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5 APRESENTAÇÃO
Julia Baker

7 BEA MARTINS
bio + fotografias

15 WOLNEY TEIXEIRA
bio + fotografias

24 SOL
texto curatorial • Julia Baker

26 TRANSIÇÃO
João Henrique de Oliveira Christovão

30 O SAL E O TEMPO
Milton Guran

32 FICHA TÉCNICA

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A
pesquisa apresenta possibi- Sedenta por mais informações sobre o ar-
lidades de caminhos. A par- tista e, principalmente, por imagens de
tir de uma curiosidade, às seus registros, consegui adquirir a publi-
vezes atiçada por uma frase cação. A partir dos textos do curador e de
ou imagem, expandimos nossos interes- ensaístas convidados, descobri não apenas
ses e nos deparando com surpresas que quem era Wolney mas, também, os enre-
ampliam ou mudam nossos rumos. A ex- dos da Região dos Lagos entre as décadas
posição Entre Montes Brancos e Espelhos de 1930 e 1970. A importância do sal é nar-
D’Água surgiu dessa forma: a partir de bus- rada nas páginas não só através da análise
cas sobre Bea Martins para outro projeto dos textos mas, principalmente, pelos re-
em que ela era uma das artistas convida- gistros de Wolney. As salinas, seus traba-
das, deparei-me com relatos sobre seu tra- lhadores, a construção da Companhia de
balho, sua cidade natal, suas inquietações Álcalis, todos esses elementos estão vivos
e vontade de dialogar com artistas conter- nas fotografias em preto e branco do artis-
râneos de Cabo Frio. Wolney Teixeira era ta. Junto ao trabalho, Wolney também re-
uma das pessoas citadas por ela.O nome tratou a relação dos moradores e turistas
me chamou atenção por não conhecê-lo com a natureza da região em meio ao pro-
e resolvi buscar mais informações sobre cesso de urbanização. Encontros políticos
esse fotógrafo documental. e festas tradicionais não escaparam de seu
olhar. Entre imagens posadas e momen-
A primeira ferramenta de pesquisa cura- tos roubados, sua máquina parecia não ter
torial na era do digital é o computador. descanso. Uma urgência de documentar a
O Google parece conter as respostas para região e seus sujeitos se faz presente nas
nossas inquietações e dúvidas, mas não imagens.
nesse caso. Wolney Teixeira não foi uma
busca frutífera em minhas primeiras ten- Uma vida dedicada à região e suas histó-
tativas. Não encontrei um site, não en- rias: esse é o legado que Wolney nos dei-
contrei um instagram, não encontrei uma xa através de sua obra. O catálogo, robus-
biografia detalhada na Wikipedia. Apenas to em imagens, não consegue dar conta
algumas notícias em que seu nome apare- de um acervo de mais de 5.000 fotografias
cia. Trabalhos acadêmicos utilizam suas guardadas com extremo zelo por seu filho,
imagens e as creditam. Uma página de o também fotógrafo Warley Sobroza. Após
Facebook a ele é dedicada. Continuando o contato com sua obra, a ideia da exposi-
minhas investigações, consegui chegar ao ção conjunta, citada por Bea, ficou latente
catálogo da exposição “Wolney Teixeira: o em mim.
Sal da Terra” realizada na Caixa Cultural
do Rio de Janeiro, em 2011, com curadoria
de Mauro Trindade.

