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Imaginação e Criatividade na Infância. Ensaio de


Psicologia. In Russian_Voobrajenie i Tvorchestvo v
Detskom Vozraste. Psikhologicheskii Ocherk.
Moscovo: Gosizdat (1930). Imaginação...

Book · January 2012

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1 author:

João Pedro Fróis


University of Copenhagen
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IMAGINAÇÃO
E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA
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LEV SEMENOVITCH VYGOTSKY

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IMAGINAÇÃO
E CRIATIVIDADE NA

INFÂNCIA ENSAIO DE PSICOLOGIA

Tradução do russo, introdução e notas de João


Pedro Fróis

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© Dinalivro, Lev Semenovitch Vygotsky e João Pedro Fróis, 2012

Título original: Voobrajenie i Tvorchestvo v Detskom Vozraste.


Psikhologi cheskii Ocherk. Moscovo: Gosizdat (1930). ( )
Título: Imaginação e Criatividade na Infância. Ensaio de Psicologia.
Autor: Lev Semenovitch Vygotsky (1896-1934)
Tradução do russo, introdução e notas de João Pedro Fróis
Revisão: Alexandre Franco

Capa: Cítrica Design


Paginação: Mário Félix - Artes Gráficas

ISBN: 978-972-576-616-3
Depósito legal: 000 000/12
1.ª edição: Outubro de 2012

Impressão e acabamento: Artipol – Artes Tipográficas, Lda. – Águeda

Todos os direitos reservados para Portugal por


DINALIVRO
Rua João Ortigão Ramos, n.º 17-A
1500-362 LISBOA PORTUGAL
Tel. 217 122 210/217 107 081/84 - Fax 217 153 774
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COLEÇÃO RAZÕES DE SOBRA, N.º 3


A cópia ilegal viola os direitos dos autores.
Os prejudicados somos todos nós.
ÍNDICE

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Introdução à obra .......................................................... 9

Capítulo 1 – Criatividade e imaginação ....................


21 Capítulo 2 – Imaginação e realidade
.......................... 29 Capítulo 3 – O mecanismo da
imaginação criativa... 47 Capítulo 4 – A imaginação da
criança
e do adolescente
...................................................... 57 Capítulo 5 – «Os
tormentos da criação» .................... 69 Capítulo 6 – A
criatividade literária no período
escolar
........................................................................ 75
Capítulo 7 – A criatividade teatral na idade
escolar
........................................................................ 115
Capítulo 8 – O desenho na idade escolar..................
123

Bibliografia

..................................................................... 143 Índice

onomástico ......................................................... 147

Apêndice

........................................................................ 149
Biografia de Lev Semenovitch Vygotsky...................

157 Nota sobre o tradutor

................................................... 159

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INTRODUÇÃO À OBRA

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Robert Rieber – O que é uma teoria e para que serve?
Lev Vygotsky – É um plano ou um conjunto de prin
cípios orientadores que faculta uma explicação
das intenções humanas.
R. R. – Compreendo, mas de onde vem a teoria?
L. V. – Quer dizer, o que nos leva a teorizar? A questão
é complexa, mas tornemos algo claro desde já:
não nascemos com uma teoria e esta não nasceu
da cabeça de Zeus.
R. R. – Somos nós que a criamos, é isso?
L. V. – Não exatamente. Deixa-me pôr a coisa
da seguinte forma: criamos sobre ideias que
existem, construindo-as para que potenciem a
nossa habilidade de descoberta de respostas às
questões que nos interessam.
(Diálogo imaginado)

O interesse de Lev Vygotsky (1896-1934) pela


psicologia da arte, estética teatral e educação estética
acompanhou o seu breve e intenso percurso científico.
A importância que atribuiu à psicologia da criação e
fruição artísticas afirmou-a, pela primeira vez, no livro
Psicologia da Arte (1925), estudo apresentado com
vista à titulação como investigador do Instituto de
Psicologia de Moscovo. No ano seguinte publicou no
livro Psicologia Pedagógica um capítulo sobre
Educação Estética e em
10 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

1927/1928 um artigo com o título «Psicologia


Contempo rânea e Arte» na revista Arte Soviética.1 O
livro Imaginação e Criatividade na Infância (1930) e
dois outros textos
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explicam a pensamento de Vygotsky no domínio da


psicologia da imaginação criativa.2 Como encerramento
deste ciclo estético escreveu o texto «Sobre o
problema da Psicologia da Criatividade do Ator»
(1932) que Roman Jakobson incluiria numa das suas
obras.3
O livro Imaginação e Criatividade na Infância é um
texto de referência dos estudos da psicologia da criativi
dade (Smolucha, 1992; Gajdamaschko, 1999;
Lindkvist, 2003; Smolucha, L. & Smolucha, F., 2012).4
O ensaio está
1
A tradução deste artigo foi publicada pelo autor desta
introdução no Journal of Aesthetic Education em 2011.
2
Imaginação e Criatividade do Adolescente (1931) e
Imaginação e o seu Desenvolvimento na Infância (1932).
Estes textos foram incluídos nas Obras Completas (Vol. I,
1982 e vol. II, 1984) editadas pela Academia das Ciências
Pedagógicas (URSS) e incluídos nas Collected Works of Lev
Vygotsky editadas por Robert W. Rieber e Aaron S. Carton
(Plenum Press). O texto de 1931 foi incluído no The Vygotsky
Reader (1994) editado por René van der Veer.
3
Texto publicado no livro de Roman Jakobson Psichologija tseni
cheskikh chuvstv aktera (Psicologia dos sentimentos de palco
dos ato res), Moscovo, 1936. Incluído nas Collected Works of
Lev Vygotsky editadas por Robert W. Rieber e Aaron S.
Carton.
4
Larry Smolucha e Francine Smolucha (2012), Francine
Smolucha (1992), Gunila Lindkvist (2003), Natália
Gajdamaschko (1999, 2005), Valéria Mukhina (1981) e Iurii
Poluianov (2000) têm desen volvido a interpretação de Lev
Vygotsky sobre a imaginação criativa em várias modalidades
expressivas. Outras edições do presente livro surgiram em
língua russa, respetivamente em 1967, 1991 e 2004
(Vygotskaya & Lifanova 1996; Hakkarainen, 2004). A edição
de 2004 foi incluída na coletânea de textos de L. Vygotsky
intitulada Psicologia do Desenvolvimento da Criança,
INTRODUÇÃO À OBRA 11

organizado em oito pequenos capítulos. Nos primeiros


cinco capítulos, o autor examina os conceitos de imagi
nação e de criatividade, a partir dos contributos
teóricos
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de Pavel Blonsky (1884-1941) no campo da


linguagem, Anatoli Bakushinsky (1883-1939) e Georg
Kerschensteiner (1854-1932) na área do desenho
infantil, Theodule Ribot (1839-1916) na psicologia da
imaginação criadora e Lev Tolstoi (1828-1910) na
pedagogia da escrita criativa, tão do agrado deste
escritor.
Vygotsky apresenta neste ensaio um estado da
arte a partir de uma análise psicológica e pedagógica;
define conceitos, desfaz alguns mitos e apresenta
linhas ins piradoras para a investigação futura com
utilização de exemplos de modali dades expressivas
que as crianças apreciam: o drama, o desenho, a
leitura e a escrita criativa. Todos estes modos de
expressão, que a criança no seu desenvolvimento
elabora e a escola promove, potenciam as funções
psicológicas superiores e têm um natural sig nificado
na educação da criança.
Nos últimos três capítulos apresenta exemplos
concretos a partir de três modalidades expressivas: a
escrita, a dramatização e o desenho. As conclusões e
as exemplificações que usa interessam aos
destinatários originais deste ensaio – pedagogos e
psicólogos.
Não se pretende produzir, no espaço desta intro
dução, uma análise exaustiva sobre a imaginação e a
criatividade no âmbito da Psicologia Histórico-Cultural
editada pela Eksmo. Por se tratar de um ensaio de divulgação
científica, segundo Vassily Davidov (1991) e Pentti
Hakkarainen (2004), este texto não integrou as Obras
Completas (1982-1984). São conhecidas várias traduções:
japonês (1972), italiano (1973), espanhol (1982), sueco
(1995) e inglês (2004).
12 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

de Vygotsky. Põe-se em relevo cinco domínios que o


autor aborda neste texto: problematização da relação
entre a imaginação e a criatividade; definição dos
limites da
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relação entre a imaginação e a realidade; clarificação


de alguns dos mecanismos psicológicos de
encadeamento entre a imaginação e a criatividade;
comparação da imaginação criativa na criança e no
adolescente; e, por último, dos tormentos e
inquietação pela qual os indiví
duos passam na concreção da imaginação.
No primeiro domínio, a imaginação e a
criatividade articulam-se com a expe riência individual.
No seu sentido lato, a imaginação e a criatividade
estão em qualquer dos âmbitos da vida dos
indivíduos: nos mundos da cultura, artes, técnica e
ciência. A imaginação é, pela sua natureza,
antecipatória, porque possibilita ir além do apreendido
dire
tamente. Neste sentido, a plasticidade cerebral e a
memória orgânica são fatores decisivos dos nexos
entre a capacidade imaginativa da criatividade e a sua
«antevisão das coisas».
Na imaginação distingue duas direções: a imagi nação
reprodutiva ligada à memória e a imaginação criativa
que ultrapassa a própria memória. Na infância
encontramos a alternância de uma e outra forma de
imaginação concomitante ao desenvolvimento intelec
tual, estruturada a partir das relações entre quantidade
e qualidade das imagens mentais. Esta alternância,
raiz comum da expressão artística da criança é, para
Vygotsky, evidenciada na perceção sincrética do
mundo que tanto fascina o «adulto atento» ao
desenvolvimento das crian ças. Este tipo de sincre
tismo, o jogo e a atividade lúdica têm um papel
preparatório para o desenvolvimento do pensamento
analítico, permanecendo ao longo da vida com o
indivíduo. De facto, o jogo é a primeira atividade
INTRODUÇÃO À OBRA 13

em que a imaginação criativa surge, primeiro orientada


pela perceção, a memória sensorial e o pensamento
visual, depois mediada simboli camente.
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Para Vygotsky, a atividade criativa é realização


humana, geradora do novo, quer se trate dos reflexos
de algum objeto do mundo exterior ou de
determinadas elaborações do cérebro e do sentir que
vivem e se mani
festam apenas no próprio ser humano. A imaginação,
fundamento da atividade criativa, revela-se de modo
claro em todos os aspetos da vida cultural. Ela é a
abertura à criação artística, científica e técnica. A
cultura, a técnica e a ciência são produtos da
imaginação e da criatividade: «toda a descoberta,
grande ou pequena, antes de se con
cretizar e de se consolidar, esteve unida na
imaginação como uma estrutura mental mediante
novas combina ções ou correlações». O outro aspeto
importante para Vygotsky reside em que a criatividade
tem uma origem social, veiculada através da atividade
de troca simbólica entre os indivíduos, palavras, ou
através do diálogo com uma «pintura» ou da leitura de
um texto literário; é historicamente determinada e faz
parte de um sistema de significados mais complexo
que se modifica ao longo dos estádios de
desenvolvimento humano.
Um dos aspetos que deve ser sublinhado diz res peito
ao princípio criativo inerente ao desenvolvimento
humano: ele é comum a todos os seres, é o fulcro da
vida das pessoas. Com alguma frequência
reconhece-se que a atividade dos poetas e dos
cientistas é «naturalmente» cria tiva; no entanto, temos
dificuldade em assumir o mesmo na atividade do
«homem comum». Vygotsky enfatiza a
transversalidade do processo criativo aos vários
grupos. Ao considerarmos a criatividade deste modo,
encontramo-la
14 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

nessa situação na infância e noutros perío dos da vida;


mas avisa que as formas de criatividade mais
elaboradas, espe cíficas, se encontram presentes
apenas em grupos restritos
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de indivíduos e são reveladas precocemente.


O segundo domínio respeita às características, ao
tipo e à qualidade das conexões criadas entre a
imaginação e a realidade. Qualquer imagem mental,
por mais fantástica que seja, encerra sinais da
realidade externa. Os traços da imaginação
fundam-se nas experiências precoces do homem: a
primeira forma de ligação entre a imaginação e a
realidade faz-se a partir das primeiras experiências do
sujeito com o «outro». É neste espaço entre a
realidade interna e externa, espaço potencial de
desenvolvimento, que a imaginação tem lugar. A
segunda forma de ligação entre a imaginação e a
realidade corporiza-se no produto final da imaginação
com os elementos complexos da rea lidade. O quadro
que se organiza na nossa mente sobre um qualquer
acontecimento, no qual não participámos, resulta do
trabalho da nossa imaginação. A imaginação
(imaginatio) é, para Vygotsky, uma cognição sensível,
uma capacidade para a reprodução de impressões
sensoriais, tal como Alexander Baumgarten
(1714-1762) a definiu. A terceira forma de ligação
entre a imaginação e a realidade é a emocional – «os
psicólogos há muito notaram, que cada sentimento
tem não apenas uma expressão exterior corpórea,
mas também interior, que se mostra na escolha dos
pensamentos, das imagens e impressões».
A maior parte das imagens produzidas pela ima
ginação, quaisquer que elas sejam, realizadas nos
textos literários, nas obras artísticas, estão de facto
contaminadas e contaminam através desta lei
psicológica da realidade emocional que o autor
formula neste texto. Por último, a
INTRODUÇÃO À OBRA 15

quarta forma de ligação entre a imaginação e a


realidade enfatiza que a primeira pode criar o novo,
sem qualquer correspondência com a realidade,
levando à formulação
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da pergunta: para que serve afinal a obra artística?


