Você está na página 1de 94

As montanhas e o mar revolto da Escócia eram testemunhas das

confissões nostálgicas da linda Fany MacSteel. Por sua família viver em


constantes guerras com o clã dos Mcbrara, seus vizinhos, não mais
aconteciam os bailes e torneios que favoreciam os romances e os flertes.
Fany suspirava pelo amor, que imaginava a suprema dádiva da vida. Seu
destino, porém, estava sendo traçado naquele mesmo instante. Para pôr fim
às rivalidades, seu casamento foi acertado com o conde de Braradale, um
inimigo em quem nunca havia posto os olhos!

Digitalização/revisão; Marisa H
Barbara Cartland
O NOIVO INIMIGO
Leitura — a maneira mais econômica de cultura, lazer e diversão.

Título original: The loveless marriage


Copyright: Barbara Cartland, 1992
Tradução: Nancy de Pieri Mielli
Copyright © para a língua portuguesa: 1992
EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.
Al. Ministro Rocha Azevedo, 346 CEP O141O-9O1 — São Paulo — SP —
Brasil
Caixa Postal 9442
Esta obra foi composta na Editora Nova Cultural Ltda.
Impressão e acabamento: Gráfica Círculo
SERVIÇO DE ATENDIMENTO AO ASSINANTE Telefone: (O11) 881-8266
Cartas para: “Central de Atendimento”
Al. Ministro Rocha Azevedo, 346, 4º andar CEP O141O-9O1 — São Paulo

NOTA DA AUTORA
Orei George IV foi um dos mais importantes e ao mesmo tempo um dos
mais controversos monarcas que a Inglaterra conheceu.
Enquanto seus inimigos, especialmente aqueles que apoiavam a rainha, o
censuravam e faziam todo o possível para prejudicá-lo, ele, com charme,
bom gosto e personalidade marcante acabou triunfando por todo o país.
Isso não quer dizer que durante seu reinado não tenham .ocorrido alguns
episódios desagradáveis.
Uma parte das ilhas britânicas, a Escócia, sempre foi antagônica a
Inglaterra.
Os escoceses não conseguiam esquecer a crueldade com que o duque de
Cumberland e sua tropa os trataram.
Sofreram muito quando, depois de viverem tantos anos na mesma terra,
foram expulsos com suas famílias, tendo as casas queimadas, sendo
obrigados a atravessarem o oceano até o Canadá.Os escoceses, com suas
próprias lutas históricas entre os clãs, eram como os elefantes: jamais
esqueciam.
Em agosto de 1822, o rei decidiu visitar Edimburgo.
Era a primeira visita de um monarca britânico a Escócia em duzentos anos.
Inesperadamente, a visita foi um enorme sucesso, devendo-se isso em
grande parte a sir Walter Scott, que foi chamado para a função de mestre de
cerimônias.
Sir Walter Scott era o responsável pela atmosfera romântica que passara a
envolver a Escócia depois da publicação de seus livros e poemas.
Para divertir o rei, ele planejou uma das mais esplêndidas paradas que os
escoceses com seus clãs já haviam visto.
Os regimentos das montanhas eram famosos por terem se distinguido com
louvor sob o comando de Wellington contra Napoleão Bonaparte.
Os britânicos, contudo, ainda não tinham noção do quanto esse povo havia
sofrido.
Foi essa disposição do rei de vir a Escócia, que mudou os sentimentos dos
escoceses para com os ingleses e dos ingleses para com os escoceses.
Suas extraordinárias boas maneiras o tornaram conhecido como o
“cavalheiro número um da Europa”.
Algo que também se espalhou pela Europa foi a surpresa que ele fez aos
escoceses ao se apresentar diante da multidão com um kilt.
O número de pessoas que recebeu enquanto esteve em Edimburgo, e o
entusiasmo com que foi recebido pela multidão seria algo que a Escócia se
lembraria por muito tempo.
A visita do rei foi tão importante que criou uma ponte entre o imenso golfo
que dividia o norte do sul da Grã-Bretanha.

1822

Fany caminhava pela beira do rio e admirava o pôr-do-sol além das


montanhas, berço daquelas águas limpidas e tranqüilas que fluíam em
direção ao mar.
Como sempre, sentia-se emocionada pela beleza da paisagem que
conhecia desde que nascera.
O leito do rio Strath era baixo, deixando entrever as pedras escuras e
arredondadas através de sua superfície.
O zumbido das abelhas e o canto dos galos silvestres a recepcionavam
conforme ela penetrava pelo campo de urzes.
Um cenário que para outros poderia ser descrito como familiar, mas que
para Fany era mágico, como se ela estivesse pisando sobre uma terra de
sonhos.
Fany era uma moça de constituição magra.
Qualquer um que a visse a distância pensaria que era parte das árvores
que cresciam ao longo das margens.
Seus cabelos possuíam o toque ruivo típico dos escoceses.
Não aquela cor vermelha acentuada demais para ser atraente, mas sim o
tom profundo e bonito dos cedros.
Enquanto contemplava as águas deslizantes, estas pareciam se refletir em
seus olhos.
A transparência de sua pele alva era realçada pelo sói poente.
No entanto, jamais ocorrera à meiga Fany, que fosse dona de uma beleza
tão grande e pura.
Uma beleza que não poderia ser comparada aos moldes normais que os
escoceses tanto admiravam em suas mulheres, que era a robustez, a força
e a resistência.
Havia algo de diáfano na graça dos movimentos de Fany, que parecia
situá-la numa era antiga, há muito vivida.
Seu tipo de beleza era enaltecido pelos poetas de gerações passadas,
mas que ainda viviam através das marcas deixadas por seus versos.
Naquele instante, Fany percebeu o rápido movimento de um salmão se
projetando num salto para fora da água.
Ele nadava contra a correnteza a fim de escapai do mar e se proteger no
colo da nascente do rio.
Seu pequenino corpo cintilou como prata aos raios do sol.
Embora não fosse esportivo de sua parte, Fany desejou que a frágil
criatura não fosse apanhada por nenhum pescador, e que visse realizado
seu esforço para atingir sua meta.
Estava tão absorta em pensamentos, que não percebeu a aproximação de
uma pessoa, cuja voz soou a seu lado:
— Estava certo de-que iria encontrá-la aqui.
Fany olhou rapidamente em direção á voz e não se surpreendeu em
encontrar Hamish MacSteel, um primo dela, que se fizera um membro
notório entre o clã de seu pai.
Fany olhou para ele e achou-o mais agressivo e de certa forma mais forte
e intimidante do que o normal.
O primo era um homem jovem, alto e corpulento, com cabelos escuros e
olhos cortantes como punhais.
Eles pareciam buscar encrenca onde quer que seu dono se encontrasse.
— Papai estava a sua procura, Hamish — Fany comunicou. — Você o
encontrará no castelo.
— Eu queria ver você e não o seu pai — Hamish respondeu.
— Mas eu desejo ficar sozinha — Fany replicou. — Como você bem sabe,
tenho muito em que pensar e esta é a única hora do dia em que posso me
dedicar apenas a mim mesma.
— Então você deveria estar pensando em mim — comentou Hamish
MacSteel — e em me dar a resposta que tanto anseio por ouvir.
Fany se voltou para o rio, mas Hamish não entendeu ou não quis entender
seu gesto.
— Concorde de uma vez em se casar comigo. O que estamos esperando?
Eu te amo e farei com que também me ame.
— Já te disse uma centena de vezes antes que nunca me casarei com um
homem a quem não ame — Fany sussurrou.
— O amor virá com o tempo — Hamish insistiu.
Havia algo de desagradável na forma do homem falar, como se quisesse
obrigá-la a cumprir seu desejo. Fany sentiu um calafrio percorrê-la.
Seu primo a procurava quase todos os dias para pedi-la em casamento,
mesmo que em todas as vezes sua resposta fosse sempre a mesma.
Fany não queria se casar, mas se algum dia o fizesse, seria com o homem
por quem estivesse apaixonada.
Era difícil, até impossível explicar àquele ser ignorante e obstinado que
para ela o amor era um sentimento maravilhoso, romântico e espiritual.
Fany era muito inteligente e culta.
Adorava ler, principalmente romances de amor, um tema inspirador aos
mais importantes autores de todo o mundo, um tema que fazia as pessoas
amarem e sofrerem com seus personagens.
Através dos livros, aprendera o que significava o amor, e era esse amor
que ela desejava encontrar um dia.
Nunca poderia ser feliz com um homem que não lhe dedicasse também
esse sentimento tão suave e lindo.
Seu casamento teria de ser diferente daqueles que a rodeavam.
O amor que Hamish lhe oferecia, por exemplo, e que ela conhecia por
instinto, era do tipo inteiramente físico.
Seria impossível para um homem como ele entender o que ela
necessitava, o tipo de amor pelo qual sonhava.
Fany se afastou alguns passos pelo caminho coberto de musgo, o qual ela
já desgastara em parte, devido às caminhadas diárias ao entardecer.
— Estou esperando pela resposta — Hamish insistiu, contundente.
— Mas eu já a dei — Fany respondeu.
— Quer que eu me dê por satisfeito com isso? Pelos céus, Fany, o que
você está esperando? O que quer? Posso te dar tudo o que desejar, sempre
que quiser. É só você pedir que eu não questionarei suas razões.
— O que eu quero você não pode me dar, infelizmente. Portanto, não vale
a pena continuar insistindo.
— O que quer dizer com isso, “que eu não posso te dar”? — Hamish
indagou, zangado. — Tenho dinheiro, um dinheiro só meu, como você está
ciente. Tenho minha própria casa que, agora que minha mãe faleceu, está à
espera de uma nova dona. Como já disse tantas vezes, poderei te dar tudo
o que você quiser.
Fany balançou a cabeça.
— Não é verdade. O que eu quero é impossível que você me dê.
— Mas por quê? Por quê? — Hamish quis saber. — Oh, pelo amor de
Deus, Fany, pare de se comportar dessa maneira ridícula! Nós nos
casaremos daqui a um mês e o clã celebrará nosso enlace com muita festa
e prazer.
Fany cogitou que esse acontecimento só poderia existir na imaginação
esperançosa de Hamish, pois ele não era popular entre os membros do clã
e muito menos com seu pai.
Contava-se histórias a respeito dele, e todas bastante desagradáveis.
Suas disputas persistentes com os clãs vizinhos, especialmente o dos
Mcbrara, tornaram-se conhecidas e famosas em toda a região.
No entanto, não a levaria a lugar algum apontar essa realidade, assim
como seu pai costumava fazer.
Fany continuou se afastando pela margem do rio.
— Não quero mais discutir este assunto. Tudo o que quero é ficar sozinha.
— É isso o que sempre diz quando eu quero falar com você! — Hamish se
queixou. — Por que você não pode se comportar como qualquer outra
mulher e me ouvir quando eu confesso meu amor?
— Porque essa confissão é algo que não gosto de ouvir.
Ela sabia que homem algum poderia ficar feliz em ouvir uma negativa
franca como essa, mas não pôde mais se controlar.
E, realmente, aborrecido com suas últimas palavras, Hamish estendeu os
braços, segurou-a e a obrigou a se voltar para fitá-lo.
— Agora ouça-me. Não suporto mais ser desprezado e recusado por você.
Te amo e quero torná-la minha esposa. Se não concordar com minha
proposta por bem, acabarei sendo obrigado a forçá-la a aceitar meu pedido,
de uma forma que poderá julgar ofensiva.
Hamish nem bem terminara de falar, e a estava apertando entre seus
braços, tentando beijá-la.
Teria realizado seu desejo caso Fany não reagisse com uma rapidez que
ele não poderia esperar.
Ela se desvencilhou do abraço, afastou-se e lhe endereçou um olhar de
desprezo.
Quando Hamish pensou que Fany fosse protestar, esbravejar ou
responder ao seu pedido, ela correu por entre as árvores com a agilidade de
uma corça.
Ziguezagueou por entre o campo e já havia desaparecido de vista quando
Hamish começou a ter noção do que se passara.
Por um instante, pensou em persegui-la, mas então lembrou-se de que já
tentara essa façanha por outras vezes, sem jamais conseguir vencê-la.
Ele era muito grande e as pernas lhe pesavam.
Fany, contudo, poderia correr tão rápido quanto qualquer homem do clã, e
até vencê-los.
Por ser esguia, ela podia correr por entre as árvores e arbustos e até
saltar, o que para Hamish era impossível.
Segui-la seria desperdiçar tempo e energia.
Furioso e praguejando de forma insustentável, Hamish só podia adivinhar
a rota de fuga de Fany através do movimento das folhas e do eventual brilho
de seus cabelos, quando ela passava por algum arbusto mais baixo.
Em poucos minutos só restou o murmúrio do rio e o canto dos pássaros no
silêncio que ela deixou.
— Maldita garota! — ele falou consigo mesmo. — Tenho de esquecê- la
de uma vez por todas e encontrar outra que ocupe o lugar que ela deixou
em minha vida.
Porém, por mais que o desejasse, Hamish sabia que isso seria algo
impossível.
Não havia outra garota em todo o clã que pudesse ser comparada, que
chegasse aos pés de Fany.
Os MacSteel constituíam o mais antigo e mais importante clã entre as
montanhas da Escócia, e ocupavam aquela região desde o século XII.
Como filha do proprietário de todas aquelas terras, o líder dos Macteel,
Fany ocupava uma posição única.
Hamish sabia que se conseguisse se casar com ela, sua posição no clã se
elevaria a um posto de importância considerável.
Hamish era primo do senhor das terras, embora distante.
Ao mesmo tempo, sabia que não era particularmente aceito pela família,
devido a seu comportamento, ainda que pertencesse a ela por laços de
sangue.
Assim mesmo, estava determinado a herdar o título de líder do clã, um dia,
mesmo que o cargo devesse passar por herança direta ao irmão de Fany.
O único problema era que ainda não sabia como isso seria possível.
Era um homem agressivo e perigoso.
Muitos membros do clã o temiam.
Fany, contudo, o desafiava e se recusava a ouvir suas contínuas e
insistentes propostas de casamento.
A seu próprio modo, Hamish a amava.
Mas o que realmente importava era que ele a queria não apenas como
mulher mas também como meio de ascensão social.
Fany garantiria sua permanência numa posição de destaque entre os
membros do clã dos MacSteel.
Mas, como não se via mais sinal algum dela, nem movimento algum por
entre os arbustos, Hamish se sentou, praguejando, à beira do rio.
Sua imaginação não lhe dava trégua.
Ele cogitava se poderia vir a ser bem-sucedido numa tentativa ousada de
raptar Fany, forçando-a a se casar com ele perante seu pai, ou se haveria
alguém que pudesse impedi-lo.
Caso conseguisse levá-la e mantê-la escondida em um local de onde não
pudesse escapar, e a possuísse, o que o pai ou qualquer outro membro do
clã poderia fazer exceto concordar com o casamento? E se ele a
engravidasse, não seria uma garantia ainda maior de que todos os seus
planos seriam coroados de êxito?
Essas possibilidades maquiavélicas passaram diante de seus olhos.
Não temia pelas consequências que seu ato poderia trazer. Não temia o
líder do clã. Quem Hamish realmente temia era a própria Fany.
Apesar de ser pequena, frágil, muito feminina, tão delicada quanto uma
sílfide, sua personalidade e inteligência eram por demais marcantes.
Não poderia competir com Fany, mas a queria loucamente e, até aquele
dia, sempre conseguira tudo a que se propusera, por mais difícil que
parecesse.
— Ela será minha! E o quanto antes, melhor! — ele prometeu a si próprio.

Fora do alcance das mãos insultuosas de Hamish, Fany estava quase


chegando ao castelo de seu pai.
O pensamento que não lhe dava descanso era que não estava mais
tolerando as investidas do primo.
Talvez devesse levar o problema ao conhecimento do pai, ela cogitou, a
fim de que ele pudesse chamar a atenção do rapaz, mas hesitava em tomar
essa decisão, ciente de que como líder do clã, o pai já tinha dificuldades o
suficiente.
Contava-se histórias a respeito de Hamish e de seus jovens seguidores,
histórias muito desagradáveis sobre roubos e matanças de rebanhos
pertencentes aos clãs vizinhos.
Também lhes era atribuído um comportamento violento com relação às
pessoas. Seus nomes estavam sempre ligados às brigas de ruas.
Fany sabia que seu pai ficava furioso quando esse tipo de notícia lhe
chegava aos ouvidos.
Não teria coragem, portanto, de perturbá-lo ainda mais do que já estava.
Desde que assumira a posição de líder, ele tentara dirigir o clã com
sabedoria, melhorando-lhe a reputação.
Sem dúvida tivera um grande sucesso em torná-lo mais próspero e
respeitado.
Muitos dos jovens deixaram seu povo orgulhoso por terem se distinguido
entre os regimentos da montanha.
Alguns lamentavelmente perderam a vida, mas aqueles que retornaram da
guerra, receberam tratamento e distinção de heróis.
Uma pena, Fany pensou, que Flamish fosse jovem demais para se tornar
um soldado na época em que os escoceses foram chamados a lutar na
guerra contra Napoleão Bonaparte.
Seu pai costumava dizer que a disciplina militar lhe teria feito um bem
enorme, e ela tinha certeza de que o pai estava com a razão.
Mas o fato era que Hamish permanecera na Escócia e que suas façanhas
estavam se tornando cada vez mais conhecidas e mais maléficas, a cada
dia que passava.
— Como poderia me casar com um homem como ele? — Fany indagava a
si própria.
Como, se no fundo de sua mente, já existia a imagem de um príncipe
encantado que viria a seu encontro e que lhe daria tudo o que ela sonhava
ser o amor?
Enquanto prosseguia em sua caminhada, ela pensava não em Hamish, e
em sua voz áspera implorando que se casasse com ele, mas no amor.
O amor que Henrique II da França tivera por Diana de Poitiers.
Por ser tão inteligente e esperta quanto bonita, Diana o ajudara a tornar a
França mais próspera do que jamais fora.
O rei Henrique a amara com total paixão desde o primeiro momento em
que a conhecera, quando ainda era uma criança.
Ela fora a única mulher em sua vida até morrer durante uma batalha.
Diana também o amara e se dedicara exclusivamente a ele, até sua morte.
— Isso é o amor, o tipo de amor que desejo e que rezo para encontrar, um
dia.
O castelo de seu pai agora estava diante de seus olhos.
Sofrera diversas reformas através dos séculos, mas ainda conservava a
imponência original.
Sobrevivera ao ataque de muitos inimigos desde tempos remotos, inclusive
dos temidos vikings.
O castelo, ela pensou, era um cenário adequado para a atuação de seu pai
e dos membros mais velhos e importantes do clã.
Ao chegar mais perto, Fany notou que havia vários cavalos diante da porta
principal.
Mais uma vez, as pessoas chegavam ao castelo a fim de consultar seu pai
e lhe pedir conselhos.
Esperava apenas que isso não fosse significar um acréscimo de problemas
a ele.
A idade de seu pai estava começando a lhe pesar.
Por ficar extremamente preocupado com a situação que envolvia seu povo,
nas montanhas, ele estava encontrando dificuldade em dormir.
A mãe de Fany perdera a vida durante um inverno muito rigoroso, em que
a neve os mantivera isolados durante semanas.
Na consciência de Fany ficara a determinação de zelar pelo pai e de torná-
lo o mais feliz possível, diante das circunstâncias.
Fizera o melhor que pudera, mas reconhecia que ninguém jamais poderia
tomar o lugar de sua mãe, e que nunca conseguiria fazer o pai tão feliz
quanto fora ao lado da querida esposa.
Fany tinha a esperança que, quando o irmão retornasse, o que se
esperava acontecer em breve, ele resolvesse se casar.
Haveria, então, alguém que a ajudasse a cuidar do castelo enquanto o
irmão assumiria a maior parte das responsabilidades perante o clã.
Mas o irmão, na verdade, estava gostando muito de ser um soldado.
Ele se juntara às tropas, na época da guerra, apenas por um sentido de
dever.
Descobrira, mais tarde, que fazer parte do regimento escocês sob o
comando de Wellington, fora o que de mais importante e excitante
acontecera em toda a sua vida.
Ele participara dos combates na Espanha, da vitória em Waterloo, e
pertencera ao exército de ocupação que a seguiu.
Foi nessa ocasião que Fany julgou que ele voltaria para casa.
Uma decepção, contudo, pois embora um grande número de soldados
tivesse retornado para junto de seus familiares, o irmão decidira permanecer
com o regimento.
— Talvez ele resolva voltar para casa no final do ano — Fany cogitou.
Nunca o fizera antes, mas agora estava pensando em lhe escrever.
Alistair precisava saber que o pai estava trabalhando demais para um
homem de sua idade, e que era essencial que o filho retornasse.
Um jovem inteligente, um soldado corajoso e experiente, Alistair teria
condições de resolver os problemas trazidos pelos homens pertencentes ao
clã.
O fato era que a maioria dos rapazes do clã estava deixando a Escócia e
indo para a Inglaterra.
A vida agitada e as diversões oferecidas pela cidade de Londres os
atraíam muito mais do que as infinitas reclamações e problemas que
encontravam em seu país.
Era uma situação insustentável, uma situação que nunca antes ocorrera
em toda a história dos clãs.
O líder era o pastor de seu rebanho, que sempre se voltava para ele com
cada problema que lhe surgisse, fosse ele grande ou pequeno.
A decisão do líder era final e absoluta e todos o obedeciam sem
questionar.
Quando o povo se via abandonado, sem poder contar com os conselhos
do líder, ele perdia o rumo de vida.
Os clãs escoceses nunca, em tempo algum, tiveram de decidir algo por si
próprios.
Sem a orientação, sem as ordens do líder, eles não sabiam o que fazer.
Esse era um fato do qual o pai de Fany estava plenamente consciente.
Ela sabia que ele conduziria seu clã com a melhor das intenções, com
todas as forças que lhe restassem até que a morte o levasse.
“Mas tanta atividade e responsabilidade estão sendo demais para ele!”,
Fany tornou a pensar. “Alistair precisa voltar para casa por mais que aprecie
sua vida de soldado.”
Fany entrou no castelo através da imensa porta de estilo gótico, que ali
permanecia havia séculos, sem ser substituída.
No interior, contudo, o ambiente era mais moderno.
Sua mãe decorara as salas com tapetes e cortinas de veludo.
O castelo contava com o máximo de conforto possível.
Como uma Sinclair de Caithness, ela não fora apenas linda, mas muito
rica.
Dessa forma pudera se cercar de beleza e de todos os objetos que lhe
agradavam.
O castelo nunca fora tão bonito e aconchegante até que ela se casasse
com o senhor daquela propriedade.
Enquanto subia a escadaria antiga coberta pelo espesso carpete, Fany
ponderou o quanto eles eram afortunados.
A maioria dos outras famílias vivia no desconforto de antigas propriedades,
cuja mobília fora dilapidada e desgastada através dos séculos.
Seu próprio quarto era um encanto.
Fora decorado com a finalidade de agradar uma menina.
As cortinas de musselina caíam por ambos os lados da cama macia.
A penteadeira com a banqueta, também forrada com o mesmo tecido da
cortina, era um mimo dificilmente visto pela paisagem agreste da Escócia.
Quando Fany se colocava à janela, podia vislumbrar as montanhas que se
erguiam do outro lado do rio Strath, cujas águas fluíam mansamente em
tons de ouro e prata à luz crepuscular.
Era uma paisagem maravilhosa.
O pensamento a fez sentir um terrível ressentimento contra Hamish.
Ele a obrigara a se afastar do rio e procurar a segurança de sua casa, num
momento que ela queria ficar sozinha a desfrutar do murmúrio tranquilizante
da natureza.
— Como farei para convencê-lo de que jamais me casaria com ele, mesmo
que fosse o último homem sobre a face da Terra?
Como não havia uma resposta para essa pergunta, Fany suspirou.
O pai a chamou, em seguida.
— Fany, Fany, preciso de você!
Ela abriu rapidamente a porta e correu pela escadaria a fim de encontrar o
pai que a esperava no hall, após se despedir dos visitantes, cujos tropéis de
cavalos anunciavam a iminente partida.
— Estou aqui, papai. Acabei de chegar, mas ao perceber que estava
ocupado, não quis importuná-lo.
O pai não respondeu. Simplesmente voltou para o escritório, onde estivera
recebendo os membros de seu clã.
O escritório era decorado com severidade. As paredes se encontravam
forradas de livros. O único adorno que suavizava o ambiente era o quadro
da mãe de Fany, que fora pintado logo após seu casamento.
Assim que o pai fechou a porta, a filha apertou-lhe a mão.
— Parece preocupado, papai, o que foi que aconteceu?
— Estou realmente preocupado com as notícias que acabei de receber —
ele desabafou.
— Que notícias são essas?
— Houve problemas mais uma vez em nossas fronteiras — o pai a
informou. — Três homens se encontram gravemente feridos e, por mais
difícil que seja acreditar, mais de vinte carneiros foram roubados.
Fany deixou escapar um pequeno grito.
— Não pode ser verdade! Em que local isso aconteceu?
Mas ela sabia qual seria a resposta, antes mesmo que o pai a elucidasse.
— Dos Mcbrara.
Fany suspirou, pois sabia quem fora o responsável pela desgraça, sem a
menor sombra de dúvida.
Hamish jurara os Mcbrara de vingança havia anos.
Os Mcbrara constituíam um antigo feudo que se mantinha havia várias
gerações.
Hamish julgara um grande feito de sua parte declará-los, assim como
sucedera no passado, inimigos dos MacSteel.
Ele fazia o possível e o impossível para criar problemas junto a eles.
— O que o senhor poderá fazer a esse respeito, papai?
— Era o que eu estava pensando, minha filha, o quê poderei fazer? Não é
a primeira vez, como você bem sabe, que surgem problemas com relação
aos Mcbrara. Eles nada fizeram contra nós, pelo que pude descobrir.
Deveriam ser deixados em paz para cuidar de suas vidas, assim como
desejamos cuidar das nossas.
O líder fez uma pausa antes de prosseguir:
— Eles possuem um número muito maior de membros em seu clã do que
nós, e o conde é proprietário de um número também muito maior de terras
do que nós jamais poderíamos sonhar em adquirir. Qual a finalidade de se
brigar, quando eles não demonstram intenção de brigar conosco?
Fany mais uma vez sabia a resposta para essa pergunta.
Hamish estava determinado a criar problemas e ela desconhecia a solução
que seu pai poderia dar com o propósito de detê-lo.
Hamish era muito esperto quando queria ocultar suas pistas.
Mas o conde, assim como seu pai, não poderia ser responsabilizado pelo
que acontecia à noite, na escuridão.
Era nessa hora que Hamish e seus comparsas rastejavam de suas casas,
a mente criminosa em franca atividade.
De certa forma, ela compreendia a força que os impelia a agir.
Os jovens tinham muito pouco para fazer e não havia distrações no campo
que lhes interessasse.
Era motivo de excitação para eles sair à noite, roubar alguns carneiros e
lutar contra os que tentavam ameaçá-los.
Se Hamish tivesse ido para a guerra, as coisas teriam sido diferentes.
Mas do jeito que estava a situação, seu pai estava se torturando sem
saber como resolver o problema.
— O senhor terá de falar com Hamish, papai, e lhe dizer que isso não
poderá continuar — Fany o alertou.
— Já falei com ele inúmeras vezes, sem alcançar nenhum êxito — replicou
o líder.
Fez-se um pesado silêncio.
— Talvez seja necessário bani-lo do clã — ela aventurou.
O pai enrijeceu à sugestão.
— Isso já aconteceu antes, mas apenas em casos extremos.
Ser banido de um clã significava a morte para a família e para todo o
mundo habitual de um escocês.
Enquanto o pai pensava e Fany sabia que ele estava ponderando cada
alternativa a fim de descartar a idéia, ela percebeu de forma definitiva o
quanto ele envelhecera no último ano.
O cabelo estava grisalho e havia rugas em seu rosto, que antes não
existiam.
Muitas delas haviam sido provocadas pelas preocupações que Hamish lhe
causava com seu comportamento indigno.
Mais do que isso, ele fora responsável por um ou dois incidentes nos
últimos tempos, que afetaram seu próprio povo.
O desaparecimento de carneiros.
As armadilhas armadas nas charnecas para apanhar raposas, mas que
acabaram por ferir gravemente um homem.
Fany tinha certeza de que as armadilhas haviam sido preparadas pelos
Mcbrara em represália ao que vinham sofrendo por causa dos MacSteel.
“A situação está ficando cada vez pior”, ela pensou. “Se não tivermos
cuidado, ambos os clãs poderão entrar em guerra, assim como sucedeu no
passado”.
Como Se lesse seus pensamentos, o pai comentou:
— Estou ciente, minha querida, de que isso não pode continuar.
— O senhor terá de tomar alguma providência, meu pai, embora eu não
tenha idéia de qual.
— É o que tenho dito a mim mesmo — confirmou o líder. — Como você
sabe, o conde de Braradale não retornou da guerra como todos esperavam
que fizesse.
— E não há mais ninguém em seu clã com quem o senhor pudesse falar?
— Fany estranhou.
— Ninguém de importância. Os membros do conselho, que são os homens
mais idosos do clã, podem ser comparados aos nossos. Falam muito e
fazem pouco.
Pai e filha riram do comentário porque era tido como uma antiga piada.
— Foram os membros do conselho que vieram a sua procura esta manhã?
O pai fez um movimento negativo com a cabeça.
— Não. Foram membros do clã Mcbrara. Eles estão convencidos, como eu
também, é claro, de que Hamish é o pivô de todos os problemas, mas não
conseguem agarrá-lo nem reunir provas que o incriminem.
Fany sabia que Hamish era esperto demais para isso.
Diziam que ele era sempre o líder em qualquer briga que acontecesse.
No entanto, quando a situação se agravava para a gangue, ele tinha o
hábito de desaparecer.
As palavras que Hamish lhe dissera voltaram repentinamente a sua
memória.
A sugestão de rapto a fez estremecer.
Até aquele instante estivera decidida a participar ao pai a ameaça que
Hamish lhe fizera, mas agora mudara de idéia. Não seria ela quem daria ao
pai mais motivos para preocupação.
Externou seu pensamento, então, em voz alta:
— O senhor terá de mandar chamá-lo, papai. Ninguém mais se atreveria a
censurá-lo. Todos os membros do clã o temem.
— Nosso primo é um homem extremamente violento, mas falarei com ele
de qualquer forma, embora esteja certo de que de nada irá adiantar. Pelo
que tenho ouvido, há jovens em demasia em nosso clã, e todos o seguem
em busca de entretenimento.
Fany já ouvira esse tipo de comentário, mas preferira não mencioná-lo,
pois isso só contribuiria para aumentar os cabelos brancos do pai.
O líder sempre fizera questão do bom comportamento de todos os
membros de seu clã, e achava que os jovens deveriam ter a chance de
aprender a trilhar novos caminhos.
Contratara homens experientes tanto do norte quanto do sul da Escócia
para ensinarem seus homens as mais modernas técnicas de tratamento ao
gado e aos rebanhos.
Outros ainda vieram ensiná-los a arte da plantação e da colheita.
Até chamara um perito em horticultura que, devido ao interesse também
por parte das mulheres, se revelara um grande sucesso.
Fany acreditava que nenhum outro líder, no momento, se interessasse
tanto pela educação e pelo bem-estar de seu povo.
Um outro sinal dessa disposição era a existência de várias e boas escolas
dentro da propriedade.
As crianças, ao contrário dos outros lugares, começavam a receber
instrução assim que atingiam a idade adequada.
Fany sempre as via saírem de suas casas pela manhã.
Algumas precisavam caminhar vários quilômetros pela margem do Strath
até chegarem à pequena vila de pescadores, que se localizava em sua foz.
Ao chegarem em casa à noite, nenhuma reclamava de cansaço pois ir à
escola se revelara um grande prazer.
Para a maioria, as aulas eram interessantes e divertidas.
Pelo grande interesse do pai com referência à educação e à cultura, Fany
fora enviada a Edimburgo, onde cursou um dos melhores colégios do país.
O pai também contratara professores particulares para lhe ensinar idiomas
estrangeiros e outras matérias que julgava de importância para uma jovem.
Ele próprio gostava muito de ler.
Não era de admirar, portanto, que a parte do castelo que Fany mais
procurava, fosse a biblioteca, onde o número de livros aumentava a cada
ano que passava.
Era lá que encontrava romances que a ensinavam o significado do amor.
Fora através dos livros que aprendera a compreender a saudade que o pai
sentia de sua mãe.
O pai se apaixonara perdidamente por ela desde o primeiro instante em
que a vira.
Fany ainda se lembrava das palavras de sua mãe:
— Conheci seu pai durante um baile que estava sendo oferecido em minha
homenagem, em nossa casa, pelos meus pais. Ele entrou no salão, tão lindo
e elegante em seu kilt, que é a roupa típica dos escoceses, que eu senti
meu coração disparar no peito. E, no momento em que olhou para mim, eu
soube que ele estava sentindo o mesmo.
— Foi amor à primeira vista, mamãe! — Fany exclamara.
— Nunca pensei que pudesse acontecer comigo, querida — a mãe
confessara —, mas aconteceu, e eu rezo todas as noites para que com você
suceda da mesma forma.
— É o que mais desejo — Fany repetia todos os dias.
Ela criara em sua mente a imagem do homem de seus sonhos.
Ele se apaixonaria por ela no momento em que a visse, e ela
corresponderia a seus sentimentos.
Era por esse motivo que ela não queria sequer ouvir os protestos de amor
de Hamish.
O primo não sentiria o amor romântico pelo qual ela sonhava, nem em um
milhão de anos.
Ele apenas a queria como mulher ou como alavanca para uma posição de
maior prestígio dentro do clã, pois o casamento com a filha do líder
certamente era algo que qualquer homem cobiçaria.
Seu irmão seria o sucessor direto e indiscutível do pai.
No entanto, embora tentasse não pensar no assunto, Fany tinha um
pressentimento terríyel de que, quando o pai morresse, Hamish faria
qualquer coisa para impedir que seu irmão ocupasse o cargo que lhe era
devido por direito.
Hamish era suspeito de uma série de mortes e de acidentes lamentáveis.
Todos sabiam que fora ele o causador de tanta desgraça, mas ninguém
conseguia encontrar provas que o levassem ao tribunal.
Os membros mais idosos sussurravam entre si que algo deveria ser feito
antes que fosse tarde demais.
— O senhor terá de mandar chamá-lo, papai — Fany insistiu.
— Um dos visitantes me segredou que há rumores da provável volta do
conde para sua casa — o pai informou de repente.
Os olhos de Fany se iluminaram.
— Por fim! Já não era sem tempo!
— Concordo — comentou o pai. — Parece que ele se portou bravamente
na guerra e que, por isso, está sendo homenageado em Londres, lugar que
a maioria dos homens considera irresistível.
— Ele já se encontra afastado há muito tempo e seu povo precisa de
orientação, assim como nosso povo se veria perdido caso o senhor o
abandonasse.
— É lógico que precisam dele — o pai confirmou. — Praticamente não
podem contar com um líder desde que o pai dele faleceu, pois o conde, em
seguida, deixou a Escócia e retornou para Londres, onde presenciou a
coroação do rei.
— Eu também gostaria de ter estado presente à cerimônia — Fany
murmurou. — Os jornais descreveram o acontecimento em todos os
detalhes, mas por mais fiéis que tenham sido, não é o mesmo que se ver a
cena em pessoa.
— Caso o conde realmente retorne — o líder prosseguiu como se não a
tivesse ouvido —, encontrará uma série de problemas a sua espera. Os
membros de seu clã, que acabaram de deixar o castelo, me participaram de
meia dúzia, para você ter uma idéia.
O líder suspirou, antes de continuar:
— Eles se queixaram de que essas lutas contínuas nos limites de nossas
propriedades estão nos fugindo ao controle.
— Temo que seja Hamish o responsável por tudo — Fany declarou.
— Ele odeia os Mcbrara e deseja que todos em nosso clã tenham os
mesmos sentimentos.
O pai a olhou, assustado.
— Seu ódio é assim tão devastador? Não havia imaginado que envolvesse
todo o clã.
— O senhor conhece nossa história, papai. Os MacSteel foram inimigos
dos Mcbrara durante cinco séculos, no mínimo, e Hamish está determinado
a prosseguir com essa rixa. Uma infelicidade que os rapazes estejam sendo
instigados e se deixando ser convencidos por seus argumentos.
— Então ele deverá ser detido sem perda de tempo — o pai anunciou,
zangado. — Não quero que meu povo sofra por causa dele.
— Era isso que eu rezava para que dissesse, papai. Mas cuidado, pois
Hamish é muito esperto. Ele sempre consegue escapar de qualquer
emboscada, e quando for acusado de fazer o que todos sabemos que fez,
simplesmente negará e desafiará o senhor a provar sua acusação.
— Não estou disposto a acreditar em suas histórias — o pai afirmou.
— Conforme sua sugestão, Hamish poderá ser expulso do clã.
— Essa ordem funcionava nos velhos tempos, quando todos confiavam no
líder e obedeciam a todas as suas ordens. Mas, suponha que os jovens, que
seguem e admiram Hamish, se neguem a obedecer ao senhor?
Fany percebeu que o pai não antecipara essa possibilidade.
Pela expressão de seu olhar, ela reconheceu sua imensa preocupação.
— Preciso pensar em algo, encontrar uma solução, embora ainda não
tenha idéia do que fazer.
— Nem eu, papai, mas seria um desastre caso ambos os clãs acabassem
entrando novamente em guerra.
— Nosso clã sairia perdendo — o pai sussurrou. — Como já disse, o
conde de Braradale possui milhares de acres de terra mais do que eu, e os
membros de seu clã perfazem mais do que o dobro do nosso. Seremos nós
quem mais sofreremos, e é isso que precisamos fazer com que entendam.
O que o pai falava fazia sentido.
Ao mesmo tempo, ela sabia que Hamish havia incitado os jovens do clã a
tal ponto, que seria muito difícil detê-los.
Pelo fato de o irmão ainda se encontrar ausente com seu regimento, e por
não haver mais ninguém que os pudesse liderar nos jogos e atividades
típicas da idade, a maioria dos rapazes se encontrava desnorteada.
Terminado o dia de trabalho, achavam excitante ter Hamish à espera
deles, com um esquema infalível para que cruzassem a fronteira em direção
às terras dos Mcbrara, sem que fossem notados.
Se acontecia uma briga entre os homens de ambos os clãs, todos
entendiam o problema como algo que não pudera ser evitado.
Além disso, os Mcbrara, que eram surpreendidos sem defesa, geralmente
levavam a pior.
Isso, contudo, não era soprado aos quatro ventos, pois eles não queriam
que soubessem que haviam sido derrotados pelos MaeSteel.
No passado, os membros desses clãs se digladiavam até a morte.
A situação estava se tornando novamente tão assustadora que Fany
estendeu a mão para o pai.
— Precisamos fazer alguma coisa, papai. Não podemos permitir que um
jovem irresponsável arruine tudo o que o senhor fez de bom ao clã desde
que se tornou o líder.
— Eu gostaria de ser lembrado como alguém que introduziu seu povo as
mais modernas técnicas de trabalho — o pai respondeu. — Mas uma guerra
entre os clãs, minha querida, significaria uma volta às trevas, e é algo que
precisamos impedir a qualquer preço.
— O senhor tem toda a razão, papai, mas como conseguiremos cumprir tal
tarefa?