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As obras de Bea são embebidas pelas pos- Bea e Wolney. As múltiplas possibilidades
sibilidades apresentadas pela Região dos de diálogo pareceram, por um tempo, im-
Lagos. Seu trabalho com o sal enquanto pedidas de ocorrer devido à falta de verba
elemento escultórico, questiona seus usos ou patrocínio. Artistas não instituciona-
passados e seus valores atuais. Ao pensar- lizados possuem mais dificuldades de dis-
mos que Cabo Frio teve grande expansão seminação de suas obras e, por isso, edi-
devido à atividade de extração do sal, en- tais de fomento públicos e privados para a
tendemos o desejo de dialogar com o com- promoção de projetos são fundamentais. A
posto e mostrar suas possibilidades co- iniciativa do Sesc ao criar, em 2021, o edi-
merciais. Bea também demonstra ter uma tal Sesc Pulsar, permitiu que transformás-
inquietude com o território. Quando fo- semos desejo em matéria.
lheamos um álbum de fotografias antigas,
com fotos de parentes remotos, um desejo A partir da expografia, usando o sal como
de saber quem são, quais são nossas raí- elemento central, criamos uma mostra de
zes e se pertencemos é compartilhado por fotografias em que as imagens de Bea e de
muitos. Bea transforma o território em seu Wolney dialogam, onde as salinas e seus
álbum de fotos. Ao utilizar o sal como ma- trabalhadores estão em evidência. A ex-
téria-prima, transparece o desejo de co- posição seguiu em cartaz entre os meses
nhecer o ofício de sua família. Junto com de julho e outubro de 2023 e, com a inten-
seu trabalho escultórico, em uma visita ção que a pesquisa sobre os dois artistas ti-
ao seu ateliê, ela me apresentou fotos da vesse longevidade, propomos um catálogo
Companhia Álcalis abandonada. Alguns no formato de e-book. Na publicação in-
familiares de Bea tiveram relação com o cluímos as obras dos artistas, registros da
espaço. Ela consegue entrar e fotografar o montagem da exposição, texto curatorial e
que, décadas antes, Wolney também regis- dois ensaios produzidos por autores convi-
trava. Suas imagens revelam um espaço de dados.
momentos interrompidos. Papéis jogados
no chão, móveis enferrujados, a imensidão No início da apresentação foi colocado que
do espaço abandonado, Bea captura todos uma pesquisa apresenta caminhos infini-
os cantos da falida empresa. As possibili- tos. Um dos caminhos investigados, aca-
dades de um futuro ainda não escrito es- bou por nos levar a corporificação dessa
tão lá. Será que a empresa poderá voltar exposição. Esperamos que ela seja o início
a existir? Ou seu destino final é a demoli- de novas leituras e abordagens sobre as
ção? Suas imagens nos fazem questionar. obras e artistas apresentados.

Julia Baker

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(1990)

Escultora com formação na Escola de Bea é uma observadora dos movimentos


Belas Artes da UFRJ. Mestra em Estudos do cotidiano que afetam a vida de
Contemporâneos das Artes pela UFF. Vive diferentes formas, e acabam por
e trabalha na cidade do Rio de Janeiro. reverberar em transformação do tempo, do
Artista cabofriense, sua produção em arte espaço, de objetos, e estruturas sociais.
se dá a partir de esculturas, instalações,
desenhos, fotografias e vídeos. Frequentou cursos livres na EAV Parque
Lage, onde foi contemplada com o 1º
Em suas obras trabalha o deslocamento Prêmio Reynaldo Roels Jr. (2015) e expôs a
de matéria com foco em elementos obra ‘Salário’ na Feira ArtRio; foi premiada
da natureza. Os fenômenos naturais, com a Bolsa ‘Estímulo à Experimentação
as mudanças do meio ambiente, as e Criação Artística’ (2016) pela Faperj.
transformações de espaços urbanos são Participou de exposições como ‘Limiares’
objetos de pesquisa da artista, que tem no Paço Imperial-RJ, ‘5º Prêmio EDP’ no
uma prática conectada com educação, Instituto Tomie Ohtake-SP, ‘Intervenções
inovação social e justiça climática. - entre XIX e XXI’ no Museu Nacional de
Belas Artes do Rio (2017), ‘Agora somos
mais de mil’ na EAV Parque Lage, ‘Ao amor
do público’ e ‘Mulheres na Coleção MAR’
no Museu de Arte do Rio (MAR).