O terceiro domínio que o autor propõe respeita à
descrição do mecanismo psi cológico da imaginação
criativa. Ela integra as características singulares do
objeto, as suas modificações; por exemplo, o exagero
ou a subestimação das situações e dos elementos do
texto – a ligação de elementos imutáveis em novas
imagens totais, a sistematização destas imagens, as
associações e as dissociações das impressões
através da perceção, a sua cristalização e
corporização – «a paixão das crianças pelo exagero,
tal como dos adultos, tem fundamentos internos
[psicológicos] muito profundos», que ora enfatizam, ora
minimizam as necessidades e aspirações de cada um
de nós, alimentam-nos cognitiva e emocionalmente.
O quarto domínio caracterizador da problemática
da imaginação criativa diz respeito à relação entre a
experiência e a criatividade na criança e no
adolescente. Neste âmbito, propõe uma separação
entre a imaginação plástica, que usa as impressões
externas, e a imaginação emocional, que elabora a
partir do próprio sujeito. Escla
recemos que «a imaginação da criança não é mais
pobre nem mais rica do que a do [adolescente] ou do
homem adulto», refere Vygotsky, ela modifica-se ao
longo do processo do crescimento até atingir um certo
tipo de maturidade, facto que deve a todo o momento
estar presente na mente dos educadores.
Por último, Vygotsky fala da «angústia» que
quase sempre advém do ato de criação. Nem sempre
o impulso para criar vai ao encontro da capacidade
exigida para a
16 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

criação e neste processo há um sofrimento, quase


sempre sentido e cons ciente, inerente à tentativa de
consecução das imagens produzidas pela imaginação
e à sua urgência
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de materialização – «Não existe no mundo sofrimento


que se manifeste com tanta intensidade como o
tormento da palavra; em vão, às vezes, se irrompe da
boca um grito louco: inutilmente [a palavra] de amor
está pronta a incen
diar a alma porque por vezes a nossa pobre linguagem
é fria e miserável», disse Fiodor Dostoievsky.
Neste ensaio, o desenvolvimento teórico sobre a
imaginação e a criatividade foi organizado como um
dos fundamentos da pedagogia da imaginação
criativa. Em todos os capítulos relaciona a teorização
sobre a imagina
ção e a criatividade com os exemplos das
aprendizagens na área da escrita criativa, da
expressão dramática e do desenho. Para Vygotsky, a
pedagogia da criatividade não pode ser reduzida à
activi dade educativa supletiva ou a uma qualquer
moralidade, como é sugerido por alguns; ou à
expressão catártica, que perpassa nos discursos
daqueles, que aparentemente desejam a sua
presença na escola. A pedagogia da criatividade é
uma possibilidade real para o desenvolvimento
cognitivo e emocional dos indivíduos.
No diálogo imaginado que serve de epígrafe à intro
dução à obra Vygotsky diz que a teoria é sempre uma
construção de ideias que se dispõem para nós. Foi
assim que partiu à descoberta de respostas sobre um
dos seus interesses maiores: a imaginação como um
impulso real da criatividade. É este o desafio proposto
neste ensaio.

Lisboa, setembro, 2012

João Pedro Fróis


INTRODUÇÃO À OBRA 17 Agradecimentos

Agradeço ao professor René van der Veer da Univer Copyright ©


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e)

sidade de Leiden a leitura do texto introdutório. A


Halima Naimova coube o acompanhamento da
tradução em todas as suas etapas bem como da
tradução dos poemas e fragmentos literários utilizados
por Vygotsky.

Bibliografia

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18 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

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VYGOTSKY, L. S. (1930). Voobrajenie i tvorchestvo v
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(Imaginação e criati vidade na infância. Ensaio de
Psicologia). Moscovo: Gosizdat.
VYGOTSKY, L. S. (1965 /1925). Psikhologia iskusstva
(Psicologia da arte). Moscovo: Iskusstvo.
INTRODUÇÃO À OBRA 19

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VYGOTSKY, L. S. (1984). Sobranie sochinenii. Problemi
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VYGOTSKY, L. S. (1990). «Imagination and creativity
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VYGOTSKY, L. S. (2004). Psikhologia razvitia rebionka
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Eksmo.
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CAPÍTULO 1

CRIATIVIDADE E IMAGINAÇÃO
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Qualquer ato humano que dá origem a algo novo


é referido como um ato criativo, independentemente do
que é criado: pode ser um objeto do mundo exterior ou
uma construção da mente ou do sentimento que vive e
se encontra apenas no homem. Se observarmos o
compor
tamento do homem e toda a atividade que desenvolve,
com facilidade reparamos que podemos distinguir dois
tipos de atividade. A primeira, que podemos designar
de reprodutiva ou reprodutora, está associada, de
modo intrínseco, à nossa memória; a sua essência
consiste no facto de o homem reproduzir ou repetir
modos de com
portamento já anteriormente elaborados e produzidos
ou ressuscitar traços de impressões anteriores.
Quando me lembro da casa onde vivi na minha
infância, ou de países distantes que visitei no
passado, estou a reproduzir os traços daquelas
impressões absorvidas na infância ou durante as
viagens. Do mesmo modo, quando desenho a partir
da natureza, escrevo ou faço algo segundo um
modelo, em todas estas situações reproduzo apenas o
que está perante mim, ou o que foi por mim anterior
mente assimilado e elaborado. Em todos estes casos,
o denominador comum é o facto de que a minha
atividade não cria nada de novo, tão-só é baseada
numa repetição mais ou menos cuidadosa de alguma
coisa já existente.
22 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

Compreende-se assim facilmente a importância


que tem para a vida do homem a conservação da
expe riência anterior, na medida em que facilita a sua
adaptação ao
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meio exterior, criando e elaborando hábitos regulares


que se repetem em condições análogas.
A base orgânica desta atividade reprodutora, ou
memória, é a plasticidade da nossa substância
nervosa. Designa-se por plasticidade a propriedade de
uma qual quer substância que possui a capacidade de
se alterar e de conservar os vestígios dessa alteração.
Assim, dire mos que a cera é mais plástica do que a
água, ou do que o ferro, porque facilmente se sujeita à
transformação, conservando melhor do que a água os
vestígios das suas modificações. Somente estas duas
qualidades, tomadas juntas, constituem a plasticidade
da nossa substância nervosa. O nosso cérebro e os
nossos nervos, providos de uma enorme plasticidade,
modificam com facilidade a sua estrutura delicada sob
a influência destas altera ções, ou outras ações,
conservando os seus vestígios sob determinada
condição: que as ações sejam suficien temente fortes
ou se repitam com bastante frequência. No cérebro
ocorre algo semelhante ao que acontece com a folha
de papel quando a dobramos ao meio; no lugar da
dobra fica a marca da dobra – resultado da modifi
cação produzida; a marca da dobra ajuda a repetição
futura dessa mesma modificação. Basta soprarmos a
folha para que ela dobre no mesmo sítio, onde ficou a
marca da dobra.
O mesmo acontece com a marca deixada pela
roda na terra mole: forma-se um trilho que fixa as
modificações efetuadas pela roda ao passar na terra e
que facilitará no futuro passar por ali novamente. No
nosso cérebro, as
CRIATIVIDADE E IMAGINAÇÃO 23

excitações nervosas fortes ou frequentemente


repetidas produzem trilhos semelhantes.
Deste modo, o cérebro revela-se um órgão que Copyright © Dinalivro,

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e)

conserva a nossa experiência anterior e simplifica a


sua repetição. No entanto, se a atividade cerebral se
reduzisse apenas à conservação da expe riência
passada, o homem seria uma criatura capaz de se
adaptar com preponderância às condições constantes
e habituais do meio exterior. Quaisquer novas e
inesperadas trans formações no meio, que não
tivessem sido operadas anteriormente na experiência
do homem, não seriam capazes de causar nele a
necessária reação de adaptação. A par destas
funções de conservação da experiência anterior, o
cérebro está dotado de uma outra função não menos
importante.
Além da atividade reprodutora, é fácil notar no
homem outro tipo de atividade que combina e cria.
Quando eu, por imaginação, desenho um quadro do
futuro, digamos, a vida do homem na sociedade socia
lista, ou um quadro de uma parte da vida passada e da
luta do homem pré-histórico, em ambos os casos, não
repito impressões vividas por mim outrora. Não resta
beleço simplesmente os traços de excitações nervosas
pretéritas que chegaram ao meu cérebro; na realidade,
eu nunca vi fosse o que fosse nem desse passado,
nem desse futuro, e, no entanto, posso imaginá-lo,
formar uma ideia, uma imagem ou um quadro.
A atividade do homem que não se confina à repro
dução das experiências ou de impressões vividas, mas
que cria novas imagens e ações, pertence a esta
segunda função criadora ou combinatória. O cérebro
não é ape nas um órgão que se limita a conservar e
reproduzir a
24 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

nossa experiência passada, ele é igualmente um órgão


combinatório, que modifica criativamente e cria, a
partir dos elementos da experiência passada, novas
situações
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e novos comportamentos. Se a atividade do homem se


reduzisse apenas à reprodução do passado, então
seria uma criatura orientada somente para o passado
e inca paz de se adaptar ao futuro. É precisamente a
atividade criadora do homem que desperta a sua
essência que está orientada para o futuro, tornando-o
criativo e modifi cando o seu presente.
À atividade criadora baseada nas capacidades
com binatórias do nosso cérebro, a psicologia chama
imagi nação ou fantasia. Em geral, não é costume
entender-se os conceitos imaginação e fantasia da
mesma forma que a ciência os interpreta. Na sua
aceção comum, imagina ção e fantasia designam tudo
o que é irreal, o que não corresponde à realidade e,
portanto, sem qualquer valor prático. De facto, a
imaginação, como fundamento de toda a atividade
criadora, manifesta-se de igual modo em todos os
momentos da vida cultural, permitindo a criação
artística, científica e tecnológica. Neste sentido,
definitivamente, tudo o que nos rodeia e foi concebido
pela mão do homem, todo o mundo da cultura, ao con
trário do mundo da natureza, tudo isto é o resultado da
criatividade e imaginação humanas.
«Toda a invenção», diz Ribot, «grande ou
pequena, antes de se realizar de facto e de se
fortalecer, foi conce bida exclusivamente pela
imaginação, como uma estru tura elaborada pela
mente através das novas combinações ou conexões.
«[…] Não sabemos quem realizou a maior parte
das invenções; preservaram-se apenas alguns dos
nomes de
CRIATIVIDADE E IMAGINAÇÃO 25

grandes inventores. A imaginação é sempre revelada


em todas as circunstâncias, qualquer que seja o modo
como é apresentada: individualmente ou em grupo.
Para
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que o arado, que no passado não foi mais do que um


simples bocado de madeira com um cabo queimado,
se transformasse, a partir deste tosco instrumento
manual, no que é hoje, após uma série de
modificações, descritas em manuais especializados,
quem sabe avaliar quanta imaginação foi necessária?
De igual modo, as chamas frágeis dos ramos
resinosos dos pinheiros, que serviram de archote para
o homem primitivo, servem de exemplo para uma
longa linha de invenções até se chegar à ilu minação a
gás ou à iluminação elétrica. Todos os objetos do
nosso quotidiano, não excluindo os mais simples e
habituais, são, por assim dizer, imaginação
cristalizada.»
A partir daqui é fácil depreender que a nossa
repre sentação usual sobre a criatividade não
corresponde ao sentido e à compreensão científica
desta palavra. Na sua aceção habitual, a criatividade
é privilégio e dom de seres eleitos, génios, talentos,
dos que criaram grandes obras artísticas, daqueles
que realizaram grandes descobertas científicas e
inventaram aperfeiçoamentos importantes na área da
tecnologia. Reconhecemos e admitimos de modo
claro a criatividade inerente à obra de Tolstoi, de
Edison e Darwin, mas aceitamos que na vida do
homem comum a criatividade não existe.
No entanto, como já dissemos, este tipo de
conceção sobre o assunto é erróneo. Segundo a
comparação de um dos cientistas russos, a
eletricidade atua e manifesta-se não apenas no local
onde ocorre uma grandiosa tempes
tade ou na luminosidade dos relâmpagos ofuscantes,
mas também na lâmpada da lanterna de bolso; de
igual modo,
26 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

existe criatividade não só quando se criam grandiosas


obras históricas, mas sempre que o homem imagina,
com bina, altera e cria algo novo, mesmo que possa
parecer
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insignificante quando comparado com as realizações


