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GUIA DE ORIENTAÇÃO

SOBRE IDENTIFICAÇÃO E
ATENDIMENTO A CRIANÇAS
E ADOLESCENTES VÍTIMAS
DE TRÁFICO DE PESSOAS
As opiniões expressas nesta publicação são dos autores e não refletem necessariamente a opinião da OIM, Agência
da ONU para as Migrações. As denominações utilizadas no presente material e a maneira como são apresentados os
dados não implicam, por parte da OIM, qualquer opinião sobre a condição jurídica dos países, territórios, cidades ou
áreas, ou mesmo de suas autoridades, tampouco sobre a delimitação de suas fronteiras ou limites.
A OIM está comprometida com o princípio de que a migração ordenada e humana beneficia os migrantes e a
sociedade. Por seu caráter de organização intergovernamental, a OIM atua com seus parceiros da comunidade
internacional para: ajudar a enfrentar os crescentes desafios da gestão da migração; fomentar a compreensão das
questões migratórias; promover o desenvolvimento social e econômico.
Esta publicação foi financiada pelo Fundo da OIM para o Desenvolvimento como parte do projeto “Forta­
lecendo as Capacidades do Sistema de Justiça para o Combate ao Tráfico de Pessoas e Crimes Conexos”. As
opiniões expressas aqui são dos autores e não refletem necessariamente a opinião da OIM e dos parceiros.

Publicado por: Organização Internacional para as Migrações (OIM)


SAUS Quadra 5 - Bloco N - Ed. OAB - 4º andar - Asa Sul – CEP: 70070-913 - Brasília-DF - Brasil
Tel.: +55 61 3771-3772 – E-mail: iombrazil@iom.int – Website: https://brazil.iom.int

Expediente
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES
Chefe da Missão da OIM no Brasil: Stéphane Rostiaux
Coordenação Executiva do Projeto: Marcelo Torelly e Natália Maciel
Oficina de Concepção: Debora Castiglione
Pesquisa original: Ludmila Paiva
Revisão: Ana Gama, Fábio Andó Filho, Marcelo Torelly e Natália Maciel.

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA


Ministro Flávio Dino
Secretário Nacional de Justiça: Augusto de Arruda Botelho Neto
Diretora do Departamento de Migrações: Tatyana Friedrich
Coordenação-Geral de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrantes:
Marina Bernardes de Almeida
Equipe: Gustavo de Souza Rocha, Janaina Marcondes de Moura, Andrea Maria de Oliveira Farias,
Cecilia Dantas Gomes

MINISTÉRIO DOS DIREITOS HUMANOS E DA CIDADANIA


Ministro Silvio Luiz de Almeida
Secretário Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente: Cláudio Augusto Vieira da Silva
Diretora de Proteção da Criança e do Adolescente: Maria Luiza Moura de Oliveira
Coordenador-Geral de Fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos: Diego Bezerra Alves

Diagramação: Igor de Sá

Esta publicação não foi editada oficialmente pela OIM. | © OIM 2023 | Esta publicação não deve ser usada,
publicada ou redistribuída para fins principalmente destinados ou direcionados para vantagem comercial ou
compensação monetária, com exceção de fins educacionais, por exemplo, para inclusão em livros didáticos.
SUMÁRIO

1 – INTRODUÇÃO 6

2 – CONTEXTO DO TRÁFICO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES 7

3 – DEFINIÇÃO DE TRÁFICO DE PESSOAS E SUAS FINALIDADES 8


3.1 – FINALIDADES DE EXPLORAÇÃO 11
3.2 – DIFERENÇAS ENTRE TRÁFICO DE PESSOAS E CONTRABANDO
DE MIGRANTES
 13
4 – ATUAÇÃO INTERSETORIAL, IDENTIFICAÇÃO DE CASOS E
NOTIFICAÇÃO 14
4.1 – ATUAÇÃO INTERSETORIAL 14
4.2 – IDENTIFICAÇÃO DE CASOS 23
4.3 – NOTIFICAÇÃO 26

5 – ORIENTAÇÕES PARA O ATENDIMENTO 27


5.1 – EXEMPLOS DE TÉCNICAS PARA O ATENDIMENTO 30
5.2 – POSSÍVEL PASSO-A-PASSO DO PRIMEIRO ATENDIMENTO 32
5.3 – ESCUTA ESPECIALIZADA E DEPOIMENTO ESPECIAL 39
5.4 – O ATENDIMENTO A CRIANÇAS E ADOLESCENTES
DESACOMPANHADOS, SEPARADOS OU INDOCUMENTADOS 43

6 – CONCLUSÃO 45

7 – REFERÊNCIAS 46
1 – INTRODUÇÃO

O tráfico de pessoas é um fenômeno presente em diversos territórios, que servem


como local de origem, destino, trânsito ou uma combinação desses fluxos, sejam
eles internos ou internacionais. Uma série de fatores de ordem política, econômica,
social e ambiental influenciam essas dinâmicas e vulnerabilizam, especialmente,
mulheres e crianças, tornando-os mais suscetíveis a sofrer tais violações de direitos
humanos. Diversas medidas foram adotadas para aperfeiçoar o arcabouço normativo
e as respostas governamentais a esse fenômeno, mas ainda é necessário atualizar e
aperfeiçoar os mecanismos de proteção às crianças e adolescentes vítimas de tráfico.

O Guia de Orientação sobre Identificação e Atendimento a Crianças e Adolescentes


Vítimas de Tráfico de Pessoas é resultado do Projeto "Fortalecendo a Capacidade do
Sistema de Justiça para a Prevenção e Persecução do Tráfico de Pessoas e Crimes
Correlatos no Brasil", e foi desenvolvido em parceria com os ministérios dos Direitos
Humanos e Cidadania e da Justiça e Segurança Pública, com financiamento do Fundo da
OIM para o Desenvolvimento. O Guia é voltado para profissionais do poder público, do
sistema de justiça e da sociedade civil que atuam, direta ou indiretamente, na proteção,
atenção e prevenção à violência contra crianças e adolescentes e também para atores
integrantes da rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas.

Neste Guia, serão consideradas crianças e adolescentes quaisquer pessoas com


idade inferior a 18 anos, nos termos do art. 1º da Convenção Internacional sobre os
Direitos da Criança (1989): “Para efeitos da presente Convenção considera-se como
criança todo ser humano com menos de dezoito anos de idade, a não ser que, em
conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes” e do art.
2º do ECA: “Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de
idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.”

Este documento pretende ser uma ferramenta prática de apoio às instituições, programas
e serviços de atenção às crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência e
suas famílias, visando à promoção do acesso a direitos e prevenção da ocorrência de
novas violações. Espera-se que a atuação integrada e coordenada entre os órgãos que
compõem o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente sirva de
referência para o estabelecimento de políticas e qualificação de ações específicas voltadas
para o atendimento às crianças e adolescentes vítimas de tráfico.
2 – CONTEXTO DO TRÁFICO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

O tráfico de pessoas está intrinsecamente relacionado a assimetrias sociais e geopolíticas, e


também às mudanças de comportamento da sociedade, como o uso de novas tecnologias,
o que torna ainda mais desafiador o enfrentamento a essa prática, em constante
transformação. Estima-se que há uma grande subnotificação dos casos, principalmente
quando o tráfico tem como alvo crianças e adolescentes. O Relatório Global sobre
Tráfico de Pessoas do UNODC (2022) indicou que crianças e adolescentes são
35% das vítimas de tráfico de pessoas no mundo. As meninas representam 27%
das vítimas de tráfico de pessoas para exploração sexual. Nos casos de tráfico de pessoas
para o trabalho forçado, os meninos representam 12%, e as meninas, 5% das vítimas.