II

O conde de Braradale deu uma última olhada ao seu reflexo no espelho


antes de se encaminhar para a porta, que foi aberta pelo valete.
Ele estava ciente, embora o fato não o fizesse pensar muito a respeito, de
que estava elegante e de que o rei aprovaria sua aparência.
Quando retornara da guerra e se instalara em Londres, o conde tivera a
sorte de ser considerado pelo príncipe regente como um excelente
companheiro.
O rei sempre apreciara homens jovens e atraentes ao seu redor, enquanto
com relação às mulheres, preferia as mais velhas e experientes como
amantes.
De início, o que mais o atraíra com relação ao jovem escocês fora sua
educação e elegância.
Só mais tarde teve a oportunidade de conhecer a verdadeira personalidade
do conde, cuja sagacidade e inteligência eram quase tão grandes quanto as
suas.
Por mais críticas que se pudesse fazer ao rei George IV, como ele se
tornou conhecido um pouco mais tarde, ninguém poderia dizer que não
fosse um cavalheiro e que não se apresentasse sempre muito bem vestido.
Suas maneiras eram perfeitas e ele era dono de um charme irresistível.
Grande número de cortesãos procuravam imitá-lo e ele percebia isso.
Quanto ao jovem conde, não havia necessidade de imitação pois nele essas
qualidades eram naturais, o que o príncipe regente percebia e apreciava.
O jovem não podia evitar o fascínio que a cidade de Londres com sua
imensidade de divertimentos lhe despertava.
Juntara-se à Guarda Negra antes de completar os vinte e um anos e
participara da batalha de Toulouse, lutando ao lado de Wellington.
Fora essa a batalha final de toda a campanha de Wellington, quando o
exército inglês conseguira abrir seu caminho para o sul da França através
do território espanhol.
EMbora os franceses resistissem, em repetidos contra-ataques, o resulado
nunca foi colocado em dúvida.
A batalha terminou com a magnífica vitória do quarto e septuagésimo-
nono regimentos escoceses, apoiados pelo oitavo.
Por volta das cinco horas da manhã, doze depois do primeiro tiro de
canhão, toda a área caiu nas mãos inglesas.
Dos atacantes, quatro mil, quinhentos e sessenta e oito tombaram,
enquanto apenas a Guarda Negra perdeu mais da metade de seu poder de
força.
O conde, que na verdade ainda não recebera esse título já que o pai ainda
era vivo, distinguira-se nessa batalha com louvor.
Wellington o parabenizara.
Durante a batalha de Waterloo, o jovem tornou a se distinguir num
esplêndido ato de bravura, que lhe mereceu a entrega da medalha de ouro.
Quando a guerra terminou, não houve ninguém que mais apreciasse a
possibilidade de continuar como membro do exército de ocupação, do que o
conde de Braradale.
Ele jamais havia saído da Escócia antes de se juntar ao exército.
Recebera uma excelente educação durante a infância e a mocidade, mas
sem sair do país onde nascera.
Os pais haviam escolhido o melhor colégio de Edimburgo para o filho, que
acabou se tornando o líder de seus companheiros.
Nunca tivera contato com os ingleses até que alternassem a monotonia de
Cambrai com os excessos e excitações de Paris.
Por ser extremamente inteligente, ele se tornou profundo conhecedor da
psicologia humana.
Quanto às mulheres, ele teve sua primeira experiência sexual também na
atraente Paris, com uma bela e exótica cortesã.
Não era motivo de surpresa que não sentisse a menor inclinação para
retornar ao norte.
Isso só aconteceu quando recebeu a notícia de que o pai falecera, vítima
de um súbito ataque cardíaco.
Após o funeral, que o impressionou muito, ele recebeu a homenagem
tradicional por parte dos membros do clã, que o aclamaram como líder, cm
lugar do pai.
A cerimônia contou com os gaiteiros e com quase todo o clã reunido diante
de seu castelo.
Nessa época, contudo, ele já se acostumara por demasiado com a vida de
Londres, e se tornara amigo, se é que essa seria a palavra correta, do rei
O rei ainda não fora coroado, mas deixara bem claro que não perdoaria o
jovem amigo, caso ele não estivesse presente durante sua sagração.
O que aconteceu, então, serviu para o conde abrir seus olhos.
Ele tanto ficou surpreso quanto fascinado pela riqueza da indumentária do
rei, mas o que mais o chocou foram as dificuldade levantadas quando o
parlamento começou a debater os excessivos gastos com a coroação.
Em primeiro lugar, ele observou a desnecessária aquisição de nove
perucas por parte do rei, cada uma ao preço de quinze libras, enquanto que
no dia da coroação ele só poderia usar uma.
Sua Majestade também não poupara gastos ao enviar um representante a
Paris que pudesse averiguar o padrão de tecidos e os estilos de roupas que
Napoleão Bonaparte passara a trajar como imperador.
Ao descobrir o quanto elas eram luxuosas, ele decidiu que seu próprio
guarda-roupa também seguiria essa linha.
Aquele foi apenas o início da extravagância.
A coroa de St. Edward, que fora confeccionada na época da coroação do
rei Charles II, não era uma propriedade real.
Para perplexidade do jovem conde, ela era alugada de um misterioso dono
à uma cifra astronômica que remontava a dez mil libras.
Isso lhe parecia um absurdo, algo inadmissível.
E, em vez de devolver a coroa no dia seguinte ao da coroação, o rei a
guardou dentro de um armário, que passou a abrir ocasionalmente para
deleitar seus olhos, ou para exibir a amigos, como o conde, e lhes explicar o
quanto era valiosa.
Na Escócia, o pai do conde, e os líderes da maioria dos clãs eram muito
cuidadosos com relação ao dinheiro.
Foi, portanto, motivo de assombro, a revelação por parte do parlamento de
que o país gastara duzentos e quarenta mil libras com a coroação.
Isso incluíra vinte e quatro mil pela compra das roupas do rei, mais
cinqüenta e quatro mil pela eventual aquisição da coroa de St. Edward.
Foi somente após a coroação que o conde começou a pensar em seu
retorno a Escócia.
Não havia ninguém no castelo com quem pudesse se comunicar, motivo
pelo qual não fazia idéia dos problemas que poderiam ter surgido durante
sua ausência como líder do clã.
Os membros mais velhos e respeitados embora muito ágeis com a língua,
não eram muito bons com os lápis e canetas.
Então, de um momento para outro, o rei decidiu visitar a Irlanda, quando
sugeriu, ou melhor, intimou, o conde a acompanhá-lo, algo que este
certamente não relutou em fazer.
Tendo ficado mais do que empolgado em conhecer a França, ele escondia
um grande desejo de visitar o máximo de países possível.
O rei e seus acompanhantes empreenderam a viagem numa espécie de
ritual que incluíra grandes quantidades de vinho e uísque, além de cantorias.
Ao desembarcar na Irlanda, o rei fora recepcionado e escoltado por uma
multidão festiva até o parque Fênix, onde proferiu um discurso inflamado.
Como o conde já havia notado previamente, o rei esbanjava charme e boa
educação com todos que encontrava.
Compareceu a todas as festas e reuniões a que fora convidado.
Beijou uma centena de senhoras presentes ao salão real e bebeu
comedidamente agora que se encontrava em público.
Na Irlanda, ele se sentiu o príncipe querido e popular que sempre desejara
ser.
Não havia dúvida de que a visita fora um sucesso.
Concluídas todas as obrigações cerimoniais com a declaração de que ele
amava a Irlanda e de que seu coração lhe pertencia, o rei seguiu para o
campo.
Com sua comitiva especial, foi levado de Dublin para o vale do Boyne,
onde ficou hospedado no castelo Slane, lar do marquês e marquesa
Conyngham.
Ali ele se sentiu feliz e satisfeito, conforme se pretendia, já que a marquesa
se tornara sua mais recente amante.
O conde não imaginara até aquele instante o quanto a marquesa era
malvista pelo povo.
O fato da ligação entre ela e o rei ser alvo de zombarias e risos o
surpreendeu.
Pela primeira vez, começou a se questionar se a popularidade do rei, na
qual ele sempre acreditara, se estenderia para fora dos muros do palácio.
Um dos cortesãos chegara a lhe informar que era de conhecimento geral
que a polícia recrutava homens para ovacionar o rei pelas ruas.
Mesmo que estivesse ciente da manobra, os olhos do conde se enchiam
de lágrimas de emoção a cada vez que presenciava o rei sendo recebido
pela multidão com aplausos, assobios, e lenços e chapéus agitados com
enutusiasmo.
O conde, que era muito perspicaz e sensível, compreendia plenamente
que Vossa Majestade desejasse acreditar que as saudações fossem
genuínas.
A essa altura, ele sentia uma grande afeição pelo rei.
Mesmo que George IV ainda parecesse com excesso de peso para muitas
pessoas, o conde sabia que ele emagrecera consideráveis quilos, tanta fora
a humilhação que passara por ocasião do julgamento a que a rainha fora
submetida.
Devido ao seu tamanho, ele caminhava com lentidão. Assim mesmo, todos
os seus movimentos eram impregnados de dignidade.
O conde jamais poderia se esquecer da imponência de sua apresentação
durante a cerimônia da coroação.
Toda a congregação dos nobres havia agitado seus bonés escarlate e
verde com gritos de “Deus abençoe o rei”, numa sinceridade que não
poderia ser negada.
Ao retornarem finalmente para a Inglaterra, a visita a Irlanda fora seguida
por outra ao continente.
Mais uma vez o conde foi intimado a acompanhá-lo, o que fez com imenso
prazer.
Nessa viagem teve a oportunidade de conhecer o príncipe Metternich, de
quem muito ouvira falar, e sobre quem já lera e aprendera a admirar.
Ambas as viagens foram muito proveitosas e divertidas no que dizia
respeito ao conde, embora tão dispendiosas que ele achou quase
impossível acreditar que tão poucas pessoas pudessem gastar tanto em tão
poucos dias.
O que também considerava muito estranho era o comportamento do rei
para com lady Conyngham.
Os dois eram pessoas sentimentais, e embora não parecesse combinar
com a situação em que se encontravam, também eram devotos.
Algo que ele não pôde evitar de perceber era a desmedida ambição por
parte de lady Conyngham, embora já fosse muito rica.
Pouco tempo se passara desde que se amasiara ao rei, e ela já ganhara
uma coleção de jóias novas.
Embora sua gratidão aos favores recebidos fosse óbvia, ela nunca parecia
satisfeita, e sempre exigia mais.
O conde nunca vira um caso de amor como aquele.
Quando brigavam, o que acontecia com freqüência, eles pareciam crianças
em explosões de mau humor.
O conde, entretanto, não achava que isso fosse cômico, como muitos da
comitiva.
Ele pensava, aliás, que a relação daquelas duas pessoas de meia-idade,
que não faziam segredo de seus sentimentos junto ao público, era muito
triste.
Não entendia que todas aquelas circunstâncias lhe estavam servindo de
aprendizado sobre e para a vida.
Eram experiências pelas quais jamais teria passado caso não tivesse
deixado as montanhas e charnecas da Escócia.
A cada vez que observava o rei e sua amante de mãos dadas e trocando
sorrisos diante do público, enquanto se xingavam intimamente, ele jurou que
nunca se comportaria desse modo.
Tinha plena convicção do que desejaria no futuro.
A felicidade de um amor completo, tanto físico quanto espiritual, que
encontraria numa mulher que o compreendesse e que o apoiasse em tudo
que tivesse de fazer.
As experiências pelas quais estava passando não deixavam de ser,
portanto, estranhas.
Como escocês, os princípios rígidos, com os quais havia sido criado, o
faziam se sentir chocado com o comportamento insólito por parte do marido
de lady Conyngham, que insistia em conseguir o título de lorde tesoureiro
entre o séquito do rei.
Seus protestos se espalharam em altos brados pela corte quando viu seus
planos frustrados.
O marquês só veio a se satisfazer quando o rei lhe concedeu o título de
lorde administrador, um cargo tão antigo e importante quanto o
anteriormente requerido.
Era motivo de perplexidade para o conde presenciar a forma com que o rei
lulava em favor do marido de sua amante.
Ao final de uma calorosa discussão com o duque de Wellington, este
retrucara:
— Se não gosta de nós, por que não nos expulsa?
Pareceu ao conde que o rei se rebaixava diante dos cortesãos, que não
tinham o direito de tratá-lo como a um igual.
Todos esses fatos, portanto, resultaram na impopularidade crescente do
marquês de Conyngham não apenas dentro do palácio, como também
diante do público.
No início do ano de 1822, a atmosfera palaciana se tornou quase que
irrespirável, situação que se agravava a cada dia.
Foi nessa ocasião que o conde sugeriu que o rei visitasse a Escócia.
O rei não estava desfrutando de boa saúde. Sentia dores terríveis em suas
crises de gota e era obrigado a se submeter a uma série de tratamentos na
esperança de aliviar sua agonia.
Falava constantemente sobre a morte.
O conde não podia deixar de notar que o tédio e o desprezo se
expressavam nos olhos daqueles que eram obrigados a ouvi-lo.
Era de suma importância que a mente do rei se ocupasse com outros
pensamentos que não gravitassem ao redor de si próprio.
Quando o conde mencionou a Escócia, contudo, o rei o olhou com a
estranheza de quem nunca ouvira falar em sua existência.
No mês de fevereiro, o rei foi obrigado a aparecer em público para a
abertura do parlamento.
Embora a multidão fosse mantida a distância, os risos desdenhosos, os
gritos e vaias podiam ser ouvidos acima das batidas dos tambores.
Ciente de quanto isso perturbaria Sua Majestade, o conde se determinou a
encontrar alguma forma de lhe elevar a moral.
Queria impedir que ele viesse a constatar que sua impopularidade
crescera junto ao povo.
A melhor solução que encontrara fora pressionar o rei, dessa vez com
maior grau de persuasão, a visitar seu país.
Ele afirmou ao rei que o povo da Escócia o receberia com maior
entusiasmo ainda do que o povo da Irlanda.
Quando George IV se dispunha a ouvir, o conde lhe contava histórias de
batalhas nas quais seu próprio clã estivera envolvido.
Não deixava de mencionar, também, as invasões dos vikings e os estragos
que causaram no extremo norte do país.
Inteligente como era, o rei logo percebeu que seu amigo apresentava
semelhança com o povo bárbaro, com seu quase metro e noventa de altura,
os cabelos loiros e os olhos azuis.
Sua descrição, aliás, realmente correspondia à imagem daqueles homens
em seus barcos imensos, que cruzavam o mar do Norte para atacar os
escoceses, violentar suas mulheres e roubar seu gado e rebanhos.
O conde relatou a coragem dos membros dos clãs mais importantes, dos
quais o dele era um, e de como haviam se defendido e muitas vezes
vencido os vikings, expulsando-os de suas terras.
Muitos outros haviam se escondido em cavernas sob as montanhas, só
emergindo quando os barcos se afastaram após os horrendos saques.
O conde tivera uma ajuda valiosa em conseguir seu intento através do
visconde Montagu, um homem sério e civilizado, excelente exemplo da
aristocracia escocesa, que tanto deleitara o escritor, sir Walter Scott.
O visconde era um poeta de grande mérito além de irmão do quarto duque
de Buccleuch.
O rei, sem dúvida, o admirava.
Assim como o conde, ele também indagava continuamente a respeito da
possibilidade ou não de o rei visitar a Escócia naquele ano.
O rei parecia não estar pronto para tomar essa decisão, motivo pelo qual,
em meados da primavera, o visconde deixou de ter esperanças de recebê-
lo.
Ele afirmava não acreditar que o rei, um dia, pudesse vir a Escócia.
Isso se tornou um desafio para o conde, pois sabia que para vencer a
indiferença do rei, teria de enfrentar uma série de dificuldades.
A primeira era que Holyrood House não mais poderia ser considerado um
palácio, após terem transcorrido dois séculos sem que fosse ocupado por
um membro da realeza.
Tornara-se, segundo o conhecimento do conde que já estivera ali, uma
espécie de albergue para desabrigados e um abrigo temporário para
soldados e oficiais reformados do exército.
Em abril, porém, a situação pareceu ficar um pouco mais animadora.
O visconde escreveu a Robert Peel a fim de oferecer ao rei, caso ele
aceitasse vir a Escócia, a residência de seu sobrinho, o palácio Dalkeith,
uma construção imponente sobre um grande parque.
O palácio estava situado a dez quilômetros de distância a sudoeste de
Edimburgo.
Era a melhor acomodação que poderiam esperar.
Constituía motivo de surpresa para o conde, que nem o conde de
Hopetoun nem o marquês de Lothian nem o visconde Melville, que moravam
nas proximidades de Edimburgo, tivessem oferecido suas casas ou castelos
ao rei.
A oferta do palácio Dalkeith, porém, foi o bastante para remover a objeção
do rei quanto a uma visita a Escócia.
Mas quando tudo parecia acertado, ele deu mostras de insegurança mais
uma vez quanto à viagem.
Num minuto se mostrava entusiasmado com a perspectiva, no outro
resmungava que estava doente demais para se afastar para um lugar tão
longinquo.
Em junho, a maioria das pessoas já havia se esquecido dos incidentes
ocorridos no início do ano.
Foi quando lorde Melville divulgou uma notícia que dizia que Vossa
Majestade planejava visitar a Escócia ainda no decorrer daquele verão.
O conde pulou de alegria, e foi, talvez, seu entusiasmo, que fez o rei
realmente se interessar pela idéia.
Representantes do governo da Escócia procuraram o lorde
superintendente para informar que a cidade de Edimburgo mal podia
esperar pela visita do rei.
O conde, então, ficou completamente convencido de que Vossa Majestade
manteria a palavra.
Sua decisão imediata foi a de retornar para a Escócia a fim de se certificar
de que seu clã, um dos mais antigos entre os montanheses, fosse
adequadamente representado.
Haveria paradas e festividades nas quais eles deveriam estar presentes.
Foi motivo de grande prazer para ele, saber que sir Walter Scott, a quem
dedicava muita admiração, fosse se encarregar de todos os preparativos.
Isso era uma garantia de que não haveria possibilidade de ocorrerem
situações embaraçosas durante a visita.
Ninguém sabia mais do que ele o quanto os escoceses se orgulhavam da
sua própria importância.
Choveriam protestos de quem deveria ser o primeiro a ter a honra e o
mérito de se responsabilizar por uma ocasião como essa.
O conde, em conseqüência, se decidiu a dizer adeus ao rei e a Inglaterra,
para esperá-lo em Edimburgo.
— Sentirei sua falta, Braradale — o rei confessara —, mas quando chegar
em seu país contarei com sua presença e companhia enquanto permanecer
hospedado no palácio Dalkeith.
— Vossa Majestade é muito amável — replicou o conde. — Será uma
grande honra para mim. Ao mesmo tempo, terei de tomar cuidado para não
despertar o ciúme de meus patrícios.
O rei deu uma risada.
— É só olharem para você que não conseguirão evitar esse sentimento.
Jamais vi alguém que ficasse mais elegante num kilt, do que você.
— Já que mencionou nosso traje típico, majestade, acho que também
deveria se vestir com um.
O rei olhou para o conde, surpreso.
— Um kilt Eu?
— Causaria uma agradável impressão. Além disso, não consigo imaginar
mais ninguém que pudesse carregar a boina com suas penas de águia com
tanta dignidade quanto Vossa Majestade.
Pelo brilho nos olhos do rei, o conde percebeu que a idéia começara a lhe
agradar.
Até que todos os seus pertences estivessem embalados e o conde pronto
para a partida, o rei já estava considerando qual tonalidade de xadrez ele
escolheria para a confecção da roupa, e se informando sobre os demais
adornos que deveria usar como rei da Escócia.
O conde retornou ao seu país de navio, por ser um meio de transporte
mais rápido e confortável do que uma carruagem.
Era um excelente marinheiro e apreciava o mar mesmo quando estava
agitado.
Nunca se sentira enjoado, pois desde que ainda era um bebê, seus pais o
levavam para passeios de barco e pescarias.
O pai adorava o mar e sempre pedia que a esposa o acompanhasse, o
que ela fazia, levando também o filho.
Só quando o navio se aproximou e o conde teve a primeira visão da costa
escocesa, ele se deu conta do longo tempo em que a deixara, e o quanto a
pátria lhe significava.
Era algo difícil de explicar até a si mesmo.
Seu coração parecia estar em êxtase.
Seus olhos se umedeciam ao avistar as charnecas se elevando contra o
céu azul.
A brisa suave soprava em seu rosto.
O navio aportou no cais mais próximo ao castelo de sua família, que ficava
a apenas oito quilômetros de distância.
Um gaiteiro de seu clã o esperava para lhe dar as boas-vindas.
Também o esperava uma carruagem puxada por dois puros-sangues.
Enquanto os cavalos adentravam pelo portal que conduzia ao castelo
Braradale, o conde ouviu as gaitas de fole soando ao longe.
A experiência lhe dizia que ao menos seis gaiteiros teriam sido
convocados para homenagearem o líder.
Não se enganara.
A recepção que os membros do clã lhe prepararam foi comovente.
O conde se desculpou pela demorada ausência, e também por estar muito
cansado devido a viagem, que levara quatro dias, razão pela qual precisaria
se recolher cedo.
Prometeu-lhes, contudo, que receberia a todos nc dia seguinte, e que
ouviria tudo o que tivessem a lhe dizer.
Os homens concordaram de imediato e ele se dirigiu à escadaria que
levava à porta principal do castelo, onde o esperavam os criados vestidos
em seus kilts.
Cumprimentou Donald, em primeiro lugar, que era o responsável pelos
serviços domésticos.
Após apertar as mãos de todos, ele agradeceu aos gaiteiros pela magnifica
música.
Subiu, em seguida, até a ampla sala de estar, que sempre fora o recanto
favirito do pai.
Havia um quadro dele sobre a lareira.
Também havia livros por todas as paredes, e três janelas que quase
chegavam ao teto, possibilitando, assim, uma total visão do jardim.
O conde pôde notar que os jardineiros não haviam relaxado em suas
tarefas, pois todos os canteiros se encontravam cuidadosamente limpos e
floridos, assim como os muros que circundavam a área.
Além do jardim, havia uma estreita faixa de terra, e depois a baía, diante
da qual estava situado o castelo.
Mais para o norte localizava-se a foz do rio e uma vila de pescadores.
O castelo era cercado por árvores e se destacava para quem quer que
chegasse por mar, por ser a única construção do planalto.
Ao contemplar o mar se estendendo até o horizonte nebuloso, o conde
teve a certeza de que nada, nem na Inglaterra nem na Irlanda, nem em todo
o mundo, poderia se comparar a seu país, em beleza.
— Estou em casa! Nunca mais me afastarei daqui por tanto tempo!
Algo lhe dizia, um pressentimento talvez, de que seu povo necessitava
desesperadamente do líder, embora ele não conseguisse atinar com a
razão.
A Escócia sempre fora parte de sua vida, parte de si próprio.
Havia uma sensação estranha de que seu retorno não era pessoal e sem
ligação com a visita do rei, como ele queria crer.
“Espero descobrir esse mistério o quanto antes”, ele pensou.
O criado que o servira como valete, desde que ele era pequeno,
aguardava-o em seus novos aposentos.
Naquele quarto dormira seu pai assim como todos os seus ancestrais.
A cama ocupava grande parte do espaço, e possuía quatro colunas
arrematadas por cortinas vermelhas.
O padrão dos tapetes era xadrez, nos tons tradicionais do clã dos Mcbrara.
Quando o conde terminou de se vestir para o jantar, já era quase noite.
Dirigiu-se à sala de jantar que comportaria cinqüenta convidados com a
maior facilidade.
O lugar que lhe arrumaram era o mesmo que seu pai sempre ocupara: no
topo da mesa.
Assim que se sentou, assistido por Donald e por dois lacaios, os primeiros
acordes das gaitas de fole se anunciaram.
Até que os gaiteiros dessem a volta à mesa por três vezes, o som se
tornou quase ensurdecedor.
O dirigente do grupo, então, se colocou por trás da cadeira do conde.
Diante dele, havia sido colocado, segundo a tradição, um cálice de prata
com uísque.
O conde o entregou ao gaiteiro que lhe ergueu um brinde em gaélico:
— Stainte Va.
— Obrigado, Jock. Espero que possa tocar para mim amanhã, novamente,
quando estarei recebendo todos os membros do clã que desejarem me ver.
— Eles terão muito o que contar, milorde — respondeu Jock.
O conde sabia que aquela era a pura verdade e não pôde evitar um
suspiro.
Assim como seu pai, ele teria de ouvir inumeráveis reclamações, por mais
insignificantes que fossem.
Não haveria como escapar dessa obrigação.
Ao mesmo tempo, os problemas que o esperavam não lhe tiraram o sono,
quando se deitou logo após o jantar.
Já acomodado sobre a imensa cama de quatro colunas ele se pôs a
indagar se era realmente possível que estivesse ocupando o lugar que
pertencera ao pai por mais de vinte anos.
— Tenho de fazer o impossível para não cometer muitos erros — ele falou
consigo próprio.
Foi nesse momento que se lembrou da tarefa mais importante que tinha
pela frente, que seria a de escolher os homens que melhor representassem
o clã quando da ocasião da chegada do rei a Edimburgo.
Haveria alegria e orgulho por parte de uns, e desapontamento e ciúme por
parte de outros.
Porém, o que mais importava, era que os Mcbrara assumissem o lugar
merecido como um dos mais antigos clãs escoceses.
O clã, do qual seu pai tanto orgulho sentira, surgira na época da batalha de
Agincourt.
Fora lá que o primeiro conde recebera seu título em retribuição à coragem
e a dedicação com que servira à pátria, tanto ele quanto seus homens.
Era impossível não se sentir orgulhoso pela história que se repetira
durante os séculos, de coragem e nobreza.
Ao adormecer, o conde cogitou que precisaria elevar seu clã a uma
importância ainda maior do que a que já possuía.