dos génios. Se tomarmos em atenção a existência da
criativi dade coletiva, que reúne todos estes
contributos por si só insignificantes da criatividade
individual, compreende-se melhor como grande parte
de tudo o que foi criado pela humanidade pertence
precisamente ao trabalho criativo e coletivo anónimo
de inventores desconhecidos.
A maior parte das invenções foram realizadas por
desconhecidos, como a propósito deste assunto subli
nhou Ribot. A compreensão científica deste problema
obriga-nos a tratar a criatividade mais como uma regra
do que como uma exceção. É certo que as
manifestações superiores da criatividade são até hoje
apenas acessíveis a um grupo de génios eleitos da
humanidade, mas no dia a dia a criatividade
constitui-se como condição necessária para a
existência e tudo o que ultrapassa os limites da rotina,
mesmo uma pequeníssima quantidade de novi
dade, é devida ao processo criativo humano.
Se compreendermos a criatividade deste modo,
então é fácil notar que os processos criativos se
observam já em toda a sua intensidade na primeira
infância. Uma das questões mais importantes da
psicologia da educação é o problema da criatividade,
do seu desenvolvimento e promoção, e do significado
da atividade criativa para o desenvolvimento geral e a
maturação da criança. Na primeira infância
encontramos processos criativos que se manifestam
sobretudo nos jogos. O rapaz que cavalga um pau
imagina que monta um cavalo, a menina que brinca
com a boneca imagina-se como mãe dela, a criança
CRIATIVIDADE E IMAGINAÇÃO 27

que no jogo se transforma em ladrão, em soldado ou


em marinheiro... todas estas crianças que brincam são
exemplo genuíno e real do próprio processo criativo.
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É evidente que nos jogos as crianças reproduzem


muito do que viram. Todos sabemos qual a
importância que o papel da imitação desempenha na
atividade lúdica. O jogo da criança serve com
frequência apenas como reflexo daquilo que ela viu e
ouviu dos mais velhos; no entanto, estes elementos
da sua experiência anterior nunca se reproduzem no
jogo do mesmo modo como na realidade se
apresentaram. O jogo da criança não é uma simples
recordação do que viveu, é antes uma reelabo ração
criativa das impressões já vividas, uma adaptação e
construção, a partir dessas impressões, de uma nova
realidade-resposta às suas exigências e necessidades
afe tivas. A propensão das crianças para o devaneio e
para a fantasia é resultado da atividade imaginativa,
tal como acontece na sua atividade lúdica.
«O menino de três anos e meio», diz Ribot, «ao
ver um homem a coxear na rua, diz:
– Mamã, olha para a perna deste pobre coitado!
Depois começou a romancear o que via: ele
montava num cavalo muito alto, caiu em cima de um
penhasco enorme e machucou muito a perna; é
necessário encon trar um remédio para curarmos a
perna.»
Neste caso, a atividade combinatória da
imaginação é extraordinariamente evidente. Temos
perante nós uma situação criada pela própria criança.
Todos os elementos desta situação são conhecidos da
criança da sua expe
riência anterior; de outro modo, não poderia ter criado
tal situação. Todavia, a combinação destes elementos
constitui algo de novo, resulta da atividade criativa que
28 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

pertence à criança e não é mera reprodução daquilo


que ela teve oportunidade de observar ou de ver. A
capaci dade de elaboração e de construção a partir de
elementos,
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de combinar os elementos velhos em novas


combinações, constitui o fundamento do processo
criativo.
Com total razão, muitos autores assinalam que as
raízes de tal combinação criativa podem também ser
observadas nos jogos de alguns animais. O jogo do ani
mal é também, com frequência, resultado da
imaginação motora. No entanto, tais rudimentos da
imaginação nos animais não puderam, dadas as
condições da sua existência, enveredar por um
desenvolvimento seguro e consistente, e só o homem
desenvolveu esta forma de atividade ao nível que nele
hoje se apresenta.
CAPÍTULO 2

IMAGINAÇÃO E REALIDADE
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Entretanto surge uma questão: como se origina


esta atividade combinatória criativa? De onde surge,
como é condicionada e como se subordina às leis do
seu desenvolvimento? A análise psicológica desta
atividade destaca a sua enorme complexidade. Ela
não surge de repente, mas lenta e gradualmente,
desenvolvendo-se a partir de formas elementares e
simples para outras mais complexas e, em cada etapa
etária do desenvolvimento, detém uma expressão
particular. Cada etapa da infância é caracterizada por
uma forma de atividade criativa espe cífica. Daí em
diante, esta atividade não está separada do
comportamento humano, mas está na dependência
direta de outras formas da nossa atividade e, em
particular, está ligada à experiência acumulada.
Para compreender o mecanismo psicológico da
imaginação e a atividade criativa com ela conexa, o
melhor é começar com a clarificação da ligação que
existe entre a fantasia e a realidade no comportamento
humano. Já tínhamos chamado a atenção para a ideia
errónea de senso comum que estabelece uma divisória
intransponível entre a realidade e a fantasia.
Tentaremos agora mostrar as quatro formas
fundamentais que ligam
30 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

a atividade imaginativa à realidade. A elucidação que


propomos a seguir ajudar-nos-á a compreender a
imagi nação, não como um capricho da atividade
mental, não
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como atividade que paira no ar, mas como uma função


primordialmente necessária.
A primeira forma de ligação da imaginação com a
realidade consiste no facto de que qualquer criação da
imaginação é elaborada a partir de elementos toma
dos da realidade e retirados da experiência anterior do
homem. Seria um milagre se a imaginação pudesse
surgir do nada ou tivesse origem noutras fontes para
as suas criações e não na experiência passada. Só as
repre sentações religiosas e místicas sobre a natureza
humana poderiam atribuir a origem dos resultados da
fantasia não à nossa expe riência passada, mas a
uma força exterior sobrenatural.
De acordo com essas conceções, os deuses ou
os espíritos incutem nas pessoas os sonhos, nos
poetas a inspiração para as suas obras, ditam aos
legisladores os dez mandamentos. A análise científica
de algumas das mais fantásticas elaborações
afastadas da realidade, por exemplo, os contos, mitos,
lendas, sonhos, etc., convence-
-nos de que as fantasias mais elaboradas que
representam não são mais do que uma nova
combinação de elementos semelhantes, de facto
retirados da realidade, mas apenas submetidos à
alteração ou à reelaboração pela ação da nossa
imaginação.
Como sabemos, a cabana (izbá) com patas de galinha
não existe a não ser no conto, mas os elementos a
partir dos quais o conto é elaborado foram retirados
da expe riência humana; a sua combinação dá ao
conto um tom fantasioso, o que o torna na sua
construção distante da
IMAGINAÇÃO E REALIDADE 31

realidade. Tomemos como exemplo a imagem do


mundo dos contos como Púshkin o descreve:
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Um fio de ouro cinge o tronco
Do verde roble à beira-mar:
O gato sábio dia e noite
Anda pelo fio a cirandar.
Vai à direita – ergue um canto,
Vai pela esquerda – conta um conto.
Ali – prodígio – erra o silvano,
Pousa nos ramos a ondina;
Na vereda insondada o rasto
De alimárias nunca vistas;
Em pés de galinha assenta a casa
Não tem porta, não tem postigo.1

Podemos, palavra a palavra, seguir todo este frag


mento e demonstrar que apenas a combinação dos
elemen tos é fantasiosa nesta narração, mas que os
elementos são tomados da realidade. O carvalho, o fio
de ouro, o gato, as canções, tudo isto existe na
realidade, e apenas a figura do gato sábio que anda
pelo fio de ouro a cirandar e conta histórias, somente
esta combinação dos elementos é fan tasiosa. O que
resta das imagens da lenda, que aparecem depois,
como o silvano e a ondina, ou a cabana assente em
patas de galinha, apenas representa uma combinação
com plexa de elementos que sugerem a realidade. Na
imagem da ondina, por exemplo, encontra-se a
representação da

1
Prólogo de «Russlan e Liudmila», in Aleksandr Púchkin, O Cavaleiro
de Bronze e Outros Poemas. Seleção, tradução e notas de Nina e
Guerra e Filipe Guerra, Lisboa: Assírio e Alvim, 1999, p. 111. (N. T.)
32 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

mulher com a imagem do pássaro que pousa nos


ramos das árvores; na cabana encantada, a imagem
das pernas de galinha com a representação de uma
cabana, etc.
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Deste modo, a imaginação elabora sempre a


partir dos materiais captados da realidade. De facto,
como se pode ver a partir do trecho citado, a
imaginação pode criar novos e novos graus de
combinações, misturando, em primeiro lugar, os
elementos da realidade (o gato, o fio de ouro, o
carvalho), combinando depois as imagens da fantasia
(a ondina, o silvano), etc. Mas os elementos
derradeiros, a partir dos quais são criados os elemen
tos da realidade mais distante da representação fan
tástica, mesmo esses elementos últimos, são sempre
elementos da realidade.
Encontra-se aqui a primeira e a mais importante
lei a que se subordina a atividade imaginativa. Esta lei
pode formular-se do seguinte modo: a atividade
criadora da imaginação está em relação direta com a
riqueza e a variedade da experiência acumulada pelo
homem, uma vez que esta experiência é a
matéria-prima a partir da qual se elaboram as
construções da fantasia. Quanto mais rica for a
experiência humana, mais abundante será a matéria
disponível para a imaginação. Assim, a razão pela qual
a imaginação da criança é menos rica do que a do
adulto deve-se ao facto de a sua experiência ser mais
pobre.
Se seguirmos a história das grandes realizações
e das grandes descobertas, podemos verificar que
quase sempre surgiram como resultado da enorme
experiência previamente acumulada. É exatamente
com esta acumu
lação da experiência que começa a imaginação.
Quanto mais rica a experiência, tanto mais deverá ser
rica, em circunstâncias semelhantes, a imaginação.
IMAGINAÇÃO E REALIDADE 33

A seguir ao momento de acumulação da


experiência, diz Ribot:
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inicia-se o período de amadurecimento (incubação).
Em Newton o período de amadurecimento durou 17
anos e, no momento de estabelecer definitivamente
as suas descobertas nos cálculos, foi invadido por
um sentimento tão forte que foi obrigado a confiar a
tarefa a outrem para a finalização das suas
descobertas. O matemático Hamilton disse que o
seu método de «quaterniões» lhe surgiu de repente
quando atravessava a ponte de Dublin: «Nesse
momento encontrei o resultado de quinze anos de
trabalho». Darwin recolheu dados durante as suas
viagens, observou longamente as plantas e os
animais e, após a leitura do livro de Malthus, que
encontrou por acaso, elucidou definitivamente os
seus estudos e definiu de modo claro a sua teoria.
Exemplos aná logos podem ser encontrados
abundantemente no âmbito da criação literária e
artística.

A conclusão pedagógica que podemos tirar daqui


é a seguinte: se queremos criar bases suficientemente
sólidas para a sua atividade criativa, devemos
considerar a necessidade do alargamento da
experiência da criança. Quanto mais a criança viu,
ouviu e experimentou, mais sabe e assimila. Quanto
mais elementos da realidade a criança tiver à
disposição na sua experiência mais impor tante e
produtiva, em circunstâncias semelhantes, maior será
a sua atividade imaginativa.
A partir desta primeira forma da ligação da fantasia
com a realidade, é fácil deduzir a razão por que é
errada a oposição de uma em relação à outra. A
atividade com binatória do nosso cérebro surge como
não constituindo
34 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

algo absolutamente novo em relação à sua atividade


de conservação, sendo antes, de modo simples, a
complexi ficação desta. A fantasia não está em
oposição à memória,
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apoia-se nela e apresenta os seus dados em combina


