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Coleção Barbara Cartland 319 - O Noivo Inimigo
Coleção Barbara Cartland 319 - O Noivo Inimigo
Digitalização/revisão; Marisa H
Barbara Cartland
O NOIVO INIMIGO
Leitura — a maneira mais econômica de cultura, lazer e diversão.
NOTA DA AUTORA
Orei George IV foi um dos mais importantes e ao mesmo tempo um dos
mais controversos monarcas que a Inglaterra conheceu.
Enquanto seus inimigos, especialmente aqueles que apoiavam a rainha, o
censuravam e faziam todo o possível para prejudicá-lo, ele, com charme,
bom gosto e personalidade marcante acabou triunfando por todo o país.
Isso não quer dizer que durante seu reinado não tenham .ocorrido alguns
episódios desagradáveis.
Uma parte das ilhas britânicas, a Escócia, sempre foi antagônica a
Inglaterra.
Os escoceses não conseguiam esquecer a crueldade com que o duque de
Cumberland e sua tropa os trataram.
Sofreram muito quando, depois de viverem tantos anos na mesma terra,
foram expulsos com suas famílias, tendo as casas queimadas, sendo
obrigados a atravessarem o oceano até o Canadá.Os escoceses, com suas
próprias lutas históricas entre os clãs, eram como os elefantes: jamais
esqueciam.
Em agosto de 1822, o rei decidiu visitar Edimburgo.
Era a primeira visita de um monarca britânico a Escócia em duzentos anos.
Inesperadamente, a visita foi um enorme sucesso, devendo-se isso em
grande parte a sir Walter Scott, que foi chamado para a função de mestre de
cerimônias.
Sir Walter Scott era o responsável pela atmosfera romântica que passara a
envolver a Escócia depois da publicação de seus livros e poemas.
Para divertir o rei, ele planejou uma das mais esplêndidas paradas que os
escoceses com seus clãs já haviam visto.
Os regimentos das montanhas eram famosos por terem se distinguido com
louvor sob o comando de Wellington contra Napoleão Bonaparte.
Os britânicos, contudo, ainda não tinham noção do quanto esse povo havia
sofrido.
Foi essa disposição do rei de vir a Escócia, que mudou os sentimentos dos
escoceses para com os ingleses e dos ingleses para com os escoceses.
Suas extraordinárias boas maneiras o tornaram conhecido como o
“cavalheiro número um da Europa”.
Algo que também se espalhou pela Europa foi a surpresa que ele fez aos
escoceses ao se apresentar diante da multidão com um kilt.
O número de pessoas que recebeu enquanto esteve em Edimburgo, e o
entusiasmo com que foi recebido pela multidão seria algo que a Escócia se
lembraria por muito tempo.
A visita do rei foi tão importante que criou uma ponte entre o imenso golfo
que dividia o norte do sul da Grã-Bretanha.
1822
II
Pela manhã, ele foi despertado pela gaita de fole que soava ao redor do
castelo.
Não se levantou de imediato, pois queria ouvir aquela música com atenção
enquanto o sol o saudava pela janela.
Uma alegria nova e contagiante o inundou, dando-lhe forças redobradas,
que ele sabia serem necessárias para aquele dia.
Vestiu-se rapidamente e desceu para tomar o desjejum numa saleta que
se abria para a sala de jantar.
Uma deliciosa variedade de pratos o esperava.
Havia salmão do rio e peixes de carne branca do mar, assim como outras
iguarias.
Como sempre fazia quando se encontrava na Escócia, o conde comeu o
mingau, em primeiro lugar, que fora colocado na tigela de madeira que
usara quando criança.
Permaneceu de pé até terminá-lo, o que lhe deu vontade de rir.
Era uma antiga tradição escocesa de que o mingau precisava ser
consumído com o líder de pé, para que nunca fosse surpreendido em
desvantagem, caso alguém resolvesse atacá-lo.
O conde sabia que aquela era a atitude que os criados esperavam que
tomasse, e não quis desapontá-los.
Depois, quando terminava de tomar sua segunda xícara de café, Donald o
interrompeu:
— O líder dos MacSteel está aqui para vê-lo, milorde, e implora que lhe
conceda alguns minutos de seu tempo, antes que comece a atender os
membros de seu próprio clã, que já se encontram a sua espera, do lado de
fora do castelo.
— O líder dos MacSteel! — o conde repetiu, pois aquela visita era, de certo
modo, algo de incomum.
Não estranhou que já houvesse uma fila de pessoas a sua espera.
Sabia que todos queriam ou necessitavam trocar uma palavra com ele,
conversas que, em geral, seriam longas e tediosas.
Mas, era óbvio que, assim como o pai fizera, ele também teria de vê-los.
O que nunca poderia imaginar era que o líder dos MacSteel o procurasse
tão cedo, e com um assunto que, com certeza, se mostraria delicado.
O conde se recordava bem do líder dos MacSteel.
Considerava-o um homem inteligente e interessante, que sabia governar
seu clã muito bem.
Apesar de todas as histórias de mútua hostilidade entre os clãs no
passado, o líder dos MacSteel sempre se dera bem com seu pai.
O conde terminou de tomar seu café e finalmente respondeu:
— É claro que o receberei, embora espere que sua visita seja breve. O
conde se levantara e se dirigira para a janela enquanto falava.
Havia um grande número de pessoas no pátio do castelo, e também de
carruagens.
Sem dizer mais nada, o conde deixou a sala de jantar e se encaminhou
para a sala de estar, para onde Donald certamente teria conduzido o
visitante.
Quanto aos homens do clã, ele os receberia no escritório que ficava no
andar térreo, um local amplo onde eram realizados os eventos mais formais,
desde uma reunião até um conselho entre os membros mais idosos.
O outro líder, vestido com as cores de seu clã, o aguardava, em pé, diante
da lareira.
O conde o cumprimentou com um aperto de mão.
— É um prazer tornar a vê-lo, embora deva admitir que sua visita me
causou surpresa.
— Julguei que era exatamente isso que diria, milorde — respondeu o
outro. — Mas eu tinha de lhe falar assim que chegasse pela simples razão
de estarmos ambos envolvidos numa situação bastante difícil.
O conde ergueu uma sobrancelha e indicou a poltrona a seu lado.
— Imaginava que fosse me deparar com uma série de problemas, mas
nunca que eles o envolvessem.
— O que vim lhe dizer, e não estou exagerando, é que se não tomarmos
cuidado, nossos clãs entrarão em guerra, assim como sucedeu no passado.
O conde o fitou, perplexo.
— Não estou entendendo aonde quer chegar.
— Estou lhe dizendo, milorde, que a animosidade existente entre os
MácSteel e os Mcbrara se tornou tão intensa e feroz que mais de dez
homens de seu clã chegaram a perder a vida.
O conde deixou escapar uma exclamação, mas o outro não se deteve no
relato.
— Além dos mortos, há três pessoas gravemente feridas, segundo chegou
ao meu conhecimento, embora eu acredite que o número deva ser bem
maior.
O conde olhava para o líder dos MacSteel como se não pudesse acreditar
em seus ouvidos.
— Nós dois, em cada lado da fronteira, temos perdido grande quantidade
de carneiros e bois, sendo que o seu prejuízo é ainda maior do que o meu.
— Qual a razão para tantas disputas? — o conde quis saber. — Quero
esclarecer desde já ao senhor que não tinha conhecimento dessa situação.
— Os problemas tem se agravado dia após dia, semana após semana, e
mês após mês. E o senhor sabe, tanto quanto eu, que quando um escocês
se zanga, é muito difícil evitar que ele demonstre sua ira fisicamente.
O conde fez um gesto afirmativo com a cabeça.
— Infelizmente sou obrigado a admitir — prosseguiu o senhor de terras —
que o problema tem acontecido mais por culpa de meu povo do que do seu,
e de um homem em particular. Ele é muito esperto e perigoso, mas até
agora não conseguimos provar sua responsabilidade nos crimes.
— Em suma — concluiu o conde —, esse homem parece pretender
instigar sua gente contra a minha até o ponto em que venham a se odiar e
guerrear como o faziam no passado.
— Exatamente — confirmou o líder. — Estou assustado com as notícias
que me chegam a cada dia, de homens de ambos os clãs abandonados e
sangrando até a morte nas charnecas, ou ainda cegos e feridos com tal
gravidade, que se tornam inválidos para o resto da vida.
— É necessário que tomemos alguma providência antes que seja tarde
demais — murmurou o conde.