Pela manhã, ele foi despertado pela gaita de fole que soava ao redor do
castelo.
Não se levantou de imediato, pois queria ouvir aquela música com atenção
enquanto o sol o saudava pela janela.
Uma alegria nova e contagiante o inundou, dando-lhe forças redobradas,
que ele sabia serem necessárias para aquele dia.
Vestiu-se rapidamente e desceu para tomar o desjejum numa saleta que
se abria para a sala de jantar.
Uma deliciosa variedade de pratos o esperava.
Havia salmão do rio e peixes de carne branca do mar, assim como outras
iguarias.
Como sempre fazia quando se encontrava na Escócia, o conde comeu o
mingau, em primeiro lugar, que fora colocado na tigela de madeira que
usara quando criança.
Permaneceu de pé até terminá-lo, o que lhe deu vontade de rir.
Era uma antiga tradição escocesa de que o mingau precisava ser
consumído com o líder de pé, para que nunca fosse surpreendido em
desvantagem, caso alguém resolvesse atacá-lo.
O conde sabia que aquela era a atitude que os criados esperavam que
tomasse, e não quis desapontá-los.
Depois, quando terminava de tomar sua segunda xícara de café, Donald o
interrompeu:
— O líder dos MacSteel está aqui para vê-lo, milorde, e implora que lhe
conceda alguns minutos de seu tempo, antes que comece a atender os
membros de seu próprio clã, que já se encontram a sua espera, do lado de
fora do castelo.
— O líder dos MacSteel! — o conde repetiu, pois aquela visita era, de certo
modo, algo de incomum.
Não estranhou que já houvesse uma fila de pessoas a sua espera.
Sabia que todos queriam ou necessitavam trocar uma palavra com ele,
conversas que, em geral, seriam longas e tediosas.
Mas, era óbvio que, assim como o pai fizera, ele também teria de vê-los.
O que nunca poderia imaginar era que o líder dos MacSteel o procurasse
tão cedo, e com um assunto que, com certeza, se mostraria delicado.
O conde se recordava bem do líder dos MacSteel.
Considerava-o um homem inteligente e interessante, que sabia governar
seu clã muito bem.
Apesar de todas as histórias de mútua hostilidade entre os clãs no
passado, o líder dos MacSteel sempre se dera bem com seu pai.
O conde terminou de tomar seu café e finalmente respondeu:
— É claro que o receberei, embora espere que sua visita seja breve. O
conde se levantara e se dirigira para a janela enquanto falava.
Havia um grande número de pessoas no pátio do castelo, e também de
carruagens.
Sem dizer mais nada, o conde deixou a sala de jantar e se encaminhou
para a sala de estar, para onde Donald certamente teria conduzido o
visitante.
Quanto aos homens do clã, ele os receberia no escritório que ficava no
andar térreo, um local amplo onde eram realizados os eventos mais formais,
desde uma reunião até um conselho entre os membros mais idosos.
O outro líder, vestido com as cores de seu clã, o aguardava, em pé, diante
da lareira.
O conde o cumprimentou com um aperto de mão.
— É um prazer tornar a vê-lo, embora deva admitir que sua visita me
causou surpresa.
— Julguei que era exatamente isso que diria, milorde — respondeu o
outro. — Mas eu tinha de lhe falar assim que chegasse pela simples razão
de estarmos ambos envolvidos numa situação bastante difícil.
O conde ergueu uma sobrancelha e indicou a poltrona a seu lado.
— Imaginava que fosse me deparar com uma série de problemas, mas
nunca que eles o envolvessem.
— O que vim lhe dizer, e não estou exagerando, é que se não tomarmos
cuidado, nossos clãs entrarão em guerra, assim como sucedeu no passado.
O conde o fitou, perplexo.
— Não estou entendendo aonde quer chegar.
— Estou lhe dizendo, milorde, que a animosidade existente entre os
MácSteel e os Mcbrara se tornou tão intensa e feroz que mais de dez
homens de seu clã chegaram a perder a vida.
O conde deixou escapar uma exclamação, mas o outro não se deteve no
relato.
— Além dos mortos, há três pessoas gravemente feridas, segundo chegou
ao meu conhecimento, embora eu acredite que o número deva ser bem
maior.
O conde olhava para o líder dos MacSteel como se não pudesse acreditar
em seus ouvidos.
— Nós dois, em cada lado da fronteira, temos perdido grande quantidade
de carneiros e bois, sendo que o seu prejuízo é ainda maior do que o meu.
— Qual a razão para tantas disputas? — o conde quis saber. — Quero
esclarecer desde já ao senhor que não tinha conhecimento dessa situação.
— Os problemas tem se agravado dia após dia, semana após semana, e
mês após mês. E o senhor sabe, tanto quanto eu, que quando um escocês
se zanga, é muito difícil evitar que ele demonstre sua ira fisicamente.
O conde fez um gesto afirmativo com a cabeça.
— Infelizmente sou obrigado a admitir — prosseguiu o senhor de terras —
que o problema tem acontecido mais por culpa de meu povo do que do seu,
e de um homem em particular. Ele é muito esperto e perigoso, mas até
agora não conseguimos provar sua responsabilidade nos crimes.
— Em suma — concluiu o conde —, esse homem parece pretender
instigar sua gente contra a minha até o ponto em que venham a se odiar e
guerrear como o faziam no passado.
— Exatamente — confirmou o líder. — Estou assustado com as notícias
que me chegam a cada dia, de homens de ambos os clãs abandonados e
sangrando até a morte nas charnecas, ou ainda cegos e feridos com tal
gravidade, que se tornam inválidos para o resto da vida.
— É necessário que tomemos alguma providência antes que seja tarde
demais — murmurou o conde.
— O que temos a fazer é deter nossos homens antes que a situação piore
— o senhor de terras afirmou. — Como já disse, dez de seus homens
pereceram, e ninguém sabe com certeza qual a causa de suas mortes, ou
quem seja o assassino. Tenho fortes suspeitas com relação a um
determinado homem, mas não posso provar.
— O que sugere que façamos? — o conde quis saber.
Fez-se alguns minutos de silêncio onde ambos tentaram chegar a alguma
solução.
O lider dos MácSteel parecia não saber o que responder.
— O senhor deveria ter algo em mente quando veio até mim — o conde
protestou com ar de impaciência. — Admito que me ausentei da Escócia por
demasiado tempo, mas o senhor estava aqui durante todo esse período e
deve ter pensado em algum plano que possa deter essa onda de violência
antes que escape totalmente de nosso controle.
— O que sem dúvida ocorrerá a menos que mostremos a nossa gente que
precisamos ter tolerância e boa vontade uns para com os outros, e que o
senhor e eu, como líderes de nossos clãs, somos unidos em laços de
profunda amizade.
O conde olhou para o vizinho com estranheza.
No momento não conseguia atinar com a solução que o outro propunha.
Foi quando o senhor de terras o fitou e explicou num fio de voz:
— O que estou sugerindo, milorde, é que se case com minha filha.
III

O conde olhou para o líder dos MacSteel e por um momento não pôde
acreditar no que acabara de ouvir. Aquela era a sugestão mais absurda que
alguém já tivera a ousadia de lhe fazer.
Se quisesse um romance, se aquela era a palavra adequada, o teria
encontrado em Paris ou em Londres, quando retornara da guerra e de seu
próprio país, onde fora se despedir do pai por ocasião do funeral.
Por ser um homem atraente e tão amigo do rei não faltavam belíssimas
mulheres que lhe oferecessem seus favores.
Assim como o rei tomara uma nobre como sua amante, os membros da
corte sentiam-se incentivados a lhe seguir o exemplo.
Para o conde sempre seria extremamente fácil ter um caso de amor com
qualquer beldade que frequentasse o palácio.
A maioria delas eram casadas e seus maridos tinham posições de
importância na corte.
Muitas viviam no palácio, também, por uma questão de direito, já que se
houvesse uma rainha, elas assumiriam a função de damas de companhia,
segundo a tradição da família.
Elas, portanto, exigiam o privilégio de frequentar o palácio, mesmo que o
rei estivesse solteiro.
O primeiro caso amoroso do conde, o qual ele considerou de importância,
foi com uma condessa muito bonita, cujo marido a deixava continuamente
para cumprir suas missões com o rei.
Essas ausências a deixavam disponível para se entregar a romances com
os cavalheiros que mais a atraíssem, o que era algo comum de acontecer
com todos que a rodeavam no ambiente palaciano.
O conde se sentiu terrivelmente atraído por aquela mulher de rara beleza,
embora seus instintos desaprovassem aquela atitude.
Ele fora educado segundo os padrões escoceses de propriedade.
Acreditava com todo o seu coração e mente, que qualquer mulher que
traísse o marido nada mais era que uma meretriz.
Era isso que todos os seus conterrâneos pensariam a respeito da
condessa.
Assim mesmo era impossível para ele não se sentir excitado por sua
beleza e pela paixão com que correspondia a suas mais ousadas carícias.
Nas ocasiões em que o marido regressava e que ela se tornava um fruto
proibido para ele, o conde passava a dirigir suas atenções para uma outra
mulher.
Ao mesmo tempo sabia que a condessa estava usando-o como se fosse
um garanhão, apenas para lhe satisfazer os desejos.
Ela era pequena, morena, fogosa e insaciável na cama, o tipo de mulher
que ele jamais conhecera antes.
Todas aquelas experiências, não somente com ela mas também com
várias outras beldades da corte, aumentaram, é claro, os conhecimentos do
conde com relação ao amor.
Era sem dúvida, um cumprimento para ele, o fato de que todas o
achassem um amante ardente e apaixonado.
Sua origem escocesa, entretanto, e seus rígidos princípios o faziam se
sentir culpado por isso.
Ele sabia que o comportamento imoral do círculo palaciano era algo que
jamais permitiria em sua própria casa.
Quando pensava em casamento, sabia exatamente o tipo de esposa que
escolheria, pois um dia teria que se decidir a dar esse passo a fim de gerar
um herdeiro para seu clã.
Era essencial que o título de sua família continuasse pelas gerações
futuras assim como chegara até ele, o décimo-quinto conde de Braradale.
Havia poucas famílias na Escócia tão antigas quanto a sua.
Era, portanto, um dever e um privilégio seu poder perpetuar sua linhagem.
No fundo de sua mente, é claro, estava ciente de que seria não só
aconselhável como importante que se casasse com uma jovem escocesa
como ele,
Mus também queria se casar por amor.
Era sensível e inteligente o suficiente para perceber que o que sentira por
todas as mulheres que possuíra, e também o que elas sentiram por ele, não
era o verdadeiro amor.
Não era o amor que os poetas e escritores descreviam em prosa e verso, e
que constituía o tema principal de toda a literatura e história do mundo.
Por ser, embora não quisesse admitir conscientemente, um romântico, o
conde desejava muito se apaixonar por uma mulher.
Não apenas com o corpo mas em especial com o coração e com a alma.
Se tivesse a sorte de encontrá-la, seria isso que ele ofereceria à mulher
com quem se casasse.
Esses sentimentos e anseios não poderíam ser traduzidos em palavras,
mas existiam com sinceridade dentro de sua mente.
Naquele instante, portanto, em que o senhor MacSteel sugeriu que se
casasse com a filha dele, o conde não pôde evitar se sentir chocado.
Sua surpresa, aliás, não teria sido maior caso uma bomba acabasse de
explodir a seus pés.
Ele não conseguiu encontrar palavras para responder à proposta, o que
impulsionou o vizinho a prosseguir:
— Esta, milorde, pode lhe parecer uma sugestão estranha, mas não
consigo encontrar um outro meio de unirmos nossos clãs, de forma que as
guerras esporádicas, que se iniciaram há séculos, e que agora teimam em
eclodir novamente, possam cessar imediata e completamente.
— Como pode estar seguro de que isso aconteceria? — o conde indagou
numa voz que soou amarga para ele próprio.
— Conheço meu clã assim como conheço o seu. Mais do que a antipatia,
ou até mesmo o ódio que nutrem uns pelos outros, o que eles realmente
desejam em suas vidas é a paz e a prosperidade.
Ele fez uma pausa, mas como o conde ainda mantivesse silêncio,
continuou:
— A maior parte dos membros mais idosos e opinantes não deseja
prosseguir na luta contra os Mcbrara. Quanto aos mais jovens, que serviram
no regimento escocês com Wellington, estão mais do que felizes por terem
retornado a seus lares.
O orador fez um gesto de ênfase com as mãos.
— Nem é preciso falar sobre as mulheres. Qual delas não deseja que seu
marido, filho ou irmão esteja seguro de violências, e que compartilhe da
felicidade do lar que ela criou para eles?
Aquele era um pensamento sensato, o conde admitiu, mas, ao mesmo
tempo, sua imaginação trabalhava febrilmente de forma a encontrar uma
saída para recusar a sugestão sem ferir os sentimentos do outro.
Como poderia se casar com uma jovem escocesa completamente
desconhecida?
Ela, sem dúvida, seria uma moça sem cultura e sem os conhecimentos de
etiqueta tão importantes no mundo social que ele tanto apreciava.
Involuntariamente desfilaram ante seus olhos as imagens de todas as
mulheres com quem fizera amor nos últimos tempos.
Todas eram lindas, sofisticadas, vestidas com esmero e bom gosto e a
condessa, então, adorável.
Não conseguia imaginar qualquer garota escocesa, e conhecera muitas no
passado, a quem pudesse amar e ser correspondido da forma que desejava.
Chegara a pensar com freqüência que as conversas mantidas com o rei,
em seu palácio, deveriam ser registradas por escrito de modo a serem
preservadas para a posteridade.
O rei não era somente um expositor brilhante, mas também um duelista
sagaz com as palavras, uma qualidade que até seus piores inimigos
admiravam.
As mulheres que o cercavam, todas de elevado nível social, não se
amedrontavam de enfrentá-lo, pois também eram donas de inteligência e
espírito de competição.
O que dizer das mulheres simples e ignorantes da Escócia e de suas
compleições físicas robustas?
Elas não apenas ficariam chocadas com as conversas que ouviriam no
palácio, mas também se veriam totalmente incapacitadas de contribuir com
uma única palavra sequer a tais diálogos.
Os pensamentos ricocheteavam por sua mente, um atrás do outro.
O silêncio continuou mais uma vez, e mais uma vez foi o sr. MacSteel
quem o rompeu:
— Estou ciente, milorde, de que minha proposta foi um choque para o
senhor, no dia imediato a sua chegada, mas o fato é que deveria ter sido
alertado há muito tempo do perigo que estamos enfrentando com respeito
aos nossos clãs, e que alguma providência deverá ser tomada com a maior
urgência possível.
O conde continuava calado.
— Soube que Sua Majestade, o rei, está de viagem marcada para a
Escócia, e concordo que tenha sido uma infelicidade que esses problemas
tivessem se agravado justamente nesta ocasião.
“Infelicidade era uma palavra suave demais para descrever a situação”,
cogitou o conde.
Sem pensar no que fazia, o conde se levantou de repente e caminhou até
a janela.
Contemplou as flores que cresciam em seu jardim e, em seguida, seus
olhos se dirigiram para o mar.
Ao redor da baía se elevavam as charnecas, cuja luminosidade só poderia
sei encontrada na Escócia.
O local se tornava especialmente encantador quando as urzes floresciam.
Aquele era seu país, aquela era sua gente e todo aquele maravilhoso
cenário estava sendo admirado de seu castelo.
Todo o orgulho existente dentro dele, desde que era uma criança, pareceu
crescer e torná-lo consciente de sua importância.
Assim mesmo, ele se perguntou, como poderia compartilhar toda a sua
vida, todos os seus sentimentos com uma mulher que não possuía nenhum
dos atributos que ele pretendia encontrar numa esposa?
O senhor de terras não tornara a falar, a fim de deixar que o conde
ponderasse sobre a emergência da situação.
Observava cada gesto dele e esperava uma resposta, quando a porta
subitamente se abriu para dar passagem a Donald.
Ao ver o conde junto à janela, ele rapidamente se dirigiu para lá.
— Desculpe-me, milorde, mas estamos com problemas, graves
problemas.
— O que aconteceu? — o conde quis saber.
— Um de nossos pastores, um homem respeitado por todos, foi
encontrado morto nos limites da propriedade.
— Morto! — o conde repetiu, pálido e sem fôlego.
— Nosso povo está se reunindo lá fora, milorde, para comunicá-lo de que
irão à forra contra os MacSteel de uma vez por todas.
O conde olhou em direção ao líder do outro clã, que imediatamente se
levantou e comentou:
— Sinto muito, milorde, era isso o que eu mais temia — ele murmurou. —
É de meu conhecimento que foram homens de meu clã os responsáveis por
essa desgraça.
O conde reconheceu a coragem e a sensatez do vizinho em admitir sua
culpa.
Mas o fato é que ele estava de mãos atadas para resolver, sozinho, o
problema.
O conde estava ciente, também, de que uma guerra entre os dois clãs
seria desastrosa.
Os homens, assim como fizeram no passado, roubariam e dizimariam o
gado e o rebanho dos inimigos e, ainda pior, ateariam fogo as suas casas.
Muitos membros de seu clã e do clã dos MacSteel seriam inevitavelmente
mortos ou feridos.
O líder dos MacSteel estava determinado a impedir essa tragédia.
Ele, como líder dos Mcbrara, teria de tomar uma decisão imediata.
— Falarei com os homens — o conde se prontificou.
— Creio que é exatamente isso que milorde deva fazer — Donald
comentou.
O conde seguiu em direção à porta, que Donald se apressou a abrir, sem
olhar para trás para verificar se o outro líder o acompanharia ou não.
Desceu as escadas e se deteve no hall.
Do lado de fora do castelo, junto à entrada principal, havia um antigo bloco
de pedra, que ainda era usado pelas damas que visitavam o castelo, e que
apreciavam cavalgar.
Esse bloco seria uma plataforma perfeita para alguém que precisasse
discursar diante de um grande público.
Foi isso que o conde fez.
O número de homens que esperava para lhe falar estava aumentando a
cada segundo.
Todos perceberam a chegada do líder e correram para tomar seus lugares
o mais perto possível do improvisado palco.
Houve uma saudação cordial, o conde notou, mas não uma aclamação
entusiástica.
Os homens, que ocupavam as primeiras filas, eram todos jovens e
grosseiros.
Era de seu conhecimento que estavam furiosos com os recentes
acontecimentos.
Alguns até portavam espingardas, embora a maioria carregasse apenas
bastões de madeira.
No entanto, esses bastões também se revelaram aos olhos preocupados
do conde como armas mortíferas, já que haviam sido colocados pregos em
suas pontas.
No momento em que o conde estava prestes a iniciar o discurso, um grupo
de seis homens apontou a distância, aparentemente carregando algo
pesado.
Quando a multidão percebeu o que estava acontecendo, parou de gritar no
mesmo instante, chegando a ficar, aliás, em absoluto silêncio.
O conde aguardou que os seis homens se aproximassem.
Ao chegarem em frente ao castelo a multidão se afastou, abrindo-lhes
caminho para passar.
O que eles carregavam, o conde já sabia através da informação dada pelo
líder dos MacSteel, era o corpo do pastor, que fora assassinado junto ao
limite de suas terras.
Os homens levaram o corpo até o local onde o conde se encontrava e o
deixaram junto à plataforma de pedra.
O conde observou, horrorizado, que o pastor fora morto a pauladas e que
seu rosto ficara irreconhecivel.
O sangue dos ferimentos na cabeça se espalhara por toda a roupa.
Também havia cortes em suas pernas que só poderiam ter sido causados
por facas ou punhais.
O conde cerrou os olhos.
O silêncio sepulcral que fora mantido até a entrega do corpo se
transformou num alarido ensurdecedor.
Os homens do clã gritavam ao mesmo tempo que se vingariam daqueles
que haviam cometido o terrível massacre.
A fúria os consumia e eles pareciam selvagens ao acenarem com as
armas sobre as cabeças.
Os rugidos aumentavam conforme chegavam mais e mais homens ao
castelo.
O conde nada fez para impedi-los durante alguns instantes, pois sabia que
a multidão precisaria extravasar o ódio que lhes dilacerava o peito.
Então, com o braço erguido e a mão espalmada, ele pediu que fizessem
novamente silêncio.
Os gritos foram se acalmando pouco a pouco até que por fim cessaram.
— Meu povo, estou retornando após um longo tempo para meu lar e para
vocês. Estou profundamente consternado por tudo que acabo de saber que
lhes vêm acontecendo, e estou, tanto quanto vocês, extremamente
revoltado que um Mcbrara esteja aqui, a meus pés, barbaramente
assassinado.
Diante desse discurso os homens, que haviam aquietado, irromperam
outra vez em furiosas ameaças contra os McSteel.
— Nós o vingaremos! eles gritaram. Não continuaremos a ser vítimas do
clã que sempre odiamos e que também nos odeia! Mataremos cada
MacSteel que eucontrarmos pelo caminho até que não reste mais ninguém
que possa nos atacar pelas costas, ou que roube nossos animais quando
não estamos por peito.
A essas alturas já eram mais de cem homens diante do castelo, gritando
mais ou menos as mesmas ameaças
Não era difícil para o conde adivinhar, portanto, o que eles pretendiam
fazer.
Buscava inspiração em sua mente e rezava a Deus com desespero para
que encontrasse um meio de dete-los, pois até aquele instante sentia que
nada que pudesse dizer teria qualquer efeito sobre os homens, que estavam
plenamente determinados a levar adiante seus planos de vingança.
Os rostos estavam contorcidos pelo ódio.
Suas vozes haviam se transformado em brados, que causavam arrepios a
quem quer que os ouvisse.
Um brilho de fogo iluminava os olhares ensandecidos, e mais uma vez,
eles começaram a agitar as armas no ar.
Foi com imenso espanto que o conde percebeu, naquele momento, que o
líder dos MacSteel subira na plataforma e que se encontrava a seu lado.
De início, a multidão não o reconheceu.
Em seguida, ao vislumbrarem o tecido xadrez de sua roupa, com as cores
próprias de seu clã, os homens hesitaram, murmúrios se ouvindo por toda a
parte.
O líder levantou a mão.
— Tenho algo a lhes dizer, algo de suma importância e peço que me
ouçam com atenção — ele falou com voz grave e séria.
Pelo simples fato da presença do inimigo ser uma surpresa, as palavras
que todos pretenderiam gritar-lhe no rosto, morreram-lhes na garganta.
Quase poderia se dizer que os homens fizeram total silêncio.
— Só existe um caminho pelo qual Sua Alteza e eu poderíamos evitar um
derramamento de sangue entre ambos os clãs.
Os gritos abafaram-lhe a voz.
Só quando o silêncio voltou a imperar, o senhor de terras prosseguiu:
— Vossa Alteza e eu concordamos que nossos clãs devam se unir e para
que isso seja possível, o líder dos Mcbrara se casará com a filha do líder
dos MacSteel.
As palavras ficaram pairando no ar entre os olhares perplexos e as bocas
semi-abertas.
— Por esse motivo — continuou o líder — eu os convido, não para
comparecerem a um campo de batalha onde eventualmente muitos
inocentes sofreriam, mas para uma cerimônia de casamento onde todos
serão bem-vindos e que será realizada no prazo de uma semana.
A comunicação foi tão inesperada que nos primeiros instantes a multidão
se mostrou pasma, incapaz de falar.
A reação seguinte foi trocarem observações murmuradas.
Como o conde pressentisse que deveria dizer alguma coisa por sua vez,
tomou a palavra:
— O que o líder dos MacSteel acaba de lhes informar, estou bastante
seguro, é do. interesse de ambos os clãs. Trabalharemos juntos para
proveito comum nesta região, bem como para todo o país, pois esperamos
um futuro próspero para a Escócia. E a Escócia para alcançar a
prosperidade, terá de encontrar antes de mais nada, a paz.
Murmúrios se fizeram ouvir novamente.
O conde notou, com alívio, que os homens haviam parado de acenar com
as armas, e que, mais calmos, agora conversavam entre os grupos.
Ergueu, então, ambos os braços e elevou o tom de voz:
— O líder dos MacSteel convidou a todos para uma cerimônia de
casamento. Quero que saibam, aqui e agora, que é meu desejo que todo o
clã esteja presente a fim de testemunhar e se certificar de que eu estarei
comemorando o dia mais importante de minha vida, e também o dia mais
importante para o clã.
Sua voz ficou ainda mais alta durante a comunicação seguinte:
— Esse casamento significa que finalmente após três ou quatro séculos,
nossos clãs não continuarão a desperdiçar um tempo precioso com lutas,
mas passarão, sim, a cooperar com o progresso da Escócia, para que se
torne não apenas um país importante dentro das ilhas britânicas, mas em
todo o mundo.
Ao perceber que a massa o ouvia com atenção, o conde se deteve por um
momento.
— Sua Majestade, o rei, visitará Edimburgo em breve, e eu gostaria, ou
melhor, faço absoluta questão, de que nosso clã represente os habitantes
da montanha com toda a dignidade que possui. Sei que o líder dos MacSteel
pensa o mesmo que eu. Os homens a serem escolhidos para participarem
da parada em homenagem ao rei deverão ser os melhores, os mais finos.
O conde estava lhes dando uma notícia inédita e de muita importância
para a Escócia.
As conversas que chegaram até os ouvidos do conde eram, agora, de teor
diferente.
De repente, porém, um dos homens, que o conde não conseguiu localizar,
gritou:
— Nosso líder voltou e está conosco, outra vez. Vamos saudá-lo com três
vivas!
O homem ergueu a arma com uma das mãos, e tirou a boina com a outra.
Todos os outros o imitaram.
Os vivas e os aplausos pareceram ecoar entre as árvores e as torres do
castelo.
O conde se sentiu comovido.
No momento seguinte, pressentindo o olhar do sr. MacSteel sobre ele,
virou-se e aceitou a mão que ele lhe estendia.
Mais aplausos e vivas.
Não tão altos e entusiásticos, mas ainda assim importantes como sinal de
paz.
Os clãs estavam formalmente unidos.
O conde estava consciente, porém, de que levaria algum tempo até que
todas as mentes se compenetrassem de que os Mcbrara seriam amigos dos
MacSteel, dali por diante.
Ele e o líder do outro clã desceram da plataforma de pedra e voltaram para
dentro do castelo.
A multidão ainda permaneceu reunida no pátio.
Os que haviam se colocado nas últimas fileiras contavam aos retardatários
tudo o que acontecera.
Uma vez no hall, o conde comentou:
— Permita que eu lhe ofereça um refresco. Acho que estamos ambos
necessitados de beber alguma coisa depois do que passamos.
O líder fez um sinal negativo com a cabeça.
— O quanto antes eu chegar em casa, melhor será. Há muitos
preparativos a serem feitos. Como sei que o senhor deverá viajar para
Edimburgo a fim de aguardar o rei, é muito importante que o casamento se
realize antes desse evento.
O conde teve dificuldade em se manter calado, mas o que mais desejaria é
que o casamento fosse adiado até que o rei voltasse para Londres.
No que lhe dizia respeito, quanto mais a data do casamento demorasse a
chegar, melhor seria.
Pela expressão do outro, porém, ele soube que não haveria chance de
evitar o enlace indesejável.
Quer gostasse ou não, teria de se casar com a filha do líder do clã inimigo,
uma mulher que jamais vira em sua vida.
Uma mulher que, estava certo, nada teria em comum com ele.
Mas não havia como negar que a simples presença dela em sua vida
salvaria ambos os clãs.
O conde se despediu de seu vizinho e este deixou o castelo por uma porta
lateral.
O visitante havia deixado sua carruagem nos estábulos por medida de
precaução, já que antecipara, e com toda a razão, que o pátio do castelo
estaria apinhado de membros do clã.
O conde desejaria lhe fazer muitas perguntas, que ricocheteavam em sua
mente, entre as quais as seguintes:
— O que acontecera para que o líder dos MacSteel permitisse que a
situação lhe escapasse do controle, antes de tomar alguma medida que a
sanasse?
Quantos assassinatos já haviam ocorrido?
Pareceu-lhe mais prudente, contudo, indagar em seu próprio castelo, se
haveria alguém que pudesse elucidá-lo.
Foi por isso que preferiu apenas se despedir do outro com a formalidade
normal que a ocasião requeria.
O líder já chegara à porta e estava prestes a sair, quando se voltou:
— Minha sugestão, milorde, é que seria aconselhável que o casamento se
realizasse em curto prazo, digamos não mais do que sete dias. Nesse
período o senhor teria a chance de acalmar os ânimos de seu povo e
interessá-los na magnitude desse evento, e ainda teria tempo para se
preparar e chegar a Edimburgo antes do rei.
O conde teve de admitir que o líder dos MacSteel mais uma vez lhe dera
uma sugestão racional.
Pensar em casamento, contudo, lhe provocava calafrios.
Foi com extrema dificuldade que conseguiu calar o desejo de insistir em
que a cerimônia fosse adiada para depois da visita do rei e seu regresso a
Inglaterra.
Lembrou-se, então, tão vividamente como se ainda estivesse olhando para
ele, do cadáver do pastor, que os homens colocaram a seus pés, junto à
plataforma de pedra, ao lado da qual os cavalos eram colocados, e sobre a
qual as mulheres subiam a fim de facilitar o ato de montar em suas garupas.
Os homens que o haviam trazido, sem dúvida, já o teriam levado embora,
para a vigília na pequena capela, até que os preparativos para o funeral
fossem arranjados.
Nenhum membro daquele clã poderia esquecer que o pastor que todos
conheciam e respeitavam fora brutalmente assassinado.
— Irei ao seu castelo no sábado — o conde comunicou ao sr. MacSteel. —
Se existe algo que deva ser providenciado de minha parte, por favor queira
me informar.
— Estou certo de que já temos tudo de que necessitamos — respondeu
ele — , mas acho de suma importância que seu clã seja muito bem
representado.
— Concordo plenamente — afirmou o conde —, uma vez que é em nome
dele que este casamento estará sendo realizado.
Ele quase falou, “uma vez que é em nome dele que estou fazendo esse
enorme sacrifício”, mas achou mais sábio se calar.
Quando o visitante se foi, ele subiu para a sala de estar, sentindo como se
o mundo todo houvesse virado de cabeça para baixo.
Como era possível?
Como sua vida poderia ter se arruinado de um dia para o outro?
No espaço de algumas horas havia descoberto que seu clã estava na
iminência de entrar em guerra contra o clã vizinho, e o que talvez fosse pior,
se vira comprometido com uma mulher que nem conhecia.
Ela, sem dúvida, não apenas o aborreceria mas também tornaria a vida,
que ele achara divertida e excitante até o dia anterior, um pesadelo.
Entretanto, apesar da infelicidade de seu casamento, ele reconhecia que
era o responsável pela vida e pela segurança de cada membro de seu clã,
homens, mulheres e crianças.
Para manter a paz e alcançar a prosperidade que tanto necessitavam, ele
deveria permanecer na Escócia para sempre.
O conde amava seu lar.
Não podia deixar de pensar, contudo, nos prazeres que a cidade de
Londres oferecia, e que a amizade do rei fora um presente que jamais
esperara receber.
Ele sentiria muita falta de sua vida pregressa, fossem todas as diversões
proibidas dali para a frente.
“O que farei? O que diabos poderei fazer?”, ele se indagava, o coração
apertado no peito.
Mais uma vez se dirigiu até a janela para contemplar o mar.
Como era possível que sua vida tivesse se alterado tão completamente
após um regresso ao lar de apenas uma noite e parte de uma manhã?
Seu desejo era se rebelar contra a crueldade do destino e vencê-lo.
Foi quando ouviu a porta da sala se abrir, dando passagem ao secretário e
seu assessor, que viera receber as instruções para dar andamento ao
trabalho.
O conde, agora, tinha novas e definitivas responsabilidades.
Estava diante de uma nova vida, uma vida que selara para si próprio, no
momento em que apertara a mão do líder dos MacSteel sobre a plataforma
de pedra.