O tráfico de crianças e adolescentes é preponderante em comunidades em situação de


pobreza extrema e pode envolver todas as modalidades de exploração previstas em lei:
adoção ilegal, remoção de órgãos, exploração de trabalho infantil, mendicância e outras
formas de servidão e exploração sexual (que abrange a exploração sexual comercial, a
pornografia infantil e o casamento forçado).
3 – DEFINIÇÃO DE TRÁFICO DE PESSOAS E SUAS FINALIDADES

O Protocolo de Palermo1, principal diploma internacional sobre o tráfico de pessoas,


define o tráfico em seu art. 3º como:

a. o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento


de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas
de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de
situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou
benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade
sobre outra, para fins de exploração. A exploração a exploração incluirá,
no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de
exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, a escravatura ou práticas
similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.

1 Em 2000, a Organização das Nações Unidas (ONU) adotou o Protocolo Adicional à Convenção das Nações
Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pes-
soas, em especial de Mulheres e Crianças, que ficou conhecido como Protocolo de Palermo (2000).
b. O consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas tendo em vista
qualquer tipo de exploração descrito na alínea a) do presente Artigo
será considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um dos
meios referidos na alínea a);

c. O
 recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento
ou o acolhimento de uma criança para fins de exploração serão
considerados “tráfico de pessoas” mesmo que não envolvam nenhum
dos meios referidos da alínea a) do presente Artigo; (grifos nossos)

d. O termo “criança” significa qualquer pessoa com idade inferior a dezoito anos.

Após a ratificação do Protocolo de Palermo, a Lei de Tráfico de Pessoas2 , alterou o Código


Penal Brasileiro incluindo o art. 149-A, que define o crime de tráfico de pessoas como:

Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar


ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação,
fraude ou abuso, com a finalidade de:

I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo;

II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo;

III - submetê-la a qualquer tipo de servidão;

IV - adoção ilegal; ou

V - exploração sexual.

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.

2 Lei nº 13.344/2016.
Na Lei brasileira, há previsão de aumento de pena se o crime for cometido contra
criança ou adolescente e também se a vítima for retirada do território nacional:

§ 1º A pena é aumentada de um terço até a metade se:

I - o crime for cometido por funcionário público no exercício de


suas funções ou a pretexto de exercê-las;

II - o crime for cometido contra criança, adolescente


ou pessoa idosa ou com deficiência; (grifos nossos)

III - o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas,


de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de
autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício
de emprego, cargo ou função; ou

IV - a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território nacional.

O tráfico de pessoas é definido por três elementos constitutivos, uma ação, um meio e
uma finalidade exploratória:

Ação Meio Finalidade

Agenciar, aliciar, recrutar, Mediante grave ameaça, Com a finalidade de: remover
transportar, transferir, violência, coação, fraude ou órgãos, tecidos ou partes do
comprar, alojar ou acolher abuso. corpo; submeter a trabalho
pessoa. em condições análogas à de
escravo; submeter a qualquer
tipo de servidão; adoção ilegal;
e exploração sexual.

Importante ressaltar que, se a vítima for criança ou adolescente, não é necessário


que tenha sido empregado quaisquer dos meios de controle previstos em lei, e o
consentimento da vítima é irrelevante para a caracterização do crime. Por exemplo,
uma criança ou adolescente transferida de um lugar para outro com a finalidade de ser
explorada deve ser considerada vítima de tráfico.
3.1 – Finalidades de exploração

Como visto, o tráfico de crianças e adolescentes pode ser praticado para as diversas
finalidades previstas em lei: remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo, submissão
ao trabalho infantil e a outras formas de servidão, exploração sexual e adoção ilegal.
Algumas dessas práticas são tão frequentes que adquiriram novos nomes, como
“adoção informal” ou “adoção à brasileira”. A adoção irregular de crianças e
adolescentes muitas vezes se destina à servidão doméstica e exploração do trabalho
infantil, mas também pode envolver o abuso sexual e outras violações (BRASIL, 2013).

Crianças e adolescentes com deficiências físicas visíveis acabam sendo, muitas vezes
exploradas no tráfico de pessoas para fins de mendicância. Àquelas portadoras de
deficiência mental ou cognitiva também estão vulneráveis a outras formas de exploração,
como na exploração sexual ou no trabalho infantil, devido à sua menor capacidade de
avaliar os riscos e fugir dessa situação. As deficiências são um importante fator de
vulnerabilidade ao tráfico de pessoas, especialmente em países com altos níveis de
discriminação e marginalização (OIM, 2017).

Outra forma de exploração é o trabalho infantil, que se refere às atividades econômicas


e/ou atividades de sobrevivência, com ou sem finalidade de lucro, remuneradas ou não,
independente da condição ocupacional, realizadas por crianças ou adolescentes em
idade inferior aos 16 anos, ressalvada a condição de aprendiz a partir dos 14 anos. Para
crianças e adolescentes de 16 a 18 anos, é vedado também qualquer tipo de trabalho
perigoso, noturno e/ou insalubre.

Muitas pessoas no Brasil aceitam o trabalho infantil como algo natural na sociedade,
mas trata-se de uma exploração causada por um cenário de desproteção e pobreza que
atinge, muitas vezes, toda a família da criança ou adolescente explorado. É um fenômeno
complexo, pois em muitos casos a exploração da criança e do adolescente está combinada
com uma situação de violação de direitos sofrida por toda a família, e uma ruptura do
convívio familiar geraria danos ainda maiores ao desenvolvimento da vítima.

O trabalho infantil gera danos irreversíveis ao desenvolvimento físico, cognitivo, social e


emocional da criança e do(a) adolescente, provocando prejuízos por toda a sua vida. É
necessário avaliar, caso a caso, as intervenções e medidas preventivas cabíveis, sempre
visando ao superior interesse da criança e do(a) adolescente, o que deve envolver seu
afastamento da situação de exploração. O tráfico de pessoas está inserido na Lista das
Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP)3 , que enumera 93 atividades proibidas
para qualquer pessoa com idade inferior a 18 anos.

O Art. 4º do decreto dispõe que integram as piores formas de trabalho infantil:

I – todas as formas de escravidão ou práticas análogas, tais


como venda ou tráfico, cativeiro ou sujeição por dívida, servidão,
trabalho forçado ou obrigatório;

II – a utilização, demanda, oferta, tráfico ou aliciamento para


fins de exploração sexual comercial, produção de pornografia ou
atuações pornográficas;

III – a utilização, recrutamento e oferta de adolescente para outras


atividades ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de drogas; e

IV - o recrutamento forçado ou compulsório de adolescente


para ser utilizado em conflitos armados.

