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UNIDADE 1

TÓPICO 1

ASPECTOS HISTÓRICOS DA
URBANIZAÇÃO

1 INTRODUÇÃO
Qualquer exame, ainda que superficial, da prática e da teoria concernentes
ao desenvolvimento das atividades ligadas ao planejamento urbano brasileiro,
revelará uma situação de crise. As cidades brasileiras, em sua maioria, apesar dos
progressos técnicos e científicos alcançados, prescindem ainda de cartografias
adequadas e de dados estatísticos confiáveis. Faltam também técnicos experientes
e qualificados em planejamento urbano e uma maior conscientização da
população quanto à questão urbana. Credite-se isso ao fato da ausência de canais
reivindicatórios eficientes e políticas urbanas apenas no papel, sem efetividade na
aplicação prática. Temos uma cidade real, à margem da legislação, e uma cidade
ideal, que está presente na maioria dos planos diretores municipais (ROLNIK,
1997). Ainda que as demandas do cidadão não sejam levadas em conta, que as
políticas urbanas estejam presas apenas no papel e que o quadro sociopolítico
apresente-se confuso, sempre ocorre o aparecimento de uma luz no fim do túnel.

Este texto pretende subsidiar seus conhecimentos, ampliando sua


compreensão de como se desenvolveu a atividade planejadora, como se
formaram as cidades ao longo da história e quais são as ferramentas necessárias
ao planejamento urbano no processo de organização das políticas públicas
urbanas. Boa leitura!

2 A ATIVIDADE PLANEJADORA EM DESCRÉDITO


Apesar das diversas e contínuas tentativas e de grande esforço técnico na
aplicação sistemática dos mais diversos modelos metodológicos para promover o
controle do espaço urbano, é inegável que chegamos ao século 21 com a figura da
atividade planejadora em descrédito parcial, devido ao crescimento desordenado
observado em nossas cidades. Não bastasse a convivência entre a cidade dita legal,
que obedece a todo o rigor da legislação urbanística, e a cidade real, que cresce
à margem da legislação, é apenas por força legal, por ocasião da aprovação da
Constituição Federal de 1988, que há a obrigatoriedade do planejamento urbano
das cidades, transferindo-se uma responsabilidade sem precedentes aos governos
municipais de cidades com mais de 20 mil habitantes. Estas cidades passaram a
ter a obrigação de elaborar seus respectivos planos diretores, cujo delineamento
estava previsto no artigo 182 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), definindo
as condições para que a propriedade urbana cumprisse sua função social:

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Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder


público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por
objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da
cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
§ 1º. O Plano Diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório
para cidades com mais de 20 mil habitantes, é o instrumento básico da
política de desenvolvimento e de expansão urbana.
§ 2º. A propriedade urbana cumpre a sua função social quando atende
às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no
Plano Diretor.
§ 3º. As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e
justa indenização em dinheiro.
§ 4º. É facultado ao poder público municipal, mediante lei específica
para a área incluída no Plano Diretor, exigir, nos termos da lei federal,
do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não
utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena,
sucessivamente, de:
I – parcelamento ou edificação compulsórios;
II – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana
progressivo no tempo;
III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida
pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal,
com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e
sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.

Examinando-se os fracassos e os sucessos das práticas de planejamento


urbano das últimas décadas e julgando a validade de seus métodos, o grau de
confiabilidade de suas formulações e a eficácia de suas soluções, há uma certa
apreensão quanto à obrigatoriedade de se fazer planejamento somente para
cidades com mais de 20 mil habitantes. De um lado, pode-se ter a reedição
das experiências de inoperância, mistificação e cumplicidade tecnocrática que
marcaram anos atrás a produção de vários planos diretores, gerando boa parte
do descrédito que hoje assola a atividade planejadora. Pode-se ter, por outro
lado, avanços significativos no sentido de implantação, nas cidades brasileiras,
de processos de planejamento a partir do desenvolvimento do “evento” plano
diretor. As cidades ficam à espera de um aporte de recursos que consolidem e
transformem o planejado no papel em obras, prenunciando os novos ares de uma
verdadeira reforma urbana. Temos, na esfera federal, um Ministério exclusivo
para a promoção do desenvolvimento urbano, que é o Ministério das Cidades,
que “foi instituído em 1º de janeiro de 2003, através da Medida Provisória nº 103,
depois convertida na Lei nº 10.683, de 28 de maio do mesmo ano” (MINISTÉRIO
DAS CIDADES, 2012).

