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Proposição era a primeira parte obrigatória de uma epopeia; funciona

como uma apresentação geral da obra, uma síntese daquilo que o poeta
se propõe fazer. A Invocação era também uma das partes obrigatórias
da epopeia. Por sua vez, a Dedicatória era uma parte facultativa da
estrutura da epopeia, mas Camões incluiu-a ao dedicar a sua obra ao rei
D. Sebastião.

► 1.ª parte: Proposição — Canto I (estrofes 1 a 3)

     Propor significa precisamente apresentar, expor, anunciar, mostrar. O


poeta mostra aquilo que pretende ao escrever a epopeia: "Cantando
espalharei por toda a parte". O verbo cantar tem aqui o sinónimo de
exaltar, enaltecer ou celebrar. Quem é que o poeta pretende exaltar? (Lê
as estrofes 1 e 2.)

► "As armas e os barões assinalados" — todos aqueles homens que


cheios de coragem descobriram, "por mares nunca dantes navegados",
novas terras, indo mais longe do que aquilo que alguém podia esperar de
seres não divinos, "Mais do que prometia a força humana".

► "Daqueles Reis que foram dilatando" — os reis que contribuíram para


que a fé cristã se espalhasse por terras que foram sendo descobertas,
alargando assim o Império Português.

► "E aqueles que por obras valerosas — todos os que são dignos de
serem recordados pelos feitos heroicos cometidos em favor da pátria e
que por isso nem mesmo a morte os pode votar ao esquecimento, "Se
vão da lei da Morte libertando", pois foram imortalizados.

     Na 3.ª estrofe, ainda apresentando a sua intenção, Camões refere


alguns heróis que na Antiguidade tiveram muita fama, como Ulisses,
"sábio Grego", o herói da "Odisseia, e Eneias, "Troiano", herói da Eneida,
entre outros, que são agora superados pelos portugueses, pelo "peito
ilustre Lusitano". Camões afirma inclusivamente que até os próprios
deuses "Neptuno e Marte" se submeteram à vontade do povo lusitano.

     Repara nas formas verbais da 3.ª estrofe, "Cessem", "Cale-se" e


"Cesse", que, apesar de estarem no presente do conjuntivo, transmitem
a ideia de ordem (imperativo), revelando a consciência de que os feitos
dos outros heróis até agora venerados não têm comparação com os dos
portugueses, que merecem, por isso, ser dignificados - "Que outro valor
mais alto se alevanta".

► 2.ª parte: Invocação — Canto I (estrofes 4 a 5)

     Invocar significa apelar, pedir, suplicar. Nestas estrofes, Camões


dirige-se às Tágides, as ninfas do Tejo, pedindo-lhes que o ajudem a
cantar os feitos dos portugueses, mas a cantá-los de uma forma sublime:
"Dai-me agora um som alto e sublimado/Um estilo grandíloco e corrente".
O Poeta suplica este auxílio às ninfas, utilizando vários argumentos para
as convencer, pois necessita de inspiração para o seu poema estar à
altura da heroicidade do povo português. Ele próprio o diz: "Dai-me igual
canto aos feitos da famosa/Gente vossa, que a Marte tanto ajuda;/Que
se espalhe e cante no Universo,/Se tão sublime preço cabe em verso."

Para invocar as ninfas, Camões utilizou um vocativo. "E vós, Tágides


minhas, pois criado".
     Neste caso o vocativo encontra-se no meio do verso, logo, surge
entre vírgulas. O vocativo associa-se à figura de estilo apóstrofe.
     Se reparaste, a forma verbal "Dai-me" está no modo imperativo e
surge repetida três vezes sempre no início do verso. Trata-se de uma
anáfora.

     A presença do vocativo, da apóstrofe, da anáfora e dos verbos no


modo imperativo contribuem para que na Invocação se verifique o
predomínio da função apelativa da linguagem, que é própria do discurso
que pretende convencer alguém.Ao longo da obra são feitas outras
invocações, não só às Tágides, mas também a Calíope, a musa da
História.