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Bea Martins
Entre montes brancos e espelhos d’água [série]
2017-2023
Nitrato de prata sobre papel salgado
Acervo da artista

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(1912-1983)

A fotografia parece correr pelas veias Wolney circulava entre a região dos Lagos.
da família do artista. Seu pai, Antônio Búzios, Cabo Frio, São Pedro da Aldeia
Motta de Souza, se aventurou pela arte, eram alguns dos municípios que visitava
chegando a treinar na capital fluminense, para conseguir clientes. Por ser conhecido
Rio de Janeiro, com Augusto Malta, porém pelos moradores da região, era chamado
abandonou a vida de fotógrafo em busca para registrar comícios, encontros
de um sustento com maiores garantias. políticos, festas religiosas e atividades
Wolney não teve educação formal em promovidas pelas prefeituras. Por
relação a fotografia. Até os dez anos encomenda pode fotografar os salineiros.
morava com seus avós paternos em um Para além das encomendas, Wolney
sítio localizado em Caveiras, localizado fotografou as mudanças urbanas de sua
na área rural de São Pedro da Aldeia. região. Por sua lente vemos as alterações
Quando se muda para Cabo Frio, se da paisagem, as mudanças econômicas
encanta pela fotografia ao acompanhar e diferentes personagens de cidades
seu pai em suas saídas e, com 20 anos associadas, atualmente, ao turismo e ao
já está empregado como fotógrafo. Na verão. O acervo de Wolney marca uma
época passou por inúmeras dificuldades e época de Cabo Frio. O artista faleceu em
conseguiu sustento realizando fotografias sua cidade e seu legado segue espalhado
por encomenda: fotos para documentos, em pesquisas e na memória dos antigos
registros de aniversários ou casamentos. moradores.

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no topo na base
Wolney Teixeira Wolney Teixeira
Salineiros aumentam a grande pirâmide Lancha salineira na laguna
de sal grosso conhecida como meda. e ponte Feliciano Sodré.
Cabo Frio, 1948 Cabo Frio, 1949
Fotografia Fotografia
Acervo Warley Sobroza Acervo Warley Sobroza

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no topo da página anterior na base da página anterior nesta página
Wolney Teixeira Wolney Teixeira Wolney Teixeira
Salinas Perynas em Plena Trabalhadores da resistência Salinas Viveiros em plena
Produção. do porto de Cabo Frio, produção.
Cabo Frio, 1948 1955 Cabo Frio, 1948
Fotografia Fotografia Fotografia
Acervo Warley Sobroza Acervo Warley Sobroza Acervo Warley Sobroza

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no topo na base
Wolney Teixeira Wolney Teixeira
Salinas Perynas em Trabalhador nas
Plena Produção. Salinas Perynas.
Cabo Frio, 1948 Cabo Frio, 1948
Fotografia Fotografia
Acervo Warley Sobroza Acervo Warley Sobroza

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na página anterior
Wolney Teixeira Wolney Teixeira
Carregamento de Sal Galpão da Companhia Nacional
pela Resistência. de Álcalis em Construção.
Cabo Frio, 1955 Arraial do Cabo, 1955
Fotografia Fotografia
Acervo Warley Sobroza Acervo Warley Sobroza

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no topo na base
Wolney Teixeira Wolney Teixeira
Galpões de Cabo Frio no Porto de Itajuru. Em Porto da Passagem no Canal
primeiro plano o barqueiro espera o fotógrafo. do Itajuru. Transporte de Sal.
Cabo Frio, 1948 Cabo Frio, 1955
Fotografia Fotografia
Acervo Warley Sobroza Acervo Warley Sobroza
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Sol
e mar. Sal e água. Os Sal é matéria-prima na captura das ima-
binômios formados por gens e no processo de revelação das foto-
essas palavras nos re- grafias de Bea Martins. Em diálogo com o
metem a espaços de ve- olhar de Wolney, décadas após seus regis-
raneio, cidades com memórias afetivas dos tros, Bea volta as salinas e à CNA. Aban-
tempos de férias e verão. No estado do Rio donada ao seu próprio destino, os vestígios
de Janeiro, a região dos Lagos é destino da Companhia atestam grandeza, mas sem
tradicional para feriados prolongados ou os indícios da prosperidade de outrora.
férias escolares. Sua construção enquanto Um fantasma das possibilidades é retra-
espaço de turismo iniciou-se na década de tado por Bea no conjunto da série que dá
1970 devido ao encurtamento da distância nome à exposição. Entre montes brancos e
promovido pela inauguração da Ponte Rio espelhos d’água, o que encontramos agora?
Niterói, em 1974. Mas antes da criação de Quais possibilidades se apresentam? Um
uma identidade balneária, a região, com futuro a partir do sal ainda é possível?
destaque para a cidade de Cabo Frio, tinha Mais do que responder aos questionamen-
outras características naturais que foram tos, o desejo da exposição é mostrar um
exploradas desde o período colonial: extra- pedaço da história de Cabo Frio, lar dos
ção de madeira e sal foram as principais dois artistas que compõem a mostra. Ape-
atividades ainda nos séculos XVIII e XIX. sar de seus caminhos não terem se cruza-
E, ao longo do século seguinte, o sal con- do em vida, a poética das imagens cria um
tinuou figurando como principal meio de diálogo entre passado, presente e possibili-
subsistência dos moradores da região. dades.