ções renovadas. A atividade combinatória do cérebro
fundamenta-se no facto de ele conservar os traços das
anteriores estimulações. O cérebro combina esses
traços em posições diferentes daquelas em que se
encontravam na realidade.
A segunda forma de ligação da fantasia com a rea
lidade é diferente e mais complexa: não se realiza
entre os elementos de construção fantástica e a
realidade, mas entre o produto final da fantasia e
determinados ele mentos complexos da realidade.
Quando eu, na base do estudo das descrições dos
historiadores ou dos viajantes, imagino para mim
mesmo o quadro da grande Revolução Francesa ou
dos desertos em África, então, em ambas as
situações o panorama obtido é o resultado da atividade
criativa da minha imaginação. Ela reproduz o que foi
por mim percebido nas experiências anteriores, mas
cria, a partir destas experiências, novas combinações.
Neste sentido, ela subordina-se inteiramente à
primeira lei anteriormente descrita. E estes produtos da
imaginação elaboram-se a partir destes elementos
trans formados e tomados da realidade, sendo
necessário dis por de uma grande reserva de
experiência passada para podermos construir as
imagens de que falamos através de tais elementos.
Se eu não tivesse uma ideia da carência e da falta de
água nos grandes espaços e dos animais que habitam
o deserto, não conseguiria criar uma imagem sobre o
deserto. Se não tivesse um conjunto de ideias e
representações históricas, também não conseguiria
criar
IMAGINAÇÃO E REALIDADE 35

na minha imaginação um quadro sobre a Revolução


Francesa. A dependência da imaginação da
experiência anterior é aqui revelada com enorme
clareza. Porém, ao
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mesmo tempo, há nestas elaborações da fantasia algo


de novo, que as distingue de modo essencial do
trecho de Púshkin, que analisámos atrás. Quer no
quadro da beira- -mar com o gato sábio, quer no caso
do deserto africano que nunca vi, estes são também,
na sua essência, constru ções da imaginação,
combinações fantasiosas elaboradas a partir de
elementos da realidade. Contudo, o resultado da
imaginação, a própria combinação destes elementos,
num dos casos, não é real (conto), enquanto no outro
caso a ligação destes elementos, o próprio produto da
fantasia, e já não apenas os seus elementos,
corresponde a um fenómeno da realidade. É
exatamente esta ligação do produto final da
imaginação com este ou outro fenó meno real que
representa esta segunda forma, superior, de ligação
da fantasia com a realidade.
Esta forma de ligação torna-se possível apenas gra
ças à experiência alheia ou à socialização. Se ninguém
tivesse visto nem descrito um deserto africano e a
Revo lução Francesa, formar uma ideia adequada de
deserto ou de Revolução Francesa seria uma tarefa
completamente impossível. É porque a nossa
imaginação trabalha, não livremente, em ambas as
situações, mas sim orientada pela experiência alheia,
agindo como se fosse impulsio nada através de outros;
é só graças a isto que se pode conseguir o resultado
obtido na situação presente, no qual o produto da
imaginação coincide com a realidade.
Neste sentido, a imaginação adquire uma função
muito importante no comportamento e no desen
volvimento humanos, transforma-se em meio para o
36 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

alargamento da experiência do homem, porque, deste


modo, ele poderá imaginar o que nunca viu; poderá, a
partir da descrição do outro, representar para si
também
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a descrição daquilo que na sua própria experiência


pes soal não existiu, o que não está limitado pelo
círculo e fronteiras estritas da sua própria experiência,
mas pode também ir para além das suas fronteiras,
assimilando, com a ajuda da imaginação, a
experiência histórica e social de outros. Sob esta
forma, a imaginação é condição absoluta mente
necessária de quase toda a atividade intelectual do
homem. Quando lemos o jornal e conhecemos
inúmeros acontecimentos não testemunhados
diretamente, quando a criança estuda geografia ou
história, quando simples mente a partir de uma carta
tomamos conhecimento do que ocorreu com outra
pessoa, em todos estes casos, a nossa imaginação
está ao serviço da nossa experiência.
Consegue-se uma dependência dupla e recíproca
da imaginação com a experiência. Se, no primeiro
caso, é a imaginação que se apoia na experiência,
então, no segundo, é a própria experiência que se
apoia na imaginação.
A terceira forma de ligação entre a imaginação e a
realidade é a conjunção emocional. Esta ligação
manifesta- -se de dois modos. Por um lado, todo o
sentimento e emoção tende a revelar-se em
determinadas imagens que lhe correspondem, como
se a emoção tivesse a capacidade de escolher as
impressões, os pensamentos e as imagens que estão
em consonância com um determinado estado de
humor e disposição que nos domina nesse preciso
momento. Sabe-se que, no desgosto e na alegria, não
vemos as coisas com os mesmos olhos. Os psicólogos
aperceberam-se, faz tempo, de que cada sentimento
não tem apenas uma expressão exterior corporal, mas
IMAGINAÇÃO E REALIDADE 37

igualmente uma expressão interior, que se manifesta


na escolha dos pensamentos, imagens e impressões.
Eles chamaram a este fenómeno a lei da expressão
dupla dos
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sentimentos. O medo, por exemplo, não se manifesta


ape nas na palidez do rosto, no tremor, na secura da
garganta, alteração do ritmo respiratório e no
batimento cardíaco, mas também, além disso, no facto
de todas as impressões percecionadas pelo homem
nesse momento, de todos os pensamentos que lhe
passam pela cabeça, se rodearem, de uma forma
geral, do sentimento que o domina. Quando o ditado
diz que o corvo assustado tem medo do arbusto, isso
quer dizer que a influência dos nossos sentimentos
tinge a perceção das coisas exteriores. Do mesmo
modo que as pessoas aprenderam há muito tempo a
manifestar por meio de impressões exteriores os seus
estados de espírito interiores, assim as imagens da
fantasia servem de expressão interior dos
sentimentos. O homem assinala o desgosto e o luto
com a cor negra, a alegria com o branco, a calma com
o azul, a revolta com o vermelho. As imagens e
fantasias concedem igualmente uma linguagem interior
para as nossas emoções. Este sentimento seleciona
ele mentos isolados da realidade e combina-os de
modo a que essa combinação, condicionada de
dentro, corresponda à nossa disposição interior e não
à lógica exterior dessas mesmas imagens. Os
psicólogos chamam a esta influên cia – o fator
emocional na fantasia combinatória – lei do sinal
emocional comum. A essência desta lei consiste em
que as impressões e as imagens com um sinal
emocional comum, que causam um efeito emocional
coincidente, tendem a agregar-se entre si, apesar de
não existir entre elas qualquer ligação de semelhança
ou contiguidade, interior ou exterior, entre as imagens.
Resulta numa obra
38 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

combinatória da imaginação, na base da qual estão os


sentimentos comuns, ou um mesmo sinal emocional
que junta elementos diferentes conexos.
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«As representações», diz Ribot, «acompanhadas


pelas mesmas reações afetivas, associam-se
posteriormente entre si, uma vez que a semelhança
afetiva une e tece entre si representações diferentes.
Tal distingue-se das associações por contiguidade,
que consistem na repetição da experiên
cia e das associações por semelhança no sentido
intelectual. As imagens combinam-se entre si, não
porque tenham sido dadas anteriormente em conjunto,
não porque tenhamos percebido relações de
semelhança entre elas, mas porque possuem um tom
afetivo comum. A alegria, tristeza, admiração, o amor,
ódio, tédio, orgulho, cansaço, etc., podem tornar-se
centros de gravidade aglutinadores de representações
ou acontecimentos sem relação racional entre si, mas
marcados com o mesmo indício emocional, a uma
mesma característica, por exemplo, de alegria, tristeza,
erotismo, etc. Esta forma de associação é muitas
vezes representada nos sonhos ou nos devaneios,
isto é, em estados da mente, em que a imaginação
está em liberdade e trabalha sem regras e ao acaso.
É fácil compreender que estas influências implícitas
ou explícitas do fator emocio nal devem proporcionar o
surgimento de agrupamentos totalmente inesperados
e constitui um campo aberto a novas combinações,
uma vez que o número de imagens com marca afetiva
semelhante é enorme.»
Para exemplificar de uma forma simples esta
combinação de imagens, detentoras de sinal
emocional semelhante, temos as situações correntes
de aproximação estabelecida entre duas quaisquer
impressões distintas, que nada têm em comum entre
si, exceto provocarem em
IMAGINAÇÃO E REALIDADE 39

nós estados de humor semelhantes. Quando


enunciamos que o azul é frio e o vermelho é quente,
então aproxima mos a impressão de azul e de frio
apenas no facto de elas
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causarem em nós estados de humor semelhantes. É


fácil perceber que a fantasia imbuída deste fator
emocional, pela lógica interna dos sentimentos,
representa o mais subjetivo e íntimo tipo de
imaginação.
Mas existe, além disso, uma relação inversa entre
a imaginação e as emoções. Se, no caso por nós
descrito primeiramente, são os sentimentos que
influenciam a imaginação, então, no outro caso é, pelo
contrário, a ima
ginação que influencia os sentimentos. Este fenómeno
poderia ser denominado lei da realidade emocional da
imaginação. A essência desta lei é formulada por Ribot
nos seguintes termos.
«Todas as formas da imaginação criativa», diz
ele, «incluem em si elementos afetivos.» Isto significa
que toda a construção da fantasia, inversamente,
influencia os nos sos sentimentos e, no caso de esta
construção, por si só, não corresponder à realidade,
todos os sentimentos por ela desencadeados são
reais, vividos verdadeiramente e integrados pelo
homem que os sente. Imaginemos uma situação
simples de ilusão. Ao entrar às escuras no quarto, a
criança, por ilusão, toma o vestido pendurado por uma
pessoa estranha ou um ladrão que entrou em sua
casa. A imagem do ladrão criada pela fantasia da
criança não é real, mas o medo que a criança sente, o
seu susto, são de facto impressões reais para a
criança. Algo semelhante sucede também com todas
as elaborações fantásticas e esta lei psicológica deve
explicar-nos claramente por que exercem em nós uma
impressão tão forte as obras de arte criadas pela
fantasia dos seus autores.
40 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

As paixões e a sorte dos heróis imaginados, a sua


feli cidade e desgraça inquietam, preocupam e
contaminam- -nos, apesar de sabermos bem que
estamos em presença
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de acontecimentos irreais, invenções da fantasia. E


isto deve-se ao facto de as emoções com as quais
somos con tagiados, a partir da leitura das páginas de
um livro ou da cena de uma peça de teatro, por efeito
das imagens artísticas, serem verdadeiramente reais
e de as sentirmos profundamente. Frequentemente,
uma simples combi nação das impressões do exterior,
como, por exemplo, a impressão que a obra musical
causa na pessoa que a ouve, desperta um mundo
inteiro de vivências e sentimentos. Este alargamento e
aprofundamento dos sentimentos e a sua
reconstrução criativa são a base psicológica da arte
musical.
Falta ainda falar da quarta e última forma de ligação
da fantasia com a realidade. Esta última forma está,
por um lado, estritamente ligada à que acabámos de
descre ver, mas, por outro lado, distingue-se dela de
modo radi cal. A essência desta última consiste em
que a construção da fantasia pode representar por si
algo essencialmente novo, de não existente na
experiência do homem, e qualquer coisa que não
corresponde a nenhum outro objeto da realidade; mas
ao encarnar uma nova forma do exterior, tomando
uma forma material, esta imaginação «cristalizada»,
ao tornar-se objeto, começa a existir de facto no
mundo e a atuar sobre os outros objetos.
Tal imaginação torna-se realidade. Exemplo desta
imaginação «cristalizada» ou encarnada pode ser um
qualquer dispositivo técnico, máquina ou ferramenta.
Resultado da imaginação combinatória do homem,
estes novos objetos não correspondem a nenhum
exemplo
IMAGINAÇÃO E REALIDADE 41

existente na natureza, mas surgem da ação mais


convin cente e da ligação prática com a realidade, uma
vez que, corporizadas, tornaram-se tão reais como as
outras coisas
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e exercem a sua ação no mundo exterior.


Estes produtos da imaginação atravessaram uma
história muito longa que talvez se deva sublinhar de
um modo esquemático e sucinto. É possível dizer que
no curso do seu desenvolvimento eles descreveram
um ciclo. Os elementos a partir dos quais foram
construídos foram tomados pelo homem da realidade
e dentro dele, no seu pensamento, foram sujeitos a
um trabalho de reconstru ção, transformando-se em
produtos da imaginação.
Por fim, ao serem materializados, voltaram outra
vez à realidade, mas voltaram com uma nova força
ativa, transformadora dessa realidade. Este é o ciclo
completo da atividade criativa.
Seria erróneo supor que só no domínio da
técnica, da ação prática sobre a natureza, a
imaginação é capaz de cumprir este ciclo completo.
Tal como no domínio da imaginação emocional, isto é,
na imaginação subjetiva, é possível descrever um
ciclo completo que não é difícil de observar.
Acontece que, exatamente quando temos perante
nós um ciclo completo traçado pela imaginação, os
dois fatores – intelectual e emocional – aparecem, em
igual medida, necessários para ato criativo. O
sentimento e o pensamento movem a criatividade
humana.
«Qualquer pensamento dominante», diz Ribot, «é
sustentado sobre alguma necessidade, aspiração ou
desejo, isto é, por um elemento afetivo, pois seria
absurdo acreditar na constância de qualquer ideia,
que por hipótese existisse em puro estado intelectual,
42 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

com toda a sua aridez e frieza... Todo o sentimento


(ou emoção) dominante deverá concentrar-se na ideia
ou imagem que lhe possa dar forma e organização,
sem
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a qual permaneceria num estado impreciso… Vemos,


assim, que estes dois termos – pensamento dominante
e emoção dominante – são quase iguais entre si, que
um e outro incluem elementos inseparáveis e apontam
para o predomínio de um ou outro.» Para nos
convencermos disto, o melhor é dar um exemplo a
partir da imaginação artística. Na realidade, para que
serve a obra artística? Influenciará ela, no nosso
mundo interior, os nossos pensamentos e
sentimentos, tal como as ferramentas técnicas,
relativamente ao mundo externo, ao mundo da
natureza? Damos um exemplo muito simples, a partir
do qual podemos esclarecer sob a forma mais
elementar a ação da imaginação artística. O exemplo é
tirado do conto de Aleksandr Púshkin A Filha do
Capitão. Nele se descreve o encontro de Pugatchov
com o herói da história, Grinev, em nome do qual é
desenvolvida a narração. Grinev, oficial feito
prisioneiro de Pugatchov, tenta persuadi-lo a deixar os
seus companheiros e a recorrer ao perdão da
imperatriz. Ele não compreende o que move
Pugatchov.

Pugatchov sorriu amargamente.