► 3.ª parte: Dedicatória — Canto I (estrofes 6 a 18)

     Nessa altura, D. Sebastião era ainda muito jovem e por isso era visto
como a esperança da pátria portuguesa na continuação da dilatação da
fé e do império, uma vez que passados os tempos áureos das
descobertas se caminhava em direção a uma crescente degradação de
costumes. (Poderás perceber melhor a caracterização da sociedade
portuguesa desta época em Gil Vicente.)

     Os primeiros versos da Dedicatória revelam de imediato esta certeza


depositada em D. Sebastião: "E vós, ó bem nascida segurança/Da
Lusitana antiga liberdade, /E não menos certíssima esperança/De
aumento da pequena Cristandade". Reparaste, decerto, que a
Dedicatória se inicia por uma apóstrofe, tal como a Invocação. Logo, o
discurso desta parte de Os Lusíadas será também um discurso
argumentativo, cujo objetivo é convencer. Para isso o Poeta preparou um
discurso muito bem organizado, mais extenso em relação à Proposição e
à Invocação, onde não só oferece o seu canto ao rei, como lhe tece
muitos elogios, aconselhando-o e, acima de tudo, apelando para que
veja o quão gloriosa foi e poderá ser a nação que governa. É notória a
insistência do Poeta em chamar a atenção do monarca, através dos
muitos vocativos, apóstrofes e anáforas a que recorre, reforçando a sua
linguagem apelativa.
     O elogio ao rei está presente em toda a Dedicatória, mas é desde
logo visível nas três primeiras estrofes, salientando-se as
várias metáforas, como em "Vós, tenro e novo ramo florescente",
realçando a jovialidade do rei, e o aposto, como em "Vós, poderoso Rei,
cujo alto Império".

     Na caracterização de D. Sebastião, há também uma figura de estilo


que surge muitas vezes. Trata-se da sinédoque.

     Para além do elogio ao rei, Camões pretende convencê-lo a aceitar o


seu canto, por isso recorre a uma linguagem argumentativa. Há quem
considere, inclusivamente, que o discurso da Dedicatória segue a
estrutura própria do género oratório.

     Esta estrutura tinha cinco partes: exórdio, que correspondia ao início


ou introdução do discurso; exposição, que era a parte do
desenvolvimento; confirmação, que era o momento em que se
apresentavam vários exemplos para demonstrar o que se tinha
dito; peroração, que consistia numa recapitulação de tudo quanto se
dissera; e o epílogo, que correspondia à conclusão do discurso.

     Pela estrutura apresentada compreendes que o género oratório era


muito exigente ao nível da linguagem e da organização. Mas como é que
se verifica a presença deste género na Dedicatória? Atenta na seguinte
divisão:
• exórdio: início da Dedicatória em tom de elogio ao rei (estrofes 6 a 8).
• exposição: o Poeta pede ao rei que aceite o canto que lhe é dedicado
para que nele possa ver os gloriosos feitos do seu povo (estrofes 9 a 11).
• confirmação: Camões apresenta vários exemplos de heróis da História
de Portugal, demonstrando aquilo que anunciara (estrofes 12 a 14).
• peroração: novamente se apela ao rei para que aceite o desafio de
governar bem a sua pátria (estrofes 15 a 17).
• epílogo: Camões conclui, pedindo ao rei o seu favor, a sua aceitação
desta obra (estrofe 18).

     Assim, e em conclusão, pela necessidade de um discurso que


convença D. Sebastião, Camões recorreu à linguagem apelativa através
de numerosos vocativos e apóstrofes e do uso frequente do modo
imperativo ("Inclinai", "Ponde", "Ouvi"), que surge repetido ("Tomai",
"Dai") sempre na segunda pessoa do plural ("Vós") que é uma forma de
tratar alguém com cerimónia, neste caso o rei. A utilização tão frequente
do vocativo e do imperativo revela uma chamada de atenção constante
do destinatário desta Dedicatória para o que o poema vai celebrar.

