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ROLNIK, Raquel. Planejamento e Gestão: Um Diálogo de Surdos?

In: FUNDAÇÃO PREFEITO


FARIA LIMA – CEPAM. Estatuto da cidade, coordenado por Mariana Moreira. São Paulo, 2001.
482p.

PLANEJAMENTO E GESTÃO: UM DIÁLOGO DE SURDOS?

Raquel Rolnik 1

No Brasil, a institucionalização do planejamento urbano nas Administrações


Municipais disseminou-se a partir da década de 1970, com a missão de promover o
desenvolvimento integrado e o equilíbrio das cidades, em um contexto de explosão do
processo de urbanização. Durante esse período, consolidou-se a conhecida clivagem
da paisagem urbana brasileira: um contraste muito claro entre uma parte das cidades
que possui alguma condição de urbanidade, uma porção pavimentada, ajardinada,
arborizada, com infra-estrutura completa – independentemente da qualidade desses
elementos, que, em geral, é pouca – e outra parte, normalmente de duas a três vezes
maior do que a primeira, cuja infra-estrutura é incompleta, o urbanismo inexistente,
que se aproxima muito mais da idéia de um acampamento do que propriamente de
uma cidade.

Essa clivagem apresenta-se no território sob várias morfologias: nas imensas


diferenças entre as áreas centrais e as periféricas das regiões metropolitanas de São
Paulo ou Belo Horizonte; na ocupação precária do mangue em contraposição à alta
qualidade dos bairros da orla, em muitas cidades de beira-mar; na eterna linha
divisória entre o morro e no asfalto no Rio de Janeiro, e em muitas outras variantes
dessa cisão das nossas cidades, que se repete permanentemente em nossa história e
geografia urbana.

O quadro de contraposição entre uma minoria qualificada e uma maioria com


condições urbanísticas precárias relaciona-se a todas as formas de desigualdade,
correspondendo a uma situação de exclusão territorial. Essa situação de exclusão é
muito mais do que a expressão da desigualdade de renda e das desigualdades
sociais: ela é agente de reprodução dessa desigualdade. Em uma cidade dividida
entre a porção legal, rica e com infra-estrutura, e a ilegal, pobre e precária, a
população que está em situação desfavorável acaba tendo muito pouco acesso a
oportunidades de trabalho, cultura ou lazer. Simetricamente, as oportunidades de
crescimento circulam nos meios daqueles que já vivem melhor, pois a sobreposição
das diversas dimensões da exclusão incidindo sobre a mesma população faz com que
a permeabilidade entre as duas partes seja muito pequena.

Esse mecanismo é um dos fatores que acabam por estender a cidade


indefinidamente: ela nunca pode crescer para dentro, aproveitando locais que podem

1
Urbanista e mestre pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, PhD em História Urbana pela New
York University, professora titular de Planejamento Urbano e coordenadora do curso de Mestrado em
Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, membro do corpo técnico do Instituto Pólis,
coordenadora de Planejamento do Município de São Paulo (1989-1992).
ser adensados, pois é impossível para a maior parte das pessoas o pagamento, de
uma vez só, pelo acesso a toda a infra-estrutura que já está instalada. Em geral, a
população de baixa renda só tem a possibilidade de ocupar terras periféricas – muito
mais baratas porque em geral não têm qualquer infra-estrutura – e construir aos
poucos suas casas. Ou ocupar áreas ambientalmente frágeis, que teoricamente não
poderiam ser urbanizadas.

Esses processos geram efeitos nefastos para as cidades, alimentando a cadeia


daquilo que pode ser chamado de um urbanismo de risco, que atinge as cidades
como um todo. Ao concentrar todas as oportunidades em um fragmento apenas da
cidade, e estender a ocupação a periferias precárias e cada vez mais distantes, esse
urbanismo de risco vai acabar gerando a necessidade de levar multidões para esse
lugar para trabalhar, e devolvê-las a seus bairros no fim do dia, gerando assim uma
necessidade de circulação imensa, o que, nas grandes cidades, tem gerado o caos
nos sistemas de circulação. E quando a ocupação das áreas frágeis ou estratégicas
do ponto de vista ambiental provoca as enchentes ou a erosão, é evidente que quem
vai sofrer mais é o habitante desses locais, mas as enchentes, a contaminação dos
mananciais, os processos erosivos mais dramáticos, atingem a cidade como um todo.
A concepção de planejamento urbano, então em vigor, correspondia à idealização de
um projeto de cidade do futuro, que seria executado ano a ano até chegar a um
produto final (o modelo de cidade desejada).

