (SOUSA, 2013,
p. 142).

Esse redimensionamento contribuiu para o fortalecimento de narrativas e do


pertencimento negro no Ceará, além de instigar a articulação social e política dessas
comunidades pela reafirmação de seus direitos, tendo em vista que, ao longo do século XX, os
171

quilombos ficaram em parte invisíveis, e em parte estigmatizados, ao ponto de o Poder Público


não lhes enxergar nos censos populacionais e nos censos agrícolas. Essas populações negras,
mestiças, pescadoras, ribeirinhas, pastoris, extrativistas nas terras ficaram, portanto, excluídas
das Políticas Públicas de Estado.
Baseadas nesse documento, as comunidades negras rurais se constituem territórios
que intensificam nacionalmente a luta pela reafirmação de seus direitos a partir do trabalho de
instituições representativas com abrangência nacional, estadual e local que compõem o
movimento. Portanto, a partir do PAN, das mudanças na Constituição Federal e da criação da
Política Pública, o levante dos territórios quilombolas pressionou governos para o atendimento
de suas demandas.
O movimento negro cearense tem um caráter urbano e bairrista, pois a sua base
identitária advém, principalmente do ativismo em diversos bairros de Fortaleza. Essa base
territorial bairrista caracterizava-se pela presença negra e pelas condições socioeconômicas
semelhantes. Esses fatores promoveram o desenvolvimento de agendas e o encaminhamento de
demandas comuns.
Esse ativismo, de acordo com Pedon (2013), é iniciado pelas ações de associações
de moradores que reivindicam suas pautas, seguido de manifestações que agregam outros
bairros e grupos para pleitear pautas mais abrangentes de seu interesse para a cidade, no caso,
Fortaleza. Esses territórios rompem apagamentos e silenciamentos com a valorização da
memória e das heranças ancestrais, além da mobilização coletiva.
O movimento negro da década de 1980 e 1990 pode ser considerado, portanto, um
patrimônio, uma herança, que impetra em nós um ebó do conhecimento. O patrimônio e a
herança que nos envolve e agrega são legados da memória coletiva sobre a nossa ancestralidade
africana e afro-brasileira, bem como do lugar social conquistado pelo povo negro na sociedade
cearense quando ocupam os espaços dos terreiros, da Universidade, de partidos políticos, das
comunidades quilombolas, entre outros.
O levante negro desenvolveu mobilizações raciais e coletivas dentro e fora da
Igreja Csatólica que ressignificaram a importância das manifestações culturais negras, em
diversos bairros da cidade de Fortaleza, a partir do fortalecimento ao pertencimento negro.
Promoveram a busca por uma historicidade e consciência da negritude por meio de seminários,
críticas ao mercado de trabalho, levantamentos e mapeamentos de agrupamentos negros
cearenses.
172

Um exemplo disso foi o segundo evento de grande articulação política que ocorreu
nas comemorações do 13 de maio de 1992, e dos 10 anos de MNU, no Ceará. Nesse intuito
celebrativo, José Hilário Ferreira Sobrinho organizou junto com os demais militantes negros, o
Seminário Negrada Negada, cujo objetivo discutir a realidade do negro e justificava-se
aquela iniciativa pela persistência dos estereótipos preconceituosos presentes em nossa

(SOUSA, 2006, p. 153, grifos no original).


O combate aos discursos que ressaltavam uma escravidão branda, a ausência de
negros no Ceará, a democracia racial estiveram presentes nesse evento. As distorções da
realidade causadas por essas concepções/ideias tentam impedir o fortalecimento das identidades
do povo negro e são formas racistas de obter o controle social no Brasil e no Ceará
(NASCIMENTO, 2012). A democracia racial é considerada pelo movimento negro, uma falácia
por não existir harmonia nem igualdade entre brancos e pretos no Brasil, que deve ser
constantemente combatida em suas agendas de luta.
Esse percurso é um reflexo dos diversos enfrentamentos do MNU, no século XX.
Ferreira (2004) apontou como sendo as constantes discriminações raciais sofridas, a cor da pele
e as características fenotípicas as responsáveis pela introjeção de um julgamento de
inferioridade ao povo negro que luta pela transformação de sua condição social nos planos
socioeconômico, cultural e político.
Além disso, compreendo que as entidades, coletivos ou grupos que integram o
MNU cearense têm origens religiosas, políticas e culturais o que ocasiona uma diversidade nas
formas de mobilização e de reflexão sobre o lugar do negro na sociedade.
O movimento negro contribuiu para os processos de construção identitária negra e
quilombola, à medida que:

[...] se configura em um posicionamento político e que os repertórios culturais sejam


eles adquiridos, percebidos, reelaborados enquanto fenômeno familiar, no movimento
negro ou em outros lugares de convivência social. São valores que se constituem em
elementos essenciais na atribuição positiva da identidade negra. (NASCIMENTO,
2012, p. 36).

A prática política e a ressignificação do povo negro nos espaços caracterizam o


movimento negro como socioespacial, enquanto o posicionamento político do movimento
quilombola confronta formas de apropriação do território já historicamente estabelecidas, o que
caracteriza esse movimento enquanto socioterritorial. O MNU é a base do movimento
173

quilombola, na medida que produziu conhecimentos, pesquisas e incentivou o


autorreconhecimento quilombola.
Assim, autodefinir-se como remanescente de antigos quilombos é um ato de
resistência e de luta na busca pela titulação coletiva das suas terras que são garantidas por Lei
com base no fator identitário e do pertencimento das famílias que são
, 2018, p. 373).
De acordo com Ferreira (2004), a década de 1990 marca uma segunda fase do MNU
no Brasil com diversas pesquisas que denunciam o preconceito e a discriminação, além de negar
a democracia racial brasileira e valorizar as raízes africanas. Esse autor acrescenta que o
movimento, em todo o Brasil luta, principalmente, pelas ações afirmativas, compondo
programas que promovem ações compensatórias e possibilitem oportunidades iguais a grupos
historicamente discriminados de forma negativa.
Em síntese, compreendo essa reflexão e análise sobre o MNU cearense como sendo
panorâmica e pontual, tendo como referência o tempo em que eu nasci na década de 1980. Não
é objetivo da tese aprofundar a discussão sobre o movimento, mas, sobretudo, entender o
conjunto de grupos e articulações sociais e políticas realizadas pelo reconhecimento e
valorização das matrizes culturais africanas cearenses. Além disso, busquei o elo de ligação,
ora no contexto nacional, ora no Ceará, entre os movimentos negro e quilombola, destacando a
CONAQ e a CERQUICE enquanto entidades representativas dos povos quilombolas.

3.6.3 Entidades representativas do movimento socioterritorial quilombola

O capítulo atual da trajetória dos quilombos, portanto, centraliza-se no processo


contínuo, recente e lento da regularização fundiária das suas terras. Os quilombos constituíram-
se, ao longo dos séculos XX e XXI, em espaços interétnicos que confrontam as classes
dominantes e o poder estatal, opressores seculares das famílias quilombolas. O essencial ao
povo quilombola é conceber a integração comunitária em um território coletivo, sendo o direito
à terra a sua principal pauta de luta. Assim, foram se agregando ao território e à luta, pessoas
de origens raciais diversas desde o tempo da escravização colonial.
Do outro lado, os agentes hegemônicos insistem em usufruir de territórios
quilombolas seculares ocupados por várias gerações de famílias ou negam-lhes o direito de
existir e ter a propriedade das terras. O Estado, por sua vez, exerce a opressão ao movimento
174

quando, na verdade, deveria representar e garantir os direitos das minorias, em específico dos
povos quilombolas, através da efetivação de Políticas Públicas.
O poder estatal sustenta uma mediação morosa diante das pautas do movimento
quilombola e uma mediação eficiente frente aos interesses de empresas e proprietários de terras
que disputam espaço e terra com os quilombos em todo o Brasil. (PEREIRA, 2019).
As identidades individuais e coletivas, negras e quilombolas, situam-se no contexto
de uma pluralidade étnico-racial em contínuo reconhecimento, fortalecimento e construção
identitária em seus territórios. E o movimento de aquilombar-se compõe as estratégias e
mobilizações quilombolas, em suas múltiplas expressões, ao longo da história do país. São as
ações de contraponto à essas forças antagônicas que em cada período histórico se expressam, à
sua maneira. (SOUZA 2008).
Essa rebeldia e resistência ancestral coletiva pode ser considerada simbolicamente
uma oferenda que atravessa processos de opressão e desigualdades raciais, entendendo que:

Os remanescentes de quilombos são uma continuidade viva das lutas que os escravos
rebeldes detonaram durante o transcurso da escravidão. E os descendentes dos
quilombolas são agentes ativos na direção de uma solução democrática para a questão
agrária e da identidade quilombola no Brasil. (MOURA, 2001, p. 10).

A luta quilombola é uma das resistências negras aos processos de subalternização


enfrentados desde a escravização, passando pela abolição mentirosa, camufladora da história,
apagadora de memórias, de tradições e de trajetórias, que reproduziu as desigualdades raciais
na sociedade cearense e brasileira.
A principal premissa que conduz a geografização do quilombo em luta é de que o
território é espaço de vida e morte, de liberdade e de resistência e, carrega em si sua identidade,
que expressa sua territorialidade e um modo de vida para além das diferenças entre o rural e o
urbano (FERNANDES, 2005).
O quilombo é considerado, além de uma territorialidade, uma forma de organização
social e política constituindo-se parte integrante de um movimento que emerge nos anos de
1970, no contexto brasileiro muito ligado às lutas camponesas e se estende às comunidades
negras do Ceará, nos anos de 1990 e 2000, com a junção das classes oprimida e subalterna, ou
seja, da classe trabalhadora nas mobilizações (PEDON 2013; MANÇANO, 2005; ALMEIDA,
2011).
Aquilombar-se é articular-se nos quilombos, é caminhar em busca dos direitos.
Aquilombar-se é ação contínua, é exercer autonomia, é lutar pela existência física, cultural,
histórica e social das comunidades quilombolas. Consequentemente, surge uma multiplicidade
175

de formas de organização da população que busca expressar suas demandas, objetivando


transformar a sua realidade mediante as forças coletivas.
Neste processo, o Decreto no 4.887, de 20 de novembro de 2003, regulamentou o
procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das
terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos de que trata o Art. 68 do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias.
Nesse percurso, destaco o ano de 1996, no qual ocorreu um Encontro de Avaliação
do 1º Encontro Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas, realizado em Bom Jesus
da Lapa Bahia, que oficializou a criação da Coordenação Nacional de Articulação das
Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e que tem como princípio se constituir,
na sociedade brasileira, como um movimento social.47
A CONAQ foi uma das responsáveis pelo debate sobre os procedimentos que
compuseram a normativa do Artigo 68, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da
Constituição de 1988, que modificou o conceito de quilombo e indicou os caminhos para a
regularização fundiária desses territórios.
Enxergo, nesse cenário nacional, a imensa disputa judicial que ainda impede a
titulação da Terra de 1800 processos de regularização fundiária de territórios quilombolas no
Brasil (BRASIL, 2021). O descaso político e jurídico ocorre porqu
inalienável, coletiva, contradizendo, dessa forma, os interesses do agronegócio, do latifúndio e
-se de um retrocesso, um atraso
histórico e uma injustiça racial secular a ser reparada com investimentos públicos para
desapropriação do que pertence legalmente às famílias quilombolas.
Das principais pautas defendidas pela CONAQ, destaco: a garantia de uso coletivo
do território; a implantação de projetos de desenvolvimento sustentável; a implementação de
políticas públicas; uma educação de qualidade e coerente com o modo de viver nos quilombos;
o protagonismo e autonomia das mulheres quilombolas; a permanência do (a) jovem no
quilombo e, acima de tudo, o uso comum do Território, dos recursos naturais em harmonia com
o meio ambiente.48
Até os anos 2000, essa entidade quilombola, em âmbito nacional, era composta por
representantes do movimento quilombola e, também, do movimento negro urbano. Vinte e dois
anos depois, essa coordenação nacional dialoga com mais de 3.500 comunidades em todas as

47
Página na Internet da CONAQ. Disponível em: http://conaq.org.br/. Acesso em 20 jun. 2021.
Canal do Youtube da CONAQ. Disponível em: https://www.youtube.com/c/Conaquilombos.
48
História da CONAQ. Disponível em http://conaq.org.br/nossa-historia/. Acesso em 20 jun. 2021.
176

regiões do país. Portanto, o fortalecimento das mobilizações quilombolas em escala nacional


ocorre, principalmente, no início do século XXI, com a ampliação do diálogo e a construção de
uma rede de relações entre os territórios quilombolas.

compreendido como uma relação política. É uma relação entre grupos sociais mediadas pelo
espaço territorializado. À medida que o movimento ocupa um espaço, ele constitui a sua
Portanto, a CONAQ tem ampliado essa relação com os grupos
estaduais na condução da agenda de luta do movimento socioterritorial brasileiro.
A exemplo disso, destaco o papel dessa coordenação nacional como sendo
estratégico em relação à garantia do direito à saúde e à vacinação do povo quilombola para
evitar mortes por SARS-COV-2, nos anos de 2020 e 2021, conforme afirmou a liderança
nacional:

No início da pandemia nos perdemos os arquivos orais, que são as nossas histórias e
as nossas memórias e perdemos de uma forma que sequer nos identifica. Esse Estado
é tão racista e excludente que não nos enxerga como agentes de uma política pública.
Essa pandemia mata mais as pessoas que viveram sem ter acesso as Políticas Públicas
que são as pessoas pretas. Nós dos quilombos temos feito uma política pública que é
saber quantos de nós estão contaminados. São mais de 5.300 pessoas identificadas
pela CONAQ precisamente, são 5.302 casos confirmados e 252 que perderam suas
vidas. 150 casos estão em monitoramento. Este estudo foi feito com parcerias. Deixei
de pensar o quilombo que são distantes pra justificar a ausência e a falta de acesso as
Políticas Públicas, é sim por causa do quadro racista que são desassistidos. Esse acesso
que é dito que nós temos é muito precário. Assim temos que lidar com a morte
anunciada que é esse projeto de governo. Nós da CONAQ, temos feito um conjunto
de ações, de sistema de monitoramento de casos, campanhas, materiais e parcerias
para o enfrentamento a pandemia. Querem nos convencer que essa doença é
democrática, mas o racismo não é democrático. No racismo não tem isolamento
social, não tem férias, nem quarentena, é implacável todos os dias. Exigimos a
inclusão da população quilombola nos boletins da saúde e na prioridade das vacinas.
A luta quilombola é uma luta contí (COMUNIDADES, 2021).49

Além da articulação política, construiu uma rede de apoio aos territórios


quilombolas durante a pandemia do SARS-COV_2 no Brasil, diante da omissão de um Estado
e governo excludente, racista e que não inseriu os povos quilombolas como prioridade nas
campanhas de vacinação da doença.
Essas ações foram fundamentais à busca pelo direito a saúde e na prevenção da vida
no quilombo, bem como à garantia da prioridade na vacinação do povo quilombola contra o
SARS-COV-2. Os representantes dos territórios quilombolas dialogaram no sentido do

49
Comunidades quilombolas, pa Youtube Pensar
Africanamente. Disponível em: https://youtu.be/k0iE_cHSTHc Acesso em: 13 abr. 2021.
177

acompanhamento da saúde do povo quilombola diante de uma doença letal no mundo e no


Brasil.
Alguns enfrentamentos da CONAQ merecem ser destacados, sendo o primeiro
deles, a cobrança junto ao Poder Público que priorizassem as vacinas para os povos tradicionais,
incluindo os quilombolas. O segundo enfrentamento da CONAQ foi a responsabilização das
Secretarias Estaduais de Saúde no registro e monitoramento dos casos da doença nas
comunidades quilombolas. Tendo em vista que, historicamente, ocorre a estigmatização dos
quilombos que decorre, segundo Pereira (2019), do movimento realizado por instituições
governamentais e as classes dominantes, na propagação de imagens das populações
aquilombadas que serviram de base para a sua exclusão das Políticas Públicas e a ausência de
dados sobre seus quantitativos populacionais.
O terceiro enfrentamento relacionou-se às condições de infraestrutura da
coordenação para que fossem enviadas aos quilombos das diversas localidades do país, cestas
básicas, máscaras, álcool em gel, entre outros subsídios; além da mobilização das
representações estaduais e locais para conscientizar a população sobre o uso dessas precauções
contra a doença, além do distanciamento e do isolamento social nos territórios.
É importante destacar que o monitoramento contínuo dos óbitos quilombolas,
realizado pela CONAQ, apontou que os estados com mais óbitos foram: Pará (27%); Rio de
Janeiro (22%); Amapá (15%); Maranhão (8%); Pernambuco (6%); Goiás (6%) e outros (20%).
tes correspondem a quilombolas
(ARRUTI, 2021, p. 01).
Diante do cenário caótico da pandemia, da invisibilidade dos dados sobre a
população quilombola e da ausência de políticas adequadas ao atendimento dessas
comunidades, a CONAQ se mobilizou pela criação de uma base cartorial dos territórios
quilombolas, isto é: um conjunto de informações sobre as localidades a serem inseridas no
Censo Demográfico de 2022 pelo IBGE. Foi estabelecida a categoria de localidades
quilombolas para o mapeamento, desconsiderando as diferentes denominações como territórios
quilombolas, agrupamentos negros, entre outros. Diante dessas bases, a inserção do
levantamento do grupo populacional quilombola no próximo Censo Demográfico é
considerada, portanto, uma conquista do movimento socioterritorial quilombola.
Nas palavras da representante da CONAQ no Ceará, é preciso entender que:

Temos uma problemática muito grande no Brasil de aceitação. Quando comecei a


estudar as três gerações que nos miscigenou, não tem como criar outras raças, assim
uns são mais claros outros são mais escuros. Tem quilombola louro de olhos azuis que
178

puxou mais o pai que era branco, e no pulsar deles se autodefine como quilombola.
Aqui temos muita miscigenação. Aqui somente dois ou três pessoas são bem negras.
Mesmo assim, não negamos a nossa identidade, não negamos pois somos
descendentes dos africanos trazidos para cá. (O QUILOMBO, 2021)50.

A liderança quilombola cearense ressalta a opressão identitária exercida pela


sociedade que não aceita os significados da coletividade quilombola multirracial. Esses
aspectos dificultam e, ao mesmo tempo, fortalecem alguns territórios no sentido de estabelecer
suas expressões identitárias individuais e coletivas, bem como durante a mobilização coletiva
contra os setores agrários hegemônicos e demais agentes sociais opressores.
O que enxergo nos quilombos cearenses é a presença de pessoas negras e não-
negras em posições de liderança que conduzem processos mobilizatórios junto ao povo
quilombola nas associações de moradores e como membros da comissão estadual na luta pelo
direito ao território e no combate ao racismo sofrido e praticado pela sociedade e pelas
instituições governamentais.
Esse cenário indica que a luta é coletiva mediante uma agenda a ser cumprida pelas
instâncias representativas do povo quilombola junto aos governos e instituições. É ainda uma
-se mutuamente em um

Complementando a fala anterior, o coordenador da Comissão Estadual dos


Quilombolas Rurais do Ceará ( Nós sofremos muita pressão de todos os
lados, foi muito difícil porque existiu e existe uma negação pesada e forte de que no Ceará não
tinha negro nem quilombola, e que a gente tava era inventando história e comunidade
quilombola (TERRITORIALIDADES, 2020).51
A partir das pesquisas do PAN, do diálogo entre territórios quilombolas e o
movimento negro e, posteriormente, com as mudanças na legislação nacional, os caminhos
foram abertos para o enfrentamento ao apagamento negro e quilombola no Ceará. Desse modo,
os territórios demonstram o seu pertencimento, se organizam juridicamente e percorrem as
etapas exigidas para a

50
Trecho da palestra de Aurila Maria de Sousa O Quilombo de Nazaré: História e atuação em Itapipoca
que integrou a Semana de Memória, Cultura e Ciência no Museu de Pré-História João Cativo (MUMPHI) do
município de Itapipoca. Disponível em: https://youtu.be/Cbfb8YCSP4E Acesso em 23 de mar. 2022.
51
Territorialidades Quilombolas no Ceará e em Crateús - debate
sobre as comunidades quilombolas que compõem o território cearense, suas lutas e resistências cotidianas ,
transmitida pelo canal do Youtube do Instituto Federal de Educação Tecnológica (IFCE), Campus de Crateús.
Disponível em: https://youtu.be/a6RqAakv9MI Acesso em: 20 abr. 2022.
179

territorialidade expressa uma militância, um ativismo permeado por processo de identificação


e de reconhec
O levante do quilombo cearense é ampliado somente no final do século XX, quando
se iniciam os processos de autodefinição e organização política das comunidades, tornando a
luta coletiva em um movimento socioterritorial. Segundo Pedon (2013, p. 205), em suas

fundamento de sua identidade. [...] No que se refere aos movimentos socioterritoriais rurais,
têm-se a luta pela terra como forma mais ampla de manutenção ou melhoramento dessas
condições sa é a principal demanda do movimento na garantia da posse das terras, o que
demarca um território, uma territorialidade.
O processo de autoreconhecimento e de articulação dos quilombos, em âmbito
estadual é, portanto, muito recente, tendo em vista que os 04 (quatro) territórios quilombolas
realizaram a autodefinição somente nos anos 2000 e estão localizados nos municípios de:
Tururu (Conceição dos Caetanos e Água Preta no ano de 2004), Porteiras (Souza no ano de
2005) e Iracema (Bastiões em 2012). Vale ressaltar que 03 (três) delas participaram do PAN,
nos anos de 1990. Portanto, já se passaram 19 anos de espera dos territórios de Tururu, por
exemplo, pela obtenção da sua titularidade.
Além daqueles outros territórios se mobilizaram e se articularam em diversos
municípios cearenses, são eles: Muchuré em Quixeramobim; Barra dos Ventos, Sítio dos Pretos
e Antonica que estão em Tauá; Pitombeira, que se localiza em Poranga; Fazenda Mulungu e
Rio do Juca, localizados em Parambu; Barriguda, em Novo Oriente; e no município de Tamboril
emergiu a Serra dos Matos, entre outros (SOUSA, 2006).
Segundo Raffestin (1993, p.

quilombola são, portanto, uma forma de reafirmar o direito à sua terra. No entanto, no Ceará,
das 87 comunidades existentes, cerca de 50 são reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares.
Porém, nenhuma delas tem o título oficial de propriedade, o que indica o enfrentamento por
esses povos da morosidade jurídica, do racismo institucional e da omissão política no Ceará
(NASCIMENTO, 2018).
Na contramão do marasmo judicial e como forma de pressionar os governos para a
resolução dessas injustiças, as articulações política e dialógica do movimento no/do quilombo
são recentes e caminham para um crescimento significativo, conforme apontou Almeida (2011,
p. 146):
180

Tem sido nos últimos 15 anos que os quilombolas tem objetivado sua ação em
movimento social, consolidando o advento de sua própria identidade como sujeito de
direito. Em verdade, tornaram-se menos vulneráveis e mais organizados e encontram-
se em ascensão político ou num processo de fortalecimento de sua existência coletiva,
com mobilizações apoiadas em laços de coesão e solidariedade.

O recorte de tempo a que o autor se refere corresponde ao período de 1990 até o


ano de 2005, em que o Brasil e o Ceará passaram a enxergar as comunidades remanescentes de
quilombos se articulando como um movimento socioterritorial em âmbito local, estadual e
nacional. Nesse percurso, os caminhos percorridos teceram relações com outros movimentos
como o MNU, que reforçou a luta quilombola no Ceará.
Desse modo, o movimento socioterritorial quilombola é o resultado da
autodefinição coletiva de um povo em um dado território. A sua ação é realizada a partir do
diálogo entre a instância local, como as associações de moradores nos quilombos, a instância
estadual que é a CEQUIRCE e nacional que é a CONAQ. Isso denota a articulação das ações
do movimento em diferentes escalas de enfrentamento. Cada entidade representativa do
movimento reúne as intencionalidades da luta junto ao Poder Público municipal, Estadual e
Federal, no atendimento de suas demandas.
O diálogo com a CONAQ, no Ceará, é realizado com a instância representativa
estadual que é a CEQUIRCE, criada no ano de 2005 e oficializada em 2006. Essa Comissão
estadual organiza as demandas coletivas das comunidades quilombolas rurais. Sobre a trajetória
da Comissão, a liderança quilombola estadual do movimento destacou:

Em 2005, começamos a organizar o movimento quilombola aqui no Estado do Ceará.


Até então, existia era algumas comunidades que estavam se auto identificando como
remanescente de Quilombo, mas não existia uma organização de representatividade
deste povo. Iniciamos com 10 comunidades onde criamos a CEQUIRCE. Em 2008,
nós realizamos o primeiro mapeamento sobre os quilombos para saber onde era que
tinha comunidades de quilombos [...] Começamos a fazer um trabalho em todo o
Estado do Ceará para visitar todos os municípios onde tínhamos notícia de que poderia
existir comunidades quilombolas. [...] E nas nossas visitas identificamos na época 86
comunidades que se autoidentificavam como Remanescentes de Quilombo. Fizemos
o mapeamento dessas 86 comunidades. Começamos a fazer a organização
institucional dessas comunidades com a criação das associações, o fortalecimento das
entidades que já existiam, começamos também a fazer o trabalho de certificação
dessas comunidades na Fundação Cultural Palmares (FCP), porque já existia esses
grupos mas a maioria não era certificada pela FCP. Fazia o trabalho de orientação,
organização e encaminhamento da documentação para a FCP. Esse foi o processo que
desencadeou e hoje ocorre no Ceará. (TERRITORIALIDADES, 2020)52.