Apesar de não registrar uma extração tão


volumosa como a do Rio Grande do Norte, Julia Baker
devido a estratégias do governo e à proxi-
midade com o principal porto do país, as
salinas de Cabo Frio e região tiveram seu
auge entre as décadas de 1950 e 1970. A
criação da Companhia Nacional de Álca-
lis - CNA (1943), que começou a funcionar
em 1958, provocou alterações nos fluxos de Trabalha com pesquisa e curadoria em
pessoas e na paisagem da cidade. artes. Doutoranda no programa de Ar-
tes da Cena na UNICAMP, mestre em
Como a vida do cabofriense é afetada?
História, Política e Bens Culturais (CP-
Como o sal se torna matéria-prima de sub- DOC/FGV); possui especialização em
sistência e personagem central no cotidia- História e Arquitetura da Arte no Brasil
no dos diferentes sujeitos da Região dos (PUC/RJ); graduada em Ciências Sociais
Lagos? (UERJ) e Produção Cultural (UFF). In-
tegrou a equipe curatorial do Museu de
Arte do Rio (MAR) entre 2013 e 2018,
Muitas perguntas podem ser feitas e as atuando na pesquisa e elaboração de
respostas para nossa curiosidade podem múltiplas exposições, dentre elas Dja
ser vislumbradas no olhar sensível e atento Guata Porã (2017), Linguagens do Corpo
do fotógrafo Wolney Teixeira. Morador de Carioca (2016) e Tarsila e Mulheres Mo-
dernas no Rio (2015). É uma das funda-
Cabo Frio durante a era de ouro da produ-
doras da coletiva de curadoria e pesqui-
ção e extração do sal, Wolney seguia com sa NaPupila e sócia da empresa Bomba
sua câmera o dia-a-dia da cidade em mo- Criativa. Em 2022 fez a curadoria da ex-
mentos de trabalho ou festividades. Na ex- posição “Pelas Ondas do Rádio”, selecio-
posição, mostramos uma seleção de ima- nada no edital EXPOMIS do Museu da
Imagem e do Som do Rio de Janeiro, fez
gens feitas a partir do devir salineiro. As
o texto curatorial da exposição “a respei-
salinas, os trabalhadores da resistência, os to do fracasso e de outras virtudes”, indi-
veleiros: todos os elementos se apresentam vidual do artista rafael amorim no Sesc
pelo seu olhar em anos de prosperidade Ramos (edital Pulsar Sesc). Também re-
nos quais o país parecia avançar econo- aliza curadorias virtuais, com destaque
para as exposições coletivas Imersões Di-
micamente. Wolney apresenta uma docu-
gitais (2021) e Independência ou Morte -
mentação imagética necessária do cotidia- Descolonizando o Grito (2023). Em 2023
no dos trabalhadores nas salinas. lançou o livro “Representações de uma
independência” através do edital Reto-
mada Cultural 2 / Secec.
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São, pois as especificidades e não aquilo
que temos de ordinário que é responsável
por diferenciar cada região desse vasto ter-
ritório. No caso da Araruama, o que dife-
renciava essa região de todas as demais,
Após ver as imagens da exposição “Entre era a produção de sal.
montes brancos e espelhos d’água” tive a
imediata necessidade de parar por alguns
minutos para poder refletir sobre o im- Das últimas décadas do século XIX até a
pacto que as imagens de Wolney Teixeira década de 1970, aproximadamente, o sal
e Bea Martins me causaram. A primeira produzido no entorno da Araruama foi