Outras modalidades de exploração bastante subnotificadas são a exploração e o


abuso sexual. É importante saber diferenciar essas duas formas de violação dos
direitos de crianças e adolescentes. O abuso sexual ocorre para a satisfação ou
estimulação sexual de uma pessoa adulta. A exploração sexual pressupõe uma
mercantilização do corpo da criança ou do(a) adolescente, que pratica atos sexuais em
troca de retribuições financeiras ou não, tais como: drogas, roupas, viagens e alimentos.

Crianças e adolescentes não se prostituem. Quando crianças e adolescentes são levados


a praticar atos sexuais ou pornográficos, não se trata de “prostituição infantil”, dada
a irrelevância do consentimento. As expressões mais adequadas para essas situações
são: “exploração sexual de crianças e adolescentes”, “exploração sexual infantojuvenil”,
“exploração sexual comercial de crianças e adolescentes”, “meninos, meninas e
adolescentes em situação de exploração sexual”.

3 O decreto que regulamenta a Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) contém
a lista das piores formas de trabalho infantil.
É importante ter conhecimento sobre as diferentes formas de exploração do tráfico de
pessoas, pois cada uma das finalidades implica em acionar diferentes atores do sistema de
proteção das crianças e dos adolescentes, bem como da rede de enfrentamento de tráfico de
pessoas. Por exemplo, crianças e adolescentes vítimas de abuso e exploração
sexual necessitam de assistência de saúde imediata para a administração
de Profilaxia Pós Exposição (PEP) ao vírus HIV, investigação de traumas
e infecções sexualmente transmissíveis além de avaliação da saúde
reprodutiva.

3.2 – Diferenças entre Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrantes

O tráfico de pessoas é um crime que envolve a combinação de uma ação, um meio e


uma finalidade exploratória. No caso de crianças e adolescentes, como visto acima, não
há necessidade do emprego dos meios previstos em lei para a caracterização do crime,
bastando a prática das ações enumeradas para fins de exploração. O tráfico de pessoas pode
envolver o deslocamento da vítima para outro país – tráfico internacional – que envolve
riscos adicionais relacionados à migração irregular, mas também pode ocorrer dentro de um
mesmo país – tráfico interno, envolvendo pessoas em situação migratória regular.

O contrabando de migrantes ocorre quando alguém obtém benefício financeiro ou material


com a entrada por via irregular de uma pessoa em um país sem a autorização formal ou
documentação necessária. Nesse caso, os contrabandistas se beneficiam da facilitação da
migração irregular. Em muitos casos, as pessoas contrabandeadas sofrem violações de
direitos durante a migração, mas a exploração das vítimas não é o objetivo da prática do
crime, cessando a relação entre as vítimas e os criminosos após a entrada daquelas no
território. O contrabando de migrantes pode envolver práticas extorsivas e também se
tornar tráfico de pessoas se, logo após a entrada no país, a pessoa sofrer exploração.

No caso de crianças e adolescentes, é necessário analisar os casos de contrabando


de migrantes com cautela, sempre observando o superior interesse da criança e do
adolescente, a fim de evitar situações de criminalização da migração irregular e reduzir
danos gerados pela separação da criança ou adolescente dos seus familiares. Nesse
sentido, é importante ressaltar que medidas de retirada compulsória do país não
devem ser aplicadas em casos em que possa apresentar risco à vida, à integridade ou à
liberdade da pessoa, e só deve ser aplicada quando atender estritamente ao superior
interesse da criança ou do adolescente. Há situações de migração motivadas por fatores
sociais, econômicos, políticos e ambientais. Muitas vezes, a migração se dá de maneira
forçada, como nos casos de perseguição, conflitos armados, do tráfico de pessoas e
outras situações de risco iminente.
Crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade agravada pela situação migratória,
são alvos preferenciais para o tráfico de pessoas. O fato de estarem indocumentadas
e/ou em situação de irregularidade migratória, somado ao preconceito, xenofobia, falta
de domínio do idioma e do desconhecimento dos órgãos de proteção, faz com que
enfrentem dificuldades ainda maiores para acessar direitos. Por isso, deve ser oferecida
a possibilidade de regularização migratória e reunificação familiar no país, de acordo
com as normas vigentes.

Vítimas de tráfico de pessoas têm direito à autorização de residência por


prazo indeterminado nos casos de tráfico de pessoas, de trabalho escravo
ou de violação de direito agravada por sua condição migratória, prevista
em portaria do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Crianças e
Adolescentes separadas, desacompanhadas ou indocumentadas também
têm direito à regularização migratória, de acordo com procedimentos
de proteção já estabelecidos no Brasil, descritos na seção 5.4 deste
documento.

4 – ATUAÇÃO INTERSETORIAL, IDENTIFICAÇÃO


DE CASOS E NOTIFICAÇÃO

4.1 – Atuação intersetorial

Cada órgão e serviço público, bem como entidades privadas e da sociedade civil,
cumpre um papel importante tanto no levantamento das suspeitas e realização da
denúncia, quanto na efetivação dos direitos da criança e do adolescente, dentro de suas
competências e atribuições – e referenciamento para a rede de proteção.

No período de apuração dos fatos pela Polícia Civil e Ministério Público, no


acompanhamento do caso pela rede, é fundamental que as instituições não trabalhem
de forma isolada, e que o acionamento da rede de atendimento se dê de forma
coordenada entre os atores do sistema de garantia de direitos. A atuação integrada, além
de tornar mais célere as respostas às necessidades das vítimas, qualifica e complementa
as intervenções das instituições, evitando a sobreposição de atividades comuns.
Paralelamente ao primeiro passo necessário, que é o encaminhamento da denúncia as
autoridades competentes (Polícia e Conselho Tutelar), os órgãos e serviços do sistema
de garantia de direitos podem proceder ao atendimento específico de outras áreas,
por exemplo, na assistência social, acolhimento institucional, atendimento de saúde,
psicológico e educacional.

O Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA)


surgiu em 2006, com o objetivo de dar efetividade aos direitos previstos no Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA), a partir da articulação e integração das instâncias
públicas governamentais e da sociedade civil, na aplicação de instrumentos normativos
e no funcionamento dos mecanismos de promoção, defesa e controle para a efetivação
dos direitos humanos da criança e do adolescente.

O Conselho Tutelar é o órgão permanente, autônomo e não jurisdicional, criado pelo


Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e encarregado pela sociedade de zelar pelo
cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. Ele é um dos principais integrantes
do SGDCA, e integra o eixo de Defesa dos Direitos Humanos de crianças e adolescentes.
Algumas das atribuições dos Conselhos Tutelares, segundo o Art. 136 do ECA são:

● Atender as crianças e adolescentes em situação de ameaça ou violação


de direitos, ou que tenham cometido ato infracional;

● atender e aconselhar os pais ou responsável legal;

● requisitar serviços públicos nas áreas de saúde, educação, serviço social,


previdência, trabalho e segurança;

● representar judicialmente os casos de descumprimento de suas deliberações;

● notificar o Ministério Público sobre infrações contra os direitos da


criança ou adolescente;

● representar ao Ministério Público ações de perda ou suspensão do poder


familiar, após esgotadas as possibilidades de manutenção da criança ou
do(a) adolescente junto à família natural;

● atender à criança e ao(à) adolescente vítima ou testemunha de


violência doméstica e familiar, ou submetido(a) a tratamento cruel ou
degradante ou a formas violentas de educação, correção ou disciplina,
e prover orientação e aconselhamento acerca de seus direitos e dos
encaminhamentos necessários;

● requerer às autoridades o afastamento do agressor do lar, do domicílio


ou do local de convivência com a vítima nos casos de violência doméstica
e familiar contra a criança e o(a) adolescente;

● requerer junto ao Ministério Público a propositura de ação cautelar de


antecipação de produção de prova nas causas que envolvam violência
contra a criança e o(a) adolescente.
Os Conselhos Tutelares dispõem de uma base de dados nacional destinada à formulação
de políticas públicas, chamada Sipia. O sistema Sipia é utilizado para o registro e tratamento
de informações relacionadas à garantia e defesa dos direitos da criança e do adolescente
nos níveis municipal, estadual e nacional. O ponto focal para a alimentação do sistema é
o Conselho Tutelar, mas também podem se cadastrar na base de dados os conselhos de
direitos e demais operadores do sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes4.