52
Trecho da palestra Territorialidades Quilombolas no Ceará e em Crateús debate sobre as comunidades
quilombolas que compõem o território cearense, suas lutas e resistências cotidianas , com o coordenador da
CEQUIRCE Renato Ferreira dos Santos, transmitida pelo canal do Youtube do Instituto Federal de Educação
Tecnológica (IFCE), Campus de Crateús. Disponível em: https://youtu.be/a6RqAakv9MI Acesso em: 20 abr.
2022.
181

Esse trabalho de articulação social e política junto aos povos quilombolas foi
processual, à medida que as associações de moradores das diversas comunidades foram sendo
criadas e os seus representantes foram sendo escolhidos e indicados para compor a respectiva
Comissão. O mapeamento relatado pela liderança não obteve o apoio do Poder Público e foi
elaborado a partir de duas ações: a visita de campo e a autoidentificação enquanto
remanescentes de antigos quilombos.
Conforme a narrativa, a comissão contribui para tornar os territórios aptos a serem
reconhecidos e certificados pela FCP, bem como de acompanhar as demais etapas a serem
percorridas na busca da titulação das terras quilombola.
Segundo Nascimento (2018 p. 123), a CEQUIRCE exerce o papel estadual de

demarcação e titulação das terras e territórios de maioria negra/quilombola. Nesse percurso,


Souza (2008) destacou a fragilidade da efetivação do direito à terra devido aos processos árduos
e lentos de titulação de terras quilombolas. A principal consequência disso é que, em pleno ano
de 2022, ainda não se tem nenhum território quilombola devidamente titulada no Ceará.
A entidade estadual é formada por 23 (vinte e três) representações em cargos
titulares e suplência e um coordenador, que residem em uma das 87 comunidades quilombolas.
As atividades da entidade ocorreram de forma virtual, durante a pandemia da SARS_COV_2,
nos anos de 2020 e 2021. De acordo com um dos seus membros, a demanda mais urgente nesse
período foi garantir a distribuição de máscaras, cestas básicas e vacinas para as comunidades.53
A relação e o diálogo entre essas entidades representativas são dados pelo
estabelecimento de sua agenda. Conforme Pedon (2013, p. 199),
os movimentos socioterritoriais se constituem de acordo com sua capacidade de articulação e
de seu Desse modo, quanto mais a CONAQ e a CEQUIRCE dialogarem
com as comunidades e as instituições estatais, maiores serão os avanços e as conquistas
celebradas pelo movimento socioterritorial quilombola.
Exemplo disso pode ser observado na articulação da luta que é realizada a partir das
instâncias representativas que dialogam com as instituições nacionais e estaduais e encaminham
as demandas de regularização fundiária. Cada uma dessas instâncias encaminha para o que
Almeida (2011) denomina de direitos territoriais, os quais englobam as lutas econômicas e
identitárias destes povos.

53
Entrevista realizada em 23 de junho de 2021, na comunidade da Lagoa das Pedras, Tamboril, Ceará.
182

Vale destacar que essas instâncias representativas quilombolas têm ampliado,


sobretudo, a participação quilombola e a conquista de Políticas Públicas de Educação, Saúde,
Assistência Social, Reforma Agrária, Emprego e Renda, entre outras.
Segundo Pedon (2013), as conquistas ocorrem quando têm suas reinvindicações
incorporadas às agendas dos governantes ou são absorvidos pelo sistema institucional, com a
neutralização de suas mobilizações. A inserção do artigo 68, no Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias de 1988 que estabeleceu que aos remanescentes das
comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade
definitiva, devendo o Estado emitir lhe os títulos respectivos . Constituiu-se, assim, a primeira
conquista de âmbito nacional do movimento que contou com a articulação da CONAQ, do
MNU e das demais organizações quilombolas estaduais.
O Decreto no 4.887 /2003 e os mecanismos jurídicos estabelecidos em Brasil (2011)
e Brasil (2019) são conquistas nacionais pois reconhecem, a importância da terra para os povos
quilombolas brasileiros e norteiam a legalidade e a necessidade da regularização fundiária de
seus territórios, que sem dúvida, constitui a principal luta do movimento socioterritorial
quilombola brasileiro.
São conquistas de caráter nacional com a participação da CONAQ junto aos
territórios quilombolas de diferentes estados brasileiros que puderam buscar justiça e pleitear a
titulação de suas terras.
Em síntese, as seis fases do processo de regularização fundiária são: autodefinição,
elaboração do RTDI, publicação do RTDI, portaria de reconhecimento, decreto de
desapropriação e titulação (AGUIAR; SANTOS; ALENCAR, 2020). As etapas de
autodefinição, certificação e reconhecimento são responsabilidades da FCP. Aqueles territórios,
já certificados, solicitam ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) a
delimitação e demarcação das terras que já sinalizam uma segunda etapa do processo.
O INCRA é responsável pela delimitação, demarcação e titulação das terras, ou
seja, pela regularização fundiária mediante à elaboração do Relatório Técnico de Identificação
e Delimitação (RTDI) de autoria dos antropólogos do órgão que visitam in loco e realizam
pesquisas etnográficas no território quilombola. Essas pesquisas são, posteriormente,
publicadas em portarias nos Diários Oficiais da União e do Estado.
As etapas finais do processo são a desocupação das terras, por não quilombolas, e
a concessão de um título coletivo, inalienável, imprescritível e impenhorável em nome da
183

associação de moradores. No entanto, são necessários investimentos públicos para indenizar


proprietários de terras inseridos na área dos territórios delimitados (BRASIL, 2020). 54
Nesse sentido, a CEQUIRCE destaca alguns percalços aos territórios que já
cumpriram as etapas do processo de regularização fundiária:

Não tem nenhum território regularizado no Ceará. O que existe são processos de
regularização fundiária dos territórios no INCRA, desses 02 estão mais avançados que
é o caso de Encantados do Bom Jardim em Tamboril e do Sítio Arruda no Araripe
mas ainda não tem título definido. Cerca de oito 08 processos estão com decreto e
outros 12 que estão com portaria e outros ainda em fase inicial. Algumas comunidades
desistiram do processo de titulação. É um processo lento aqui no meu território desde
2008 e estamos em 2020. No território de Queimadas faz 20 anos essa espera. As
pessoas que se dizem donas das terras realizam muitas ameaças e tentativas de compra
das pessoas que ficam pressionadas com as perseguições e diante da morosidade que
ocorre nos processo de regularização fundiária dos territórios quilombolas.
(TERRITORIALIDADES, 2020).55

Embora essas comunidades tenham iniciado as etapas do processo da regularização


da terra, cerca de 22 processos, conforme o relato, encontram-se adiantados acompanhados pela
CEQUIRCE e se deparam com a burocratização, a morosidade além dos conflitos agrários
vivenciados, gerando uma espera de mais de duas décadas, conforme relatado. Nesse contexto,
um número significativo de territórios quilombolas do Ceará ainda se encontra nas fases iniciais
do processo.
Não se tem, portanto, a sinalização nem do Governo Federal nem Estadual de que
os quilombos receberão a titulação de suas terras no Ceará, neste ano de 2022. Trata-se da busca
por direitos de forma permanente e junto
recurso básico essencial, isto é o território, através da titulação definitiva das terras, que garante

A terra, componente material de um território, deixou de ter somente um valor de


uso e passou a ter um valor de troca, dando um novo dinamismo ao mercado de terras.
(PEDON 2013, p. 171). Acredito que, por essa razão, os processos de titulação se arrastam com
a justificativa da ausência de orçamento para fazê-lo.

54
Menos de 7 das áreas quilombolas no Brasil foram tituladas. Disponível em:
https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-05/menos-de-7-das-areas-quilombolas-no-
brasil-foram-tituladas. Acesso em: 29 mar. 2020.
55
Trecho da palestra Territorialidades Quilombolas no Ceará e em Crateús: debate sobre as comunidades
quilombolas que compõem o território cearense, suas lutas e resistências cotidianas , com o cororodenador da
CEQUIRCE Renato Ferreira dos Santos, transmitida pelo canal do Youtube do Instituto Federal de Educação
Tecnológica (IFCE), Campus de Crateús. Disponível em: https://youtu.be/a6RqAakv9MI Acesso em 20 abr.
2022.
184

A luta por reconhecimento é contínua e denota a garantia de diretos e a salvaguarda


do patrimônio cultural quilombola. Conforme Nascimento (2018, p.15),
espaços não significa por si só a garantia de seus direitos e a valorização enquanto patrimônios
culturais. [...] É fundamental que o Estado colabore com a valorização da cultura preservada
por estes grupos NASCIMENTO, 2018, p. 15).
Como uma forma de pressionar os órgãos de Estado, destaco uma ação direta do
movimento socioterritorial quilombola representado pela CEQUIRCE em parceria com a
CONAQ que resultou na elaboração e publicação do mapeamento das comunidades
quilombolas cearenses, financiado com recursos públicos estaduais.
Esse levantamento foi executado com o financiamento e a orientação técnica da
Secretaria de Desenvolvimento Agrário (SDA), vinculada ao Governo do Estado do Ceará. Esse
documento tem
comunidade, suas potencialidades e suas necessidades, proporcionando aos envolvidos diretos
e indiretos da mesma o despertar mais ativo para seu espaço de interação e vivência quanto ao
9, p. 30). O mapeamento publicado em 2019
obteve ampla divulgação e resultou da participação de lideranças dos diversos territórios
quilombolas.
Compreendo que esse mapeamento, além de ser uma conquista política do
movimento socioterritorial quilombola cearense, é um processo educativo que envolve a coleta
de informações básicas que dão suporte aos processos de: medir, traçar e representar conceitos
e conexões no espaço e no tempo. Foram identificadas e representadas as localidades
quilombolas conforme as escutas e as percepções da equipe de mapeadores/pesquisadores
quilombolas.
O grupo de trabalho, ou seja, os pesquisadores que realizaram as visitas de campo
foram escolhidos com base no seguinte critério: bola, o
que permitiu que as pessoas das próprias comunidades se vissem como protagonistas de suas
identificações, de assimilações da realidade, no qual se encontram suas comunidades e suas

Sendo assim, o documento apresenta os seus 24 (vinte e quatro) mapeadores e


autores quilombolas. Este grupo recebeu uma formação técnica realizada pela SDA para o
exercício de mapear, estabelecer ou indicar seus marcos e limites.
A CERQUICE acrescenta que esse trabalho tornou o povo quilombola protagonista
de si mesmo no diálogo estabelecido entre as localidades. Diante da metodologia de trabalho
185

adotada, os pesquisadores quilombolas se deslocaram para outros territórios com o intuito de


conhecer e mapear outras realidades. Portanto, o mapeamento das comunidades quilombolas
do Ceará

30).
Nos trabalhos de campo, esses pesquisadores quilombolas realizaram reuniões,
aplicaram questionários, coletaram coordenadas geográficas e contribuíram para a elaboração
de relatórios finais de suas áreas de pesquisa. Em relação ao questionário de entrevista, as
questões versaram sobre as condições sanitárias, de abastecimento de água, atividades
econômicas e de renda em cada comunidade.
Em diálogo com 02 (dois) pesquisadores que participaram desse processo, ressaltei
algumas percepções. De acordo com o primeiro entrevistado:

No mapeamento eu tava trabalhando em outro município pros lados dos Inhamuns.


Eu fui pesquisar em outro território quilombola. Acho que teve muitos avanços. O que
achei incoerente foi o questionário com questões fora de contexto que quando tiver
outro levantamentos elas tem que ser atualizadas. As outras comunidades não sabiam
responder tantos detalhes, e a gente como mapeador tentava ajudar a responder com
base na formação que tivemos antes de ir. Outra coisa foi o tempo que era pouco para
fazer cada comunidade, as vezes se tinha um dia somente, por exemplo. Reunia-se a
comunidade, fazia o questionário e eles escolhiam as 10 famílias para a gente visitar
as casas e em seguida fazia os relatórios. Se tornou cansativo e desafiador. Os
deslocamentos eram cansativos e usamos o GPS para chegar nas comunidades que
não conhecia. As nossas equipes foram bem avaliadas pela SDA, fizemos rápido e de
forma coerente. Nós conseguimos cumprir. A gente utilizou GPS para marcar a
latitude e a longitude ao chegar na comunidade, tirávamos fotos das famílias e de cada
mapeador. (Francisco Anacélio Rodrigues, 33 anos, negro, Lagoa das Pedras, Ceará,
2021).56

O pesquisador quilombola destacou o fator tempo que era reduzido para a realização
do trabalho de campo. Desse modo, adotou algumas estratégias para otimizar a coleta das
informações nos quilombos mais distantes e de sua responsabilidade.
As noções geográficas de localização e navegação, utilizando o sistema de Global
Positioning System (GPS), tanto para traçar rotas, quanto para a coleta dos dados
geocartográficos e nos registros fotográficos de cada localidade, foi o que possibilitou otimizar
e gerar elogios pela equipe técnica da SDA.
Trata-se, portanto, de um mapeamento circunscrito pelo povo quilombola, em que
ocorreram diálogos entre diversas comunidades, conforme apontou o segundo entrevistado:

56
Entrevista realizada em 23 de junho de 2021 em Tamboril, Ceará.
186

Trabalhei com cinco municípios visitando mais de 20 (vinte) comunidades. A


realidade da minha comunidade é diferente das outras, tem canto mais frio outros mais
quentes. Peguemos comunidades certificadas e algumas que não são certificadas e
vimos como esse processo é longo. Outra coisa é a agricultura, tem uma que trabalham
só no arado, tem outras que ainda brocam, outros já fazem a agroflorestal que é uma
das coisas que temos tentado na minha comunidade para evitar tacar fogo temos
alguns roçados. Somos acompanhados pela Embrapa e teve um projeto para estudar o
solo. Foi muito bom fazer esse trabalho do mapeamento e conhecer pessoas novas. As
comunidades foram muito acolhedoras com a gente Eu e meu parceiro que trabalhamo
lá. Nós cheguemo de mota mermo, se perdemo em vareda e passava o dia todo
andando. Ainda hoje as comunidade que nos trabaiemo fala com agente, sempre
chama nós para uma reunião ou para tirar alguma dúvida. Arrumemo aquela amizade
e ajudamo ele no que precisa. O resultado foi bom, é uma coisa que devia ter todos os
anos. Cada vez mais a gente vai almejando as coisas. As comunidades botaram mesmo
o que eles tavam sentindo na hora que estava na reunião. Por donde nos passemo eles
ficaram à vontade e falavam mesmo. (João Paulo Sousa Vieira, 40 anos, negro,
Barriguda, Ceará, 2021).57

A análise desse pesquisador distingue condições climáticas das localidades e os


estágios jurídicos dos territórios quanto à titularidade das suas terras em comparação ao seu
território, ainda não reconhecido. Além disso, menciona as diversas práticas agrícolas em
comparação com a sua comunidade que é acompanhada por um projeto de sustentabilidade dos
solos. Nesse sentido, distingue as formas de trabalho com a Terra nas práticas agrícolas em
outros territórios, comparando-os a sua percepção de manejo adequado dos solos.
Por fim, destacou a rotina cansativa durante a condução de visitas e reuniões nas
comunidades mapeadas. Ao mesmo tempo, ressaltou a sua escuta atenta a todas as demandas e
a importância dessa articulação, bem como o diálogo permanente dele com outros territórios
para além do mapeamento. Por outro lado, esse pesquisador não apontou observações de ordem
técnica a esse trabalho nem ao documento publicado.
Posteriormente, a partir as informações coletadas nesse questionário, foram
elaborados 06 (seis) relatórios regionais, contendo registros fotográficos, dados, gráficos,
tabelas e a lista das comunidades com a respectiva descrição de seus aspectos ambientais e
socioeconômicos.
A categoria adotada no mapeamento é a de comunidades quilombolas, tendo em
vista que são unidades censitárias pré-estabelecidas pelo IBGE, nos levantamentos
populacionais e pode ser adotada tanto no campo jurídico quanto no campo antropológico.
Além disso, de acordo com Marques (2011, p. 11), ess
ressemantizado a partir de um processo de revisão e reinterpretação da história de resistência
cultural, política e racial de grupos afro-brasileiros em articulação com sua contemporaneidade
e suas especif

57
Entrevista realizada em 13 de setembro de 2021 em Tamboril, Ceará.
187

Outro aspecto é que mapear as comunidades quilombolas possibilitou identificar a


presença desses povos no território cearense. Alguns, circunscritos e delimitados pelo INCRA.
Outros, ainda buscam o reconhecimento e a sua demarcação.
A síntese do trabalho pode ser visualizada em dois mapas que apresentam legendas
distintas. No primeiro mapa, são espacializadas as comunidades quilombolas presentes nos
municípios cearenses. No segundo mapa, são representadas as situações jurídicas das
comunidades quilombolas, com o seguinte panorama: comunidades em processo de
regularização fundiária (34), Comunidades certificadas pela FCP (14), Comunidades em
processo de certificação (39). Vale ressaltar que algumas localidades se encontram em uma
mesma área e compõem um mesmo território quilombola.
Não fora identificado no texto do documento o detalhamento nem os critérios que
justificam a escolha das legendas e dos softwares utilizados nos mapas. Nesse sentido, suponho
que, devido à ausência de dados cartográficos sobre a localização e a delimitação territorial pelo
INCRA, o levantamento apresentou um quadro geral das comunidades quilombolas, dispostas
em formato de lista e não com a localização geográfica nos municípios, por exemplo.
Quanto ao questionário aplicado, entendo que poderia abordar os aspectos culturais
e religiosos e a contextualização histórica de cada comunidade quilombola que reflete a
ancestralidade africana, afro-brasileira cearense. Apesar de o mapeamento promover avanços
na inserção das demandas quilombolas, essas lacunas precisam ser revistas. Ainda assim, este
trabalho abriu caminhos para que se fortaleça plementação de
programas de ações afirmativas destinados ao enfrentamento das desigualdades étnicas, onde

p. 31).
A luta do movimento quilombola deve ser contínua pela continuidade desses
mapeamentos, ampliando o detalhamento e as pesquisas a serem realizadas pelas instituições
que executam as Políticas Públicas relacionadas ao povo quilombola.
As dezenas de comunidades quilombolas cearenses têm história própria, tradições
culturais, constituindo, assim, uma diversidade de territórios e possuem uma agenda de
mobilização e luta coletiva que ocorre em escala local por direitos, por meio das associações de
moradores, bem como em escala estadual, com a CEQUIRCE e nacional, com a CONAQ.
A categoria utilizada no mapeamento estadual foi a de municípios com localidades
quilombolas, por abranger tanto aqueles territórios quilombolas que já possuem RTDI com a
indicação da proposta de delimitação territorial, a ser titulada; quanto por incluir as
188

comunidades quilombolas, os agrupamentos negros ainda em processos de certificação e


titulação. Essa espacialização remonta à herança de nossa ancestralidade africana e afro-
brasileira circunscritas no espaço estadual e, ao mesmo tempo, materializa as re-existências nos
modos de viver dos povos quilombolas cearenses.
O Mapa 03 foi elaborado com base no mapeamento quilombola das comunidades
quilombolas do Ceará e apresenta a distribuição das localidades quilombolas ao longo do litoral,
das serras e dos sertões se inserindo em 34 municípios cearenses.
189

Mapa 3 Espacialização das localidades quilombolas nos municípios do Ceará.

Fonte: Adaptado de Ceará (2019).


190

Na porção Oeste do Estado ocorre maior adensamento dos territórios quando


comparado a porção Leste e a região litorânea, nas quais os territórios encontram-se um pouco
mais esparsados. Na Região Metropolitana de Fortaleza, destaca-se o município de Caucaia,
com a presença de 09 territórios quilombolas certificados, sendo 01 (um) desses em processo
de regularização fundiária.
De acordo com o Mapa 3, na porção sul do Ceará, encontram-se territórios
quilombolas em 05 (cinco) municípios, sendo 03 (três) desses com processo de regularização
fundiária.
As principais áreas de concentração dos territórios quilombolas ocorrem nos sertões
centrais localizados em Canindé, Quixadá, Quixeramobim, Milhã e Solonópole; assim como na
porção centro oeste do estado nos sertões de Crateús e Inhamuns, a exemplo das terras
quilombolas, localizadas em Monsenhor Tabosa, Crateús, Tamboril, Novo Oriente,
Quiterianópolis e Tauá.
A Base de Informações Geográficas e Estatísticas sobre indígenas e quilombolas
para o enfrentamento a Covid-19 do IBGE, desenvolvida no final de 2019 e início de 2020,
apontou dados mais recentes em relação a essa espacialização quilombola. No Ceará, chegam
a 65 os municípios que reúnem 183 localidades quilombolas em seus territórios (GIRARDI,
2022), o que indica a necessidade da atualização do mapeamento quilombola estadual
supracitado.
Em relação ao atendimento dos direitos dos povos quilombolas:

Durante muito tempo não houve reconhecimento legal das comunidades negras rurais
enquanto grupos racial e etnicamente diferenciados e, portanto, nenhum tipo de
política pública de atendimento específico que colocasse sobre o estado a
responsabilidade de reduzir os danos históricos causados pelo regime escravista e pela
falta de assistência pós-abolição. (CARVALHO, 2020, p. 157).

No Ceará, alguns territórios quilombolas só foram reconhecidos nos anos 2000, o


que denota um atraso na responsabilização pública da questão quilombola. De lá para cá, a
atuação da CONAQ, da CERQUICE e das associações de moradores dos territórios pressiona
pela execução das Políticas Públicas voltadas aos povos quilombolas de origem, âmbito federal,
estadual e municipal. Algumas dessas se materializam na realização de projetos junto às
comunidades quilombolas, os quais são apontados a seguir:

Articulamos o Projeto Zumbi com recursos do Governo do Estado. Hoje temos 49


projetos produtivos com recursos nas diversas comunidades quilombolas, tem 12
191

Projetos São José e Projetos Paulo Freire em desenvolvimento da produção e da


melhoria da qualidade de vida. (TERRITORIALIDADES, 2020).58

Além dos projetos mencionados pela liderança da CERQUICE, foram identificados


em Encantados do Bom Jardim e Lagoas das Pedras,
Garantia Safra, Programa PRONAF, Programa Cisternas de Placas, Programa Bolsa Família e

Os principais projetos estaduais e federais existentes no território de Brutos que

Programa PRONAF, Programa Cisterna de Placas, Programa Leite Fome Zero, Projeto
p. 426-427).
Na Barriguda, os projetos estaduais e federais mapeados em
Plantar, programa Garantia Safra, Programa PRONAF, Projeto Apicultura, Programa Cisterna
de Placas, Projeto Zumbi (CEARÁ, 2019,
p. 417).
Alguns desses projetos mapeados compõem o Programa Brasil Quilombola (PBQ),
criado em 2004, pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
(Seppir), em âmbito Federal, que desenvolveu eixos de atuação junto aos povos quilombolas.
As cisternas de placas instaladas para armazenar água, o acesso a luz elétrica nas residências e
a construção de escola quilombola são algumas conquistas dessa política para os territórios
quilombolas de Tamboril. No entanto, foi relatado pelos quilombolas a ausência de fiscalização
e acompanhamento federal da execução dessas e das outras ações junto a Prefeitura Municipal
de Tamboril. Isso decorre da descentralização das medidas que são implantadas tanto por
diversas instituições quanto pelos entes federados.
Em âmbito estadual, são diversos os projetos, dentre os quais, destaco o Projeto
Zumbi, que buscam o desenvolvimento de atividades produtivas nos territórios. Esse projeto é
citado pela liderança da CERQUICE como sendo uma conquista da luta coletiva no Ceará. Em
relação aos territórios de Tamboril, o primeiro a ser beneficiado foi o de Brutos, em 2012; em
seguida, Torres, no ano de 2013; depois a Barriguda, em 2016; por fim, foi implantado o Projeto
Zumbi, em Lagoa das Pedras, no ano de 2018. Somente Encantados do Bom Jardim, por decisão

58
Trecho da palestra Territorialidades Quilombolas no Ceará e em Crateús debate sobre as comunidades
quilombolas que compõem o território cearense, suas lutas e resistências cotidianas , com o coordenador da
CEQUIRCE Renato Ferreira dos Santos, transmitida pelo canal do Youtube do Instituto Federal de Educação
Tecnológica (IFCE), Campus de Crateús. Disponível em: https://youtu.be/a6RqAakv9MI. Acesso em: 20 abr.
2022.
192

coletiva, não aderiu às ações do projeto. As verbas e os objetivos dessa ação foram pensados
pelas comunidades beneficiadas (CARVALHO, 2020).
Esses projetos impulsionam a produtividade agrícola das localidades quilombolas,
assim como financiam a compra de equipamentos, como é o caso da Lagoa das Pedras, que
investiu alguns recursos para a compra de maquinários, ferramentas e insumos médicos para
serem utilizados nos rebanhos.
O movimento socioterritorial quilombola cearense, mesmo diante das dificuldades
em ampliar o alcance estadual, tem uma base popular e rural compondo a CERQUICE. Outro
aspecto é a diversidade étnico-racial que contribui para a luta coletiva e para as diversas formas
de organização e articulação social e política do movimento.
Destaquei esse ebó do movimento quilombola ao olhar para essas conquistas do
movimento, de alcance nacional e caráter jurídico na concepção do quilombo a partir do Artigo
68 da Constituição de 1988 e de alcance estadual e caráter técnico, representado pelo
mapeamento das comunidades quilombolas do Ceará e pelos projetos relacionados ao Trabalho
e Renda, implantados nos territórios quilombolas.
As conquistas do movimento sobre a questão da titularidade das terras quilombolas
podem ser consideradas um ebó comportamental à medida que provocam a desarticulação do
poder hegemônico quando a pauta entra nas Políticas Públicas. Isso ocasiona a mudança de
postura e estabelece novos rumos para a articulação e mobilização por direitos dos povos
quilombolas.
Embora os movimentos negro e quilombola tenham avançado para a reafirmação
do negro nas sociedades brasileira e cearense, ainda são inúmeros os desafios a serem superados
na busca da reparação histórica para com estes povos historicamente excluídos.
193

4 TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS NOS SERTÕES DE CRATEÚS

É pela via dessas encruzilhadas que também se tece a identidade afro-


brasileira, num processo vital móvel, identidade que pode ser pensada
como um tecido e uma textura. [...] A cultura negra é uma cultura das
encruzilhadas59, [...] locus tangencial, é aqui assinalada como instância
simbólica e metonímica (MARTINS 2021, p. 32-34).

4. 1 Presença negra do ontem e do hoje nos Sertões de Crateús

Um dos lugares de intersecção, encontro e construção identitária afro-brasileira é a


microrregião dos Sertões de Crateús. A formação socioterritorial dessas encruzilhadas
regionais, conforme Marques (2009b), é caracterizada pela divisão de terras aos sesmeiros de
um contexto colonial.
Essas terras, segundo Pontes (2010), consistiam em grandes extensões que
motivavam as disputas de famílias pela sua posse nas Províncias, com vistas à produção e à
comercialização. Os sesmeiros delimitavam suas fazendas, seguindo as margens dos rios
cearenses e exerciam um modelo de dominação marcado pela violência e o paternalismo do
senhor como uma figura benevolente aos escravizados. Com essa lógica de distribuir as terras,
o governo português estimulava a ocupação das encruzilhadas sertanejas de Crateús
(MARQUES, 2009b).
Nesse contexto, Pontes (2010) afirma que a penetração de escravizados africanos
na região ocorreu a partir das rotas originadas das Províncias de Pernambuco e da Bahia. Além
disso, Funes (2002) e Martins (2012) indicam que a presença de trabalhadores negros, escravos
ou não, acompanhou o surgimento das fazendas de criar no Ceará, que eram grandes porções
de terras voltadas à agricultura e à pecuária, indicando, assim, que as forças de trabalho africano
e afro-brasileiro foram inseridas em atividades agropastoris, constituindo, desse modo, a base
econômica dessa formação regional.
A dinâmica socioterritorial do Ceará estabeleceu limites territoriais e distribuiu a
população negra, ou seja, a partir da fragmentação territorial, surgiram fronteiras e limites,
distribuindo essa população nas diversas vilas do século XIX, nos Sertões de Crateús.