— O que temos a fazer é deter nossos homens antes que a situação piore
— o senhor de terras afirmou. — Como já disse, dez de seus homens
pereceram, e ninguém sabe com certeza qual a causa de suas mortes, ou
quem seja o assassino. Tenho fortes suspeitas com relação a um
determinado homem, mas não posso provar.
— O que sugere que façamos? — o conde quis saber.
Fez-se alguns minutos de silêncio onde ambos tentaram chegar a alguma
solução.
O lider dos MácSteel parecia não saber o que responder.
— O senhor deveria ter algo em mente quando veio até mim — o conde
protestou com ar de impaciência. — Admito que me ausentei da Escócia por
demasiado tempo, mas o senhor estava aqui durante todo esse período e
deve ter pensado em algum plano que possa deter essa onda de violência
antes que escape totalmente de nosso controle.
— O que sem dúvida ocorrerá a menos que mostremos a nossa gente que
precisamos ter tolerância e boa vontade uns para com os outros, e que o
senhor e eu, como líderes de nossos clãs, somos unidos em laços de
profunda amizade.
O conde olhou para o vizinho com estranheza.
No momento não conseguia atinar com a solução que o outro propunha.
Foi quando o senhor de terras o fitou e explicou num fio de voz:
— O que estou sugerindo, milorde, é que se case com minha filha.
III
O conde olhou para o líder dos MacSteel e por um momento não pôde
acreditar no que acabara de ouvir. Aquela era a sugestão mais absurda que
alguém já tivera a ousadia de lhe fazer.
Se quisesse um romance, se aquela era a palavra adequada, o teria
encontrado em Paris ou em Londres, quando retornara da guerra e de seu
próprio país, onde fora se despedir do pai por ocasião do funeral.
Por ser um homem atraente e tão amigo do rei não faltavam belíssimas
mulheres que lhe oferecessem seus favores.
Assim como o rei tomara uma nobre como sua amante, os membros da
corte sentiam-se incentivados a lhe seguir o exemplo.
Para o conde sempre seria extremamente fácil ter um caso de amor com
qualquer beldade que frequentasse o palácio.
A maioria delas eram casadas e seus maridos tinham posições de
importância na corte.
Muitas viviam no palácio, também, por uma questão de direito, já que se
houvesse uma rainha, elas assumiriam a função de damas de companhia,
segundo a tradição da família.
Elas, portanto, exigiam o privilégio de frequentar o palácio, mesmo que o
rei estivesse solteiro.
O primeiro caso amoroso do conde, o qual ele considerou de importância,
foi com uma condessa muito bonita, cujo marido a deixava continuamente
para cumprir suas missões com o rei.
Essas ausências a deixavam disponível para se entregar a romances com
os cavalheiros que mais a atraíssem, o que era algo comum de acontecer
com todos que a rodeavam no ambiente palaciano.
O conde se sentiu terrivelmente atraído por aquela mulher de rara beleza,
embora seus instintos desaprovassem aquela atitude.
Ele fora educado segundo os padrões escoceses de propriedade.
Acreditava com todo o seu coração e mente, que qualquer mulher que
traísse o marido nada mais era que uma meretriz.
Era isso que todos os seus conterrâneos pensariam a respeito da
condessa.
Assim mesmo era impossível para ele não se sentir excitado por sua
beleza e pela paixão com que correspondia a suas mais ousadas carícias.
Nas ocasiões em que o marido regressava e que ela se tornava um fruto
proibido para ele, o conde passava a dirigir suas atenções para uma outra
mulher.
Ao mesmo tempo sabia que a condessa estava usando-o como se fosse
um garanhão, apenas para lhe satisfazer os desejos.
Ela era pequena, morena, fogosa e insaciável na cama, o tipo de mulher
que ele jamais conhecera antes.
Todas aquelas experiências, não somente com ela mas também com
várias outras beldades da corte, aumentaram, é claro, os conhecimentos do
conde com relação ao amor.
Era sem dúvida, um cumprimento para ele, o fato de que todas o
achassem um amante ardente e apaixonado.
Sua origem escocesa, entretanto, e seus rígidos princípios o faziam se
sentir culpado por isso.
Ele sabia que o comportamento imoral do círculo palaciano era algo que
jamais permitiria em sua própria casa.
Quando pensava em casamento, sabia exatamente o tipo de esposa que
escolheria, pois um dia teria que se decidir a dar esse passo a fim de gerar
um herdeiro para seu clã.
Era essencial que o título de sua família continuasse pelas gerações
futuras assim como chegara até ele, o décimo-quinto conde de Braradale.
Havia poucas famílias na Escócia tão antigas quanto a sua.
Era, portanto, um dever e um privilégio seu poder perpetuar sua linhagem.
No fundo de sua mente, é claro, estava ciente de que seria não só
aconselhável como importante que se casasse com uma jovem escocesa
como ele,
Mus também queria se casar por amor.
Era sensível e inteligente o suficiente para perceber que o que sentira por
todas as mulheres que possuíra, e também o que elas sentiram por ele, não
era o verdadeiro amor.
Não era o amor que os poetas e escritores descreviam em prosa e verso, e
que constituía o tema principal de toda a literatura e história do mundo.
Por ser, embora não quisesse admitir conscientemente, um romântico, o
conde desejava muito se apaixonar por uma mulher.
Não apenas com o corpo mas em especial com o coração e com a alma.
Se tivesse a sorte de encontrá-la, seria isso que ele ofereceria à mulher
com quem se casasse.
Esses sentimentos e anseios não poderíam ser traduzidos em palavras,
mas existiam com sinceridade dentro de sua mente.
Naquele instante, portanto, em que o senhor MacSteel sugeriu que se
casasse com a filha dele, o conde não pôde evitar se sentir chocado.
Sua surpresa, aliás, não teria sido maior caso uma bomba acabasse de
explodir a seus pés.
Ele não conseguiu encontrar palavras para responder à proposta, o que
impulsionou o vizinho a prosseguir:
— Esta, milorde, pode lhe parecer uma sugestão estranha, mas não
consigo encontrar um outro meio de unirmos nossos clãs, de forma que as
guerras esporádicas, que se iniciaram há séculos, e que agora teimam em
eclodir novamente, possam cessar imediata e completamente.
— Como pode estar seguro de que isso aconteceria? — o conde indagou
numa voz que soou amarga para ele próprio.
— Conheço meu clã assim como conheço o seu. Mais do que a antipatia,
ou até mesmo o ódio que nutrem uns pelos outros, o que eles realmente
desejam em suas vidas é a paz e a prosperidade.
Ele fez uma pausa, mas como o conde ainda mantivesse silêncio,
continuou:
— A maior parte dos membros mais idosos e opinantes não deseja
prosseguir na luta contra os Mcbrara. Quanto aos mais jovens, que serviram
no regimento escocês com Wellington, estão mais do que felizes por terem
retornado a seus lares.
O orador fez um gesto de ênfase com as mãos.
— Nem é preciso falar sobre as mulheres. Qual delas não deseja que seu
marido, filho ou irmão esteja seguro de violências, e que compartilhe da
felicidade do lar que ela criou para eles?
Aquele era um pensamento sensato, o conde admitiu, mas, ao mesmo
tempo, sua imaginação trabalhava febrilmente de forma a encontrar uma
saída para recusar a sugestão sem ferir os sentimentos do outro.
Como poderia se casar com uma jovem escocesa completamente
desconhecida?
Ela, sem dúvida, seria uma moça sem cultura e sem os conhecimentos de
etiqueta tão importantes no mundo social que ele tanto apreciava.
Involuntariamente desfilaram ante seus olhos as imagens de todas as
mulheres com quem fizera amor nos últimos tempos.
Todas eram lindas, sofisticadas, vestidas com esmero e bom gosto e a
condessa, então, adorável.
Não conseguia imaginar qualquer garota escocesa, e conhecera muitas no
passado, a quem pudesse amar e ser correspondido da forma que desejava.
Chegara a pensar com freqüência que as conversas mantidas com o rei,
em seu palácio, deveriam ser registradas por escrito de modo a serem
preservadas para a posteridade.
O rei não era somente um expositor brilhante, mas também um duelista
sagaz com as palavras, uma qualidade que até seus piores inimigos
admiravam.
As mulheres que o cercavam, todas de elevado nível social, não se
amedrontavam de enfrentá-lo, pois também eram donas de inteligência e
espírito de competição.
O que dizer das mulheres simples e ignorantes da Escócia e de suas
compleições físicas robustas?
Elas não apenas ficariam chocadas com as conversas que ouviriam no
palácio, mas também se veriam totalmente incapacitadas de contribuir com
uma única palavra sequer a tais diálogos.
