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A atuação dos blocos de carnaval de rua de Porto Alegre como elemento de direito à
cidade
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Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; bolsista CNPq;
pesquisadora do Grupo de Antropologia da Economia e da Política (GAEP); jmsevaio@gmail.com.
Resumo: Neste trabalho, a partir de pesquisa etnográfica pretendo analisar o movimento de retomada das ruas de
Porto Alegre como lugar de fazer carnaval, evocando as territorialidades, práticas, sociabilidades e conflitos que
se engendram por meio da festa. Parto aqui da premissa de que as festas colocam em evidência as contradições e
antagonismos que permeiam a vida cotidiana, assim que a arena festiva é um lugar privilegiado para a análise
das relações de poder e narrativas de cidade divergentes (CRUELLS, 2006) . Mais do que analisar o carnaval per
se, proponho a tarefa de entender o que a festa diz sobre Porto Alegre e suas dinâmicas. Nesse caso, o uso das
ruas desdobra-se em disputas práticas e simbólicas sobre o direito de estar na cidade e ocupar seus espaços, o
que pode resultar tanto em um enfrentamento político mais elaborado, institucional, quanto na mera
contraposição de comportamentos e códigos de conduta (LEITE, 2000).
Abstract: In this paper, based on ethnographic research, I intend to analyze the movement of retaking the streets
of Porto Alegre as a place for carnival, evoking the territorialities, practices, sociability and conflicts that are
engendered through the party. I start here from the premise that parties highlight the contradictions and
antagonisms that permeate everyday life, so the festive arena is a privileged place for the analysis of power
relations and divergent city narratives (CRUELLS, 2006). More than analyzing carnival per se, I propose the
task of understanding what the party says about Porto Alegre and its dynamics. In this case, the use of the streets
unfolds in practical and symbolic disputes over the right to be in the city and occupy its spaces, which can result
both in a more elaborate, institutional political confrontation, and in the mere opposition of behaviors and codes
of conduct. conduct (LEITE, 2000).
“Eu quero é colocar meu bloco na rua”: notas introdutórias ao carnaval de rua de Porto
Alegre
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Artefato arredondado na forma de limões, feitos de cera e contendo água perfumada e colorida, que ao ser
atirado contra as pessoas, rompia-se (Krawczyk et al., 1992).
grosseira que ainda não havia se civilizado, o que vinha na contramão da cidade moderna
(Ferreira, 1970; Germano, 1999; Góes, 2013). A partir da segunda metade do século XIX, as
elites porto-alegrenses, organizadas nas majestosas Sociedade Venezianos e Sociedade
Esmeralda, passaram a desfilar pelas ruas centrais, como a Rua da Praia, sendo assistidas por
milhares de pessoas. A rivalidade entre as duas sociedades era tamanha que muitas vezes
resultou em brigas e agressões (Ferreira, 1970; Lazzari, 2001).
Com a chegada do século XX, entrou em declínio o modelo de carnaval centrado nos
desfiles luxuosos nas vias centrais de Porto Alegre. Quando as elites fecharam-se em clubes
sofisticados para fazer carnaval, as camadas populares de meros espectadores passaram a ser
protagonistas de seu próprio carnaval, introduzindo suas sonoridades e gingado, tons, ritmos e
práticas (Krawczyk et al., 1992). Houve, então, uma propagação de agremiações
carnavalescas, blocos e cordões surgidos em um processo de ressignificação dos elementos da
festa a partir dos trabalhadores e dos descendentes de escravizados. De acordo com Germano
(1999: 85): “Nas décadas de 1930 e 40, essa representação de carnaval de rua modificou-se,
pois o elemento popular e negro passou a ser associado ao verdadeiro representante do
carnaval de rua, já que o próprio carnaval passou a ser visto como uma festa do povo”.
Concomitante a isso, a projeção do carnaval enquanto festa que compõe a identidade
nacional faz parte da narrativa criada a partir do Estado Novo, quando Vargas elevou
manifestações populares como o samba e o carnaval ao patamar de símbolos de brasilidade.