O aplicativo Guia de Direitos e Serviços para Migrantes no


Brasil desenvolvido pelo Ministério dos Direitos Humanos
e Cidadania, com apoio da OIM, possui ferramenta de
georreferenciamento, de forma que você pode usar o
aplicativo para encontrar o Conselho Tutelar e outros
serviços como de saúde e assistência social mais próximo
da sua localidade. O aplicativo possui também os canais de
denúncia para casos de tráfico de pessoas e violações de
direitos humanos. Disponível na plataforma Android.

O Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente Vítima ou


Testemunha de Violência 5 trouxe mecanismos de integração e coordenação das
políticas públicas setoriais, especialmente da assistência social, saúde, justiça e segurança
pública. O tráfico de pessoas foi mencionado na lei que instituiu o referido sistema como
uma das diferentes formas de violência contra a criança e o(a) adolescente (violência
física, psicológica, sexual, institucional e patrimonial). No entanto, ele é descrito como
uma das modalidades de violência sexual, restringindo a definição do crime apenas e
equivocamente à finalidade de exploração sexual.

4.1.1 – Assistência social

O SGDCA recomenda ao poder público a elaboração, no âmbito do Sistema Único


de Assistência Social (Suas), de plano individual e familiar de atendimento. Esse
procedimento deve contar com a participação da criança e do(a) adolescente, e zelar
pela preservação dos vínculos familiares, sempre que possível.

4 Mais informações em https://www.gov.br/pt-br/servicos/solicitar-acesso-ao-sistema-de-informacao-pa-


ra-a-infancia-e-adolescencia-sipia-conselho-tutelar.

5 Em 2017 foi criado pela Lei nº 13.431/2017 o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adoles-
cente Vítima ou Testemunha de Violência.
Os familiares das vítimas de tráfico de pessoas são vítimas indiretas dessa
violação que, muitas vezes, está relacionada a uma situação de vulnerabilidade preexistente
e compartilhada com outras pessoas do convívio da vítima. Por esse motivo, a assistência
social deve proceder à inclusão da vítima e de sua família nas políticas, programas e
serviços existentes, com destaque para o Serviço de Atendimento Especializado a Famílias
e Indivíduos (PAEFI), ofertado nos Centros de Referência Especializado de Assistência
Social (CREAS), com o objetivo de promover a proteção social da família e contribuir para
a prevenção às violações de direitos de pessoas em situação de risco social.

Deve-se observar que a noção de família, em algumas etnias, difere do conceito usualmente
conhecido e definido na legislação brasileira, o que requer atenção no acompanhamento
das vítimas pertencentes a povos originários, indígenas ou comunidades tradicionais e seus
familiares, especialmente nas hipóteses em que for necessário o acolhimento institucional.
A identificação como indígena se dá por meio de autodeclaração e pode atribuir algumas
especificidades em relação à forma de organização social e itinerância no território.

ATENÇÃO!

Os casos envolvendo crianças e jovens indígenas, especialmente


daqueles em situação de afastamento do convívio familiar
ou comunitário, deverão ser imediatamente comunicados
para as unidades locais e regionais da Fundação Nacional do
Índio (Funai) competentes, em caráter de urgência, devendo
ser posteriormente providenciada a autuação em processo
administrativo.

As unidades da Funai, no âmbito de suas competências,


deverão apoiar a Rede de Proteção Local no atendimento
e acompanhamento as crianças e jovens indígenas visando a
efetivação do Direito a Convivência Familiar e Comunitária,
buscando orientar para que essas ações atendam aos padrões
socioculturais específicos dos diferentes povos indígenas6.

É também papel da assistência social reportar às autoridades situações de violência


identificadas no decorrer do atendimento e comunicando, imediatamente, ao Conselho
Tutelar ou à autoridade policial (Lei 13.431/2017, art. 13). A assistência social deve reportar

6 Instrução Normativa do Ministério da Justiça e Segurança Pública nº 1, de 13 de maio de 2016.


ao Ministério Público os casos de ausência de responsável legal, diante da necessidade de
colocar a criança ou o(a) adolescente aos cuidados da família extensa, de família substituta
ou de serviço de acolhimento familiar ou, em sua falta, institucional (Lei 13.431/2017,
art. 19, IV). É importante ressaltar que os profissionais da política de assistência social
não realizam oitiva de vítimas para fins de produção de provas no âmbito judicial. É
resguardado o sigilo profissional ao corpo técnico da psicologia e da assistência social.

4.1.2 – Educação

O ambiente escolar é, muitas vezes, o espaço onde as crianças e adolescentes estabelecem


um vínculo de confiança com os educadores, para relatar situações de violência e buscar
suporte. Em outros casos, o baixo rendimento escolar, aspectos comportamentais e a
evasão escolar são possíveis indícios que a criança ou o(a) adolescente encontra-se em
situação de risco ou vulnerabilidade extrema.

Os profissionais da educação podem abordar essas questões em atividades pedagógicas,


conforme a idade e estágio de desenvolvimento da criança; buscar suporte da
coordenação e orientação pedagógica para uma intervenção junto à família e; quando
necessário, proceder ao encaminhamento da criança ou do(a) adolescente para serviços
de assistência social e demais órgãos e serviços do sistema de garantia de direitos.

É fundamental que a escola seja um espaço inclusivo, acolhedor e aberto ao diálogo sobre
temas do cotidiano, e deve sempre envidar esforços para a garantia da permanência
das crianças e adolescentes no ensino regular, como estratégia fundamental para a
prevenção da violência.

4.1.3 – Saúde

O profissional de saúde pode ser a primeira pessoa a identificar uma criança ou


adolescente traficado. O guia Assistência às vítimas de tráfico de pessoas: guia para
profissionais de saúde (OIM, 2017) traz vários planos de ação a serem adotados por
esses profissionais. Além disso, o SUS prevê o acompanhamento de saúde por meio do
Projeto Terapêutico Singular (PTS), que envolve a discussão de equipe interdisciplinar e
o cuidado com a coletividade na qual a criança ou adolescente está inserida.

A avaliação realizada por profissional de saúde deve atentar para o fato de que nem
sempre a etapa de desenvolvimento de uma criança ou adolescente é compatível com
sua idade física, em decorrência dos sucessivos traumas, abusos e privações que possa
ter sofrido. Além de questões urgentes, a avaliação de saúde deve observar se há agravos
de saúde e prejuízos ao desenvolvimento físico, cognitivo e emocional provocados pela
exposição por um longo período à exploração.