59
A -religioso de origem ioruba uma complexa
formulação. Lugar de intersecções, ali reina o senhor das encruzilhadas, portas e fronteiras. Éxù Elegbára,
princípio dinâmico que medeia todos os atos de criação e interpretação do conhecimento. Èxù é o canal de

32).
194

A Tabela 2, a seguir, destaca as vilas mais antigas que originaram outras e os


registros populacionais negros do ontem, em alguns desses territórios, a saber:

Tabela 2 Dinâmica socioterritorial e distribuição do povo negro nos Sertões de Crateús no


século XIX
Vilas ou municípios População Ano do Município de origem Ano de
negra Censo Fundação
(habitantes)
Ausente 1872 Célula territorial 1791
(Guaraciaba do Norte)
Côcos do Ipu (Ipú) 13.354 1872 Guaraciaba do Norte 1840
Santo Anastácio do 7.846 1872 Ipú 1854
Tamboril (Tamboril)
Santa Quitéria 5.663 1872 Sobral 1856
Independência 7.800 1872 1880
Crateús 10.006 1872 Nossa Senhora do Desterro de 1880
Marvão (PI)
Ipueiras Ausente 1872 Ipú 1884
Total 44.669
Fonte: Pontes (2010), Souza (2020) e Brasil (1872).

De acordo com a Tabela 2, a célula territorial básica de uma parte dessa formação
regional foi a vila mais antiga, , fundada
em 1791. Essa se tornou, portanto, um dos núcleos populacionais da porção Oeste do Ceará, na
virada do século XVIII para o século XIX, apresentando nos levantamentos de 1808 uma
população negra próxima de 5.000 habitantes (OLIVEIRA, 1984; SOBRINHO, 2011; SILVA,
2011).
Conforme a Tabela 2, na vila de Guaraciaba do Norte, a população negra (de pretos
e mulatos) não foi identificada no levantamento de 1872. Por outro lado, as vilas de Ipú, Santo
Anastácio do Tamboril e Santa Quitéria apresentaram uma população negra (pretos e pardos)
de 13.354 habitantes, de 7.846 habitantes, e de 5.663, respectivamente. Somam-se a esses
quantitativos, os dados de Independência e Crateús, com população negra, de 7.800 habitantes
e 10.006 habitantes, respectivamente, territórios ainda pertencentes à Província do Piauí.
O total populacional na região dos Sertões de Crateús de ontem, principalmente,
demonstrou uma presença negra significativa, totalizando cerca de 44.669 habitantes, sendo
que esses números poderão ser ainda maiores, devido às ausências de dados das vilas de Ipueiras
e de Guaraciaba do Norte, no Censo de 1872.
A formação socioterritorial desse contexto regional ocorreu por meio da política de
doação de terras, ou seja, com a atuação dos sesmeiros. Essa divisão para a ocupação ocasionou,
de certo modo, os desmembramentos territoriais que originaram outras vilas e municípios dessa
195

microrregião. Do núcleo inicial de Guaraciaba do Norte, originou-se a Vila do Ipú, em 1840,


denominada, inicialmente, de Fazenda Ipú, pelas famílias do Capitão Luiz Vieira de Souza e
Joana de Paula Chaves.
Do desmembramento de Ipú surgiram outras vilas: a de Santo Anastácio do
Tamboril, em 1854 e, mais tarde, a vila de Ipueiras, em 1884. As vilas de Independência e
Crateús pertenciam à Província de Piauí, até o ano de 1880, quando foram incorporadas ao
território e à microrregião dos Sertões de Crateús, Ceará.
Esse processo ocorreu, portanto, ao longo dos séculos XVIII e XIX. As famílias
proprietárias das terras pertenciam as forças militares da Coroa e atuaram na ocupação dos
territórios das vilas que, mais tarde, compunham os municípios cearenses. A exemplo disso,
vale citar a Fazenda Tamboril, fundada pelo Capitão Luiz Alves de Souza, homônimo do pai
fundador da vila do Ipú e sua esposa, Ana Alves Feitosa. Em seguida, surgiu a Fazenda Ipueiras,
fundada pelo Capitão-Mor José de Araújo Chaves e Luiza de Matos Vasconcelos. Essa marca
do coronelismo regional repercute nos contextos municipais, especialmente, em Tamboril, que
surgiu a partir dessa divisão de terras em grandes propriedades. A presença dessas famílias é
sinônimo, também, de escravização e exploração servil.
A região em tela é composta, atualmente, por 13 (treze) municípios, são eles
Ararendá; Catunda; Crateús; Hidrolândia; Independência; Ipaporanga; Ipueiras; Monsenhor
Tabosa; Nova Russas; Novo Oriente; Poranga; Santa Quitéria e Tamboril, abrangendo uma área
territorial de 20.594 km2 (CEARÁ, 2019c), e uma população total estimada de 349.950
habitantes (BRASIL, 2022).
As disputas fronteiriças pelos territórios do passado ainda se fazem presentes nesse
contexto regional, atualmente. Em pleno século XXI, uma parte dos Sertões de Crateús ainda
se encontra na área do litígio, entre os estados do Ceará e do Piauí. Esse conflito territorial
abrange os seguintes municípios: Crateús, Novo Oriente, Ipaporanga, Poranga e Ipueiras, além
de outros municípios cearenses (SOUZA, 2020).
A presença negra de hoje, neste contexto regional, foi destacada pela Pesquisa
Regional por Amostra de Domicílios (PRAD), em 2020. O índice de pardos chegou a 72,8%, e
o de pretos a 3,9%. Isso denota um total de 76,7% de população negra nessa microrregião
cearense (CASTRO; AYALA, 2021). Portanto, é preciso ressaltar que a presença negra nos
Sertões de Crateús é um forte componente da sua diversidade cultural, contribuindo, assim, a
sua formação socioterritorial.
196

Em se tratando das heranças dessa diversidade cultural e as ancestralidades africana


e afro-brasileira, ressalto a existência de territórios quilombolas formados, ao longo do século
XVIII e XIX, em processos diversos. A formação socioterritorial das comunidades negras rurais
brasileiras ocorreu a partir de:

[...] terras de doação ou herança, terras adquiridas ou ocupadas por escravizados ou


libertos; algumas se formaram após a abolição da escravidão; há quilombos que
abrigaram índios, brancos pobres, soldados fugidos (por exemplo, da Guerra do
Paraguai); existiram agrupamentos quilombolas liderados por mulheres; outros, se
situavam nos arredores das cidades. (RATTS, 2009, p. 56).

Nesse sentido, os quilombos da microrregião dos Sertões de Crateús se


reafirmaram, em sua maioria, no contexto abolicionista e agregaram pessoas das mais diversas
origens raciais. Alguns territórios formaram-se nas proximidades das sedes das vilas e das
antigas fazendas, como estratégia de sobrevivência e de resistência permaneceram nessas terras,
como é o caso de alguns territórios de Tamboril. Outros formaram-se em áreas mais distantes
como forma de isolamento e proteção do território.
A geografização do quilombo sertanejo resulta, entre outros aspectos, dos estudos
e das análises de sua formação socioterritorial. Considero que o território quilombola é
patrimônio, é coletivo, é herança simbólica, é território de luta e de preservação dos modos de
vida nos sertões.
Diante dessas considerações, apresento os 16 (dezesseis) territórios quilombolas
dos Sertões de Crateús, distribuídos em 05 (cinco) municípios, conforme o Quadro 12:
197

Quadro 12 Quilombos localizados nos municípios que compõem os Sertões de Crateús no


ano de 2019

Mesorregião Microrregião Municípios Comunidades Quilombolas


Geográfica Geográfica
Queimadas, Barriguda, Bom Sucesso,
Crateús, Novo Oriente, Paranã, Minador, Santo Antônio,
Sertões Sertões de Tamboril, Monsenhor Encantados do Bom Jardim, Lagoa das
Cearenses Crateús Tabosa, Pedras, Brutos, Torres, Barriguda
Quiterianópolis. (Tamboril), Boa Vista dos Rodrigues, São
Luís do Boqueirão, Croatá, Fidelis,
Furada e Gavião.
Fonte: Adaptado de Ceará (2019b).

Dos territórios do Quadro 12, o recorte da pesquisa situa-se, portanto, na


mesorregião dos sertões cearenses e na microrregião dos Sertões de Crateús, especialmente nos
territórios quilombolas do município de Tamboril denominados Encantados do Bom Jardim e
Lagoa das Pedras, Brutos e Barriguda.
De forma geral, os territórios em destaque no Quadro 12 tiveram processo
formativos distintos em outros tempos. A maioria desses só foram reconhecidos no século XXI,
pela FCP. Outros, desse mesmo contexto regional, ainda se encontram em processo de
reconhecimento e certificação.
A região dos Sertões de Crateús reflete um contexto de concentração de terras,
escravização, disputas territoriais interestaduais (litígios), além das condições climáticas
semiáridas. Mesmo assim, é marcado pela resistência de povos quilombolas, indígenas e
ciganos, bem como pelas exclusões e apagamentos seculares. Ao comparar a espacialização
desses territórios (CEARÁ, 2019a; CEARÁ, 2023), me pergunto: o que determinou esses povos
a estabelecerem seus territórios, neste contexto? Este questionamento só poderá ser respondido
mediantes a realização de futuras pesquisas que revelem esse passado ora questionado pelo que
vejo no presente.
Nesse contexto, é importante ressaltar que nenhum dos 16 territórios quilombolas
dos Sertões de Crateús possui a titularidade das suas terras. Essa dívida pública com esses povos
é permeada pela desigualdade, pelo preconceito, discriminação e descaso político na tomada de
decisão que execute Políticas Públicas para esses povos (GOMES, 2012).
De todo modo, o entendimento das ancestralidades africana e afro-brasileira
perpassa pelas relações e intersecções dessa presença negra regional de outrora e do presente,
tendo em vista que:
198

Como no imbondeiro africano (árvore do baobá), as culturas negras nas Américas,


constituíram-se lugares das encruzilhadas, intersecções, inscrições e disjunções,
fusões e transformações, confluências e desvios, rupturas e relações, divergências,
multiplicidades e disseminações. (MARTINS, 2021, p. 31).

Pensar a diáspora africana, enquanto uma herança cultural e identitária para a


formação socioterritorial do Ceará, especialmente dos Sertões de Crateús, me conduziu a
destacar as confluências simbólico-culturais da presença negra do hoje por meio da inscrição
de territórios quilombolas nessa microrregião, especialmente em Tamboril, Ceará.
Na geografização territorial sertaneja, a presença quilombola, a resistência, a
rebeldia, a busca por diretos contribuem para salvaguardar alguns de seus marcadores das
africanidades, tendo em vista que:

[...] o território é o espaço representado e apropriado [...]. O território dá conteúdo a


existência dos sujeitos individuais e coletivos. Apropriado, traçado, percorrido,
delimitado, o território é constituído a partir do comando de um sujeito individual ou
coletivo, marcado pela identidade de sua presença. (PEDON 2013, p. 167).

Diante desses aspectos, os marcadores ancestrais atravessam trajetórias negras,


quilombolas e sertanejas de diversas formas. Seja na toponímia, na memória coletiva, nos
diversos deslocamentos familiares que geraram a formação dos territórios, assim como na luta
coletiva; seja na relação com a terra e com os elementos da natureza, assim como pelos racismos
sofridos e enfrentados pelas diversas gerações das famílias.
Esses marcadores serão enfatizados a partir do contexto municipal de Tamboril,
chegando aos territórios de Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras, que formam uma
área contígua e distam cerca de 10km da sede municipal de Brutos, localizado a 9km da sede
municipal; e na Barriguda, localizado no distrito de Açudinho e dista 24km de distância da sede
municipal, na porção Leste do município, chegando ao limite com o município de Monsenhor
Tabosa.

4.1.1 Os marcadores das africanidades em Tamboril, Ceará

A formação socioterritorial de Tamboril agrega várias facetas. Dentre elas, optei


por enfatizar a origem dos nomes dos lugares que compõem esse território, correlacionando-os
as toponímias presentes nos territórios quilombolas pesquisados. Sobre a toponímia, Batista
199

(2011) ressalta que é o ato de nomear o lugar, sendo uma atividade humana, que desde os
tempos antigos, orienta os agrupamentos humanos durante a ocupação do espaço geográfico e
demarcação de seu território.
Desse modo, compreendo que s nomes auxiliam o homem a se organizar no
tempo, no espaço ou em seu grupo. [...] É por meio desses rótulos que o homem interage com

lugares abrange designativos geográficos de natureza física (rios, riachos, lagoas, córregos,
entre outros) e os de natureza antropocultural (aldeias, povoados, cidades, famílias, bairros,
entre outros) (BATISTA, 2011, p. 30). Optei por discutir as relações raciais e de poder na
composição dos topônimos presentes nas trajetórias das famílias e nos territórios quilombolas.
Somente no final do século XIX e início do XX, a vila passou a se chamar Tamboril.
Esse topônimo resguarda traços culturais dos povos originários e africanos e uma hibridização
fitotoponímica em sua gênese. De acordo com Marques (2009b) e Batista (2011), a palavra
original Tambor-Mirim é de origem indígena e significava tambor pequeno . Além disso, a
partir da palavra tambor e do diminuitivo tupi mirim, os indígenas nomearam a árvore de que
eram feitos os seus tambores e existia em abundância na cidade (IBGE, 2022). 60 O tambor é
uma marca das culturas africanas e indígenas à
lembrança, a memória e a história do sujeito africano forçadamente exilado de sua pátri
(MARTINS, 2021, p. 46). Conforme Ceará (2012), a toponímina atual refere-se a uma
vegetação existente na região pertencente à família das leguminosas mimosóidas.
A partir da vila de Ipu, em 1854, surgiu a antiga vila com denominação
marcadamente religiosa: a Vila Santo Anastácio de Tamboril que possuiu, em sua gênese
territorial, a presença das fazendas no domínio do poder local. É preciso ressaltar que o regime
de sesmarias contribuiu para a formação de uma classe de proprietários de terras representadas
pelos coronéis e suas famílias. Conforme Marques (2011, p.
eram absenteístas, isto é, não moravam no local e sim em áreas distantes [...] Somente em uma
segunda fase de ocupação é que se instalaram estabelecimentos administrados pelos próprios
fazendeiros. Esses proprietários constituíam o centro do sistema econômico e de acesso à terra,
durante o regime de doação (sesmarias) e na política de compra (Lei de Terras).
Esses indivíduos exerciam seu poder e influência sob escravizados ou trabalhadores
assalariados e, ao mesmo tempo, buscavam que o Estado atendesse aos seus interesses

60
Histórico da cidade de Tamboril. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ce/tamboril/historico. Acesso
em: 10 ago. 2022.
200

imediatos (FERNANDES, WELCH, GONÇALVES, 2014). Entendendo que nomear é dar


significado ao território, identifiquei alguns antropônimos, ou seja, nomes de coronéis nos
logradouros e prédios na antiga vila demarcando um tempo. Os espaços retratados encontram-
se nas Figuras 7 e 8.

Figura 7 Rua Coronel Salustiano Melo na sede do Município de Tamboril - Ceará

Fonte: IBGE (2022).61

61
Série Acervo dos Municípios Brasileiro. [S.D]. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=437488. Acesso em: 10
jan. 2022.
201

Figura 8 Praça Sales Campos na década de 1990 em Tamboril, Ceará

Fonte: Página do Facebook sobre a Cidade de Tamboril, Ceará.62

A rua denominada Coronel Salustiano de Melo, mostrada na Figura 7, localiza-se


na sede do município, sendo uma homenagem ao coronel proprietário de terras construída à
base de trabalho escravizado.
A principal praça da cidade, denominada Sales Campos (Figura 8), faz referência
ao membro de uma das famílias que ocuparam o território de Tamboril, na virada do século
XIX para o início do século XX, um dos primeiros coronéis a ocupar e fundar a fazenda
Tamboril, na área em que, hoje, se encontram os territórios quilombolas.
Em relação ao Capitão Francisco Xavier de Araújo Sales, Capitão Sales e
Francisca Alves Feitosa, destaco que estes fundaram a Fazenda Serrote. Além daquele, o seu
descendente, outro coronel conhecido como José Felipe Ribeiro Campos, possuiu a propriedade
conhecida como Fazenda do Campo Nobre.
Em relação à influência cristã no ato de nomear há Santo Anastácio de Tamboril63,
denominação que perdurou ao longo do século XIX, e, no século XX, passou a compor a
denominação do prédio da Igreja, mostrada na Figura 9.

62
Disponível em:
https://web.facebook.com/379734698716262/posts/pfbid031swDgt5xvGhGrLzvvTc9ts7u6TEYz8MwXJ3ww
K5qmaVyco5ch7tnsZ4ghxjthoMnl/?_rdc=1&_rdr. Acesso em: 10 jan. 2022.
63
Histórico da cidade de Tamboril. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ce/tamboril/historico. Acesso
em: 10 ago. 2022.
202

Figura 9 Igreja Matriz Santo Anastácio em Tamboril- Ceará

Fonte: IBGE (2022).64

Santo Anastácio de Tamboril foi a primeira denominação da antiga vila,


demonstrando a importância da Igreja Católica e do coronelismo cristão nos topônimos e
logradouros cearenses. Mais tarde, esse santo se tornou o padroeiro da cidade, e, em sua
homenagem, foi erguida a primeira capela que se transformaria na Igreja Matriz do município,
visualizada na Figura 9.
Nas fazendas, a demarcação da propriedade se fazia através de muros e cercas que
compunham as fronteiras simbólicas de poder. Especificamente, na Fazenda Bom Jardim, que
pertenceu ao Coronel Antônio Zeferino Veras, registrei o muro da antiga fazenda, em destaque
na Figura 10, a seguir:

64
Série Acervo dos Municípios Brasileiro. [S.D]. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=437488. Acesso em: 10
jan. 2022.
203

Figura 10 Muro da Casa Grande , sede antiga Fazenda Bom Jardim

Fonte: Neta Quilombola (2021).

Essa é uma marca espacial de uma fronteira entre o poder hegemônico coronelista
e escravista e o poder coletivo das famílias quilombolas que, do outro lado do muro/fronteira
(Figura 10), exerciam suas funções e seus modos de vida, no que se tornaria um território
quilombola.
Segundo as entrevistas com os quilombolas, após a morte do Coronel Veras a sua
filha e herdeira, Antonieta Veras, passou a residir nessa propriedade. Para alguns, as festas
realizadas pela proprietária se aviltam na memória. Para outros, a negativa dela em vender as
terras já ocupadas pelas famílias marcaram suas memórias. De todo modo, esse é um marcador
da presença negra ancestral diante dos conflitos pelo direito à terra resolvidos parcialmente ao
longo dos anos de 1990.
Portanto, nessas relações, marcadas por submissão, subserviência e rebeldia,
prevaleceu o resultado de uma luta coletiva pelo direito a nova funcionalidade desse lugar no
atendimento à saúde do povo quilombola que, conforme os relatos, precisa ser melhorada.
Ao longo da História desse município, essas marcas espaciais reafirmam narrativas
históricas coronelistas, brancas e Católicas na formação socioterritorial de Tamboril.
É preciso dizer que, nessas propriedades, a força de trabalho era escravizada. Foram
as famílias negras que viveram nas terras e as tornavam produtivas e rentáveis aos seus
proprietários. Um dos marcadores das africanidades em Tamboril é a presença africana e afro-
brasileira, ou seja, é a ancestralidade negra que compõe a formação socioterritorial dessa vila,
conforme os dados do Censo de 1872, no final do século XIX.
204

Conforme o Censo de 1972, havia 364 escravizados e 56 alforriados, no período


entre 1872 e 1888, totalizando uma população de 7.846 habitantes, sendo 7.117 pardos e 729
pretos (BRASIL, 1872).
A presença e a resistência negra são uma marca do município que, além dos
territórios Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras, na área dessa antiga fazenda, existem
outros 03 (três) autoidentificados que são: a Barriguda, Brutos e Torres, o que reforça a tese de
que os sertões são espaços de grande presença negra e de que a formação socioterritorial desse
município decorre da presença, do trabalho e da resistência de inúmeras famílias negras
(SOBRINHO, 2011; CARVALHO, 2020).
Tamboril possui altitudes médias de 322 metros e se insere no domínio
morfoclimático dos sertões e das serras secas. O seu contexto climático é o tropical quente
semiárido, com pluviometria média de 685,5 mm e temperaturas médias entre 26 a 28 0 C. Em
relação à cobertura vegetal, ocorre a presença de caatingas arbustivas abertas, floresta
caducifólia espinhosa e floresta subcaducifolia tropical pluvial. Essas espécies florísticas
recobrem os solos bruno não-cálcico, solos litólicos, planossolo solódico e podzólico vermelho-
amarelo (CEARÁ, 2009a; CEARÁ, 2012).
Esse município compõe a bacia hidrográfica do Rio Acaraú e abriga a sua nascente,
localizada nas Serras das Matas e deságua no Oceano Atlântico. Esse rio é represado pelo Açude
Carão que é uma das principais fontes hídricas do município, conforme o detalhe na Figura 11.
205

Figura 11 Registro da principal fonte hídrica de Tamboril, Ceará

Fonte: IBGE (2022).65

Conforme a Figura 11, a paisagem retrata o período seco (maio-dezembro), na qual


o volume das águas do rio e do reservatório Carão são reduzidos. Ao passo que no período
chuvoso (fevereiro-abril) ocorre um aumento do volume das águas do rio Acaraú, contribuindo,
assim, para as cheias desse açude.
Tamboril possui atualmente uma área de 1.961km 2 e altitudes médias de 322
metros. Atualmente, limita-se ao norte com Nova Russas, Hidrolândia e Catunda; a leste, com
Monsenhor Tabosa e Catunda; a oeste, com Nova Russas, Ipaporanga e Crateús; ao sul, com
Crateús, Independência e Monsenhor Tabosa. Possui as seguintes localidades/distritos:
Açudinho, Tamboril (sede), Boa Esperança, Carvalho, Oliveiras, Sucesso, Holanda e Curatis.
Dista 287 km da capital Fortaleza (CEARÁ, 2012).
A toponímia dos distritos representa nomes de famílias residentes no passado da
formação desse território. Além disso, percebi que os nomes dos distritos não fazem referência
à presença das famílias quilombolas, como forma de apagamento dessas identidades negras,
presentes em Tamboril. Encontrei o nome de uma das lideranças quilombolas do território
Encantados do Bom Jardim nos dois prédios da escola quilombola que compõe a rede municipal
de ensino infantil e fundamental. O nome da escola é uma homenagem a uma das lideranças
quilombolas: Escola Municipal de Ensino Fundamental Joaquim Ribeiro dos Santos. Esse é o

65
Série Acervo dos Municípios Brasileiro. [S.D]. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/biblioteca-
catalogo.html?id=437496&view=detalhes. Acesso em: 10 jan. 2022.
206

avô de Neta Quilombola, e pai de seu José Osmar, e foi uma grande liderança nas comunidades
quilombolas.
No tocante às atividades econômicas que mais empregam a população, se destacam:
o comércio (230.755); a administração pública (403.177); a indústria de transformação
(251.767); os serviços (401.345); a construção civil (84.994) e a agropecuária (24.453). Em
relação à soma de todas as riquezas municipais, o Produto Interno Bruto (PIB) provém dos
serviços (75%), da agropecuária (13%) e da indústria (12%), ou seja, é um município pouco
expressivo economicamente (CEARÁ, 2012; CARVALHO, 2020).
O último levantamento municipal de 2012 apontou uma população total de 25.541
habitantes, sendo que 55,80 % da população reside em área urbana, e 44,20% residem na área
rural do município. A pirâmide etária no município é caracterizada pelo predomínio de jovens
e adultos, representando 62,14% da população, seguida pelo percentual de crianças e
adolescentes que representou 27,71% da população e, por fim, os idosos, que totalizaram
10,15% da população (CEARÁ, 2012). E, a população estimada em 2020, segundo o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)66, totalizou cerca de 26.225 habitantes.
Fazendo o recorte da população quilombola cearense, os dados de Ceará (2019b)
revelam que são 4.899 famílias quilombolas que participaram do mapeamento dos territórios.
Esse quantitativo me permitiu estimar que, se cada família tem o mínimo duas pessoas, a
população quilombola poderá totalizar, no mínimo, 9.798 pessoas naquele ano.
Considero que o segundo marcador das africanidades, em Tamboril, é a formação
de territórios quilombolas. Devido à presença significativa de população negra nesses
territórios, é possível estimar uma população quilombola de 702 habitantes, distribuídos no
território de Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras, Brutos e na comunidade da
Barriguda (CEARÁ, 2019a). Acredito que a população quilombola seja ainda maior, tendo em
vista à presença de outro território quilombola no município que não está inserido no contexto
da pesquisa como é o caso de Torres.
A gênese territorial quilombola, relaciona-se ao acesso à terra, à identidade coletiva,
e às marcas de raça e classe nas sociedades brasileira e cearense. De fato, as comunidades
quilombolas se definem com suporte nas suas relações com a terra, o parentesco, as tradições,
as práticas culturais, entre outros (CHAVES, 2013, p. 71).