     Daí que, no final do Canto X, nas últimas estrofes, na conclusão da


obra, o Poeta retome a Dedicatória, voltando a interpelar o rei, pedindo-
lhe que atenda ao canto que foi feito e que, agora, melhor do que nunca,
conhecedor da história gloriosa do povo lusitano, julgue se é preferível
dominar o mundo todo ou ser rei de gente tão grandiosa, como lhe havia
já perguntado na Dedicatória: "E julgareis qual é mais excelente,/Se ser
do mundo Rei, se de tal gente." (Canto I , estrofe 10).

O Consílio dos Deuses — Canto I (estrofes 20 a 41)

     A ideia introduzida na estrofe 19 não é terminada no último verso. Ela


é continuada na estrofe 20. Por isso se utilizou a construção "Já...
Quando...", transmitindo a ideia de ligação temporal entre as duas
estrofes: os navegadores portugueses já navegavam no oceano Índico,
quando os deuses se reuniram no Olimpo para decidirem se permitiam
ou não que os portugueses encontrassem um lugar onde pudessem
descansar e recuperar novas forças para enfrentar a viagem no
desconhecido.

     A ligação entre as duas estrofes não é meramente sintática, mas


revela que a viagem de descoberta do caminho marítimo para a Índia
depende do parecer favorável dos deuses, da sua vontade perante estes
humanos tão decididos. Logo, interligam-se também aqui o plano da
viagem e o plano mitológico e esta associação está presente em toda a
Narração. Os deuses, ao dificultarem ou facilitarem a viagem dos
portugueses, permitem que a ação se desenvolva. O plano mitológico era
fundamental numa epopeia, mas nesta obra os deuses não têm apenas a
função de embelezar a ação, eles são elementos geradores
(provocadores) da própria ação.

     Depois de caracterizado o espaço onde se vão reunir os deuses, o


Consílio inicia-se com o discurso de Júpiter, o pai dos deuses (estrofes
24 a 29) que, após apresentar alguns feitos heroicos do povo português,
se refere concretamente ao novo feito que os navegadores pretendiam
alcançar e que o destino, o "Fado eterno" , como lhe chama Júpiter, lhes
tinha reservado. A descrição que Júpiter faz da Nação portuguesa
permite a exaltação deste povo, capaz de atos tão grandiosos. Júpiter
determina, então, que os navegadores sejam "agasalhados" na costa
africana, quer dizer, que possam descansar em lugar seguro. O discurso
de Júpiter é apresentado através do discurso direto.

     Repara no exemplo: "Quando Júpiter alto, assim dizendo,/Cum tom de


voz começa, grave e horrendo:". O Poeta indicou a personagem que ia
falar, utilizando para isso um verbo declarativo "dizendo" , os dois pontos
e a mudança de verso para iniciar o discurso de Júpiter: "Eternos
moradores do luzente...".

     Depois de apresentada a decisão de Júpiter, os deuses vão dando a


sua opinião (estrofes 30 a 34), destacando-se a de Baco, que é contra os
portugueses, pois considera que eles se tornarão superiores a si no
Oriente, e a de Vénus, que defende com amor os portugueses. As suas
opiniões não são, no entanto, transmitidas em discurso direto, mas sim
em discurso indireto.

     Repara também no exemplo: "O padre Baco ali não consentia/No que
Júpiter disse, conhecendo...". Neste exemplo, não foi Baco que
transmitiu a sua opinião, mas sim o Poeta que a deu a conhecer.
     Há ainda uma terceira forma de discurso que não surge neste caso,
mas que deves conhecer, o chamado discurso indireto livre.

     Apesar de não haver nenhum caso de discurso indireto livre no texto,


imagina este exemplo: Entre os deuses, Baco dava a sua opinião. Não
consentia! Então, os portugueses iam tornar-se mais famosos do que ele
no Oriente? Nem pensar em perder a sua glória!

     Se leres a estrofe 35, apercebes-te que a confusão gerada entre os


deuses foi grande, até os próprios verbos sugerem essa confusão:
"rompendo", "Brama", "murmura", "Rompem-se", "ferve". O tom utilizado
nesta estrofe é hiperbólico, há um exagero intencional da realidade para
enfatizar a confusão. É nesse momento que Marte, o deus da guerra,
colocando fim à questão "E, dando uma pancada penetrante" que até fez
tremer o céu (hipérbole) , apresenta a sua opinião favorável aos
portugueses (estrofes 36 a 40), pelo seu amor a Vénus ou por verdadeira
admiração destes homens, aconselhando Júpiter a não voltar atrás na
sua decisão, que, assim, acaba por consentir no que Marte dissera e
terminar o Consílio.