Ainda segundo o Ministério das Cidades (2012):

o modelo de urbanização brasileiro produziu nas últimas décadas


cidades caracterizadas pela fragmentação do espaço e pela exclusão
social e territorial. O desordenamento do crescimento periférico
associado à profunda desigualdade entre áreas pobres, desprovidas de
toda a urbanidade, e áreas ricas, nas quais os equipamentos urbanos
e infraestruturas se concentram, aprofunda essas características,
reforçando a injustiça social de nossas cidades e inviabilizando a
cidade para todos.

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Neste quadro de desamparo em que se inserem nossas cidades, com muitas


delas não tendo o mínimo instrumental necessário para o desenvolvimento das
atividades de planejamento urbano, quer por ausência de cartografia ou mesmo
de técnicos capacitados, não basta o repensar das formas de produção de cidades,
mas das sistemáticas de análise dessa produção. Produção que, de forma dinâmica,
altera-se continuamente em seus aspectos conjunturais e estruturais, diagnosticada
no século passado por Costa (1989, p. 110) pela necessidade “da superação de seus
graves problemas sociais, ambientais e econômicos que desafiam o presente e o
futuro de nossas cidades” e que leva ao agravamento do quadro urbano.

A falência do planejamento globalizante e a análise dos motivos que


levam a população a se omitir do processo urbano fazem com que se procurem
novas estratégias de ação, trazendo confiabilidade à atividade planejadora e
aproximando-a de um processo de planejamento mais democrático, no resgate de
seu papel que é essencialmente político, pois isto é “fundamental para dar sentido
e legitimidade às questões técnicas e administrativas necessariamente envolvidas”
(COSTA, 1989, p. 25). Aproximar o instrumental básico da atividade planejadora,
levando-o a qualquer cidadão comum, é imprescindível. Este trabalho deve dar-
se numa escala social perceptível ao indivíduo, suscitando uma democracia que
surja de baixo para cima, evidenciando a conscientização do cidadão numa escala
que lhe seja compreensível, como os limites do seu bairro, como, por exemplo,
sugere o urbanista Cândido Malta Campos Filho em seu livro seminal “Cidades
brasileiras: seu controle ou o caos” (CAMPOS FILHO, 1989).

A percepção destes conflitos faz parte do diagnóstico de todas as esferas,


federal, estaduais e municipais, já que o diagnóstico é muito claro:

boa parcela das cidades brasileiras abriga algum tipo de assentamento


precário, normalmente distante, sem acesso, desprovido de
infraestruturas e equipamentos mínimos. Na totalidade das grandes
cidades essa é a realidade de milhares de brasileiros, entre eles os
excluídos dos sistemas financeiros formais da habitação e do acesso à
terra regularizada e urbanizada, brasileiros que acabam ocupando as
chamadas áreas de risco, como encostas e locais inundáveis. Por outro
lado, em muitas cidades, principalmente em suas áreas centrais, uma
massa enorme de imóveis se encontra ociosa ou subutilizada, reforçando
a exclusão e a criação de guetos – tanto de pobres que não dispõem de
meios para se deslocar, quanto de ricos que temem os espaços públicos
–, realidade que contribui para a violência, para a impossibilidade de
surgimento da cidadania (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2012).

Parte da solução também vem sendo tentada:

Visando promover ações de melhora deste quadro, o Governo Federal


prioriza apoio ao planejamento territorial urbano e à política fundiária
dos municípios, através da Secretaria Nacional de Programas Urbanos
(SNPU), que tem como missão implantar o Estatuto das Cidades (Lei
no 10.257/2001), através de ações diretas, com transferência de recursos
do Orçamento Geral da União e através de ações de mobilização
e capacitação, coisa que nem sempre se transforma em resultados

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palpáveis, apesar das seis áreas de atuação da SNPU, como apoio à


elaboração de planos diretores, regularização fundiária, reabilitação
de áreas centrais, prevenção e contenção de riscos associados a
assentamentos precários, acessibilidade e conflitos fundiários urbanos
(MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2012).

TUROS
ESTUDOS FU

Você verá mais tarde, na Unidade 2, do que trata e o que é o Estatuto da Cidade!