Enquanto regressava a sua casa, a carruagem percorrendo a estrada na


maior velocidade possível que os cavalos conseguiram alcançar, o líder dos
MacSteel pensava:
Fora por um fio de cabelo que ele e o conde haviam impedido a
deflagração de uma guerra cruenta entre os clãs.
Já bastava os incidentes que haviam acontecido entre os MacSteel nos
últimos dois anos.
Ele estava bem melhor informado do que o conde sobre a gravidade e
periculosidade em que se encontravam os ânimos.
O comportamento dos homens de ambos os clãs era muito primitivo.
Quando a ira era despertada por algo que os chocasse ou enfurecesse,
eles se tornavam extremamente violentos.
O líder dos MacSteel estava ciente de que, mais cedo ou mais tarde, os
roubos e assassinatos que vinham ocorrendo nas fronteiras lhe escapariam
ao controle.
Isso lhe tirara o sono noite após noite.
“Como, ele cogitava, poderei deter Hamish em sua determinação de
instigar os jovens contra o clã vizinho?”
No início, julgara que fosse apenas uma atitude típica de um jovem
rebelde, provocar os outros e mostrar que era o mais forte, e não se deu ao
trabalho de considerar o comportamento como comprometedor em relação
ao futuro do clã.
Reconhecia, agora, que demorara muito a tomar uma posição rigorosa,
embora sempre tivesse governado seu clã com bondade, firmeza e justiça.
Há algum tempo, contudo, viera a saber que os ataques contra os Mcbrara
estavam se tornando por demais freqüentes.
O fato, que realmente tivera de encarar, era que Hamish fora longe
demais.
Se o pai do conde ainda estivesse vivo, ele o teria consultado de imediato.
Mas fora impossível se comunicar com um jovem que se instalara em
Londres, e que vivia viajando em companhia do rei.
Pensara em lhe escrever, pedindo que retornasse o mais breve possível,
mas não acreditara em seu pronto atendimento.
O conde, obviamente, estava fascinado com a vida que vinha levando no
palácio real.
Como a maioria dos homens teria feito, ele apenas confiou que a situação
melhorasse com o tempo.
Sua grande dificuldade, entretanto, fora a esperteza de Hamish, sempre
escapando das garras da lei.
Muitos MacSteel também haviam perecido como resultado à confrontação
corporal com os membros do clã dos Mcbrara.
Mas ele não tivera a oportunidade e o horror, como acontecera com o
conde, de presenciar a chegada de um corpo massacrado, pois as lutas
normalmente aconteciam em terras dos Mcbrara e não nas suas.
Fora somente durante o percurso entre suas terras e as do conde, que ele
pensara que a única e óbvia solução para seus problemas seria um
casamento entre seus maiores representantes.
Ele, o líder do clã dos Mcbrara, e ela, a filha do líder dos MacSteel.
O enlace uniria os clãs e garantiria a paz para ambos os povos.
Agora, ao se aproximar de sua casa, cogitava no que Fany teria a dizer
sobre o acordo.
Ele percebera, é claro, que o conde se surpreendera e que, certamente,
não ficara feliz com sua sugestão.
Percebera, também, que ele não deixara de tentar encontrar uma saída a
fim de rejeitar a ousada proposta.
A demonstração que se realizara diante de seu castelo, contudo, o
impedira de dizer qualquer coisa.
Ao ouvir as imprecações furiosas dos membros do clã inimigo, e
principalmente após ver o cadáver esfacelado do pastor, o senhor de terras
constatou que era tarde demais para pensar em alguma saída mais branda.
A única forma possível de impedir que o clã dos Mcbrara invadisse seu
território e matasse seu povo, seria uni-lo ao inimigo por meio de uma
aliança matrimonial.
Ele tinha certeza de que todas as mulheres aprovariam o acordo.
Elas, mais do que ninguém, desejavam a paz.
Rezavam e se desesperavam a cada dia, com receio de que seus maridos
saíssem para cuidar de seus rebanhos ou do gado, e que não voltassem
para casa ao cair da noite.
Pelo fato dos Mcbrara já terem sido repetidamente atacados, muitos jovens
decidiram tomar a si a vingança.
Pastores inocentes dos MacSteel, portanto, também haviam sido feridos.
Como ele relatara ao conde, membros de ambos os clãs estavam sofrendo
com a desarmonia existente, embora o número de homens seus fosse
pouco em comparação aos membros dos Mcbrara.
Seu coração e sua mente lhe diziam que um impasse terrível estava para
eclodir.
Seu clã, então, seria o que mais sofreria.
— Eu o salvei! — ele falou consigo mesmo.
Ao mesmo tempo a consciência o acusava.
Fora bem-sucedido numa missão gloriosa de salvar seu clã, mas e quanto
à sua filha, o que ela diria?
Ela era uma moça completamente diferente das outras.
Muitas vezes se vira pensando que ela era mais um espírito do mar e das
florestas, do que um ser humano.
Ninguém jamais poderia oferecer ao conde uma dádiva mais preciosa.
Fany seria a salvação de uma situação que certamente seria desastrosa
não apenas para ambos os clãs, mas também a Escócia de maneira geral.
A Escócia era um país ainda em desenvolvimento.
A última coisa que alguém poderia desejar tanto política quanto
socialmente seria uma guerra entre os clãs, naquele momento em particular.
O líder dos MacSteel não visitava a Inglaterra desde que era jovem,
dedicando-se e vivendo cada momento de sua vida apenas na Escócia.
Era de seu conhecimento, e motivo de muito orgulho, que sir Walter Scott
fizesse de seu país um lugar fascinante, através de todos os seus romances
e poemas.
Os leitores desse autor teciam uma imagem romântica da Escócia, e não a
de uma terra povoada por gente primitiva e violenta.
Os regimentos das montanhas haviam se distinguido sob o comando de
Wellington, o que dera a Escócia uma nova importância.
— Como seria possível permitir que uma guerra entre os clãs destruísse
essa imagem? — o líder dos MacSteel se perguntou.
Qualquer que fosse o sacrifício empreendido pelo conde e por Fany valeria
a pena.
Ambos, afinal, haviam sido escolhidos pelo destino para salvar seus povos.
Por mais que tentasse se convencer, porém, ele se sentiu apreensivo ao
percorrer a rampa que levava até seu castelo, que era bem mais simples do
que o do conde.
Fany o esperava para o almoço embora ele estivesse bastante atrasado.
Quando abriu a porta, ela desceu correndo as escadas e o abraçou, aflita.
— Que bom que chegou, papai! Eu estava preocupada com sua demora.
Não parava de me perguntar o que poderia ter acontecido e onde o senhor
teria ido.
— Tenho muito a lhe contar, minha filha — respondeu o pai — , mas antes
gostaria de almoçar. Estou com muita fome e sede.
— Sim, é claro. Está tudo pronto a sua espera.
Fany o examinou com atenção.
— O senhor deve ter visitado alguém ou algum lugar importante, pois se
vestiu com sua melhor roupa. Está muito elegante.
O pai sorriu para ela.
— Eu precisava me apresentar bem caso tivesse de enfrentar algum tipo
de competição.
Fany ergueu uma sobrancelha.
— Quem, afinal, o senhor visitou? Estava tentando adivinhar, mas não
consegui chegar a nenhuma conclusão, e estou bastante desapontada que
não tivesse me levado consigo.
O pai não respondeu.
Ele estava subindo a escadaria que dava no primeiro andar, onde estavam
localizadas a sala de jantar e as demais salas mais importantés do castelo.
A sala de jantar era decorada com quadros dos antigos líderes do clã e
com uma exposição de armas e escudos da família.
O pai se sentou na cabeceira da mesa.
Fany se sentou ao lado dele e fez sinal para que os criados os servissem.
Foi um almoço tipicamente escocês.
Serviu-se salmão pescado do rio Steel, assado de gamo e um pudim de
frutas apanhadas do pomar do castelo.
Durante o refeição, o pai confessou ter procurado o conde pela manhã.
— Ele chegou ontem a noite da Inglaterra — ele explicou.
— Oh, então ele voltou! Oh, papai, que excitante! — Fany exclamou. —
Agora certamente serão reiniciadas as competições que costumavam se
realizar nas terras dos Mcbrara. Estou certa de que Robert vencerá o torneio
de tosquia das ovelhas. E quanto aos gaiteiros, afirmo que os nossos são
superiores, sem a menor sombra de dúvida.
— Quem lhe disse isso? — o pai quis saber.
— Os próprios gaiteiros, embora eu não possa ser taxativa quanto à
veracidade da informação, pois nunca ouvi os Mcbrara tocarem.
— Você certamente os ouvirá no futuro — o pai aproveitou o ensejo para
abordar o delicado assunto.
A filha o fitou com estranheza.
— Está querendo dizer que seremos bem-vindos caso os Mcbrara
decidam repetir o sucesso dos torneios realizados no passado? Eu estava
receosa de que nossos homens não recebessem permissão para
participarem da competição devido aos problemas que têm surgido
ultimamente entre ambos os clãs.
Os jogos não vinham acontecendo há muitos anos.
Como o conde estava ausente, e a animosidade entre os dois clãs já
acontecesse há algum tempo, os membros mais idosos do clã dos Mcbrara
haviam decidido cancelar os jogos.
Com isso eles haviam decepcionado não só os MacSteel como também
outros clãs das montanhas.
Os demais clãs também costumavam realizar competições, uma vez a
cada ano, mas nenhuma de suas festividades eram tão famosas e
grandiosas como as ocorridas sob o patrocínio do conde de Braradale.
Não havia um único jovem talentoso escocês que não desejasse
demonstrar sua perícia no lançamento de dardos, na dança típica da região
ou na música da gaita de fole.
— Os jogos acontecerão mais para o final do ano, após a visita do rei — o
pai a comunicou.
— O rei se decidiu a vir? — Fany duvidou. — Tenho lido nos jornais que
ele está hesitante, um dia diz que virá, no outro diz que não.
— Agora não resta mais dúvida de que estará desembarcando na Escócia
em agosto — o pai respondeu.
Fez-se um pequeno silêncio.
— Não haveria chance, papai, de que o senhor me levasse a Edimburgo
nessa ocasião? Eu adoraria poder ver o rei.
— Acho que você o verá. — O pai suspirou e ficou calado por algum
tempo. Terminado o almoço, ele se levantou e convidou a filha a
acompanhá-lo. — Vamos até a sala de estar. Preciso lhe contar muitas
coisas.
Fany percebera, no momento em que o pai se levantara, que seu prato
permanecia quase intocado, embora ele tivesse comentado que estava com
fome.
“Sinto que há algo de errado, embora não possa atinar com o que seja”,
Fany pensou.
Os dois se afastaram da mesa e percorreram o corredor até a sala de
estar, que ficava numa ala oposta do castelo.
As janelas daquele cômodo davam para o rio.
Ao sol, ele estava brilhando como se fosse um laço de fita prateada,
envolvendo a montanha coberta de urzes, que lhe emprestava uma
encantadora coloração lilás.
Os olhos de Fany, no entanto, estavam fixos no rosto do pai.
— O que foi? O que aconteceu esta manhã, papai?
O pai se colocou em frente à lareira.
— Eu descobri um meio, minha querida, de salvarmos o clã de prosseguir
na luta contra os Mcbrara, que levou tantos homens de ambos os lados a
morrerem e a sofrerem tão desnecessariamente.
— Oh, papai, o senhor conseguiu! Que maravilha! Como o senhor é
esperto! O que deverá ser feito para apaziguar os clãs?
— Será preciso, em primeiro lugar, que você concorde em se casar com o
conde Braradale, assim como ele já concordou em desposá-la.

IV

Fany estava olhando para o rio.


Assim que terminou de ouvir as palavras do pai e que pôde se ausentar do
castelo, dirigira-se para o rio.
Era como se o considerasse o único elemento capaz de consolá-la.
Enquanto suas águas mansas fluíam sobre as pedras, ela se sentiu como se
estivesse mergulhando num sonho ou num pesadelo.
Não podia ser verdade!
Ela não podia estar sendo obrigada a se casar com um homem que nunca
vira em sua vida, e que, por sua vez, também jamais a vira.
Ao mesmo tempo não culpava o pai por ter sugerido o casamento como
única forma de salvação dos clãs.
Sabia que as lutas terminariam assim que os clãs se unissem.
Mas era difícil não se sentir um cordeiro sacrifical, e todo o seu ser se
rebelava contra o destino que lhe haviam reservado.
— Como, meu Deus, poderei me sentir feliz em me casar com um homem
que desconheço e que também nada sabe a meu respeito? — ela se
perguntou.
Em seguida, Fany teve de admitir que aquela não era totalmente a
verdade: ela sabia muito com relação ao conde de Braradale.
Não seria possível terem nascido e viverem, ao menos por algum tempo,
na mesma parte do país, sem que os rumores não os alcançassem. Em
primeiro lugar, além de conde, ele era o líder do clã dos Mcbrara. E ainda,
pelo fato de ter se tornado um dos amigos favoritos do rei, os membros do
clã não falavam de outra coisa.
Parecia incrível, com seus povos vivendo tão próximos, que Fany nunca
tivesse conhecido ou sequer visto o conde.
Mas o fato é que ela estudara na capital por muitos anos e ele, também.
Por ocasião dos últimos torneios, o conde estivera lutando sob o comando
de Wellington ou então fixado em algum país junto ao exército de ocupação.
O reconhecimento de seus serviços à pátria, com a entrega de uma
medalha de ouro, fora discutido entre os MacSteel da mesma forma que
ocorrera com Alistair, o irmão de Fany.
Seu regresso, mais tarde, a Inglaterra e seus inevitáveis casos amorosos
com as lindas cortesãs chegaram ao conhecimento do povo do norte, tanto
quanto os casos mantidos pelo rei.
Fany nunca dera muita importância a essas conversas.
Os amigos de seu pai, no entanto, sempre que visitavam o castelo para
almoços ou jantares, faziam das peripécias do conde seu tema favorito.
A maioria dos homens o criticava por não ter assumido sua posição de
líder do clã como deveria.
As mulheres, contudo, diziam não se surpreenderem por seus atrativos
serem tão apreciados no sul, quanto haviam sido brevemente no norte.
Elas pareciam sentir prazer, Fany cogitou, em falar sobre a beleza do
conde.
As jovens, em geral, o achavam muito atraente.
Ao falarem sobre ele seus olhos chegavam a brilhar.
Assim mesmo, Fany nunca se mostrara interessada.
Sua única opinião, e nisso concordava com os homens, era que o conde
não deveria se manter afastado por tanto tempo de suas terras e de seu
povo.
Quanto a casamento, ela sempre tivera sonhos cor-de-rosa para o futuro.
No momento, contudo, só tinha tempo de pensar em Hamish e em como
dissuadi-lo de atormentá-la com seus insistentes pedidos.
De um minuto para o outro, como se uma bomba houvesse explodido, seu
mundo se partira em fragmentos.
O pai lhe repetiu cada detalhe de tudo o que acontecera no castelo Brara.
Ela mal podia acreditar que fosse verdade.
Para sua mente atordoada ele parecia estar contando uma história de
ficção, onde outras pessoas fossem as personagens, não ela.
Mas, seu bom senso era suficiente para entender que o pai não tivera
outra alternativa, pois um casamento entre os clãs seria a única solução
possível sob as terríveis circunstâncias.
Se os membros do clã Mcbrara houvessem invadido as terras inimigas em
represália à morte do pastor e de outros companheiros, as conseqüências
teriam sido desastrosas.
Muita gente teria ficado sem teto, sem meios de sobrevivência, sem suas
plantações.
Ela já lera muitas vezes a história dos clãs escoceses, e sempre ficar;
arrepiada com as injúrias cometidas mutuamente.
Era natural e compreensível que seu pai não permitisse que isso se re
petisse.
Não havia como fingir que os MacSteel pudessem encarar um levante dos
Mcbrara.
O clã dos Mcbrara era muito maior.
Se a luta continuasse, todos os MacSteel acabariam sendo eliminados
sem piedade.
— Papai fez o que devia — Fany falou consigo mesma.
Sentia-se, contudo, mais assustada do que jamais estivera em sua vida.
Deixou-se ficar por um longo tempo junto ao rio.
Passadas várias horas, como se fortalecida por algum poder
desconhecido, ela constatou que precisaria ser prática.
Se o pai decretara que ela deveria se casar com o conde, então, precisaria
providenciar um vestido de noiva.
Passou-lhe pela mente de súbito que um conde, acostumado a viver em
Londres, desprezaria uma esposa desmazelada e fora de moda.
— Oh, bem que ajudaria, se o casamento não tivesse de ser realizado
com tanta correria! — ela resmungou.
Era mulher e vaidosa e não queria que comentassem que ela não estava à
altura do conde, e que ele, acima de todos, viesse a desprezá-la durante a
cerimônia.
Sabia, no íntimo, que o conde se julgaria superior a ela, líder que era de
um clã maior e mais antigo que o dos MacSteel.
Mas para o bem deles, e para seu próprio bem, teria de fazê-lo aceitá- la
como uma igual.
Teria apenas sete dias para se preparar, e nesse período precisaria
encontrar o vestido perfeito para a noiva de um conde e líder de um clã.
O dia do casamento seria um sábado.
O pai escolhera justamente esse dia porque muitos membros de seu clã
trabalhavam em cidades adjacentes, e só vinham para casa nos fins de
semana para verem as esposas, filhos e pais.
Fany estava tentando raciocinar onde poderia adquirir um vestido do tipo
que estava imaginando.
Um vestido que deslumbrasse o conde, que não o fizesse olhar para a
noiva como se fosse uma simples camponesa.
Foi nesse instante que ela se lembrou de que um dos membros do clã
voltara para casa, ao final da guerra, com uma jovem esposa francesa.
O jovem fora ferido e levado à casa mais próxima do campo de batalha.
Os ingleses haviam se comportado muito bem com relação aos franceses.
Pagavam por aquilo que comiam e agiam de forma diferente da dos
soldados de Napoleão.
O escocês ferido fora amparado e tratado por pessoas francesas, e
acabara se apaixonando pela filha mais velha daquela família.
Quando retornou a Escócia, trouxe-a com ele.
O casal se dedicara a cultivar a terra e a criar um pequeno rebanho de
carneiros.
Embora fosse muito tímida, a moça comentara com algumas pessoas que
trabalhara em Paris para um estilista famoso.
Por ser curiosa, Fany quisera conhecê-la e encomendara um vestido bem
simples.
O resultado fora que a confecção saíra tão perfeita que aquele se tornou o
vestido preferido de Fany.
Yvonne MacSteel, portanto, poderia lhe ser de muita valia.
A cabana onde ela e o marido moravam não ficava distante do castelo.
Em vez de voltar para casa, Fany decidiu, então, ir direto do rio, através do
bosque, até o lugarejo.
Havia uma trilha estreita e poeirenta que levava diretamente à aldeia.
Era pequena, mas a igreja que fora construída ali, havia séculos, era de
uma grandiosidade magnífica.
A casa do pastor, ao lado, também era bonita e bem-feita.
O pai de Fany fazia questão de contribuir com grandes quantias para que
ao menos esses dois prédios se distinguissem entre os membros de seu clã.
A aldeia com sua igreja atraíra muitos comerciantes de outras partes da
Escócia.
Seus estabelecimentos, portanto, poupavam aos habitantes a necessidade
de percorrerem grandes distâncias para fazerem suas compras.
A cabana de Yvonne MacSteel e de seu marido ficava na periferia da
aldeia.
Fany abriu o portão que dava para um bem cuidado jardim, e
imediatamente notou que a jovem francesa estava pendurando roupas, que
acabara de lavar, num varal nos fundos.
Ela pareceu surpresa ao reconhecer Fany.
A surpresa se transformou em prazer, quando Fany a cumprimentou em
seu próprio idioma.
— Bonjour, madame. Estou muito contente em tê-la encontrado em casa,
pois necessito de sua ajuda.
Fany dominava o idioma francês com perfeição, já que o estudara quando
cursara o colégio em Edimburgo.
Ela se dedicara ao estudo com afinco porque sua mãe insistira na
importância do conhecimento.
A moça convidou Fany a entrar, e esta se sentou numa confortável cadeira
na sala.
A cabana era pequena mas impecavelmente limpa.
Embora Yvonne MacSteel estivesse usando um vestido simples, Fany não
deixou de notar a elegância de seu talhe.
Um vestido daqueles não seria encontrado no corpo de nenhuma ou- Ira
mulher do clã.
— A senhorita está precisando de minha ajuda, mademoiselle! — Yvonne
MacSteel estranhou. — Saiba que terei muito prazer em fazer o que puder
para auxiliá-la.
Fany respirou fundo e prendeu o fôlego.
— Você teria de saber mais cedo ou mais tarde — Fany comentou com
hesitação. — Meu casamento com o conde de Braradale foi marcado para
daqui a uma semana.
A francesa olhou, boquiaberta, para Fany.
— Daqui a uma semana? Mas, mademoiselle, como isso será possível?
— É por esse motivo que vim procurá-la — Fany explicou. — Trata-se de
um acordo da parte de meu pai e do conde para colocar um fim nas lutas
entre os clãs, que vem se agravando no último ano, até o ponto de
ocorrerem assassinatos.
Fany fez uma pausa antes de prosseguir:
— Em vez de guerra, nós lhes oferecemos uma festa de casamento, onde
todos se divertirão. Os gaiteiros nos brindarão com sua música, haverá
assados de caça à vontade, e também dança sob as estrelas, assim que os
noivos se retirarem.
Yvonne MacSteel bateu palmas.
— Será excitante e divertido, mademoiselle, mas me diga, a senhorita já
comprou seu vestido de noiva?
— Ainda não e não terei tempo para ir até Edimburgo a fim de adquirir o
tecido e todos os acessórios necessários.
Fez-se um breve silêncio, e Fany continuou:
— Por favor, por favor, me ajude! Não posso decepcionar todo o clã
surgindo na igreja como um espantalho, e muito menos o conde. Como a
senhora deve saber, Sua Alteza morou por muito tempo em Londres, em
companhia de Sua Majestade, o rei George IV.
— Entendo, é claro que entendo — Yvonne MacSteel confirmou. — Agora,
deixe-me pensar.
A moça colocou ambas as mãos sobre a fronte e pareceu divagar por
alguns momentos.
Em seguida, afirmou:
— Há três, ou melhor, quatro mulheres no vilarejo que sabem costurar.
Elas me mostraram seus trabalhos há algum tempo. Eram roupas que
confeccionaram para amigos e filhos. Eu as chamarei.
Fany não havia imaginado essa possibilidade.
Conhecia somente a capacidade de Yvonne MacSteel, e se esquecera de
que poderia haver muitas outras mulheres entre o clã de seu pai, que
também conhecessem a arte da costura.
— Nós comentamos várias vezes que quando o inverno chegasse, nos
reuniríamos para costurar juntas. Eu me prontifiquei a ensiná-las a
confeccionar roupas mais modernas e a tricotar blusas e mantos com mais
beleza e técnica.
Fany percebeu que Yvonne MacSteel estava se referindo às meias
grossas que os homens usavam na região e que eram tricotadas por suas
esposas.
Cachecóis e casacos também eram por demais necessários para aqueles
que trabalhavam à noite na guarda de seus rebanhos.
— Agora me diga, mademoiselle, exatamente de quê a senhorita precisa.
Fany ergueu as mãos para o céu.
— De tudo. Possuo um ou dois vestidos bonitos, apenas, os quais comprei
o ano passado, quando fui passar uma temporada com amigos, em
Edimburgo. Tenho certeza, porém, de que não são sofisticados o suficiente
para alguém que está acostumado a viver na corte, em Londres.
Fany fez um gesto expressivo e prosseguiu:
— Talvez depois de todos esses meses eles também já estejam fora de
moda.
— Deixe tudo por minha conta — Yvonne MacSteel se ofereceu. — Minha
família, que continua morando na França, e que conhece a fundo meu
interesse pela costura e pela moda, sempre me envia revistas com
ilustrações que trazem os últimos modelos de Paris.
Ela sorriu.
— Eu prometo, mademoiselle, que será uma noiva muito chique. Mesmo
que eu não tenha tempo de costurar outros vestidos para seu enxoval
continuarei providenciando-os, de forma que o complete em pouquíssimo
tempo.
— Poderia fazer isso por mim? — Fany indagou, comovida. — É muito
importante porque embora Sua Alteza nada tenha afirmado, meu pai
acredita que já estaremos casados no dia da chegada do rei e, dessa forma,
eu deverei estar preparada para recepcioná-lo.
Pela expressão da francesa, Fany cogitou que aquele seria um desafio que
a excitava.
— Eu trouxe um tecido de Paris, quando me casei, que tenho certeza
servirá maravilhosamente para um vestido de noiva — ela falava quase
consigo mesma.
— Minha mãe me deixou alguns vestidos e ornamentos, que talvez sirvam
para alguma coisa — Fany informou —, mas seria bom que você viesse
examiná-los pessoalmente. Quem sabe possam ser reformados e
aproveitados.
A francesa era educada demais para se recusar a acatar uma sugestão da
filha do líder de seu clã, mas através de sua expressão, Fany entendeu que
seria improvável um reaproveitamento de roupas tão antigas.
— Volte para o castelo, mademoiselle, e não se preocupe. Chamarei as
costureiras e lhes direi o que quero que façam. Quanto a mim, irei procurá-la
assim que William retornar do trabalho, e puder cuidar do bebê.
Fany se esquecera de que Yvonne MacSteel tinha um bebê de quatro ou
cinco meses.
Ao olhar subitamente pela janela, ela percebeu o motivo de não tê-lo visto
antes.
O bebê dormia como um anjo em seu carrinho, lá fora, no jardim.
— Você é muito amável — Fany a elogiou e agradeceu. — Apesar de
todos os seus afazeres, não se recusou a me ajudar. Não esquecerei esse
inestimável favor, pois não posso contar com mais ninguém para me ajudar,
a não ser você.
— Deixe tudo por minha conta, mademoiselle — Yvonne MacSteel repetiu.
— Prometo, se não for humanamente impossível, não lhe dar motivos para
desapontamento.
Fany agradeceu mais uma vez e em seguida se pôs a caminhar
lentamente de volta ao castelo.
Não podia evitar o pensamento de que tivera muita sorte.
Quem poderia imaginar que houvesse uma francesa de experiência e
talento com relação à costura, num lugar tão pequeno e rude como uma
vilarejo nas montanhas da Escócia?
Sua única saída, caso não tivesse encontrado a moça, teria sido
empreender uma viagem apressada a Edimburgo e suas lojas a fim de
tentar comprar roupas já prontas.
Pelo fato de sua constituição física ser magra, não era fácil para Fany
encontrar roupas prontas que lhe caíssem bem.
Já tentara adquiri-las várias vezes, no passado, sem grande sucesso.
Mesmo durante a época em que freqüentara o colégio, sua mãe precisara
encomendar-lhe roupas sob medida.
Dessa forma, qualquer coisa que Yvonne MacSteel lhe costurasse, seria
preferível às roupas demasiado largas para ela.
Roupas prontas nunca faziam justiça a seu corpo nem expressavam sua
personalidade, ao contrário do que ocorria quando trajava roupas
especialmente confeccionadas segundo suas medidas.
Mas, mesmo que Yvonne MacSteel tivesse sucesso em sua tarefa, será
que ela poderia competir com as damas da corte inglesa?
Os comentários a respeito dos vestidos, jóias e peles que elas usavam
corriam todo o país, inclusive a Escócia, principaimente depois da coroação,
quando o rei em sua glória, se dedicara a oferecer muitas festas e
banquetes.
Era a isso que o conde se acostumara.
Como seria possível que alguém que vivesse nas montanhas pudesse
competir com tal sofisticação?
O conde certamente não esperaria que isso viesse a acontecer.
A Escócia, como a Inglaterra, estava ciente de que o rei mantinha um caso
amoroso com a marquesa de Conyngham.
Os rumores de que ele a presenteava com jóias caríssimas percorreram o
continente.
Fany, entretanto, nunca dera ouvidos a esse tipo de conversa, por não se
interessar por mexericos.
Mas isso se provara difícil, pois todos aqueles que visitavam o castelo de
seu pai pareciam não ter outro assunto para conversar, exceto a vida
particular do rei.
No momento, a grande especulação era a presença da marquesa durante
a visita a Edimburgo.
O rei a traria ou não?
“Esse é o tipo de mulher com quem precisarei competir”, Fany cogitou.
“Precisarei imitá-la caso não queira que o conde se envergonhe de minha
aparência”.