Os pensamentos ricocheteavam por sua mente, um atrás do outro.
O silêncio continuou mais uma vez, e mais uma vez foi o sr. MacSteel
quem o rompeu:
— Estou ciente, milorde, de que minha proposta foi um choque para o
senhor, no dia imediato a sua chegada, mas o fato é que deveria ter sido
alertado há muito tempo do perigo que estamos enfrentando com respeito
aos nossos clãs, e que alguma providência deverá ser tomada com a maior
urgência possível.
O conde continuava calado.
— Soube que Sua Majestade, o rei, está de viagem marcada para a
Escócia, e concordo que tenha sido uma infelicidade que esses problemas
tivessem se agravado justamente nesta ocasião.
“Infelicidade era uma palavra suave demais para descrever a situação”,
cogitou o conde.
Sem pensar no que fazia, o conde se levantou de repente e caminhou até
a janela.
Contemplou as flores que cresciam em seu jardim e, em seguida, seus
olhos se dirigiram para o mar.
Ao redor da baía se elevavam as charnecas, cuja luminosidade só poderia
sei encontrada na Escócia.
O local se tornava especialmente encantador quando as urzes floresciam.
Aquele era seu país, aquela era sua gente e todo aquele maravilhoso
cenário estava sendo admirado de seu castelo.
Todo o orgulho existente dentro dele, desde que era uma criança, pareceu
crescer e torná-lo consciente de sua importância.
Assim mesmo, ele se perguntou, como poderia compartilhar toda a sua
vida, todos os seus sentimentos com uma mulher que não possuía nenhum
dos atributos que ele pretendia encontrar numa esposa?
O senhor de terras não tornara a falar, a fim de deixar que o conde
ponderasse sobre a emergência da situação.
Observava cada gesto dele e esperava uma resposta, quando a porta
subitamente se abriu para dar passagem a Donald.
Ao ver o conde junto à janela, ele rapidamente se dirigiu para lá.
— Desculpe-me, milorde, mas estamos com problemas, graves
problemas.
— O que aconteceu? — o conde quis saber.
— Um de nossos pastores, um homem respeitado por todos, foi
encontrado morto nos limites da propriedade.
— Morto! — o conde repetiu, pálido e sem fôlego.
— Nosso povo está se reunindo lá fora, milorde, para comunicá-lo de que
irão à forra contra os MacSteel de uma vez por todas.
O conde olhou em direção ao líder do outro clã, que imediatamente se
levantou e comentou:
— Sinto muito, milorde, era isso o que eu mais temia — ele murmurou. —
É de meu conhecimento que foram homens de meu clã os responsáveis por
essa desgraça.
O conde reconheceu a coragem e a sensatez do vizinho em admitir sua
culpa.
Mas o fato é que ele estava de mãos atadas para resolver, sozinho, o
problema.
O conde estava ciente, também, de que uma guerra entre os dois clãs
seria desastrosa.
Os homens, assim como fizeram no passado, roubariam e dizimariam o
gado e o rebanho dos inimigos e, ainda pior, ateariam fogo as suas casas.
Muitos membros de seu clã e do clã dos MacSteel seriam inevitavelmente
mortos ou feridos.
O líder dos MacSteel estava determinado a impedir essa tragédia.
Ele, como líder dos Mcbrara, teria de tomar uma decisão imediata.
— Falarei com os homens — o conde se prontificou.
— Creio que é exatamente isso que milorde deva fazer — Donald
comentou.
O conde seguiu em direção à porta, que Donald se apressou a abrir, sem
olhar para trás para verificar se o outro líder o acompanharia ou não.
Desceu as escadas e se deteve no hall.
Do lado de fora do castelo, junto à entrada principal, havia um antigo bloco
de pedra, que ainda era usado pelas damas que visitavam o castelo, e que
apreciavam cavalgar.
Esse bloco seria uma plataforma perfeita para alguém que precisasse
discursar diante de um grande público.
Foi isso que o conde fez.
O número de homens que esperava para lhe falar estava aumentando a
cada segundo.
Todos perceberam a chegada do líder e correram para tomar seus lugares
o mais perto possível do improvisado palco.
Houve uma saudação cordial, o conde notou, mas não uma aclamação
entusiástica.
Os homens, que ocupavam as primeiras filas, eram todos jovens e
grosseiros.
Era de seu conhecimento que estavam furiosos com os recentes
acontecimentos.
Alguns até portavam espingardas, embora a maioria carregasse apenas
bastões de madeira.
No entanto, esses bastões também se revelaram aos olhos preocupados
do conde como armas mortíferas, já que haviam sido colocados pregos em
suas pontas.
No momento em que o conde estava prestes a iniciar o discurso, um grupo
de seis homens apontou a distância, aparentemente carregando algo
pesado.
Quando a multidão percebeu o que estava acontecendo, parou de gritar no
mesmo instante, chegando a ficar, aliás, em absoluto silêncio.
O conde aguardou que os seis homens se aproximassem.
Ao chegarem em frente ao castelo a multidão se afastou, abrindo-lhes
caminho para passar.
O que eles carregavam, o conde já sabia através da informação dada pelo
líder dos MacSteel, era o corpo do pastor, que fora assassinado junto ao
limite de suas terras.
Os homens levaram o corpo até o local onde o conde se encontrava e o
deixaram junto à plataforma de pedra.
O conde observou, horrorizado, que o pastor fora morto a pauladas e que
seu rosto ficara irreconhecivel.
O sangue dos ferimentos na cabeça se espalhara por toda a roupa.
Também havia cortes em suas pernas que só poderiam ter sido causados
por facas ou punhais.
O conde cerrou os olhos.
O silêncio sepulcral que fora mantido até a entrega do corpo se
transformou num alarido ensurdecedor.
Os homens do clã gritavam ao mesmo tempo que se vingariam daqueles
que haviam cometido o terrível massacre.
A fúria os consumia e eles pareciam selvagens ao acenarem com as
armas sobre as cabeças.
Os rugidos aumentavam conforme chegavam mais e mais homens ao
castelo.
O conde nada fez para impedi-los durante alguns instantes, pois sabia que
a multidão precisaria extravasar o ódio que lhes dilacerava o peito.
Então, com o braço erguido e a mão espalmada, ele pediu que fizessem
novamente silêncio.
Os gritos foram se acalmando pouco a pouco até que por fim cessaram.
— Meu povo, estou retornando após um longo tempo para meu lar e para
vocês. Estou profundamente consternado por tudo que acabo de saber que
lhes vêm acontecendo, e estou, tanto quanto vocês, extremamente
revoltado que um Mcbrara esteja aqui, a meus pés, barbaramente
assassinado.
Diante desse discurso os homens, que haviam aquietado, irromperam
outra vez em furiosas ameaças contra os McSteel.
— Nós o vingaremos! eles gritaram. Não continuaremos a ser vítimas do
clã que sempre odiamos e que também nos odeia! Mataremos cada
MacSteel que eucontrarmos pelo caminho até que não reste mais ninguém
que possa nos atacar pelas costas, ou que roube nossos animais quando
não estamos por peito.
A essas alturas já eram mais de cem homens diante do castelo, gritando
mais ou menos as mesmas ameaças
Não era difícil para o conde adivinhar, portanto, o que eles pretendiam
fazer.
Buscava inspiração em sua mente e rezava a Deus com desespero para
que encontrasse um meio de dete-los, pois até aquele instante sentia que
nada que pudesse dizer teria qualquer efeito sobre os homens, que estavam
plenamente determinados a levar adiante seus planos de vingança.
Os rostos estavam contorcidos pelo ódio.
Suas vozes haviam se transformado em brados, que causavam arrepios a
quem quer que os ouvisse.
Um brilho de fogo iluminava os olhares ensandecidos, e mais uma vez,
eles começaram a agitar as armas no ar.
Foi com imenso espanto que o conde percebeu, naquele momento, que o
líder dos MacSteel subira na plataforma e que se encontrava a seu lado.
De início, a multidão não o reconheceu.
Em seguida, ao vislumbrarem o tecido xadrez de sua roupa, com as cores
próprias de seu clã, os homens hesitaram, murmúrios se ouvindo por toda a
parte.
O líder levantou a mão.
— Tenho algo a lhes dizer, algo de suma importância e peço que me
ouçam com atenção — ele falou com voz grave e séria.
Pelo simples fato da presença do inimigo ser uma surpresa, as palavras
que todos pretenderiam gritar-lhe no rosto, morreram-lhes na garganta.