Importante ressaltar que crianças e adolescentes vítimas de abuso e


exploração sexual necessitam de assistência de saúde imediata para a
administração de Profilaxia Pós Exposição (PEP) ao vírus HIV, investigação
de traumas e infecções sexualmente transmissíveis além de avaliação da
saúde reprodutiva.

O suporte à saúde mental da criança ou adolescente vítima também enseja atuação


complementar, como o fortalecimento da rede de apoio, acompanhamento de saúde
e acesso à educação. Esses pilares são essenciais para a recuperação de confiança das
vítimas e a constância no acompanhamento psicológico.

O Sistema de Garantias da Criança e do Adolescente Vítima ou Testemunha de


Violência propõe que o poder público crie, no âmbito do Sistema Único de Saúde
(SUS), serviços para atenção integral à criança e ao(à) adolescente em situação de
violência, de forma a garantir o atendimento acolhedor. É responsabilidade do Instituto
Médico Legal (IML) ou do serviço credenciado do sistema de saúde mais próximo a
coleta, guarda provisória e preservação de material com vestígios de violência, que deve
ser entregue para perícia imediatamente.

Os agentes de saúde, ao identificar uma situação de violação associada ao


tráfico de pessoas ou agravos de saúde decorrentes de exploração do trabalho em
condições análogas à de escravo, podem notificar as autoridades de forma anônima,
através do SINAN (Sistema de Informação de Agravos de Notificação) e também
utilizar o RINA (Relatório Individual de Notificação de Agravos). No SINAN, há uma
marcação específica para Trabalho infantil e outra para o Tráfico de seres humanos, e
no RINA é possível reportar doenças relacionadas ao trabalho.

4.1.4 – Segurança pública

Os agentes de segurança são, muitas vezes, os profissionais que têm o primeiro contato
com as vítimas de tráfico de pessoas. Agentes das Polícias Civil e Militar, das Guardas
Municipais e da Polícia Federal devem adotar uma postura humanizada, no sentido de
não criminalizar a vítima e acionar a delegacia e demais órgãos especializados da rede
para os encaminhamentos devidos, conforme o caso.
A Lei que instituiu o Sistema recomenda a criação de delegacias especializadas no
atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência, com previsão orçamentária
para sua estruturação e contratação de equipes multidisciplinares. Devem ser
observadas as disposições da mesma Lei sobre o depoimento especial (que será mais
explicitado a seguir) e adotadas todas as medidas de proteção pertinentes.

4.1.5 – Sistema de justiça

A Justiça da Infância e da Juventude tem a função de apurar e decidir sobre demandas


relacionadas à guarda, tutela, adoção e todas as questões relativas aos interesses
individuais, difusos ou coletivos da criança e do(a) adolescente.7 A Lei recomenda a
criação de juizados ou varas especializadas em crimes contra a criança e o(a) adolescente.

Os órgãos do sistema de justiça que integram o Sistema de Garantia de Direitos da


Criança e do Adolescente são responsáveis por ingressar com todos os procedimentos
judiciais e extrajudiciais necessários à reparação de danos e direitos violados e encaminhá-
la para o acesso a programas e benefícios sociais e demais políticas públicas como, por
exemplo, inclusão em programa de proteção a vítimas ou testemunhas ameaçadas.

Além da Justiça da Infância e da Juventude, vários órgãos do sistema de justiça e


segurança pública atuam, de forma complementar, na proteção, defesa e garantia dos
direitos das crianças e adolescentes. São eles: Ministérios Públicos (estadual, federal e
do trabalho), Defensorias (estadual e da União) e outras instâncias do Poder Judiciário
(estadual, federal e trabalhista).

Nos casos em que for constatado que a criança ou adolescente foi


submetido(a) ao trabalho em condições análogas à escravidão (piores
formas de trabalho infantil), é importante acionar também a Auditoria-Fiscal
do Trabalho, do Ministério do Trabalho e Emprego que, juntamente ao Ministério
Público do Trabalho e/ou a Defensoria Pública da União, realizam o reconhecimento e
garantia de direitos na esfera trabalhista e previdenciária, conforme o caso.

A esse respeito, ressalte-se que, segundo o art. 109 da Constituição Federal, os crimes
contra a organização do trabalho competem aos órgãos federais. Nesse sentido, foi
lançado, em 2020, o Fluxo Nacional de Atendimento às Vítimas de Trabalho Escravo no

7 Suas atribuições estão enumeradas no Art. 148 do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990).
Brasil 8 , um fluxo de atuação estabelecido entre: Auditoria-Fiscal do Trabalho, Defensoria
Pública da União, Ministério Público Federal, Ministério Público do Trabalho, Polícia
Federal e outras instituições. É essencial, assim, que esse fluxo, e os órgão mencionados
sejam observados, para o melhor atendimento do interesse da criança.

O PROGRAMA DE PROTEÇÃO A CRIANÇAS E


ADOLESCENTES AMEAÇADOS DE MORTE (PPCAAM)

O Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados


de Morte (PPCAAM)9 tem a finalidade de proteger crianças
e adolescentes expostos(as) a grave e iminente ameaça de
morte, quando esgotados os meios convencionais, por meio
da prevenção ou da repressão da ameaça. A proteção poderá
ser estendida aos familiares que tenham, comprovadamente,
convivência habitual com o ameaçado, a fim de preservar a
convivência familiar.

A proteção concedida será proporcional à gravidade da


ameaça e à dificuldade de preveni-la ou reprimi-la por outros
meios. Dentre as ações previstas no Programa, estão: a
transferência de residência ou acomodação em ambiente
compatível com a proteção; o apoio e assistência social,
jurídica, psicológica, pedagógica e financeira; a segurança no
deslocamento para o cumprimento de obrigações que exijam
o seu comparecimento; a preservação do sigilo de identidade,
imagem, dados e informações que comprometam a sua
segurança e a sua integridade física, mental e psicológica e a
inserção e garantia de acesso seguro aos programas sociais e
políticas públicas com vistas à sua proteção integral (BRASIL,
2018a, Art. 116).

8 Portaria nº 3.484, de 6 de outubro de 2021 do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Dispo-
nível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/portarias/portaria-no-3-484-de-
-6-de-outubro-de-2021

9 O PPCAAM foi criado em 2003 e integra a política pública estratégica de enfrentamento à letalidade
infantojuvenil e de preservação da vida de crianças e adolescentes ameaçados de morte. Ele é disciplinado
pelo Decreto nº 9.579/2018 e coordenado pela Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Ado-
lescente do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania e sua execução se dá por meio de acordos de
cooperação e convênios entre a União, os Estados e o Distrito Federal.
As autoridades competentes para solicitar a inclusão de
crianças e adolescentes ameaçados no PPCAAM são o
Conselho Tutelar, a autoridade judicial competente, o
Ministério Público e a Defensoria Pública. A inclusão no
PPCAAM dependerá da voluntariedade do(a) ameaçado(a)
e da anuência de seu representante legal ou da autoridade
judicial competente e não é condicionada à colaboração em
processo judicial ou inquérito policial.