De volta ao castelo, Fany se dirigiu ao quarto de sua mãe, em primeiro


lugar, conforme comentara com Yvonne MacSteel, a fim de averiguar se
poderia aproveitar algum material.
No quarto, que não voltara a ser ocupado desde sua morte, continuavam
pendurados todos os seus vestidos dentro de um armário.
Uma vez que todos eram escuros e, portanto, inadequados para uma
noiva, Fany os descartou.
Lembrou-se, então, de que a mãe possuíra um baú, que fora levado a uma
das torres.
Nessa segunda investigação, Fany teve mais sorte.
Havia um corte de chiffon branco, que a mãe deveria ter comprado para
mandar fazer um vestido de verão ou uma camisola.
Logo abaixo, ela descobriu um outro tecido, que, sem dúvida, Yvonne
MacSteel aprovaria.
Era uma musselina verde-clara com bordadas em fios de prata e pérolas.
Pelo fato de não conseguir imaginar a mãe trajando um vestido daquele
tipo, Fany suspeitou de que deveria se tratar de algum presente, que fora
esquecido e guardado no fundo de uma gaveta durante anos.
Era um tecido realmente incomum.
Como vestido de noite seria diferente de qualquer padronagem que outras
mulheres pudessem usar.
Ele a fazia se lembrar do rio fluindo para o mar.
Ou das árvores, quando suas folhas eram tocadas pelas geadas durante
as noites de inverno, para depois brilharem como diamantes ao sol da
manhã.
Fany levou esses tecidos para seu quarto, colocou-os sobre a cama, e em
seguida, sentou-se à penteadeira, diante do espelho onde passou a
examinar seu reflexo.
Foi nesse momento que sentiu que não teria forças para cumprir a vontade
do pai.
Como poderia se vestir de noiva e se casar com um homem que não a
desejava como esposa?
E ela também não o queria como marido.
O medo a fez pensar em fuga. O que aconteceria se ela realmente
desaparecesse?
Imaginou, em seguida, um soldado inexperiente indo para o campo de
batalha.
Era assim que estava se sentindo.
Lutava para salvar as vidas de homens, mulheres e crianças, que
dependiam de seu pai para protegê-los.
Ela era sua única arma.
Não lhe restava, portanto, escolha alguma.
Teria de se sacrificar e se casar com o conde, embora só em pensar nele
ela estremecesse.
Uma mão gelada parecia estar apertando seu coração.
No dia seguinte, os acontecimentos vividos no castelo Brara já eram de
conhecimento de todo o clã.
Todos, sem exceção, tanto homens quanto mulheres, discutiam o
casamento do conde com a filha do líder dos MacSteel.
Alguns estavam a favor da união, outros contra.
Os que se declaravam contra eram aqueles que mais haviam sofrido nas
mãos dos inimigos, ou cujos rebanhos e gado haviam sido roubados.
Também eram contra, as viúvas daqueles que haviam sido assassinados
ou que haviam perdido a vida em conseqüência dos ferimentos sofridos.
Fany sabia, porém, que a maioria das mulheres estava agradecida por não
mais precisar temer a noite e os horrores que aconteciam durante as horas
de escuridão.
Elas não mais precisariam dormir com receio de que viriam a ser
despertadas com o ruído das chamas a queimarem suas cabanas.
Onde quer que fosse, Fany percebia, através dos súbitos silêncios, que
todas as pessoas estavam falando a seu respeito.
Quanto às garotas, estas a consideravam uma mulher de sorte.
Uma delas chegou a lhe dizer:
— A senhorita será uma condessa e conhecerá o rei. Qualquer uma de
nós adoraria estar em seu lugar.
Fany desejaria poder pensar o mesmo.
Os dias haviam transcorrido mais rápidos do que ela pensara, e agora só
faltava um para que chegasse o sábado.
Ainda havia muito o que fazer no castelo.
Seu pai estava determinado a celebrar a cerimônia em estilo tradicional e
em alto padrão.
Muitos bois e carneiros seriam assados no pátio a fim de alimentar e
regalar a todos que viessem assistir a cerimônia.
Uma marquise estava sendo levantada para servir de local de recepção
aos convidados.
O bolo, que estava sendo preparado e confeitado na cozinha do castelo,
seria cortado com a espada do conde.
Era uma tradição entre o povo escocês, que o líder do clã fosse quem
cortasse a primeira fatia do bolo de seu casamento, com sua própria
espada, também tipicamente escocesa, de dois gumes.
O bolo teria a forma de um castelo e em seu topo seriam colocadas
miniaturas dos escudos de ambos os clãs.
Fora uma idéia grandiosa do pai de Fany.
E, por estarem completamente envolvidos com os preparativos do
casamento, tanto Fany quanto o pai mal tinham tempo para se sentar e
conversar, precisando se contentar com refeições simples e rápidas.
Os gaiteiros ensaiavam dia e noite as músicas que tocariam durante a
cerimônia.
Mesmo quando Fany escapava ocasionalmente para um passeio até o rio,
o único lugar em que se sentia em paz, ainda podia ouvi-los.
A música perturbava sua concentração.
Por mais que tentasse, Fany não conseguia encontrar soluções para seus
problemas.
Em primeiro lugar, ela temia Hamish, pois o primo insistia em persegui-la.
Quando voltara para o castelo, após a visita a Yvonne MacSteel, seu pai
estava fora.
Ficara algum tempo sozinha na sala de estar, quando de repente Hamish
irrompera pelo ambiente, a respiração ofegante.
Fany o fitou, apreensiva, pois reconhecia aquela expressão de fúria.
— Pode me explicar o por quê de todos esses rumores pela aldeia? Estão
dizendo que você vai se casar com o líder do clã dos Mcbrara, mas eu não
acreditei.
— É verdade — Fany admitira num fio de voz.
— Acha que eu permitirei um absurdo desse? — ele esbravejara. — Você
vai se casar comigo, e só comigo! Já cansei de lhe pedir. Não pode se
vender a um homem que sempre foi nosso inimigo, apenas para impedir que
ele ataque alguns desses pastores ignorantes e sem importância.
— Eles são nossa gente e portanto muito importantes para nós! — Fany
protestara.
— Então case-se comigo e atenda minhas súplicas. Se o fizer, prometo
que não haverá mais ataques aos porcos dos Mcbrara, por mais que o
mereçam.
Fora a primeira vez que Hamish admitira ser o responsável por todos os
ataques e matanças, que vinham acontecendo há anos.
Fany fez um movimento negativo com a cabeça.
— É tarde demais — ela suspirou- — Se papai não tivesse conseguido,
através desta solução, impedir que os Mcbrara nos atacassem depois que
você assassinou o pastor, poderíamos estar todos mortos, a estas alturas. A
única forma com que ele pôde evitar essa tragédia foi propor a união de
ambos os clãs, através dos laços do matrimônio.
Fany contou a Hamish a verdadeira história a respeito do acordo para que
ele se conformasse com a inevitabilidade de seu destino.
Mas o primo fechou-se contra a razão e continuou insistindo.
Chegou a bater sobre a mesa com o punho fechado e gritar:
— Você se casará comigo! Só assim haverá a paz de que está falando. Os
clãs, então, poderão até se abraçar e beijar se é isso que quiserem fazer.
Fany o escutou em silêncio até que terminada a torrente de palavras, ela
se levantou.
— Não adianta, Hamish. Você mesmo foi quem provocou essa situação.
Nada mais poderá ser feito, agora, para resolver de vez os problemas,
exceto a união dos clãs. E para que isso aconteça, eu terei de me casar com
o conde.
— Não o permitirei! Está me ouvindo? Eu não permitirei que isso aconteça!
Hamish gritava.
Fany, entretanto, achou que ele estava apenas tentando intimidá-la, pois
deveria estar ciente, mesmo que à revelia, de que não estava mais nas
mãos dele mudar o que fora decidido.
Ele deixou o castelo finalmente porque percebeu que o pai de Fany havia
regressado.
Pela expressão de seu rosto e pela determinação de suas últimas
palavras, Fany temeu que ele realmente fosse lhe criar dificuldades.
— Você será minha — ele sibilou. — Você já é minha e não permitirei que
se afaste de mim. Sempre jurei que um dia seria minha esposa, e não me
conformarei em perdê-la para qualquer Mcbrara idiota, que acha que é muito
importante porque se tornou amiguinho do rei.
Havia ódio e ciúme em sua voz.
Quando Hamish se foi, batendo a porta com toda sua força, Fany deixou
escapar um suspiro de alívio.
— Ele está louco — ela se convenceu. — Não adianta ouvir ou responder
ao que tem para me dizer, pois é por causa dele próprio, que está por trás
de todos os crimes cometidos contra os Mcbrara, que me encontro na
iminência de me casar com um homem a quem não amo e nem sequer
conheço e que também jamais me viu.
Não houve sinal de vida por parte de Hamish pelos dois dias que se
seguiram.
Fany não teve tempo de se preocupar com as ameaças que ele fizera, pois
estava ocupada demais com os preparativos para seu casamento.
Yvonne MacSteel vinha vê-la todos os dias para que ela experimentasse
os vestidos.
Era um alívio não ser obrigada a ouvir ou a olhar para Hamish.
Na quarta-feira à noite, Fany estava mais cansada do que o usual, pois
tivera um dia extremamente agitado.
Fora preciso viajar até a cidade mais próxima para comprar uma série de
coisas que estavam faltando como louças, talheres, e copos.
Quando retornara, o pai a recebera com expressão aborrecida.
Um grande número de membros do clã, que vivia a alguma distância do
castelo, ainda não havia sido participado a respeito do casamento.
Faltava enviarem convites a essa gente, o que deveria ser feito através de
mensageiros.
Já era tarde da noite quando Fany terminou de escrever a última carta.
Ao despir-se para se preparar para dormir, contudo, o primeiro momento
que tivera só para si, foi inevitável que seus pensamentos voltassem a
torturá-la.
Era sempre a mesma coisa.
Agradecia ao acúmulo de trabalho, pois quando estava ocupada conseguia
esquecer, ou melhor, não pensar sobre o homem que a esperava para se
casar com ela, o homem com quem se encontraria pela primeira vez no
sábado.
No fundo de seu coração esperara que ele viesse vê-la antes, mas o pai
acabara com suas esperanças, ao informá-la de que o conde enviara uma
mensagem dizendo que seria obrigado a viajar para Edimburgo por motivo
de negócios.
Os negócios envolviam, sem dúvida, a visita do rei o que exigiria uma série
de reuniões e preparativos por parte daqueles que seriam os responsáveis
por seu entretenimento.
Fany cogitara muitas vezes se seria melhor para ela encontrar o conde em
particular, antes do casamento.
Era o que lhe parecia mais sensível, mas após a comunicação que o pai
lhe trouxera, os dois se encontrariam pela primeira vez diante de uma
multidão, sobre a plataforma onde seria realizado o matrimônio.
A situação ficara estabelecida com a viagem do conde para Edimburgo.
Não adiantava tentar mudá-la.
Por mais estranho que fosse, conheceria seu marido apenas no momento
da cerimônia.
Sua mente não lhe dava descanso.
Não podia pensar em nada pior e mais embaraçoso do que o que
aconteceria depois que eles deixassem o altar.
As primeiras palavras que ele lhe falaria, seriam palavras de um marido
para sua esposa.
Fany se despiu muito devagar, pois estava profundamente mergulhada cm
seu interior.
No momento em que se deitou, contudo, e se preparou para fazer suas
orações, seu coração começou a disparar no peito.
Um medo terrível a dominou, sem que ela pudesse entendê-lo.
O medo parecia crescer e crescer até tomá-la por inteiro.
Sentira medo ao saber que teria de se casar com o conde, sentira medo da
vida que a esperava, mas aquele tipo de medo que estava sentindo naquele
momento era algo diferente.
Era algo físico, algo contra o qual seu corpo se encolhia na ânsia de se
proteger.
Era um aviso, ela reconheceu, uma premonição que não podia ignorar,
pois vinha de dentro dela.
Fany se levantou e caminhou pelo quarto, inquieta.
Dizia a si mesma que aquilo era um absurdo, que não havia nada
acontecendo em seu quarto, ou no castelo, pelo qual ela tivesse de se sentir
fisicamente assustada.
Tratava-se apenas de sua imaginação.
Um pensamento súbito a desmentiu.
Fany soube, então, que se encontrava em perigo.
Era uma sensação forte e inquestionável.
Uma sensação que não poderia continuar negando.
Com uma firmeza que surgiu do instinto de sobrevivência, ela apanhou o
edredom que estava estendido sobre sua cama e um dos travesseiros.
Em seguida, com uma vela, a única que ela ainda não havia apagado,
deixou seu quarto.
Quase como se uma mão protetora a guiasse, Fany não se dirigiu ao
corredor onde ficavam os outros quartos do castelo, mas subiu a escadaria
que levava à torre.
Em seu topo havia um quarto que raramente era usado.
Diziam as lendas que aquele cômodo fora usado no passado como prisão
de um inimigo dos MacSteel, que fora capturado.
O prisioneiro ali vivera, empregando seu tempo em escrever poesias.
Sua obra fora publicada postumamente e reconhecida pelo mundo literário
Quando ainda era criança, Fany sempre se sentira atraída e fascinada por
aquele quarto, assim como seu irmão.
O irmão costumava dormir ali de vez em quando, alegando ter a esperança
de receber inspiração para escrever, assim como acontecera com o
prisioneiro no passado.
O irmão se esforçara muito, mas as rimas não lhe vieram à mente.
Fany, quando ficara mais velha, tentara o mesmo.
O pai, o que não seria motivo de admiração ou surpresa, elogiara seu
trabalho.
Não fizera, contudo, nenhum esforço para ajudá-la a publicar os
“encantadores” poemas.
Alegava que a filha precisaria escrever mais antes que pudessem reunir
sua obra em um livro.
Ao penetrar no pequeno quarto, Fany constatou que havia cobertores
sobre a cama, mas não lençóis.
Felizmente havia trazido seu edredom.
Ela fechou a porta e se sentou.
Tempos depois de ter sido usado como prisão, o espaço fora reformado e
a tranca substituída do exterior para o interior.
Como se uma força sobrenatural a impelisse, Fany se levantou e trancou a
porta, enrolando-se, em seguida, no edredom e ajeitando seu travesseiro
sobre a cama.
Deveria estar dormindo há uma hora quando um ruído a despertou.
Alguém estava tentando abrir a porta do quarto da torre, mas como ela a
havia trancado, seria impossível para quem quer .que fosse ali adentrar.
Passos pesados se afastaram, então, pela longa escadaria.
Fany agradeceu por ter sido salva de um horrível seqüestro por parte de
Hamish.
Ele invadira o castelo durante a noite a sua procura, e não a encontrando
em seu quarto, procurara por todos os demais cômodos possíveis.
Entrara em seu quarto, determinado a raptá-la.
Como não a encontrara, revirara todas as suas roupas e derrubara móveis.
Fizera o mesmo em quase todos os quartos do castelo.
Somente sua sensatez em obedecer uma sensível premonição que a
instruíra a se trancar na torre, impedira que Hamish a levasse embora de
seu lar.
Fany estremecia ao pensamento do que poderia ter acontecido caso
Hamish tivesse sido bem-sucedido em sua empreitada.
Ele a teria carregado para a casa onde vivia, que era velha e feia, e a teria
violentado antes que seu pai pudesse vir a sua procura.
— Ele é mau e repulsivo — ela falou consigo mesma.
Ninguém no castelo, por mais que se esforçasse, contudo, poderia provar
quem fora o causador de toda aquela confusão.
Hamish fora esperto o bastante para não se delatar, não fazendo nenhum
barulho nas imediações do quarto do pai de Fany.
— Como você foi inteligente, minha querida, em antecipar o que poderia
acontecer e se refugiar na torre — o pai a elogiara.
— O medo me incitou a tomar alguma providência — ela confessou. —
Não sei explicar como mas, de repente, eu soube o que fazer para me
proteger.
O pai se inclinou para beijar-lhe o rosto.
— Você sempre foi sensível e destemida desde pequena, e agradeço a
Deus por isso — o pai suspirou. — Obedeça sempre o que seu instinto lhe
dizer. É essa a forma com que Deus fala com você e a protege.
— É o que acredito e sou muito grata a Ele — Fany respondeu.
Um pensamento inesperado a preocupou, porém.
Indagava-se se o fato de ser sensível e destemida a salvaria, também, do
conde, como a salvara de Hamish.
Não se atrevera a rezar para que o casamento não se realizasse.
Sua missão de salvar os clãs era muito importante.
Mas como ela própria poderia ser salva?
Nas noites seguintes, em que continuara a se trancar na torre, a mesma
pergunta a perseguira.
Não só durante as noites, aliás, mas em cada minuto de cada dia.
A única coisa que a alegrou no dia anterior ao casamento foi a visita de
Yvonne MacSteel, após o chá, com as roupas que lhe fizera.
Fany se preocupara muito com a possibilidade de, no último momento, não
ter um vestido de noiva para usar, embora as costureiras estivessem
trabalhando dia e noite para aprontá-lo.
Outras mulheres da aldeia, inclusive, haviam colaborado com ela,
cuidando dos filhos das vizinhas, preparando-lhes as refeições e limpando
suas casas.
— São todas tão boas e prestativas — Fany comentara com Yvonne,
quando ela a informou do que estava acontecendo.
— Elas gostam da senhorita — Yvonne replicara. — E sentem-se
orgulhosas e gratas por sua decisão de se casar com o conde de forma a
evitar que as lutas e os roubos continuassem.
— Só espero que esses problemas realmente cessem por completo —
Fany anunciou.
No fundo de sua mente ainda restavam dúvidas de que seu casamento
tivesse o resultado esperado.
E se Hamish, por vingança, continuasse a se comportar como vinha
fazendo até agora?
Fany relatara seus temores ao pai, ao que ele respondera:
— Houve uma reunião com os membros mais velhos do clã, na qual ficou
estabelecido que eles teriam de controlar Hamish com o apoio dos demais
membros. Dessa forma, será impossível que Hamish continue a atacar tão
abominavelmente seus ditos inimigos.
— Espero que esteja certo, papai — Fany respondera, ainda temerosa.
Antes que Yvonne MacSteel chegasse, ela se deixara deprimir pela
perspectiva de seu futuro.
Como poderia suportar o provável desprezo do conde?
Se não a achasse bonita, poderia se envergonhar de tê-la por esposa.
Um orgulho próprio dos MacSteel há gerações cresceu, de repente, dentro
dela.
Esse orgulho lhe dizia que não importava o que vestisse, pois sempre
continuaria a ser a mesma pessoa.
Era, quer o conde acreditasse ou não, igual a ele em nobreza.
O clã dos MacSteel embora pequeno, era quase tão antigo quanto o dos
Mcbrara, e sua história fora de igual importância.
— Não permitirei que ele olhe com desdém para mim ou para meu povo —
ela afirmou.
Ao mesmo tempo sabia que desejava ser admirada como mulher.
Yvonne MacSteel chegou ao castelo numa carruagem aberta.
Na parte de trás do veículo estava, conforme Fany percebeu, uma pilha
enorme coberta por lençóis brancos.
Fany permaneceu calada enquanto Yvonne instruía os criados do castelo a
carregarem as roupas para o quarto de sua ama.
Estava ansiosa e um pouco apreensiva para ver o resultado final do
trabalho da francesa.
As roupas foram colocadas sobre a cama de Fany e Yvonne só retirou os
lençóis que as cobriam, depois que os criados se retiraram.
Em primeiro lugar, expôs o vestido de noiva, que provocou uma
exclamação de prazer em Fany.
Não era exatamente o que esperara, mas tinha de admitir que estava lindo
e imponente.
Yvonne o confeccionara em chiffon branco, e não em cetim como era
convencional em todos os casamentos.
Quando Fany o vestiu, sentiu-se como uma deusa grega.
O chiffon revelava toda a graça e esbeltez de seu corpo, tornando-a ainda
mais jovem.
A cauda, em vez de se originar dos ombros, provinha da cintura, e era
maravilhosa, toda em renda e bordados de pedrarias que brilhavam ao sol.
A tiara que deveria colocar sobre o véu, e que pertencera a sua mãe,
também fora forrada com o mesmo tecido.
— É encantador, Yvonne! — Fany exclamou. — Obrigada, muito obrigada.
— Mademoiselle mais parecerá uma sílfide quando subir ao altar. Eu
estava lendo um livro com gravuras dos deuses e deusas gregos e soube
imediatamente que era assim que deveria se vestir em seu casamento.
A modista exibiu, em seguida, o vestido de viagem de Fany, que também
era diferente do que esta antecipara, leve e verde como as árvores da
floresta.
O chapéu que lhe fazia conjunto continha três penas de avestruz e um laço
de fita, no mesmo tom, o prenderia ao queixo de Fany.
— É tão lindo! Parece que surgiu do próprio espírito das árvores!
— Esta — Yvonne apresentou uma peça que fora confeccionada com um
dos tecidos que pertencera à mãe de Fany — será sua camisola. Quem a vir
pensará se tratar de uma ninfa surgida do fundo do rio.
Foi assim que Fany se sentiu ao experimentá-la.
Por último, Yvonne lhe entregou um vestido para o dia, e se desculpou ppr
não ter tido tempo para aprontar mais nada.
— Restam ainda três vestidos que deverão estar prontos na segunda-
feira. Quanto aos demais, infelizmente terão de ser despachados para o
local onde a senhorita for passar sua lua-de-mel.
Fany enrijeceu, pois até aquele momento não cogitara em uma lua-de-mel.
Certamente seria em Edimburgo, onde o rei era esperado.
Não seria a lua-de-mel que ela esperara por toda a sua juventude e com o
homem que sonhara.
Mas, ao menos, em Edimburgo não se sentiria envergonhada diante da
nobreza ou entre as damas que estivessem acompanhando o rei.
— Obrigada! Obrigada! — ela tornou a agradecer. — Agora não tenho
mais tanto medo do que acontecerá amanhã.
— Todas nós rezamos enquanto costurávamos para que a senhorita
encontre a felicidade que bem merece.
Yvonne sorriu antes de continuar:
— Eu a encontrei embora ela viesse ao meu encontro de uma forma
inesperada. Imagine-se em meu lugar, nascida na França e tendo de deixar
pais, parentes e amigos para viver num país completamente desconhecido.
— E agora, você gosta de morar aqui? — Fany quis saber.
— Adoro morar onde meu marido estiver — Yvonne respondeu. — E ele
aprendeu a ser um pouco francês, também, segundo meus hábitos, e um
ótimo ... amante.
Fany se sentiu enrubescer diante da confidência da outra.
— Rezo, portanto, mademoiselle, para que encontre com seu marido tudo
o que encontrei no meu.
Fany baixou os olhos, pois sabia não ter resposta para aquele comentário.