3PLANEJAMENTOURBANOCOMPARTICIPAÇÃO:OBAIRRO
A participação popular em qualquer processo, quer de cunho eleitoral, de
planejamento urbano ou de qualquer outra forma, vem refletida no conhecimento
prévio das regras do jogo em que ela, população, venha a se inserir. É como se
fosse um jogo de cartas, como bem observa Carlos Nélson dos Santos (1988), em
seu livro “A Cidade Como um Jogo de Cartas”, especialmente no capítulo “A
cidade como um jogo”: não pode haver participação sem que se conheçam as
regras do jogo urbano. Se a maioria dos participantes estiver alheia ao processo,
pelo desinteresse típico de quem primeiramente preocupa-se com a própria
sobrevivência ou com a participação dando-se de forma manipulada, de modo
a conferir legitimação às propostas econômicas e políticas de grandes grupos
detentores do capital, chega-se a um estágio de desconfiança com relação a
qualquer processo que se diga “participativo”.

Assim, são poucas as experiências de gestão participativa no sentido


mais amplo que o termo “participativo” possa explicitar, observando que,
na maioria das vezes, há uma utilização da população como a avalista de um
processo global de produção da cidade, fomentado e conduzido pelos grandes
grupos econômicos, ao qual ela, população, não tem sequer condições de
avaliar. Cria-se assim, de maneira forçada, uma pseudoaceitação de planos
diretores participativos (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2005), transformando-se
a cogestão (gerir com) para a congestão, ou seja, daquilo que lhes é empurrado
goela abaixo e não digerível.

Se a maioria das formas de participação a nível globalizante falhou, a


proposição da adoção de uma esfera de atuação participativa na qual o cidadão
possa aprender a essência do que está sendo discutido passa pela aproximação
da escala de pertencimento e de domínio do repertório cotidiano da realidade:
a escala do bairro. O bairro é a esfera onde todas as condicionantes, carências,
matizes e, porque não dizer, as soluções possíveis e impossíveis, são discutidas
e ventiladas, dentro de um quadro referencial perceptível a qualquer de seus

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moradores. Torna-se lógico que fica mais fácil a um morador de um determinado


bairro compreender, opinar e participar de decisões dentro daquilo que diz
respeito ao seu dia a dia, do que opinar sobre os problemas que possam atingir os
moradores do extremo oposto da cidade ou, mesmo, de bairros vizinhos, ainda
em que pese sua proximidade (CAMPOS FILHO, 1989).

Desta forma, é na escala do bairro que a participação passa a se incorporar


na práxis política do cotidiano de cada cidadão, podendo (e essa deve ser a
intenção) ser estendida à compreensão e discussão da cidade, em seus aspectos
estruturais, como um todo.

NOTA

Práxis é a atividade humana, em sociedade e na natureza, que cria as condições


indispensáveis à existência da sociedade.

Mais do que a propalada democratização, deve-se, portanto, objetivar


dotar o cidadão de um senso crítico, a partir da percepção de uma realidade
concreta, que o cerca de perto. Uma vez despertada, essa consciência pode levá-lo a
outros caminhos que não sejam o das atitudes reivindicatórias isoladas, dispersas
e individualizadas, muitas vezes de caráter duvidoso. Pretende-se, isso sim,
devolver ao indivíduo a noção de identidade coletiva, onde ele passa a pertencer
a um determinado grupo social, que, no caso, é o seu bairro de vizinhança.

Essa organização comunitária passa necessariamente por um compromisso


de gestão da unidade físico-territorial do bairro, pelos seus respectivos habitantes,
evitando e passando ao largo de práticas clientelistas ou paternalistas, sendo que
quanto mais organizada for, maior será a possibilidade de poder reivindicatório
dentro do processo de construção da cidade, visto que a análise desse processo
“supõe compreender um processo de conflitos, resultante que é da estruturação
da própria sociedade” (DEBIAGGI, 1985, p. 8).

Observa-se, também, que as novas formas de planejamento participativo


estão intimamente ligadas ao fato do aprender a ouvir, dentro de processos
democráticos aos quais nós ainda não nos acostumamos. É necessário esse esforço
conjunto, multidisciplinar na sua concepção e plurissocial na sua execução. A
condução deste processo só terá legitimidade se calcada no debate e participação
do conjunto da sociedade a quem seus objetivos pretenderem beneficiar. Para
entender o processo de construção das cidades e sua forma de estruturação
urbana, precisamos estudar os processos históricos, com o intuito de não cometer
os mesmos erros. Vamos lá, estudar um pouquinho sobre como as cidades foram
construídas ao longo do tempo!