Quase poderia se dizer que os homens fizeram total silêncio.
— Só existe um caminho pelo qual Sua Alteza e eu poderíamos evitar um
derramamento de sangue entre ambos os clãs.
Os gritos abafaram-lhe a voz.
Só quando o silêncio voltou a imperar, o senhor de terras prosseguiu:
— Vossa Alteza e eu concordamos que nossos clãs devam se unir e para
que isso seja possível, o líder dos Mcbrara se casará com a filha do líder
dos MacSteel.
As palavras ficaram pairando no ar entre os olhares perplexos e as bocas
semi-abertas.
— Por esse motivo — continuou o líder — eu os convido, não para
comparecerem a um campo de batalha onde eventualmente muitos
inocentes sofreriam, mas para uma cerimônia de casamento onde todos
serão bem-vindos e que será realizada no prazo de uma semana.
A comunicação foi tão inesperada que nos primeiros instantes a multidão
se mostrou pasma, incapaz de falar.
A reação seguinte foi trocarem observações murmuradas.
Como o conde pressentisse que deveria dizer alguma coisa por sua vez,
tomou a palavra:
— O que o líder dos MacSteel acaba de lhes informar, estou bastante
seguro, é do. interesse de ambos os clãs. Trabalharemos juntos para
proveito comum nesta região, bem como para todo o país, pois esperamos
um futuro próspero para a Escócia. E a Escócia para alcançar a
prosperidade, terá de encontrar antes de mais nada, a paz.
Murmúrios se fizeram ouvir novamente.
O conde notou, com alívio, que os homens haviam parado de acenar com
as armas, e que, mais calmos, agora conversavam entre os grupos.
Ergueu, então, ambos os braços e elevou o tom de voz:
— O líder dos MacSteel convidou a todos para uma cerimônia de
casamento. Quero que saibam, aqui e agora, que é meu desejo que todo o
clã esteja presente a fim de testemunhar e se certificar de que eu estarei
comemorando o dia mais importante de minha vida, e também o dia mais
importante para o clã.
Sua voz ficou ainda mais alta durante a comunicação seguinte:
— Esse casamento significa que finalmente após três ou quatro séculos,
nossos clãs não continuarão a desperdiçar um tempo precioso com lutas,
mas passarão, sim, a cooperar com o progresso da Escócia, para que se
torne não apenas um país importante dentro das ilhas britânicas, mas em
todo o mundo.
Ao perceber que a massa o ouvia com atenção, o conde se deteve por um
momento.
— Sua Majestade, o rei, visitará Edimburgo em breve, e eu gostaria, ou
melhor, faço absoluta questão, de que nosso clã represente os habitantes
da montanha com toda a dignidade que possui. Sei que o líder dos MacSteel
pensa o mesmo que eu. Os homens a serem escolhidos para participarem
da parada em homenagem ao rei deverão ser os melhores, os mais finos.
O conde estava lhes dando uma notícia inédita e de muita importância
para a Escócia.
As conversas que chegaram até os ouvidos do conde eram, agora, de teor
diferente.
De repente, porém, um dos homens, que o conde não conseguiu localizar,
gritou:
— Nosso líder voltou e está conosco, outra vez. Vamos saudá-lo com três
vivas!
O homem ergueu a arma com uma das mãos, e tirou a boina com a outra.
Todos os outros o imitaram.
Os vivas e os aplausos pareceram ecoar entre as árvores e as torres do
castelo.
O conde se sentiu comovido.
No momento seguinte, pressentindo o olhar do sr. MacSteel sobre ele,
virou-se e aceitou a mão que ele lhe estendia.
Mais aplausos e vivas.
Não tão altos e entusiásticos, mas ainda assim importantes como sinal de
paz.
Os clãs estavam formalmente unidos.
O conde estava consciente, porém, de que levaria algum tempo até que
todas as mentes se compenetrassem de que os Mcbrara seriam amigos dos
MacSteel, dali por diante.
Ele e o líder do outro clã desceram da plataforma de pedra e voltaram para
dentro do castelo.
A multidão ainda permaneceu reunida no pátio.
Os que haviam se colocado nas últimas fileiras contavam aos retardatários
tudo o que acontecera.
Uma vez no hall, o conde comentou:
— Permita que eu lhe ofereça um refresco. Acho que estamos ambos
necessitados de beber alguma coisa depois do que passamos.
O líder fez um sinal negativo com a cabeça.
— O quanto antes eu chegar em casa, melhor será. Há muitos
preparativos a serem feitos. Como sei que o senhor deverá viajar para
Edimburgo a fim de aguardar o rei, é muito importante que o casamento se
realize antes desse evento.
O conde teve dificuldade em se manter calado, mas o que mais desejaria é
que o casamento fosse adiado até que o rei voltasse para Londres.
No que lhe dizia respeito, quanto mais a data do casamento demorasse a
chegar, melhor seria.
Pela expressão do outro, porém, ele soube que não haveria chance de
evitar o enlace indesejável.
Quer gostasse ou não, teria de se casar com a filha do líder do clã inimigo,
uma mulher que jamais vira em sua vida.
Uma mulher que, estava certo, nada teria em comum com ele.
Mas não havia como negar que a simples presença dela em sua vida
salvaria ambos os clãs.
O conde se despediu de seu vizinho e este deixou o castelo por uma porta
lateral.
O visitante havia deixado sua carruagem nos estábulos por medida de
precaução, já que antecipara, e com toda a razão, que o pátio do castelo
estaria apinhado de membros do clã.
O conde desejaria lhe fazer muitas perguntas, que ricocheteavam em sua
mente, entre as quais as seguintes:
— O que acontecera para que o líder dos MacSteel permitisse que a
situação lhe escapasse do controle, antes de tomar alguma medida que a
sanasse?
Quantos assassinatos já haviam ocorrido?
Pareceu-lhe mais prudente, contudo, indagar em seu próprio castelo, se
haveria alguém que pudesse elucidá-lo.
Foi por isso que preferiu apenas se despedir do outro com a formalidade
normal que a ocasião requeria.
O líder já chegara à porta e estava prestes a sair, quando se voltou:
— Minha sugestão, milorde, é que seria aconselhável que o casamento se
realizasse em curto prazo, digamos não mais do que sete dias. Nesse
período o senhor teria a chance de acalmar os ânimos de seu povo e
interessá-los na magnitude desse evento, e ainda teria tempo para se
preparar e chegar a Edimburgo antes do rei.
O conde teve de admitir que o líder dos MacSteel mais uma vez lhe dera
uma sugestão racional.
Pensar em casamento, contudo, lhe provocava calafrios.
Foi com extrema dificuldade que conseguiu calar o desejo de insistir em
que a cerimônia fosse adiada para depois da visita do rei e seu regresso a
Inglaterra.
Lembrou-se, então, tão vividamente como se ainda estivesse olhando para
ele, do cadáver do pastor, que os homens colocaram a seus pés, junto à
plataforma de pedra, ao lado da qual os cavalos eram colocados, e sobre a
qual as mulheres subiam a fim de facilitar o ato de montar em suas garupas.
Os homens que o haviam trazido, sem dúvida, já o teriam levado embora,
para a vigília na pequena capela, até que os preparativos para o funeral
fossem arranjados.
Nenhum membro daquele clã poderia esquecer que o pastor que todos
conheciam e respeitavam fora brutalmente assassinado.
— Irei ao seu castelo no sábado — o conde comunicou ao sr. MacSteel. —
Se existe algo que deva ser providenciado de minha parte, por favor queira
me informar.
— Estou certo de que já temos tudo de que necessitamos — respondeu
ele — , mas acho de suma importância que seu clã seja muito bem
representado.
— Concordo plenamente — afirmou o conde —, uma vez que é em nome
dele que este casamento estará sendo realizado.
Ele quase falou, “uma vez que é em nome dele que estou fazendo esse
enorme sacrifício”, mas achou mais sábio se calar.
Quando o visitante se foi, ele subiu para a sala de estar, sentindo como se
o mundo todo houvesse virado de cabeça para baixo.
Como era possível?
Como sua vida poderia ter se arruinado de um dia para o outro?
No espaço de algumas horas havia descoberto que seu clã estava na
iminência de entrar em guerra contra o clã vizinho, e o que talvez fosse pior,
se vira comprometido com uma mulher que nem conhecia.
Ela, sem dúvida, não apenas o aborreceria mas também tornaria a vida,
que ele achara divertida e excitante até o dia anterior, um pesadelo.