Aí reside uma ambiguidade que precisa ser considerada: o carnaval é lido ao mesmo tempo
como ícone da identidade nacional e como festa constituída a partir das práticas
marginalizadas da população negra (Rosa, 2008). É também no contexto do Estado Novo que
a questão do trabalho deixa de ser um problema da polícia, sobretudo a partir da legislação
trabalhista de Vargas. A malandragem à qual se associa o samba e o carnaval estava em
conflito com a exigência de que a população se encaixasse nas normas e na monotonia do
mundo trabalho, sendo um suspiro em relação à disciplina, e uma alternativa dentro da
estrutura social que convertia homens em marginais econômicos (Oliven, 2010). É através do
carnaval que homens e mulheres negros marcavam sua presença no mapa da cidade.
Nas décadas de 1930 e 1940, as dinâmicas dos territórios predomidantemente negros,
como a Cidade Baixa e a Colônia Africana, fizeram com que o carnaval de rua
porto-alegrense alcancasse seus tempos áureos (Germano, 1999; Rosa, 2008). No interior da
Cidade Baixa, existiam dois territórios que merecem destaque: a Ilhota e o Areal da Baronesa.
Ambos eram marcados pelas condições de vida precárias e constantes inundações. Se não
havia saneamento básico por lá, havia festa. Foi na Ilhota onde em 1914 nasceu Lupicínio
Rodrigues, o mais icônico dos sambistas gaúchos, que cresceu rodeado entre as águas e
festejos de seu bairro: “Samba e carnaval são duas expressões diferentes, porém
complementares, do fenômeno cultural que se originou no contexto da Cidade Baixa e
revelam aspectos da tensa relação com manifestações culturais ligadas à população negra da
cidade e ao uso da rua” (Sevaio, 2021: 58).
Na imprensa da época, eram recorrentes as menções ao glorioso carnaval da Cidade
Baixa e imediações, com destaque para a rua João Alfredo, antiga rua da Margem:
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O Instituto Sociocultural Afro-sul Odomodê, localizado na Av. Ipiranga, é um ponto de cultura onde são
cultuadas as raízes afro-gaúchas, funcionando como espaço de valorização e preservação da cultura negra.
entre os que vieram antes e os que virão depois. O Areal reivindica a Cidade Baixa como
“berço do samba”, tomando isso como mola propulsora de suas atividades.
Na noção de direito à cidade está intrínseca a celebração da vida urbana como obra e
experiência coletiva. Estamos falando, portanto, de algo que no cotidiano acontece como
desejo pulsante de seus autores, em contínua construção: “A cidade, com seus eventos
efêmeros, é a perpétua obra de seus habitantes, onde as artes podem se tornar práxis e poiesis
em escala social” (Lefefbvre, 2001: 134). O direito à cidade é ao mesmo tempo apelo e
exigência daqueles que compartilham a urbe, os quais transformam os lugares que habitam,
praticam e circulam. A apreensão antropológica desse movimento está fora de um quadro
normativo sobre o que é a cidade, e deve ser focada na ação dos citadinos (Agier, 2015).
Lefebvre (2001) é enfático ao sinalizar que a cidade não é uma invenção da
modernidade e que, portanto, não é algo exclusivamente capitalista. Em Por amor às cidades,
o historiador Jacques Le Goff (1998) compartilha do mesmo pensamento, demonstrando as
semelhanças entre as cidades medievais e as contemporâneas, ambas sendo O ponto de
inflexão do pensamento de Lefebvre é a sinalização das características que o processo de
industrialização têm imposto às cidades, as quais rompem com a plenitude das
potencialidades da experiência citadina. O autor argumenta que uma especificidade que define
a cidade é a primazia do valor de uso em relação ao valor de troca, relação que
progressivamente tem sido invertida em decorrência do capitalismo. A perspectiva de Harvey
(2012, 2014) ratifica e atualiza o fenômeno exposto por Lefebvre, uma vez que para o autor o
regime de acumulação flexível do capital institui a cidade-mercadoria, em que as
prerrogativas da vida urbana são dominadas pela dimensão do consumo. O cenário
demonstrado não é, no entanto, condição histórica inexorável, sendo possível superá-lo a
partir do:
“(...) direito ativo de fazer a cidade diferente, de formá-la mais de acordo com
nossas necessidades coletivas (por assim dizer), definir uma maneira alternativa de
simplesmente ser humano. Se nosso mundo urbano foi imaginado e feito, então ele
pode ser re-imaginado e refeito” (Harvey, 2009: 14)
A noção de Lefebvre ajuda a entender a cidade como obra criativa de seus habitantes,
a qual está fundamentada nas experiências urbanas coletivas e dotadas de dimensões
simbólicas. Quando acontecem nas ruas, lugar de vocação essencialmente pública e política,
as manifestações artísticas e culturais expressam também o desejo de preencher o cotidiano
citadino daquilo que é significativo. Os encontros, as trocas, as festas fazem com que as ruas
deixem de ser lugar de passagem para se tornarem lugar de sociabilidades mais duradouras e
pulsantes. A fala da poetisa portuguesa Matilde Campilho (2015), durante palestra na Flip4,
caminha no mesmo sentido da vida urbana em plenitude: “A poesia, a música, a pintura, isso
não salva o mundo, mas salva o minuto. E é suficiente. A gente está aqui para dançar um
pouco sobre os escombros”. Fazer carnaval na rua é dançar sobre os escombros de uma cidade
fragmentada pelo capital, salvando os minutos da vida urbana. Se Harvey (2014) descreve
como a especulação imobiliária e a lógica do lucro impõem o ritmo das cidades
contemporâneas, é através das lutas, práticas e sociabilidades disruptivas que podemos pensar
em outros futuros.