coisa que me veio a mente foi uma frase responsável, não apenas por parte signi-
da filósofa Marilena Chauí na belíssima ficativa dos recursos econômicos dos mu-
apresentação que ela faz ao livro “Memó- nicípios banhados por suas águas, mas
ria e Sociedade” da psicóloga Ecléa Bosi. também pela construção de uma identida-
No texto “Os trabalhos da Memória”, Chauí de. As cidades próximas à laguna eram as
afirma: “Nada mais pungente em seu li- cidades praianas e salineiras e sua popu-
vro, Ecléa, do que a frase dezenas de ve- lação era comumente referida como pes-
zes repetida pelos recordadores: ‘já não cadores e salineiros. Cabe aqui uma res-
existe mais.’”1 salva: salineiros não eram apenas aqueles
que trabalhavam nas quadras das salinas,
A fotografia, assim como o sal, preserva. mas sim todos que faziam parte da cadeia
Ela tem o poder de parar o tempo, fazer produtiva do sal. Nesse sentido, eram sa-
um recorte na paisagem e cristalizar numa lineiros: os estivadores, os arrumadores,
superfície, um determinado momento. A os remadores lacustres e, evidentemente,
fotografia afronta o tempo, ela o interpela, aqueles que exerciam seu trabalho direta-
o confronta e, no entanto, ele segue, impa- mente nas quadras de sal.
rável, o seu curso. Nem a imagem retida
pelo fixador nem o sal colhido, curtido e É provável que Wolney não estivesse preo-
doído na pele daqueles que o produziram cupado em conceituar teoricamente os sa-
são capazes de deter o tempo. lineiros, mas, de alguma forma, ao apontar
a sua objetiva para aquilo que ele reputa-
Entretanto, se pararmos por um instante va importante na região como um todo e
para analisar com atenção, perceberemos na cidade de Cabo Frio, em particular, ele
que, antes de serem antagônicos, a foto- acabou montando um painel da sociedade
grafia e o tempo possuem algo de comple- local e construiu um acervo singular que
mentares. A imagem é, em certa medida, fala, como poucos, dos trabalhadores do
e em alguns casos, a linguagem poética do sal.
tempo, é o suporte material que aviva a
memória e que, quando públicas, acabam O acervo Wolney não está catalogado, não
por dar sentido a uma determinada identi- há uma espécie de instrumento de pesqui-
dade. sa que classifique as imagens e oriente os
que têm o privilégio de acessar esse mate-
A origem da região do entorno da Laguna rial, mas, ainda assim, o acervo fala. De al-
de Araruama, assim como o resto do ter- guma forma o acervo conduz nosso olhar
ritório brasileiro, está ligada aos proces- e, não raro, há uma coerência nos produ-
sos de conquista do território, extração tos e trabalhos que nascem a partir dele.
do pau-brasil, exploração e extermínio da Esse é o caso da exposição “Entre montes
mão-de-obra de negros africanos e indíge- brancos e espelhos d’água”. Nela os traba-
nas dessa parte da América. Todos esses lhadores do sal estão retratados em toda
são aspectos comuns ao processo de con-
quista e exploração de todo o território
brasileiro.
1
CHAUÍ, Marilena de Souza. Os trabalhos da memória.
In: BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança de ve-
lhos – São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.19
(Texto de apresentação da obra de Bosi).