Entretanto, apesar da infelicidade de seu casamento, ele reconhecia que
era o responsável pela vida e pela segurança de cada membro de seu clã,
homens, mulheres e crianças.
Para manter a paz e alcançar a prosperidade que tanto necessitavam, ele
deveria permanecer na Escócia para sempre.
O conde amava seu lar.
Não podia deixar de pensar, contudo, nos prazeres que a cidade de
Londres oferecia, e que a amizade do rei fora um presente que jamais
esperara receber.
Ele sentiria muita falta de sua vida pregressa, fossem todas as diversões
proibidas dali para a frente.
“O que farei? O que diabos poderei fazer?”, ele se indagava, o coração
apertado no peito.
Mais uma vez se dirigiu até a janela para contemplar o mar.
Como era possível que sua vida tivesse se alterado tão completamente
após um regresso ao lar de apenas uma noite e parte de uma manhã?
Seu desejo era se rebelar contra a crueldade do destino e vencê-lo.
Foi quando ouviu a porta da sala se abrir, dando passagem ao secretário e
seu assessor, que viera receber as instruções para dar andamento ao
trabalho.
O conde, agora, tinha novas e definitivas responsabilidades.
Estava diante de uma nova vida, uma vida que selara para si próprio, no
momento em que apertara a mão do líder dos MacSteel sobre a plataforma
de pedra.
IV
O sol brilhava quando Fany acordou e ela rezou para que isso fosse um
bom presságio.
O pai marcara o casamento para o meio-dia.
Fora servido um desjejum especial, mas ela quase não conseguira comer,
pois só tinha pensamentos para o conde.
Ela o conheceria no altar, onde ele a estaria esperando.
Feio fato de a cerimônia ter sido marcada com tanta pressa, damas-de-
honra ficaram fora de cogitação.
Seu pai afirmara não serem necessárias, e quanto a ajudá-la a se vestir,
as mulheres do castelo realizaram esse trabalho com muita boa vontade,
excitadas que estavam com o acontecimento.
Fany desejaria estar sentindo ao menos a metade do entusiasmo que cias.
Rezou ardentemente para que não cometesse erros, que sua vida não sc
tornasse ainda pior do que antecipava.
Ao colocar o vestido de noiva, sentiu-se aterrorizada.
Dali a horas estaria deixando para trás todos que amava e tudo que lhe era
familiar.
Seria levada para outro castelo com um homem desconhecido. Diante
desse prospecto, ela tentou pensar apenas na cerimônia em si e no que
significaria para o povo.
Sabia que o pai ainda estava nervoso e preocupado, pois poderiam surgir
problemas entre os MacSteel e os Mcbrara quando a cerimônia chegasse no
fim.
Fany, entretanto, sentia que isso não aconteceria, já que Hamish falhara
na tentativa de seqüestrá-la e que dificilmente ousaria comparecer ii seu
casamento.
Porém, a situação poderia se revelar diferente do que ela esperava.
Quando faltavam exatamente cinco minutos para o meio-dia, Fany desceu
as escadas para o hall.
O véu, que sua mãe usara por ocasião de seu casamento, assim como
muitas outras MacSteel, cobria-lhe o rosto e caía sobre os ombros, até se
juntar à cauda do vestido.
A tiara de pedrarias brilhava ao sol como se fossem diamantes
verdadeiros.
A cauda do vestido estava sendo carregada por duas mulheres que
haviam ajudado Fany a se vestir.
Yvonne a estaria esperando junto ao altar.
Seu pai a esperava junto à carruagem guiada por cavalos brancos e não
falou uma palavra, até que estes se puseram em movimento.
— Estou muito orgulhoso de você, minha querida. Sei que concordou com
este casamento para me ajudar e para salvar o clã. Eles, assim como eu,
lhe seremos eternamente gratos.
Fany não respondeu.
Com seu buquê de rosas brancas, sentiu as mãos tremerem.
— Não será fácil, papai.
— Sei disso, mas sei também que você é uma garota de coragem e que
Deus a protegerá, como sempre fez.
O restante do trajeto transcorreu em completo silêncio.
Assim que se aproximaram da igreja, contudo, o som das gaitas de fole os
alcançaram.
A multidão de homens e mulheres de ambos os clãs era enorme.
Fany pôde ver através do véu, que a maioria deles trajava as cores do clã
dos Mcbrara, o que, sem dúvida, agradaria seu pai.
Assim que a carruagem parou, seu pai desceu e a ajudou a fazer o
mesmo.
Nesse instante, os acordes das gaitas soaram ainda mais altos.
Fany e o pai precisaram atravessar a multidão que se repartiu em duas
partes para lhes dar passagem.
Ela sabia que não deveria olhar para os lados e, portanto, baixou
levemente a cabeça enquanto o pai a conduzia.
As crianças atiravam urzes brancas e flores do campo sobre sua cabeça.
Diante da igreja, Yvonne a esperava para carregar a cauda do vestido.
A igreja não poderia estar mais repleta.
Os membros dos MacSteel, que haviam chegado mais cedo, tiveram de
ceder seus lugares aos convidados nobres do conde, o que Fany descobriu
mais tarde, pois não sabiam que haviam ocupado justamente o lado
reservado aos Mcbrara.
Houve ressentimento por parte dos MacSteel, é claro, mas que os
membros mais idosos de ambos os clãs sanara, transferindo-os para a ala
reservada à noiva.
Desconhecendo os problemas, Fany percorreu a nave da igreja, ainda sem
erguer a cabeça.
Adiaria o máximo possível o momento em que tivesse de enfrentar o olhar
do futuro marido pela primeira vez.
Quando ele se colocou a seu lado, ela só percebeu que era bem mais alto
do que esperava.
Continuou sem fitá-lo, deliberadamente.
Ouviu-lhe a voz apenas quando o pastor pediu que repetissem as jutas, e
achou-a profunda e agradável.
O conde falava sem o menor sotaque escocês.
A cerimônia foi rápida de acordo com a recomendação de seu pai.
Quatro pastores realizaram os serviços devido à importância dos noivos,
sendo que dois pertenciam à própria igreja e dois haviam sido enviados pelo
conde.
Os noivos se ajoelharam para receber as bênçãos e no momento de se
levantarem, o conde ofereceu o braço a Fany.
Os dois caminharam juntos até o local onde assinariam o livro de registros.
Ao erguer o véu, Fany sentiu que sua mão tremia.
No momento em que os noivos se prepararam para deixar o altar, os
gaiteiros começaram novamente a tocar.
Dessa vez, Fany pôde olhar claramente para cada rosto fixo no seu.
Na saída da igreja, notou que os gaiteiros eram em número de seis: Irês
vestidos com as cores dos MacSteel e três com as cores dos Mcbrara.
Os músicos os precederam até a carruagem que os levaria de volta ao
castelo, onde seu pai mandara que erguessem a marquise, que, embora
aberta dos dois lados, serviria de proteção caso chovesse.
F.m primeiro lugar os noivos receberam os convidados mais importantes,
mas em seguida cada um dos membros do clã fez questão de lhes apertar
as mãos.
Os cumprimentos levaram cerca de duas horas, e a música das gaitas de
fole os acompanhou durante todo o tempo.
Já eram quase três horas quando o pai de Fany sugeriu que os noivos
cortassem o bolo.
— É melhor que cortem logo o bolo para que a festa e as danças se
iniciem e vocês possam comer alguma coisa sem serem perturbados.
Fany e o conde se dirigiram para a mesa onde o bolo fora colocado, e ele
o cortou com sua espada.
Os criados, em seguida, se encarregaram de dividi-lo em pequenas
porções e em servi-lo.
Todas as jovens o saboreariam com as mentes sonhadoras em seus
futuros maridos.
Fora arrumada uma mesa, no fundo da marquise, para vinte pessoas.
Além dos noivos, ali se sentariam o pai de Fany, os membros mais idosos
de ambos os clãs e os pastores que haviam realizado o matrimônio.
Fany olhou para o marido, pela primeira vez, quando se sentou.
Ele não era nem um pouco parecido com a imagem que fizera.
Era mais jovem e seu rosto não era cruel. Estava sorridente, aliás, por
causa de algum comentário que seu pai fizera.
Parecia um viking saído de um de seus livros.
Fany não fazia idéia de que o marido também a houvesse fitado, surpreso,
quando ela entrara na igreja.
Ele a imaginara como uma mulher alta e gorda, em vez disso era pequena
e magra.
Chegara a pestanejar com medo de que se tratasse da noiva errada.
No momento, então, em que Fany erguera o véu para assinar o livro de
registros, ele a achou a mais linda das criaturas.