A vida é a arte do encontro, já disse Vinícius de Moraes em uma de suas composições.
O samba, ritmo que embala os carnavais, acontece também no encontro, no encontro de gente,
de sonoridades, de vontades e no cruzamento de uma multiplicidade de acontecimentos que se
desdobram a partir dele. Essa arte do encontro estimula a dimensão coletiva do viver na
cidade, operando no sentido de elaborações de sentido compartilhados. Com vistas a
contribuir para um aprofundamento analítico desse movimento de reivindicação do direito à
cidade, nos parágrafos que seguem exploro algumas das formulações teórico-metodológicas
que guiam minha pesquisa.
Lopes (2008), ao discutir sua metodologia do andar, sugere que o sujeito andante
produz no cotidiano uma noção de cidadania calcada em experiências concretas na cidade, a
qual vai sendo forjada à medida que os sujeitos ocupam os lugares a partir de seus termos, o
que escapa das propostas abstratas de Habermas em torno da esfera pública e se aproxima do
que acontece no cotidiano. Para ele, os usos colocam em curso processos de reencantamento
da vida urbana. O que dizer, então, do carnaval de rua? Ao percorrer as ruas junto aos blocos,
estou mirando para aqueles que colocam em seu repertório prático-discursivo a reivindicação
do encantamento dos lugares públicos, encontrando assim brechas na arbitrariedade da cidade
moderna. Simas (2020) afirma que o carnaval é perigoso. Ele é a cultura produzida a partir do
cotidiano dos pobres, dos descendentes de escravizados e por isso incomoda quem deseja
manter sob controle os corpos e as vivências urbanas. É nesse sentido que a arena festiva é um
lugar privilegiado para a análise das relações de poder e narrativas de cidade divergentes
(Cruells, 2006).
Antes de mais nada, o carnaval de rua é uma experiência materializada por meio de
corpos que circulam pela cidade. Inspirada em Jacques (2012), adoto a noção de que o corpo e
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Festa Literária Internacional de Paraty, realizada anualmente no litoral fluminense.
as experiências sensório-motoras resultam em práticas cotidianas e resistentes que atualizam
os projetos urbanos, de modo a “formar um contraponto à visualidade rasa da cidade-logotipo,
cidade-outdoor” (Jacques, 2008:12). Fernandes, Herschmann e Barroso (2019), por sua vez,
indicam o surgimento de um corpo-festivo quando a cidade é praticada a partir da festa, que é
associado aos escapes à ordem, à visceralidade e à sensibilidade. Os autores consideram que a
experiência da festa de rua faz com que se relacionem o corpo-festivo e o corpo-cidade,
estando os dois corpos a todo momento negociando, entrando em conflito, concedendo e
impondo limites.
