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Ministério da Educação

Universidade Federal da Bahia – UFBA


Instituto de Geociências – IGEO
Programa de Pós-Graduação em Geografia

DIREITO FUNDAMENTAL À CIDADE:


ASPECTOS URBANÍSTICOS DA
REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA (REURB) NO
LOTEAMENTO SÃO BENTO - CAMAÇARI/BA

Luiza Carla da Silva Machado

Linha de Pesquisa: 1 - Análise Urbana e Regional

Salvador, Bahia
2023
1. INTRODUÇÃO E JUSTIFICATIVA

A irregularidade fundiária, em maior ou menor grau, é um problema mundial. No


Brasil, certamente, ela tem duas causas principais: as transformações históricas que recaíram
sobre a posse da terra e a modificação do cenário populacional rural urbano, ocorrido com
maior intensidade no Século XX, promovido pela industrialização emergente no país. O
rápido crescimento populacional das cidades brasileiras, mostra que elas foram ajustadas à
medida que as demandas de uso e ocupação do solo surgiam, sem que houvesse um
planejamento e aplicação adequado dos recursos, por vezes, insuficientes. A falta de
ordenamento territorial trouxe consequências desastrosas à população e às cidades, dentre elas
a falta de saneamento básico, a desigualdade social, dificuldade de promoção de mobilidade
social, deficit habitacional e a irregularidade fundiária.
Fundamentados no direito urbanístico, muitos teóricos definiram e teceram atribuições
da regularização fundiária. Uma clássica é da jurista Alfonsin (2000, p. 158 apud
ALFONSIN, 1997, p. 24), que entende a regularização fundiária como:

[...] o processo de intervenção pública, sob os aspectos jurídico, físico e social, que
objetiva legalizar a permanência de populações moradoras de áreas urbanas
ocupadas em desconformidade com a lei para fins de habitação, implicando
acessoriamente melhorias no ambiente urbano do assentamento, no resgate da
cidadania e da qualidade de vida da população beneficiária.