Todos os seus receios haviam sido infundados.
A esposa desconhecida era definitivamente adorável, embora parecesse
muito tímida.
Com toda a sua experiência com relação às mulheres, o conde jamais
encontrara uma que o temesse.
Estava acostumado a ser alvo da cobiça das mulheres, que o fitavam
como se estivessem convidando-o com os olhos.
Mesmo depois da cerimônia religiosa e do recebimento dos cumprimentos,
enquanto comiam, ela ainda parecia sentir medo dele.
Isso nunca lhe acontecera antes.
Sabia que qualquer mulher escocesa daria tudo para se tornar sua esposa,
não por sua pessoa, mas devido ao título, a sua posição e à história do clã.
Em Paris, tanto como em Londres, algumas cortesãs chegaram a lhe
disputar o afeto.
Atiravam-se em seus braços antes mesmo que ele lhes pedisse.
Enquanto comiam, Fany não lhe dirigiu a palavra, nem o encorajou a tomar
a iniciativa.
O conde percebia que ela estava com medo e não sabia o que fazer para
desanuviar a situação.
Seria medo de estar casada com um desconhecido, ou medo dele como
pessoa?
Sua vontade de lhe falar era imensa, mas com tantos convidados ao redor,
a conversa teria de ficar para mais tarde.
Enquanto isso, o povo se deliciava com as carnes e bebidas
generosamente servidas.
O baile já havia começado.
Os jovens mais experientes do clã apresentavam a dança das espadas e
eram efusivamente aplaudidos.
A certa altura da festa, o líder dos MacSteel convidou os membros dos
Mcbrara a tomarem parte nos jogos e brincadeiras.
Fany sabia que as festividades se estenderiam até o anoitecer.
Assim que terminou de comer, ela se levantou e se dirigiu para o castelo.
Já era hora de trocar o vestido de noiva pelo traje de viagem.
Todos os homens se levantaram à sua saída.
— Não demoro — ela murmurou, sem coragem de fitar o noivo, que por
sua vez também não tinha coragem de abordá-la.
Dona de tanta beleza, ela já deveria ter ouvido galanteios e recebido
propostas de casamento de muitos outros homens de seu clã, o conde
pensou.
Chegou a cogitar se algum homem a teria beijado, mas a idéia lhe pareceu
improvável.
Havia uma aura de pureza e inocência ao redor dela que ele jamais vira
em outra mulher.
No castelo, Fany trocava de roupa com a ajuda de Yvonne.
Uma das criadas comentou que o verde não era uma cor que trazia sorte.
— Para madame la comtesse trará — Yvonne a interrompera. — Ela
nasceu em fevereiro e sua cor de sorte é a verde, como as esmeraldas e as
florestas.
— Espero que tenha razão — Fany sussurrara.
Ao se olhar no espelho Fany não conseguiu acreditar que se tratava dela
mesma.
O vestido lhe assentara com perfeição, assim como o chapéu.
Nunca se sentira tão elegante em toda a sua vida.
— Jamais poderei lhe agradecer o suficiente — ela beijou Yvonne antes
de sair.
— Mandarei mais três vestidos para o castelo do conde, na manhã da
segunda-feira, que é o dia em que partirão para Edimburgo.
Fany não fora informada sobre isso.
Talvez Yvonne houvesse escutado algum boato por parte dos criados do
conde.
Ao sair do quarto e começar a descer as escadas, Fany viu que o pai e o
conde a esperavam no hall.
Antes de subir na carruagem, Fany se despediu do pai com um beijo, e
apertou a mão de cada um dos anciãos do clã.
— Cuide-se, papai — ela tomou a beijá-lo —, e escreva-me, quando eu
viajar para Edimburgo, contando-me as novidades.
— Escreverei, minha querida, e acho que só notícias boas, pois agora que
está casada, seu marido a protegerá.
Do jeito que ele falou, Fany entendeu que se referia a Hamish.
Não vira sinal dele durante o casamento e rezava para que, após o
fracasso de seu plano de raptá-la, Hamish tivesse desistido da idéia.
Mas nunca se podia ter certeza de nada que dissesse respeito a Hamish.
Fany subiu na carruagem, seguida pelo conde, sob uma chuva de arroz,
pétalas de rosas e urzes brancas.
A multidão, na sua maioria criados do castelo, acenou e assobiou
enquanto os noivos se afastavam.
Na saída da propriedade, os cavalos tiveram de diminuir a marcha para
que os noivos pudessem acenar para os convidados.
Aos gritos de “felicidades” e de “Deus os abençoe”, as pessoas atiraram
arroz e pétalas de flores sobre a carruagem.
Só depois que estavam fora do alcance da vista do povo, Fany sacudiu a
cabeça a fim de limpar o chapéu.
— Ainda bem que terminou — o conde comentou —, mas sem dúvida foi
um casamento que ninguém esquecerá.
— É o que também penso — Fany respondeu.
O restante do caminho foi feito em silêncio.
Fany não sabia o que dizer, e o conde não podia evitar o pensamento de
que a esposa procurara se sentar o mais distante possível dele.
Também não o fitava.
Seu perfil era perfeito, ele percebeu, com o nariz pequeno e reto e o
queixo delicado como o de uma escultura.
Ele pensou que, na primeira oportunidade, mandaria pintar um retrato dela
para que o quadro fosse colocado junto às outras condessas de Braradale.
— Não sei se já te contaram — ele falou de repente —, que o rei está
embarcando em Greenwich hoje e que deverá chegar em Firth of Forth na
quarta-feira?
— Não, ninguém me contou — Fany respondeu com um fio de voz.
— Isso significa que teremos de partir na segunda-feira. Achei que seria
mais rápido e confortável se fôssemos de navio.
Fany assentiu com a cabeça.
— Já comuniquei a todos os envolvidos que estarei levando minha esposa
também. Só espero que Vossa Majestade não se sinta ofendido, pois foi
impossível comunicá-lo, em tempo, que eu deveria me casar.
Como se acreditasse que a esposa não tivesse condições de entender, o
conde explicou:
— O rei sempre exige ser o primeiro a saber de tudo o que acontece.
Nada lhe dá maior prazer do que uma confidência.
— Acha que o rei ficará zangado? — ela indagou, ao notar que o conde
esperava por uma resposta.
— Talvez, mas acabará compreendendo que nós não tivemos escolha.
— Ou nos casávamos ou seríamos casados — ela acrescentou.
Por ser o tipo de comentário que o conde nunca esperaria que ela fizesse,
acabou rindo.
Aquela mudança de atitude em Fany era muito mais animadora do que seu
silêncio ou suas vibrações de medo.
Chegou a cogitar em indagar o motivo de tanto medo, mas achou que
ainda era cedo demais para isso.
Isso poderia piorar as coisas e não era o que ele desejava.
Como a carruagem era puxada por quatro cavalos, não demoraram a
chegar em seu castelo.
Fany já o vira antes, mas somente por fora.
Conforme se aproximavam pelo caminho ladeado de árvores, ela o achou
ainda maior do que imaginara a distância.
Os noivos não foram recebidos com música, pois os gaiteiros, segundo
ordens do conde, haviam ficado na festa.
Assim que entraram, ele comentou:
— Talvez queira descansar até o jantar.
— Sim, realmente estou um pouco cansada após apertar as mãos de
tantas pessoas.
Uma das criadas, uma senhora de certa idade, levou Fany até o quarto.
Ao ver o lugar que o conde lhe havia reservado, sentiu-se impressionada.
Era imenso e possuía três janelas, todas dando para o jardim e para o mar.
Ficava no primeiro andar, próximo à sala de estar.
A criada explicara que o quarto fora ocupado por todos os condes e
condessas de Braradale, em outros tempos.
Seu jeito de falar fez com que Fany estremecesse e olhasse
apreensivamente para a cama de quatro colunas.
Era óbvio que a criada imaginava que ela o conde fossem partilhá-lo, mas
como isso seria possível, se ela nunca vira o marido até aquele dia?
Ele se tornara seu marido somente por não haver outro meio de salvar os
clãs.
— Vossa Alteza costuma jantar às sete e trinta. — A criada ajudou-a a se
despir. — Prepararei seu banho pouco antes das sete.
Fany agradeceu e tentou não pensar no que a esperaria mais tarde.
Por não ter conseguido dormir na noite anterior, ela cochilou algum tempo
e sonhou com o rio, a quem sempre entregara todas as suas preocupações.
Despertou com a criada puxando as cortinas e duas outras trazendo uma
pequena banheira, que foi depositada em frente à lareira.