66
Perfil básico de Tamboril. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/ce/tamboril.html.
Acesso em: 10 jun. 2021.
207

Assim, a caracterização dos territórios quilombolas tamborilenses citados é baseada


nos seguintes marcadores das africanidades: a toponímia ancestral, as linhagens e
deslocamentos, a relação com a terra, as pessoas de referência, as relações com a África, os
racismos enfrentados, a religiosidade, as práticas de cura, entre outros.
Além disso, a partir da memória individual de cada entrevistada (o), é possível
entender a trajetória do grupo, ou seja, a memória coletiva quilombola. Essas(es)
guardadoras(es) das memórias e das lutas destacaram suas influências religiosas e suas
trajetórias familiares no território. São, portanto, essas testemunhas do passado que vivem o
presente com a expectativa e o desafio de se projetarem no futuro. Além desses, as lideranças
quilombolas foram entrevistadas em tempos e espaços distintos.
É preciso entender que a caracterização de territórios e sujeitos quilombolas
priorizou a:

[...] autodefinição dos moradores de uma localidade negra que reconhecem seu lugar
como um quilombo ou como "remanescente de quilombo": o lugar onde seus
antepassados desenvolveram um modo de vida que, apesar de algumas mudanças, é
preservado; onde o grupo tem seus critérios de pertencimento para definir quem é ou
não do quilombo. (RATTS, 2009, p. 56).

O principal critério de reconhecimento negro e quilombola baseia-se


principalmente, na origem dos familiares e nas relações de parentesco. A ancestralidade negra
originada de antigos escravizados em um dado território por várias gerações constituem os
grupos remanescentes de quilombos.
Os marcadores das africanidades se inserem nessa discussão enquanto dispositivos
que ressaltam vivências, autoconhecimento e teorização que potencializa essa ancestralidade
africana e afro-brasileira dos povos do quilombo. Desse modo, ressalto a resistência, as
tradições, os saberes e os modos de vida no território.
Girardi (2022) aponta que a situação vivida hoje por negros no campo e na cidade
tem origem histórica no racismo, na concentração da terra e da renda. A exemplo disso, a
formação socioterritorial da microrregião dos Sertões de Crateús e do município de Tamboril é
caracterizada por uma presença negra que é impedida do acesso à terra e dos meios adequados
para explorá-la, tendo em vista às condições de inferioridade socioeconômica impostas pelo
poder hegemônico ora enfatizados.
208

4.2 Territórios Quilombolas Sertanejos: Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras,
de Brutos e o da Barriguda

Fogo!...Queimaram Palmares,
Nasceu Canudos.
Fogo!...Queimaram Canudos,
Nasceu Caldeirões.
Fogo!...Queimaram Caldeirões,
Nasceu Pau de Colher.
Fogo!...Queimaram Pau de Colher...
E nasceram, e nascerão tantas outras comunidades
que os vão cansar, se ainda continuarem queimando

Porque mesmo que queimem a escrita,


Não queimam a oralidade.
Mesmo que queimem os símbolos,
não queimam os significados.
Mesmo queimando o nosso povo,
Não queimam a ancestralidade.67

4.2.1 Toponímias quilombolas

À medida que, de um lado, ocorrem tentativas de apagamentos e silenciamentos


constantes, a luta e a resistência negra e quilombola surgem, do outro! Os povos quilombolas
reconstroem suas trajetórias. Esses se deslocam para a formação dos quilombos, mobilizam os
seus territórios, resistem a desigualdade social e racial, ao poder dos coronéis e da igreja
Católica, enfrentam racismos institucionais na elaboração e execução de Políticas Públicas que
firmem os seus direitos.
-racial de um grupo é uma das bases

p. 101). Nesse sentido, os diversos processos de territorialização ao longo da história,


constituem a formação identitária quilombola a partir de registros, memórias, pertencimentos,
relações com a terra e o modo de vida dos quilombos e dos quilombolas. São processos
contínuos nos territórios e fora deles, tendo como desdobramento, o reconhecimento recente da
luta coletiva nas Políticas Públicas do Ceará, conforme destacado no capítulo anterior.

67
Poesia de Antônio Bispo dos Santos, liderança e intelectual quilombola do Estado do Piauí, disponível em
Santos (2015, p. 24).
209

Considero que os nomes, ou seja, os topônimos são marcadores das africanidades


quilombolas pelo fato de resguardarem a memória e a História desses grupos. Além disso, essa
reflexão permitiu entender sua formação socioterritorial, a forma de ocupá-lo, nomeá-lo e
vivenciá-lo.
Os topônimos revelam crenças e trajetórias ancestrais, além de indicarem as
relações com a terra e com os elementos da natureza. Portanto, a toponímia quilombola é uma
marca ancestral dos territórios.
A memória coletiva e as histórias do lugar de pertencimento resguardam a relação
direta com a trajetória familiar e permitem entender origens e identidades dos povos
quilombolas. A forma como o grupo define a própria identidade resulta da junção de alguns
fatores, tais como: ancestralidade comum, formas de organização política e social, elementos
linguísticos e religiosos (SANTOS, 2016).
Destacar a toponímia quilombola é entender o marcador da origem dos nomes dos
lugares quilombolas que decorrem das motivações e das circunstâncias que constituíram a
formação desses territórios e de suas comunidades. Assim, enxergo uma faceta da memória
coletiva desse grupo.
Nesse cenário, entendo que as circunstâncias de submissão e subserviência das
famílias quilombolas às famílias dos donos das terras e que exploravam essa força de trabalho,
por vezes, influenciou a denominação dos topônimos. Por outro lado, é preciso dizer que a
rebeldia e o fortalecimento do pertencimento quilombola contribuíram para que os nomes dos
lugares sejam questionados na trajetória e na luta das famílias quilombolas de Tamboril.
Girardi (2022, p.
submetidos a
quilombola de Tamboril não foi diferente e o poder de mando influenciou as relações de
trabalho, em que os trabalhadores trabalhavam quando eram escravizados e com a abolição
passaram a trabalhar no alugado que, conforme os relatos, era um regime de trabalho diário
que ocorria 03 (três) vezes por semana.
No contexto pós-abolicionista, os povos africanos e afro-brasileiros libertos que
trabalharam nas antigas fazendas dos coronéis por mais de 70 anos ali permaneceram em troca
de sobrevivência e da reprodução familiar. Estas trabalhavam para o proprietário em troca de
permanecer e produzir para o autoconsumo, assumindo um papel de ocupante ou produtor sem
área. De fato, produziam e geravam renda ao dono das terras à custa de muita exploração e
negação de direitos.
210

Ocorreram diversos deslocamentos das famílias quilombolas até a formação de seus


territórios, as narrativas e o relatório antropológico (MARQUES, 2009a) indicam que, nos anos
de 1960 e 1970, alguns moradores do Campo Nobre e da Serra das Matas migraram para a
Fazenda Bom Jardim para residir e trabalhar.
As influências dos donos das terras se materializam, ainda, na determinação dos
nomes dos lugares. Um exemplo disso são as terras do Campo Nobre, Campo Limpo, Deserto
e da Fazenda Bom Jardim. As terras da Fazenda Campo Nobre pertenciam ao Coronel José
Felipe Ribeiro Campo. Essa presença determinou a denominação do topônimo campo
referindo-se ao sobrenome e nobre por ter famílias embranquecidas detentoras de poder e
dominação.
A outra localidade mencionada, que foi o Campo Limpo, sugere um lugar inóspito
ou pronto para agricultura que era mantida à base da exploração do trabalho dos povos negros.
Outra localidade mencionada é o Deserto, que indica ser um lugar isolado e afastado das
fazendas e localizado às proximidades da Serra do Encanto, a qual teria originado a
denominação Encantados do Bom Jardim, uma propriedade que pertencia ao Coronel Antônio
Zeferino Veras.
Bom Jardim é o topônimo de origem antropocultural por se referir à antiga
fazenda Bom Jardim, em que os ancestrais desses quilombos trabalharam por mais de 70 anos
na condição de negros alforriados (MARQUES, 2009b, 2011). Os quilombolas EBJ e LP e de
Brutos têm uma origem comum, uma vez que descendem de famílias de escravizados do Campo
Nobre e da Serra das Matas que ao serem libertos em 1884, permaneceram trabalhando nessas
terras.
se refere às crenças antropomórficas dos
quilombolas, ao acreditar na transformação de animais em pessoas e de pessoas em animais.
Esses seres encantados, segundo os ancestrais, apareciam na nascente na Serra do Encanto. Os
mais antigos revelam histórias sobre esses seres encantados, que se manifestam na área de uma
nascente fluvial da Serra do Encanto, sendo considerado um espaço sagrado no território
(MARQUES, 2009b). A Figura 12, a seguir, destaca esse espaço sagrado do território EBJ e
LP.
211

Figura 12 Serra do Encanto vista da comunidade Encantados do Bom Jardim

Fonte: Arquivo Neta Quilombola (2022).

Na Serra do Encanto, mostrada na Figura 12, encontra-se o Deserto: uma localidade


em que os ancestrais quilombolas residiram por um período de tempo. Trata-se de uma área
delimitada pelo INCRA como sendo de reserva legal no território. Porém, os que nela residem
não se autodefinem como quilombolas.
Encantados do Bom Jardim , portanto, designa aspectos de natureza físico-
geográfica e antropocultural do grupo quilombola, refletindo seus valores sociais e ideológicos
do período de escravização, seguido da fase abolicionista e da luta pela aquisição das terras dos
ancestrais. E, desse modo, tentam preservar a memória dos antepassados desse grupo
quilombola.
Outro topônimo quilombola é Lagoa das Pedras se refere a um elemento
natural da paisagem que dá nome ao quilombo. Essa lagoa se encontra inserida em uma
superfície rochosa ou afloramento de rocha68, local em que, segundo moradores, havia uma
antiga empresa de mineração e a água foi brotando e ocupando os espaços por entre os blocos
de rochas e a vegetação das caatingas. Esse espaço é utilizado, principalmente, para lazer e
entretenimento no período chuvoso e, segundo os moradores, chega a ter profundidades de até
03 (três) metros. Provavelmente, o Rio Araras é o recurso hídrico que retroalimenta a Lagoa e

68
Esses afloramentos apresentam ausência das camadas de solos erodidos ao longo do tempo pelos intensos
processos de intemperismo físico e químico e exposição de rochas na superfície. São áreas pediplanadas
denominadas de lajedos ou lajedões que apresentam fraturas, em decorrência da exploração mineral e do
intemperismo (BRANDÃO, 2014).
212

entrecorta o território quilombola. Esse é uma das fontes hídricas da Lagoa das Pedras e
abastece outro corpo hídrico que é o açude utilizado para a dessedentação animal na
comunidade. A Figura 13, a seguir, destaca a Lagoa das Pedras, que nomeia a comunidade
quilombola.

Figura 13 Vista da Lagoa das Pedras, Tamboril, Ceará

Fonte: Arquivo da autora (2021).

Esse corpo hídrico, conforme a Figura 13, apresenta superfícies rochosas com uma
vegetação de caatingas arbustivas e espinhentas presentes nas fraturas rochosas. No segundo,
ocorrem exposição de rocha revestidas por vegetação de caatingas de porte médio a arbóreo,
configurando uma das margens da Lagoa das Pedras. Nos períodos chuvosos, a lagoa torna-se
área de lazer utilizada pelos residentes e visitantes do território.
Vale ressaltar, ainda, o topônimo de Brutos que é a sede do território quilombola.
Além dessa, o território abrange as comunidades do Alto dos Benício e da Vila Amaro que
são, com base em Batista (2011), antropônimos por corresponder às denominações de algumas
famílias que iniciaram a ocupação desses espaços no território. E, por fim, o território se estende
até a localidade de Lagoa Grande (Pelado), indicando nesse topônimo a relação do grupo com
os elementos de natureza físico-geográfica e a paisagem daquele espaço.
Os relatórios antropológicos não apontaram as circunstâncias que culminaram no
ato nomeativo de Brutos. Durante as conversas, não identifiquei questionamentos ou críticas
quanto a este nome que constitui uma das marcas do quilombo. No entanto, cabe uma reflexão
sobre essa denominação que, possivelmente, decorre de uma discriminação racial direta, diante
213

desse grupo racialmente identificado a partir de sua ancestralidade africana e afro-brasileira


(ALMEIDA, 2021).
Entendo que a postura preconceituosa e racista de fora do território quilombola
atribui termos pejorativos ou situações enfrentadas pelos quilombolas. A exemplo disso, foram
chamados de os nego de brutos e os nego do Bom Jardim , ambas as expressões constituem
formas de tratamento discriminatórios, a partir da sua marca racial ancestral. Para Nogueira
(1998) e Munanga (2020), todos os tipos de racismo são abomináveis e, no Brasil, o preconceito
racial é enfatizado pela marca racial ancestral ou pela cor, combinado com a miscigenação e a
situação sociocultural dos sujeitos.
Por fim, destaco o topônimo quilombola da Barriguda e o seu significado. Esse
tem origem físico-geográfica ao se referir a uma planta que compõe a paisagem do território e
do semiárido cearense e nordestino. A barriguda ou paineira-branca (Ceiba Giaziovii) é
endêmica do Nordeste, ocorrendo em regiões de caatingas xerófilas.69
Na Figura 14, a seguir, é possível observar a sua fisionomia.

Figura 14 Fisionomia da barriguda ou paineira-branca no semiárido nordestino

Fonte: Associação Caatinga (2020). Disponível em


https://web.facebook.com/associacaocaatinga/photos/a.200310200022232/2908330259220199/. Acesso em: 10
ago. 2022.

69
A vegetação xerófila das caatingas sempre forma um conjunto tropofítico, visualizado através do quadro
fenológico, durante duas estações anuais bem definidas, chamadas de verão (período seco) e inverno (período
chuvoso), com as fisionomias próprias, bem particularizadas. [...] Particulariza-se por ser uma formação xérica,
garranchenta, por vezes com plantas espinhosas, suculentas ou afilas (FERNANDES, 2006).
214

Essa espécie vegetal, destacada na Figura 14, caracteriza-se por chegar até 20
metros de altura e por ter um caule com diâmetro maior do que a base que serve para o acúmulo
de água e de nutrientes no período seco. O seu nome popular é, portanto, devido ao formato do
caule que lembra uma barriga. A Barriguda é uma localidade quilombola de Tamboril que se
encontra na área das Serras Secas, com altitudes de mais de 800 metros e ainda está em processo
de reconhecimento e demarcação territorial.
Segundo a liderança da comunidade, essa árvore que nomeia o quilombo era uma
marca muito presente na paisagem e, ao longo dos anos, devido aos desmatamentos e
queimadas, diminuiu a sua ocorrência. Ao percorrer algumas áreas, não foi possível registrar
essa espécie florística.
Vale destacar, ainda, que o topônimo da Barriguda não possui relação com a
paisagem que é vista na localidade. A partir das conversas, percebi que a origem do nome não
se relaciona à preservação ambiental da espécie florística na área.
De todo modo, a toponímia quilombola destacada aponta uma trajetória, uma
construção identitária e territorial dos quilombolas de Tamboril permeadas por relações de
dominação, tensão, impactos ambientais, racismos e resistências.
A denominação do território de Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras, por
exemplo, reflete, em parte, um passado de escravização e, por outro lado, uma relação com a
ancestralidade, com a natureza e alguns elementos da paisagem.
Ao mesmo tempo, ocorre uma sobreposição de nomenclaturas, tendo em vista que
Bom Jardim é uma localidade do município, ou seja, uma unidade político-administrativa, além
de uma comunidade ou povoado, embora ainda não seja oficializado como distrito. Os distritos
do município são: Carvalho; Holanda; Oliveiras (de origem antroponômica); Boa Esperança;
Curatis; Sucesso e Açudinho (de origem físico-natural).
Diante dessas considerações, entendo que é importante correlacionar a toponímia
tamborilense as presenças negra e quilombola e compreender como esses apagamentos,
silenciamentos e racismos estiveram presentes na trajetória das famílias quilombolas.
Por exemplo, a denominação de Brutos, para uma localidade, ressalta as relações
raciais estabelecidas e, ao mesmo tempo, revela a discriminação e o racismo no ato de nomear
um grupo populacional a partir da sua marca racial e do local em que reside. Portanto, o
preconceito racial e a segregação socioespacial já estavam presentes na vida desses sujeitos
muito antes do reconhecer-se quilombola (CARVALHO, 2020).
215

Penso que outros topônimos, outras representações da ancestralidade e das lutas


pela terra são possíveis diante das realidades, da construção identitária e a partir do
conhecimento sobre as suas origens africanas e afro-brasileiras.
É perceptível que os territórios apresentam relações distintas com a sua construção
identitária diante dos racismos impetrados e sofridos. Além disso, de acordo com as
observações do cotidiano e conversas informais, tornou-se comum o desafio que os mais velhos
possuem no repasse da memória coletiva, da importância da terra e do significado de ser
quilombola no Ceará, as gerações mais jovens residentes no quilombo.
Enxerguei nessas trajetórias e nos nomes dos lugares, as relações entre as
comunidades e os elementos de natureza física. Tal relação me remeteu à cosmovisão africana
das divindades africanas ou encantados que moram e protegem espaços sagrados nos rios,
riachos, lagoas, nas pedreiras e nas matas dos sertões e serras secas.

sagrada onde os elementos da natureza interagem criando a paisagem ancestral do universo que
Neste sentido, as representações
dos orixás Oxum, Xangô, Ossaim e Oxossi se fazem presentes nos elementos físico-naturais
dos territórios quilombolas de Tamboril.
Considero, simbolicamente, que essas divindades se encontram representadas nos
territórios, indicando a força e a resistência herdada de uma ancestralidade africana. O meu
olhar para a presença simbólica de Oxum70, Xangô71, Ossaim72 e Oxossi73 nos territórios, reflete
o que percebo a partir das narrativas quilombolas e seus deslocamentos familiares pelas Serra
das Matas, Serra do Encanto e na Serra da Barriguda, por exemplo. Além das serras secas
sertanejas, percorreram áreas compostas pelas águas doces, por afloramentos rochosos e pela

70
É um orixá iorubano das águas doces, da riqueza, da beleza e do amor. É divindade superior [...], tendo
participado da Criação como provedora das fontes de água doce. É o nome tutelar do rio Óshun que nasce em
Orikí no Oeste nigeriano e pelo principal centro irradiador do culto a este orixá no Sudoeste da Nigéria que é
a cidade de Oshogbo. Os espaços sagrados além d rio são o santuário de Oshun e na cachoeira Erin Ijesha .
(LOPES, 2011, p. 986).
71
É o Grande e poderoso orixá iorubano, senhor do raio, do trovão do fogo, que mora nas pedreiras (...) uma
divindade superior, tendo participado da Criação como controlador da atmosfera. Xangô (Sòngó), filho de
Oraniã e neto de Ogum, nasceu na cidade de Oyó localizada no Sudoeste da Nigéria da qual foi rei (alafim*) e
onde residem seus descendentes . (LOPES, 2011, p. 1353).
72
É o Orixá iorubano das folhas litúrgicas e medicinais. [...] é divindade superior tendo participado da Criação
como formador e organizador do reino vegetal. De acordo com os iorubás, Ossãim vive na mata cerrada .
(LOPES, 2011, p. 982).
73
É o orixá iorubano da caça e dos caçadores e por viver no mato é um conhecedor das plantas que curam e
matam. O caçador é relevante, sendo desbravador por definição, é ele quem descobre o lugar ideal para a
instalação da aldeia que seu povo vai habitar . (LOPES, 2011, p. 986).
216

vegetação de caatingas, os quais são elementos físico-geográficos que compõem as paisagens


e provém o seu sustento a partir do trabalho com a/na Terra.
A primeira divindade que encontrei foi Oxum que, para Machado (2017, p. 61),

Oxum, ao representar também a proteção, beleza, riqueza e a fertilidade, reafirma a relação dos
povos quilombolas com os ciclos anuais de precipitação concentrada em poucos meses e da
escassez de água na maior parte do ano, que são traços do cotidiano semiárido quilombola. De
todo modo, a sua morada e domínio está nas águas doces presentes em lagoas e nos rios que
atravessam os territórios quilombolas, assegurando-lhes a vida, a fertilidade e a proteção.
A segunda divindade encontrada nessas terras foi Xangô, que representa a força, a
justiça, a guerra e a luta que mobiliza. Ele mora nas rochas e nas pedreiras. Encontrei-me com
Xangô no quilombo quando avistei os afloramentos rochosos revestidos por vegetação de
caatingas arbustivas bordejando a Lagoa das Pedras.
A terceira divindade que encontrei no quilombo foi Ossaim, que representa o axé
de cada folha que desperta para o respeito a natureza e a Terra. E a quarta divindade é Oxóssi,
um guerreiro que se camufla, que tem astúcia, que domina e protege as matas (LOPES, 2011).
No próximo tópico, identifico as linhagens familiares que formaram os territórios
quilombolas de Tamboril, os seus deslocamentos do passado, além de processos migratórios
recentes para outros estados e municípios.

4.2.2 Linhagens ancestrais e deslocamentos na formação dos territórios

134).

De acordo com Nascimento (2012), as memórias constituem recordações dos fatos


que permaneceram conservados, tendo em vista o envolvimento e o valor simbólico que
representam para o sujeito e o seu meio coletivo. Se a
do passado que se eternizaram e vivem na consciência coletiva, podemos dizer que na
conceituação da memória coletiva encontra-
As memórias presentes nas narrativas dos entrevistados na pesquisa contribuem
para o entendimento dessa história vivida e, ao mesmo tempo, ressaltam uma segunda marca
217

ancestral dos territórios quilombolas de Tamboril: a sua linhagem familiar e as relações de


parentesco existentes.
Conforme as entrevistas realizadas nos territórios e os relatórios antropológicos de
Marques (2009b, 2011), assim como a pesquisa de Carvalho (2020), identifiquei uma
ancestralidade em comum nos territórios quilombolas sertanejos. Além disso, ocorreram vários
deslocamentos e as relações de parentesco foram sendo estabelecidas entre as próprias matrizes
familiares quilombolas.
Das principais linhagens familiares ancestrais, destacam-se os Possidônio; os Iré;
os Garcia; os Silva; os Martins Chaves e os Souza Vieira, que representam os três territórios
quilombolas destacados na pesquisa.
De acordo com Marques (2009b), Carvalho (2020) e as conversas com quilombolas,
a ancestral mais antiga dos Possidônio é Maria da Conceição, : uma
mulher negra de pele escura escravizada como doméstica na segunda metade do século XIX,
na região de Campo Nobre e Campo Limpo (Tamboril). Ela conquistou a sua liberdade, era
solteira com vários filhos e migrou para várias localidades até chegar às terras em que hoje
residem seus descendentes na comunidade Encantados do Bom Jardim.
Assim, a ancestral mais antiga dos Iré é Maria Simplício de Souza, que viveu na
região das Serras das Matas, Tamboril. Devido à seca, no início do século XX, deslocou-se para
a Praia de Passos (Camocim). Mais tarde, retornou para Tamboril para a localidade de Bom
Princípio e, finalmente para a Serra das Matas. Em 1920, seus descendentes migraram para as
terras em que hoje encontra-se a comunidade Lagoa das Pedras.
Dos Iré com os Possidônio, a partir de alianças matrimoniais formais e informais e
a descendência, formou-se o território quilombola de EBJ e LP que tem uma origem matriarcal
como sendo uma das suas marcas identitárias. Algumas pessoas se consideram descendentes de
antigos escravizados do Campo Nobre e da Serra das Matas, as quais deram origem as demais
gerações. A maioria dos Possidônio assinam com o sobrenome Ferreira dos Santos , enquanto
a maioria dos Iré assina com o sobrenome Ribeiro de Souza . (MARQUES, 2009b).
A descendente Iré mais antiga da família é a dona Luiza, que completou 105 anos,
em 2022 e, junto aos outros 09 (nove) quilombolas, possuem idades acima de 65 anos e residem
nesse território quilombola.
Dos Garcia com os Iré e com os Silva e os Martins Chaves formaram-se as famílias
e a descendência do território quilombola de Brutos. Os seus ancestrais mais antigos foram:
José Garcia da Luz, apelidado de Zé Gracia , além de Maria Manuela do Espírito Santo,
218

apelidada Maria Iré , o José Silva e o Luiz Vieira, apelidado de Zé da Silva , ambos
escravizados nas fazendas das Serras das Matas nas localidades de Jacinto, Por Enquanto,
Morros e Cariri.
O trabalho de Marques (2011) apontou que o Zé Gracia foi escravizado na
Fazenda Bom Jardim e teria migrado, quando liberto, para a Serra das Matas, se estabelecendo
em uma localidade chamada Por Enquanto, o que indica um local de permanência temporária,
mas, segundo os relatos, era de difícil acesso, à época. O outro patriarca, o Zé da Silva ,
constituiu a família Silva na região das Serra das Matas, onde fora escravizado. E, a matriarca
Maria Iré, foi escravizada pelo Coronel Joaquim José de Castro na Serra das Matas e, após
inúmeros deslocamentos, passou a residir na localidade de Morros. Seus descendentes
migraram para os territórios atuais de Encantados do Bom jardim e Lagoa das Pedras e de
Brutos.
A família Martins Chaves se originou na localidade de Cariris, na Serra das Matas.
O patriarca, Luiz Vieira, com sua família, vivia da roça e da caça e a renda era voltada aos
proprietários das terras.
As famílias Garcia, Silva, Iré e Martins Chaves construíram as relações de
parentesco, gerando os seus descendentes, a partir das alianças matrimoniais. Em relação aos
descendentes Iré e os Silva, esses se casaram com os Garcia, gerando um grupo único de
famílias negras aparentadas.
O ajuntamento desses troncos familiares principais aponta um grupo numeroso de
membros que se encontram espalhados por várias localidades de Tamboril, na Microrregião dos
Sertões de Crateús e em outros Estados do Brasil (MARQUES, 2011). No território quilombola
de Brutos, dos moradores mais antigos, cerca de 08 (oito) apresentam idades acima de 65 anos.
A linhagem familiar da Barriguda está em sua 6ª (sexta) geração. Uma destas
origens foi apresentada pela liderança da comunidade como sendo a família dos Souza Vieira
que vive, uma parte dela, na sede do município, e a outra parte, na área rural em que se localiza
a sede do território quilombola da Barriguda.
Os Souza Vieira consideram-se, portanto, descendentes de escravizados e
remanescentes de quilombos. Conforme a liderança da comunidade, sua bisavó materna fugiu
da senzala de uma das fazendas da região para não sofrer violência e, assim, formou a sua
família e o território. Desse modo, o processo de remontar as origens foi iniciado por um de
seus fundadores, conhecido como Antônio Cícero, que veio a falecer no ano de 2020 de Sars-
Covid-2. Portanto, esse processo encontra-se em fase inicial pelos demais quilombolas.
219