     Quando um grupo de pessoas se reúnem para deliberar sobre alguma


coisa, como foi o caso do Consílio dos deuses, é necessário redigir uma
ata dessa reunião. A palavra Ata teve a sua origem na língua latina e
significa "feitos".

     Aquilo que se escreve numa ata deve ser inteiramente fiel ao que na
realidade se passou na reunião, não se podem inventar ou exagerar
factos. Também não se pode, no caso de haver um engano, apagar ou
rasurar o texto. Deve-se escrever entre vírgulas "digo" e corrigir a
informação errada que se deu. Imagina o seguinte exemplo: Marte, digo,
Júpiter presidiu o Consílio dos deuses.

     Sempre que tiveres necessidade de escrever números na ata, deves


fazê-lo por extenso, mesmo a data deve ser totalmente em extenso,
como, por exemplo: Aos vinte e quatro dias do mês de novembro de mil
novecentos e noventa e nove...

     Para que ninguém altere nada do que foi escrito, todos os espaços
em branco da ata devem ser trancados com um traço. A linguagem a
utilizar deve ser muito clara e objetiva e não se deve recorrer a siglas ou
abreviaturas para se escrever mais rapidamente.
     Uma ata tem um número próprio que a abre e deve seguir a seguinte
estrutura:
• introdução — onde se deve indicar a data de realização da reunião, o
local e a hora, quem presidiu à reunião, o número de pessoas que
estiveram presentes e a identificação das que faltaram e ainda a ordem
de trabalhos a tratar.
•  desenvolvimento — onde são referidos os assuntos tratados, as várias
intervenções das pessoas presentes, as decisões que foram tomadas,
bem como os resultados de uma votação, se for realizada.
• encerramento — onde se termina a ata com uma fórmula própria que
indique o encerramento da reunião por não haver mais nenhum assunto
a tratar, a que se segue a assinatura do presidente da reunião e do
secretário que lavrou a ata.

     Quando tiveres de assinar uma ata, não o faças sem ler ou ouvir ler o
que nela foi escrito. Uma ata é sempre um documento de grande
responsabilidade.
 
A paragem em Melinde...
     Tal como os deuses tinham decidido em Consílio, a armada
portuguesa encontra um lugar para descansar (Canto II, estrofe 73), na
costa africana, em Melinde, onde os navegadores são muito bem
acolhidos por toda a gente, em especial pelo rei que já tinha
conhecimento da fama dos portugueses. O rei revela a Vasco da Gama a
sua vontade de conhecer melhor o povo lusíada e pede que este lhe
conte tudo sobre a sua pátria (Canto II, estrofes 109 a 113).
     É por isso que o Canto III abre com uma nova invocação, desta vez a
Calíope, musa da epopeia e da eloquência, a quem o Poeta pede que o
ensine a narrar com exatidão aquilo que Vasco da Gama contou ao rei
de Melinde.
     A partir da terceira estrofe deste canto, há uma mudança de narrador
da ação, pois deixa de ser o Poeta, narrador não participante, para ser
Vasco da Gama, um narrador autodiegético. Vasco da Gama revela nas
suas palavras o prazer que tem em contar ao rei a história do seu povo:
"Mandas-me, ó Rei, que conte declarando/De minha gente a grão
genealogia;/Não me mandas contar estranha história,/Mas mandas-me
louvar dos meus a glória." Vasco da Gama torna-se narrador, aquele que
conta, e o rei de Melinde, narratário, aquele a quem a história é narrada.
     E é assim que Vasco da Gama inicia a narração da História de
Portugal, através de uma longa analepse, desde a fundação da
nacionalidade até ao momento da viagem, dando-se lugar na ação a um
outro plano diferente do da viagem e da mitologia, o plano da história.

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