– Não – disse ele –, é tarde para me arrepender. Para
mim não haverá perdão. Continuarei como comecei.
Sabe-se lá! Talvez dê resultado! Grichka Otrepiev
reinou em Mos covo, como sabes.
– E sabes como acabou? Atiraram-no de uma janela,
mataram-no à facada, queimaram-no, carregaram
um canhão com as suas cinzas e dispararam-no!
IMAGINAÇÃO E REALIDADE 43

– Ouve – prosseguiu Pugatchov, com uma espécie de


inspiração selvagem. – Vou-te contar uma história
que em criança me contou uma velha calmuque.
Um dia, uma águia
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perguntou ao corvo: «Diz-me, corvo pássaro, porque
vives tu no mundo trezentos anos e eu só trinta e
três?» «Isso, paizi nho», respondeu-lhe o corvo, «é
porque tu bebes sangue vivo e eu alimento-me de
carne podre!» A águia pensou: vamos lá
experimentar e alimentar-nos de igual modo. A águia
e o corvo voaram juntos. Viram uma carcaça de um
cavalo. Desceram e pousaram sobre ela. O corvo
começou a dar bicadas e a elogiar. A águia bicou
uma vez, bicou outra, bateu as asas e disse ao
corvo: «Não, irmão corvo, a viver trezentos anos
comendo carne putrefacta é preferível saciar-se de
sangue vivo e o resto se Deus quiser!» Que tal
achas da história calmuque? 2

O conto narrado por Pugatchov é produto da ima


ginação e dir-se-ia que a imaginação está
completamente desligada da realidade. O corvo e a
águia falantes ape nas poderiam estar representados
na fantasia da velha calmuque. Mas não é difícil
identificarmos que noutro sentido esta elaboração
fantástica resulta diretamente da realidade e age
sobre essa mesma realidade. No entanto, esta
realidade não é externa, é interna – é o mundo dos
pensamentos, conceitos e sentimentos do próprio
homem. Sobre estas criações é costume dizer que
elas são fortes pela sua verdade interna e não
externa. É fácil notar que, nas personagens da águia e
do corvo, Púchkin apresentou dois tipos de
pensamento e de vida, dois tipos de atitudes em
relação ao mundo, o que não era possível

2
Aleksandr Púshkin, A Filha do Capitão. Lisboa: Novo Imbondeiro
Editores. Tradução do russo por Manuel Seabra, p. 100. (N.T.)
44 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

compreender-se a partir de uma conversa fria e seca


entre os dois interlocutores – a diferença entre o ponto
de vista do pequeno-burguês e o ponto de vista do
rebelde –,
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diferença que se encontra com uma completa


evidência e enorme força do sentimento inscrita na
consciência do narrador através do conto.
O conto poderia esclarecer as relações
complexas do dia a dia; as suas personagens como
que iluminariam um problema do quotidiano; o que um
diálogo frio e pro saico não o poderia fazer por si só,
fê-lo o conto através de uma linguagem imaginativa e
emocional. Púshkin tem razão quando diz que o verso
pode cortar os cora ções com uma força desconhecida
e noutro poema fala da realidade da vivência
emocional causada a partir da invenção: «Sobre a
imaginação lavar-me-ei em lágrimas.» Vale lembrar a
influência que exerce na consciência social uma obra
de arte, para que nos convençamos de que aqui a
imaginação descreve o mesmo ciclo tão completo
como o que é encarnado numa ferramenta material.
Gogol criou o Inspetor; os atores representaram-no no
teatro; o autor e os atores criaram imagens de ficção, e
a própria peça, representada em cena, desnudou com
tal clareza todo o terror da Rússia de então, que, com
tal força, ridicularizou os pilares nos quais assentava a
vida e que pareciam inabaláveis, o que todos sentiram,
e mesmo o próprio czar também sentiu mais do que
todos, ao assistir à estreia, que a peça comportava
uma grande ameaça para aquele regime.
«Hoje todos foram atingidos e eu mais do que todos»,
disse Nikolai na primeira representação da peça. As
obras artísticas podem exercer uma influência forte na
consciência social das pessoas porque possuem
IMAGINAÇÃO E REALIDADE 45

uma lógica interna. O narrador de qualquer obra


literária, como Pugatchov por exemplo, não combina
as imagens da fantasia em vão, ou sem sentido, não
as acumula
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arbitrariamente umas sobre as outras, pela vontade do


acaso, como nos sonhos ou no devaneio sem sentido.
Ao contrário, elas seguem a lógica interna das
imagens em desenvolvimento e esta lógica interna é
condicionada pela ligação que a obra estabelece entre
o seu mundo e o mundo externo. No conto sobre o
corvo e a águia as imagens dispõem-se e
combinam-se segundo a lei da lógica das duas forças
representadas pelas personagens de Grinev e
Pugatchov. Um exemplo muito curioso deste ciclo
completo que uma obra literária deste tipo contém,
dá-nos L. Tolstoi nas suas obras. Tolstoi descreve
como lhe surgiu a imagem da Natacha no romance
Guerra e Paz.
«Eu peguei em Tânia», diz ele, «dialoguei com a
Sónia e surgiu a Natacha.»
Tânia e Sónia são a sua cunhada e a sua mulher,
duas mulheres reais, cuja combinação resultou na ima
gem artística. Estes elementos tomados da realidade
combinam-se a seguir, não pelo livre capricho do
artista, mas segundo a lógica interna da imagem
artística. Tolstoi ouviu, em certa altura, a opinião de
uma das suas leitoras, que lhe disse que ele
procedera de modo muito cruel com Ana Karenina, a
heroína do seu romance, quando a obrigou a
lançar-se para baixo das rodas do comboio em
andamento. Tolstoi observou:

Isto faz-me lembrar o que aconteceu com Púshkin


quando disse certa vez a um dos seus amigos:
– Nem imaginas a partida que a Tatiana me pregou.
Casou-se! Eu não esperava nada isso dela.
46 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

O mesmo posso eu dizer sobre a Ana Karenina. De um


modo geral, os meus heróis e as minhas heroínas
fazem, às vezes, coisas que eu próprio não
quereria que tivessem feito.
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Fazem o que eles próprios deviam fazer na
realidade e como acontece na vida real, não como
eu quero.

Encontramos este género de reconhecimento


num conjunto inteiro de artistas que enfatizam a
mesma lógica interna que governa a construção da
imagem artística. Wundt, num excelente exemplo,
expressou muito bem esta lógica da fantasia, quando
disse que o pensamento sobre o casamento pode
incutir o pensamento sobre o enterro (a união e a
separação do noivo e da noiva), mas de modo algum
o pensamento da dor de dentes.
Deste modo, na obra de arte encontramos frequen
temente unidos traços distantes e sem ligação entre si;
embora não sendo estranhos uns aos outros, como o
pensamento sobre a dor de dentes e o pensamento
sobre o casamento, ligar-se-ão segundo uma lógica
interna.
CAPÍTULO 3

O MECANISMO
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DA IMAGINAÇÃO CRIATIVA

Como se compreende de tudo o que foi anterior


mente dito, a imaginação é, pela sua composição, um
processo muito complexo. E é exatamente essa
comple xidade que se constitui como a maior
dificuldade no estudo do processo criativo e
frequentemente conduz a ideias erróneas sobre a
própria natureza desse processo e o seu caráter,
como algo invulgar e absolutamente extraordinário.
Não é nossa tarefa dar agora uma descri ção completa
do conteúdo deste processo. Isto exigiria uma análise
psicológica longa, que neste momento não nos deve
interessar, mas, para darmos uma ideia sobre a
complexidade desta atividade, observaremos muito
brevemente alguns momentos que fazem parte deste
processo. Qualquer atividade imaginativa tem sempre
uma história longa atrás de si. Aquilo a que chamamos
criação é habitualmente apenas o ato do nascimento
que ocorre em resultado de um prolongado processo
interno de gestação e desenvolvimento fetal.
No início deste processo, como já sabemos, encon
tramos sempre as perceções externas e internas que
são o fundamento da nossa experiência. O que a
criança vê e ouve constitui deste modo os primeiros
pontos de apoio para a sua criatividade futura. A
criança acumula
48 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

material a partir do qual, posteriormente, irá construir


as suas fantasias. Depois segue um processo
complexo de transformação deste material. As partes
constituintes
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importantes deste processo são as dissociações e


associa ções das impressões adquiridas através da
perceção. Cada impressão representa um todo
complexo composto por um conjunto de múltiplas
partes separadas. A dissociação implica a
fragmentação deste todo complexo, separando as
suas partes individuais; certas partes individuais
destacam-se essencialmente por comparação umas
com as outras; umas são guardadas na memória,
enquanto outras são esquecidas. A dissociação é,
deste modo, uma condição necessária para a
subsequente atividade da fantasia.
Para ligar os diferentes elementos, o homem
deve, antes de tudo, fragmentar a associação natural
dos ele mentos tal como inicialmente foram
percebidos. Antes de criar a personagem de Natacha
em Guerra e Paz, Tolstoi teve de detetar as
características particulares das duas mulheres que lhe
eram próximas; se não o fizesse, não as conseguiria
misturar ou fundir na personagem de Nata cha. A esta
escolha de traços individuais e o abandono de outros
podemos na verdade denominar dissociação. Este
processo é muito importante em todo o
desenvolvimento mental do homem, serve de base do
pensamento abstrato e é o fundamento da formação
de conceitos.
Esta capacidade de realçar traços individuais de um
conjunto complexo tem significado para todo o tra
balho criativo que o homem realiza sobre as
impressões. No seguimento do processo de
dissociação sucede-se o processo de modificação a
que são sujeitos estes ele mentos dissociados. Este
processo de modificação ou de
O MECANISMO DA IMAGINAÇÃO CRIATIVA 49

deformação baseia-se na dinâmica das nossas


estimula ções/excitações nervosas internas e das
imagens que lhes correspondem. Os traços das
impressões exteriores não
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se armazenam de modo imóvel no nosso cérebro


como as coisas no fundo de uma cesta. Estes traços
represen tam processos que se movem, mudam,
vivem, morrem, e é neste movimento que reside a
garantia das suas modificações sob a influência de
fatores internos, que os deformam e reelaboram.
Podemos dar como exemplo desta modificação
interna o processo de subestimação e de
sobrestimação de elementos isolados das impressões,
que assumem uma enorme importância na imaginação
em geral e na imaginação da criança em particular.
As impressões captadas da realidade mudam,
aumentando ou reduzindo as suas dimensões naturais.
A inclinação das crianças que as leva a exagerar, do
mesmo modo que essa mesma forte inclinação ocorre
nos adultos, tem uma causa interna muito profunda.
Estas causas consistem, na maior parte das vezes, na
influência que o nosso sentimento interior exerce sobre
as impressões exteriores. Exageramos porque
queremos ver as coisas na sua forma aumentada,
quando isto cor responde às nossas necessidades, ao
nosso estado de espírito interior. A tendência das
crianças para o exagero está bem exemplificada nos
contos. Karl Groos dá-nos um exemplo da sua filha,
quando ela tinha cinco anos e meio de idade.
«Era uma vez um rei», começava a pequena,
«que tinha uma filha pequenina. A filha estava deitada
no berço, e ao aproximar-se junto dela o rei
reconheceu nela a sua filha. Depois disso eles
celebraram o seu casamento. Uma vez, quando eles
estavam sentados
50 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

à mesa, o rei disse-lhe: Traz-me, por favor, um copo


grande com a cerveja. Ela então trouxe-lhe um copo
de cerveja com três arshin1 de altura. Depois disso,
todos
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adormeceram, menos o rei que ficou a vigiar por eles,


e se eles ainda não morreram, é porque devem estar
vivos ainda hoje.»
«Este exagero», diz Groos, «é despertado pelo
interesse por tudo o que é extraordinário e invulgar, ao
qual se junta o sentimento de orgulho agregado à
ideia de se possuir alguma coisa imaginada e especial:
Eu tenho trinta moedas, não, cinquenta; não, cem;
não, mil! Ou: Eu acabei de ver agora uma borboleta do
tamanho de um gato; não, do tamanho de uma casa!»
Bühler especifica, com toda a razão, que neste
processo de modificações, e especialmente no
exagero, ocorre na criança o exercício de lidar com
grandezas desconheci das na sua experiência direta. É
fácil de ver a enorme importância aceite por estes
processos de modificação e, em especial, de exagero
nos exemplos da imaginação numérica citados por
Ribot.

A imaginação numérica nunca atingiu o grande e


raro valor», diz ele, «como entre os povos do
Oriente. Eles jogam com os números arrojadamente
e esbanjam-nos com um brilhantismo admirável. Na
cosmogonia caldeica narra- -se que o deus peixe
Oannes consagrou 259 mil e 200 anos à educação
da humanidade, e depois, durante 432 mil anos
reinaram na terra diferentes figuras mitológicas, e ao
fim destes 691 mil e 200 anos, a face da terra foi
renovada pelo dilúvio... Os habitantes da Índia
foram ainda mais longe.

1
Arshin: 0,71 metros.
O MECANISMO DA IMAGINAÇÃO CRIATIVA 51

Eles inventaram unidades colossais, que servem de


base e de material para o jogo fantástico com os
números. Os jainistas2 dividem o tempo em dois
períodos: o tempo ascendente e o
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tempo descendente. Cada um deles tem uma
duração imensa: 2 000 000 000 000 000 oceanos
de anos, sendo cada oceano de anos igual por si só
a 1 000 000 000 000 000 anos... A meditação sobre
a vastidão do tempo semelhante deve causar
tonturas ao budista devoto.