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sua força, potência e beleza e, mesmo que dura e, ao fundo, expressando a sua im-
a curadoria não tenha tido a intenção ex- ponência e refletidos no espelho d’água
plícita (não sei se teve) de conceituar o do canal destacam-se os galpões de sal do
salineiro é possível perceber diferentes as- cais da Passagem. A cena é icônica. Nesse
pectos desses trabalhadores ali retratados quadro emoldurado a luz assume diferen-
em toda a sua diversidade e intensidade. tes papéis, ora exaltando, ora apagando os
Os salineiros dessa exposição não apare- elementos da cena. Nela estão presentes a
cem apenas nas quadras de sal, diante dos pesca, o canal que é o meio para o qual a
montes brancos com seus instrumentos de cidade à época estava voltada, os galpões
trabalho – o rodo, a pá, o cesto, o carrinho de sal e o cais. Há ali os elementos que se
de mão, o chapéu, etc – eles estão presen- mostram e aqueles que não se mostram
tes na figura dos remadores lacustres que mas que também estão presentes. A ima-
não aparecem na cenas onde vemos as lan- gem é quase uma síntese da trajetória per-
chas de sal nas águas do canal do Itajurú, corrida pelo fotógrafo ao longo das suas
estão presentes nos estivadores e arruma- cinco décadas de atividade e, nesse senti-
dores que aparecem posando dentro de um do, faz todo o sentido ela estar ali.
galpão de sal ou carregando os sacos por
sobre as pranchas para os navios no cais. As imagens de Wolney presentes nessa ex-
posição fazem parte de um acervo que é
Os salineiros estão presentes, também, capaz de contar uma mesma história de
na imagem em que o fotógrafo cuidadosa- inúmeras formas diferentes. Elas refletem
mente monta uma cena e compõe um qua- um itinerário centenas de vezes percorri-
dro com uma riqueza infinita de detalhes do pelo autor e por ele inúmeras vezes re-
em que cada elemento é pensado e possui tratado. Não há um significado único nes-
uma função. Como nos ensina John Ber- sas imagens, mas significados possíveis, de
ger, “Uma fotografia, ao registrar o que acordo com a quantidade de informação e
foi visto, sempre e por sua própria natu- a capacidade de compreensão que cada um
reza se refere ao que não é visto” (BER- de nós dispomos quando nos propomos a
GER, 2017; p. 39). Nessa imagem, em par- lê-las.
ticular, um velho pescador foi posicionado
sentado em seu bote em primeiro plano à Wolney nos legou uma cidade. Não A cida-
margem esquerda da cena; a folhagem da de ou A região, NÃO! Wolney não nos le-
vegetação é utilizada para servir de mol- gou Cabo Frio, mas A Cabo Frio dele, posto