Para acessar as múltiplas camadas semânticas que o carnaval de rua adquire para seus
praticantes, encontro na obra de Michel de Certeau (2012) um aporte teórico fundamental. O
autor inspira o rompimento com uma visão panorâmica sobre a cidade: é na vida ordinária, no
cotidiano, nas práticas do sujeito caminhante que se situam as dimensões significativas do
viver urbano. Além disso, De Certeau assume como tema de A invenção do cotidiano a
antidisciplina, já que o autor enfatiza a análise de práticas que desviam do esquema
disciplinar foucaultiano, mesmo que estejam inseridos dentro dele. O foco está, portanto, na
apropriação do espaço de acordo com a engenhosidade de sujeitos ordinários, o que sugere a
proliferação de formas outras de usar a cidade e de estabelecer espacialidades. Segundo essa
linha de raciocínio, existe uma cidade-conceito e uma cidade praticada. Logo, se a cidade foi
planejada para seu funcionamento diurno, para o trabalho e para o controle, o carnaval de rua
pode contribuir para a insinuação de uma cidade metafórica, forjada nos próprios termos de
quem a vive.
Na mesma esteira de pensamento, Jane Jacobs (2000) reivindica a vivacidade das ruas
como lugar primordial de sociabilidade, assim que ruas e calçadas são dotadas de sentido a
partir de seus usos e conexões simbólicas com o viver na cidade. Nas brechas das estruturas
de controle, no agir cotidiano, se configura um campo de disputa e negociações que é
possibilitado pelos encontros e experiências coletivas. Simas (2020) mira também um olhar
sensível ao que acontece nas ruas, que são território de Exu e do carnaval. Contra a
fragmentação do viver urbano, terreiros e blocos de carnaval são modos de existir partilhados
e que são “(...) em larga medida, extensões de uma mesma coisa: instituições associativas de
invenção, construção, dinamização e manutenção de identidades comunitárias, redefinidas no
Brasil a partir da fragmentação que a diáspora negreira impôs” (p. 32).
Leite (2007), por sua vez, discute a noção de lugar como elemento da construção de
sentidos de pertencimento, sendo lugares os espaços da cidade qualificados mediante seus
usos. Ao analisar as políticas de revitalização do bairro Recife antigo, o autor argumenta a
distinção entre espaço urbano e espaço público. Para ele, o segundo é intrinsecamente
relacionado a um conjunto de ações coletivas e significativas:
O bar Pina de Copacabana, fechado nas primeiras horas do dia, era também uma
edificação simbólica, mas, sem os usos, perdia parte da sua eficácia. À noite,
quando outras sociabilidades se desenvolviam na rua, esses espaços se
emprenhavam de significados: deixavam de ser meros logradouros públicos para
se transformarem em lugares. (Leite, 2002: 124)
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Em 2019, o Bloco da Laje angariou recursos para a produção de álbum, com as canções já conhecidas de suas
saídas, por meio do edital Natura Musical, do qual faz parte a música Recanto Africano.
Figura 2 - Saída de 2020 do Bloco da Laje, no Viaduto dos Açorianos
O Bloco da Laje tem como um de seus pilares os cortejos itinerantes, sem que o trajeto
seja divulgado com antecedência. A ideia é colorir em todos os lugares possíveis uma cidade
que se mostra cada vez mais homogênea, e subverter com a alegria do carnaval a
normatividade que a lógica capitalista impõe à vida urbana. Corpos, purpurina, cores e o livre
exercício de se ser quem se é dão o tom da Laje pelas ruas. O isolamento social e a pandemia
de coronavírus impossibilitaram que acontecessem os encontros que o bloco promovia
durante o ano, tanto com os ensaios quanto com a saída oficial, no final de janeiro, e que abria
calendário de carnaval. Foram promovidas uma série de atividades virtuais, como oficinas e
lives, tudo em nome da segurança sanitária. Por enquanto, com o avanço da vacinação e com
a paulatina volta à "normalidade'', eles já organizaram uma festa privada e têm outra
programada para a primeira semana de outubro de 2022, ambas realizadas no galpão da Banda
Saldanha, um tradicional espaço dedicado ao samba. Pelas redes sociais do grupo é possível
antever a grande expectativa em relação ao carnaval de 2023, tanto por parte dos membros,
quanto dos brincantes, que seguidamente fazem menções constantes às memórias que já os
cortejos de carnaval já motivaram. A proximidade da primavera marca o início da ocupação
da cidade que a Laje promove, reivindicando a potência do estar junto para arquitetar os
espaços públicos sob o ritmo do carnaval.