Semelhante jogo com exageros numéricos


torna-se necessário para o homem, e vemos
claramente a demons tração disso na astronomia e
nas outras ciências naturais, que têm de operar com
números não mais pequenos mas com grandezas
muito maiores.
«Nas ciências», diz Ribot, «a imaginação
numérica não se reveste de tais convicções erróneas.
A ciência, ao avançar, é acusada de reprimir a
imaginação, mas, na realidade, é a imaginação que
abre áreas cada vez mais amplas à criação científica.
A Astronomia flutua na infinitude do tempo e do
espaço. Ela vê nascer mundos, que no início cintilam
como a luz opaca do nevoeiro, transformando-se
depois em sóis brilhantes. Estes sóis, arrefecendo,
cobrem-se de manchas, tornam-se escuros e, por fim,
apagam-se. A Geologia segue o desenvolvi mento do
planeta que habitamos através de uma série de
revoluções e cataclismos; ela prevê o futuro distante,
quando o globo terrestre, ao perder os vapores
aquáticos que defendem a sua atmosfera da
irradiação excessiva de calor, sucumbirá de frio. As
hipóteses universalmente aceites na Física e Química
atuais, sobre os átomos e

2
Seguidores do jainismo.
52 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

partículas não cedem lugar na sua ousadia ao arrojo


das invenções da imaginação indiana.»
Vemos deste modo que o exagero, tal como a imagi Copyright
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nação, de um modo geral, é tão necessário na arte


como na ciência. Não fosse esta capacidade, que se
manifestava de modos tão divertidos no conto da
menina de cinco anos e meio, a humanidade não seria
capaz de criar a Astronomia, a Geologia e a Física.
A parte constituinte seguinte nos processos imagina
tivos é a associação, ou seja, a junção dos elementos
disso ciados e alterados. Como já foi notado
anteriormente, esta associação pode ter lugar sobre
bases diferentes e tomar formas diferentes, que vão
da união puramente subje tiva de imagens até à junção
científica objetiva, como a que evidencia, por exemplo,
a representação geográfica. E, por último, o momento
final e último do trabalho pré vio da imaginação é a
combinação de imagens isoladas que são afinadas
num sistema, incluídas num quadro complexo. A
atividade da imaginação criativa não ter mina neste
ponto. Como já referimos antes, o ciclo com pleto
desta atividade só estará completo quando a imagi
nação se converter ou cristalizar em imagens
exteriores.
No entanto, sobre este processo de cristalização,
ou transição do imaginado para a realidade, falaremos
em separado. Aqui mesmo, concentrando-nos apenas
sobre os aspetos internos da imaginação, teremos de
indicar os principais fatores psicológicos dos quais
dependem todos estes processos isolados. De entre
estes fatores, o primeiro, como estabelece a análise
psicológica, cons titui a necessidade que o homem tem
de se adaptar ao ambiente que o envolve. Se a vida
que o rodeia não lhe desse trabalhos, se as suas
reações habituais e herdadas
O MECANISMO DA IMAGINAÇÃO CRIATIVA 53

o mantivessem em equilíbro com o mundo à sua volta,


então não existiria qualquer fundamento para o surgi
mento da ação criadora. Um ser totalmente adaptado
ao
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mundo que o rodeia nada poderia desejar, não


buscaria outra coisa e certamente não poderia criar.
Por isso, na base da ação criadora está sempre
subjacente a inadap tação a partir da qual surgem
necessidades, aspirações e desejos.
«Cada necessidade», diz Ribot, «aspiração ou
desejo, por si só ou conjuntamente com outros, pode
servir de impulso para a criação. A análise psicológica
deve em cada caso decompor a “criatividade
espontânea” nestes seus elementos primários...
Qualquer invenção tem assim uma origem motora; a
essência principal da invenção criativa é, em todas as
situações, de ordem motora.
As necessidades e os desejos, por si só, não
podem produzir coisa alguma. São simples estímulos
e molas motoras. Para inventar, é necessária, além
disso, a pre sença de uma outra condição: o
aparecimento espon tâneo das imagens. Chamo
aparecimento espontâneo o que acontece de repente,
sem causas óbvias e claras. As causas existem de
facto, mas as suas ações estão envoltas com uma
forma oculta do pensamento por analogia através do
estado mental afetivo e da função cerebral
inconsciente.»
A presença de necessidades e aspirações põe
deste modo em movimento o processo imaginativo e
faz renascer os traços das excitações nervosas que
fornecem um material que possibilita o seu
funcionamento. Estas duas condições são
necessárias e suficientes para que compreendamos a
atividade da imaginação e de todos os processos que
nela entram.
54 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

Surge ainda a pergunta sobre os fatores de que


depende a imaginação. No que concerne aos fatores
psicológicos, na verdade, estes foram, embora de
modo
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solto, já acima enumerados por nós.


Já dissemos que a atividade imaginativa depende
da experiência, das necessidades e interesses em
que estas necessidades são manifestas. Facilmente
se compreende que ela depende da capacidade
combinatória e do exer
cício desta atividade, que consiste em dar forma
material aos produtos da imaginação; de igual modo,
depende da habilidade técnica e das tradições, isto é,
dos exemplos criativos que influenciam o homem.
Todos estes fatores têm uma enorme importância,
mas são tão visíveis e simples que não nos
ocuparemos deles agora. Menos visível, e por isso
mais importante, é a ação de um outro fator: o meio
envolvente. Habitualmente, a imaginação é
representada como uma atividade estritamente interna,
independente das condições exteriores, ou, no melhor
dos casos, dependente dessas condições apenas por
um lado, porque estas condições determinam o
material que a imaginação trabalha. No que respeita
aos pró prios processos da imaginação, a sua direção,
à primeira vista, parece ser dirigida simplesmente de
dentro pelos sentimentos e pelas necessidades do
próprio homem e por isso condicionados pelas causas
subjetivas e não objetivas. De facto, isto não se passa
assim. Já há muito tempo que na psicologia foi
estabelecida uma lei segundo a qual o anseio para
criar é inversamente proporcional à simplicidade do
meio.
«Por isso», diz Ribot, «quando compararmos os
negros com os brancos, os primitivos e os civilizados,
o resultado é que, para a mesma quantidade de
população,
O MECANISMO DA IMAGINAÇÃO CRIATIVA 55

a desproporção dos inovadores num e noutro caso é


surpreendente.»
Esta dependência da criatividade relativamente ao Copyright ©

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contexto é muito bem explicada por Waismann. Ele


diz: «Suponhamos que nas ilhas Samoa nasce uma
criança dotada com o talento e o génio de Mozart. O
que pode ela fazer? Quando muito, o que ela pode
fazer é ampliar a gama de três ou quatro até sete tons
e criar uma série de melodias um pouco mais
complexas, mas seria incapaz de compor uma
sinfonia ou, como Arquimedes, de criar a máquina
electrodinâmica.»
Qualquer inventor, mesmo que seja um génio, é
sempre o produto do seu tempo e época. A sua criati
vidade parte de necessidades que foram criadas antes
dele e apoia-se nas possibilidades que residem fora
dele. É por isso que notamos uma sucessão rigorosa
na história do desenvolvimento da técnica e da
ciência. Nenhuma invenção ou descoberta científica
surge antes de se cria rem as condições materiais e
psicológicas necessárias para o seu surgimento. A
criatividade representa um processo histórico
contínuo, em que toda a forma subsequente é definida
pela anterior.
É exatamente isto que explica a distribuição
despro porcional dos inovadores e cientistas entre
diferentes classes sociais. As classes privilegiadas
dão incomen suravelmente uma percentagem maior de
criadores na ciência, na técnica e na arte, porque, de
facto, nestas classes existem mais condições para a
criação.
«Em geral», diz Ribot, «fala-se tanto sobre o voo
livre da imaginação, sobre o todo-poderoso génio, que
se esquecem as condições sociológicas (sem falar de
outras), das quais a cada passo depende uma e a
outra. Por muito
56 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

individual que se afigure toda a criação, comporta sem


pre em si um coeficiente social. Nesse sentido
nenhuma invenção é individual na aceção estrita da
palavra: em
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toda a invenção existe sempre uma colaboração de


tra balho anónimo.»
CAPÍTULO 4

A IMAGINAÇÃO DA CRIANÇA
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E DO ADOLESCENTE

A atividade da imaginação criativa é muito


complexa e depende de uma série de diferentes
fatores. Daqui se depreende claramente que esta
atividade não pode ser igual na criança e no adulto,
porque todos os fatores assumem um aspeto
diferente, em diferentes épocas da infância. Por isso,
em cada período do desenvolvimento da infância, a
imaginação criativa elabora de um modo particular, de
acordo com o estádio de desenvolvimento em que a
criança se encontra. Vimos que a imaginação
depende da experiência e que a experiência da criança
se vai estruturando e crescendo lentamente, sendo
portadora de características específicas profundas que
a distinguem da experiência do adulto. A relação da
criança com o seu meio, que, com a sua
complexidade ou simpli cidade e com as tradições e
influências, estimula e orienta o processo da
criatividade, é também muito diferente. Os interesses
da criança e do adulto também diferem entre si; por
isso, é assim compreensível que a imagina ção da
criança funcione de modo diverso da do adulto.
Então, como se se distingue a imaginação da
criança da imaginação do adulto e qual é a linha de
base do seu desenvolvimento na idade infantil? Até
agora existe a opinião de que na criança a
imaginação é mais rica do que
58 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA
no adulto. A infância é considerada como sendo o
período em que mais se desenvolve a fantasia e, de
acordo com esta opinião, à medida que a criança se
desenvolve, a sua
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imaginação e a força da sua fantasia começam a


diminuir. Esta opinião assenta numa série de
observações sobre a atividade da fantasia.
As crianças podem fazer tudo, disse Goethe, e
esta simplicidade e pouca exigência da fantasia
infantil, que deixa de ser livre no adulto, foi confundida
frequen temente com a liberdade e riqueza da
imaginação infantil. Os produtos da imaginação infantil
divergem abrupta mente da experiência do adulto e
isto é tomado como a base para a conclusão de que
as crianças vivem num mundo do fantástico. Outros
traços são as imprecisões, as distorções da
experiência real e o exagero característico das
fantasias das crianças e a sua propensão e gosto
pelos contos e narrações fantásticas.
Tudo isto, no seu conjunto, serviu de base para
afirmar que a fantasia na idade infantil é mais rica e
variada do que a fantasia no adulto. No entanto, esta
opinião não encontra fundamentação na investigação
científica. Sabemos que a experiência da criança é
mais pobre do que a experiência do adulto. Sabemos
também que os seus interesses são mais simples,
elementares e mais pobres; por fim, a sua relação
com o seu contexto é igualmente menos complexa,
desprovida da precisão e variedade do
comportamento da pessoa adulta, sendo que todos
estes fatores são importantíssimos definidores do
trabalho da imaginação. A imaginação na criança,
como mostra esta análise, não é mais rica, mas mais
pobre do que a imaginação do homem adulto; ao longo
do processo de desenvolvimento da criança também
A IMAGINAÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE 59
se desenvolve a imaginação e atinge a maturidade na
idade adulta.
Por isso, os verdadeiros produtos da imaginação Copyright ©

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e)

criativa, em todas as áreas da atividade criativa, perten


cem à fantasia amadurecida. À medida que se
aproxima a maturidade, também começa a
amadurecer a imaginação, e, na idade de transição –
a partir do amadurecimento sexual dos adolescentes
–, a força da imaginação, em ascensão muito
poderosa, une-se aos primeiros estágios de
maturidade da fantasia. Os autores que escreveram
sobre a imaginação assinalaram a ligação muito
próxima entre o amadurecimento sexual e o
desenvolvimento da imaginação. É possível
compreender esta relação quando temos em atenção
que, neste período, o adolescente amadurece e
equilibra uma ampla experiência, ao mesmo tempo
que se definem os denominados interesses per
manentes, se extinguem rapidamente e suspendem os
interesses infantis e, em relação com a maturidade
geral, a atividade imaginativa adquire uma forma mais
acabada.
Nas suas investigações sobre a imaginação
criativa, Ribot desenha uma curva (Figura 1) que
representa sim bolicamente o desenvolvimento da
imaginação e permite compreender as
particularidades do desenvolvimento da imaginação
infantil, da do homem maduro e da do período de
transição de que nos ocuparemos agora. A lei
principal do desenvolvimento da imaginação, que esta
curva representa, formula-se do seguinte modo: a
imaginação, ao longo do seu desenvolvimento, passa
por dois períodos divididos por uma fase crítica. A
curva IM representa o desenvolvimento da imaginação
no pri
meiro período. Eleva-se bruscamente e depois,
durante bastante tempo, mantém-se no nível atingido.
A linha
60 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

RO, a tracejado, representa o percurso do desenvolvi


mento da inteligência ou do raciocínio. Este desenvolvi
mento começa, como se pode ver na figura, mais tarde
e
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aumenta mais lentamente, porque requer uma grande


acumulação de experiência e uma maior complexidade
na sua elaboração. É só no ponto M que as duas
linhas do desenvolvimento da imaginação e do
desenvolvimento da inteligência coincidem.
A parte esquerda da figura representa
graficamente de modo claro a originalidade que
caracteriza a atividade imaginativa na idade infantil,
aquilo que, na realidade, foi considerado por muitos
investigadores como a riqueza da imaginação infantil.
A partir da figura é fácil ver que o desenvolvimento da
imaginação e da inteligência se dis tanciam muito entre
si na infância e de que esta relativa autonomia da
imaginação infantil, a sua independência em relação à
atividade cognitiva, não prova a riqueza mas antes a
pobreza da fantasia da criança.