De antemão, a origem desse grupo quilombola é matriarcal, sendo que as demais


linhagens familiares, ainda não identificadas, do território, vieram de Monsenhor Tabosa, o que
poderá indicar relações de parentesco e a presença de familiares para além das fronteiras de
Tamboril. No território quilombola da Barriguda, residem cerca 03 (três) pessoas que possuem
idades acima de 65 anos: são esses os guardiões da memória a ser revelada, divulgada e
apreendida.
A tentativa de reconstituição da linhagem familiar possibilitou a compreensão da
ancestralidade quilombola, o entendimento da memória coletiva e a valorização de trajetórias
negras de gerações passadas e atuais.
Percebi que as famílias foram sendo formadas a partir de casamentos de membros
do mesmo grupo, ou seja, endogâmicos (Iré e Possidônios), ou ainda a partir da interrelação
genética entre as famílias descendentes de ex-escravizados que viveram na região (Os Garcia,
os Iré e os Silva). Acredito que esse fato é uma marca do preconceito e até de certo isolamento,
visto que nessas famílias os casamentos com pessoas de fora do grupo, ou seja, exogâmicos, só
ocorreram recentemente. Portanto, identifico que as linhagens ancestrais quilombolas de
Tamboril se baseiam em relações de parentesco consanguíneo (de ascendência comum) e laços
de parentesco social (de ascendência distinta) (MARQUES, 2011).
Com base nessa síntese das linhagens ancestrais quilombolas, nos deslocamentos
forçados, nas condições de trabalho e na luta pelo reconhecimento enquanto remanescente de
quilombo têm-se as narrativas a seguir:

Lá onde se reunia mais coronéis entendeu, era uma fazenda. E meu pai é da Bahia, ele
veio para o Ceará tangendo o lote de gado para o coronel Sales, o Zé Sales, ai ele
conheceu minha mãe em Campo Nobre e casou. Eu cheguei aqui em 1967, em
setembro de 1967. Eu tinha 16 anos vim com minhas filhas e eu comecei a morar com
a minha cunhada que cedeu um quarto aqui, a gente era de longe e ela deu um quarto
para morar aqui ela me abrigou, me deu abrigo eu, meu esposo e minhas duas filhas.
[...] Ai foi no Deserto onde nasceu nossa comunidade lá no Deserto em 1964 a 1973
nessa localidade era nossa comunidade somos filhos de lá. (Maria de Fátima dos
Santos Ribeiro, negra, 59 anos, Encantados do Bom Jardim, 2021).74

Estamos na 5a e 6a geração da família. O papai e a mamãe nasceram nesse território e


são primos. Em 1986 morávamos todos juntos mas era insuficiente, conseguimos um
terreno depois de um conflito. Mas as juventudes se afastam e migram para outros
estados. Eu tenho duas filhas em São Paulo. De 09 (nove) irmãos, eu fui a única que
quis estudar, não me acomodei e vim para a sede do município. No meu Ensino Médio
engravidei e parei de estudar. Em 1997 retornei e terminei. Em 2006 conclui a
graduação e estou na segunda pós-graduação. A minha alfabetização se deu pelo

74
Entrevista realizada de modo presencial, no dia 23 de jun. de 2022, na Comunidade de Encantados do Bom
Jardim, Tamboril, Ceará.
220

trabalho de minha tia pois não tínhamos escola. (Erinete dos Santos Oliveira, negra,
49 anos, Encantados do Bom Jardim, 2021).75

A linhagem familiar da Tia Fátima indica que a sua origem paterna é baiana e a sua
origem materna é cearense compondo, assim, a sua ancestralidade. Possivelmente, o seu pai
fazia parte de um elevado contingente de homens negros e livres que buscava nos sertões a sua
sobrevivência. Essa narrativa evidencia uma presença negra oriunda de outras Províncias nos
sertões do Ceará (MARQUES, 2011). É fato que a sua mãe estava subordinada às ordens do
citado Coronel Zé Sales e, a partir da chegada de seu pai, formou-se a família dos Ferreira dos
Santos nos sertões tamborilenses. Um de seus parentes direto é a liderança da comunidade e
do movimento socioterritorial no Ceará, conhecido como Renato Ferreira do Santos, que é
apelidado de Renato baiano , o que reforça a origem baiana de uma parte da família citada.
A linhagem familiar de Neta Quilombola, que é de outra geração, resultou da união
matrimonial endogâmica, ou seja, do vínculo consanguíneo de seus pais que são primos de 1º
grau, ambos nascidos em Tamboril no Ceará. Formou-se, então, uma família de 10 (dez) filhos
que residiram juntos por um determinado período e, posteriormente, as condições precárias de
sobrevivência impulsionaram a separação dos parentes com os diversos deslocamentos das
pessoas mais jovens.
Tia Fátima revela os traços da dominação e do poder exercido pelos coronéis
quando dizem, respectivamente , e Neta Quilombola diz
. A menção ao
resulta, portanto, de relações de poder estabelecidas desde o século XIX com os seus ancestrais
invisibilizados, chegando ao século XX na tentativa de estigmatizar e oprimir os descendentes
do povo negro.
Neta Quilombola ressaltou a negação do direto à Educação em sua comunidade, o
que promoveu o seu deslocamento. Além disso, os seus estudos foram tardios devido à
formação do seu núcleo familiar e a criação de suas filhas. Acredito que esses deslocamentos,
quando realizados com fins educacionais, tendem a fortalecer as territorialidades quilombolas.
A exemplo disso, Neta Quilombola é graduada e pós-graduada e atua na área da Educação
Escolar Quilombola.
Em sua trajetória, os deslocamentos ocorreram da zona rural do município para a
sede em busca de acesso à Educação. E, na trajetória das suas filhas, o deslocamento ocorreu

75
Entrevista realizada de modo virtual/remoto, no dia 14 mar. 2021, via Google Meet.
221

da zona rural de Tamboril para grandes centros urbanos da Região Sudeste, tendo como
principal motivação a busca por melhores condições de vida.
As entrevistadas expõem a exclusão e as discriminações vivenciadas na trajetória
das famílias quilombolas. Perceber o quanto o racismo é histórico e político na sociedade deve
ser uma ação coletiva e de combate, à medida que não se pode permitir mais que existam
que, direta ou indiretamente, grupos racialmente identificados sejam
discr 22).
Dessa forma, as resistências e os enfrentamentos ocorrem dentro e fora do território,
tendo como desdobramento processos de desterritorialização e reterritorialização dos povos
quilombolas.
Essas narrativas despontam que além do deslocamento forçado transatlântico,
outros tipos de deslocamentos como forma de resistir a opressão e a buscar melhores condições
de sobrevivência são praticados.
foi um traço marcante para inúmeras famílias de libertos nas primeiras décadas do século XX.
Através de arranjos de moradias, trabalho e parceria, as primeiras gerações de libertos tentavam
A luta coletiva é contínua após a abolição contra
os patrões exploradores da força de trabalho dos povos libertos que permaneceram naquelas
terras com suas famílias.
As dificuldades enfrentadas pelos mais antigos moradores dos quilombos
ocorreram nos deslocamentos do passado para as localidades de Campo Nobre e Deserto. As
entrevistadas relatam os deslocamentos das bisavós e dos bisavôs. Mas, desconhecem o
deslocamento de origens afrodiaspóricas dos antepassados. Por fim, identifiquei deslocamentos
recentes que atravessaram as gerações e interferem nas relações familiares entre quem reside
dentro e fora do quilombo.
Remeto-me ao contexto do pós-abolição e aos primeiros anos do Século XX, para
justificar alguns aspectos desses deslocamentos. O cenário nordestino era composto por
relações paternalistas entre proprietários de terras e as famílias que antes eram escravizadas e
passaram a configurar trabalhadores assalariados, uma parte permanece e produz nas terras e a
outra parte migra para outras localidades.
Essa herança ancestral da diáspora africana nos sertões de Tamboril compõe a
trajetória das famílias quilombolas.
brasileiro foi às custas da desterritorialização, reterritorialização de inúmeros indígenas,
46). Na formação do
222

território cearense e tamborilense são inúmeros os processos que forçaram os deslocamentos


das famílias quilombolas.
Esses processos ocorreram recentemente, devido à concentração fundiária,
disponibilidade de força de trabalho de baixo curso e a desigualdade racial e socioeconômica
sustentadas pelas relações de poder estabelecidas e projetadas nesse espaço (HAESBAERT,
2011; CARVALHO, 2020).
Esse movimento de abandono do território é o ato de desterritorializar-se. Esses
sujeitos migrantes buscam nesse processo contínuo, sobretudo, oportunidade de trabalho e
renda e a consequente melhoria das suas condições de vida.
Trata-se de uma situação de desterritorialização cotidiana à medida que esse fluxo
populacional se desloca, ou seja, se abandona, mas não se destrói o território abandonado. Ao
passo que essa saída do campo para os grandes centros urbanos ocorre, esses sujeitos buscam
construir outros territórios e rotinas como a do trabalho, por exemplo, buscam reterritorializar-
se exercendo suas atividades e construindo relações nesse novo espaço, nesse novo território
que reproduz o seu modo de vida urbano.
A desterritorialização quilombola ocasiona a ruptura do vínculo territorial, mas não
do parentesco familiar. Ao mesmo tempo, forja uma identidade negra fora do quilombo com
lutas e desafios cotidianos.
A seguir, a Tabela 3 apresenta uma síntese dos quilombolas de Tamboril que
passaram ou estão em processo de desterritorialização e reterritorialização:

Tabela 3 Quilombolas em processo de desterritorialização e reterritorialização


Destino Território de origem
EBJ e LP Brutos Barriguda
Fortaleza 04 02 -
Piauí - 02 01
São Paulo ou 146 11 03
Rio de Janeiro
Brasília - 01 -
Total 150 16 03
Fonte: Dados da autora, 2021.

Conforme a Tabela 3, percebo que os estados da região Sudeste constituem o polo


de atração do povo quilombola, tendo em vista uma migração de 150 pessoas que saíram do
Território Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras, cerca de 11(onze) pessoas saíram de
Brutos e 03 (três) pessoas saíram da Barriguda em direção a cidade de São Paulo e 01(uma)
223

pessoa no Estado do Piauí. Por fim, os dados apontaram que um total de 169 pessoas,
atualmente, residem fora dos territórios quilombolas de Tamboril enfrentando processos de
desterritorialização e reterritorialização.
Daquelas (es) pessoas que migraram do território Encantados do Bom Jardim e
Lagoa das Pedras para os grandes centros urbanos totalizam cerca de 150 quilombolas, que
residem, principalmente, em São Paulo e Rio de Janeiro e Fortaleza.
No território de Brutos, uma das irmãs da liderança migrou para a cidade do Rio de
Janeiro, desde os anos de 1990 e constituiu sua família longe do quilombo. Conforme Marques
(2011), a família dos Garcia encontra-se espalhada pelo mundo todo. Cerca de 02 (duas) pessoas
nas cidades de Piripiri e Capitão de Campos no Piauí, 01(uma) pessoa em Brasília, além de 10
(dez), em São Paulo.
Além dessas, outras 02 (duas) pessoas que são parentes das demais famílias
quilombolas vivem em Fortaleza. Na Barriguda, identifiquei cerca de 03 (três) pessoas que
migraram, recentemente, para São Paulo.
Pensando no contexto
aquela com o menor acesso à terra e piores condições de produção e vida no campo
condições adversas do passado e do presente geraram esses deslocamentos destacados. Em se
tratando do mapa da pobreza e da desigualdade do contexto municipal, Carvalho (2020)
apontou que a incidência da pobreza é de 52,73% e o grau de concentração de renda do
município, de acordo com o índice de GINI, é de 0,40. Essa realidade permeia o cotidiano e a
trajetória das famílias quilombolas pesquisadas.
A busca por melhorias socioeconômicas de vida compreende o principal motivo da
migração, ou seja, da saída do campo em direção aos grandes centros urbanos, conforme os
relatos e os dados apresentados. Outros motivos desses deslocamentos, segundo as narrativas,
são para dar continuidade aos estudos ou ainda para tratamento de saúde.
Desse modo, os deslocamentos antigos e atuais que permeiam as trajetórias das
famílias quilombolas têm relação com um empobrecimento e com a manutenção da pobreza
desse grupo populacional ao longo dos séculos. Assim como é um reflexo da ausência de
Políticas Públicas que garantam o seu acesso à Saúde, à Educação, ao Emprego e Renda, à
Cultura, entre outros.
Baseada em fontes documentais e nas escutas, foi possível destacar, na formação
dos territórios quilombolas de Tamboril, a importância das toponímias quilombolas para
reafirmar o território; das linhagens ancestrais que constituem troncos familiares diversos e
224

multirraciais e os seus deslocamentos pelas fazendas em busca de trabalho, o que ampliou os


graus de parentesco desses grupos e elevou a realização de matrimônios, principalmente, entre
primos da mesma geração e destacadas no tópico anterior. Na trajetória recente, as famílias
quilombolas continuam se deslocando e realizando processos contínuos de desterritorialização
e reterritorialização nos grandes centros urbanos, ora destacados, os quais interferem no seu
pertencimento na sua identidade territorial quilombola.

4.2.3 A Terra-Território: lutas, modos de ser e existir quilombola

[...] a resistência como ato político está presente no corpo e nos signos
82).

A palavra território, ou territorium em latim, deriva diretamente do vocábulo latino


Terra. Nessa perspectiva, a terra e o território são sinônimos. O território é considerado aquele
-
-território é compreendida a
partir de uma dimensão simbólico-cultural materializada e circunscrita pela trajetória e espaço
vivido de um grupo (HAESBAERT, 2011). Ao mesmo tempo, as relações sociais de poder
possibilitam enxergar a terra-território segundo a dimensão política, na qual os limites e as
fronteiras materiais e simbólicas são questionadas, ressignificadas e redefinidas, a partir da luta
coletiva dos povos quilombolas.
Segundo Malcher (2017, p. 160):

[...] a terra é um recurso social, meio de sobrevivência, de reprodução da vida. Dessa


forma, a territorialidade é o elemento de construção da identidade territorial
quilombola. As formas de acesso à terra, incluem as dimensões materiais e imateriais,
onde a estreita relação do grupo representa uma relação complexa e aponta para a
existência da terra como território.

Com base nessa concepção materialista, discuto as resistências e as formas de uso


e ocupação da comunidade quilombola da terra-território, enquanto pilares dos seus modos ser
e existir, ou seja, da sua territorialidade que reproduz as vidas quilombola e sertaneja.
A terra é um bem material, possui valor de uso e ainda do ponto de vista da sua
função jurídico-normativa, ela representa o chão que garante a permanência de costumes
ancestrais e contemporâneos de um povo tradicional.
225

Percebo o quanto essa base material da vida integra e reflete a comunidade


quilombola, considerada aqui enquanto força ancestral negra e coletiva. De acordo com
Carvalho (2020), a terra sempre esteve presente como centralidade na história das comunidades
quilombolas de Tamboril, do Ceará e do Brasil.
Embora a posse da Terra seja essencial ao modo de ser e existir quilombola, de
acordo com Girardi (2022, p.
legalização dos territórios quilombolas, determinadas pela Constituição Federal de 1988, e que
Os contextos municipais e regionais aqui destacados refletem os
regimes desiguais de uso e ocupação da terra desde o instrumento da Carta de Sesmaria, que
era uma concessão gratuita das terras, passando pela Lei de Terras que proibia novas concessões
e instaurou aquisição da terra por meio da compra, até o momento atual. As fazendas instaladas
ao longo dos séculos, conforme destacado anunciam a elevada concentração da terra e, por
consequência, da renda da terra nas mãos de uma elite coronelista que se perpetua em seus
descendentes.
Tomando o território como uma projeção das relações de poder (SOUZA, 2013), as
fronteiras e os limites físicos e simbólicos que marcam a delimitação dos territórios quilombolas
resultam dos conflitos e tensionamentos travados entre as famílias quilombolas que trabalharam
como escravizados e, posteriormente, como assalariados e os proprietários de terras que visam
o lucro, a opressão e a exclusão social desses grupos.
No sentido do fortalecimento identitário para a superação dessas desigualdades e
na busca pela garantia dos direitos territoriais, Silva (2016) indica que praticar Ubuntu é ter a
atitude de humanidade que temos e devemos compartilhar, valorizar e saber porque eu só sou,
porque nós somos. O que une as comunidades quilombolas na luta pela Terra é a exclusão que
vivenciam desde a colonização, peculiar às classes trabalhadoras, no interior da luta de classes
(PEDON, 2013).
Portanto, avistar a relação dos quilombolas com a terra-território perpassa pela
resistência ancestral desses no enfrentamento histórico aos poderes branco, cristão e coronelista
fincado nas terras tamborilenses.
Corroborando com Pinheiro (2022), há uma dialética presente nos territórios em
que interesses contraditórios de diversos grupos no uso 3da terra-território produzem conflitos,
lutas e tensões. Vale ressaltar um registro dessa tensão enfrentada pelas famílias Possidônio e
Iré, nos anos de 1980:
226

Meu pai criou nós trabalhando no alugado que era na diária. Uns três dias na semana
a gente trabalhava para o Coronel Veras nosso patrão. Até que o velho resolver doar
as terras pra gente por volta de 80. Quando tava tudo certo ele morreu e deixou como
procuradora a filha Antonieta Veras que fez muita ruindade com a gente. Ela doou a
terra que não tinha nada e tivemos que pisar firme e formamos a nossa Associação
que sou o tesoureiro até hoje compramos e trabalhamo nela. O Padre Heleno deu uma
força para nós para enfrentar as brigas com ela. Um dia ela queria botar o gado na
terra que a gente plantou algodão, ela queria ver a gente sem nada. Nós resistimos,
teve muita dissuasão ela disse um monte de nome com a gente. Tivemos que arranjar
uma pessoa nossa de Tamboril para comprar o outro terreno porque para gente ela não
vendia. Isso tudo demorou 10 anos para se resolver. (José Firmino de Oliveira, 74
anos, negro, Encantados do Bom Jardim).76

Conforme a narrativa, as famílias dedicaram suas vidas ao trabalho nas terras do


patrão que lhes prometeu em vida a doação de uma parte da propriedade. Com a sua morte, o
conflito se iniciou entre a comunidade Encantados do Bom Jardim com a herdeira do Coronel
que se negava a reconhecer a vontade de seu pai e por 10 (dez) anos perseguiu e humilhou as
famílias quilombolas.
O primeiro ato de rebeldia dos trabalhadores quilombolas ocorreu na defesa de suas
terras para que essas não virassem pasto para essa herdeira algoz, implicando, assim, em um
conflito de terra mais grave. Sobre esse assunto, Prestes (2004, p. 34) afirma que, ao longo do
século XX,
dos proprietários, o que incluía um pedaço de terra para a agricultura de subsistência, uma

A rebeldia diante dessas condições impostas historicamente é representada,


portanto, pelo fato de as famílias ocuparem terras das antigas fazendas e se mobilizarem em
defesa da demarcação e da regularização fundiária do território. A articulação e as parcerias
foram sendo estabelecidas pelas comunidades com a criação da Associação, com o trabalho
educativo realizado pela Igreja.
Mediante a aliança e o apoio de pessoas não-quilombolas, como o Padre e uma
senhora amiga da família que reside em Tamboril, a compra de um terreno foi efetivada. São
terras que correspondem à comunidade Lagoa das Pedras e, em seguida, ampliou-se a área com
a doação pela herdeira do Coronel das terras de Encantados do Bom Jardim, as quais se
encontram, hoje, demarcadas como remanescentes de antigos quilombos. Portanto, há uma
relação estreita entre uso, poder e território. (PINHEIRO, 2022, p. 56). Nesse sentido, é o
controle ou o poder do grupo quilombola que dinamizará os usos da terra-território reconhecida,
delimitada e titulada.

76
Entrevista realizada no dia 26 jun.2021, em Tamboril, Ceará.
227

Ao encruzar o surgimento das vilas coloniais cearenses e a presença negra com a


formação desses territórios quilombolas, entendo que as antigas fazendas se tornaram núcleo
inicial da formação territorial quilombola nos sertões de Tamboril rompendo, portanto, com a
usurpação de terras por posseiros, grileiros e poucos homens brancos frente a um cenário
excludente de uma maioria negra e pobre de pequenos posseiros, camponeses e sem-terra.
Trata-se de um redesenho espacial de modos de se relacionar com a terra-território.
As relações de poder imbricadas nesse território redesenham um outro sentido dado
pelas comunidades quilombolas. O território circunscrito incorre para refletir um poder não
opressor, mas que componha um método de garantia dos direitos quilombolas. Baseada em
Carvalho (2020), defendo uma concepção de território quilombola em que o poder se expressa
na maneira de lutar, de ser e de existir nos quilombos. Os territórios de Tamboril que,
atualmente, encontram-se demarcados garantirão, sobretudo, autonomia à reprodução das vidas
econômica, cultural, educacional e religiosa das famílias.
Girardi (2022) complementa que as lutas constantes dos movimentos negro e
quilombola pela autonomia e pelo uso social da terra-território não significam adquirir um bem
para a exploração e a lucratividade individual, mas sim para a liberdade da produção coletiva,
ou seja, voltada à subsistência com dignidade e soberania que garanta a alimentação das
comunidades quilombolas.
A terra-território quilombola está, portanto, imbricada de territorialidade, uma
marca ancestral de povos quilombolas, tendo em vista que a existência quilombola é atravessada
pelas formas de reprodução dos seus modos de vida, ou seja, da sua territorialidade. Portanto,
além da toponímia, das linhagens familiares, a relação com a terra-território-territorialidade é
um marcador das africanidades do/no quilombo.
Em termos de lutas quilombolas, embora tentem silenciar e apagar as contribuições
dos povos africanos e afro-brasileiros na formação socioterritorial de Tamboril, é importante
não perder de vista que os quilombos desse município resistiram, buscaram o seu pertencimento
e desempenham papel relevante e estratégico para a articulação política de uma frente de luta
coletiva no Ceará.
O território, portanto, representa uma forma de apropriação da Terra
(territorialização) e enseja as identidades camponesa e quilombola (territorialidade), em
constante transformação e luta por direitos de Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras,
de brutos e da Barriguda. Assim, reflete os limites, as fronteiras, as pertenças, as heranças, os
parentescos, as lutas e as contradições sociais vivenciadas.
228

É preciso ressaltar a influência Católica, com suas ambiguidades históricas diante


de povos negros, que atravessou e atravessa a trajetória desses povos como sendo um reflexo
da gênese dos movimentos negro e quilombola no Ceará. Tomei como base o fato de que essa
instituição conduziu diretamente processos educacionais de algumas famílias ao longo dos anos
de 1970, no quilombo Encantados do Bom Jardim. Conforme o relato de uma das primeiras
educadoras da comunidade:

Nessa época eu comecei me engajar na comunidade. A gente fazia o MOBRAl e o


Padre Heleno foi sentindo a necessidade de alfabetizar. Eu já tinha feito a minha 5ª
série e ele perguntou se eu queria. Daí começamos. O Padre Heleno colocou a Rosa
como professora da família Calixto e eu aqui no Bom Jardim. Nessa época a gente
recebia por mês eu nem sei quanto era (risos) não sei se era centavos, ou era cruzeiro
era uma coisa assim ai a gente ensinava e quando era no final do mês o padre Heleno
chamava e a paroquia repassava. Toda vida o lado religioso e sindical aqui funcionou
muito forte. Padre Heleno sempre se preocupou com os nossos direitos. Temos um
salão paroquial na comunidade e recebermos o jornal para as celebrações. (Maria de
Fátima, 68 anos, negra, Encantados do Bom Jardim, Ceará, 2021).77

O Padre Heleno exercia suas funções em Tamboril que integra a Diocese de Crateús
e que teve como bispo Dom Fragoso, no período de 1964 a 1998, ou seja, foram 38 anos de
bispado com influências da Teologia da Libertação na Igreja. As ações desses missionários

p.131).
A entrevistada é conhecida por Tia Fátima pelos moradores. Ela é a educadora mais
antiga do território quilombola Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras. De acordo com
a sua atuação educativa e de pastoral, pode ser considerada uma agente pastoral negra nessas
terras quilombolas. Segundo ela, foi a vida toda catequista e animadora na Igreja.
A jornada dessa mulher, negra, católica e educadora iniciou-se no ano de 1977,
quando chegou aquele município, ou seja, na mesma década em que ocorriam fortes influências
cristãs no movimento negro e, também, nos territórios quilombolas. O Padre Heleno, nesse
contexto, foi uma referência no território e um agente de transformação desse, incentivando o
trabalho educacional e apoiando a mobilização quilombola para a reafirmação das suas
identidades e origens.
Essa militância cristã, junto aos povos do campo, decorre do chamamento religioso
para a obediência cristã aos princípios da justiça e da destinação universal dos bens. Para a

77
Entrevista realizada em 26 jun. 2021, em Tamboril, Ceará.
229

Igreja, a concentração da propriedade de terra é um escândalo e fere a vontade de Deus. A Terra,


portanto, é de todos e deve ser usada por todos (BRASIL, 2014)
O fortalecimento quilombola durante a busca de sua história e do seu
reconhecimento foi um processo contínuo que abrangeu a atuação de outras figuras religiosas:

A gente era muito massacrado lá, o pessoal sofria muito a Zeza fez a história que
ajudou no relatório antropológico seu Zé da Guia a conseguir toda a história ai na
igreja a gente conseguiu do Padre Geu, eu tenho guardado os registro era mais Ferreira
dos Santos, era duas famílias, tem muitas pessoas como Ferreira do Santos que é nossa
família, a gente nessa luta, foi construindo nossa história, a gente não vai dizer que foi
fácil nem está sendo fácil [...].(Maria de Fátima dos Santos Ribeiro, negra, 68 anos,
Encantados do Bom Jardim, 2021).78

Esse momento desenha, no início de 2004, a construção do relatório antropológico


do território pelo seu Zé da Guia, que é o antropólogo do INCRA, conhecido como José da
Guia Marques. Nesse cenário, também é citada outra figura religiosa que participou do processo
denominado Padre Géu, que é Jefferson Carneiro da Silva, sacerdote que atuava na região.
No território de Brutos, a mobilização pela autodefinição enquanto remanescente
de quilombo, ocorreu a partir de uma guardiã da memória, de uma religiosa e da parceria com
uma professora pesquisadora, conforme a narrativa a seguir:

[...] eu comecei a me interessar pelo trabalho na comunidade, a gente começou


fazendo celebrações, a gente tinha um celebrante na comunidade, a gente
acompanhava ele a gente começou nas casa das famílias, e tinha uma pessoa que
chegou na comunidade, e conversou com uma moradora, a dona Luci, que é uma das
moradoras mais velhas da comunidade também e começou a pesquisar a História da
comunidade, né? A gente não tinha, a gente nunca levantou o interesse em saber as
origens né, em saber as famílias que moravam aqui. A Sabina é o nome dela que é
professora. Ela começou a conversar e descobriu que a gente tinha uma ancestralidade
que a gente tinha família da gente que já tinha sido escravos né, aí ela convidou a
gente pra trabalhar a História da comunidade né. Ai chegou uma irmã da igreja a irmã
Irene. A irmã Irene foi uma força muito grande, ai a gente começou a juntar os jovens
da comunidade, com as pessoas, a gente começou a fazer reuniões na comunidade
fazendo um levantamento da História de cada família de onde tinha vindo né? (Ana
da Silva Moreira, negra, 40 anos, Brutos, 2021).79

Essa narrativa é de uma mulher negra, ativista que iniciou seu engajamento nos
anos 2000, em seu território. No quilombo, a mobilização inicial ocorreu a partir da guardiã das
vivências, conhecida como Dona Luci. Além dela, uma professora chamada Sabina, que é de
Tamboril, estudava em Fortaleza e visitou a comunidade em 2004 para pesquisar sobre as

78
Entrevista realizada de modo presencial, no dia 22 de jun. de 2022, na Comunidade de Encantados do Bom
Jardim, Tamboril, Ceará.
79
Entrevista realizada de modo presencial, no dia 22 de Jun. de 2022, na Comunidade de Brutos, Tamboril,
Ceará.
230

origens das famílias. Essa pesquisadora, conforme o relato, foi uma das primeiras pessoas a
abordar a ancestralidade e o pertencimento negro e quilombola.
A Irmã Irene era de origem alemã e atuava na Paróquia de Tamboril. A religiosa
iniciou, no ano de 2003, um trabalho religioso no território de Brutos que incentivava a reflexão
sobre as condições de vida, a busca por direitos, a História e a trajetória das famílias do
quilombo.
O processo de mobilização em Brutos é um processo recente e contínuo que
valoriza os aspectos da memória coletiva, conforme citado, ocorreu a guardiã da memória é a
dona Luci, além das juventudes quilombolas.
Na Barriguda, percebi que a liderança possui uma relação com os membros da
CERQUICE e com liderança do quilombo de Torres, o que influenciou as organizações social
e política dessa comunidade na busca pelo reconhecimento como remanescente de quilombo.
Desse modo, se inseri no mapeamento das comunidades e desenvolve os projetos federais e
estaduais que chegam à comunidade e participa das mobilizações do sindicato dos produtores
rurais de Tamboril.
Vale ressaltar o papel ambíguo da Igreja Católica na questão racial do Ceará. Ora
contribui para a escravização e a repressão da religiosidade de matriz africana, conforme
destacado no capítulo anterior, ora exerce sua influência na gênese da organização social e
política do movimento negro cearense, nos anos e 1980 e na mobilização quilombola, nos anos
2000.
Em Tamboril, essa influência cristã, ao longo dos tempos, é uma marca dos
territórios quilombolas. Identifiquei um oratório em Brutos em homenagem a nossa Senhora de
Fátima, às margens da CE-176. No Encantados do Bom Jardim há um salão paroquial e alguns
terrenos, ambos utilizados para celebrações religiosas. É, portanto, a religiosidade católica e
cristã que predomina nos quilombos tamborilenses e o padroeiro dos territórios quilombolas é
Santo Antônio, sendo que a sua celebração ou festa ocorre uma vez por ano, especificamente,
no mês de Junho.
Em relação às organizações social e política dos territórios quilombolas, Carvalho
(2020, p. 21), destaca que:

[...] pode se identificar o resgate cultural e histórico das comunidades e a conquista


política e econômica da terra do ponto de vista da reparação histórica e social do
Estado, como sendo dois aspectos fundamentais no fortalecimento da resistência
negra no campo. E uma das transformações da realidade dos territórios é a criação de
coletivos dos moradores que, de forma organizada politicamente, se articulam para
pleitear e garantir direitos.
231

Essa articulação social e política por direitos possibilitou a criação das associações
de moradores. A associação nos territórios é composta pelos cargos de presidência, tesoureiro,
suplente, entre outros. Os mecanismos de discussão coletiva, a escolha de lideranças ou
representantes e o encaminhamento das demandas compõem o cotidiano da mobilização social
e política nos territórios quilombolas. Portanto, a luta quilombola busca romper ciclos de
desigualdade racial e social, bem como de acesso à terra, decorrentes das relações de poder no
município, na microrregião e no Ceará.
A articulação quilombola foi iniciada no final da década de 1970 e início da década
de 1980, sob influência da Igreja Católica e mediante processos educativos. Inicialmente,
membros da Igreja contribuíram para o processo de autodefinição das comunidades
quilombolas em Tamboril.
No segundo momento, no século XXI, foram criadas as associações de moradores
e a comissão estadual pela luta quilombola no Ceará que juntamente com a CONAQ, em âmbito
nacional, integram a rede de mobilização dos diversos territórios e suas respectivas
reinvindicações junto aos poderes Público Estadual e Federal.
As primeiras reuniões em torno da mobilização quilombola no Ceará, resultaram na
criação da CERQUICE. O surgimento dessa comissão estadual ocorreu no ano de 2005, no II
Encontro Estadual dos Quilombolas Rurais do Ceará, realizado no território Encantados do
Bom Jardim e Lagoa das Pedras, mediante votação das representações quilombolas presentes.
Nessa ocasião, foram escolhidos membros dos diversos territórios para integrá-la, tendo como
coordenador o senhor Renato Ferreira dos Santos, que reside no território que sediou o encontro.
Em 2008, no território de Brutos, ocorreu o VI Encontro Estadual das Comunidades
Quilombolas do Ceará com a participação de 94 pessoas de 11 (onze) territórios. No VII
Encontro Estadual das Comunidades Quilombolas do Ceará em 2009, realizado na localidade
de Lagoa das Pedras, a participação foi de 40 pessoas de 08 (oito) territórios (CARVALHO,
2020).
Essa mobilização desponta por meio do enfrentamento e da resistência das famílias
quilombolas e dos seus descendentes, reafirmando direitos conquistados frente aos interesses
das classes hegemônicas. De acordo com Girardi (2022
os negros são sistematicamente tolhidos do acesso à terra, [...] nada foi feito para que os negros
tivessem o acesso a ela, salvo o caso do reconhecimento das terras quilombolas previsto na
. Esse é o início de uma política nacional focada no povo quilombola,
com a regularização fundiária dos territórios quilombolas.
232

É correto afirmar que, na formação do território quilombola, ocorreram tentativas


de silenciamentos e apagamentos dos povos. Por outro lado, ocorreram lutas pelo
reconhecimento e pela posse da terra-território com a autodefinição quilombola e os laços de
parentesco estabelecidos, independentemente de sua origem racial. A autodefinição foi um dos
principais processos que resultaram na identificação dos povos negros no campo. Essa
invisibilidade se faz presente, também, nos Censos Agropecuários, que somente no ano de
2017, levantou dados sobre a raça do produtor, o que permite enxergar a questão racial no
campo. No que se refere aos produtores agropecuários brasileiros, m 52,3%,
, 2022, p. 19).
Embora os negros sejam a maioria dos produtores, não se pode esperar um percentual
significativo de quilombolas representando pequenos produtores rurais no Brasil, tampouco, no
Ceará, tendo em vista os entraves políticos que imperam o acesso à terra pelos povos do
quilombo.
A delimitação dos territórios é fruto de processos distintos na aquisição das terras.
Identifiquei uma parcela que foi adquirida aos poucos por meio da compra financiada com o
crédito rural, enquanto outra parte foi negociada por concessão ou herança dos antigos
fazendeiros; por fim, há as terras incluídas no processo de delimitação por força de Lei que, a
partir do autoreconhecimento quilombola da FCP, o INCRA demarcou o território e
encaminhou o processo de regularização fundiária.
Percebi que grande parte das terras foram conquistadas de forma não violenta, mas
sim com a permanência e a negociação de compra, a partir do acesso aos direitos estabelecidos
na execução da Política Pública voltada aos povos quilombolas no Brasil. Esses territórios
quilombolas transpõem, de acordo com Malcher (2017, p rica e
constrói o direito de nela estar e nela permanecer, manifestada na luta pela permanência do
território, que neste caso, é uma conformação territorial protagonizada por coletividades

Em relação às territorialidades quilombolas do município de Tamboril, somente em


2006, Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras obtiveram o seu reconhecimento e
certificação pela FCP. Mais tarde, no ano de 2007, foi reconhecido e certificado o território de
Brutos (CHAVES, 2013; MARQUES, 2009b; MARQUES, 2011). Atualmente, o território
quilombola da Barriguda encontra-se em processo de reconhecimento.
É preciso entender que a regularização fundiária quilombola:
233

[...] não se trata de distribuir lotes individuais de terra a membros das comunidades
quilombolas, mas de se reconhecer a propriedade coletiva de um território de uso e
ocupação tradicional, que seja capas de assegurar a reprodução física, social, cultural
e econômica e cultural das gerações presentes e futuras. (MARQUES, 2011, p. 16).

Os territórios de Tamboril tiveram seu RTDI finalizado e publicado no ano de 2009


(Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras) e 2011 (Brutos) e aguardam a desapropriação
das terras para a obtenção da titularidade coletiva das terras. Nesse ano de 2022, para essas
famílias, totalizam uma espera de mais de uma década para a regularização fundiária. Os povos
quilombolas aguardam, principalmente, que o Poder Público desaproprie não-quilombolas que
fazem o uso e ocupam o território quilombola e entregue as coletividades a titularidade dos
territórios quilombolas.
De acordo com o Artigo 68 da Constituição de 1988 e regulamentado pelo Decreto
no 4.887, de 20 de novembro de 2003, a propriedade da terra é um direito constitucional das

-se de recuperar, reconhecer e garantir a

16).
No processo de luta, compreendo que a cada território quilombola devidamente
regularizado, constrói-se um arranjo socioterritorial que combate historicamente contradições
e desigualdades na distribuição de terras. Portanto, a terra-território quilombola redefine
fronteiras e limites territoriais, sendo a materialização de uma reparação histórica junto às
diversas gerações de famílias. Por fim, a presença do território quilombola regularizado
salvaguarda as tradições, a memória e os modos de viver e se expressar dos quilombolas. A
ação da coletividade, ou seja, das diversas gerações de famílias quilombolas, definiu os limites
físicos e simbólicos, circunscreveu o pertencimento e a identidade, bem como resguardou
alguns marcadores ancestrais em seus modos de vida nos territórios. Malcher (2017, p. 22)
afirma que as CRQs efetivação do direito

As fronteiras dos territórios quilombolas resultam das relações de poder


estabelecidas e da formação socioterritorial da microrregião dos sertões de Crateús e do Ceará
e das trajetórias das famílias. As concepções do grupo sobre o seu passado, presente e futuro
revelaram as formas de ocupação e de reprodução da vida na terra-território. Portanto, os mapas
destacados, a seguir, têm como base as narrativas quilombolas bem como os relatórios
antropológicos visualizados em Marques (2009b) e Marques (2011).
234

A espacialização do uso e ocupação tradicional quilombola do Encantados do Bom


Jardim e Lagoa das Pedras tem como base a delimitação proposta no seu RTDI, e atualizada
nos trabalhos de campo, resultando no Mapa 4, a seguir:
235

Mapa 4 Esboço das formas de uso e ocupação tradicional quilombola da terra-território em


Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras, Tamboril, Ceará

Fonte: Adaptado de Marques (2009b) e Carvalho (2020).


236

O território é formado por Encantados do Bom Jardim (EBJ) e Lagoa das Pedras
(LP) e totaliza uma área de 1.959,7452 hectares. Esse território quilombola é entrecortado pela
rodovia CE-157, na zona rural do município de Tamboril, na porção Centro-Oeste do Ceará
(MARQUES, 2009b; CARVALHO, 2020). Encontra-se a 10 km da sede municipal e a 272 km
da cidade de Fortaleza, possuindo altitudes médias de 330 metros, conforme dados coletados
em campo para a composição do Mapa 4.
Nesse território, residem um total de 68 famílias e o número de moradores no ano
de 2021 totalizou 198 pessoas, segundo a liderança da Associação da Comunidade Quilombola
Encantados do Bom Jardim que foi fundada em 18 de outubro de 1988.
De acordo com o Mapa 4, as localidades de Encantados do Bom Jardim e Lagoa
das Pedras formam uma área contígua de terras quilombolas, arrodeadas propriedades agrícolas
de herdeiros dos coronéis ou outros proprietários que compraram as terras das antigas fazendas.
No território Encantados do Bom Jardim, a área residencial é formada por 70 casas,
sendo 55 de alvenaria e 15 de taipa, com a presença de 36 cisternas e 2 barragens próximas, 5
poços profundos e 8 cacimbas para o acesso e o armazenamento d´água. Nos quintais das
residências de Encantados do Bom Jardim, encontram-se a criação de aves, hortas e árvores
frutíferas (CEARÁ, 2019). Em Lagoa das Pedras, são 16 residências todas de alvenaria e com
cisterna para o armazenamento d´água (CARVALHO, 2020).
Na Figura 15, a seguir, destaco a entrada principal dessa comunidade.
Figura 15 Registro de algumas residências na comunidade quilombola de Lagoa das Pedras

Fonte: Arquivo da autora, 2021.

O abastecimento e armazenamento hídricos são compostos por 16 ligações


domiciliares, 01 (um) açude e 03 (três) lagoas. Destaque para a Lagoa das Pedras que surgiu de
237

uma prática antiga de mineração. E, devido as explosões para a extração dos blocos de rochas,
a lagoa se formou na borda do afloramento rochoso, conforme destacado no Mapa 4.
As áreas de Agricultura, conforme verificado em trabalhos de campo, são
compostas por plantações de milho e feijão, seguidas de uma produção inferior de banana e
mandioca (MARQUES, 2009; CARVALHO, 2020). Uma das etapas do cultivo do feijão é
colocá-lo para secar e, só então, debulhar. Na Figura 16, a seguir, há um registro da paisagem
cotidiana no quilombo.

Figura 16 Entrada principal da comunidade quilombola Encantados do Bom Jardim

Fonte: Arquivo da autora (2021).

No detalhe da Figura 16, encontra-se a rua principal de Encantados do Bom Jardim.


No terreiro do quilombo, o feijão colhido encontra-se secando na frente da casa para ser
debulhado pelos membros da família da tia Fátima.
Na produção agrícola, não foi identificado nenhum tipo de irrigação além das
chuvas que, no regime climático semiárido, possibilita somente uma colheita por ano realizada
no mês de junho. Diante desse contexto, verifico a preocupação em relação à continuidade do
trabalho com a terra em Encantados do Bom Jardim pelos jovens nessa comunidade, conforme
relatado a seguir:

Embora a principal fonte de renda seja a Agricultura, hoje eu vejo ela deixada de lado,
as pessoas já não tem mais aquela sede de trabalho como antigamente, por exemplo.
A grande luta era para termos um espaço para as pessoas trabalharem e hoje que tem
terra, tem espaço que tem como produzir, eu percebo por parte dos mais novos um
desinteresse muito grande. (Erinete dos Santos Oliveira, negra, 49 anos, Encantados
do Bom Jardim, 2021).
238

A percepção é a de que as juventudes não enxergam essa atividade enquanto uma


tradição, uma herança a ser assumida pela sua geração quando os velhos, que hoje ainda atuam
na lavoura, pararem de trabalhar. De todo modo, a pequena produção agrícola realizada pelas
famílias ocorre de forma individual, sendo que a maioria dos agricultores é composta por
aposentados, o que lhes garante uma renda fixa (CARVALHO, 2020).
Em Lagoa das Pedras, os produtores são mais jovens e todos contribuem com o
trabalho na produção familiar além das roças familiares. Esse grupo de trabalhadores já investiu
em maquinários e técnicas voltadas à agricultura e à criação de animais. Da produção, apenas
o excedente de feijão e milho é comercializado. O cotidiano das lavouras divide o espaço com
a pastagem natural para o rebanho coletivo de bovinos e caprinos. Portanto, a localidade
quilombola de Lagoa das Pedras se caracteriza por ter uma produção agropecuária, conforme
visualizado na Figura 17.

Figura 17 Pastagem do rebanho de caprinos em Lagoa das Pedras,


Tamboril, Ceará

Fonte: Arquivo da autora, 2021.

Convém destacar que o pequeno rebanho e as roças são, na maioria, voltados para
autoconsumo da comunidade Lagoa das Pedras, exceto uma das famílias que contém um
pequeno rebanho bovino do qual comercializa o leite. Segundo os relatos, são praticados alguns
cuidados de saúde na criação de animais, tais como: a aplicação de vacinas contra a febre aftosa
e a vacinação contra a raiva.
239

A área de reserva legal, indicada no Mapa 4, foi determinada pelo INCRA a partir
do trabalho de campo na delimitação do território. Correspondeu a uma área de vegetação
densa, arbóreo-arbustiva e com algumas espécies faunísticas da localidade. Uma das atividades
citadas no RTDI que não foi mapeada é a extração de Carnaúba, Oiticida, Pequi e Babaçu
(CEARÁ, 2019).
Além de produtores rurais, destaco as lideranças religiosas nas articulações social
e política da comunidade, tendo em vista à presença do salão paroquial, onde se encontra e
detém uma agenda de festejos, celebrações e demais reuniões sobre as pautas quilombolas. A
presença da escola quilombola no território influencia o engajamento de educadoras
quilombolas que atendem quilombolas e não-quilombolas das proximidades em suas práticas
escolares. O fato de duas professoras com o Ensino Superior estarem na escola quilombola é
uma conquista para o território.
Por outro lado, as comunidades vivenciam descasos no setor da Educação. No
primeiro momento, a construção do novo prédio da escola representou outra conquista do
território. No entanto, se tornou um descaso com o embargo da finalização e da entrega do
prédio. As condições atuais da obra inacabada encontram-se na Figura 18, a seguir:
240

Figura 18 Prédio novo da Escola Municipal de Ensino Fundamental Joaquim Ribeiro dos
Santos

Fonte: Acervo da autora, 2021.

A situação retratada na Figura 18 é de descaso e abandono do poder público


municipal em relação às necessidades educacionais quilombolas. Em visita realizada, no ano
de 2021, detectei o abandono e a depredação de algumas partes como os portões e o telhado.
Não foi possível a entrada no espaço devido a presença do matagal e devido ao risco de
desabamento de partes do prédio.
Pensando a Educação Escolar Quilombola enquanto uma conquista política, em
especial do Movimento Negro, que sempre reivindicou a criação de diretrizes que orientem a
valorização da História e cultura afro-brasileira e africana (MALCHER), este cenário gera uma
indignação da comunidade. Afinal, existiu um volume de recursos empregados para esse fim,
que está sendo desperdiçado, prejudicando, assim, as condições de ensino e de aprendizagem
escolar dos territórios.
Esse espaço de convivência é utilizado, semanalmente, para a realização da
ritualística cristã. Além disso, o espaço é a sede da associação de moradores e abriga as reuniões
e discussões realizadas na comunidade. O espaço do salão paroquial é utilizado no território
tanto para a prática religiosa quanto para reuniões de mobilização. Esse espaço demarca um uso
multifuncional e coletivo dos quilombolas desse território. Na Figura 18, há o registro do prédio
da escola nova, localizada muito próximo à escola antiga, conforme o mapa 08. A escola estava
241

sendo construída desde 2019, com recursos do Programa Brasil Quilombola, em parceria com
a Prefeitura Municipal de Tamboril. Moradores afirmam que a mudança de gestão municipal
ocasionou a parada da obra e não ocorreu retorno/explicação do Poder Público sobre a situação.
A escola antiga encontra-se próxima ao prédio novo, e atualmente se encontra em
funcionamento, atendendo uma matrícula de 105 educandos quilombolas e não quilombolas. A
Figura 19, a seguir, retrata a escola antiga do território.

Figura 19 Prédio antigo da Escola Municipal de Ensino Fundamental Joaquim


Ribeiro dos Santos

Fonte: Acervo da autora, 2021.

Essa escola destacada na Figura 19 é composta por três salas de aula, cozinha,
banheiros e uma sala de apoio. Encontra-se funcionando nos turnos manhã e da tarde, com uma
matrícula, no ano de 2021, de 104 educandos.
A equipe docente é composta por profissionais com formação em Nível Superior e
Especialização. Uma educadora e a gestora escolar são quilombolas de Encantados do Bom
Jardim. Em Lagoa das Pedras, recentemente, dois moradores terminaram a Licenciatura em
Letras, mas ainda não exercem a profissão docente.
Além disso, as conversas informais revelaram um elevado número de quilombolas
que não foram alfabetizadas e de jovens que abandonaram a escola no Ensino Médio. Na
percepção das falas, identifiquei que as famílias não acreditam no papel transformador da
Educação, o que se tornou uma preocupação e um desafio ao trabalho das educadoras.
A Internet chegou à escola durante a pandemia e algumas aulas e atividades
passaram a ser virtuais, mas nem todos os educandos possuíam computador ou smartphones
242

para acompanhá-las. As educadoras e a gestora da escola, no encontro que tivemos em junho


de 2021, informaram que foram inúmeros os desafios ao processo educativo virtual no
quilombo e nas demais comunidades atendidas.
Ao mesmo tempo, as condições de escolaridade reduzem as oportunidades de
trabalho para o povo quilombola. Foi citado um exemplo disso, quando foi aberta a seleção da
Prefeitura para auxiliar de serviços na escola quilombola, o que exigiu o Ensino Fundamental
dos candidatos.
O resultado é que muitas pessoas não puderam se inscrever para essa vaga devido
à ausência da escolaridade exigida. O descaso com a Educação implica diretamente na restrição
das oportunidades de renda às gerações atuais e na capacidade do povo quilombola de se
projetar no mercado de trabalho. De igual modo, compromete os seus sonhos e a busca por
melhorias de vida para a família.
Em termos de práticas culturais e identitárias no território, destaco a Festa da
consciência negra e o desfile da beleza negra. Esse evento se tornou tradição a partir dos anos
2000 como forma de celebrar, reafirmar e defender a identidade quilombola oficialmente
reconhecida. A última festa ocorreu em 2019, devido ao isolamento social para prevenção do
SARS-COV-2.
Sobre esse assunto, Carvalho (2020) ressaltou o evento da beleza negra como
possuidor de símbolos étnicos e raciais que, mesmo tendo sido pensado a partir de influências
externas à comunidade, como o 20 de novembro, se tornou parte da história desse território
quilombola fortalecendo as gerações atuais e futuras na valorização da sua ancestralidade negra.
Em relação à Saúde, identifiquei a Unidade Básica de Saúde (UBS) - Bom Jardim,
que é o posto de atendimento do território quilombola e às demais localidades vizinhas. Trata-
se do prédio da antiga Fazenda Bom Jardim, denominado pelos quilombolas de Casa-Grande ,
o qual foi cedido à Prefeitura para a realização dos atendimentos pelos profissionais junto aos
territórios quilombolas e as demais localidades do entorno, conforme a Figura 20, a seguir:
243

Figura 20 Entrada do Posto de Saúde na localidade Encantados do Bom Jardim

Fonte: Neta Quilombola, (2021).

A Casa Grande destacada na Figura 20, é chamada assim pelos quilombolas por
ser a maior propriedade da área e a sede da antiga Fazenda Bom Jardim. Encontra-se às margens
da estrada que atravessa o território. A funcionalidade desse espaço relaciona-se ao atendimento
à saúde quilombola pela UBS. Vale destacar que a fachada do prédio não foi atualizada e ainda
continua com a sigla do programa anterior.
Das principais funções da UBS-Bom Jardim junto as famílias, destacam-se: auxiliar
o cadastro em programas sociais; orientar sobre o uso e a qualidade da água; distribuir cloro;
orientar sobre as campanhas de vacinação e aplicar as vacinas; identificar, monitorar e
acompanhar gestantes; acompanhar o crescimento e o desenvolvimento infantil; distribuir
remédios (CEARÁ, 2019). Conforme uma das entrevistadas, a principal luta em relação à saúde
é por um médico dentista, tendo em vista que para obter o atendimento tem que se deslocar até
a sede do município.
A espacialização do uso e ocupação tradicional quilombola de Brutos tem como
base a delimitação proposta em seu RTDI e com algumas atualizações fitas a partir do trabalho
de campo, que resultou no Mapa 5, a seguir:
244

Mapa 5 Esboço das formas de uso e ocupação tradicional quilombola da Terra-território de


Brutos, Tamboril, Ceará

Fonte: Adaptado de Marques (2011).


245

De acordo com o Mapa 5, o território de Brutos é formado pelas comunidades de


Alto dos Benício, Lagoa Grande (Pelado) e Vila Amaro, totalizando uma área de 1.302,4397
hectares. Esse território de uso e ocupação tradicional quilombola, ora delimitado, é uma área
maior do que a que seus membros estão ocupando, devido à necessidade dessa área para a
reprodução de seus modos de viver das gerações presentes e futuras (MARQUES, 2011).
Em Ceará (2019), o território quilombola apresentou um total de 70 famílias. A
distribuição das famílias, de acordo com Marques (2011), aponta que a maioria se encontra na
localidade de Brutos (50 famílias), seguido do Alto dos Benício (17 famílias) e nas localidades
de Vila Amaro e Lagoa Grande (03 famílias). Vale destacar que, no perímetro territorial de
Brutos, residem 23 famílias que não se declaram quilombola. De modo específico, são 19 na
localidade de Lagoa Grande e outras 04 famílias na localidade de Alto dos Benício.
Segundo a liderança, cerca de 410 pessoas residem no território e se consideram
remanescentes de quilombos e sempre moraram e trabalharam na terra-território na busca da
sobrevivência e da geração de renda aos antigos proprietários. A Figura 20 representa a entrada
principal do território e o momento em que realizei a entrevista, em 2021, com a liderança da
Associação da Comunidade Quilombola de Brutos, fundada em 30 de julho de 2008.

Figura 21 Entrada principal do território quilombola de Brutos, Tamboril, Ceará

Fonte: Arquivo da autora (2021).