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4 A CIDADE ATRAVÉS DA HISTÓRIA: UM BREVE HISTÓRICO


Embora o Urbanismo surja como disciplina autônoma apenas a partir do
século XIX e o Planejamento Urbano apenas no século XX, as cidades são planejadas
e desenhadas desde o início da civilização. A história das cidades é objeto de
estudo de muitos pesquisadores. Dois dos mais conhecidos pelos planejadores
urbanos são Leonardo Benévolo (1984; 1987; 2003) e Lewis Mumford (1991), além
de Françoise Choay (1979), dos quais foi extraída a maioria das informações que
seguem neste tópico.

4.1 AS PRIMEIRAS CIDADES


Segundo pesquisas, as primeiras cidades surgiram nos países que hoje
conhecemos como Egito, Israel, Iraque e Irã, há cerca de 8.000 a.C. Há também
menção de que, como resultado de um esforço planejado e deliberado de
planejamento urbano, ainda que num estágio bem incipiente, remonte a cerca
de 3500 a 2600 a.C. o surgimento de pequenas vilas e de grandes cidades. O
crescimento dessas cidades, bem como a formação organizada, segundo um plano
hierárquico de ruas, segundo um padrão de gradeamento imperfeito, revela o
desejo de proteção das áreas urbanas.

As antigas civilizações pré-colombianas também construíram cidades


grandiosas, considerando princípios urbanos, sistemas de esgoto e de
abastecimento de água. As cidades incas, astecas e maias tinham populações de
cerca de 250 mil habitantes.

Ideias sobre zoneamento e a correta localização de ruas e edifícios teriam


surgido nas cidades de Mileto e Pireu, na Grécia antiga, onde a cidade, antes
de tudo, era uma comunidade de cidadãos. Em Atenas surgiu o traçado urbano
ortogonal, paralelamente aos primeiros conceitos de direito urbanístico.

Já Roma praticou um urbanismo preocupado com a salubridade,


funcionalidade, comodidade e com a estética de suas cidades. Gerou o
quadrilátero espacial, que é uma praça quadrada central com serviços urbanos,
cercada por uma grade de ruas e por um muro para defesa voltado para a defesa
militar e conveniência civil. Duas ruas em diagonal cruzavam o quadrilátero,
visando reduzir o tempo necessário para locomoção. Outra preocupação era com
o abastecimento de água, problema resolvido pelos famosos aquedutos, já que
os romanos foram grandes construtores de prédios públicos singulares, como o
Coliseu, utilizando apenas o princípio da compressão entre as pedras, já que não
existia o concreto armado.

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4.2 AS CIDADES MEDIEVAIS


Chega-se temporalmente à cidade medieval, onde os efeitos mais
evidentes da crise econômica e política nos primeiros cinco séculos depois da
queda do Império Romano são a ruína das cidades e a dispersão dos habitantes
pelo campo.

Do século V ao século IX d.C, as cidades eram alvos muito vulneráveis


aos ataques do povos bárbaros. Roma, que chegou a ter um milhão de habitantes
no apogeu do Império Romano, teve sua população reduzida para apenas 20 mil
habitantes na época de Carlos Magno. As antigas cidades romanas decresceram
de tal maneira que muitas desapareceram por completo.

No mundo medieval, as cidades não funcionavam mais como centros


administrativos, ou seja, tinham um lugar marginal. O plano espacial das
cidades medievais rompe com o quadrilátero romano e as cidades são criadas
espontaneamente, organicamente, a partir do castelo, dos monastérios, ou ao longo
do rio. As funções essenciais da cidade medieval são a troca, a informação, a vida
cultural e o poder. Muitas cidades e feudos medievais eram protegidos por muros,
e quando a população intramuros crescia, simplesmente deixavam-se, na maioria
das vezes, os muros antigos de pé, construindo-se ao redor da antiga cidade, cujo
centro, em função da religião, era a Igreja ou catedrais, locais de destaque e que
levavam décadas para serem construídas. As muralhas foram construídas para
proteger as cidades das invasões dos bárbaros. Entre essas muralhas ficava a cidade
medieval, que tinha forma não organizada, sendo orgânica.

NOTA

Orgânica é um termo para a cidade onde os elementos arquiteturais interagem entre


si como os componentes de um organismo, sem que haja um padrão preestabelecido ou formal.

Quanto ao sistema viário, as famosas estradas romanas, abandonadas,


desapareceram. Estabeleceu-se o feudalismo, com pequenos burgos de ruas estreitas
e sinuosas, totalmente desprovidas de infraestrutura, principalmente esgoto.