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que a cada disparo do obturador era a vi- harmônica lança questões sobre os cami-
são dele que era impressa no negativo. nhos que ainda estão por ser percorridos.
As transformações ocorridas entre os tem-
Wolney quis e produziu um material que pos dos dois artistas possuem, evidente-
mostra o olhar dele sobre a cidade e a re- mente, mais elementos do que aqueles
gião. A cidade de Wolney se pretende uma expressos na exposição e, a cidade decom-
cidade ideal. Não para ele, mas para aque- posta, tantas vezes desfeita e reconstruída
les que a admiram apenas de forma nostál- nos convida, a partir da obra dos dois ar-
gica. A Cabo Frio nostálgica que emerge do tistas a refletir sobre as transições e as inú-
acervo Wolney é a cidade que atingiu o seu meras identidades que assumiu ao longo
auge, uma cidade onde a atividade econô- do tempo.
mica flui sem transtornos, uma cidade em
que sua estrutura urbana se impõe seja O sal, o sol, a barrilha, o turismo, os traba-
pela ponte, seja pelo cais, ou ainda pela es- lhadores nos diferentes momentos e ativi-
trutura em construção do galpão da em- dades, as políticas públicas locais e nacio-
presa estatal que então ali se estabelecia. nais e seus impactos na vida da cidade e de
Mesmo os trabalhadores retratados no mo- seus cidadãos. Tudo, enfim.
mento do duro e extenuante trabalho nas
salinas estão em harmonia com o conjunto O que veio no tempo de Wolney ou o que
do acervo, posto que a beleza das imagens veio no tempo de Bea, aquilo que veio an-
que ele nos lega, acabam por omitir o pre- tes dos dois e o que ainda está por vir são,
ço amargo da lida com o sal e extraindo ao fim e ao cabo, os elementos sobre os
dali uma certa beleza poética que na maio- quais Wolney Teixeira e Bea Martins nos
ria das vezes é admirada sem que se exer- convidam a refletir.
ça uma crítica. Essa é a cidade de Wolney
e não há como não a amar, admirá-la e la- É necessário atentar para as transições,
mentar o seu fim, por mais paradoxal que para as diferentes identidades e para os
possa ser. processos que as transmutam. É necessário
atentar para as mudanças, afinal, confor-
Indiferente às imagens registradas o tem- me a frase atribuída a Heráclito: “A única
po segue seu rumo e, na outra ponta do coisa que permanece é a mudança”.
fio, uma outra artista expressa uma outra
Cabo Frio também em imagens fotográfi-
cas. João Henrique de
Bea Martins captou o fim de uma era, mas Oliveira Christovão
não da era retratada por Wolney. Ainda
que haja uma enorme tentação em ligar
um a outro, sobretudo quando expostos la-
do-a-lado, há que se atentar para os deta-
lhes. Bea possui uma sensibilidade própria
e querer uni-los de modo que um explique Doutor em História pelo Programa
o outro ou que um seja a consequência do de Pós-Graduação em História, Polí-
tica e Bens Culturais do CPDOC/FGV
outro seria um equívoco.
(12/2020). Mestre em História Social
pela FFP/UERJ (2011). Possui graduação
A cidade de Bea Martins é, em todos os as- em História (1993) e especialização em
pectos, uma cidade que não é a de Wolney. História do Brasil (2004) pela Univer-
É sobre uma outra cidade que ela fala. “En- sidade Federal Fluminense. É professor
do ensino fundamental da rede pública
tre montes brancos e espelhos d’água” há
municipal da cidade de Cabo Frio desde
tempos e espaços tão diversos quanto di- 1998 e da cidade do Rio de Janeiro des-
versos são os olhares dos dois artistas. As de 2001. É pesquisador do Laboratório
ruínas sobre as quais Bea Martins constrói de Estudos de História dos Mundos do
a sua obra ao invés de celebrar uma cidade Trabalho - LEHMT/UFRJ desde dezem-
bro/2020. Atuou como professor convi-
dado no Instituto Federal Fluminense/
campus Cabo Frio no período compreen-
dido entre 2010 e 2016 lecionando e de-
senvolvendo pesquisas sobre Educação e
a História da região.
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A fotografia é um pedaço de tempo que
passou, mas que guarda a nossa marca, é
um pedaço de nós. Ela é sempre um ates-
tado de presença para quem a produziu e
para quem aparece na imagem, bem como
para a paisagem e a sociedade a ela ligada.
Naquele pedaço de papel está gravada uma
parcela das nossas vidas, a do autor e a do
observador.