O território, destacado na Figura 21, mantém uma relação de vizinhança com o


primeiro território destacado tendo em vista que Brutos se limita ao Norte com a Lagoa das
Pedras. O território de Brutos localiza-se na margem da CE-157, dista cerca de 3km da sede do
município de Tamboril e 298km da cidade de Fortaleza.
246

A área residencial do território apresenta 30 casas de alvenaria com banheiro e fossa


séptica e 40 casas de taipa sem banheiro. O abastecimento e armazenamento hídrico dessa
comunidade-sede são realizados por meio de 70 ligações domiciliares, 50 cisternas, 03 (três)
poços profundos, 01 (uma) barragem e 03 (três) cacimbas.
As famílias quilombolas de Brutos sobrevivem da agricultura de subsistência, ou
seja, das plantações de milho e feijão, conforme os levantamentos de campo e os relatórios
antropológicos. Além disso, alguns recebem aposentadoria e outros moradores recebem
pagamentos mensais dos programas de transferência de renda do Governo Federal. Foi citada
ainda a atividade da extração de Carnaúba, Oiticida, Pequi e Babaçu no território (CEARÁ,
2019). Os primeiros contatos com a liderança de Brutos ocorreram de forma virtual e nessas
conversas informais percebi que os sucessivos deslocamentos compõem a trajetória e o
cotidiano atual dessa família quilombola.
No ano de 2020, a liderança do quilombo residia em Fortaleza e a cada 15 (quinze)
dias retornavam ao território devido as condições do trabalho doméstico que realizava. Devido
a isso, algumas ações da associação encontravam-se praticamente paradas. Ao longo do ano de
2022, sua família retorna ao território e estabelece uma residência fixa passando a trabalhar
com serviços na sede do município, o que reduzia, portanto, o seu tempo de dedicação ao
trabalho na associação.
Por fim, no ano de 2023, ocorreu outro deslocamento da família para Fortaleza,
onde estão a residir, retornando ao quilombo de forma esporádica. Percebo o quão desafiador é
compor o movimento quilombola, liderar as comunidades e firmar parcerias que agreguem as
demandas do quilombo, o mesmo tempo, não há uma linha de sucessão o que indica uma
centralização das ações e da tomada de decisão em uma única pessoa residente fora do
quilombo. No trabalho de campo, esses aspectos influenciaram tendo em vista a
incompatibilidade de agendas e ausência de representantes que pudesse nos acompanhar
durante visita às demais comunidades do território para ampliação do mapeamento e das
entrevistas.
De acordo com os relatos da liderança, ainda não se tem nenhum quilombola de
Brutos com formação em nível superior. As condições de acesso à Educação e à Saúde ocorrem
na sede do município. Os estudantes do Ensino Fundamental I frequentam a escola quilombola
do Encantados, no entanto, os estudantes do Ensino Fundamental II percorrem as distancias até
os estabelecimentos de ensino não quilombolas localizados na sede de Tamboril. Segundo a
liderança, ocorre a presença do analfabetismo na vida escolar de alguns quilombolas que não
247

se encontram motivados para encarar a rotina de deslocamentos a fim de frequentar escolas fora
do território.
Relatos apontaram diversas manifestações culturais negras na comunidade, tais
como: um grupo de Capoeira e Maculelê, uma Quadrilha Junina e ainda o grupo da Dança de
São Gonçalo. Conforme a liderança, esse último esteve ativo até o ano de 2001 quando o seu
principal puxador José Perez, apelidado de Zé Fonfon faleceu e o grupo se desarticulou. A
Capoeira e o Maculelê se apresentaram diversas vezes, em datas como o 20 de novembro, dia
da Consciência Negra, e no 13 de maio, dia da Abolição da Escravização no Brasil. E, a
Quadrilha Junina, destacada na Figura 22, geralmente, participa dos festejos realizados no mês
de junho para Santo Antônio (MARQUES, 2011).

Figura 22 Painel de registros das apresentações da quadrilha junina de Brutos nos anos
2000

Fonte: Associação da Comunidade Quilombola de Brutos, 2023.

Nos últimos anos, o grupo junino foi desarticulado e, atualmente, as apresentações


se encontram paralisadas no território. De todo modo, o grupo costumava se apresentar para
celebrar a colheita, reafirmando, assim, uma relação entre a tradição festiva e a Terra. Além
dessas, a comunidade possui um time feminino de futebol que semanalmente realiza treinos e
jogos com as juventudes do quilombo.
Em relação às práticas de cura no território, essas advêm do conhecimento sobre as
ervas e de remédios caseiros, em decorrência, também, das precárias condições de acesso a
248

Saúde do Sistema Único de Saúde (SUS). Nesse quilombo, encontram-se parteiras, benzedeiras
e curandeiras que atendem à população do quilombo. São mulheres idosas que, devido a
pandemia optaram por não participar da pesquisa.
No tocante à religiosidade de matriz africana, uma das famílias se autodefine como
umbandista e frequenta o Terreiro de São Jorge da Mãe Raimundinha, localizado na sede
municipal de Tamboril. Essa sacerdotisa é procurada por alguns moradores em busca de curas
físicas ou espirituais. Identifiquei um ponto comercial na sede de Tamboril que comercializa os
produtos da prática religiosa da Umbanda. Isso indica a presença de outros templos religiosos
e demais praticantes das religiões de matriz africana.
Na representação da terra-território tradicional quilombola da Barriguda, utilizei as
mesmas formas de uso e ocupação por entender que, no processo de certificação e da elaboração
do RTDI, serão essas categorias a serem trabalhadas e representadas, as quais encontra-se no
Mapa 6, a seguir:
249

Mapa 6 Representação da terra-território tradicional quilombola da Barriguda, Tamboril,


Ceará

Fonte: Pesquisa de campo, 2021.


250

O terceiro território remanescente de quilombo é o da Barriguda, o qual encontra-


se a 24km de distância da sede municipal. Conforme o Mapa 6, encontra-se na área de Serras
Secas que formam a fronteira Leste de Tamboril com Monsenhor Tabosa e localiza-se em
altitudes médias de 829 metros. Conforme Ceará (2019), na Barriguda, residem 46 famílias,
portanto, a estimativa é de uma população de 96 moradores em sua área territorial.
A representação dessa comunidade quilombola revelou algumas formas de uso e
ocupação da terra-território que se assemelha aos demais quilombos aqui caracterizados. A área
residencial abrange as casas de alvenaria com cisternas para armazenamento de água.
As famílias vivem da Agricultura de subsistência de feijão, milho e mandioca,
conforme destacado em algumas áreas do Mapa 6. Essa produção agrícola e familiar é filiada
ao sindicato dos trabalhadores rurais de Tamboril. As plantações são realizadas nas
proximidades das residências, conforme mostrado no Mapa 6. Possuem criações de suínos e
aves para o autoconsumo e desenvolvem um projeto produtivo de apicultura, iniciado em 2020.
Na área residencial do território, foi construída uma casa que é a unidade de
processamento do mel, conforme mostrado na Figura 23:

Figura 23 Casa de mel no território quilombola da Barriguda, Tamboril, Ceará

Fonte: Acervo da autora, 2021.

A produção de mel resulta de uma Política Pública do Governo do Estado junto às


populações rurais. Foi executada pela Secretaria de Desenvolvimento Agrário e financiada com
recursos do Banco Mundial. As ações desse projeto previam a construção do espaço, formações
com os moradores e o financiamento de equipamentos para a produção do mel no território.
251

Na ocasião da visita, a unidade não estava em funcionamento e, de acordo com a


liderança, são 07 (sete) pessoas capacitadas e responsáveis pela produção que ainda é familiar
sendo comercializada na sede do município de Tamboril.
De acordo com o Mapa 6, o território possui uma relação muito próxima dos com
o município de Monsenhor Tabosa. As famílias escutam o rádio daquele município, além de se
deslocarem e realizarem algumas atividades cotidianas naquelas terras. A localização desse
território, portanto, indica que sua formação e os modos de vida nesse quilombo extrapolam os
limites municipais de Tamboril.
A Associação dos Pequenos Produtores da Barriguda foi criada no dia 06 de
novembro de 1994. É composta por 12 (doze) membros nos cargos de tesoureiro, presidente,
secretaria, conselho fiscal e suplentes. Atualmente, o presidente desse coletivo é João Paulo
Sousa Vieira que se encontra em seu 4º mandato em 2021. A Figura 23, a seguir, apresenta a
sede da associação do território.

Figura 24 João Paulo e Rosilene na calçada da Sede da Associação dos Pequenos


Produtores da Barriguda, Tamboril, Ceará

Fonte: Acervo da autora, 2021.

Nesse espaço em frente à sede, há um terreno amplo onde são realizadas


comemorações da comunidade, bem como reuniões de planejamento anual das ações com os
seus membros e demais moradores. Nesse mesmo espaço aberto, em frente à sede da
associação, ocorreram todos os domingos, até o ano de 2020, as celebrações pelos padres
Tenório e Alcides, ambos vindos de Monsenhor Tabosa. A padroeira da comunidade é a nossa
Senhora das Graças, celebrada uma vez ao ano, no mês de novembro. Dentre os moradores do
quilombo, há um grupo de mulheres de diferentes idades que se tornaram catequistas e se
252

intitulam, portanto, praticantes do Catolicismo e mobilizam as localidades nas ações realizadas


pela Igreja ao longo do ano.
Conforme João Paulo, a principal demanda do território é o acesso à água que,
apesar das cacimbas e das cisternas nas residências, no período seco do clima semiárido ocorre
uma escassez de água na superfície. Para atender aos animais, os moradores recorrem aos poços
das localidades vizinhas. Além disso, uma outra demanda urgente é a necessidade do
reconhecimento pela FCP.
Nesse sentido, os quilombolas da Barriguda se articulam continuamente para
reconstruir suas origens ancestrais e obter a certificação, a qual ainda se encontra em
andamento. Portanto, o território ainda não tem relatório antropológico nem a sua delimitação
territorial oficializada.
Identifiquei, na narrativa da liderança, uma outra parceria que foi realizada com um
pesquisador da EMBRAPA, na busca pelo entendimento das condições de solos no território:

Na minha comunidade somos acompanhados pela EMBRAPA e teve um projeto para


estudar o solo. Quando chovia a gente coletava solo em 04 (quatro) locais, onde já foi
queimado, onde foi recuperado e onde não tinha sido queimado, tudo isso para saber
onde mais perdeu. E onde foi queimado perde mais proteção do que onde não foi
queimado. (João Paulo Sousa Vieira, negro, 42 anos, Barriguda, 2021).80

Essa fala da liderança remonta um cotidiano permeado pela observação e pela


cooperação científica no entendimento do uso sustentável dos solos. Os quilombolas tornaram-
se, assim, co-pesquisadores tendo em vista seu protagonismo ao longo do processo. Além disso,
a pesquisa contribuiu para melhoria da produção nas lavouras, minimizando os impactos
ambientais nas terras quilombolas por meio dos conhecimentos adquiridos. Os solos das serras
secas do Ceará apresentam vulnerabilidade devido aos acentuados declives, ao caráter
pedregoso e com perfil raso o que diminui a sua produtividade e poderá acelerar a sua
vulnerabilidade ambiental, nessa área de Serras Secas sertanejas. Trata-se, portanto, de uma
pesquisa sobre a perda de solos nas amostras coletadas no quilombo que se encontra em
andamento no território. As Figuras 25 e 26, a seguir, retratam algumas formas de usos da terra-
território.

80
Entrevista realizada dia 13 set. 2021, na comunidade da Barriguda, Tamboril, Ceará.
253

Figura 25 Lavouras no período seco no território da Barriguda, Tamboril, Ceará

Fonte: Acervo da autora, 2021.

Figura 26 Hortas suspensas nos quintais de uma das casas no território da


Barriguda, Tamboril, Ceará.

Fonte: Acervo da autora, 2021.

No primeiro plano da Figura 25, encontram-se algumas plantações, e, ao fundo, as


Serras Secas que limitam os municípios de Monsenhor Tabosa e de Tamboril. Na Figura 26,
por seu turno, verifiquei a presença de hortas suspensas nos quintais das casas do quilombo,
para impedir o acesso de animais à produção de hortaliças. As produções da lavoura destacadas
são para o autoconsumo das famílias quilombolas. Além do alimento retirado das terras, as
famílias vivem das aposentadorias e dos programas de transferência de renda do Governo
Federal.
Às margens da estrada que atravessa o território, foi apontado pela liderança o
prédio de uma escola desativada. A razão disso é que a Prefeitura informou não ter alunos nem
254

professores suficientes que justificasse custear o funcionamento do prédio. Portanto, as crianças


em idade escolar são transportadas todos os dias para as escolas da sede do município,
percorrendo em cada trecho, cerca de 24km para estudar.
Esse mesmo prédio é subutilizado de forma esporádica para ações pontuais de
Saúde como pesagem, vacinação infantil e adulta, entre outros. A rotina de deslocamento é
cansativa para os educandos que cursam o Ensino Fundamental e o Ensino Médio, tendo em
vista às condições das estradas e do transporte escolar. Esse descaso diminui as perspectivas do
povo quilombola de conclusão da Educação Básica e o ingresso na Educação Superior. Alguns
moradores mais antigos não foram alfabetizados e somente 02 (duas) moradoras do quilombo
têm formação: uma na área de Enfermagem, enquanto a outra é Pedagoga.
Quando se fala em Educação para os quilombolas, trata-se de uma atenção
diferenciada para as escolas situadas nesses lugares, mas não de ações para uma escola
quilombola diferenciada. (MALCHER, 2017, p. 110). Do ponto de vista educacional, é uma
obrigação do Poder Público ofertar o Ensino Fundamental e Médio nessas comunidades. No
entanto, os custos com a estrutura, de pessoal e as condições de acesso a água potável e ao
saneamento básico fazem parte de um discurso falacioso para justificar a negação de direitos e
a manutenção da pobreza das populações quilombolas.
Esse é um retrato da diversidade e dos modos de ser e viver no território quilombola
sertanejo, especificamente os de Tamboril. As narrativas e os mapeamentos trouxeram
memórias, trajetórias e situações que constituem desafios na luta ancestral, coletiva por direitos
quilombolas. A geografização desses territórios possibilitou enxergar a terra-território como a
base das relações de parentesco, de vizinhança, de mobilização, de luta coletiva contínua e das
tradições quilombolas.
Os territórios quilombolas passaram por processos de formação distintos. No
entanto, podem ser tipificados como quilombos agrícolas que incorporam origens raciais
diversas, tendo como principal religião, o Catolicismo, para citar alguns exemplos.
Em relação aos mapeamentos, reconheço a incompletude das tipologias de uso em
cada território, tendo em vista às restrições ao acesso as comunidades, devido ao SARS_COV_2
e a incompatibilidade de agendas. Com base nas narrativas quilombolas, registro que, dentro e
fora das delimitações apresentadas, existem não-quilombolas, terras em litígio, famílias
quilombolas, mas não querem ser reconhecidas, entre outros. Esses aspectos tencionam as
relações raciais e as fronteiras territoriais quilombolas.
255

Outro aspecto observado é que os territórios destacados tem como base os


deslocamentos das famílias, a espacialização de suas residências e as relações de vizinhança na
sua configuração/ocupação do espaço. Dessa forma, a ancestralidade, as relações familiares, a
luta coletiva, as relações econômicas e as festividades religiosas são elementos que compõem
a identidade quilombola tamborilense.
Ao enxergar as desigualdades de oportunidades, as quais estão submetidos os
quilombos desta pesquisa, entendo que as causas do racismo histórico-estrutural mantêm as
seguintes situações: desigualdade no acesso à terra; morosidade no atendimento de direitos pelo
Poder Público; condições precárias de trabalho com a terra; baixos índices de escolaridade;
problemáticas condições de saúde; deslocamentos forçados em busca de oportunidades, entre
outros.
Além disso, no contexto municipal, é notória uma supervalorização das memórias,
dos espaços e no ato de nomear logradouros e prédios seguindo valores cristãos, coronelistas
embranquecidos e escravistas. Conforme os relatos quilombolas, não ocorrem trabalhos
educativos nas escolas do município que dialoguem com a escola quilombola, tampouco ações
que efetivem a Lei 11.645/2008 no currículo, com a participação das lideranças dos 05 (cinco)
territórios quilombolas no município.
Entendo que as relações de poder anseiam por manter a exclusão e a opressão às
populações tradicionais. Diante desse panorama, entendo que as comunidades negras rurais não
se encontram no rol de prioridades das políticas públicas estaduais e municipais de Educação e
Saúde.
A mobilização desses grupos, portanto, tem o papel de torná-las prioridade nas
efetivações de políticas públicas que atendam direitos negados historicamente no país, no Ceará
e no município de Tamboril.
Ao passo que isso ocorre, a pobreza, a pouca educação formal e a falta de cuidado
com a saúde reforçam estereótipos racistas e dificultam processos de mobilidade social do negro
na sociedade brasileira de ontem e de hoje (ALMEIDA, 2021; GIRARDI, 2022). Este trabalho
constituiu, portanto, uma denúncia de que estamos pregados em relações de exploração e
servidão de um passado que se atualiza através do racismo e das relações de poder nas
instituições e no Estado brasileiro e deixam emperrado o acesso à Terra, à Educação, à Saúde
à Cultura, entre outros, pelas comunidades tradicionais quilombolas.
256

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assegurar a efetivação do direito às políticas de ações afirmativas para quilombolas é


mais do que garantir rubricas orçamentárias e corpo técnico qualificado nos órgãos
fundiários, em âmbito federal, estadual e municipal, é reconhecer que as comunidades
quilombolas não são continuação do passado no presente. (MALCHER, 2017, p.161).

No percurso desta pesquisa, ocorreu, no mundo e no Brasil, o vírus SARS_COV_2,


conhecido popularmente como Covid, que exigiu isolamento e distanciamento social
envolvendo muitas atividades cotidianas. Desse modo, eu tive que me reinventar e os trabalhos
de campo e demais atividades precisaram ser adiados e/ou modificados. Diante dessas
limitações, algumas etapas não puderam ser concluídas na pesquisa o que me fez deixar os
caminhos abertos para outros aquilombamentos e estudos sobre os territórios quilombolas
sertanejos.
Acredito na expansão dos caminhos e na construção da sociedade antirracista que
valorize os nossos antepassados. E, mesmo diante de todos os desafios, foi possível encruzar
vidas, trajetórias, ancestralidades, referências, mapeamentos, lutas, quilombos e territórios nos
sertões do Ceará.
Os caminhos que me conduziram foram os da ancestralidade negra e do
aquilombamento geográfico na compreensão das realidades quilombolas sertanejas. A
construção desse percurso apresentou um caráter ancestral, auto-reflexivo, crítico,
interdisciplinar e geohistórico.
Na encruzilhada, ofertei um padê81 revelador das escolhas e dos percursos que me
fizeram trabalhar com os conceitos de território, quilombo, diáspora africana, população negra,
marcadores das africanidades, movimento socioterritorial, entre outros. Busquei, a partir de
referências femininas e geográficas demonstrar o meu aquilombamento geográfico, enquanto
processo de aprofundamento teórico metodológico na temática racial, especialmente na
abordagem geohistórica de territórios quilombolas. Assim, em meu aquilombamento teórico
dialoguei com referências de outras Áreas do conhecimento, articulando a Geografia aos
elementos Pretagógicos, como os marcadores das africanidades.
Compreendi o processo geohistórico abordando-o em diferentes tempos (passado e
presente), em escalas distintas (estadual, municipal e local), e me aproximando, aos poucos,

81
É um rito preliminar às cerimônias que invoca as entidades da linha de Exú na Umbanda (LOPES, 2011). É
uma comida sagrada feita de farinha e dendê e outros temperos que variam de acordo com a intenção de quem
oferta. O Padê, de farinha com dendê, que oferto revela que a cada encruzilhada houve uma escolha e uma
intenção na construção dos caminhos percorridos desta pesquisa. Laroyê!
257

dos sertões, da presença negra e dos territórios quilombolas. Olhei o passado para refletir o
presente ressignificado, além de problematizar, ampliar e, sobretudo, reafirmar as heranças dos
povos afrodiaspóricos no Ceará.
A análise da Geografia do passado me fez seguir o curso da dispersão africana, no
qual refleti sobre os processos de deslocamentos intercontinentais e interprovinciais que
desaguaram no território cearense. Aqui chegaram os ancestrais africanos trazidos na condição
de escravizados. A diversidade de povos recriou os modos de vida afrodiaspóricos e contribuiu
para a formação histórico-cultural do povo e do quilombo cearense.
Foi desafiador conduzir uma discussão em que o apagamento é latente na
incompletude dos dados populacionais negros na Província do Ceará. Porém, estava obstinada
a revelar os caminhos e a presença do meu povo no território, na tentativa de remontar a
presença e a trajetória africana e afro-brasileira, bem como abrir caminhos para outras narrativas
e aquilombamentos geográficos sertanejos.
As relações diaspóricas entre a África e o Brasil revelam as influências africanas na
formação do povo, das vilas coloniais, e especialmente, dos quilombos. Abordar a diáspora
africana no Brasil e no Ceará possibilitou compreender os fluxos do tráfico transatlântico;
conhecer algumas identidades culturais em conexão com a África; e identificar a presença de
diversos povos africanos no Ceará, os quais materializaram formas híbridas de cultura,
presentes no modo de vida do quilombo contemporâneo.
Em se tratando da população da Província do Ceará do século XIX, considero que
os levantamentos de 1804, 1808 e 1813 são referências distorcidas da realidade, à medida que
atenderam somente aos seguintes critérios de classificação: sexo (mulher e homem), raça
(branca, preta, indígena, parda, mulata, entre outros) e condição jurídica (escravizados e
libertos). Os 3 (três) censos apresentam a exclusão do grupo populacional indígena, além da
omissão de dados sobre religião e da origem dos escravizados nas vilas, são, portanto,
incompletos e subestimados.
No Ceará de 1804, os povos negros e os seus descendentes não tiveram a sua origem
étnica registrada, tampouco, reconhecida em todos os lugares da Província. Percebe-se, ainda,
a exclusão dos povos originários que se encontravam presentes no território cearense e não
foram recenseados. Trata-se de um levantamento que intenciona, entre outros aspectos,
promover o apagamento e o desconhecimento dessas populações. De todo modo, as vilas que
apresentaram população negra a partir de 2.000 habitantes, as maiores concentrações ocorreram
em: Crato, Sobral, São João do Príncipe (Tauá) e Icó.
258

Das 14 vilas recenseadas em 1808 de recorte populacional acima de 1.000


habitantes, Sobral e Icó continuavam a concentrar quantidades significativas de população
negra e escravizada. Seguidos de Crato, Fortaleza, Aquiraz e São João do Príncipe (Tauá). Os
quantitativos populacionais de 1813 se apresentaram ainda mais problemáticos, tendo em vista
que abrangem somente 07(sete) vilas com população acima de 2.000 habitantes. É correto
afirmar que o levantamento de 1813 apresentou-se de modo restrito com a intenção de mascarar
o processo de escravização vigente, além de suprimir do poder central brasileiro e do povo a
verdadeira realidade do Ceará. Inexistem justificativas nas referências estudadas que expliquem
esses dados parciais da Província naquele ano. Em 1813, a concentração populacional negra
ocorreu em: Crato, Campo Maior (Quixeramobim), Fortaleza e Aquiraz.
No Ceará recenseado de 1872, o universo de dados é um pouco mais abrangente, à
medida que reuniu dados das vilas do Ceará que apresentaram população negra acima de 6.000
habitantes, incluindo algumas vilas recém-criadas, e apresentou quantitativos de migração e
origem geográfica, mortalidade, religião, deficiências visual e física, entre outros. Ainda que
incompleto, o levantamento possibilitou uma análise parcial da presença negra no território. O
cenário demonstrou o reflexo de contextos jurídicos, climáticos e econômicos que modificaram
o mercado da escravização e, ao mesmo tempo, realizaram o apagamento das origens africanas
dos povos que residiam na Província do Ceará, bem como o apagamento de povos indígenas e
a inserção da categoria de caboclos. Contudo, a concentração populacional negra ocorreu,
principalmente, nas vilas de Sobral, Baturité, Ipú e Cascavel, em consequência da fragmentação
do território e do surgimento de novas vilas e frentes de trabalho.
A presença negra nos levantamentos demográficos citados por Sobrinho (2011) e
ressignificada neste trabalho, de certa forma, constitui uma representação parcial da realidade.
Ao olhar o contexto dos dados populacionais, identifico que os povos africano e
afrodescendente compreendem identidades raciais negativizadas, ao longo do século XIX, com
desdobramentos nas narrativas quilombolas no século XXI. Além disso, a reflexão sobre o
passado revelou que a ancestralidade africana é a principal referência para a construção da
identidade afro-diaspórica de seus descendentes e para a formação socioterritorial do Ceará.
O esforço em enxergar a diáspora, os dados incompletos, a estrutura de classes
sociais do século XIX e as origens sociais e econômicas dos quilombos no Ceará enquanto
espaços que possuem uma composição multirracial, representa um passo fundamental no
combate aos silenciamentos, apagamentos e desigualdades historicamente construídos na
sociedade.
259

É inquestionável, portanto, que historicamente africanos e afrodescendentes no


Ceará e no Brasil sofreram inúmeras restrições sociais determinadas pela hierarquização das
raças e classes sociais em decorrência da existência de um projeto racializado de sociedade
construído para o exercício do poder e da dominação.
A composição multirracial, inclusive nos territórios quilombolas, decorre da
formação socioterritorial cearense que se diferenciou no sentido litoral-sertão e a partir de rotas
migratórias de Províncias mais antigas como Pernambuco e Bahia. Outro ponto é que a
formação socioterritorial estadual baseou-se na relação de subordinação à Província de
Pernambuco e, ao mesmo tempo, mantinha relações comerciais com as demais províncias
nordestinas da Bahia, do Piauí e do Maranhão. Foi com o tráfico interprovincial que se
estabeleceram rotas, caminhos e pistas da presença de povos africanos ao Ceará
Na sua essência, a ocupação dos sertões acompanhou o curso dos principais rios e
terras, antes desocupadas, deram lugar as fazendas de criar e aos engenhos da cana-de-açúcar
e, assim, surgiram as primeiras vilas coloniais, ao custo de muito suor, sangue e opressão aos
povos originários e africanos oprimidos, quando não eram dizimados e escravizados
violentamente nesse processo. Essa classe social afro-indígena e seus descendentes e brancos
pobres subalterna e hegemonizada se uniu, se juntou e resistiu nos mais diversos espaços da
vila colônia cearense, reagindo por séculos a opressão da escravização e do apagamento,
corroborando assim, na formação multirracial dos territórios quilombolas cearenses.
A distribuição populacional negra no século XIX, em sua maioria escravizada,
ocorreu no litoral, nas serras e nos sertões do território cearense, o que explica a existência 181
localidades quilombolas divididas em 64 municípios (OPOVO, 2020)82. Estes dados mais
atualizados que o mapeamento quilombola realizado em 2019, incluem todas as famílias que se
reconhecem quilombolas embora ainda não tenham iniciado o seu processo de reconhecimento
e de regularização fundiária. Desse total, 50 territórios quilombolas encontram-se oficialmente
reconhecidos pela FCP.
Correlacionar a presença negra nas camadas sociais cearenses do século XIX
revelou as quizilas, ejós e ebós das relações raciais na formação territorial cearense. De um
lado, as classes dominantes, e do outro, a existência da condição de escravizado, de excluídos
da posse e uso da terra que compunham as classes subalternas e oprimidas. Além disso, a Igreja