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NOTA

Um burgo designa geralmente uma cidade comercial, que se desenvolvia fora


das muralhas da cidade medieval. Por essa época, boa parte da população vivia nas aldeias
próximas aos muros dos castelos e dos mosteiros.

Tornou-se cada vez mais densa, com aproveitamento de todo o espaço


disponível intramuros. Na cidade medieval, segundo Lamas (1992, p. 86):

as muralhas são o seu perímetro defensivo e, simultaneamente,


separação com o campo e o mundo rural. Por razões de espaço, a
cidade concentra-se até ser necessário alargar o seu limite e construir
novas muralhas que englobam as expansões. Assim se formam os
anéis sucessivos de construções e de sistemas defensivos. A muralha
delimita a cidade e caracteriza a sua imagem e forma.

A partir do final da Idade Média (séc. X) começou o renascimento


econômico na Europa, com o desenvolvimento do comércio e o surgimento
de uma nova classe: a burguesia, independente financeiramente da nobreza
aristocrática dos senhores feudais. Há uma intensa urbanização a partir do século
XIII e novas cidades cresceram sobre o traçado de antigas cidades, com uma
organização espacial e social diferente, com algumas delas chegando a mais de
200 mil habitantes (Paris e Milão, por exemplo).

4.3 AS CIDADES RENASCENTISTAS E BARROCAS


Segundo Lewis Mumford (1991), no Renascimento tem início a expansão
mundial da civilização europeia, “renascendo” econômica e culturalmente, com
as grandes navegações, as novas invenções e os artefatos e produtos trazidos
de todas as partes do mundo. Retomam-se os conhecimentos da era Clássica,
produzindo grandes avanços tecnológicos e de realizações artísticas inigualáveis.
A cidade renascentista consolida o poder político num único centro, sob a
supervisão direta do rei, já que a cidade medieval teve sua segurança ameaçada
pelos canhões, que tornaram obsoletas as muralhas defensivas. As cidades
passam a ocupar as planícies e os traçados regulares dominam. Da praça central
irradiam-se ruas, de onde os canhões protegem as entradas da cidade. As regras
recém-descobertas da perspectiva e da simetria fazem com que do emaranhado
da cidade medieval surjam as grandes praças, como, por exemplo, a de São Pedro
em Roma (autoria de Bernini) e a Piazza de São Marcos, em Veneza. A cidade
volta a ser considerada como uma obra de arte e Roma, voltando a ser a sede
da Igreja Católica, recupera sua antiga glória, com edificações como o Capitólio
(sede do governo municipal) e a Igreja de São Pedro. É neste período que artistas
como Leonardo da Vinci e Michelangelo criam suas obras primas e ajudam a
embelezar algumas das cidades italianas, nos séculos XV e XVI.

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No conjunto, as realizações urbanísticas e de construção nas colônias


europeias são mais importantes do que as realizadas na Europa, já que as colônias
dispõem de espaço para a realização de grandes programas de urbanização e
o sistema de tabuleiro de xadrez é adotado, como, por exemplo, nas cidades
coloniais das Américas, sem a necessidade de adaptação a estruturas medievais.

Espanha e Portugal dominam a exploração além-mar e após o desembarque


de Colombo na América, é estabelecido o Tratado de Tordesilhas, dividindo as
Américas em duas: a leste, os portugueses encontram povos indígenas sem grandes
cidades e facilmente dominados e, a oeste, os espanhóis encontram culturas mais
desenvolvidas, mas ainda assim incapazes de resistir aos colonizadores. A capital
do Império Asteca (Tenochititlan) é conquistada por Cortês e se transforma na atual
Cidade do México, enquanto que Cusco, no Peru, é dominada por Pizarro. As normas
urbanísticas das novas colônias espanholas são estabelecidas na Carta das Índias,
constituindo-se de uma malha urbana ortogonal, com quarteirões iguais, quase
sempre quadrados, com a praça central ladeada pela igreja e pelo paço municipal.

Inglaterra e França, a partir do século XVII, também criam suas colônias


no chamado Novo Mundo, empregando a retícula urbana em xadrez, como, por
exemplo, Nova York (1811) e Filadélfia (1682), já que algumas cidades dos Estados
Unidos foram planejadas antes de terem sido construídas, como a atual cidade de
Washington, DC, a atual capital do país, planejada por Pierre Charles L'Enfant,
um arquiteto francês contratado por George Washington, então presidente dos
Estados Unidos.