O sol brilhava quando Fany acordou e ela rezou para que isso fosse um
bom presságio.
O pai marcara o casamento para o meio-dia.
Fora servido um desjejum especial, mas ela quase não conseguira comer,
pois só tinha pensamentos para o conde.
Ela o conheceria no altar, onde ele a estaria esperando.
Feio fato de a cerimônia ter sido marcada com tanta pressa, damas-de-
honra ficaram fora de cogitação.
Seu pai afirmara não serem necessárias, e quanto a ajudá-la a se vestir,
as mulheres do castelo realizaram esse trabalho com muita boa vontade,
excitadas que estavam com o acontecimento.
Fany desejaria estar sentindo ao menos a metade do entusiasmo que cias.
Rezou ardentemente para que não cometesse erros, que sua vida não sc
tornasse ainda pior do que antecipava.
Ao colocar o vestido de noiva, sentiu-se aterrorizada.
Dali a horas estaria deixando para trás todos que amava e tudo que lhe era
familiar.
Seria levada para outro castelo com um homem desconhecido. Diante
desse prospecto, ela tentou pensar apenas na cerimônia em si e no que
significaria para o povo.
Sabia que o pai ainda estava nervoso e preocupado, pois poderiam surgir
problemas entre os MacSteel e os Mcbrara quando a cerimônia chegasse no
fim.
Fany, entretanto, sentia que isso não aconteceria, já que Hamish falhara
na tentativa de seqüestrá-la e que dificilmente ousaria comparecer ii seu
casamento.
Porém, a situação poderia se revelar diferente do que ela esperava.
Quando faltavam exatamente cinco minutos para o meio-dia, Fany desceu
as escadas para o hall.
O véu, que sua mãe usara por ocasião de seu casamento, assim como
muitas outras MacSteel, cobria-lhe o rosto e caía sobre os ombros, até se
juntar à cauda do vestido.
A tiara de pedrarias brilhava ao sol como se fossem diamantes
verdadeiros.
A cauda do vestido estava sendo carregada por duas mulheres que
haviam ajudado Fany a se vestir.
Yvonne a estaria esperando junto ao altar.
Seu pai a esperava junto à carruagem guiada por cavalos brancos e não
falou uma palavra, até que estes se puseram em movimento.
— Estou muito orgulhoso de você, minha querida. Sei que concordou com
este casamento para me ajudar e para salvar o clã. Eles, assim como eu,
lhe seremos eternamente gratos.
Fany não respondeu.
Com seu buquê de rosas brancas, sentiu as mãos tremerem.
— Não será fácil, papai.
— Sei disso, mas sei também que você é uma garota de coragem e que
Deus a protegerá, como sempre fez.
O restante do trajeto transcorreu em completo silêncio.
Assim que se aproximaram da igreja, contudo, o som das gaitas de fole os
alcançaram.
A multidão de homens e mulheres de ambos os clãs era enorme.
Fany pôde ver através do véu, que a maioria deles trajava as cores do clã
dos Mcbrara, o que, sem dúvida, agradaria seu pai.
Assim que a carruagem parou, seu pai desceu e a ajudou a fazer o
mesmo.
Nesse instante, os acordes das gaitas soaram ainda mais altos.
Fany e o pai precisaram atravessar a multidão que se repartiu em duas
partes para lhes dar passagem.
Ela sabia que não deveria olhar para os lados e, portanto, baixou
levemente a cabeça enquanto o pai a conduzia.
As crianças atiravam urzes brancas e flores do campo sobre sua cabeça.
Diante da igreja, Yvonne a esperava para carregar a cauda do vestido.
A igreja não poderia estar mais repleta.
Os membros dos MacSteel, que haviam chegado mais cedo, tiveram de
ceder seus lugares aos convidados nobres do conde, o que Fany descobriu
mais tarde, pois não sabiam que haviam ocupado justamente o lado
reservado aos Mcbrara.
Houve ressentimento por parte dos MacSteel, é claro, mas que os
membros mais idosos de ambos os clãs sanara, transferindo-os para a ala
reservada à noiva.
Desconhecendo os problemas, Fany percorreu a nave da igreja, ainda sem
erguer a cabeça.
Adiaria o máximo possível o momento em que tivesse de enfrentar o olhar
do futuro marido pela primeira vez.
Quando ele se colocou a seu lado, ela só percebeu que era bem mais alto
do que esperava.
Continuou sem fitá-lo, deliberadamente.
Ouviu-lhe a voz apenas quando o pastor pediu que repetissem as jutas, e
achou-a profunda e agradável.
O conde falava sem o menor sotaque escocês.
A cerimônia foi rápida de acordo com a recomendação de seu pai.
Quatro pastores realizaram os serviços devido à importância dos noivos,
sendo que dois pertenciam à própria igreja e dois haviam sido enviados pelo
conde.
Os noivos se ajoelharam para receber as bênçãos e no momento de se
levantarem, o conde ofereceu o braço a Fany.
Os dois caminharam juntos até o local onde assinariam o livro de registros.
Ao erguer o véu, Fany sentiu que sua mão tremia.
No momento em que os noivos se prepararam para deixar o altar, os
gaiteiros começaram novamente a tocar.
Dessa vez, Fany pôde olhar claramente para cada rosto fixo no seu.
Na saída da igreja, notou que os gaiteiros eram em número de seis: Irês
vestidos com as cores dos MacSteel e três com as cores dos Mcbrara.
Os músicos os precederam até a carruagem que os levaria de volta ao
castelo, onde seu pai mandara que erguessem a marquise, que, embora
aberta dos dois lados, serviria de proteção caso chovesse.
F.m primeiro lugar os noivos receberam os convidados mais importantes,
mas em seguida cada um dos membros do clã fez questão de lhes apertar
as mãos.
Os cumprimentos levaram cerca de duas horas, e a música das gaitas de
fole os acompanhou durante todo o tempo.
Já eram quase três horas quando o pai de Fany sugeriu que os noivos
cortassem o bolo.
— É melhor que cortem logo o bolo para que a festa e as danças se
iniciem e vocês possam comer alguma coisa sem serem perturbados.
Fany e o conde se dirigiram para a mesa onde o bolo fora colocado, e ele
o cortou com sua espada.
Os criados, em seguida, se encarregaram de dividi-lo em pequenas
porções e em servi-lo.
Todas as jovens o saboreariam com as mentes sonhadoras em seus
futuros maridos.
Fora arrumada uma mesa, no fundo da marquise, para vinte pessoas.
Além dos noivos, ali se sentariam o pai de Fany, os membros mais idosos
de ambos os clãs e os pastores que haviam realizado o matrimônio.
Fany olhou para o marido, pela primeira vez, quando se sentou.
Ele não era nem um pouco parecido com a imagem que fizera.
Era mais jovem e seu rosto não era cruel. Estava sorridente, aliás, por
causa de algum comentário que seu pai fizera.
Parecia um viking saído de um de seus livros.
Fany não fazia idéia de que o marido também a houvesse fitado, surpreso,
quando ela entrara na igreja.
Ele a imaginara como uma mulher alta e gorda, em vez disso era pequena
e magra.
Chegara a pestanejar com medo de que se tratasse da noiva errada.
No momento, então, em que Fany erguera o véu para assinar o livro de
registros, ele a achou a mais linda das criaturas.
Todos os seus receios haviam sido infundados.
A esposa desconhecida era definitivamente adorável, embora parecesse
muito tímida.
Com toda a sua experiência com relação às mulheres, o conde jamais
encontrara uma que o temesse.
Estava acostumado a ser alvo da cobiça das mulheres, que o fitavam
como se estivessem convidando-o com os olhos.
Mesmo depois da cerimônia religiosa e do recebimento dos cumprimentos,
enquanto comiam, ela ainda parecia sentir medo dele.
Isso nunca lhe acontecera antes.
Sabia que qualquer mulher escocesa daria tudo para se tornar sua esposa,
não por sua pessoa, mas devido ao título, a sua posição e à história do clã.
Em Paris, tanto como em Londres, algumas cortesãs chegaram a lhe
disputar o afeto.
Atiravam-se em seus braços antes mesmo que ele lhes pedisse.
Enquanto comiam, Fany não lhe dirigiu a palavra, nem o encorajou a tomar
a iniciativa.
O conde percebia que ela estava com medo e não sabia o que fazer para
desanuviar a situação.
Seria medo de estar casada com um desconhecido, ou medo dele como
pessoa?
Sua vontade de lhe falar era imensa, mas com tantos convidados ao redor,
a conversa teria de ficar para mais tarde.
Enquanto isso, o povo se deliciava com as carnes e bebidas
generosamente servidas.
O baile já havia começado.
Os jovens mais experientes do clã apresentavam a dança das espadas e
eram efusivamente aplaudidos.
A certa altura da festa, o líder dos MacSteel convidou os membros dos
Mcbrara a tomarem parte nos jogos e brincadeiras.
Fany sabia que as festividades se estenderiam até o anoitecer.
Assim que terminou de comer, ela se levantou e se dirigiu para o castelo.
Já era hora de trocar o vestido de noiva pelo traje de viagem.
Todos os homens se levantaram à sua saída.
— Não demoro — ela murmurou, sem coragem de fitar o noivo, que por
sua vez também não tinha coragem de abordá-la.
Dona de tanta beleza, ela já deveria ter ouvido galanteios e recebido
propostas de casamento de muitos outros homens de seu clã, o conde
pensou.
Chegou a cogitar se algum homem a teria beijado, mas a idéia lhe pareceu
improvável.
Havia uma aura de pureza e inocência ao redor dela que ele jamais vira
em outra mulher.
No castelo, Fany trocava de roupa com a ajuda de Yvonne.
Uma das criadas comentou que o verde não era uma cor que trazia sorte.
— Para madame la comtesse trará — Yvonne a interrompera. — Ela
nasceu em fevereiro e sua cor de sorte é a verde, como as esmeraldas e as
florestas.
— Espero que tenha razão — Fany sussurrara.
Ao se olhar no espelho Fany não conseguiu acreditar que se tratava dela
mesma.
O vestido lhe assentara com perfeição, assim como o chapéu.
Nunca se sentira tão elegante em toda a sua vida.
— Jamais poderei lhe agradecer o suficiente — ela beijou Yvonne antes
de sair.
— Mandarei mais três vestidos para o castelo do conde, na manhã da
segunda-feira, que é o dia em que partirão para Edimburgo.
Fany não fora informada sobre isso.
Talvez Yvonne houvesse escutado algum boato por parte dos criados do
conde.
Ao sair do quarto e começar a descer as escadas, Fany viu que o pai e o
conde a esperavam no hall.
Antes de subir na carruagem, Fany se despediu do pai com um beijo, e
apertou a mão de cada um dos anciãos do clã.
— Cuide-se, papai — ela tomou a beijá-lo —, e escreva-me, quando eu
viajar para Edimburgo, contando-me as novidades.
— Escreverei, minha querida, e acho que só notícias boas, pois agora que
está casada, seu marido a protegerá.
Do jeito que ele falou, Fany entendeu que se referia a Hamish.
Não vira sinal dele durante o casamento e rezava para que, após o
fracasso de seu plano de raptá-la, Hamish tivesse desistido da idéia.
Mas nunca se podia ter certeza de nada que dissesse respeito a Hamish.
Fany subiu na carruagem, seguida pelo conde, sob uma chuva de arroz,
pétalas de rosas e urzes brancas.
A multidão, na sua maioria criados do castelo, acenou e assobiou
enquanto os noivos se afastavam.
Na saída da propriedade, os cavalos tiveram de diminuir a marcha para
que os noivos pudessem acenar para os convidados.
Aos gritos de “felicidades” e de “Deus os abençoe”, as pessoas atiraram
arroz e pétalas de flores sobre a carruagem.
Só depois que estavam fora do alcance da vista do povo, Fany sacudiu a
cabeça a fim de limpar o chapéu.
— Ainda bem que terminou — o conde comentou —, mas sem dúvida foi
um casamento que ninguém esquecerá.
— É o que também penso — Fany respondeu.
O restante do caminho foi feito em silêncio.
Fany não sabia o que dizer, e o conde não podia evitar o pensamento de
que a esposa procurara se sentar o mais distante possível dele.
Também não o fitava.
Seu perfil era perfeito, ele percebeu, com o nariz pequeno e reto e o
queixo delicado como o de uma escultura.
Ele pensou que, na primeira oportunidade, mandaria pintar um retrato dela
para que o quadro fosse colocado junto às outras condessas de Braradale.
— Não sei se já te contaram — ele falou de repente —, que o rei está
embarcando em Greenwich hoje e que deverá chegar em Firth of Forth na
quarta-feira?
— Não, ninguém me contou — Fany respondeu com um fio de voz.
— Isso significa que teremos de partir na segunda-feira. Achei que seria
mais rápido e confortável se fôssemos de navio.
Fany assentiu com a cabeça.
— Já comuniquei a todos os envolvidos que estarei levando minha esposa
também. Só espero que Vossa Majestade não se sinta ofendido, pois foi
impossível comunicá-lo, em tempo, que eu deveria me casar.
Como se acreditasse que a esposa não tivesse condições de entender, o
conde explicou:
— O rei sempre exige ser o primeiro a saber de tudo o que acontece.
Nada lhe dá maior prazer do que uma confidência.
— Acha que o rei ficará zangado? — ela indagou, ao notar que o conde
esperava por uma resposta.
— Talvez, mas acabará compreendendo que nós não tivemos escolha.
— Ou nos casávamos ou seríamos casados — ela acrescentou.
Por ser o tipo de comentário que o conde nunca esperaria que ela fizesse,
acabou rindo.
Aquela mudança de atitude em Fany era muito mais animadora do que seu
silêncio ou suas vibrações de medo.
Chegou a cogitar em indagar o motivo de tanto medo, mas achou que
ainda era cedo demais para isso.
Isso poderia piorar as coisas e não era o que ele desejava.
Como a carruagem era puxada por quatro cavalos, não demoraram a
chegar em seu castelo.
Fany já o vira antes, mas somente por fora.
Conforme se aproximavam pelo caminho ladeado de árvores, ela o achou
ainda maior do que imaginara a distância.
Os noivos não foram recebidos com música, pois os gaiteiros, segundo
ordens do conde, haviam ficado na festa.
Assim que entraram, ele comentou:
— Talvez queira descansar até o jantar.
— Sim, realmente estou um pouco cansada após apertar as mãos de
tantas pessoas.
Uma das criadas, uma senhora de certa idade, levou Fany até o quarto.
Ao ver o lugar que o conde lhe havia reservado, sentiu-se impressionada.
Era imenso e possuía três janelas, todas dando para o jardim e para o mar.
Ficava no primeiro andar, próximo à sala de estar.
A criada explicara que o quarto fora ocupado por todos os condes e
condessas de Braradale, em outros tempos.
Seu jeito de falar fez com que Fany estremecesse e olhasse
apreensivamente para a cama de quatro colunas.
Era óbvio que a criada imaginava que ela o conde fossem partilhá-lo, mas
como isso seria possível, se ela nunca vira o marido até aquele dia?
Ele se tornara seu marido somente por não haver outro meio de salvar os
clãs.
— Vossa Alteza costuma jantar às sete e trinta. — A criada ajudou-a a se
despir. — Prepararei seu banho pouco antes das sete.
Fany agradeceu e tentou não pensar no que a esperaria mais tarde.
Por não ter conseguido dormir na noite anterior, ela cochilou algum tempo
e sonhou com o rio, a quem sempre entregara todas as suas preocupações.
Despertou com a criada puxando as cortinas e duas outras trazendo uma
pequena banheira, que foi depositada em frente à lareira.
A água foi perfumada com essência de violetas, o que a reanimou.
Fany colocou o vestido de noite mais simples que trouxera, pois estava
reservando o mais sofisticado para quando o rei chegasse.
Assim mesmo, estava adorável ao chegar à sala de estar, onde o conde a
aguardava.
Ele lhe pareceu ainda mais bonito em traje de noite do que estivera cm seu
kilt, que o transformara em uma espécie de herói saído de um livro de
história ou de aventura.
Fany não imaginava que, agora que a podia ver mais claramente, o conde
também estivesse deslumbrado com sua beleza e com a cor de seu cabelo.
Pensou em elogiá-la, mas se deteve com receio de embaraçá-la, limitando-
se a perguntar se estava à vontade e se fora atendida em tudo o que
necessitava.
Quando o jantar foi servido, o conde a conduziu para a sala de jantar.
Seu tamanho e imponência a encantou, para em seguida, preocupá-la.
O fato de o castelo de seu pai ser muito menor e menos rico poderia dar a
impressão ao conde de que fora condescendente ao aceitar se casar com
uma MacSteel.
Como seu pai poderia competir com a grandeza e luxo do castelo Brara e
com a vasta propriedade do conde?
A comparação fez com que Fany erguesse o queixo, pois nunca se
rebaixaria ao marido, por mais importante que pudesse parecer.
No que dizia respeito ao sangue, eles eram iguais.
Por não saber que tipo de tema deveria abordar, o conde indagou a
respeito dos jogos do ano anterior.
Fany já ouvira conversas desse tipo mais de mil vezes, mas não deu
demonstração de enfado.
— Há um rio em minhas terras — o conde informou, quando ela comentou
sobre o concurso de pesca de salmão —, mas como estou afastado da
Escócia há muito tempo, não sei se pode ser comparado ao seu.
— Voltará para o castelo depois da visita do rei? — Fany indagou
inesperadamente, fazendo com que o marido hesitasse.
— Tenho pensado muito nisso e acho que é o que devo fazer. Meu clã se
sente negligenciado após a morte de meu pai e devido a minha prolongada
ausência.
— É sempre isso que acontece quando o líder não está entre seu povo —
Fany murmurou. — Como não há ninguém para ditar as ordens, nada é feito
a contento. As pessoas não se esforçam para melhorar seu trabalho.
O conde sorriu.
— Acho que estou sendo reprovado e não era isso que esperava.
— Não foi minha intenção — Fany se apressou a se desculpar. — Apenas
comentei que com tanto trabalho a fazer, e sem um líder ...
— Sempre fui ciente de minha responsabilidade como líder — o conde
confirmou. — Nos últimos anos, contudo, fui tão feliz com minha vida na
corte, que não tive vontade de voltar para casa.
E, agora que estava casado, acharia seu castelo, sem dúvida, ainda mais
enfadonho, Fany pensou.
Naquele instante, o gaiteiro entrou na sala e rodeou a mesa por três vezes,
tocando a marcha nupcial, primeiro, e depois o grito de guerra dos Mcbrara.
Tocou tão bem que enquanto recebia o tradicional copo de uísque das
mãos do conde, Fany o aplaudiu.
O homem se inclinou numa reverência e quando ergueu o copo num
brinde o fez não para o conde, mas para ela.
— Vejo que já fez uma conquista. Jock sempre foi violentamente contra os
MacSteel, mas já que a aceitou como minha esposa, só espero que todos os
demais membros do clã façam o mesmo.
— Eles o farão! — Fany exclamou com firmeza. — Casamo-nos por causa
deles, e eles agora não podem nos decepcionar.
— Espero que tudo corra bem, mas assim mesmo acho que precisarei
vigiá-los, enquanto você continuará a se esforçar por agradá-los como fez
agora.
— Espero que consiga.
Fany baixou os olhos e mais uma vez o conde percebeu que ela sentia
medo.
Voltaram para a sala de estar, onde o conde lhe mostrou livros sobre a
Escócia, que julgou fossem agradá-la.
O conde lhe contou, também, sobre tesouros que haviam sido encontrados
nas terras dos Mcbrara.
Fany se mostrou interessada, mas ele, observador como era, notou que
enquanto folheavam juntos os livros, ela cuidava para que seus braços não
se tocassem.
— Foi um dia longo e cansativo. — Ele consultou o relógio de parede.—
Acho melhor irmos dormir.
O conde a levou até a porta do quarto e abriu-a para que Fany entrasse.
— Não demoro — ele avisou.
Fany fechou a porta e se encostou nela ela, deixando escapar um
profundo suspiro.
O conde, entretanto, que pensara que teria de fazer um grande sacrifício
para fazer amor com sua esposa, agora mal podia esperar para tê-la nos
braços.
Por ser um escocês, ele era um pessoa muito sensível, com facilidade
para entender os outros.
Nunca precisara de referências de patrões anteriores, quando resolvia
contratar um serviçal.
Bastava conversar com ele e já sabia o tipo de pessoa que era.
O medo de Fany não lhe passara despercebido desde a cerimônia até a
hora do jantar.
Estava até cogitando se não seria mais sábio deixar de procurá-la aquela
noite, e esperar até que viessem a se conhecer melhor.
Ao mesmo tempo, sua recusa em dormir no mesmo quarto que ela,
poderia parecer um insulto.
Era algo que nenhuma noiva esperaria em sua noite de núpcias.
— Precisarei ser gentil com ela — o conde falou consigo mesmo.
Bebia muito pouco como regra de conduta, algo que aprendera ao
observar as desagradáveis bebedeiras do rei e dos súditos, que o imitavam.
Naquele dia, porém, quando atravessara os limites da propriedade em
direção às terras dos MacSteel pensara que naquela noite, em especial,
necessitaria da ajuda e do consolo do álcool.
Durante a cerimônia e durante o jantar reconhecera que a esposa era
muito diferente do que antecipara e que, portanto, o álcool poderia ser
esquecido.
Quase nem chegara a tocar na taça de champanhe que Donald lhe servira.
O que lhe parecera um doloroso dever tornara-se uma encantadora
aventura, nova, excitante, inesperada.
Qual o homem casado ou solteiro, que não se sentiria excitado diante de
uma jovem tão linda quanto a condessa de Braradale?
O conde se dirigiu ao seu próprio quarto, que estava vazio, já que ele dera
ordens ao valete para não esperá-lo aquela noite.
Ele foi até a janela e puxou as cortinas.
Nunca dormia, quando se encontrava no castelo, sem olhar para o céu e
para o mar.
De vez em quando a lua surgia por trás das nuvens escuras e lançava
raios prateados sobre as charnecas, em torno da baía.
Outras vezes, quando só havia escuridão, seus ouvidos captavam o rugido
das ondas e ele tentava imaginá-las se quebrando na praia.
Naquela noite, as estrelas estavam excepcionalmente brilhantes e o mar
todo prateado.
De repente, ele se sentiu enrijecer.
Alguém se movia pelo jardim, alguém que só poderia ser um inimigo para
se esgueirar pelas sombras daquela forma.
Ao ver uma silhueta esguia passar diante de um arbusto, ele suspirou de
alívio.
Era sua esposa.
Fany, como o conde, por achar embaraçoso que uma criada ficasse a sua
espera naquela noite, a dispensara do serviço.
— Tem certeza que conseguirá se despir sozinha, milady? — a mulher
indagara.
— Sempre fiz isso sozinha em minha casa, por isso não se preocupe.
Assim como o marido fizera, Fany fora até a janela e abrira as cortinas.
Precisava de ar, de muito ar.
Não conseguia nem olhar para a cama de casal, tanto era seu medo.
Ao contemplar as estrelas no céu e as árvores no jardim, ela sentiu que
precisava sair.
A natureza a ajudaria e a confortaria.
Se estivesse em casa, teria ido até o rio, mas quem sabe, ela também não
encontraria aquele que o conde mencionara?
Sem pensar duas vezes, movida pelo pânico, Fany saíra correndo pelas
escadas, para fora do castelo.
Movendo-se entre as sombras das árvores, Fany acreditava que mais cedo
ou mais tarde acabaria encontrando o rio, o que logo aconteceu, pois depois
de algum tempo ela reconheceu o som de águas.
Viu, então, o que jamais esperara: uma cascata.
Era tão linda ao luar que Fany ficou diante dela como que hipnotizada.
As águas caíam de uma altura de cerca de doze metros, corriam sobre as
pedras e continuavam em direção ao mar.
Como o mês de julho fora demasiado chuvoso, a cascata estava forte e
violenta e certamente carregaria para o mar, aquele que por desventura
caísse em sua margem.
Fany cogitou, de repente, que aquela poderia ser sua chance de escapar
ao destino.
Que outra forma melhor de morrer ela poderia encontrar, se não nas águas
de um rio?
— Se fizer isso, todos os membros de nossos clãs pensarão que fui eu
quem a matou — uma voz grave soou atrás dela.
Fany quase deu um salto. Devido ao ruído da cascata, não percebera os
passos se aproximando, mas era o conde quem a fitava, como um deus ao
luar.
— Como adivinhou meus pensamentos?
— Sou escocês, você esqueceu? — ele respondeu com um sorriso.
Fany baixou os olhos e suspirou.
— Estou com medo.
— Sei disso. Percebi que estava com medo assim que a vi ao meu lado no
altar e quando coloquei a aliança em seu dedo. Tive ainda mais certeza
disso durante o jantar.
— Não posso evitá-lo — ela confessou.
— O que está tentando me dizer é que desejava se casar com alguém a
quem amasse, não é? Que acreditava que o amor um dia aconteceria em
sua vida e que você seria feliz em sua glória.
Dessa vez ela conseguiu encará-lo.
— Como pode saber a respeito dos meus sonhos?
— Porque foi isso que sempre esperei que também acontecesse comigo
— ele explicou.
— Então você não queria se casar comigo?
— Não. — Ele foi sincero. — Mas quando te encontrei, vi que era
completamente diferente do que eu imaginava.
— Eu também fiquei surpresa. Nunca esperei que você se parecesse com
um viking.
— Tantos já me disseram isso, que fui forçado a acreditar. E, quanto a
você, já disseram que se parece com um espírito das florestas ou uma ninfa
do rio?
— Como adivinhou? — Fany arregalou os olhos.
— Porque é a verdade.
Os dois se calaram por alguns instantes até que o conde murmurou:
— Acho que não poderíamos ter encontrado um lugar melhor para
iniciarmos nossa vida como marido e mulher. Deixemos que nossa intuição
nos ajude a nos conhecermos para que, mais tarde talvez, possamos iniciar
nossa vida conjugal como ambos desejaríamos que fosse.
— Quer dizer que não dormiremos juntos? —Fany indagou num fio de voz.
— Não até que você queira, ou melhor, não até que nos amemos com o
amor que sempre almejamos encontrar.
Fany apertou as mãos uma contra a outra.
— Se esperarmos, não terei mais medo de você e tudo poderá ser lindo
entre nós.
— É o que devemos esperar e rezar para que aconteça — o conde
afirmou.
Fany olhou para o marido e lhe sorriu, pela primeira vez.
— Obrigada, obrigada por ser tão compreensivo.
— É o que sempre tentarei ser, mas você terá de me ajudar.
Fany olhou mais uma vez para a cascata.
— Se prestar atenção, ouvirá sua voz — o marido sussurrou. — Ela falará
com você assim como costumava falar comigo quando criança.
— O que ela dizia? — Fany quis saber, interessada.
— Contava sobre as aventuras que me esperavam no mundo lá fora.
Quando cresci, passou a aconselhar que eu me preparasse para elas. Dizia
que se eu seguisse sua orientação, nunca me sentiria desapontado.
— E você se sentiu? — ela indagou, ansiosa.
— Não. Adorei cada momento de cada situação que vivi desde que deixei
a Escócia para sair pelo mundo, digamos, para explorá-lo.
Fany entendeu que ele estava se referindo ao tempo em que lutara no
exército ao lado de Wellington, na Espanha, e mais tarde nas batalhas de
Toulouse e Waterloo.
A excitação que a lembrança provocara no conde chegava a ser palpável.
— Agora estou de volta, em meu lar — o conde prosseguiu. — Como
você, eu temi que a aventura e o prazer estivessem terminados para mim e
que minha vida futura seria monótona e prosaica. Eu estava enganado.
O conde olhava para Fany enquanto falava.
— Eu rezarei com toda a minha devoção para que, como você espera,
nosso casamento seja coroado de amor e felicidade — Fany afirmou,
emocionada.
— Algo muito forte, dentro de mim, está me dizendo que será — o conde
respondeu. — Mas, que para isso, não deveremos apressar o destino.
Teremos de esperar até que os deuses nos dêem aquilo que estamos
buscando.
Ele começou a caminhar enquanto dizia as últimas palavras.
— Agora a levarei de volta ao castelo e a seu quarto. Não quero que
apanhe um resfriado. Passaremos, amanhã, um dia o mais tranqüilo
possível, a fim de descansarmos e nos prepararmos para a viagem a
Edimburgo, na segunda-feira.
Fany o acompanhou através do bosque e depois através do imenso jardim.
Era difícil acreditar que o que acabara de acontecer fosse real e que ela
não estivesse sonhando.

VI

Na manhã da segunda-feira, ao despertar, Fany como passara a fazer


antes de deitar e assim que se levantava, foi até a janela saudar o início do
dia.
A primeira coisa que lhe chamou a atenção foi a presença de um
majestoso iate, ancorado na baía.
Vestiu-se o mais rápido que pôde e desceu correndo as escadas que
levavam à sala de refeições, onde já se encontrava o conde, esperando-a
para que tomassem o desjejum juntos.
— Viajaremos no velho iate que pertenceu ao meu pai, que infelizmente é
lento e não muito confortável. Não havia pensado nisso até agora, mas
talvez fosse recomendável que eu mandasse construir um novo.
— Se fizer isso, poderemos visitar Orkney e as ilhas Shetland — Fany
sugeriu.
O conde levantou o rosto com ar surpreso.
— Está me dizendo que isso te daria prazer?
— Conheço a história de Kirkwall e acho-a muito interessante — Fany
replicou. — Ouvi falar, também, que as ilhas recebem pássaros migrantes
de todas as partes, pássaros que jamais teríamos oportunidade de admirar
aqui no continente.
O conde sorriu para a esposa, que se sentara do outro lado da mesa.
— Então está decidido. Mandarei construir um novo iate, bem grande e
bonito.
Fany riu com uma alegria que há muitos dias não sentia.
— Espero que não esteja me reprovando, sem me dizer, por eu ter essas
idéias tão extravagantes.
Quando subiram a bordo do iate, o conde se admirou pela espontaneidade
com que ele e Fany estavam se tratando.
Não sentia mais aquelas vibrações de medo emanando da esposa, nem
percebia mais aqueles gestos timidos do dia do casamento.
Ela, agora, todas as vezes em que se dirigia a ele era com sorrisos e
palavras agradáveis.
Com sua experiência em viagens, o conde descobrira que a maioria das
mulheres enjoavam com o balanço das ondas, tornando-se caladas e mal-
humoradas. Seus temas de conversa, quando se encontravam, giravam
apenas em torno do amor.
Fany, ao contrário, quisera explorar o navio inteiro, assim que
embarcaram, interessada em tudo o que o conde explicava, e mesmo
quando alcançaram o alto-mar e o balanço se intensificou, ela não deu
demonstração de desagrado. Ao contrário.
Talvez não houvesse ninguém no mundo que a convencesse a deixar o
convés enquanto não se satisfizesse de admirar o azul do céu se fundindo
no azul do mar.
Durante as refeições, que eram lentamente saboreadas e entremeadas por
conversas animadas, o conde descobriu que ela se interessava
genuinamente em saber todos os detalhes possíveis de sua participação
nas batalhas, durante a guerra.
Interessava-se, também, e sobremaneira em ouvir histórias de suas
viagens por outros países.
Em Londres, todas as mulheres com quem o conde mantivera relações
amorosas, nem queriam ouvir falar sobre Napoleão Bonaparte, uma vez que
não mais constituía uma ameaça.
Acima de tudo e antes de tudo, desejavam falar sobre si mesmas, e sobre
ele, é claro.
Conversas que invariavelmente terminavam da mesma forma: com ofertas
ostensivas e despudoradas.
Com Fany, ele se viu usando o cérebro, o que raramente ocorria diante de
outras mulheres, a fim de se lembrar de aventuras relacionadas a costumes
estrangeiros e a fatos inéditos presenciados longe da Escócia.
Fany lhe pediu uma descrição exata e minuciosa de Paris, um lugar que a
atraía, talvez um pouco mais do que os outros.
Quando finalmente terminaram de falar sobre a cidade-luz, o conde
ressaltou:
— Pensei que tivesse de levá-la para Paris para comprarmos seu enxoval,
mas você sempre se veste com tanta elegância e beleza, que acho que a
viagem, ao menos por enquanto, seria desnecessária.
— Agradeça a uma jovem francesa por isso — Fany respondeu, satisfeita
pelo fato do marido ter reparado em seu vestuário.
Ele mal pôde acreditar quando Fany lhe contou sobre Yvonne, e sobre
como a ajudara com os vestidos, chegando a solicitar a colaboração de
outras mulheres do vilarejo, que conheciam a arte da costura.
— Você sempre consegue me surpreender! — o conde sorrira.
Quanto mais falava com Fany, mais ele percebia que se tratava de uma
jovem culta e fina, além de bonita e adorável.
A chegada a Edimburgo aconteceu no final da noite da terça-feira, quando
foram informados de que o rei George se atrasaria um pouco devido a um
súbito interesse em visitar os pontos turísticos à noroeste de Holy Island, a
quatro léguas de Emanuel Head.
No cais, onde ancoraram, havia uma carruagem à espera dos recém-
casados, que os levaria ao castelo Dalkeith, onde foram recebidos pelo
secretário do duque de Buccleuch.
— Espero, milorde, que os quartos que foram destinados a Vossas Altezas
sejam de total agrado. Ao reservar, inicialmente, os quartos para os
hóspedes, havia lhe destinado um no primeiro andar, próximo ao de Sua
Majestade. Não sabia que não estaria sozinho como das outras vezes.
O homem fez uma pausa como se quisesse que o conde tecesse algum
comentário, até mesmo o elogiasse por sua especial deferência. Como ele
nada comentasse, prosseguiu:
— No entanto, como milady necessitará de um quarto de vestir, eu lhes
destinei os quartos localizados no segundo andar, que acabam de ser
redecorados.
— Estou certo de que nos sentiremos muito confortáveis — o conde
agradeceu.
Algo que a conversa o fez lembrar de imediato era que ainda não havia
revelado ao rei a súbita necessidade de seu casamento.
O rei chegaria na manhã seguinte e todos os súditos, que já se
encontravam instalados no palácio, se locomoveriam até Firth para
recepcioná-lo com todas as honras cabíveis.
Ficou combinado que a comitiva de Dalkeith esperaria Sua Majestade em
um dos navios da frota.
À uma hora da tarde, seria dado um sinal confirmando a aproximação do
iate em que se encontrava o rei.

Assim que o escudo real foi avistado ao alto das velas enfunadas, cada um
dos navios armados e dispostos em semicírculo, soltou fogos de artifício.
A multidão que o esperava em terra era imensa, e aumentava a cada
minuto.
Pouco antes das duas horas começou a chover forte e persistentemente,
sem contudo dispersar a multidão, ou afugentar carruagens e pequenas
embarcações que tentavam chegar o mais perto possível do iate real.
Em certo momento, a tempestade se tornou tão violenta, que o rei foi
aconselhado a adiar o desembarque para o dia seguinte.
O desapontamento provocou um murmúrio geral.
Um grande número de pessoas, porém, entre as quais sir Walter Scott,
conseguira subir a bordo do Royal George.
O famoso escritor ficara muito aborrecido com essa inoportuna interrupção
da agenda estabelecida.
A única coisa que teve o poder de animá-lo foi o relato das palavras que o
rei lhe dirigira:
— Sir Walter Scott! O homem que mais desejo ver em toda a Escócia.
Mandem-no subir.
Ao se encontrarem, Walter Scott fez um discurso de boas-vindas e
entregou a Vossa Majestade um presente das damas da Escócia.
Antes de tudo, ele se ajoelhou em um joelho e beijou a mão do rei.
O rei prometeu que usaria o mimo, que era uma insígnia, e ordenou, em
seguida, que trouxessem licor de cerejas, com o qual ele desejava brindar à
saúde de sir Walter.
O rei recebeu, além do escritor, muitas outras pessoas durante a tarde.
O conde, entretanto, preferiu não se aproveitar de sua amizade com Sua
Majestade, para se infiltrar entre os muitos que ainda não tinham tido a
oportunidade de conhecê-lo em pessoa.
O que não deixou de observar, também, era que todos que insistiam em
subir a bordo, terminavam ensopados até os ossos.
Não havia razão, ele pensou, em deixar que Fany se molhasse.
A certa altura, a multidão começou a diminuir.
— Creio que seria melhor se voltássemos ao palácio e aguardássemos até
amanhã — o conde aconselhou a Fany.
— A chuva está realmente muito forte — ela concordou. — Sinto tanta
pena de toda essa gente que esperou por seu rei por horas e horas apenas
para ser impedida de vê-lo.
O conde sentiu a sinceridade das palavras da esposa, que provara mais
uma vez ser uma criatura nobre e sensível.
Conduziu-a, então, até a carruagem que os esperava para levá-los de volta
ao palácio, onde jantaram com os demais hóspedes.
Por estarem muito cansados, os dois se desculparam e se retiraram, em
seguida, para seus aposentos.
Os quartos localizados no segundo andar eram muito bonitos e
confortáveis, embora menores do que os outros do primeiro andar.
Suas janelas davam para os jardins, no fundo do palácio.
Havia uma porta de comunicação entre os dois reservados ao conde e
condessa de Braradale, que poderia ser mantida aberta ou fechada
conforme o interesse do casal.
O conde, porém, sequer abriu-a, preferindo se despedir da esposa na
porta principal, que ligava o quarto ao corredor.
Enquanto lhe desejava uma boa-noite, ele não conseguia parar de fitá-la e
de pensar no quanto estivera encantadora durante o jantar.
Não apenas bonita, mas afável e inteligente, mantendo uma conversação à
altura dos demais componentes da mesa.
Entre os hóspedes havia vários nobres e estadistas com suas respectivas
esposas.
O conde percebera, com grande satisfação, que Fany não se mostrara
tímida ou embaraçada.
Conversara com todos de igual para igual.
Chegara a fazer os outros rirem da mesma forma que ele e ela riram
durante a viagem no iate que pertencera a seu pai.

A manhã seguinte os surpreendeu com um céu azul e um sol brilhante,


que apagara todos os vestígios da chuva.
Dizia-se no palácio, que o rei viria diretamente para a cidade.
O monarca, sem dúvida, estava ciente de que era necessário saudar todos
os membros de seu clã, homens, que se fossem ignorados, poderiam lhe
causar uma série de problemas.
A ordem de marcha fora publicada em todos os jornais matutinos.
O conde estivera certo em suspeitar de que os marechais teriam
dificuldades em impedir disputas indignas entre os clãs.
Os mais importantes líderes foram efusivamente aclamados.
Todos eles, assim como o conde, se apresentaram de forma altiva e
imponente, cada um com suas penas de pavão presas aos chapéus.
Os soldados montados, que desfilariam à frente da carruagem real, para
lhe abrir passagem, portavam seus uniformes de gala.
O oficial encarregado da disposição de lugares durante a parada precedeu
lorde Lyon, ministro das Armas, que por sua vez foi seguido pelo lorde
guardião do palácio.
Estes e vários outros nobres oficiais estavam acompanhados por
servidores e mensageiros, vestidos com tabardos nas cores vermelha e
ouro.
Tabardo era o nome dado aos capotes que usavam com mangas
compridas e capuz.
A carruagem do rei era aberta e puxada por seis magníficos baios puros-
sangues.
O rei estava sentado sozinho num dos bancos, de frente para o duque de
Dorest e para o marquês de Winchester, cujas costas estavam voltadas para
os cavalos.
Os escudeiros que assessoravam o conde de Erroll, que também
ostentava o título de lorde guardião do palácio, exibiam suas capas
espanholas que eram confeccionadas na cor roxa, com debruns em
dourado.
O cavaleiro mestre do cerimonial usava uma sobrecasaca prateada e
amarrada com um cordão dourado, calções bufantes e um colete branco,
além de botas marrons.
A parada em geral estava impressionante, em especial devido ao brilho e
esplendor dos uniformes vermelhos e cor de ouro, que Fany se questionou
se alguma vez teria visto algo tão fascinante.
Cada janela, cada sacada de cada prédio ou casa estava lotada de
espectadores ansiosos.
Outros haviam assumido seus postos equilibrando-se sobre telhados, ou
dependurados em chaminé ou trepados em frágeis andaimes.
Com os tambores e cornetas da banda, mais os aplausos, gritos e
assobios e ainda as gaitas de fole, o barulho era ensurdecedor.
E ele se intensificou mais ainda, se possível, quando o rei passou em sua
carruagem.
O conde de Braradale, devido as circunstâncias, só teve condições de falar
com o rei quando já era tarde da noite.
Sua Majestade estava cansado, mas feliz e deslumbrado pela maravilhosa
acolhida daquele povo.
Uma acolhida que excedera à da Irlanda e de qualquer outro lugar que
havia visitado.
No momento em que o conde recebeu instruções de que era esperado na
sala íntima do palácio de Dalkeith, onde o rei se encontrava, não perdeu um
segundo.
Entrou imediatamente e foi recebido com um carinhoso aperto de mão por
parte do rei.
— Por onde andou, meu amigo das montanhas? Senti sua falta.
— Estava na rua, assim como todos os fiéis súditos de Vossa Majestade,
para lhe dar as boas-vindas.
— Conte-me exatamente o que achou da parada — o rei pediu.
— Tenho um outro assunto muito importante para contar a Vossa
Majestade — o conde afirmou.
Pelo fato do amigo aparentar uma estranha seriedade e falar em voz
extremamente baixa, o rei logo se mostrou curioso.
O que nunca poderia ter imaginado era que o conde havia se casado de
um momento para outro.
Sua surpresa foi óbvia, mas assim que soube a razão da pressa,
comentou:
— Você não poderia ter agido de outra forma. É claro que concordo com
sua posição. Tenho ouvido falar com freqüência a respeito das disputas que
ocorrem entre os clãs, que chegam a ultrapassar os limites cabíveis de
violência. Antes, eu imaginava que se tratasse de coisa do passado.
— É o que espero, Vossa Majestade, que os problemas ocorridos se
tornem em breve apenas uma coisa do passado.
— E sua esposa, onde está sua esposa? — o rei quis saber.
O conde apresentou Fany ao monarca e percebeu pela expressão de seus
olhos, que este aprovara sua escolha.
O rei adorava mulheres bonitas, e o conde o conhecia bem o suficiente
para reconhecer que ele admirara Fany e que os votos de felicidades que
lhes dedicara eram sinceros.
Fora combinado entre os encarregados dá organização da agenda do rei,
que não lhe deveriam exigir muitas atividades em seu primeiro dia, e foi por
isso, que seu jantar foi tão tranqüilo, quase íntimo, no palácio Dalkeith, em
vez de se tornar um evento oficial.
Somente trinta pessoas foram convidadas a participar do jantar, que
aconteceu em uma das salas mais bonitas do palácio.
Por estar de bom humor, o rei conversou, brincou e riu com todos.
Após o jantar, entretanto, dedicou algum tempo apenas a Fany, cujo
marido se afastou deliberadamente a fim de não interferir.
Ele sabia, por ver o monarca sorrindo e Fany descontraída, que o diálogo
estava transcorrendo segundo seus desejos.
O que também lhe dava motivo de orgulho era a forma de sua esposa se
apresentar, com elegância e nobreza, algo que o rei certamente estava
apreciando.
Naquela noite, Fany colocara o vestido verde com bordados em fios
prateados e pérolas, que lhe emprestava uma qualidade etérea.
Fany era, sem a menor sombra de dúvida, a mulher mais linda e bem-
vestida da festa.
Mas, entre todas essas qualidades, a que mais o conde apreciou, foi a
naturalidade com que ela tratara os convidados e principalmente o rei.
Ela não se mostrara tímida em momento algum.
O conde chegara às vias do desespero no dia em que o líder dos MacSteel
sugerira que ele se casasse com sua filha.
Escocesa como era, e talvez ignorante como grande parte do povo das
montanhas, ele pensara que nunca teria condições de levá-la ao palácio de
Buckingham.
Chegava até a vê-la completamente perdida, com ares angustiados, junto
às pessoas que sempre rodeavam o rei, sendo alvo de zombaria e risadas
por parte das damas da corte.
Era um enorme alívio para ele poder admitir o quanto estivera enganado
em suas suposições.
Ao se despedir, a fim de se recolher aos seus aposentos, o rei cochichou
ao conde:
— Sua esposa é encantadora, meu rapaz. Leve-a para Londres e eu
prometo lhes proporcionar as mais incríveis diversões e lhes dar o presente
de casamento que merecem.
— É muita bondade sua, Majestade — o conde agradecera.
Subira as escadas em direção aos quartos com Fany a seu lado numa
euforia indescritível.
Nunca se sentira mais feliz e mais afortunado em sua vida.
Despediram-se na porta do quarto dela, o que foi uma atitude difícil para
ele, tomado que estava por um impulso quase irresistível de segui-la.
Mas ainda era cedo demais, ele admitiu com um suspiro.
Na primeira noite de seu casamento prometera a si mesmo que não
apressaria as coisas, mas seria mentira de sua parte se dissesse que não a
queria.
Desejava beijá-la e sabia com segurança, pois algo lhe dizia, que para ela
seria a primeira vez.
Desejava fazer amor com a esposa.
Ao mesmo tempo não podia se esquecer do medo que ela demonstrara a
esse respeito.
O único caminho era ter paciência e esperar até que ela correspondesse
aos seus sentimentos.
Até aquele instante Fany apenas o tratara como a um homem interessante
com o qual se sentia bem, com o qual gostava de conversar.
Não o tratara como a um homem atraente, de quem desejaria receber mais
do que simples conversas.
O conde, que sempre fora perseguido pelas mulheres, não se enganaria
com relação a esse tipo de atitude.
Se uma mulher o considerava atraente e o desejava para parceiro sexual,
ele imediatamente enxergava isso em seus olhos e em sua própria
percepção.
O conde se dirigiu à janela e puxou as cortinas como sempre fazia antes
de dormir.
Chegava a sentir que Fany já gostava dele, mas gostar apenas não lhe era
suficiente.