Enquanto que Correia e Farias (2015, p. 867), afirmam que a “regularização fundiária
integral plena – chamada de sustentável”, é aquela que apresenta quatro dimensões: (i) a
registral, que garante a posse ou a tutela da propriedade; (ii) a urbanística, que permite a
integração plena da moradia à cidade, seus equipamentos coletivos, serviços públicos e
direitos fundamentais; (iii) a ambiental, que proporciona a seus moradores e suas próximas
gerações uma vida saudável; e (iv) a social, que garante oportunidade a seus habitantes para
que no presente, desfrutem de uma vida digna e, no futuro, até possam permanecer em seus
locais de origem, não por necessidade e, sim, por opção.
Uma das principais causas de formação de irregularidade fundiária no Brasil, deve-se
a urbanização acelerada, onde a lógica capitalista de produção das cidades tornou o produto
“unidade habitacional” ou “lote urbanizado” uma mercadoria tanto mais cara quanto melhor,
munida de centralidade, infraestrutura e equipamentos, tornando-se inacessível para a maioria
da população das cidades. Enquanto isso, em real expansão no país, as classes menos
favorecidas, sem propriedade e sem capital, passaram a nutrir um mercado imobiliário
irregular, com regras próprias e marcado pela insegurança da posse, denominados de
“submercado.” (ALFONSIN, 2005)
Mesmo hoje, a grande procura por moradia, somada a falta de políticas públicas
habitacionais para a classe de menor renda, faz com que a ocupação de áreas irregulares seja
uma escolha rápida e viável para a população que precisa de moradia, mas não tem condições
de comprar um terreno em um loteamento regular, optando assim por adquirir terrenos em
loteamentos irregulares e clandestinos. Essas áreas normalmente estão situadas em áreas de
risco, de vulnerabilidade ambiental, desprovidas de infraestrutura, com poucos equipamentos
públicos, nas quais as edificações geralmente são construídas em desacordo com as normas
técnicas urbanísticas estabelecidas.
A produção insuficiente de moradias de interesse social por parte da municipalidade,
dificuldade de acesso ao crédito pelas pessoas de baixa renda e a complexidade da gestão
urbana associada à burocracia no que se refere a aprovação de loteamento, são algumas das
causas da formação da irregularidade, afirma Fernandes (2011). Enquanto que Provin (2018),
diz que a falta de investimentos em infraestrutura do poder público municipal está ligada a
irregularidade fundiária. Já Cardoso (2003), se refere à inadequação do quadro técnico
(equipes reduzidas, ausência de programas de formação e capacitação para o desenvolvimento
das atividades necessárias), bem como a precariedade da infraestrutura de trabalho
(computadores, softwares e mapas digitalizados) dificultando assim o processo de
licenciamento e fiscalização do território urbanizado, tornando-o lento e ineficaz. O conjunto
dos fatores mencionados, contribuem para a continuidade das ocupações irregulares, por
pessoas de baixa renda e que necessita de moradia.
As consequências da irregularidade fundiária, são sentidas não só apenas por aqueles
que ocupam a terra, mas, também, se refletem nas cidades como um todo. No âmbito jurídico,
a informalidade impacta na falta de segurança de posse, na qual os moradores correm risco de
despejos, além de não possuírem endereço oficial, dificultando assim o acesso à
correspondência e à aquisição de crédito formal. Na área urbano-ambiental, a irregularidade é
marcada por cidades fragmentadas, evidenciadas pelos riscos de degradação ambiental, de
saúde, poluição, segurança e falta de saneamento básico. (FERNANDES, 2011)
As consequências também estão associadas às questões sociais e a negação de direitos
fundamentais, afirma Maricato (2003), que segue afirmando que pessoas residentes em áreas
irregulares geralmente não têm acesso a direitos básicos como saúde e segurança, somando-se
a isto menos oportunidades de emprego e profissionalização, maior exposição à violência e
certamente discriminação racial.
Para os municípios, ilegalidade dificulta a arrecadação, pois a sonegação de impostos é
uma característica comum dessas áreas. Ainda em relação às consequências econômicas, é
sabido que nas áreas irregulares, as indústrias, serviços e comércio são praticamente
inexistentes, incidindo predominantemente o uso residencial, afetando diretamente a
circulação de riquezas e contribuindo para a baixa disponibilidade de emprego e renda para a
população residente. (CARDOSO, 2003)
Nesse sentido, Bezzera e Chaer (2020) enfatizam que a garantia do acesso à terra
perpassa pela articulação do assentamento com o planejamento urbano, sem descuidar do seu
ajuste ao lugar, podendo proceder à adequação de regras urbanísticas às construções e ao uso
do solo existentes.
Diante do exposto, diversos aspectos comprovam que a irregularidade fundiária
transcende a posse da terra, com destaque para o econômico, o jurídico, o ambiental, o social
e o urbano. Todas essas áreas são importantes e estão conectadas, além de estarem
caracterizadas no território de diversas maneiras. No entanto, esse trabalho dará destaque a
dimensão urbanística da irregularidade fundiária, por pensar que essa área tem uma grande
importância na vida das pessoas e das cidades, bem como no cumprimento da função social
da propriedade.
O direito à cidade é fundamental para que a função social da propriedade seja
efetivada. Segundo Lefebvre (2001), este deve ser compreendido como um direito à vida
urbana, voltado para a construção de um urbano renovado, transformado em lugar de
encontro, dando valor ao uso, no qual se promova o supremo bem entre os bens. Harvey
(2014), por sua vez, vai além, dizendo que o direito à cidade significa ter condições de moldar