4.4 A CIDADE INDUSTRIAL


Os notáveis avanços tecnológicos oriundos da Revolução Industrial
transformaram a civilização a partir de meados do século 18. A divisão do trabalho
em operações realizadas por diferentes indivíduos proposta por Taylor possibilitou
o aumento da produção e o aperfeiçoamento de uma série de máquinas para
substituir o trabalho humano. A medicina conseguiu reduzir a taxa de mortalidade
infantil e a taxa de mortalidade geral, tendo como consequências o grande
crescimento populacional, acompanhado da migração do campo para as cidades.
Nas áreas urbanas, as novas fábricas absorveram esta mão de obra migrante.
Inventos como a máquina a vapor (1775), o tear mecânico, a locomotiva a vapor
(1832), o telefone (1876), a lâmpada elétrica (1879), o motor a explosão (1885) e o
elevador (1887) são o exemplo da cidade que se expande. As ferrovias seccionaram
as cidades com seus trilhos, transportando cada vez mais cargas e passageiros.

É o surgimento do capitalismo enquanto sistema, sendo época de intensa


industrialização e urbanização. As cidades crescem exageradamente em meados
do século 19: Londres (4 milhões de habitantes) e Paris (2 milhões de habitantes).
Em 1800, no início da Revolução Industrial, nenhuma cidade atingia a população
de um milhão de habitantes. Em 1850 já eram quatro cidades nestas condições
e, em 1900, dezenove cidades haviam ultrapassado a faixa de um milhão de
habitantes (MUMFORD, 1991).
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O inchaço das cidades, somado ao adensamento excessivo, aumentou o grau


de insalubridade e as condições de habitação tornaram-se críticas: esgoto corria a céu
aberto, lixo acumulava-se nas ruas estreitas, as famílias amontoavam-se em cômodos
sem ventilação natural e a fumaça das fábricas enegrecia o ar, sem falar nos incêndios
e epidemias, que ocorriam com frequência, destruindo bairros inteiros.

O historiador Lewis Mumford (1991, p. 484) afirmou que o “industrialismo,


a principal força criadora do século XIX, produziu o mais degradado ambiente
urbano que o mundo jamais vira”. Peter Hall (1995, p. 19-21), no livro “Cidades
do Amanhã”, cita as palavras de Andrews Mearns, que em 1833 descreve assim
as condições de vida da cidade industrial:

Poucos dos que leem estas páginas sequer concebem o que são estes
pestilentos viveiros humanos, onde dezenas de milhares de pessoas se
amontoam em meio a horrores que nos trazem à mente o que ouvimos
sobre a travessia do Atlântico por um navio negreiro. Para chegarmos
até elas é preciso entrar por pátios que exalam gases venenosos e
fétidos, vindos das poças de esgoto e dejetos espalhados por toda parte
e que amiúde escorrem sob nossos pés; pátios, muitos deles, onde o sol
jamais penetra, alguns sequer visitados por um sopro de ar fresco e
que raramente conhecem as virtudes de uma gota d’água purificante.
É preciso subir por escadas apodrecidas, que ameaçam ceder a cada
degrau e, em alguns casos, já ruíram de todo, com buracos que põem
em risco os membros e a vida do incauto. Acha-se o caminho às
apalpadelas, ao longo de passagens escuras e imundas, fervilhantes
de vermes. E então, se não forem rechaçados pelo fedor intolerável,
poderão os senhores penetrar nos pardieiros onde estes milhares de
seres, que pertencem, como todos nós, à raça pela qual Cristo morreu,
vivem amontoados como reses. Paredes e tetos estão negros com as
acreções da imundície que sobre eles se foi acumulando ao longo dos
anos de abandono. Imundície que transpira pelas fendas do forro
de tábuas, escorre pelas paredes, está em toda parte. O que atende
pelo nome de janela é apenas metade disso, entuchada de farrapos ou
tapada com tábuas que impedem a entrada da chuva e do vento.

Friederich Engels, em seu livro “A questão da habitação”, descreveu a


precariedade da vida urbana no período industrial ao analisar as condições do
proletariado na Inglaterra. Mencionou os bairros operários com ruas não calçadas
e estreitas, podendo se passar da janela de uma casa para a do vizinho oposto, e
edificações que eram tão altas que a luz solar mal podia penetrar nas vielas entre
elas. Sem esgotos, o lixo e os excrementos eram jogados nas ruas diariamente,
formando uma imundície que não apenas ofendia a vista e o olfato, mas também
colocava em risco a saúde dos moradores.