Na tarde do sábado, foi oferecido um chá em homenagem ao rei, em


Holyrood Flouse, que em tempos passados fora o palácio real dos monarcas
escoceses.
Era bem próximo ao palácio Dalkeith, sendo necessários apenas dezenove
minutos de trajeto.
O conde seguiu atrás da carruagem do rei.
Enquanto isso, Fany e algumas outras damas hospedadas no palácio
Dalkeith foram levadas a uma mansão situada na rua principal de
Edimburgo, de cujas janelas elas puderam observar as pessoas.
Era de praxe que o rei recebesse os súditos para um chá à tarde, assim
como fizera na Irlanda, para uma quantidade de aproximadamente mil e
duzentos cavalheiros.
Cada apresentação levava cerca de quatro segundos, com os cavalheiros
se ajoelhando sobre um joelho e beijando a mão do rei, que se esforçava
para ser simpático e sorrir a todos.
Embora já o tivesse encontrado durante o café da manhã, o conde também
compareceu ao chá, pois sua presença precisaria ser marcada como líder
do clã dos Mcbrara.
Teria sido um insulto para o clã a ausência de seu líder.
A chegada do rei foi anunciada pelo toque de trombetas, seguido pelos
acordes do hino nacional, tocado pela banda.
Havia dois soldados em cada lado de cada porta do palácio.
O rei se colocou no fundo da sala com lorde Glenlyon a sua esquerda e o
conde de Cathcart a sua direita.
Constituiu-se, sem dúvida, uma grande surpresa para todos os cavalheiros
presentes, que o rei estivesse vestido com um completo traje típico escocês,
uma sugestão dada pelo conde de Braradale, quando ainda se encontravam
em Londres.
Ele usava um casaco xadrez com um cinto vermelho sobre o kilt e o
chapéu com penas de avestruz estava colocado no ângulo certo de sua
cabeça.
O coronel Stewart de Garth, como chefe-maior, fora quem providenciara a
vestimenta que tanto sucesso causou entre os escoceses.
Agora, o que mais surpreendeu aos cavalheiros foi o uso de uma espécie
de meia-calça cor-de-carne que o rei colocou sob o kilt.
Somente o conde e alguns membros da comitiva de Sua Majestade
sabiam que ele lançara mão desse artifício por ter vergonha de suas pernas
muito brancas e marcadas de varizes.
Terminado o chá, o rei se reuniu com seu conselho.
Mais tarde, completamente exausto, ele retornou a Dalkeith, liberando
assim o conde de seus deveres.
Este se apressou a ir ao encontro da esposa, que passara a tarde muito
agradavelmente.
Os dois voltaram a sós para o palácio.
— Você se divertiu? — o conde quis saber.
— Muito. Foi interessante observar a excitação das pessoas caminhando
pelas ruas e o modo estranho com que muitos se vestem. E quanto à
recepção em Holyrood House? Estou certa de que o rei foi uma sensação
vestido como um escocês das montanhas.
— Foi, realmente — o conde admitiu. — Tive uma boa inspiração quando
o aconselhei a se vestir a caráter para a ocasião.
Fany riu ao imaginar o rei em um kilt, pois o traje não lhe parecia combinar
com ele.
— Estou certa de que ele foi bem-sucedido como sempre em receber seus
súditos. O rei tem muito charme e é uma pessoa agradável com quem se
conversar. Jamais esperei que ele fosse me tratar como a uma igual.
O conde cogitou que, com uma mulher como ela, o rei jamais deixaria de
esbanjar todo o seu charme.
Olhando para seu elegante vestido e para o chapéu que lhe fazia conjunto,
ele comentou:
— Acho que muitas mulheres te invejaram esta tarde, e que não
acreditariam se lhes dissesse que sua roupa não foi comprada numa das
mais caras lojas do mundo.
— Acho que isso é um elogio — Fany sorriu.
Ela não contara ao marido que ficara muito perturbada naquela tarde,
quando no momento em que menos esperava, vira Hamish em meio à
multidão.
Ele não estava acompanhado por nenhum membro do clã dos MacSteel,
mas completamente sozinho e com uma aparência sinistra.
Não sabia explicar a razão, mas fora exatamente esse o termo que
encontrara para descrevê-lo: sinistro.
Havia algo de suspeito e ameaçador em seu jeito de andar e olhar para as
pessoas que transitavam pela rua principal de Edimburgo.
Esquadrões de soldados estavam retornando para seus quartéis.
Os arqueiros voltavam para seus postos.
Via-se uma infinidade de padrões e cores de roupas indicando a profusão
de clãs que se encontrava na cidade para a visita do rei.
Muitas das roupas eram pobres, rudimentares, algumas nada mais do que
um pedaço de tecido amarrado à cintura, mas todos pareciam querer provar
que pertenciam a algum clã.
Outras eram bem-talhadas e ostentadas com elegância.
Cada membro de clãs parecia querer proclamar seu orgulho em ter
nascido com sangue escocês nas veias.
Hamish, ao que Fany observou, estava vestido mais como um líder do que
como um membro comum de um clã.
Isso a fez recordar que a maior ambição do primo era se tornar o próximo
líder dos MacSteel.
Não acreditava, entretanto, que ele tentasse usurpar esse direito de
Alistair.
Porém, como tinha medo dele, não ousaria jurar que ele não fizesse
qualquer coisa para alcançar seus objetivos.
Era estranho encontrá-lo em Edimburgo.
Se Hamish odiava os Mcbrara, odiava ainda mais os ingleses.
Ele nunca perdia uma oportunidade de se referir às atrocidades, que aliás
haviam sido realmente muitas, cometidas pelo duque de Cumberland.
Jurara sempre para quem quisesse ouvir que jamais poria seus pés em
solo inglês.
No entanto, se locomovera até Edimburgo para saudar o rei.
Era muito estranho.
— Será que ele não tem outros planos em mente? — Fany cogitara. —
Será que ele não pretende insultar ou mesmo injuriar o rei.
Considerando-se, todavia, o quanto o rei estava bem guardado, seria muito
improvável que Hamish pudesse se aproximar de sua pessoa.
Caso ele tentasse, sem dúvida seria preso pelos soldados e julgado.
Assim mesmo, foi com apreensão que Fany acompanhou seus passos
pela rua, através da janela, e que notou que ele chegava a empurrar
aqueles que se punham em seu caminho.
Além de sinistro, Hamish era perigoso.
Fany estava incerta se deveria ou não falar com o conde sobre o que
estava acontecendo.
Talvez ele entendesse sua posição, mas também poderia ser possível que
lhe parecesse uma deslealdade ela delatar um membro de seu próprio clã,
por pior que fosse.
Fany decidiu que seria melhor esquecer o assunto, afinal Hamish não
poderia se aproximar do rei, e muito menos prejudicá-lo de alguma forma.
Sua vinda a Edimburgo deveria ter sido motivada pela curiosidade, como
ocorrera com quase toda a gente.
É claro que tivera muito medo de que Hamish pudesse ter causado
problemas em seu casamento.
Chegara a sonhar com ele gritando na igreja para que a cerimônia não se
realizasse.
Tivera horror que ele ofendesse o conde, que nem sequer sabia quem ele
era e muito menos teria qualquer idéia da razão de estar sendo insultado.
Felizmente não houvera sinal de Hamish durante o casamento e oxalá não
o tivesse visto também agora.
— Parece preocupada, condessa — uma das convidadas, que estivera
sentada a seu lado, dissera.
Fany forçara um sorriso.
— Estava pensando na sorte que temos em podermos estar aqui
confortavelmente instaladas e não entre a multidão lá embaixo. Não há
espaço para tanta gente se locomover. As crianças, pobrezinhas, devem se
sentir sufocadas e apertadas entre tantos corpos.
— Concordo plenamente — a dama comentara. — Mas, conte-me, onde
comprou esse lindo chapéu? Foi em Edimburgo?
Os olhos de Fany faiscaram de prazer.
Ela chegou quase a dizer a verdade, mas conteve-se em tempo, já que a
resposta poderia ser encarada como um insulto ao conde.
— Foi feito por uma modista francesa. Fico contente que o tenha
admirado.
— Oh, agora estou entendendo! — a mulher exclamou. — Então, não só o
chapéu mas também o vestido que usou ontem à noite vieram de Paris?
Fany sorriu mas evitou responder.
Assim que voltasse contaria a Yvonne, na primeira oportunidade, os
elogios que recebera.
Todas as mulheres presentes ao jantar da noite anterior estiveram,
obviamente, ostentando seus melhores vestidos.
O que teria sido dela se não fosse Yvonne?
Certamente teria se sentido envergonhada, e feito tudo para escapar dos
olhares de compaixão ou desdém.
Os vestidos que Yvonne enviara para o castelo Brara, na segunda-feira,
pouco antes da partida para Edimburgo, haviam sido tão encantadores
quanto os primeiros.
Juntamente com eles Yvonne juntara um bilhete solicitando que Fany
providenciasse a compra de mais tecidos em Edimburgo, já que não havia
mais nenhum que ela pudesse aproveitar.
Naquele momento, Fany teve uma idéia.
Talvez pudesse aproveitar o tempo e comprar os tecidos enquanto o conde
ainda se encontrava no chá.
Antes de sair, ele lhe dissera:
— Se eu demorar para vir buscá-la será porque a reunião ainda não
terminou. Com tantos homens presentes, sem dúvida, também haverá
confusão na hora de todos partirem com suas carruagens.
Sem dizer a ninguém para onde iria, Fany saíra da sala pé ante pé e
alcançara a rua.
Por ter estudado em Edimburgo, ela conhecia bem a cidade.
Lembrava-se, inclusive, de que a melhor loja de tecidos ficava próxima da
casa em que estava.
— Milady pretende sair? — um criado indagara conforme ela alcançara a
porta. — Será difícil caminhar entre a multidão.
— Sei disso, mas só penso em fazer umas compras no MacKenzies.
O criado sorrira, complacente.
— Então não haverá problema.
Conforme Fany esperava, foi necessário forçar sua passagem através do
sólido bloco humano.
Levou muito mais tempo do que ela imaginara para cobrir um percurso tão
pequeno.
Foi um alívio encontrar o MacKenzies ainda aberto, e sem pessoas
aguardando para serem atendidas, uma vez que todas estavam nas ruas
comemorando a chegada do rei.
Por estar tão bem vestida, Fany foi alvo de imediata atenção por parte do
próprio dono da loja.
Ela comprou muitos metros dos mais variados tecidos, entusiasmada com
o resultado dos modelos que Yvonne lhe confeccionara.
Entre as diversas cores, Fany comprou mais alguns tecidos segundo suas
predileções.
Ansiava para que o conde os apreciasse e que, como já fizera antes, a
elogiasse e a comparasse com os entes das florestas e dos rios.
“Ele é tão compreensivo e gentil.” Ela suspirou enquanto as compras eram
empacotadas. “Nenhum outro homem teria o poder de ler meus
pensamentos e partilhar dos mesmos sonhos que eu.”
Uma vendedora lhe trouxe o pacote pelo qual ela havia despendido quase
todo o dinheiro que trouxera.
Felizmente o conde pensara a esse respeito, pois antes de deixarem o
iate, falara:
— Você precisará de dinheiro para dar gorjetas aos criados e para comprar
alguma coisa que queira, enquanto estivermos em Edimburgo.
Fora desagradável para Fany ter de aceitar, mas na correria e no
burburinho dos preparativos para o casamento, ela havia se esquecido
completamente de trazer seu próprio dinheiro.
Fora sua intenção pedir ao pai que lhe desse uma soma substancial para
que não tivesse de se humilhar ao marido a quem não conhecia, e a quem
certamente não poderia amar.
Havia sobrado muito pouco do dinheiro da festa, com tanta comida e com
tantos salários e contratações extras para o evento e, no final, ela acabara
se esquecendo completamente do assunto.
Enquanto pagava, Fany não pôde deixar de pensar que fora muita
amabilidade e consideração do conde não deixá-la desprotegida.
A vendedora acompanhou-a até a porta e Fany saiu para a rua, sem
imaginar que em segundos levaria o maior susto de sua vida.
Viu-se cara a cara com Hamish, que se mostrou tão surpreso quanto ela
pelo encontro.
Fitava-a como se não pudesse acreditar no que via, e foi só depois de
alguns instantes que Fany percebeu que eram as roupas que mais o
deixavam perplexo.
— O que está fazendo aqui? — ele indagara com aquela sua voz
agressiva. — Quis se juntar à parada idiota em adoração ao inglês?
— Assisti a todo o desfile e fiquei orgulhosa da forma com que nossos
homens marcharam — ela não se deixou intimidar.
— Essa demonstração foi um insulto ao nosso país — Hamish grunhira. —
Onde ficará hospedada enquanto durar esse carnaval ridículo?
— No palácio Dalkeith — Fany respondera sem raciocinar, e prosseguiu
seu caminho.
O fato de haver muitas pessoas na rua impossibilitou Hamish de segui-la.
Fany voltou para a casa o mais rápido que pôde, arrependida por sua
indiscrição ao revelar o local onde ela e o marido estavam hospedados.
Hamish ficaria furioso ao saber que ela estava dormindo sob o mesmo teto
que o monarca inglês.
Seu único consolo era a certeza de que o primo nada poderia fazer para
prejudicá-la.
Havia muitos guardas no palácio.
Reparara, inclusive, ao sair, que sentinelas armadas ficavam a postos
durante todo o tempo, em todas as portas.
Não. Hamish poderia reclamar, praguejar e destilar seu veneno contra o
rei, mas era improvável que conseguisse insultá-lo ou feri-lo.
Mesmo apreensiva e insegura, Fany estava quase contando ao conde que
vira Hamish e os motivos que a levavam a não confiar nele.
O problema é que o conde estava com ótimo humor e ela não queria ser a
responsável por arruinar seu dia.
Além disso, tinha outros assuntos para lhe falar.
Era sua resolução final afastar Hamish dos pensamentos.
— Se houver necessidade — ela ponderou —, eu alertarei um dos oficiais
encarregados da segurança para que não permita a entrada de Hamish no
palácio, sob nenhuma hipótese.
Não podia imaginar que Hamish inventasse uma desculpa para se
aproximar do rei.
Também não podia imaginar nada mais embaraçoso do que delatar um
membro de seu próprio clã.
Explicar que ele era mau, que deveria ser mantido sob vigilância, que não
viera a Edimburgo, como os outros, para saudar o rei, pelo simples motivo
de odiá-lo como a todos os ingleses.
Diante dessa perspectiva, Fany decidiu que, se havia alguém com quem
poderia discutir a respeito de Hamish, esse alguém seria o conde.
Este chegou à casa para apanhá-la vinte minutos depois que ela havia
voltado das compras.
— Vejo que se divertiu, e sabe que é isso que desejo que faça.
— Foi um dia maravilhoso e excitante — Fany respondeu. — Foi algo
inédito em minha vida, assim como na da maioria das pessoas do meu país.
Sei que me lembrarei para sempre desse dia.
— Espero que tenha outras coisas boas para se lembrar além desta —
ele murmurara. — Quero que saiba que todos os presentes na festa de
ontem me cumprimentaram pela linda e adorável esposa que tenho.
— Eles realmente disseram isso? — Fany enrubesceu.
— Garanto-lhe que estou dizendo a verdade — o conde afirmara.
— Oh, fico feliz ... feliz por você. Estava agora mesmo pensando na sorte
que tive em contar com alguém que costurasse para mim, em tão pouco
tempo, e com tão pouco material, para que não viesse a lhe dar motivos
para se envergonhar de mim.
— Eu jamais poderia me envergonhar de você. Sabe de uma coisa?
Quando voltarmos, levaremos um bonito presente à sua costureira francesa.
— Obrigada — Fany agradecera, emocionada. — Só você mesmo poderia
ser tão bom e gentil para pensar em retribuir o favor que ela me fez. Yvonne
ficará encantada.
Os dois sorriram um para o outro.
A carruagem chegou ao palácio em pouco mais de trinta minutos.
— Estou ansioso por vê-la emudecer novamente todos os presentes
durante o jantar desta noite — o conde comentou quando os cavalos
pararam. — Espero que tenha mais um vestido inédito para exibir.
Fany agradeceu mentalmente por ainda lhe restar alguns modelos que a
corte não tivera oportunidade de ver.
Ela subiu para seus aposentos, e pensou aproveitar o tempo que lhe
restava até o jantar, para descansar.
O rei ordenara que o jantar fosse servido mais cedo do que o usual,pois à
noite haveria uma apresentação de músicos escoceses tocando as canções
mais tradicionais do país.
Vossa Majestade também solicitara a presença e exibição de dois dos mais
famosos dançarinos que estivessem disponíveis.
A criada que fora instruída para cuidar de Fany se ofereceu para lhe trazer
uma xícara de chá, o que ela aceitou de bom grado.
Foi só quando começou a se despir que Fany se lembrou da expressão
que vira nos olhos de Hamish, há poucas horas.
Não era preciso que ele nem ninguém lhe dissesse, que ainda a desejava.
Quase como se estivesse acontecendo outra vez, Fany ouviu a voz
agressiva repetindo que nunca desistiria de se casar com ela.
— Mas agora que me casei com outro, ele não poderá me tocar — ela
falou para si mesma.
O instinto a contradizia, porém.
Hamish sempre fora e continuaria a ser um homem violento e perigoso.
A criada entrou no quarto com uma bandeja de chá e deliciosos bolinhos.
— Ainda bem que o palácio está bem protegido — Fany comentara. — Os
guardas não poderão descuidar de suas funções agora que o rei se
encontra aqui.
A moça deu uma risadinha.
— Há soldados por toda a parte, milady. Onde quer que se vá, para
dentro ou para fora, lá está um atrás da pessoa.
Ela tornou a rir.
Fany percebeu que a jovem estava adorando ter tantos homens por perto.
— Espero que montem guarda também e principalmente à noite — Fany
prosseguira.
— Oh, sim, isso eles fazem, milady. Há sentinelas na porta do quarto de
Sua Majestade e no final do corredor. Não se pode ir a lugar algum do
palácio sem se trombar com eles.
Havia uma nota de excitação na voz da criada, que fez Fany sorrir.— Então
estou certa de que não precisamos nos preocupar com nada.
Mas o eco das palavras, do som agressivo da voz de Hamish insistia em
se repetir dentro de sua cabeça.
Ela tinha certeza de que Hamish estava tramando alguma coisa, mas o
que seria ela não fazia idéia.