4.1.6 – Comitês, conselhos e demais órgãos colegiados

Há também importantes instâncias de participação, controle social e construção


de políticas públicas nas estruturas do poder executivo estadual e municipal. São
comitês, conselhos, comissões e fóruns de discussão e participação sobre variados
temas. Alguns estados dispõem de comitês estaduais de enfrentamento ao tráfico de
pessoas, comissões para erradicação do trabalho escravo e fóruns de erradicação do
trabalho infantil. Esses são alguns exemplos de espaços que integram atores públicos
e da sociedade civil favorecendo a atuação conjunta e definição de fluxos de trabalho
e de atendimento. Além disso, os conselhos dos direitos da criança e do adolescente
cumprem um papel importante no desenvolvimento das políticas para esse público,
além de qualificar a atuação dos Conselhos Tutelares.

É relevante que as ocorrências de tráfico de pessoas sejam identificadas por esses


atores, preservando-se o sigilo, a fim de coordenar ações entre as diferentes instituições
e direcionar as políticas públicas para uma melhor intervenção e atuação preventiva. Os
órgãos colegiados são abertos à participação de representantes das políticas setoriais,
e funcionam como ponto focal para articulação da rede e fortalecimento do controle
social sobre as políticas públicas.

4.2 – Identificação de casos

A identificação do tráfico de pessoas não é uma tarefa simples. Muitas vezes, conta-se
apenas com o relato das vítimas, que dificilmente abordarão os elementos necessários para
a compreensão da real situação de exploração vivenciada. Por isso, independentemente
da confirmação das autoridades de que se trata de um caso de tráfico de pessoas, diante
da menor suspeita, a vítima deve ser atendida e acolhida. Essa é uma tarefa que deve ser
compartilhada por todos os atores da rede enumerados na seção anterior.
Alguns indicadores10, ou sinais de alerta, podem ajudar na identificação de possíveis casos de
tráfico de crianças e adolescentes. A vítima, frequentemente, pode:

Contexto da exploração

● Realizar trabalho ou pres­tar serviços em condições insalubres, arriscadas ou


pe­rigosas (v. Lista TIP);

● Possuir lesões ou patologias decorrentes de maus-tratos;

● Estar impossibilitado(a) de deixar determinado local, seja pelo cárcere ou por


es­tar sob vigilância constante;

● Sofrer ameaças de ser entregue às autoridades;

● Rejeitar-se a sair da situa­ção de exploração;

● Permitir que respondam em seu lugar


quando lhe dirigem a palavra;

● Agir como se alguém estivesse


controlando seus movimentos;

● Não ter acesso a cuidados médicos e


odontológicos.

● Ter sido resgatada de uma situação analóga à de escravo pode indicar a existência
também de um tráfico de pessoas;

10 Alguns indicadores foram adaptados do Guia Prático Grupo de Trabalho de Assistência às Vítimas de
Tráfico de Pessoas da Defensoria Pública da União (DPU, 2019).
Contexto individual

● Não estar sob a posse de documentos de identificação pessoal ou bilhe­tes de


viagem, ou apresentar documentos falsos;

● Desconhecer o idioma local;

● Ter receio de revelar sua situação migratória;

● Fornecer informações falsas sobre sua identi­dade, família, idade e país de origem;

● Ter interação social limitada, não brincar e sentir-se envergonhados e


estigmatizados;

● Não estar frequentando a escola assiduamente ou ter abandonado a escola;

● Não ter contato com o local de origem ou seus familares;

● Apresentar variação brusca de rendimento escolar ou comportamento (ex:


dormir frequentemente na sala de aula, mudança brusca de humor);

Contexto da convivência

● Estar acompanhada de uma pessoa com uma diferença grande de idade;

● Estar acompanhada de alguém de nacionalidade diferente ou de pessoa


de grupo étnico diferente da criança;

● Estar acompanhada de pessoa que não fale a sua língua;

● Estar acompanha de pessoa que não é o representante legal da criança;


Mesmo que não se tenha um diagnóstico fechado no primeiro atendimento, a menor
suspeita, a partir da identificação de um ou mais sinais de alerta, ou da
revelação espontânea de uma violação de direitos sofrida pela criança
ou adolescente deve ser reportada às autoridades para investigação
e também devem ser realizados os encaminhamentos devidos para a
assistência à vítima (através do Conselho Tutelar).

4.3 – Notificação

Diante da suspeita ou da identificação no atendimento, de que ocorreu o tráfico de


pessoas, as violações de direitos e crimes cometidos contra crianças e adolescentes
devem ser notificadas compulsoriamente e imediatamente ao serviço de
recebimento e monitoramento de denúncias, ao conselho tutelar ou à autoridade
policial, conforme determinação da Lei nº 13. 431/2017, em seu art. 13, os quais, por
sua vez, cientificarão imediatamente o Ministério Público.
Para além da notificação compulsória, cada instituição dispõe de fluxos próprios
para notificar e encaminhar denúncias aos órgãos competentes, de acordo com as
atribuições institucionais. Deste modo, também é relevante notificar os demais órgãos
responsáveis pela defesa dos direitos da criança e do adolescente. São eles: o Ministério
Público, a Justiça da Infância e Juventude, a Defensoria Pública e a Delegacia de Polícia.
O registro do caso deve ser realizado, preferencialmente, na Delegacia da Criança e do
Adolescente Vítima e, na ausência desta, antes de se dirigir à delegacia de polícia do local,
recomenda-se acionar a Delegacia da Mulher ou outra unidade policial especializada no
atendimento a públicos vulneráveis.

Nos casos em que tratar de tráfico internacional de pessoas devem ser acionadas as
autoridades públicas federais (Polícia Federal, Ministério Público Federal e Defensoria
Pública da União) e nas hipóteses de tráfico de pessoas para fins de exploração do
trabalho em condições análogas à de escravo, por ser um crime de competência
da justiça federal, devem ser acionadas, além das autoridades federais mencionadas
anteriormente, a Auditoria-Fiscal do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho.

A Defensoria Pública será acionada especialmente nos casos em que for necessário,
excepcionalmente, afastar a vítima do convívio familiar. Deve-se avaliar a possibilidade
de reportar a denúncia com o acompanhamento de familiares da vítima, desde que não
sejam pessoa envolvidas na agressão ou exploração.

5 – ORIENTAÇÕES PARA O ATENDIMENTO

O atendimento às crianças e adolescentes vítimas de tráfico de pessoas tem o objetivo


de coletar informações e identificar suas principais necessidades e demandas para
oferecer o acolhimento, a proteção e a reparação adequados.

Crianças e adolescentes em situação de exploração frequentemente são vítimas de


violência física, psicológica e sexual, e criam vínculos e relações de dependência afetiva
e existencial com os perpetradores do crime. Deste modo, após serem retiradas da
situação de violação, sentem-se confusas, envergonhadas e sem perspectivas. A seguir,
apresentamos alguns pontos de atenção e recomendações para o atendimento, reforçando
que cada profissional responsável por realizar o atendimento das vítimas de violência irá
dispor de autonomia funcional e todo um instrumental de técnicas, normativas e códigos
de ética próprios de sua profissão, área de atuação e atribuição institucional.
Aspectos a serem considerados no atendimento:

● Evitar Revitimização: algumas crianças e adolescentes sofrem revitimização


após terem sido retiradas da situação de exploração. Os exploradores
tentam recuperar o controle sobre elas ou intimidá-las, e também
há casos de violência institucional em centros de acolhimento e nos
procedimentos persecutórios (perícia, coleta de depoimento, dentre
outros) que podem gerar danos irreversíveis às dessas vítimas.