4.5 O URBANISMO MODERNO


Com a expansão das cidades, o saneamento básico passou a ser uma
necessidade vital. Surge o Urbanismo como ciência, voltado para a resolução das
exigências sanitárias. Segundo Benévolo (1987, p. 98):

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A teia das interligações urbanísticas criadas pelo desenvolvimento


industrial torna-se necessariamente evidente através da constatação
dos inconvenientes de ordem higiênica causados pela desordem e a
aglomeração das novas periferias. Quando estes inconvenientes se
tornam intoleráveis – devido às epidemias de cólera que proliferam
depois de 1830 – e se estudaram as primeiras providências para
eliminá-los, tornou-se clara a pluralidade das causas determinantes,
pelo que as providências adquiriram necessariamente um caráter
múltiplo e coordenado. Deste modo, a legislação sanitária torna-se o
precedente direto da moderna legislação urbanística [...].

Legislações sanitárias começam a aparecer no Parlamento inglês e nos


Estados Unidos em meados do século 19, a partir de exigências mínimas às novas
construções, visando à melhoria da qualidade de vida, tendo como parâmetro a
questão sanitária.

O Barão Haussmann, nos anos de 1851 a 1870, transformou radicalmente o


traçado urbano da cidade de Paris. Conforme os interesses políticos do Imperador
Napoleão III, realizou uma radical cirurgia urbana, abrindo 95 quilômetros de
novas ruas sobre a velha Paris e mais 70 quilômetros de novas vias na periferia.
Verdadeira revolução urbana, são criados bosques públicos (Bois de Boulogne) e
novos serviços urbanos (como tubulações de água e esgoto, iluminação de gás e
rede de transportes públicos com ônibus puxados a cavalo).

No Brasil: “a primeira década do século XX representa, para a cidade do


Rio de Janeiro, uma época de grandes transformações, motivadas, sobretudo,
pela necessidade de adequar a forma urbana às necessidades reais de criação,
concentração e acumulação do capital” (ABREU, 1987, p. 59).

O Rio de Janeiro, então Distrito Federal, ou capital brasileira de então,


precisava simbolizar concretamente a importância do país, maior produtor de
café do mundo. Nomeado prefeito pelo Presidente Rodrigues Alves, Francisco
Pereira Passos comandou no período de quatro anos (1902-1906), tempo que a
maioria de nossos governantes atuais considera curto, “a maior transformação
já verificada no espaço carioca até então, um verdadeiro programa de reforma
urbana” (ABREU, 1987, p. 220). Suas principais intervenções foram: instituição
do recuo progressivo dos edifícios; alargamento de diversas ruas; pavimentação
asfáltica (pela primeira vez no país); embelezamento da cidade com a criação
de praças; construção do Teatro Municipal, com estrutura metálica importada
da Europa; túnel do Leme e Av. Atlântica em Copacabana; canalização de rios
e saneamento da Lagoa Rodrigo de Freitas; proibição da mendicância e dos
ambulantes; demolição dos cortiços, o que veio a gerar as primeiras favelas
cariocas; construção da Av. Central pela União e construção do novo porto pela
União, em aterro sobre o mar (ABREU, 1987).

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NOTA

Francisco Pereira Passos (1836-1913) foi um engenheiro brasileiro que estudou


na França de 1857 a 1860, onde assistiu à reforma urbana de Paris promovida por Haussmann.
Esta reforma exerceu

4.6 AS CIDADES IDEAIS: O URBANISMO UTÓPICO


Nos rumos e contrarrumos da história sempre há insatisfeitos com as
cidades que resultam das intervenções urbanas ou há aqueles que propõem novos
modelos de sociedade a partir de traçados urbanos e de cidades consideradas
ideais. Citaremos alguns urbanistas e suas propostas. Acompanhe:

- Arturo Soria y Mata, espanhol, projeta a cidade linear, em 1882,


defendendo a tese de que “dos problemas da locomoção derivam-se todos
os demais problemas da urbanização”. A cidade linear pode se prolongar
indefinidamente, mantém a oferta ilimitada de terrenos na área central e o
equilíbrio de oferta-demanda, impedindo a especulação imobiliária.