A água foi perfumada com essência de violetas, o que a reanimou.
Fany colocou o vestido de noite mais simples que trouxera, pois estava
reservando o mais sofisticado para quando o rei chegasse.
Assim mesmo, estava adorável ao chegar à sala de estar, onde o conde a
aguardava.
Ele lhe pareceu ainda mais bonito em traje de noite do que estivera cm seu
kilt, que o transformara em uma espécie de herói saído de um livro de
história ou de aventura.
Fany não imaginava que, agora que a podia ver mais claramente, o conde
também estivesse deslumbrado com sua beleza e com a cor de seu cabelo.
Pensou em elogiá-la, mas se deteve com receio de embaraçá-la, limitando-
se a perguntar se estava à vontade e se fora atendida em tudo o que
necessitava.
Quando o jantar foi servido, o conde a conduziu para a sala de jantar.
Seu tamanho e imponência a encantou, para em seguida, preocupá-la.
O fato de o castelo de seu pai ser muito menor e menos rico poderia dar a
impressão ao conde de que fora condescendente ao aceitar se casar com
uma MacSteel.
Como seu pai poderia competir com a grandeza e luxo do castelo Brara e
com a vasta propriedade do conde?
A comparação fez com que Fany erguesse o queixo, pois nunca se
rebaixaria ao marido, por mais importante que pudesse parecer.
No que dizia respeito ao sangue, eles eram iguais.
Por não saber que tipo de tema deveria abordar, o conde indagou a
respeito dos jogos do ano anterior.
Fany já ouvira conversas desse tipo mais de mil vezes, mas não deu
demonstração de enfado.
— Há um rio em minhas terras — o conde informou, quando ela comentou
sobre o concurso de pesca de salmão —, mas como estou afastado da
Escócia há muito tempo, não sei se pode ser comparado ao seu.
— Voltará para o castelo depois da visita do rei? — Fany indagou
inesperadamente, fazendo com que o marido hesitasse.
— Tenho pensado muito nisso e acho que é o que devo fazer. Meu clã se
sente negligenciado após a morte de meu pai e devido a minha prolongada
ausência.
— É sempre isso que acontece quando o líder não está entre seu povo —
Fany murmurou. — Como não há ninguém para ditar as ordens, nada é feito
a contento. As pessoas não se esforçam para melhorar seu trabalho.
O conde sorriu.
— Acho que estou sendo reprovado e não era isso que esperava.
— Não foi minha intenção — Fany se apressou a se desculpar. — Apenas
comentei que com tanto trabalho a fazer, e sem um líder ...
— Sempre fui ciente de minha responsabilidade como líder — o conde
confirmou. — Nos últimos anos, contudo, fui tão feliz com minha vida na
corte, que não tive vontade de voltar para casa.
E, agora que estava casado, acharia seu castelo, sem dúvida, ainda mais
enfadonho, Fany pensou.
Naquele instante, o gaiteiro entrou na sala e rodeou a mesa por três vezes,
tocando a marcha nupcial, primeiro, e depois o grito de guerra dos Mcbrara.
Tocou tão bem que enquanto recebia o tradicional copo de uísque das
mãos do conde, Fany o aplaudiu.
O homem se inclinou numa reverência e quando ergueu o copo num
brinde o fez não para o conde, mas para ela.
— Vejo que já fez uma conquista. Jock sempre foi violentamente contra os
MacSteel, mas já que a aceitou como minha esposa, só espero que todos os
demais membros do clã façam o mesmo.
— Eles o farão! — Fany exclamou com firmeza. — Casamo-nos por causa
deles, e eles agora não podem nos decepcionar.
— Espero que tudo corra bem, mas assim mesmo acho que precisarei
vigiá-los, enquanto você continuará a se esforçar por agradá-los como fez
agora.
— Espero que consiga.
Fany baixou os olhos e mais uma vez o conde percebeu que ela sentia
medo.
Voltaram para a sala de estar, onde o conde lhe mostrou livros sobre a
Escócia, que julgou fossem agradá-la.
O conde lhe contou, também, sobre tesouros que haviam sido encontrados
nas terras dos Mcbrara.
Fany se mostrou interessada, mas ele, observador como era, notou que
enquanto folheavam juntos os livros, ela cuidava para que seus braços não
se tocassem.
— Foi um dia longo e cansativo. — Ele consultou o relógio de parede.—
Acho melhor irmos dormir.
O conde a levou até a porta do quarto e abriu-a para que Fany entrasse.
— Não demoro — ele avisou.
Fany fechou a porta e se encostou nela ela, deixando escapar um
profundo suspiro.
O conde, entretanto, que pensara que teria de fazer um grande sacrifício
para fazer amor com sua esposa, agora mal podia esperar para tê-la nos
braços.
Por ser um escocês, ele era um pessoa muito sensível, com facilidade
para entender os outros.
Nunca precisara de referências de patrões anteriores, quando resolvia
contratar um serviçal.
Bastava conversar com ele e já sabia o tipo de pessoa que era.
O medo de Fany não lhe passara despercebido desde a cerimônia até a
hora do jantar.
Estava até cogitando se não seria mais sábio deixar de procurá-la aquela
noite, e esperar até que viessem a se conhecer melhor.
Ao mesmo tempo, sua recusa em dormir no mesmo quarto que ela,
poderia parecer um insulto.
Era algo que nenhuma noiva esperaria em sua noite de núpcias.
— Precisarei ser gentil com ela — o conde falou consigo mesmo.
Bebia muito pouco como regra de conduta, algo que aprendera ao
observar as desagradáveis bebedeiras do rei e dos súditos, que o imitavam.
Naquele dia, porém, quando atravessara os limites da propriedade em
direção às terras dos MacSteel pensara que naquela noite, em especial,
necessitaria da ajuda e do consolo do álcool.
Durante a cerimônia e durante o jantar reconhecera que a esposa era
muito diferente do que antecipara e que, portanto, o álcool poderia ser
esquecido.
Quase nem chegara a tocar na taça de champanhe que Donald lhe servira.
O que lhe parecera um doloroso dever tornara-se uma encantadora
aventura, nova, excitante, inesperada.
Qual o homem casado ou solteiro, que não se sentiria excitado diante de
uma jovem tão linda quanto a condessa de Braradale?
O conde se dirigiu ao seu próprio quarto, que estava vazio, já que ele dera
ordens ao valete para não esperá-lo aquela noite.
Ele foi até a janela e puxou as cortinas.
Nunca dormia, quando se encontrava no castelo, sem olhar para o céu e
para o mar.
De vez em quando a lua surgia por trás das nuvens escuras e lançava
raios prateados sobre as charnecas, em torno da baía.
Outras vezes, quando só havia escuridão, seus ouvidos captavam o rugido
das ondas e ele tentava imaginá-las se quebrando na praia.
Naquela noite, as estrelas estavam excepcionalmente brilhantes e o mar
todo prateado.
De repente, ele se sentiu enrijecer.
Alguém se movia pelo jardim, alguém que só poderia ser um inimigo para
se esgueirar pelas sombras daquela forma.
Ao ver uma silhueta esguia passar diante de um arbusto, ele suspirou de
alívio.
Era sua esposa.
Fany, como o conde, por achar embaraçoso que uma criada ficasse a sua
espera naquela noite, a dispensara do serviço.
— Tem certeza que conseguirá se despir sozinha, milady? — a mulher
indagara.
— Sempre fiz isso sozinha em minha casa, por isso não se preocupe.
Assim como o marido fizera, Fany fora até a janela e abrira as cortinas.
Precisava de ar, de muito ar.
Não conseguia nem olhar para a cama de casal, tanto era seu medo.
Ao contemplar as estrelas no céu e as árvores no jardim, ela sentiu que
precisava sair.
A natureza a ajudaria e a confortaria.
Se estivesse em casa, teria ido até o rio, mas quem sabe, ela também não
encontraria aquele que o conde mencionara?
Sem pensar duas vezes, movida pelo pânico, Fany saíra correndo pelas
escadas, para fora do castelo.
Movendo-se entre as sombras das árvores, Fany acreditava que mais cedo
ou mais tarde acabaria encontrando o rio, o que logo aconteceu, pois depois
de algum tempo ela reconheceu o som de águas.
Viu, então, o que jamais esperara: uma cascata.
Era tão linda ao luar que Fany ficou diante dela como que hipnotizada.
As águas caíam de uma altura de cerca de doze metros, corriam sobre as
pedras e continuavam em direção ao mar.