a cidade de acordo com as necessidades da população.
A garantia ao direito de moradia digna, o intuito de desenvolver políticas públicas
urbanas e a garantia da segurança jurídica às propriedades, vêm fazendo com que os
legisladores editem leis, que estabeleçam medidas práticas e concretas que permitam aos
municípios a legalização de imóveis inseridos em núcleos informais consolidados.
A Constituição Federal do Brasil de 1988, em seu art. 5º, inciso XXIII, estabelece a
função social da propriedade como um direito e garantia individual, fazendo com que a
propriedade e sua regularização, sejam, cada vez mais amparados pelo legislativo brasileiro.
(BRASIL, 1988)
Assim, o Estatuto da Cidade, Lei n. 10.257/2001, estabelece normas especiais de
urbanização e regularização fundiária, considerando a situação socioeconômica da população
e as normas ambientais. (BRASIL, 2001) Tendo como principais ferramentas o Plano Diretor,
para aplicação dos instrumentos urbanísticos, levando em conta as características locais e as
Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), as quais permitem reconhecer a diversidade de
ocupações existentes nas cidades, possibilitando a legalização verdadeira destes
assentamentos, através de índices urbanísticos específicos, mais realistas, fazendo com que o
direito à cidade seja ofertado a esses moradores.
Destaca-se também o maior programa de habitação de interesse social da história do
país, o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), regulamentado pela Lei n.
11.977/2009, que surgiu com o objetivo, não exclusivamente, mas também, de reduzir os
indicadores do déficit habitacional. A legislação foi um marco para a regularização fundiária
urbana brasileira, por ser a primeira a tratar da temática, demonstrando os caminhos para a
resolução da irregularidade apresentada no solo urbano. Alfonsin (2020), afirma que
caracterizar uma Zona Urbana como ZEIS “[…] é uma forma de garantir terra urbanizada
para os pobres”, pois a partir desta ação, a área caracterizada só poderá ser utilizada para a
habitação de interesse social e não mais para outros tipos de usos. Mas apesar da sua
importância, a Lei n. 11.977/2009, foi revogada pela Medida Provisória n. 759/2016,
convertida depois na Lei n. 13.465/2017.
Devido a importância da questão e das possíveis consequências à população e às
cidades, em 11 de julho de 2017, foi promulgada a Lei Federal n. 13.465/2017, denominada
de Lei da Regularização Fundiária Urbana (REURB), que objetiva desburocratizar os
procedimentos para a regularização fundiária, além de poder expandir as possibilidades de
acesso à terra urbanizada para a população de baixa renda, proporcionar o resgate da
cidadania e o crescimento econômico dos municípios.
Existem algumas diferenças entre a Lei de 2009 e a Lei de 2017. Enquanto a primeira
priorizava os aspectos urbanísticos, o cumprimento da função social da propriedade e a
promoção do direito à cidade, a segunda apresenta elementos como desburocratização, agilidade
e foca o aspecto jurídico da regularização fundiária, ou seja, antes, todo o procedimento
administrativo tramitava no Cartório de Registro de Imóveis e agora acontece, quase que
totalmente, no âmbito municipal, fazendo com que o ente municipal seja o principal agente
promotor da regularização.
Outro fato que gerou críticas a lei da REURB, é de que a mesma não tem
obrigatoriedade do gravame de ZEIS na área regularizada na legislação municipal, bastando
somente que esteja ocupada por população de baixa renda. Um ponto bastante questionável,
refere-se à dispensa dos critérios urbanísticos, permitindo assim a regularização de lugares que
não tenham qualidade urbana. Portanto, pode-se relacionar diversas incoerências presentes na
Lei n. 13.465/2017. Enquanto alguns autores, principalmente voltados à área jurídica, alegam
seus benefícios como a desburocratização, celeridade dos processos, garantia de posse e
tramitação por vias administrativas, outros, geralmente ligados às questões urbanísticas,
criticam-na com veemência, dizendo que houve uma “mudança drástica de rumo na orientação
da política urbana brasileira.” (ALFONSIN et al; 2020, p. 177)
Neste sentido, o urbanismo pode ser um forte aliado para o cumprimento da função
social da propriedade e da promoção do direito à cidade. Isso feito através da implementação
de parâmetros que auxiliem no regramento do parcelamento do solo adequado aos locais a
serem regularizados, levando-se em conta as características do lugar, não perdendo o objetivo
de desenvolvimento com qualidade, segurança e salubridade, promovendo assim a integração
dos espaços regularizados às demais áreas da cidade e propiciando maior qualidade de vida
aos residentes locais.
Nesse contexto, se insere o problema fundamental desta pesquisa, que é o de
investigar quais foram os resultados urbanísticos obtidos por meio da regularização fundiária
no Loteamento São Bento1, município de Camaçari/BA. O presente estudo opta por escolher o
município de Camaçari, tendo em vista que o município tem promovido ao longo dos anos
programas habitacionais e de regularização fundiária, com base nas legislações federais e
mais recentemente via regulamentação da Lei n. 1546/2019, chamada de “Papel Passado”,
definindo o destino dos recursos do Fundo Municipal de Habitação de Interesse Social
(FMHIS), em concordância com o novo paradigma proposto pela Lei nº 13.465/2017. Com o
intuito de compreender essa questão, estabeleceram-se os objetivos a seguir.

1
De acordo com a Prefeitura de Camaçari, considera-se na presente pesquisa que o Loteamento São Bento se
localiza no bairro irregular denominado São Bento, situado no Distrito de Monte Gordo  município de
Camaçari-BA.

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