Seu ponto de partida era a definição de padrões adequados ou aceitáveis de


organização do espaço físico, que se consubstanciavam em uma série de
investimentos públicos e numa legislação de uso e ocupação do solo condizente com
o modelo adotado. A implementação do plano seria responsabilidade do Poder
Público municipal, executada através de investimentos em transportes, sistema viário,
infra-estrutura e equipamentos públicos e no controle sobre a ação dos agentes
privados através de disciplinas de uso do solo, sobretudo via zoneamento.

Naquele momento, com as limitações do Poder Legislativo e a desarticulação da


sociedade civil, o planejamento urbano foi se isolando cada vez mais, enquadrado e
limitado pela visão centralizadora e tecnocrática que dominava o sistema de
planejamento do País.

O isolamento do planejamento e sua separação da esfera da gestão provocou uma


espécie de discurso esquizofrênico nas Administrações – de um lado, os planos
reiteravam os padrões, modelos e diretrizes de uma cidade racionalmente produzida,
de outro, o destino da cidade era negociado, dia-a-dia, com os interesses
econômicos, locais e corporativos através de instrumentos como corrupção, lobbies
ou outras formas de pressão utilizadas pelos que conseguiam ter acesso à mesa
centralizada de tomada de decisões. E, assim, foram se configurando cidades
caracterizadas pelo contraste entre um espaço contido no interior da cada vez mais
minuciosa moldura da legislação urbanística e outro, normalmente três vezes maior,
eternamente situado numa zona intermediária entre o legal e o ilegal.

Passadas pelo menos duas décadas de prática da elaboração de Planos Diretores,


segundo o receituário tecnocrático, parece evidente a falência do planejamento
urbano em produzir cidades equilibradas e de acordo com as normas.
Entre os planejadores, essa ineficácia é geralmente justificada como ausência de
vontade política dos governantes em impor o projeto contido no plano da cidade e/ou
como suscetibilidade dos governos a práticas eticamente condenáveis, como a
corrupção. Segundo esse ponto de vista, o plano é bom em si, na medida em que
formula o desenvolvimento de uma cidade “harmônica”, perversos são a sociedade
(que corrompe) e o governo (que desvia o caminho proposto).

Na verdade, por trás desse conceito de Plano e seus instrumentos, existem


concepções políticas e visões do modo de organização do espaço urbano que, a
nosso modo de ver, são altamente questionáveis.

Em primeiro lugar, do ponto de vista político, a idéia de um Plano Diretor como projeto
acabado de cidade do futuro, que dirige seu desenvolvimento presente, supõe a idéia
de um poder central associado a um Estado forte e capitalizado, que impõe e controla
esse projeto sobre o conjunto dos cidadãos. Por outro lado, não há lugar para o
conflito – que efetivamente constrói e transforma a cidade: a utopia de um projeto
concluído de cidade corresponde à utopia de um Estado absoluto. Dessa forma, é um
projeto que se opõe à política – campo de explicitação dos conflitos – e, portanto, não
contém nenhuma forma de diálogo com ela. Evidentemente, em tempos de ditadura,
essa concepção teve alguma ressonância numa realidade de sociedade civil
silenciada. Porém, bastou a abertura de movimentos mínimos de democratização
para estabelecer-se uma contradição entre gestão (como prática atravessada pela
política) e planejamento.

Em segundo lugar, a esfera técnica do planejamento urbano entre nós esteve também
bastante imbuída de um modo de relação do cidadão com a cidade que vê o espaço
público como propriedade privada do Poder Público (ou do Estado) e jamais como
uma responsabilidade coletiva dos cidadãos. E o tema do controle de setores da
cidade que fogem dos padrões desejáveis é formulado como “problema urbano”, que
cabe ao Estado “diagnosticar” e resolver.

Finalmente, ao não se relacionar com os pedaços de cidade que não cabem nas
normas, a regulação urbanística operada pela fórmula planos diretores-zoneamento
acaba por condenar os assentamentos ilegais a uma eterna condição de subcidadania
e vulnerabilidade às praticas políticas clientelistas e fisiológicas.

Dessa forma, o planejamento urbano tecnocrático não é só ineficaz, mas também


produtor de exclusão territorial, trabalhando em pleno vigor no sentido de garantir a
poucos as possibilidades de cidadania plena – que assim se transforma em privilégio,
em contraste com a maioria de excluídos do direito a uma qualidade urbanística
mínima.

O deslizamento da idéia da qualidade urbanística, de direito – algo generalizado – a


privilégio – algo relacional, ou seja, que se constrói e se mede em termos
comparativos – transforma nossas cidades em verdadeiros campos de batalha, em
que interesses fragmentados e conflituosos travam disputas permanentes por
vantagens locacionais, de infra-estrutura e serviços urbanos.

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