Já a Turucutá Batucada Coletiva Independente carrega em seu nomes alguns dos
princípios que norteiam a atuação do grupo. Primeiro de tudo, a ênfase na dimensão coletiva
do que representa fazer carnaval, e sobretudo carnaval nas ruas, lugar que pertence a todos e
onde todos podem se juntar à multidão que se forma em torno da vibração dos instrumentos.
Os tamborins, agogôs, caixas, surdos e outros tantos instrumentos, tornam-se mecanismo de
elaboração de um modelo mais integrativo de cidade. Além do famigerado “arrastão”, a Turu
promove também oficinas de percussão, que todos os anos reúnem cerca de 100 interessados
em aprender e a cultivar o amor pelo carnaval. Elas são realizadas na quadra da escola
Imperadores do Samba, funcionando como um elo de conexão entre o carnaval das ruas e o
das escolas, que são manifestações complementares da herança de matriz afro-brasileira nas
cidades: “Blocos e escolas de samba são dois lados de uma moeda onde podem até ter uma
coroa meio apagada, mas a cara é sempre negra” (Oliveira, 2021: 80). O pesquisador e
membro da Turu, Oliveira (Ibid.) argumenta sobre o quão potente o carnaval e suas tradições
podem ser na evocação das territorialidades negras, ainda que para ele haja um processo de
embranquecimento do carnaval de rua. O desafio é, portanto, o de encontrar caminhos que
consagrem a rua como território da pluralidade, indo assim na contramão dos processos
históricos de apagamento da presença negra.
Figura 3 - Arrastão da Turucutá em 2020, no Centro Histórico
“Carnaval é alegria, não mercadoria!” dizia uma faixa que cobria parte do carro som
no último arrastão da Turu, em 2020. Aí está presente outro pilar que o bloco traz em seu
nome: ele é independente, e se organiza fora das imposições do poder público e das empresas
privadas. Com seu carnaval livre e autônomo, a Turu insere-se em um processo de
fazer-cidade pautado pela gestão democrática dos espaços públicos, subvertendo as
imposições do modo capitalista de gerir a vida urbana através do reencantamento da festa. A
última saída do bloco aconteceu dois dias antes de o isolamento social ser decretado pelo
governo do estado. Para muitos, inclusive para mim, dia 14 de março de 2020 foi a última
experiência coletiva antes da pandemia. Assim como aconteceu com o Bloco da Laje, a Turu
aproveitou as possibilidades que as atividades virtuais, inclusive as tradicionais oficinas de
percussão, tinham a oferecer. Eles também já voltaram a organizar apresentações em festas
privadas. Seguem, no entanto, as altas expectativas em relação ao que acontecerá em 2023.
Entre os três blocos que coloco em questão, o Areal do Futuro foi o que mais esteve
presente nas ruas nos últimos tempos, mesmo durante a pandemia. Como comunidade
quilombola, a população do Areal da Baronesa teve prioridade na campanha de vacinação
contra a Covid-19, de modo que a partir da primavera de 2021 o bloco começou a organizar
os ensaios coletivos em preparação para a saída do ano seguinte. Fiquei sabendo dos ensaios
pelas redes sociais do grupo, e passei a observá-los de longe, ainda temendo as aglomerações
que o evento ocasionava. Pude ver crianças e adultos, pessoas pertencentes à comunidade e
fora dela, todos unidos pela percussão e pela vontade de estar juntos.
Considerações finais
Neste trabalho, procurei demonstrar como as dimensões do direito à cidade podem ser
e são permeadas pela lógica dos encontros, das festas, do carnaval, do samba, em lugares em
que imperam as experiências coletivas. Os blocos de carnaval de rua de Porto, nesse sentido,
são propulsores de formas de apropriação da cidade que se estabelecem no compasso dos
instrumentos e das gentes, do colorido, e das fantasias.
Estamos diante, portanto, de um movimento de fazer-cidade que escapa à lógica
capitalista de controle dos corpos e de devoção ao trabalho, procurando o sentido da plenitude
da vida urbana através da celebração. Nas brechas do cotidiano, no fazer criativo e coletivo
dos sujeitos, são possíveis elaborações de uma cidade que contemple a todos, que incentive a
pluralidade e esteja aberta ao constante movimento de transformação.
Referências