● Reduzir os danos: é imprescindível que os profissionais responsáveis


pela aplicação da lei e dos instrumentos de proteção da criança e do
adolescente priorizem a redução dos danos sofridos e contribuam
com seu processo de recuperação. O acolhimento e referenciamento
adequados da vítima serão as principais ferramentas para a reconstrução
de vínculos e projetos de vida.

● Acompanhar a vítima: deve ser realizado por equipe multidisciplinar


capacitada para atender crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas
de violência, que deve dedicar um tempo de reflexão para que ela
entenda, de acordo com sua maturidade e estágio de desenvolvimento,
o processo que está vivenciando e participe ativamente da tomada de
decisões sobre as questões que lhe dizem respeito.

● Utilizar técnicas de escuta qualificada: é preciso incorporar uma


perspectiva humanizada e centrada na vítima. Essa estratégia, além de
reduzir os riscos de revitimização, confere maior precisão às informações
coletadas e adequação dos serviços ofertados às necessidades específicas
das vítimas.

● Comunicar ao Conselho Tutelar do Território: sempre que uma criança


ou adolescente vítima ou testemunha de violência for atendida, deve-se
comunicar o Conselho Tutelar da localidade.

Se a criança ou adolescente atendida for identificada como indígena, a Fundação Nacional


do Índio (Funai) deve ser imediatamente comunicada para que o atendimento ocorra
em acordo com os padrões socioculturais específicos dos diferentes povos indígenas.
Quanto mais precisas são as informações coletadas, mais
robusto será o relatório de atendimento e menor a
necessidade de a vítima ser contatada e ouvida novamente
por outro membro da rede de proteção, na etapa dos
encaminhamentos.

O atendimento deverá observar os princípios da absoluta prioridade e agilidade


e do melhor interesse da criança e do adolescente, assim definida por Ofélia
Ferreira (2013):

“A avaliação dos melhores interesses da criança deve basear-


se nas circunstâncias individuais de cada criança e deve ter em
consideração a sua situação familiar, a situação no seu país de
origem, as suas vulnerabilidades especiais, a sua segurança e os
riscos aos quais está exposta, as suas necessidades de proteção,
o seu nível de integração no país de destino, a sua saúde mental
e física, a educação e as condições socioeconômicas. Estas
considerações devem integrar-se no contexto da nacionalidade
da criança e do seu contexto étnico, cultural e linguístico. A
avaliação dos melhores interesses da criança deve ser um exercício
multidisciplinar que envolve agentes relevantes e deve ser levada
a cabo por especialistas e peritos que trabalhem com crianças.”
5.1 – Exemplos de técnicas para o atendimento

Algumas técnicas podem ser adotadas para que o atendimento à criança ou


adolescente vítima de tráfico de pessoas permita realizar um acolhimento devido e
coletar as informações suficientes para suprir adequadamente as suas demandas.
Independentemente do método de entrevista selecionado pelo(a) profissional, é
importante que ele contribua para o sequenciamento de ideias e narrativa espontânea
dos fatos.

O Manual de Escuta de Crianças e Adolescentes Migrantes (KOZICA


& VAN ELK, 2020) lista alguns princípios que devem perpassar
todas as etapas desse atendimento:

• Estabelecimento de uma relação de confiança entre o


entrevistador e a pessoa escutada;

• Descrição clara dos objetivos e metas da escuta;

• Utilização de perguntas abertas; e

• Disponibilidade do entrevistador em explorar hipóteses


alternativas.

Crianças e adolescentes vítimas de tráfico necessitam de uma avaliação cuidadosa


por parte de profissionais de saúde, psicólogos e assistentes sociais para apresentar
respostas adequadas às necessidades de cada uma delas em seu contexto específico.

O Guia de Referência do UNICEF para a Proteção dos Direitos das Crianças Vítimas de
Tráfico na Europa (UNICEF, 2006) listou algumas das consequências físicas, psicológicas
e comportamentais do tráfico e da exploração de crianças e adolescentes. Muitos
problemas de saúde física experimentados por crianças e adolescentes traficados são
resultantes de maus-tratos ou negligência e podem não ser aparentes ou detectáveis
num primeiro exame médico. O mesmo ocorre em relação à saúde mental.

Crianças e adolescentes vítimas de tráfico podem ser afetados de múltiplas formas,


a depender da idade em que foram traficadas, se haviam sofrido outras formas de
violência anteriormente, se testemunharam demais situações violentas ou traumáticas
e o período e circunstâncias em que foram submetidas à exploração.

O trauma é a “resposta emocional a um evento terrível, como um acidente, estupro


ou desastre natural. O choque e a negação são características típicas após um evento
traumático” (KOZICA & VAN ELK 2020). A experiência traumática pode desestruturar
a interpretação de mundo da criança ou adolescente que, ao invés de se concentrar em
preocupações e atividades normais, seu foco será evitar que coisas ruins aconteçam.

As reações ao trauma são muito diversas, e podem envolver sintomas de: revivência
(memórias, pesadelos, imagens), fuga (distúrbios de memória, uso e abuso de substâncias,
desesperança, pensamentos suicidas), hiperestimulação (irritabilidade e agressividade,
automutilação, distúrbios de sono e de concentração), pensamentos ou humor negativo
(perda de autoestima, falta de perspectiva de futuro, perda de habilidades sociais,
dificuldade em estabelecer laços de confiança e construir relacionamentos significativos)
e até sintomas físicos (palpitações, respiração acelerada, náusea, dores de cabeça).

O Manual de Escuta de Crianças e Adolescentes Migrantes (KOZICA & VAN ELK, 2020)
elenca alguns cuidados a serem tomados no atendimento de uma criança ou adolescente
para se evitar a retraumatização:

● Dedique tempo para criar uma relação de confiança;

● Não presuma que o silêncio da criança ou adolescente é uma atitude


não colaborativa;

● Preste atenção às suas próprias reações. A tentativa de extrair o maior


número de informações possível pode fazer com que a criança ou
adolescente se retraia ou tente dar as respostas que ele(a) acha que
você quer ouvir. É normal que relato da vítima traga uma representação
difusa, incompleta e fragmentada dos fatos;

● Aceite explosões emocionais e se adapte quando a criança ou adolescente


demonstrar emoções. Você pode mudar o foco da conversa para algum
tema neutro, ou oferecer um copo d’água para ela se acalmar. Se possível,
proponha exercícios de contagem de números ou respiração;
● Reaja de maneira calma, mas firme, transmitindo confiança e estabilidade
emocional;

● Em caso de retraumatização, faça com que a criança cite 7 coisas na


sala ao mesmo tempo em que controla sua respiração. Depois, desvie a
atenção por meio de uma brincadeira;

● Quando conseguir criar uma relação de confiança, faça perguntas sobre


o trauma recorrendo à audição, à visão e às sensações da criança;

● Caso a criança ou adolescente demonstre sinais de desconforto, passe


para um tema neutro.