Como o mês de julho fora demasiado chuvoso, a cascata estava forte e
violenta e certamente carregaria para o mar, aquele que por desventura
caísse em sua margem.
Fany cogitou, de repente, que aquela poderia ser sua chance de escapar
ao destino.
Que outra forma melhor de morrer ela poderia encontrar, se não nas águas
de um rio?
— Se fizer isso, todos os membros de nossos clãs pensarão que fui eu
quem a matou — uma voz grave soou atrás dela.
Fany quase deu um salto. Devido ao ruído da cascata, não percebera os
passos se aproximando, mas era o conde quem a fitava, como um deus ao
luar.
— Como adivinhou meus pensamentos?
— Sou escocês, você esqueceu? — ele respondeu com um sorriso.
Fany baixou os olhos e suspirou.
— Estou com medo.
— Sei disso. Percebi que estava com medo assim que a vi ao meu lado no
altar e quando coloquei a aliança em seu dedo. Tive ainda mais certeza
disso durante o jantar.
— Não posso evitá-lo — ela confessou.
— O que está tentando me dizer é que desejava se casar com alguém a
quem amasse, não é? Que acreditava que o amor um dia aconteceria em
sua vida e que você seria feliz em sua glória.
Dessa vez ela conseguiu encará-lo.
— Como pode saber a respeito dos meus sonhos?
— Porque foi isso que sempre esperei que também acontecesse comigo
— ele explicou.
— Então você não queria se casar comigo?
— Não. — Ele foi sincero. — Mas quando te encontrei, vi que era
completamente diferente do que eu imaginava.
— Eu também fiquei surpresa. Nunca esperei que você se parecesse com
um viking.
— Tantos já me disseram isso, que fui forçado a acreditar. E, quanto a
você, já disseram que se parece com um espírito das florestas ou uma ninfa
do rio?
— Como adivinhou? — Fany arregalou os olhos.
— Porque é a verdade.
Os dois se calaram por alguns instantes até que o conde murmurou:
— Acho que não poderíamos ter encontrado um lugar melhor para
iniciarmos nossa vida como marido e mulher. Deixemos que nossa intuição
nos ajude a nos conhecermos para que, mais tarde talvez, possamos iniciar
nossa vida conjugal como ambos desejaríamos que fosse.
— Quer dizer que não dormiremos juntos? —Fany indagou num fio de voz.
— Não até que você queira, ou melhor, não até que nos amemos com o
amor que sempre almejamos encontrar.
Fany apertou as mãos uma contra a outra.
— Se esperarmos, não terei mais medo de você e tudo poderá ser lindo
entre nós.
— É o que devemos esperar e rezar para que aconteça — o conde
afirmou.
Fany olhou para o marido e lhe sorriu, pela primeira vez.
— Obrigada, obrigada por ser tão compreensivo.
— É o que sempre tentarei ser, mas você terá de me ajudar.
Fany olhou mais uma vez para a cascata.
— Se prestar atenção, ouvirá sua voz — o marido sussurrou. — Ela falará
com você assim como costumava falar comigo quando criança.
— O que ela dizia? — Fany quis saber, interessada.
— Contava sobre as aventuras que me esperavam no mundo lá fora.
Quando cresci, passou a aconselhar que eu me preparasse para elas. Dizia
que se eu seguisse sua orientação, nunca me sentiria desapontado.
— E você se sentiu? — ela indagou, ansiosa.
— Não. Adorei cada momento de cada situação que vivi desde que deixei
a Escócia para sair pelo mundo, digamos, para explorá-lo.
Fany entendeu que ele estava se referindo ao tempo em que lutara no
exército ao lado de Wellington, na Espanha, e mais tarde nas batalhas de
Toulouse e Waterloo.
A excitação que a lembrança provocara no conde chegava a ser palpável.
— Agora estou de volta, em meu lar — o conde prosseguiu. — Como
você, eu temi que a aventura e o prazer estivessem terminados para mim e
que minha vida futura seria monótona e prosaica. Eu estava enganado.
O conde olhava para Fany enquanto falava.
— Eu rezarei com toda a minha devoção para que, como você espera,
nosso casamento seja coroado de amor e felicidade — Fany afirmou,
emocionada.
— Algo muito forte, dentro de mim, está me dizendo que será — o conde
respondeu. — Mas, que para isso, não deveremos apressar o destino.
Teremos de esperar até que os deuses nos dêem aquilo que estamos
buscando.
Ele começou a caminhar enquanto dizia as últimas palavras.
— Agora a levarei de volta ao castelo e a seu quarto. Não quero que
apanhe um resfriado. Passaremos, amanhã, um dia o mais tranqüilo
possível, a fim de descansarmos e nos prepararmos para a viagem a
Edimburgo, na segunda-feira.
Fany o acompanhou através do bosque e depois através do imenso jardim.
Era difícil acreditar que o que acabara de acontecer fosse real e que ela
não estivesse sonhando.
VI
Assim que o escudo real foi avistado ao alto das velas enfunadas, cada um
dos navios armados e dispostos em semicírculo, soltou fogos de artifício.
A multidão que o esperava em terra era imensa, e aumentava a cada
minuto.
Pouco antes das duas horas começou a chover forte e persistentemente,
sem contudo dispersar a multidão, ou afugentar carruagens e pequenas
embarcações que tentavam chegar o mais perto possível do iate real.
Em certo momento, a tempestade se tornou tão violenta, que o rei foi
aconselhado a adiar o desembarque para o dia seguinte.
O desapontamento provocou um murmúrio geral.
Um grande número de pessoas, porém, entre as quais sir Walter Scott,
conseguira subir a bordo do Royal George.
O famoso escritor ficara muito aborrecido com essa inoportuna interrupção
da agenda estabelecida.
A única coisa que teve o poder de animá-lo foi o relato das palavras que o
rei lhe dirigira:
— Sir Walter Scott! O homem que mais desejo ver em toda a Escócia.
Mandem-no subir.
Ao se encontrarem, Walter Scott fez um discurso de boas-vindas e
entregou a Vossa Majestade um presente das damas da Escócia.
Antes de tudo, ele se ajoelhou em um joelho e beijou a mão do rei.
O rei prometeu que usaria o mimo, que era uma insígnia, e ordenou, em
seguida, que trouxessem licor de cerejas, com o qual ele desejava brindar à
saúde de sir Walter.
O rei recebeu, além do escritor, muitas outras pessoas durante a tarde.
O conde, entretanto, preferiu não se aproveitar de sua amizade com Sua
Majestade, para se infiltrar entre os muitos que ainda não tinham tido a
oportunidade de conhecê-lo em pessoa.
O que não deixou de observar, também, era que todos que insistiam em
subir a bordo, terminavam ensopados até os ossos.
Não havia razão, ele pensou, em deixar que Fany se molhasse.
A certa altura, a multidão começou a diminuir.
— Creio que seria melhor se voltássemos ao palácio e aguardássemos até
amanhã — o conde aconselhou a Fany.
— A chuva está realmente muito forte — ela concordou. — Sinto tanta
pena de toda essa gente que esperou por seu rei por horas e horas apenas
para ser impedida de vê-lo.
O conde sentiu a sinceridade das palavras da esposa, que provara mais
uma vez ser uma criatura nobre e sensível.
Conduziu-a, então, até a carruagem que os esperava para levá-los de volta
ao palácio, onde jantaram com os demais hóspedes.
Por estarem muito cansados, os dois se desculparam e se retiraram, em
seguida, para seus aposentos.
Os quartos localizados no segundo andar eram muito bonitos e
confortáveis, embora menores do que os outros do primeiro andar.
Suas janelas davam para os jardins, no fundo do palácio.
Havia uma porta de comunicação entre os dois reservados ao conde e
condessa de Braradale, que poderia ser mantida aberta ou fechada
conforme o interesse do casal.
O conde, porém, sequer abriu-a, preferindo se despedir da esposa na
porta principal, que ligava o quarto ao corredor.
Enquanto lhe desejava uma boa-noite, ele não conseguia parar de fitá-la e
de pensar no quanto estivera encantadora durante o jantar.
Não apenas bonita, mas afável e inteligente, mantendo uma conversação à
altura dos demais componentes da mesa.
Entre os hóspedes havia vários nobres e estadistas com suas respectivas
esposas.
O conde percebera, com grande satisfação, que Fany não se mostrara
tímida ou embaraçada.
Conversara com todos de igual para igual.
Chegara a fazer os outros rirem da mesma forma que ele e ela riram
durante a viagem no iate que pertencera a seu pai.
VII
FIM
BARBARACARTLAND
Ritual de outono