VII

Foi um alívio receber a informação de que, no domingo, o rei decidira


passar o dia descansando.
Os habitantes locais haviam esperado que o rei estivesse presente à
celebração da missa, mas ele se recusara a comparecer.
Preces para sua divina proteção foram oferecidas em todas as igrejas de
Edimburgo, assim como em todas as paróquias da Escócia.
O país inteiro já estava ciente de que o rei havia chegado em segurança à
capital.
O desjejum fora servido mais tarde do que o usual, e após saboreá-lo
devagar, o rei anunciara que daria um passeio a cavalo pelo parque.
Pela primeira vez desde que deixara sua casa, Fany se sentiu
desprevenida.
Não lhe passara pela cabeça trazer seu traje de montaria.
E, mesmo que tivesse passado, seu traje não teria sido adequado para
uma ocasião tão especial.
O rei, no entanto, fizera um convite especial ao conde para que este o
acompanhasse.
Fany ficou observando o marido, o rei e mais dois outros membros da
comitiva se distanciarem sob as árvores.
Os demais membros hospedados no palácio haviam comentado que
aproveitariam o dia para conhecer os pontos turísticos da cidade.
Carruagens haviam sido preparadas para levá-los ao castelo Rosslyn, que
muito tempo atrás fora o centro de uma imensa floresta repleta de gamos.
Além desse, havia outros lugares que desejavam conhecer, mas a
multidão que ainda lotava as ruas, dificultava-lhes o trajeto.
Fany achou que aquela seria uma boa oportunidade para dar uma olhada
na biblioteca, cujo acervo era famoso.
Seu palpite era de que seria necessário um século para se ler todos os
livros que estavam expostos.
No momento, escolheria um que falasse sobre Edimburgo, o que seria
interessante e proveitoso em suas conversas.
Enquanto procurava pelas prateleiras, um criado se aproximou com um
buquê de urzes brancas.
— São para mim? — ela indagou, surpresa.
— Foram deixadas para serem entregues a milady, por um cavalheiro —
informou o criado.
À palavra “cavalheiro”, Fany sentiu um calafrio.
Não era preciso que ninguém lhe dissesse para adivinhar que o cavalheiro
era Hamish em pessoa.
“Mas por quê?”, ela se perguntou. “Por que Hamish faria algo tão estranho
quanto enviar um buquê de flores, algo que jamais fez em sua vida? A
menos, é claro, que tivesse se aproveitado enquanto fazia a entrega, para
entrar no palácio.”
— Foi você quem recebeu o buquê das mãos desse cavalheiro? — Fany
quis saber.
O homem fez um gesto negativo com a cabeça.
— Não, milady, foi uma das moças.
Fany o encarou por alguns minutos, cogitando que atitude deveria tomar,
até que decidiu:
— Gostaria de falar com ela. Não encontrei cartão algum em
acompanhamento às flores, e não poderia adivinhar a quem me dirigir para
agradecer a gentileza.
Aquela lhe parecera uma desculpa plausível, e a resposta do criado a
confirmou:
— Pedirei que a criada venha lhe falar imediatamente, milady.
Assim que o homem saiu, Fany olhou com muito cuidado e atenção para o
buquê.
Ninguém mais poderia tê-lo mandado, exceto Hamish.
Ela não possuía nenhum amigo em Edimburgo e não travara nenhum
conhecimento naqueles dias além daqueles ocorridos no palácio, entre a
comitiva pessoal e a encarregada dos preparativos para a visita do rei.
O pressentimento de que Hamish estava planejando algum malfeito
ricocheteava incessantemente por seu corpo e por sua mente.
Depois das palavras de ódio dirigidas ao rei, ela sabia no fundo de seu
coração que o rei poderia estar correndo perigo.
Caso Hamish fosse surpreendido e preso pelos soldados, contudo, a
repercussão seria muito desfavorável com relação a seu clã.
Ela até podia imaginar o que os Mcbrara diriam.
Essa situação poderia destruir todo o sacrifício que o conde e ela haviam
feito em nome da salvação de seus respectivos clãs.
Desesperada, Fany tentou encontrar uma forma de impedi-lo de levar
adiante seus planos diabólicos.
Era sua obrigação tentar detê-lo.
Teria de tentar, ao menos isso.
O criado demorou um quarto de hora para retornar à biblioteca
acompanhado, dessa vez, por uma das arrumadeiras.
Tratava-se de uma jovem, não muito atraente, mas também não feia, de
vestido preto, touca e avental brancos.
Ela fez uma breve reverência a Fany enquanto o criado se retirava
discretamente, deixando-as a sós na biblioteca.
— Fui informada de que este lindo ramalhete foi entregue a você por
alguém, na porta do palácio. Como a pessoa, quem quer que seja, se
esqueceu de colocar um cartão entre as flores, pensei que, talvez, pudesse
me ajudar a adivinhar quem foi.
— Foi um cavalheiro, milady, um cavalheiro moreno — a arrumadeira
respondeu.
— Ele estava usando roupa típica? — Fany continuou.
— Sim, milady — a jovem fez um movimento afirmativo com a cabeça. —
Seu casaco era xadrez, e o amarelo era sua cor predominante.
Fany prendeu a respiração.
O homem que trouxera o ramalhete ao palácio era, sem dúvida, Hamish.
— Será que você conseguiria se lembrar do que ele disse? — Fany tentou
averiguar.
— Ele perguntou, milady, se eu poderia entregar as flores à condessa de
Braradale. Quando respondi que sim, desde que Vossa Alteza não estivesse
dormindo em seu quarto, ele quis saber aonde ficava o quarto.
A moça se deteve por um instante, talvez com receio de ser chamada à
atenção por sua indiscrição.
— Eu respondi que ficava no segundo andar, mas que no momento milady
se encontrava no andar de baixo, e que, portanto, um dos criados é que
receberia a incumbência de entregá-las.
— Ah, então ela fica no topo do palácio — o cavalheiro comentou. — Eu
tinha muita curiosidade em saber se ela estaria ou não no quarto vizinho ao
de Sua Majestade, o rei.
— O que você respondeu? — Fany a incitou a continuar repetindo a
conversação que tivera com Hamish.
— Eu fiz um movimento negativo com a cabeça e disse que não, que
Vossa Majestade fora instalada na ala principal, no primeiro andar do
palácio, como todos os reis sempre ficaram.
Fany prendeu a respiração.
Tinha certeza absoluta de que aquela fora mais uma das manobras de
Hamish, que estava pouco a pouco se insinuando no palácio Dalkeith, a fim
de descobrir onde o rei dormia, e como faria para alcançá-lo.
— O cavalheiro teria dito mais alguma coisa? — Fany prosseguiu.
— Apenas me agradeceu, me deu uma moeda pelo trabalho que me
causou, e foi embora — respondeu a arrumadeira.
Ele se fora, Fany pensou, porque recebera todas as informações de que
precisava, porque encontrara facilmente o que buscara.
Agora Fany teria de contar ao conde, sem perda de tempo, fosse como
fosse, o que acabara de acontecer e porque ela acreditava que o rei
estivesse em perigo.
Seria uma tarefa difícil para ela, pois até aquele instante escondera do
conde a existência de Hamish.
Aliás não sabia realmente por que tivera tanto cuidado, desde que se
casara, em não revelar nada a respeito das ameaças que Hamish sempre
lhe fizera.
A única resposta a que conseguia chegar era seu dever moral de proteger
a reputação de seu clã.
Seria bastante improvável que qualquer outra pessoa revelasse a ele que
poderia apontar qual o membro do clã MacSteel que vinha causando tantos
problemas.
Fany estava determinada a não tornar a imagem dos MacSteel ainda pior
do que já era, nem de informar que todas as brigas, assassinatos e roubos
de gado e rebanhos haviam sido praticamente de responsabilidade única de
Hamish.
Além de ser um MacSteel, ele também era um primo distante de sua
família, o que tornava sua posição ainda mais delicada.
Mas, apesar de suas restrições, Fany não poderia simplesmente cruzar os
braços e esperar que uma desgraça acontecesse, que Hamish tentasse, de
uma forma ou de outra, penetrar no palácio e causar danos ao rei.
Só o conde poderia impedir que isso acontecesse, mas para isso ele teria
de ser informado.
No entanto, Fany sabia que não teria chance de lhe falar a sós ainda
naquela manhã, antes do almoço.
O almoço, também, estava programado para ser uma grande festividade,
onde visitantes nobres e importantes seriam recebidos pelo rei.
O monarca deixara claro, que desejaria ter o conde a seu lado durante
todo aquele dia.
Só aceitaria discutir à tarde a programação para o dia seguinte.
Estava planejado que o rei fosse para a cidade imediatamente após o
almoço.
Segundo conselhos de seus hóspedes, ele decidira vestir, para a ocasião,
um uniforme de marechal-de-campo.
Não seria necessário providenciarem um, éle os informara, já que de sua
bagagem fazia parte um uniforme completo, com pantalonas azuis,
debruadas de dourado.
Ficara combinado que os membros da comitiva, mais numerosos e
importantes hóspedes do palácio, o esperariam do lado de fora de Holy-
rood House, para saudá-lo em sua chegada.
Fany não podia evitar um sentimento de piedade pelo rei.
Ela estava ciente de que, ao entrar na sala de recepção, o rei receberia
inúmeros pedidos.
Por parte das igrejas, por parte da sociedade escocesa, e por parte de
membros das universidades, além de muitos outros.
Ela era solidária ao rei e achava justificável que ele achasse aquele
compromisso extremamente maçante.
No entanto, ele próprio conhecia seus deveres e, por menos que gostasse,
teria de cumprir com o protocolo, do qual a lista de pedidos era parte integral
e essencial.
Falou-se muito, discutiu-se muito, e já era quase hora do chá, quando
Fany finalmente teve uma oportunidade de estar a sós com o marido.
Uma oportunidade de minutos, apenas, enquanto a comitiva se mudava de
uma sala para a outra.
— Quero te dizer uma coisa — ela lhe sussurrara.
O conde sorrira, e se dirigira até um dos palafreneiros.
— Vou levar minha esposa por um instante até o jardim. Caso Vossa
Majestade me procure, você saberá onde me encontrar.
O criado, muito formal em sua libré, fez um gesto de consentimento.
Colocando a mão à altura da cintura de Fany, o conde se afastou com ela
rapidamente pelos degraus, para longe da comitiva.
Havia uma porta de comunicação com o jardim que Fany não soubera
existir até aquele momento.
Esta os levou a um terraço.
Porém, sem dizer uma palavra, como num mútuo acordo, os dois
continuaram descendo outros degraus, até chegarem ao gramado
verdejante.
As flores, que haviam sido especialmente cuidadas para a visita do rei,
estavam viçosas e frescas.
O conde não se demorou junto a elas, contudo, continuando em seu
caminho junto à esposa, em direção à sombra das árvores.
Ali fora colocado um confortável banco de madeira, onde se sentaram, e
de onde podiam avistar o palácio, embora ninguém do palácio pudesse
perceber que duas pessoas ali se encontravam.
— Agora me conte: o que é que está te preocupando? Eu percebi, durante
o almoço, que havia algo errado, porém, por mais que quisesse, não
consegui encontrar uma chance de me aproximar e de me comunicar
contigo. Esse pessoal parece não esgotar jamais seus assuntos e
tagarelices.
Fany não pôde evitar o riso.
— Eles realmente falam sem parar. Coitado do rei por ser obrigado a
aturar continuamente assuntos tão triviais e pessoas tão volúveis.
— Pois é exatamente isso que acho ser sua preferência, conversas que
não levam a nada — o conde desabafou. — Mas agora quero que me fale
sobre você.
— Há algo me preocupando — Fany confessou. — E não sei por onde
começar.
O conde colocou sua mão sobre a dela.
— Ainda sente medo de mim?
Um arrepio percorreu todo o corpo de Fany, embora dessa vez não fosse
provocado pelo medo, e sim pelo toque daquela mão quente e carinhosa.
Seu coração acelerou, assim como sua voz:
— Não de você, mas daquilo que venha a pensar a respeito do que tenho
para te contar.
— Agora você está sendo misteriosa — o conde sorriu. — O que posso
dizer é que só poderei responder essa sua dúvida quando souber o que está
acontecendo. Acima de tudo, Fany, acho que seria um erro se
começássemos nosso casamento escondendo segredos um do outro. Será
difícil para mim ter condições de ler sempre seus pensamentos, da forma
com que estou tentando fazer agora.
— O que acha que tenho para te dizer? — Fany balbuciou, ainda insegura.
— Creio que seja alguma coisa relacionada com seu clã — o conde
respondeu.
Fany fez um gesto eloqüente com as mãos.
— Você adivinhou mais uma vez — ela confirmou. — Sim, o que tenho a
dizer se relaciona ao clã.
— Então me conte.
Fany não estava olhando para o marido. Seus olhos vagavam perdidos
pelos canteiros de flores.
— Todos os problemas que surgiram entre nossos clãs foram fomentados
por uma pessoa em particular.
— Suponho que esteja se referindo a um jovem de nome Hamish, estou
certo? — o conde pediu confirmação.
— Você o conhece? — Fany indagou, tomada de surpresa.
— Os anciãos do meu clã me informaram que esse homem está por trás
de todos os problemas. Sei disso já há algum tempo. E seu pai, também,
mesmo que indiretamente o mencionou no dia em que veio falar comigo em
meu castelo, logo após minha chegada de Londres.
— Então você entende a razão de papai e eu nos sentirmos tão mal,
sabendo dos problemas que Hamish tem causado, e sem nada podermos
fazer para impedi-lo.
— Em todas as famílias há uma ovelha negra — o conde comentou. —
Mas não precisa se preocupar, pois se ele causar mais algum problema no
futuro, eu cuidarei dele.
— Espero que faça isso, e que se prepare, pois ele se encontra aqui, em
Edimburgo.
— Como você sabe? — o conde indagou de modo quase brusco.
— Eu me choquei ontem na rua com ele, quando estava saindo de uma
loja, próxima de Holyrood House, onde tinha ido a fim de comprar alguns
tecidos para levar para Yvonne.
— O que ele disse? — o conde quis saber.
— Disse algumas coisas desagradáveis a respeito de Sua Majestade —
Fany respondeu num fio de voz. — Mas, o que me deixou mais nervosa, foi
receber, esta manhã, um buquê de flores. Você estava cavalgando com o
rei, e eu decidira apanhar um livro na biblioteca, quando soube que Hamish
havia chegado até a porta do palácio, para especular sobre o rei, enquanto
fingia só ter a intenção de me presentear com as flores.
Fez-se silêncio por algum tempo, até que o conde prosseguiu:
— Está me dizendo que esse homem tinha alguma coisa a ver com você
no passado? Que a sua própria maneira, ele gostava de você?
Fany sentiu a garganta se apertar, e sua voz saiu muito baixa ao
finalmente responder:
— Ele sempre quis se casar comigo. Chegou até, embora papai não saiba,
a tentar me raptar do castelo, numa noite em que invadiu meu quarto.
— O que você fez? — o conde, ansioso, cerrara os punhos.
— Fui salva porque segui minha intuição — Fany confessou. — Embora
ninguém me dissesse, eu tive um pressentimento estranho de que me
encontrava em perigo. Deixei meu quarto e subi até a torre, onde existe um
quarto com tranca, que antigamente era usado como prisão.
— Foi muito esperto de sua parte — o conde a elogiou. — Mas, e depois,
seu pai não o chamou para terem uma conversa?
— Você não entendeu. — Fany suspirou. — Por piores que sejam seus
crimes, por mais que as pessoas saibam ser ele o responsável por tantas
desgraças entre os clãs, ninguém jamais conseguiu provar coisa alguma
contra ele. Hamish sempre consegue se livrar das garras da justiça. Nunca
foi pego em flagrante.
O conde se manteve calado por alguns minutos, e foi Fany quem retomou
a conversa:
— Hamish percorreu todo o castelo, quarto após quarto, à minha procura,
deixando uma terrível confusão em seu rastro. No entanto, nada deixou
como prova de que fora ele o invasor. Foi por isso que achei que não iria
adiantar deixar meu pai ainda mais preocupado do que ele já estava.
— Quer dizer que ele sempre consegue escapar, mesmo quando comete
crimes entre sua própria gente? E não apenas quando rouba e mata meus
pastores?
— Infelizmente. Hamish desaparece como por encanto todas as vezes que
um crime é cometido. E não se pode acusar um homem a menos que se
reúna provas contra ele.
— Entendo seu ponto de vista — o conde murmurou. — Mas você também
deve concordar comigo que isso não pode mais continuar.
— Mesmo que você conseguisse detê-lo — Fany explicou —, duvido que
encontrasse alguém que viesse a depor contra ele. Todos teriam receio de
que ele se vingasse assim que fosse colocado novamente em liberdade.
O conde apresentava o cenho franzido.
Mas Fany sabia que isso se devia mais a sua preocupação do que à
zanga.
Por mais que não quisesse aumentar sua ansiedade, contudo, ainda havia
algo importante que ela precisava lhe dizer.
— No momento em que entregou as flores, Hamish conseguiu informações
por parte da arrumadeira que o recebeu, de que os aposentos do rei se
localizavam no primeiro andar do palácio.
Fany estava falando entrecortadamente, tal sua preocupação e
nervosismo.
— Mesmo que Hamish já soubesse onde os reis costumavam se instalar,
através de comentários ouvidos na cidade, ou através de jornais, assim
mesmo a moça confirmou o que não deveria.
O conde estava entendendo aonde Fany queria chegar e sua expressão se
tornou ainda mais séria.
— Seriá terrível se tivéssemos de contar ao rei que existe um malfeitor em
meu clã que está tramando sua morte — Fany acrescentou, a voz trêmula.
— Ao mesmo tempo, acredito que seria melhor se os guardas se
colocassem em estado de alerta.
— Eles estão permanentemente em alerta — o conde a tranqüilizou. —
Nunca vi o rei se cercar de mais soldados armados e assessores do que
nesta viagem a Escócia. Aliás, minha opinião pessoal é de que sir Walter
Scott fez isso mais para impressionar Sua Majestade do que por razões de
proteção ao rei contra qualquer perigo.
— Então, por favor, cuide para que nada de mal aconteça que venha a
arruinar a visita do rei a Escócia, e que ele jamais seja informado de que
existe um membro dentro do clã MacSteel que o odeia.
Havia um tom de desespero na voz de Fany que impressionou o conde.
— Não quero que se perturbe com problemas que não está em você
resolver. Garanto que não há o que temer enquanto o rei estiver dentro
deste palácio. É impossível alguém burlar a vigilância ostensiva que foi
providenciada.
Fany prestava atenção às palavras do conde, calada.
— É claro que sempre poderiam tentar alvejar Sua Majestade enquanto
estivesse desfilando em sua carruagem pelas ruas, ou discursando para a
multidão. Mas, nesse caso, Hamish ou qualquer outro assaltante, não teria
saída. Sem dúvida, acabaria linchado pelo povo.
— É improvável que Hamish se arriscasse a esse ponto. Ele é muito
esperto, e é por isso que fiquei tão assustada quando soube que ele
indagara a respeito da localização do quarto do rei. Ele escalou as paredes
do castelo de meu pai, e da mesma forma poderia escalar as paredes deste
palácio.
— Estou certo de que ninguém conseguiria realizar tal proeza — o conde
respondeu. — Mas providenciarei para que sejam colocados guardas
também sob a janela do quarto de Vossa Majestade, pois diante da porta,
sei que já existem.
— É o que esperava que você fizesse. — Fany suspirou. — Mas por favor,
por favor não diga que é um membro de meu clã quem está tramando contra
o rei.
— Deixe comigo — o conde procurou acalmá-la. — Prometo que agirei
com muito tato e que manterei o rei são e salvo.
— Obrigada... muito obrigada... era o que esperava que me dissesse.
— Fany sentiu lágrimas lhe umedecerem os olhos.
— Espero que você também esteja segura contra esse admirador
indesejável — o conde continuou em diferente tom de voz. — Quero que me
prometa que me contará imediatamente caso ele se aproxime ou faça
qualquer tentativa para vê-la.
— Prometo.
O conde se levantou.
— É uma pena, mas acho que precisamos voltar. Sua Majestade insistiu
para que eu passasse todo o dia de hoje com ele. Portanto, embora eu
preferisse estar com você, sou obrigado a cumprir ordens.
— É claro que você tem que cumprir seu dever — Fany concordou.
— E, mais uma vez, quero agradecer por toda a compreensão que teve
comigo.
— Quero te dizer uma coisa, Fany. — O conde sorriu inesperadamente. —
Estar casado com você significa uma aventura. Você nunca pára de me
surpreender.
— Acha que preferiria levar uma vida mais sossegada? — Fany estranhou.
— Não posso evitar o pensamento de que, por ser algo que nunca
experimentou em sua vida, e, que por gostar tanto das aventuras que se
acostumou a ter, encararia esse outro tipo de vida como totalmente
monótono.
— Do jeito que as coisas estão, seria algo inesperado, também. Quando
cheguei e me hospedei neste palácio, certamente não esperava que, com
tantos soldados para guardar o rei, eu teria de tomar outros tipos de
providências para sua segurança.
— Espero que você esteja certo e que não seja difícil evitar que Hamish
cometa o maior dos disparates de sua vida. Gostei muito do rei. Ele é um
homem de charme, completamente diferente do que eu esperava que fosse.
O conde riu outra vez.
— É o que todos nós pensamos. Assim como você, ele sempre tem uma
surpresa escondida na manga.
Ao voltarem para o palácio, Fany e o conde encontraram o rei e sua
comitiva se preparando para tomar chá.
Assim que os viu, o rei fez sinal para que o conde se aproximasse e se
sentasse ao lado dele.
Fany, muito diplomaticamente, sentou-se na outra extremidade da mesa.
Mais tarde, quando subiu para seu quarto para tomar um banho e se vestir
para jantar, ela não conseguia deixar de pensar no conde.
Ele fora muito bom e compreensivo.
Não achara tão difícil quanto ela antecipara revelar tudo o que sabia a
respeito de Hamish.
Chegava a se sentir como se uma imensa carga lhe houvesse sido retirada
dos ombros.
Agora não havia mais nada com o que se preocupar.
E, como se mais uma vez adivinhasse que ela ficaria satisfeita em saber
sobre as medidas que tomara, o conde bateu na porta de comunicação
entre os quartos, quando conseguiu se desvencilhar do rei por alguns
instantes.
Fany estava deitada.
— Entre.
— Eu te acordei? — o conde entrou lentamente.
— Não. Estava lendo um livro que encontrei na biblioteca. Conta histórias
interessantes sobre fantasmas da Escócia, sobre os quais você talvez nunca
tenha ouvido falar.
— Então você precisará me contar sobre eles — o conde pediu baixinho,
enquanto caminhava em direção à cama.
Ele achou que Fany estava maravilhosa com os cabelos ruivos e brilhantes
caindo sobre os ombros.
Estava parecendo mais jovem, pouco mais do que uma criança.
Era um rosto puro e inocente que se erguia para ele.
— O que você fez? — ela quis saber.
— Exatamente o que me pediu — respondeu o conde.
Fany esperava ansiosamente que ele prosseguisse.
— Informei ao general em comando das tropas, que há em Edimburgo
alguns homens especialistas em consertar chaminés, e que são
excepcionalmente espertos em matéria de escalar paredes, por mais altas
que sejam, e que, portanto, seria aconselhável que redobrasse a vigilância
externa.
— Ele não havia antecipado essa possibilidade?
— Não. Nunca lhe ocorreu que alguém pudesse tentar entrar no palácio,
através desse meio.
Fany deixou escapar um suspiro de satisfação.
— Quer dizer que a parede externa do quarto do rei estará vigiada a partir
de agora?
— O general já estava dando ordens para isso no momento em que o
deixei — o conde esclareceu. — Tenho certeza de que se esse homem,
Hamish, ousar se aproximar da frente do palácio, ou será preso ou morto.
— Ele simplesmente irá embora, quando perceber a impossibilidade de
levar adiante seus planos, e é só isso que importa.
Fany sabia que Hamish nunca seria tão estúpido ao ponto de se deixar
apanhar na tentativa de invadir o quarto do rei.
— Agora você pode parar de se preocupar de uma vez por todas — o
conde anunciou.
— Não só me esquecerei dessa preocupação, como também não terei
mais medo de que Hamish venha a envergonhar meu clã devido a seu
comportamento.
— Era o que eu desejava saber — o conde sorriu.
Ao ver a esposa olhando para ele com tanta ternura e gratidão, o conde
cogitou se deveria ou não se inclinar e beijá-la.
Era o que qualquer homem teria feito.
Mais uma vez, porém, ele constatou que era apenas admiração o que via
em seus olhos, e não amor.
Era amor que ele desejava, e pelo qual esperava, e continuaria esperando.
De modo abrupto, por estar começando a sentir o sangue latejando em
suas têmporas, o conde se voltou para a porta.
— Você tem uma hora para se preparar. Não podemos nos atrasar para o
jantar.
— Estarei pronta — Fany prometeu. — Quero te agradecer ainda uma vez
por ter agido com tanta presteza.
O conde se afastou em direção ao quarto contíguo.
Foi preciso um grande esforço de sua parte para não voltar e ficar ao lado
dela, ao menos para conversarem.
Estava se sentindo cada vez mais atraído pela esposa.
Ao vê-la há poucos instantes, tão linda na cama, ele se sentira tentado a
arriscar tudo e lhe confessar imediatamente que já se apaixonara.
Seu autocontrole, no entanto, bem como seu instinto de escocês lhe dizia
para esperar, para manter a calma, por mais difícil que fosse.
— Ela aprenderá a me amar. Sei que um dia me amará — ele dizia a si
próprio. — Um passo em falso poderá ser desastroso. Tenho de tomar
cuidado para que ela não volte a sentir medo de mim, como sentiu em nossa
primeira noite de casados.
Ele foi até a janela e ficou ali por um longo tempo olhando para as árvores
no jardim, embora o que realmente visse fosse Fany com sua estranha
beleza espiritual, seus olhos brilhantes e reveladores, e a maciez dos lábios
rosados.
Por estar se sentindo tão aliviada com a comunicação do conde, Fany
relaxou por alguns instantes entre os travesseiros.
Em sua mente passavam os pensamentos de que por duas vezes ela e o
conde haviam salvo seus clãs. Uma vez através do casamento, e agora, em
particular, de um escândalo, que poderia assumir proporções que jamais
seriam esquecidas.
A visita do rei a Escócia fora, até aquele momento, um grande sucesso, e
precisavam lutar para que assim continuasse.
No entanto, havia ainda muitos dias pela frente.
O fato de ainda existirem barreiras entre a Escócia e a Inglaterra era de
conhecimento geral.
O ódio que fora despertado pela crueldade do duque de Cumberland e de
suas tropas inglesas ainda resistia na mente de alguns escoceses.
A visita de George IV, contudo, como rei tanto da Inglaterra quanto da
Escócia fora um marco importante na implantação final da paz.
“Como eu poderia permitir que Hamish arruinasse algo tão belo?”
Fany sabia que, graças ao conde, agora o rei se encontrava a salvo.

O jantar foi um acontecimento animado e divertido.


O rei estava muito bem-humorado e distribuiu a todos os convidados,
especialmente às damas, fartos cumprimentos.
Ao mesmo tempo, com seus comentários perspicazes, manteve todos os
presentes alegres e sorridentes.
Um gaiteiro tocou para o rei e seus convidados, e ao final da
apresentação, as damas se retiraram, segundo o costume.
Todas se reuniram numa das grandiosas salas de estar e conversaram
sobre o evento em que o rei receberia todas as damas da Escócia para um
chá, assim como recebera os cavalheiros na tarde anterior.
O conde indagara a Fany, se gostaria de estar presente a cerimônia de
apresentação, mas ela recusara.
— Eu não teria sido convidada a comparecer se não estivesse casada com
você — ela comentou. — Dessa forma, uma vez que já o conheço e que até
cheguei a conversar com ele algumas vezes, não quero tomar o lugar de
outra, que talvez nunca mais tenha a oportunidade de encontrá-lo.
O conde refletiu que a esposa demonstrava bom senso ao recusar o
convite.
Fany se limitou, então, a ouvir a respeito das roupas que as damas
vestiriam para a ocasião.
Todas queriam se apresentar absolutamente fantásiticas para que o rei
demonstrasse sua admiração por elas.
Fany nada comentou sobre a posição que tomara, e ficou feliz quando viu
se aproximar o horário de se recolher.
Ela preferiria continuar a ler seu livro, a ter de ouvir mais conversas triviais.
Além disso, sentia-se muito cansada, pois devido à preocupação por causa
de Hamish, quase não dormira a noite anterior.
Aquela noite, contudo, com a impossibilidade de Hamish injuriar o
monarca, devido às providências tomadas pelo conde, ela tentaria não mais
pensar no assunto.
Quando a criada de quarto a deixou, Fany foi até a janela e puxou as
cortinas.
As estrelas estavam ainda mais brilhantes no céu do que estiveram na
noite anterior, e não havia sinais de nuvens de chuva.
Era noite de lua cheia, e seus raios prateados iluminavam todo o jardim e o
parque.
Fany se lembrou do mar e sentiu saudade da vista que tivera de seu
quarto no castelo Brara.
— Logo voltaremos para casa — ela pensou, com o coração pulsando
subitamente mais rápido.
Seria excitante ficar a sós com o conde, tanto na viagem de regresso,
quanto em seu castelo.
Agora que não sentia mais medo dele, tinha muitas coisas para lhe dizer.
— Nossa viagem de volta para casa será como uma lua-de-mel — ela
pensou.
Afastou-se, então, da janela, e se deitou.
O sono se anunciara sem prévio aviso, e ela foi obrigada a abandonar seu
plano de continuar a ler.
Apagou as velas e ficou olhando para as estrelas através da janela aberta,
que assim deixara, devido ao excessivo calor daquele dia e que prosseguira
pela noite.
Era uma pena que não fosse uma janela de caixilhos como a que possuía
em seu castelo, mas sim uma janela em estilo georgiano, daquelas que se
erguiam pela base.
Dessa forma, não era possível abri-la de todo.
Mas, o importante é que não a impossibilitava de contemplar as estrelas.
Cerca de uma hora mais tarde, Fany ouviu o conde entrar no quarto dele e
cogitou o que ele teria conversado com o rei.
Em todas as vezes que ouvira os dois conversarem, não soubera a quem
atribuir maior inteligência e sagacidade.
Por alguns instantes, ela ouviu as vozes do marido e do valete, mas em
seguida, se fez silêncio.
Imaginava-o na cama com muito sono.
“Gostaria muito de poder estar conversando com ele”, ela pensou. “Afinal,
há uma série de perguntas que precisaria lhe fazer”.
No dia seguinte, a agitação seria tanta que, tinha certeza, não lhe dariam
uma única chance de falar com o marido a sós.
— Preciso tentar dormir — ela decidiu.
Porém, no momento em que menos esperava, uma sensação de perigo a
dominou.
Calafrios percorriam seu corpo, fazendo sua pele arrepiar.
Não havia necessidade de explicações ou de indagações.
Ela sabia. Simplesmente sabia que algo de horrível estava para acontecer.
Sua percepção extra-sensorial lhe dizia.
O alerta soava tanto em seu cérebro quanto no corpo.
Mas seria possível que mesmo após ela ter contado seus temores ao
conde, e este avisado o responsável pela segurança do rei, não houvessem
redobrado a guarda?
Poderia Hamish ter encontrado um jeito de entrar no palácio?
Os pensamentos ricocheteavam por sua mente.
Então, sem que tivesse noção de seus atos, num súbito impulso, Fany
levantou da cama e se encaminhou para a janela.
Seu desejo era olhar para as árvores e para as estrelas como sempre fazia
quando estava preocupada ou confusa.
Ergueu os olhos para o céu.
Em seguida tentou enxergar através da escuridão o banco onde se sentara
à tarde com o conde.
Imediatamente algo lhe chamou a atenção.
Era uma sombra se movendo.
Por um segundo pensou estar imaginando coisas, mas logo teve a certeza
de que havia um homem escalando a parede, à sua direita.
Só poderia ser Hamish, no entanto, ele não estava sob a janela do rei, mas
sob a do conde.
Foi como se um raio a atingisse.
Como pudera ser tão tola? Não era o rei a pessoa a quem Hamish queria
destruir, mas o conde.
Sempre afirmara que a queria para si, que nunca permitiria que alguém a
tomasse dele.
Se matasse seu marido, ela ficaria novamente disponível para se casar
com ele.
Fany correu para a porta de comunicação e abriu-a.
O quarto estava mergulhado na penumbra, pois a única luminosidade
existente provinha da janela aberta.
O conde dormia profundamente.
Fany correu até ele, descalça, sem fazer o menor ruído sobre o tapete
espesso.
Ela o tocou, a mão muito fria.
— Acorde! Acorde! — ela sussurrou, até que o marido abriu os olhos.
— O que foi? — ele indagou, assustado.
— Hamish! Ele está vindo para cá para te matar.
Soldado que era, o conde ficou imediatamente alerta.
Antes que Fany se movesse, ele já saltara da cama.
Ciente da importância de não serem ouvidos, ele falava em tom de voz tão
baixo quanto o dela.
— Esconda-se sob a cama.
Pé ante pé, ele se dirigiu para a janela.
Estava nu até a cintura e como única indumentária, amarrara uma toalha
sobre os quadris.
Espiou com muito cuidado, e o que viu, fez com que afastasse a cabeça
rapidamente.
Hamish agora deveria estar muito próximo de alcançar o alvo a que se
propusera.
O conde recuou um passo e foi só nesse momento que Fany constatou
que ele estava desarmado.
O terror de que Hamish pudesse esfaqueá-lo ou lhe dar um tiro dava-lhe
ímpetos de gritar.
Seu marido não poderia ficar ali parado sem fazer nada.
Deveria haver alguma arma, algum objeto naquele quarto, que ele pudesse
usar em sua defesa contra o intruso.
Foi com grande dificuldade e muito autocontrole que ela não saiu do
esconderijo para dizer ao conde como agir.
Seu instinto a impedia. O conde certamente não desejaria que interferisse.
Mas ela não suportaria se Hamish o matasse.
Naquele instante, soube que o amava.
Se o perdesse, perderia tudo o que lhe importava na vida.
“Eu o amo ... eu o amo”.
Desejaria poder gritar essas palavras para que o marido tomasse mais
cuidado.
No silêncio absoluto da noite, ouviu-se o primeiro ruído da aproximação de
Hamish.
Um som abafado.
Ele deveria estar escalando a parede com os pés descalços.
E o conde continuava imóvel.
Ao ouvir um segundo ruído, Fany levou ambas as mãos à boca para
sufocar o grito que insistia em lhe escapar da garganta.
“Por favor, meu Deus, salve-o! Não permita que ele morra nas mãos de
Hamish. Ele é bom, é gentil, é um homem maravilhoso!”, ela rezou.
Hamish agora alcançara a janela.
Com as mãos agarradas ao lintel de madeira, ele foi surpreendido pelo
conde, que se moveu com a rapidez de uma cobra ao dar o bote, e
empurrou a vidraça sobre os dedos do assaltante.
Hamish gritou, puxou as mãos num gesto instintivo e caiu.
Ouviu-se mais um grito e depois o silêncio.
O conde estava imóvel, sem fôlego.
Fany correu ao seu encontro e o abraçou.
— Oh, você está salvo! Tive medo que ele fosse te matar!
O conde sentia o corpo trêmulo da esposa através do tecido fino da
camisola.
Sem poder se controlar, por ter conseguido o que tanto esperara, ele a
beijou.
Ao sentir os lábios quentes e macios sobre os dela, Fany viu uma luz
envolvê-los.
Um prazer que nunca experimentara antes parecia fazê-la flutuar até as
estrelas.
O marido a beijava, apertava-a com força entre seus braços e tornava a
beijá-la.
Só depois de muito tempo, ele ergueu a cabeça e a fitou dentro dos olhos.
— Nunca me senti assim antes.
Sem esperar por sua resposta, ele a beijou outra vez e a carregou até a
cama.
— Eu te amo — ela murmurou.
— Também te amo, meu amor — o conde sussurrou.
Ele se deitou ao seu lado e ela se sentiu inebriada por sua presença.
— Pensei que Hamish fosse te matar. Você não tinha nenhuma arma com
que se defender.
— Apenas meu cérebro, graças a Deus.
— Acha que ele está morto?
— Tenho certeza que sim. Ninguém poderia cair desta altura e sobreviver.
Fany deixou escapar um suspiro de alívio.
— Quando os guardas que fazem a ronda pelo palácio o encontrarem,
não poderão imaginar suas verdadeiras intenções e o tomarão como um
ladrão comum. Pelo simples fato de não desejarem que se torne público que
alguém conseguiu penetrar nos jardins do palácio sem ser notado, manterão
o caso em sigilo.
— Você é tão inteligente! — Fany murmurou.
Aquele tom de voz suave e carinhoso, que o conde tanto ansiara por ouvir,
o deixou fascinado.
Beijou-a e beijou-a até que sua atitude começou a se tornar mais
apaixonada, mais exigente.
Fany se sentiu levada ao paraíso.
Não fazia idéia de que o amor pudesse ser tão maravilhoso, que os beijos,
abraços e carícias do marido pudessem ser tão excitantes.
A luz que os envolvia, ela sabia, era a luz divina.
— Eu te amo! Eu te amo! — ela não se cansava de repetir, não apenas
com os lábios, mas também com o coração e a alma.
E seu marido estava sentindo e dizendo as mesmas palavras.

Passou-se muito tempo até que Fany deixou escapar um murmúrio.


— Pensei que estivesse dormindo, minha querida.
— Como poderia, feliz do jeito que estou?
— Não te machuquei? Não te assustei?
— Meu único medo é estar sonhando e acordar sozinha no outro quarto.
O conde riu.
— Nunca mais ficará sozinha. Se soubesse o quanto te quis todas estas
noites.
— Por que não me disse?
— Estava esperando que você também sentisse amor.
— Descobri que te amava quando soube que Hamish poderia matá- lo. Foi
uma agonia não poder fazer nada para te proteger.
— Por mais problemas que seu clã possa ter me trazido, sempre serei
grato a eles, e mesmo a Hamish, por terem feito você perceber que é minha.
— Mas eu já te amava, sem saber. Como nunca me apaixonei antes por
outro homem, não sabia o que significava.
— E agora?
— Te amo com todo o meu coração.
— Também te amo. Todinha. Adoro seu cérebro tão inteligente. Seu jeito
de se comportar e de dizer coisas sempre inesperadas. Adoro sua beleza,
sua bondade. E, meu amor, adoro seu corpo que desejo ter só para mim.
— Ele é seu. Seu para sempre. Nunca deixe de me amar. Nunca fui tão
feliz em minha vida.
O conde tornou a beijá-la.
— Acabo de decidir o que faremos. Contarei ao rei amanhã que acabamos
de descobrir que nos amamos e que não estamos casados apenas para
salvarmos nossos clãs.
— Por que você quer lhe contar isso? — Fany estranhou.
— Porque quero a lua-de-mel a que temos direito. Acho que seria muito
difícil ter de suportar a presença do rei e de tanta gente, quando só quero
estar sozinho com minha adorada esposa.
Fany riu.
— Nunca pensei que você fosse um homem de temperamento tão
ardente.
— Pois sou. E não vejo a hora de levá-la para nossa casa, dessa vez
numa viagem mais confortável.
— Como?
— Estive falando ontem com lorde Kulldonan. Ele está precisando de
dinheiro, e por isso disposto a vender seu iate, que lhe dá muita despesa.
Acho que o comprarei amanhã mesmo.
— Quer dizer que poderemos viajar em lua-de-mel num iate?
— Exatamente. — O conde sorriu. — Conheceremos Orkney e as ilhas
Shetland e todos os outros lugares que te agradarem.
Ele fez uma pausa.
— Agora que Hamish se foi, finalmente teremos paz entre nossos clãs.
Não precisaremos nos apressar para voltar. E você não terá de se
preocupar com mais nada, exceto comigo.
— É tudo o que quero. Passarei meus dias dizendo o quanto te amo.
— Nunca ouvirei essa declaração o suficiente. Repita, minha querida
esposa, você me ama como jamais amou alguém?
— Te amo, te amo, te amo.
E as palavras acabaram se tornando desnecessárias naquele momento,
para darem lugar ao sentimento do amor.

FIM

QUEM É BARBARA CARTLAND?

As histórias de amor de Barbara Cartland já venderam mais de 35O


milhões de livros em todo o mundo. Numa época em que a literatura dá
muita importância aos aspectos mais superficiais do sexo, o público se
deixou conquistar por suas heroínas puras e seus heróis cheios de nobres
ideais. E ficou fascinado pela maneira como constrói suas tramas, em
cenários que vão do esplendor do palácio da rainha Vitória às misteriosas
vastidões das florestas tropicais ou das montanhas do Himalaia.
A precisão das reconstituições de época é outro dos atrativos desta
autora,que, além de já lei cs crito mais dc trezentos livros, é também Insto
riadora e tcatróloga. Mas Barbara Cartland se interessa tanto pelos valores
do passado quanto pelos problemas do seu tempo. Por isto, recebeu o título
de Dama da Ordem de São João de Jerusalém, por sua luta em defesa de
melhores condições de trabalho para as enfermeiras da Inglaterra, e é
presidente da Associação Nacional Britânica para a Saúde.

BARBARACARTLAND

Não perca a próxima edição

Ritual de outono

O marquês de Wynstanton segurou Flora Romilly pela cintura e elevou-a


até a sela do garboso animal. Pela primeira vez tomou consciência de ter
nos braços uma pessoa muito delicada, leve como uma pluma e adorável
como um anjo. Porém, pela aldeia corria a notícia de que a bela Flora
possuía poderes sobrenaturais e não se podia afirmar que o usasse apenas
para o bem... Um arrepio percorreu a espinha do marquês ao imaginar que
poderia estar se associando a uma perigosa feiticeira...

Você também pode gostar