82
Jornal OPOVO. Ceará tem 131 localidades indígenas e 181 quilombolas. Anuário do Ceará 2002-2023.
Disponível em: https://www.anuariodoceara.com.br/noticias/ceara-tem-131-localidades-indigenas-e-181-
quilombolas/ Acesso em: 10 jan. 2023.
260

e a elite eram as donas das terras, além daqueles que atuavam nas tropas militares, compunham
as classes dominantes e intermediárias.
A quizila presente nas classes dominantes são as divergências dessas sobre a
preservação do sistema escravista. Uma parte construiu a campanha abolicionista em benefício
de sua própria ascensão política. Nesse cenário, identifiquei o èjó demarcado na Data Magna,
ao enfatizarem o pioneirismo branco e elitista nesse processo libertário, sufocando trajetórias
de luta dos protagonistas negros da época.
Ao longo dos séculos, os vários 25 de março competem, convivem e se excluem no
registro histórico e no imaginário do povo cearense. Percebo a necessidade de uma abordagem
ressignificada e crítica desconstruindo os abusos, os erros e as distorções do processo libertário
ainda embranquecido no Ceará. Considero o ebó da resistência negra aos pagamentos e ao
racismo, a manifestação cultural do Maracatu como tradição simbólica, representando a festa
de origem negra que ressignifica a Data Magna e ressalta o trabalho das coletividades negras
na cidade. A produção e a reprodução da cultura e dos modos de vida afro-diaspóricos são
materializadas nos sambas e afoxés, nos terreiros de matriz africana, na capoeira, nas coroações
de reis e rainhas negros na Irmandade do Rosário dos Homens Pretos, entre outros.
Acredito no ebó da liberdade incompleta, na oralidade e nas memórias daqueles que
vieram antes de nós como formas de registro e perpetuação da nossa história. É possível e
necessário ressignificar o processo libertário cearense, ressaltando as vozes negras e os
elementos culturais negros que lutaram por liberdade. Vamos maracatucar nas ruas, nas escolas,
nas praças, nas redes sociais e rememorar a luta dos nossos ancestrais.
O passado guardado nos dados, nas memórias, nas narrativas e nos espaços foram
descortinados com o intuito de ressignificar o que sabemos sobre o nosso povo hoje e sobre
aqueles que nos precederam. A palavra quilombo originou conceitos, expressões diversas,
como comunidades descendentes de antigos quilombos, comunidades remanescentes de
quilombos, comunidades negras rurais, territorialidade quilombola, territórios quilombolas,
quilombismo, agrupamentos negros, territórios negros, entre outros. Identifiquei as
semelhanças culturais e territoriais do quilombo brasileiro com o quilombo africano,
entendendo-os, assim, como territórios que resguardam o pertencimento e a identidade negra.
Estudar o território pelo viés político e simbólico-cultural possibilitou entender e
espacializar processos geohistóricos da formação dos quilombos tamborilenses. Além disso,
demarcou quem são, quantos são, que caminhos percorreram até a ocupação secular das terras
quilombolas mencionadas.
261

O tempo de aquilombar na Geografia chegou com uma abordagem da temática


racial que correlaciona a identidade, o território, o quilombo, as relações de poder, o combate
ao racismo e os movimentos sociais e a espacialização dos usos da terra para a reprodução da
vida nas comunidades quilombolas, especialmente, de Tamboril, Ceará. Fez parte deste
aquilombamento geográfico a minha primeira chegança aos territórios quilombolas de
Tamboril enquanto professora-pesquisadora que ocorreu durante a pandemia, no ano de 2021.
Devido a isso, só foi possível o acesso a algumas vozes quilombolas, respeitando
as regras de saúde. Alguns quilombolas mais antigos se negaram a me receber, devido os riscos
da doença trazida para o quilombo, uma vez que alguns ficaram doentes e ocorreu uma morte
por Covid, no território da Barriguda. Desse modo, diálogos virtuais, presenciais bem como
falas públicas (lives) de quilombolas compuseram as narrativas das famílias quilombolas.
Enquanto professora-pesquisadora, a chegança ao quilombo me fez enxergar o
aquilombamento coletivo, na medida em que as minhas perspectivas de análise e de
entendimento da formação desses territórios se voltou aos sertões, pois até então só conhecia
aqueles localizados no litoral, ou o que era nos contado, através dos cilcos econômicos do
Ceará. Embora a pandemia e o tempo de pesquisa tenham prejudicado os planos de realizar
vivências com os quilombolas, conduzi diálogos e observações do cotidiano no entendimento
dos territórios quilombolas de Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras, de Brutos e da
Barriguda, localizados no município de Tamboril, Ceará.
A luta coletiva nesses territórios se deu pela permanência nas Terras, desde o século
XIX, seguido do fortalecimento, pela Igreja Católica nos anos de 1980, do pertencimento
quilombola e, assim, criaram as Associações de Moradores e buscaram na justiça a execução
de Políticas Públicas voltadas aos territórios. Como resultados da luta quilombola iniciada nos
anos 2000, enquanto o território de Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras é o primeiro
do Ceará a ser titulado em 2023. O território da Barriguda ainda se encontra na fase inicial do
processo, o da busca pela certificação da FCP.
Nessa encruza, enxerguei a marca ancestral da resistência dos povos negros e
quilombolas, que confrontaram historicamente os racismos, os apagamentos e os
silenciamentos no Ceará. Percebi os entrelaçamentos entre os movimentos negro e quilombola
no Ceará. Enquanto o primeiro tem objetivo amplo e geral de combater o racismo, valorizar a
negritude e implementar políticas afirmativas nos diversos espaços de poder, inclusive na luta
pelo reconhecimento dos territórios quilombolas. O segundo tem o território em sua
centralidade, por isso é socioterritorial e anseia garantir a permanência e a sobrevivência das
262

gerações atuais e futuras no/do quilombo. Estes movimentos não podem ser olhados de forma
inteiramente similar, mas com uma correlação e um entrelaçamento. Lutam pela valorização e
garantia do povo negro, porém, a partir de dinâmicas diferenciadas nos espaços urbano e rural,
por exemplo.
Considero, portanto, que o ebó do movimento socioterritorial quilombola é
causador de mudanças comportamentais no espaço rural e agrário quando rompe
cotidianamente as quizilas e ejós do racismo enraizados na sociedade cearense.
A herança africana de luta e resistência no quilombo pode ser considerada um ebó,
ou seja, um ritual que limpa, descarrega e fortalece as lutas contínuas, honrando, assim, os
ancestrais. Desse modo, o ebó do movimento socioterritorial quilombola é uma forma de abrir
caminhos na busca pela reafirmação das territorialidades quilombolas do Ceará, que nos tempos
atuais, se mobilizam pelo direito à Terra, à Educação, à Saúde, à Cultura, entre outros. Ainda
assim, das 87 comunidades quilombolas cearenses somente 50 possuem a certificação pela
FCP, o que comprova o quão desafiador é para a militância e a sociedade buscar a garantia de
diretos dos povos quilombolas no Ceará.
De todo modo, o ebó da luta territorial nos ensina que outras fronteiras e limites da
terra-território podem ser estabelecidas em prol da coletividade e dos saberes e fazeres
tradicionais e ancestrais do quilombo.
Nesse emaranhado de relações, percebi o quanto esses percursos retratam a minha
origem ancestral e, ao olhar os meus marcadores das africanidades ao longo dos últimos anos
nas formações continuadas, nas oficinas, nos eventos e nas leituras e nos trabalhos e visitas
realizadas como técnica da SEDUC, me deparei com a oportunidade de destacar os marcadores
das africanidades que atravessam a minha percepção dos quilombos sertanejos de Tamboril.
Portanto, tracei uma rota para a sua identificação nos territórios e nas narrativas
quilombolas. Na minha tese dialoguei sobre nomes, sobrenomes e toponímias, por entender o
quanto os nomes das pessoas e dos lugares refletem os contextos históricos e raciais que os
originaram. Enxerguei os sucessivos deslocamentos na construção de pertencimentos ao lugar
e, ao mesmo tempo, na fuga e no abandono desses. Em seguida, almejei a terra-território
enquanto um par dialético em que os quilombolas fincam as suas bases materiais e imateriais
de ser e existir nos sertões.
Destaco, como primeiro marcador, a consanguinidade na formação dos troncos
familiares, uma vez que ocorreram uniões matrimoniais entre irmãos bem como entre primos.
263

Percebi que a ancestralidade quilombola tem, na maior parte de seu povo, origens baianas e
piauienses.
A segunda marca ancestral é a formação de numerosas famílias e, à medida que
alguns formavam seus núcleos familiares, buscavam residir próximos uns dos outros o que
demonstrou o grau de pertencimento ao lugar e a resistências as formas de exclusão e opressão
do poder hegemônico outras famílias, por reconhecer que não tinham condições de
sobreviver, se viram obrigadas a migrar para outros estados e passaram a residir fora do
território quilombola. Ou seja, trata-se da quarta marca ancestral que é a dos sucessivos
deslocamentos. Esse é um fenômeno geográfico que associa o passado ao presente das famílias
destacadas.
A quinta marca dos quilombos é que

Compreendo que, a partir das opressões vivenciadas nas vilas coloniais, os índios, negros e
brancos pobres se rebelaram e territorializaram outros espaços, constituindo o quilombo
multiétnico.
Os territórios quilombolas de Tamboril possuem matrizes raciais distintas, mesmo
diante dos laços de consanguinidade apresentados. Se constituem uma forma africana de re-
existir no Brasil e no Ceará, agregando práticas indígenas e europeias em seu cotidiano, na
religião e na relação com a terra-território.
A sexta marca ancestral é da luta quilombola que antecede os demais movimentos
sociais brasileiros, ou seja, é uma herança dos antepassados africanos. Nesse processo histórico
e contínuo do movimento socioterritorial quilombola, em um país racista e desigual como o
Brasil, as gerações de famílias deixam aos mais novos, além de suas memórias e modos de vida,
a continuidade da luta pela reafirmação de direitos, tendo como centralidade o território.
Compreendo que, para além do reconhecimento, da titulação das terras e diante de processos
que silenciaram as suas vozes, o movimento de aquilombar-se é, sobretudo, contínuo e histórico
para o povo quilombola, simbolizando uma luta por diversos direitos (SOUZA, 2008).
Por fim, a relação com a terra-território é uma sétima marca ancestral, uma vez que
esse chão e tudo que se faz nele é coletivo e para o coletivo. É da agricultura familiar e da
criação de animais na terra-território as bases que sustentam as famílias, além de aposentadorias
e dos programas de transferência de renda.
As lavouras de feijão, milho e mandioca são predominantes nos territórios.
Entretanto, são práticas tradicionais, ou seja, são formas de produção natural dos alimentos,
264

nem o uso de veneno nas lavouras quilombolas. Ao mesmo tempo, esses roçados quilombolas
se encontram cercados por fazendas, ou seja, grandes e médias propriedades que tencionam
suas fronteiras e limites territoriais e reafirmam a concentração de terras dos tempos coloniais
no Ceará e no município de Tamboril.
Portanto, a terra é a base material da vida no quilombo e o território é o resultado
de uma luta, é um instrumento jurídico com fronteiras, limites, nomes e espaços que garantem
o uso e a ocupação tradicional e ancestral desse grupo racial.
Ao longo das narrativas, os sujeitos quilombolas se reportaram aos diversos espaços
que concebem como sendo de referência histórica nos territórios e que são cotidianamente
vivenciados, tais como a escola, a Casa Grande, a Lagoa das Pedras, o oratório da Nossa
Senhora das Graças, o salão paroquial, a Serra do Encanto, entre outros. Essas são relações de
pertencimento construídas pelo povo negro e não-negro do quilombo com o seu passado e o
seu presente e encontram-se eternizadas em suas memórias individuais e coletivas, bem como
na sua relação com a terra-território.
Ao elencar estes marcadores ancestrais quilombolas, foi possível compreender que
o direito ao território por parte destes povos deve ser garantido, através do compromisso
político, de mecanismos legais e de políticas afirmativas que reconheçam e valorizem as nossas
culturas ancestrais no Estado. Para tanto, enfatizei as lutas, as ancestralidades e a formação dos
territórios quilombolas, a partir de aspectos Geohistóricos e Geocartográficos.
Esta pesquisa é para não esquecermos da resistência do povo negro e do povo
quilombola frente às diversas formas racistas materializadas no fazer científico, no desenrolar
da história, no estabelecimento das toponímias de lugares e prédios públicos e na luta por
direitos já garantidos na Constituição de 1988.
O Ceará que se disse abolicionista, no século XIX, acumula junto com o Governo
Federal uma dívida secular no reconhecimento de direitos étnicos das comunidades
quilombolas do século XXI. Acredito que somente por meio da mobilização coletiva e da
resistência modificam-se tais cenários garantindo, assim, ações, projetos e Políticas Públicas
assentadas nas demandas dos sujeitos.
Não se pode fazer vista grossa diante da morosidade, da burocracia e da falta de
compromisso político de governos municipais, estaduais e federais que emperram a
regularização de terras quilombolas. Diante da quizila entre os povos e o Poder Público na
resolução da regularização fundiária dos quilombos, compreendo a necessidade de desfazer,
265

refazer e fazer acontecer os processos diante das provas incontestáveis do reconhecimento dos
direitos dos povos quilombolas.
Trata-se de reparar uma dívida secular do Estado brasileiro com gerações de
famílias negras cearenses. Segundo Malcher (2017) é uma dívida social histórica, econômica,
política, cultural e religiosa de ausências, opressões e descasos com os territórios quilombolas.
Por fim, a pesquisa contribuiu para o entendimento do direito ao território pelas comunidades
quilombolas rurais e no fortalecimento das associações quilombolas, da CERQUICE e da
CONAQ, enquanto coletivos que são herdeiros de ancestralidade e culturas africanas e
afrodescendentes.
Ao mesmo tempo ampliei, enquanto professora-pesquisadora, o meu entendimento
sobre a demanda dos povos negros e quilombolas, construindo conhecimento e práticas
pedagógicas a partir de uma Geografia aquilombada e sertaneja. Com isso, perpetrei um
chamamento ao aquilombamento individual, teórico e coletivo da Geografia na abordagem da
questão racial do Ceará e do Brasil.
266

6 PÓSFÁCIO

6.1 Cerimônia de Imissão de título de posse da terra quilombola de Encantados do Bom


Jardim e Lagoa das Pedras.

Pretendo que este posfácio seja um desdobramento de um momento pós-defesa de


tese no quilombo, tendo em vista a ocorrência de um fato histórico para os territórios
quilombolas aqui destacados.
Trata-se de um breve relato da cerimônia de imissão definitiva do título de posse da
terra do quilombo Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras ocorrida no dia 19 de Maio
de 2023. Cerca de 100 pessoas estiveram presentes entre crianças, jovens adultos e idosos
residentes nos quilombos de Tamboril, assim como alguns membros e lideranças das
associações de moradores, representações de outros territórios quilombolas como Torres,
Queimadas, Alto Alegre, entre outros. Além destes, havia representantes do Legislativo
municipal e estadual bem como membros do Executivo municipal, estadual e federal. A Figura
27 a seguir, é o registro do momento da assinatura deste documento com as representações dos
diversos segmentos da sociedade cearense.

Figura 27 Cerimônia de assinatura do termo de posse da terra quilombola em Tamboril em 2023

Fonte: Arquivo da autora, 2023.

A Ordem da Justiça Federal partiu do Juiz Daniel Guerra Alves da 22ª Vara
Regional de Crateús. Esta cerimônia representa a celebração da luta quilombola do Ceará,
especialmente, para as famílias Possidônio e Iré que permaneceram nessas terras no decorrer
267

dos séculos. Além disso, representa ainda uma reparação histórica do Poder Público que
reconhece o direito ao território deste povo negro quilombola. Diante dessas considerações a
cerimônia prosseguiu com as falas das pessoas presentes na Figura 26.
O território quilombola possui uma delimitação com área total de 900 hectares, o
documento concedeu a posse de mais da metade deste, ou seja, foi titulado como terra
quilombola 503,61 hectares de terra localizadas em Lagoa das Pedras.83
Vale destacar as falas da liderança quilombola estadual Renato Ferreira dos Santos
sobre o significado deste título de posso para o povo negro e quilombola do Ceará:

O sentimento de gratidão pela luta que a gente travou nestes últimos tempos.
Iniciamos esse processo em 2005 onde a gente começou a discutir a identidade da
comunidade e das pessoas como remanescentes de quilombos e aí em 2008 fomos
certificados pela FCP e abrimos o processo de regularização fundiária e de lá pra cá a
gente veio fazendo contando muito com o apoio das famílias que assumiram o
processo de querer a conquista da terra de querer se libertar de todo o processo
colocado nessa região. [...] Hoje estamos conquistando a terra e precisamos nos
organizar cada vez mais para buscar por políticas públicas que possam dar condições
de vida para o povo que aqui reside. (TITULAÇÃO, 2023). 84

O sentimento de gratidão é acompanhado do sentimento de alerta por parte do povo


quilombola no sentido de se mobilizar por ações nas áreas da Educação, Saúde, Cultura,
Emprego e Renda entre outros setores que contribuam para a qualidade de vida das pessoas que
residem na terra-território reconhecido e titulado a partir deste 19 de maio de 2023 em Tamboril,
Ceará.
Em relação a Educação Escolar Quilombola, foi anunciado pelo prefeito de
Tamboril, Marcelo Mota, que a escola nova está sendo terminada com recursos próprios
enquanto ocorre a liberação da finalização desta obra pelo MEC. A previsão de término,
inauguração e funcionamento é para o mês de Agosto de 2023.
Por fim, presenciei a justiça sendo realizada e cumprida, a qual resulta do cenário
democrático em que vivemos, da confiança nas instituições e nos seus agentes públicos, e no
comprometimento com as minorias marginalizadas historicamente que o governo Lula recém
eleito no País assumiu e, aos poucos, vem se materializando.

83
Território Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras, em Tamboril, é reconhecido como terra quilombola.
Disponível em: https://blogdomanuelsales.com.br/2023/05/20/territorio-encantados-do-bom-jardim-e-lagoa-
das-pedras-em-tamboril-e-reconhecido-como-terra-quilombola/. Acesso em: 20 maio2023.
84
Trecho da fala de Renato Ferreira dos Santos na cerimônia de Titulação de posse do território quilombola

Disponível em: https://youtu.be/Pj2n8M2XUVo Acesso em: 22 maio. 2023.


268

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TITULAÇÃO, Definitiva de posse do território quilombola Encantados do Bom Jardim e Lagoa


Palestrante: Renato Ferreira dos Santos. Tamboril: Associação de moradores de
Encantados do Bom Jardim e Lagoa das Pedras, 2023. 1 vídeo (49:55 min) Transmitido em 19
de maio de 2023 no Youtube Rosi Culturando. Disponível em: https://youtu.be/Pj2n8M2XUVo
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de Todos os Santos: dos séculos XVI a XIX. São Paulo: Corrupio, 1987, 613p.

XAVIER, Patricia Pereira. Dragão do Mar: a construção do herói jangadeiro. Fortaleza:


museu do Ceará, 2011, 249p.
287

APÊNDICE A - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO APLICADO


AOS ENTREVISTADOS DE TAMBORIL

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ


PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE)

Eu declaro que é de livre e espontânea vontade que aceito participar da pesquisa sobre As
territorialidades quilombolas no Ceará: lutas e ancestralidades, de autoria da pesquisadora Rosilene
Aires, aluna do curso de Doutorado em Geografia, do Programa de Pós-Graduação em Geografia, da
Universidade Federal do Ceará (UFC), sob a orientação do Professor Dr. Francisco Amaro Gomes de
Alencar. Declaro que fui informado (a) dos objetivos da pesquisa e concordo em ser entrevistado (a)
uma ou mais vezes pela pesquisadora em local e duração previamente ajustados, ( ) permitindo / ( )
não permitindo a gravação da entrevista. Fui informado (a) pela pesquisadora que a qualquer momento
posso me recusar a continuar participando da pesquisa e que posso retirar o meu consentimento, sem
que isso me traga qualquer prejuízo, desde que previamente e formalmente informado à pesquisadora.
Além disso, sei que não receberei nenhuma forma de pagamento por esta participação. ( ) Autorizo / (
) Não autorizo que meu nome seja divulgado nos resultados da pesquisa, comprometendo-se a
pesquisadora, a utilizar as informações que prestarei somente para os propósitos da pesquisa e para
publicações científicas sobre a temática. É de meu conhecimento que posso, a qualquer momento, ter
acesso às informações referentes à pesquisa, pelos telefones ou e-mail da pesquisadora. Eu declaro que
li cuidadosamente este Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e que, após sua leitura,
tive a oportunidade de fazer perguntas sobre o seu conteúdo, como, também, sobre a pesquisa, e recebi
explicações que responderam minhas dúvidas. Eu declaro, ainda, estar recebendo uma via assinada deste
termo.

_________________, Ceará __de ___________ de 2021/2022.

Assinatura do/da entrevistado/a

Assinatura da pesquisadora

Nome do entrevistado: Idade:

Atividade/Função: Telefone:
288

APÊNDICE B ROTEIRO SEMI ESTRUTURADO APLICADO AOS


ENTREVISTADOS DE TAMBORIL

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ


PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

ROTEIRO DE ENTREVISTA

Nome da (o) entrevistada (o):......................................................................Idade:..........


Data da entrevista:.......................................................................................Local:..........
Horário:........................................................................................................Duração:......
Metodologia: Entrevista semiestruturada

1. Você poderia falar de sua trajetória de vida e da sua família?


2. Como surgiu a sua comunidade?
3. Você conhece alguma história dos seus antepassados?
4. Quais as principais pautas de luta de sua comunidade?
5. Pode listar os principais problemas/desafios da luta quilombola?
6. O que você pensa das juventudes de sua comunidade?
7. O que você considera de positivo no mapeamento das comunidades quilombolas
realizado em 2019? E de negativo?
8. A sua comunidade possui mapeamento/delimitação do território e dos usos/ ocupação
das terras? A sua comunidade possui relatório antropológico?
9. Quem você indica para que eu converse sobre o movimento socioterritorial
quilombola? E sobre a trajetória da comunidade, quem poderia dar informações?
10. Qual o objetivo da criação da CEQUIRCE em 2005? Quantos são os membros que
compõe essa comissão?
11. A liderança do território quilombola tem participado da CEQUIRCE? Quais as ações da
CEQUIRCE na sua comunidade nesse momento de combate a pandemia da SARS-COV-
2?
289

ANEXO A - O PILÃO DE QUARTZO ROSA85

Ô pila, pila pila menina!


Ô pila rumbora pilar
Vó Mazé quando senta e pila
Todos sentam para lhe escutar (2x)

Ô pila, pila pila menina!


A História já vai chegar
A paçoca pilada da vó
Chega chega, rumbora provar (2x)

Ô pila, pila pila menina!


A memória ela vai revelar
Urucum é semente, é cor
E ficamos sentindo o sabor (2x)

Ô pila, pila pila menina!


Que a tarde já vai chegar
O café é pilado na hora
Coa, coa rumbora tomar (2x)

Ô pila, pila pila menina!


Ô pila rumbora pilar
Vó Mazé quando senta e pila
Todos sentam para lhe escutar (2x)

Ô pila, pila pila menina!


Machucado ela já vai sarar
Com o mastruz pisado e amarrado
Toda dor ele vai afastar

Ô pila, pila pila menina!


Ô pila rumbora pilar
Vó Mazé quando senta e pila
Vem de Granja pra nos contar. (2x)

Ô pila, pila pila menina!


Traz o milho rumbora pilar
Tchê, tchê pras galinhas
Que ciscam pra lá e prá cá

Ô pila, pila pila menina!


Ô pila rumbora pilar
Vó Mazé quando senta e pila
Todos sentam para lhe escutar (2x).

85
Esta música é uma homenagem a minha avó Mazé que permeou, com suas histórias, a minha infância. Foi
inspirada em Ercília Lima e Patrícia Adjoké Matos nas lives
realizada na plataforma Instagran no ano de 2020, na qual os participantes cantavam suas composições e outros
cantos.
290

ANEXO B LISTA DOS MARCADORES DAS AFRICANIDADES

1-História do nome 17- Povos indígenas e quilombolas-


resistência e força
2-Histórias de minha linhagem inclusive 18- Representações da África e relações
agregados com África
3-Mitos, lendas, ato de contar, valorização da 19-Cabelo afro (encaracolado, cacheado e
contação crespo) práticas corporais de afirmação e
negação dos traços negros
4- Histórias do meu lugar de pertencimento, 20- Racismos e estereótipos (perpetrados e
comunidade, territorialidades e sofridos)
desterritorialidades negras (movimentos de
deslocamentos geográficos, corporais e
simbólicos)
5-Sabores da minha infância- pratos, odos de 20- Racismos e estereótipos (perpetrados e
comer e o valor da comida sofridos)
6- Pessoas de referência da minha família e da 21- Formas de conviver, laços de
minha comunidade e pessoas negras do mundo solidariedade, relações comunitárias
significativas para mim
7-Simbologias da circularidade\tempos cíclicos e 22-Valores de família e filosofias
da natureza
8-Práticas e valores de iniciação\ritos de 23- Artesanatos
transmissão e ensino
9-Mestras e mestres da cultura 24- Outras tecnologias
10-Escritores 25-Relações com a natureza
11-Cura\práticas de saúde 26-Religiosidade e encantarias
12-Cheiros significativos 27-Relação com as mais velhas,
senhoridade, respeito aos mais velhos
13-Festas da minha infância e do meu povo 28-Vocabulário e formas de falar

14-Lugares míticos e territórios marcados pelas 29- Relação com a terra (vivências e
culturas simbologias)
15-Músicas, cantos, toques, ritmos, estilos 30-Outras práticas corporais (brincadeiras
tradicionais\jogos e outros)
16- Danças afro e indígenas

Fonte: Petit e Farias (2015), Petit (2015), Silva (2016).

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