- Camillo Sitte, vienense, em 1889, defende que as cidades sejam


projetadas com base em princípios estéticos, como uma obra de arte. Propunha
o desenvolvimento orgânico da cidade medieval como um meio para humanizar
a cidade contemporânea. Observou os defeitos da cidade do século XIX com
extrema clareza, mas as medidas sugeridas não passavam de paliativos.

- Ebenezer Howard, inglês, projeta a Cidade Jardim (Garden City, 1898)


para uma população máxima de 32 mil habitantes. Teria malha radial concêntrica,
cercada por um cinturão agrícola. A terra pertenceria ao Estado, eliminando
a especulação imobiliária, e haveria controle do crescimento e limitação da
população na faixa dos 30 mil habitantes. Cada cidade jardim estaria articulada
com outras, formando uma rede de cidades.

- Raymond Unwin, inglês, colocou a Cidade Jardim em prática em


Letchworth (1907) e Welwyn, mas os melhores resultados práticos desta proposta
não são cidades autônomas, mas bairros residenciais periféricos nos Estados
Unidos e na Inglaterra.

- Tony Garnier, francês, em 1901 projeta uma cidade industrial também


linear, com população prevista para 35 mil habitantes e separação das funções
urbanas.

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TÓPICO 1 | ASPECTOS HISTÓRICOS DA URBANIZAÇÃO

Além destes modelos, muitas outras propostas, que não lograram tanta
publicidade, também buscaram a organização coletiva em detrimento da liberdade
individual, visando resolver de forma pública os aspectos da vida familiar e social.
Nascem das condições inaceitáveis geradas pelas disfunções da cidade proveniente
da Revolução Industrial. Estes sonhadores propõem a criação de novas estruturas
urbanas que são denominadas de utopias, no sentido de serem ideias inatingíveis,
sem resolver, no entanto, os problemas que lhe deram origem.

UNI

Faça uma pesquisa e descubra outras propostas ditas utópicas. Será que vale a
pena sonhar com novos modelos de cidades? Descubra!

4.7 TEMPOS ATUAIS


O crescimento dos problemas urbanos durante o final do século XIX
e de boa parte do século XX motivou governos de muitos países a repensar o
processo de planejamento urbano até então existente. Os urbanistas do então
nascente Movimento Moderno propuseram, nos anos 20 e 30 do século XX,
um planejamento eminentemente técnico e neutro políticamente. Os CIAM
(Congressos Internacionais da Arquitetura Moderna) resultaram na Carta de Atenas
e na separação das funções citadinas. Os reflexos deste pensamento urbanístico
resultaram na cidade asséptica e em projetos de novas áreas de expansão urbana
totalmente desvinculados das necessidades efetivas das comunidades que aí
morariam: o plano-piloto da cidade de Brasília é considerado o exemplo mais
perfeito deste tipo de urbanismo modernista. As funções segregadas revelaram-
se um verdadeiro fiasco.

Já a partir da métade do século passado (principalmente a partir de 1960),


o agravamento de problemas de todo tipo – como a explosão populacional, os
congestionamentos viários, a poluição, o surgimento ou crescimento de favelas, a
falta de moradia e as questões ambientais – fez com que o planejamento urbano
de uma cidade passasse à ordem do dia.

Do envolvimento das agências governamentais, das empresas privadas,


da participação popular presente nos planos participativos até o planejamento
estratégico de cidades, o planejamento urbano passa por um momento de
redefinição e reflexão, não havendo, por assim dizer, um modelo ideal a ser
aplicado. Do planejamento centralizado, estruturado em projetos residenciais
movidos mais pelo caráter quantitativo que pelo qualitativo, o planejamento

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UNIDADE 1 | PROCESSO EVOLUTIVO URBANO

urbano no Brasil, pelo menos nos últimos anos, tem se esforçado para agir como
mediador do conflito social pelo solo urbano instaurado. O foco do planejamento
urbano atual desloca-se do regulamento das práticas de comando e controle
convencionalmente presentes na aplicação dos instrumentos de uso e ocupação
do solo para o tratamento dos processos especulativos de produção do espaço
urbano, com as decisões sendo tomadas através de um processo democrático no
qual os urbanistas passam a ocupar o lugar de condutores de processo ao invés
de um projeto autoral de cidade ideal. Em contraponto a esta tendência, há o que
se convencionou chamar de planejamento urbano estratégico, que procura tratar
as cidades sob a lógica da guerra fiscal e de sua localização na suposta nova rede
de cidades globais.

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