Figura 1. Curva do desenvolvimento da imaginação


de Th. Ribot (1900)

A criança pode imaginar muito menos coisas do


que um adulto, mas acredita mais nos produtos da sua
imaginação e controla-os menos, e por isso a imagina
A IMAGINAÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE 61
ção, no dia a dia, no sentido comum da palavra, isto é,
algo de irreal ou inventado, é certamente maior na
criança do que no adulto. No entanto, não só o
material
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a partir do qual se constrói a imaginação é mais pobre


na criança do que no adulto, como também o caráter
das combinações que se juntam a esse material é, na
sua qua lidade e variedade, inferior em relação às
combinações realizadas pelo adulto. De todas as
formas de ligação com a realidade que acima
enunciámos, a imaginação da criança está ao nível da
imaginação do adulto apenas no que diz respeito à
primeira, quer dizer, na realidade dos elementos a
partir dos quais é construída. É provável que a raiz
emocional da imaginação da criança se expresse
também tão fortemente como no adulto; mas no que
res
peita às outras duas formas de conexão, será
necessário sublinhar que elas se desenvolvem
apenas com o passar dos anos, e se vão
desenvolvendo muito lentamente e muito
gradualmente. A partir do momento do encontro das
duas curvas, a da imaginação e a do pensamento no
ponto M, o desenvolvimento posterior da imaginação
segue, como mostra a linha MN, sensivelmente
paralelo à linha do desenvolvimento do pensamento
XO. A diver gência típica da idade infantil desaparece;
a imaginação, estreitamente associada com o
pensamento, segue-o agora ao mesmo passo.
«As duas formas intelectuais», disse Ribot, «encon
tram-se agora uma em frente à outra como forças
rivais.» A atividade da imaginação «prossegue, mas
atra vés de uma transformação preliminarmente
transfor
mada, adaptando-se a condições racionais, deixando
de representar uma imaginação pura, mas misturada».
No entanto, isto nem sempre sucede, porque em
muitas
62 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

situações o desenvolvimento ganha uma outra


variante, que na figura está simbolizada pela curva
MN’, que decresce rapidamente, o que significa a
diminuição ou a
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redução da imaginação. «A imaginação criativa diminui


e isto é o caso mais frequente. A exceção é devida
apenas aos mais dotados de imaginação talentosa, a
maioria dos quais entra a pouco e pouco na prosa da
vida quotidiana, enterra os sonhos da juventude,
considera o amor uma quimera, etc. Isto, todavia, é
apenas uma regressão e não uma anulação, porque a
imaginação criativa não desaparece por completo em
ninguém, mas passa a ser algo acidental.»
E, de facto, onde persistir uma fração ínfima da
vida criativa, haverá lugar para a imaginação.
Sabemos que na idade adulta, com frequência, a
curva da vida criativa diminui. Esta é uma situação
conhecida. Olhemos agora mais de perto esta fase
crítica MX que divide os dois perí
odos. Como já dissemos, esta fase ocorre no período
de transição, que é a que mais nos interessa agora.
Se com preendermos a natureza daquela encruzilhada
específica que atravessa a curva da imaginação,
teremos a chave para a compreensão adequada de
todo o processo criativo nesta idade. Neste período
tem lugar uma transformação profunda da
imaginação, que passa de subjetiva para objetiva. «No
plano fisiológico, a causa de tal crise deve-
-se à formação do organismo adulto e do cérebro
adulto, e no plano psicológico é devida ao
antagonismo entre a subjetividade pura da imaginação
e a objetividade dos processos de raciocínio ou, por
outras palavras: entre a instabilidade e a estabilidade
da mente.»
Sabemos que a idade de transição se caracteriza,
em geral, por um conjunto de atitudes antitéticas,
contradi
A IMAGINAÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE 63

tórias, de momentos polarizados caracterizadores


dessa idade. É justamente isto que caracteriza a
própria idade como crítica ou transitória: é a idade em
que o equilíbrio
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psicológico infantil é quebrado e o equilíbrio do orga


nismo adulto ainda não foi alcançado. Deste modo, a
imaginação deste período caracteriza-se pela fratura e
a destruição e pela procura de um novo equilíbrio. O
facto de a atividade imaginativa, como se manifestava
na idade infantil, ir declinando nos adolescentes é evi
dente, porque a criança desta idade, em regra, perde o
gosto pelo desenho. Apenas algumas crianças
continuam a desenhar, sobretudo os mais talentosos
nesta atividade ou quando estimulados pelas
condições exteriores, como, por exemplo, através de
aulas especiais de desenho, etc. A criança evidencia
uma atitude crítica em relação aos seus próprios
desenhos, os esquemas infantis deixam de a
satisfazer, por lhe parecerem demasiadamente
subjetivos, e acaba por concluir que não sabe
desenhar, abandonando essa atividade. Esta
interrupção da fantasia infantil é notada no
desinteresse pelos jogos ingénuos da infância precoce
e pelas histórias e contos fantasiosos. A duplicidade
da nova forma de imaginação, que agora nasce, pode
ser observada claramente a partir do facto de que a
forma mais comum e extensa da imaginação nesta
idade ser a criação literária. Ela é estimulada pelo
forte aumento das vivências subjetivas, pelo
alargamento e o aprofundamento da vida íntima do
adolescente que, deste modo e nesta fase, está a
criar o seu próprio mundo interior. No entanto, esta
fase subjetiva tende a personificar-se em formas
objetivas: nos versos, nos contos, e nas formas
criativas que o adolescente perce ciona, capta a partir
da literatura adulta que o rodeia.
64 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

O desenvolvimento desta imaginação contraditória


tende para a diminuição sucessiva das qualidades
subjetivas e o aumento e reforço das qualidades
objetivas. Em geral,
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a maioria dos adolescentes perde o interesse pela


criati vidade literária própria. Tal como acontecera
antes com os desenhos, começa agora a não ficar
satisfeito com a insuficiente objetividade da sua
escrita e abandona-a. Verifica-se deste modo que a
ascensão da imaginação e a profundidade da sua
transformação são os elementos que caracterizam
bem esta fase crítica.
Neste mesmo período sobressaem com toda a
clareza dois tipos de imaginação: a imaginação
plástica e a imagi nação emocional, isto é, externa e
interna. Estes dois tipos principais caracterizam-se
especialmente pelo material com o qual é construída a
fantasia e as leis desta constru ção. A imaginação
plástica utiliza preferencialmente dados fornecidos
pelas impressões exteriores, constrói a partir do uso
de elementos emprestados a partir do exterior; a
imaginação emocional, pelo contrário, constrói com
elementos a partir do interior. Podemos denominar
uma como objetiva e a outra como subjetiva. A
revelação de um e outro tipo de imaginação e a sua
diferenciação gradual são precisamente
características desta idade.
Sobre isto deveria ser assinalado também que a
imaginação pode desempenhar um papel duplo no
com portamento humano. Pode levar a pessoa a
aproximar-se ou a afastar-se da realidade. Janet diz:
«A própria ciência, pelo menos a ciência natural, não
é possível sem a ima ginação. Newton usou a
imaginação para ver o futuro e Cuvier para ver o
passado. As grandes hipóteses a partir das quais
nascem as grandes teorias são resultado da ima
ginação.» No entanto, Pascal, com toda a justiça, diz
que a
A IMAGINAÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE 65

imaginação é um professor ardiloso. «Ela convence»,


diz Compayre, «levanta mais erros do que ajuda a
descobrir a verdade... A imaginação inclina o cientista
incauto a
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deixar de lado os raciocínios e as observações e a


tomar as suas fantasias por verdades comprovadas; a
imaginação desvia-nos da realidade com as suas
admiráveis mentiras, ela, segundo a certeira
expressão de Malebranche, é a criança traquinas que
desalinha a casa.» É especialmente na idade de
transição que se revelam estes aspetos peri gosos da
imaginação. Satisfazer-se com a imaginação é muito
fácil e a fuga para o sonho e o escape para o mundo
imaginado frequentemente pode desviar da realidade
as energias e a vontade do adolescente.
Alguns autores acreditaram até que o desenvolvi
mento do espírito sonhador e concomitante desprendi
mento do real, o fechamento e a imersão em si são o
traço obrigatório desta idade. Poderia mesmo
afirmar-se que todos estes fenómenos constituem
apenas a fase sombria desta idade. Esta tonalidade
do espírito sonhador, que se abate sobre esta idade,
faz deste duplo papel da ima ginação um processo
complexo cujo domínio se torna muito difícil.
«Se o professor», diz Groos, «desejar
desenvolver de modo adequado a capacidade valiosa
da fantasia criativa, cabe-lhe então enfrentar uma
tarefa difícil: domar este ginete selvagem e assustado
de nobre estirpe e desviá-lo para servir o bem.»
Para Pascal, como dissemos, a imaginação era
um professor ardiloso. Goethe designou-a como o
prenúncio do pensamento. E um e outro estavam
certos.
Surge então a pergunta: dependerá a atividade
imaginativa do talento? Existe uma opinião muito
66 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

difundida de que a criatividade é privilégio dos eleitos;


apenas aquele que é dotado de um talento particular
deve cultivá-lo e pode ser considerado como eleito
para criar.
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Esta posição não é justa, como já acima tentámos


escla recer. Se entendermos a criação no plano
estritamente psicológico, como criação de algo novo,
facilmente se conclui que a criatividade é fortuna de
todos, em maior ou menor grau, e que ela é a
companheira habitual e permanente do
desenvolvimento infantil.
Na infância encontramos os designados
wunderkin der, as crianças prodígios, que em idade
muito precoce demonstram um desenvolvimento e
uma rápida matu ração de certo dom especial.
Com maior frequência encontramos os
wunderkinder na área da música. Os wunderkinder
pintores são raros. Um exemplo de wunderkinder é
Willy Ferrero, que há vinte anos adquiriu renome
mundial por mostrar possuir dons musicais
extraordinários numa idade precoce. Um
wunderkinder deste género, por vezes aos 6-7 anos,
pode dirigir uma orquestra sinfónica, executar obras
musicais muito complexas e, de um modo virtuoso e
admirável, tocar um instrumento musical, etc. Mas há
muito que se notou que em tal desenvolvimento
prematuro e fora do comum do dom, há algo que está
muito próximo da patologia, que não é normal.
E, no entanto, um aspeto ainda mais importante,
há uma regra quase sem exceção segundo a qual
estas crianças prodígios, de amadurecimento
prematuro, se se desenvolvessem de um modo
normal, deveriam superar todos os génios conhecidos
da história da humanidade; mas, de um modo geral, à
medida que vão crescendo perdem também o talento;
a sua criatividade, até ao
A IMAGINAÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE 67

momento, não tem criado e não criou na história das


artes uma única obra que fosse considerada de valor.
As características típicas da criatividade infantil são
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fáceis de identificar nas crianças normais, mas não o


são nas crianças sobredotadas. Isto não significa que
o dom ou o talento não surja na infância precoce. A
partir das biografias de pessoas ilustres ficamos a
saber que sinais desta genialidade se revelaram
desde cedo.
Como exemplos de desenvolvimento precoce
pode mos citar Mozart com a idade de três anos,
Mendelssohn de cinco anos, Haydn de quatro; Handel
tornou-se com positor aos doze anos, Weber também
aos doze, Schubert aos onze e Cherubini aos treze
anos... Nas artes plásticas, a vocação e as
capacidades para a criação revelam-se de um modo
claro mais tarde – em média aos catorze anos; Giotto
revelou-se aos dez anos, Van Dyck aos nove, Rafael
aos oito e Greuze aos oito, Miguel Ângelo aos treze
anos, Dürer aos quinze, Bernini aos doze. Rubens e
Jordaens também se desenvolveram muito cedo. Na
poesia não se encontram obras com elevado valor
antes dos dezasseis anos.
Mas estes indícios da genialidade futura ainda
estão longe da verdadeira e superior criatividade, são
apenas relâmpagos de uma tempestade que se
adivinha, indi cadores do despertar futuro desta
atividade.
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CAPÍTULO 5

«OS TORMENTOS DA CRIAÇÃO»


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A criação traz ao homem criador grandes


alegrias, mas está igualmente associada ao
sofrimento, a que tem sido dada a designação
memorável de tormento da criação. Criar é difícil e o
impulso para criar nem sempre coincide com a
capacidade para criar, daí surgir um senti
mento de tortura e sofrimento; o pensamento não vai
ao encontro da palavra, como dizia Dostoievsky. Os
poetas chamam a este sofrimento o tormento da
palavra:
«Não existe no mundo sofrimento1 que se
manifeste com tanta intensidade como o tormento da
palavra; em vão, às vezes, se irrompe da boca um
grito louco: inutilmente [a palavra] de amor está pronta
a incendiar a alma porque por vezes a nossa pobre
linguagem é fria e miserável.»
Este desejo de transmitir através da palavra os sen
timentos, ou pensamentos, o ensejo de contagiar com
este sentimento a outra pessoa, e ao mesmo tempo a
consciência da impossibilidade de o fazer, costuma
surgir de forma muito intensa na criação literária dos
jovens. Lermontov nos seus primeiros versos
descreve isto assim:

É difícil de exprimir através das palavras frias o conflito


de sentimentos.
1
Na obra original russa: «sofrimentos». (N.T.)
70 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

O homem não tem sons suficientemente fortes para


descrever o desejo da felicidade.
O ardor da paixão exaltada eu sinto, mas não encontro
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palavras para a descrever, e neste instante estou
pronto para me sacrificar, para que possa, de algum
modo, verter a sombra da paixão noutro peito.2

Arkadi Gornfeld, num artigo dedicado ao tormento


das palavras, lembra a personagem secundária de G.
I. Uspenski (1843-1902). Trata-se da personagem do
conto Observações de um preguiçoso. A cena, em
que este infeliz, não encontrando as palavras para
exprimir o pensamento profundo que o domina,
impotente e atormentado, se põe a rezar diante da
imagem do santo «para que Deus lhe concedesse a
compreensão», deixa uma sensação penosamente
indizível. Com efeito, o que esta vulnerável e
magoada mente sofre na sua essência em nada se
distin gue do «tormento da palavra» que o poeta ou o
pensador experimenta, quase fala com as mesmas
palavras. «Eu dizia-te, meu amigo, nada te ocultaria,
mas faltam-me as palavras… Eis o que te digo.
Parece que os pensamentos nascem bem na cabeça
mas não descem da língua. Eis a desgraça que aflige
burros como eu!» Mas, por vezes, das trevas surgem
efémeros intervalos de luz; o pensamento torna-se
claro para o infeliz e para ele, poeta, parece- -lhe – «de
repente desvenda o enigma de um semblante
conhecido». E assim ei-lo que inicia a explicação:
– Se eu, por exemplo, vou para a terra, porque da terra
emergi, da terra. Se for para a terra, por exemplo,
ao revés; como é que então poderiam cobrar-me
pela terra?
2
Tradução de Halima Naimova.
«OS TORMENTOS DA CRIAÇÃO» 71

– Bem, bem – exclamamos com júbilo.


– Espera. Aqui falta uma palavra... vejam, senhores,
como falta algo.
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O mensageiro levantou-se e ficou no meio do quarto,
preparando-se para dobrar o outro dedo da mão.
– Aqui ainda não se disse nada do que é mais impor
tante. E tem de se fazer assim porque: por
exemplo... – aqui calou-se por um momento e
perguntou com vigor: – E a alma, quem ta deu?
– Deus.
– É verdade. Muito bem. Agora, olha para aqui...
Preparávamo-nos para olhar, mas o mensageiro trope
çou novamente, perdeu a força e, pondo as mãos
na cintura, desesperadamente gritou:
– Não. Não há nada a fazer. Não é nada assim... Meu
Deus! Sim eu digo-te. Aqui é preciso falar. Aqui é
preciso falar do fundo da alma. Não, não consigo.»

Detivemo-nos nesta questão, não porque as vivên


cias atormentadoras relacionadas com a criação
tenham uma qualquer influência na futura sorte do
adolescente em desenvolvimento, não porque estes
tormentos fos sem em regra sentidos mais forte e
tragicamente pelo adolescente, mas porque este
fenómeno dá a conhecer a característica mais
importante da imaginação, sem a qual o quadro por
nós apresentado ficaria incompleto num aspeto da sua
essência. Esta característica consiste na tendência da
imaginação para a personificação, a raiz autêntica e o
motor de arranque da criação. Qual quer construção
da imaginação, partindo da realidade, tende a
descrever um ciclo completo e a encarnar de novo no
real.
72 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

Ao surgir como resposta às nossas aspirações e


impulsos, a construção da imaginação tem tendência
a encarnar a realidade. A imaginação tende pela força
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dos impulsos a ser criativa, isto é, atuante e ativa,


transformadora daquilo para a qual está orientada a
sua atividade. Neste sentido, Ribot, com toda a
justeza, compara o devaneio com a falta de vontade.
Para este autor, esta forma fracassada da imaginação
criativa é completamente análoga à falta de vontade.
Para ele, «a imaginação é para o intelecto o que a
ação é para a von tade». As pessoas geralmente
desejam sempre alguma coisa – que tanto pode ser
algo insignificante como algo de muito valor; os
homens inventam sempre para um fim determinado –
quer seja um Napoleão, que pensa num plano para
uma batalha, ou um cozinheiro, que inventa um novo
prato.
… Em toda a sua forma normal e finalizada, a von tade
acaba em ação, mas nas pessoas indecisas e sem von
tade, as indecisões nunca terminam ou as decisões
ficam sem concretização, impossibilitadas de serem
concretiza das e postas em prática. A imaginação
criativa em toda a sua forma tenta afirmar-se tomando
forma objetiva, não apenas para o próprio criador, mas
também para todos os outros. Pelo contrário, para os
simples sonhadores, os contemplativos, a imaginação
permanece num estado pouco elaborado e
desenvolvido, não se encarnando nas produções
artísticas e nas realizações práticas. O sonho e a
contemplação acabam por equivaler à abulia; o
sonhador é incapaz de manifestar a imaginação
criativa. O ideal consiste na construção da imagina -
ção criativa; e só seria, então, uma verdadeira força da
vida, se orientasse as ações e os atos do homem,
aspirando
«OS TORMENTOS DA CRIAÇÃO» 73

a materializar-se e a realizar-se. Se separarmos a


contem plação e a imaginação criativa, na sua
essência, como duas formas extremas e diferentes de
fantasia, torna-se
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claro que, em toda a educação da criança, a formação


da imaginação possui não apenas um significado
parcial do exercício e da promoção de uma função
isolada, mas igualmente um significado global que se
reflete em todo o comportamento do homem. Neste
sentido, o papel da imaginação no futuro não é menor
do que aquele que tem no presente.
«O papel da fantasia combinatória», diz Lunat
charsky, «no futuro não será de modo algum menor do
que hoje. É muito provável que assuma um caráter
muito particular, combinando elementos científicos
experimen tais com os voos vertiginosos da fantasia
intelectual e imagética.»
Se tivermos em atenção o que foi dito acima, de
que a imaginação é o impulso da criação, podemos
concordar com a posição de Ribot fundada nas suas
investigações:
«A imaginação criadora atravessa com a sua criati
vidade toda a linha da vida pessoal e social,
especulativa e prática, em todos os seus aspetos; ela
é omnipresente.»
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CAPÍTULO 6

A CRIATIVIDADE LITERÁRIA
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NO PERÍODO ESCOLAR

De todas as formas de criação literária, a verbal é


a mais característica do período escolar. É bem
conhecido que na idade precoce todas as crianças
passam por vários estádios do desenvolvimento do
desenho. O desenho é a criação típica da idade
infantil, principalmente da idade pré-escolar. Nesta
fase, as crianças desenham muito, às vezes sem
serem incitadas pelos adultos; às vezes basta um
pequeno estímulo para que a criança comece a
desenhar.
As observações mostraram que todas as crianças
desenham, e as fases através das quais passam os
seus desenhos são mais ou menos comuns para as
crianças da mesma idade. Nesta etapa da vida,
desenhar é a atividade que a criança mais gosta. No
começo da idade escolar, o seu gosto e interesse pelo
desenho começa a decair. Em muitos casos, nas
crianças, este gosto mais ou menos autónomo pelo
desenho desaparece completamente se não for
incentivado. Apenas se conserva esta propensão nas
crianças melhor dotadas nesta área e igualmente nos
grupos de crianças em que as condições de educação,
em casa ou na escola, são alvo de estímulo e atenção
para o seu desenvolvimento. É evidente que existe
uma certa ligação interna entre a personalidade da
criança nesta
76 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

idade e a sua predileção pelo desenho. É manifesto


que a concentração das forças criativas da criança no
desenho não é um acaso, deve-se à circunstância de
ser o desenho
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o modo expressivo que nesta idade dá à criança a


possi bilidade de expressar melhor o que a preocupa.
Com a passagem para outra fase do desenvolvimento,
a criança eleva-se a um nível superior da sua idade;
ela muda e, com isso, muda o caráter da sua criação.
O desenho fica para trás como uma etapa já
vivida, e o seu lugar começa a ser ocupado por um
esforço novo, o da criação verbal ou literária, criação
que dominará sobretudo no período de maturação
sexual do adoles
cente. Alguns autores supõem que apenas a partir
desta idade se pode falar da criatividade verbal nas
crianças no sentido específico da palavra.
«A própria criatividade literária», diz o professor
Soloviev, «no sentido genuíno da palavra, tem a sua
origem precisamente quando surge o despertar da
sexua lidade. É necessária uma reserva de vivências
pessoais, é necessária a sua experiência pessoal, a
capacidade para analisar as relações entre as
pessoas em várias situações, para poder criar e
exprimir através de palavras algo seu e de novo (a
partir de um ponto de vista próprio) encar
nado e combinado pelos factos da vida real. A criança
em idade escolar (precoce) não o pode ainda fazer e,
por isso, a sua criação tem também um caráter
condicional e, sob muitos aspetos, é extremamente
ingénua.»
Existe um facto fundamental que muito convincen
temente mostra que a criança deve amadurecer
primeiro para chegar à criação literária. Apenas a
partir de um grau elevado de experiência acumulada e
de um nível elevado da acumulação do domínio da
fala e num grau
A CRIATIVIDADE LITERÁRIA NO PERÍODO ESCOLAR 77

elevado do desenvolvimento do seu mundo interior, a


criação literária se tornará acessível. Este facto a que
nos referimos traduz-se no atraso que as crianças
revelam
Copyright © Dinalivro, Lev Semenovitch Vygotsky e João Pedro Fróis, 2012 (Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou difundida
electronicamente)

no desenvolvimento na linguagem escrita comparativa


mente com a linguagem falada.
«Como é sabido», diz Gaupp, «a expressão
escrita dos pensamentos e sentimentos dos alunos
fica signifi cativamente atrás da sua capacidade de os
expor verbal mente. Encontrar uma explicação para
este facto não é fácil. Quando falamos com um rapaz
ou uma rapariga que se entusiasmam sobre as coisas
que são familiares ao seu entendimento e interesses,
então vemos que habi tualmente ouvimos deles
descrições vivas e respostas acertadas. A conversa
com eles torna-se um verdadeiro prazer. Mas se às
mesmas crianças for pedido para, de um modo livre,
escrever sobre o assunto da conversa que tivemos
mesmo agora, obteríamos apenas algu mas frases
escassas. Como são monótonas, forçadas e pobres
em conteúdo as cartas das crianças para o seu pai
ausente e como são vivas e ricas as descrições
verbais quando o pai regressa. Parece que no
momento em que a criança pega na caneta o seu
pensamento é travado, é como se o trabalho de
escrever a assustasse. “Eu não sei o que escrever.
Não me ocorre nenhuma ideia” – é a queixa frequente
da criança. Daqui se depreende ser erróneo avaliar o
nível do seu desenvolvimento mental, da sua
inteligência, nos alunos dos primeiros anos de
escolaridade, a partir da qualidade das suas
composições escolares.»
A explicação para esta falta de correspondência do
desenvolvimento da linguagem oral e escrita deve- -se
fundamentalmente à diversidade das dificuldades
78 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

que a criança encontra para se exprimir de um e outro


modo; quando a criança está perante uma tarefa de
maior dificuldade, tenta resolvê-la como se fosse uma
criança
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muito mais pequena.


«Basta complicar à criança o trabalho linguístico»,
diz Blonsky, «dando-lhe uma tarefa difícil, isto é, a de a
obrigar a exprimir-se no papel, e de imediato vemos
que a sua linguagem escrita se torna mais infantil do
que a linguagem falada: aparecem palavras
desconectadas nas orações e aumentam muito os
modos imperativos. Podemos ver isto praticamente
em tudo; quando a criança executa um trabalho
intelectual difícil, começa novamente a manifestar
todas as peculiaridades de uma idade mais jovem. Se
mostramos a uma criança de sete anos uma imagem
com um conteúdo adequado à sua idade e lhe
pedimos que fale sobre a mesma, ela falará como
uma criança de sete anos, isto é, diz o que se passa
na imagem. Mas se lhe mostrarmos uma imagem
difícil, ela começará a descrevê-la como uma criança
de três anos, isto é, inicia simplesmente a nomeação
dos objetos representados na imagem sem os ligar
uns aos outros.»
O mesmo acontece quando a criança passa da
linguagem oral para a linguagem escrita. A linguagem
escrita é mais difícil porque tem as suas próprias leis
que diferem, em parte, das leis do discurso oral, e a
criança ainda não domina bem essas leis.
Muitas vezes, as dificuldades que a criança expe
rimenta na passagem para a linguagem escrita podem
ser explicadas por razões internas muito profundas. A
linguagem falada é sempre compreensível para a
criança; resulta da comunicação viva com as outras
pessoas; é uma reação completamente natural, é uma

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