O tempo sempre pertenceu aos deuses. A


fotografia, ao reter o instante, surgiu como
uma dádiva, um instrumento mágico na
Assim como se nada fosse, questões insti- recuperação da coisa vivida, como essa co-
gantes surgem das várias camadas de sen- leção de imagens tão bem expressa.
tido na leitura dessas fotografias de Bea
Martins e Wolney Teixeira. Sal e tempo, trabalho e memória, constru-
ção e transcendência são as dimensões que
As imagens bem harmonizadas, com uma acabam por nos conduzir a essa viagem
bela luz e uma proporção perfeita formada tão especial através de montes brancos e
por massas e linhas que se combinam com de espelhos d’água.
maestria, sempre nos encantam. São belas,
mas são exemplos do talento e da maestria
do autor em dominar a linguagem fotográ- Milton Guran
fica, o que não é pouco. No entanto, uma
fotografia pode ir muito mais além, porque
sempre representa um pedaço do mundo
visível que vem carregado de vida, de sen-
tido, de memória.

É nesse registro que as obras de Bea e Wol-


ney se destacam, numa combinação de
rara felicidade. Além da beleza formal,
Milton Guran é fotógrafo, curador e
elas encerram uma dimensão histórica antropólogo, doutor em Antropologia
e existencial traduzida pela aplicação de (EHESS, França, 1996), com pós-douto-
duas vertentes do fazer fotográfico, a docu- rado na USP (2004-2004), e mestre em
mentação e o campo expandido pela cons- Comunicação Social (UnB, 1991). Dentre
trução de sentido a partir de um conceito suas publicações, destacam-se Encontro
na Bahia 1979 (1979), Linguagem foto-
aplicado pelo autor. No nosso caso, autora. gráfica e informação (1992) Agudás – Os
Neste conjunto de imagens, nos vemos às Brasileiros do Benin (2000), Gente não
voltas com dois bens preciosíssimos. Um é lixo (com Ana Sallas, 2020), e o site
de ordem material, que é o sal. O outro www.acervoaguda.com.br, projeto ga-
bem precioso, esse de natureza mais trans- nhador do Prêmio Rumos Itaú, dentre
outras obras e artigos no campo da foto-
cendental, é o tempo. grafia e da antropologia. Foi um dos fun-
dadores da AGIL Fotojornalismo (Brasí-
O sal é um marco civilizatório na histó- lia, 1980) e fotógrafo do Museu do Indio.
ria da humanidade, celebrado em diver- Desde 1978, trabalha com documenta-
sas épocas e diferentes sociedades como o ção sobre os povos originários no Brasil
e sobre questões identitárias na África
mais precioso dos bens. De tanto valor, foi Ocidental. Em 2003, criou o FotoRio –
padrão de troca econômica e deu na pa- Encontro Internacional de Fotografia do
lavra salário, que designava o pagamento Rio de Janeiro, inicialmente bienal de-
dos soldados das legiões do antigo Império pois anual. Ganhador por duas vezes do
Romano. Prêmio Marc Ferrez da Funarte, da Bolsa
Vitae, do Rumos Itaú - Patrimônio e dos
prêmios ORI, da Prefeitura do Rio, e Ori-
laxé do Afroreggae, foi agraciado com a
Ordem do Rio Branco e com a Ordem do
Mérito Cultural do Governo Federal.
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FICHA TÉCNICA EXPOSIÇÃO
SESC RJ EXPOSIÇÃO ENTRE MONTES
BRANCOS E ESPELHOS D’ÁGUA
Presidente da Federação do Comércio do
Estado do Rio de Janeiro / Fecormécio RJ Curadoria
ANTONIO FLORENCIO DE QUEIROZ JUNIOR JULIA BAKER

Diretora Regional Coordenação de Projeto


REGINA PINHO BOMBA CRIATIVA

Diretor de Programas Sociais Projeto Expográfico e Arquitetura


FERNANDO ALVES DA SILVA CLARA GUERRA

Diretor de Desenvolvimento Institucional Identidade visual


FABIO SOARES MARCELLO TALONE

Diretor de Comunicação e Marketing Produtor Executivo


HEBER MOURA GUSTAVO CANELLA

Gerência de Cultura Impressões Fotográficas (Wolney Teixeira)


CHRISTINE BRAGA HUMBERTO CESAR/CASA 2 IMAGEM
(Gerente)
FABIANA VILAR Assistente da Artista/ Impressões
(Coordenadora Técnica) (Bea Martins)
BERNARDO MARQUES PEDRO VILAIN
(Analista de Artes Visuais)
Cenotécnica e Montagem
FELIPE CAPELLO
UIRÁ CLEMENTE
(Analista de Artes Visuais)
Assessoria de Imprensa
Unidade SESC Niterói
LYVIA RODRIGUES / AQUELA QUE DIVULGA
VERA TINOCO BARBOSA
(Gerente)
Agradecimento
LUCIANA CHEBLER WARLEY SOBROZA (especial)
(Coordenadora Técnica)
VITOR RAMALHO Escola de Artes Visuais do Parque Lage
(Analista de Cultura) (EAV)
DENISE CATHILINA
GIODANA HOLANDA

FICHA TÉCNICA CATÁLOGO


Coordenação editorial
JULIA BAKER

Autores
JOÃO HENRIQUE DE OLIVEIRA CHRISTOVÃO
JULIA BAKER
MILTON GURAN

Design
MARCELLO TALONE

Registros fotográficos da exposição


CHARLES PEREIRA

Produção Executiva
BOMBA CRIATIVA

32
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Elaborado pelo Bibliotecário Douglas Lenon da Silva (CRB-9/1892)

E61 Entre montes brancos e espelhos d’água / organização


Julia Baker; autores Julia Baker, João Henrique de Oliveira Christovão
e Milton Guran. – Rio de Janeiro: Do autor, 2023.
34 p. ; il.

ISBN 978-65-00-83510-6

1. Fotografia - Exposição. 2. Sal – Cabo Frio (RJ) – Exposição.


I. Baker, Julia. II. Christovão, João Henrique de Oliveira. III. Guran, Milton.

CDD 770.28

33
REALIZAÇÃO PRODUÇÃO

34

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