5.2 – Possível passo-a-passo do primeiro atendimento

A seguir será apresentada uma sugestão de passo-a-passo com recomendações para cada
etapa do atendimento, considerando-se a faixa etária da criança ou adolescente atendido(a).
Essas etapas de atendimento são uma adaptação livre da estrutura proposta por Kozica &
Van Elk (2020). Lembre-se que cada profissional possui normativas e protocolos próprios
de atendimento. Essas indicações gerais complementam tal instrumental sem substituí-lo.

5.2.1 – Preparação

A preparação deve se iniciar com o espaço do atendimento. A sala em que se realiza a


escuta deve ser um espaço seguro, acolhedor e garantir a privacidade do atendimento.
Deve conter objetos e decoração lúdica, mas não infantil. Evite excessos de brinquedos
ou estímulos que possam prejudicar a concentração da criança ou do adolescente no
atendimento. O espaço onde será realizada a escuta não deve conter objetos perigosos
ou cortantes, ou arquivos e pastas de outros casos.

Antes de iniciar o atendimento, caso seja gravado, verifique se os equipamentos se encontram


em pleno funcionamento, pois não é indicado que a entrevista seja realizada novamente.

Essa é uma fase de familiarização com o caso. É relevante buscar a documentação


disponível, dados e relatórios existentes e obter informações junto ao guardião,
representante legal ou outros profissionais que tenham atendido a vítima a fim de avaliar
se há risco à sua integridade física e psicológica quando da realização do atendimento.

Nessa etapa, deve observar o princípio “do no harm”, “não prejudique”, e questionar se a
interação com a vítima poderá causar-lhe algum prejuízo, e de que forma eles podem ser
mitigados. A escuta pode trazer à tona sentimentos negativos e gerar intimidação, mesmo
que exista um cuidado para que a vítima se sinta à vontade. Por isso, é preciso dispor
de ferramentas para reduzir possíveis danos e atenuar os desequilíbrios e a sensação de
inferioridade da criança e do adolescente em relação ao entrevistador adulto:

● A disposição dos assentos deve favorecer a aproximação e o contato


visual entre entrevistador e entrevistado.

● A presença do(a) guardiã(o) ou representante legal contribui para transmitir


confiança à vítima durante a escuta. Ele(a) deve ficar sentado(a) ao lado da
criança ou adolescente, mas não desempenha papel ativo na conversa. Se isso
ocorrer, intervenha, explicando que esse é o momento de escuta da vítima.
● Idealmente, o(a) entrevistador(a) deve sentar-se frente a frente à criança
ou ao adolescente.

● Se houver necessidade de intérprete, ele(a) deve estar em posição


triangulada e na mesma distância deles dois (posição de neutralidade).

SELEÇÃO DO INTÉRPRETE

O(a) intérprete é essencial para assegurar boa comunicação


e compreensão das necessidades da criança ou adolescente
atendido(a), seja ele(a) migrante internacional, indígena ou
pessoa com deficiência auditiva. O serviço que presta assistência
a essas vítimas deve estar preparado para acionar intérpretes
especializados. A criança ou adolescente pertencente aos povos
originários e comunidades tradicionais deve contar, no seu
atendimento, com o suporte de intérprete ou mediador cultural e
antropólogo (BRASIL, 1990a).

Alguns fatores relevantes para a seleção do(a) intérprete são, além da


fluência no idioma, a experiência com interpretação na temática do tráfico
de pessoas e violação de direitos humanos e o treinamento específico
para interpretação e comunicação com crianças e adolescentes.

É recomendável que o(a) intérprete esteja presencialmente na escuta,


e que a tradução expresse nos mesmos termos a linguagem utilizada,
a capacidade linguística da criança e do adolescente, para uma leitura
apropriada do seu nível de maturidade (KOZICA & VAN ELK, 2020).

O(a) entrevistador(a) deve preparar-se psicologicamente para a interação com a vítima.


Ele(a) deve estar atento aos seus sentimentos, preconceitos e atitudes perante a vítima,
de modo a manter a objetividade durante a escuta.

5.2.2 – Abertura e criação de confiança

Essa etapa se inicia com a recepção da criança ou do(a) adolescente, e pode contar com a
participação do guardião ou representante legal, e do conselheiro tutelar. A abordagem pode
variar conforme a faixa etária do atendido, mas deve sempre observar os procedimentos
descritos na Lei nº 13.431/2017. O local do atendimento deve oferecer privacidade, para não
gerar constrangimentos ou revitimização. Os profissionais responsáveis pelo atendimento
devem estar capacitados para atender esse público e reconhecer suas especificidades,
vulnerabilidades e necessidades especiais de proteção (FERREIRA, 2013).

Recomenda-se especial atenção a crianças e adolescentes pertencentes a grupos sociais


em situação de vulnerabilidade ou estigmatização, como órfãos, migrantes, pessoas
do gênero feminino, LGBTQIA+, pessoas com deficiência e pertencentes a minorias
étnicas, raciais ou religiosas.

Crianças e adolescentes LGBTQIA+ podem enfrentar situações de discriminação e


intolerância dentro da própria família que as colocam em situação de vulnerabilidade para o
tráfico de pessoas. Deve-se questionar às vítimas, especialmente nos casos de tráfico para
exploração sexual, qual o gênero do(a) profissional que ela se sente mais confortável em
ser atendida e deve ser respeitado o uso do nome social da pessoa atendida em todos os
relatórios de identificação e acompanhamento do caso, independentemente do nome que
consta em seus documentos de identificação civil, nos termos do Decreto nº 8.727/2016.

Mesmo uma equipe multidisciplinar treinada para a escuta qualificada e atendimento


humanizado pode apresentar desconfortos ou preconceitos durante a escuta dessas
crianças e adolescentes. O melhor interesse da criança deve ser considerado inclusive
na avaliação se o convívio familiar é um espaço seguro e livre de discriminação e violência
contra pessoas LGBTQIA+, devendo-se avaliar a possibilidade de buscar o suporte de
organizações da sociedade civil especializadas em atender a esse público.

a) Crianças de até 12 anos:

● Para o atendimento a crianças, é importante dispor de algumas ferra-


mentas e objetos que auxiliam no acolhimento inicial (p. ex. quadros,
papel e lápis para desenhar, quebra-cabeças, brinquedos e alimentos que
ela esteja autorizada a consumir).

● O entrevistador deve estar atento à sua linguagem corporal no primeiro


contato com a criança, assumindo uma postura aberta e amigável. Evite
caminhar à frente ou atrás da criança e a mantenha sempre no centro
das atenções, demonstrando interesse sobre os temas de sua vida e
assuntos por ela trazidos espontaneamente. A comunicação não verbal
é preponderante no caso de crianças.
● Fadiga, fome, desidratação, ruídos e estresse emocional podem reduzir o
tempo de concentração da criança. Quanto menor a idade, menor o tempo
de concentração e mais intervalos serão necessários durante a escuta. Ela
deve ser informada que pode solicitar quantos intervalos precisar a qualquer
tempo e a duração dessas pausas pode ser combinada entre a criança e o
entrevistador, que deve estar atento aos sinais não verbais de cansaço.

● O entrevistador deve iniciar o diálogo se apresentando e explicando o


seu trabalho, e que tem o papel de ajudar. As perguntas iniciais devem
ser sobre temas neutros, como a vida escolar, interesses e passatempos
da criança. Se a criança manifestar inquietação, ao invés de chamar aten-
ção para esse comportamento, ofereça ferramentas para aliviar a tensão
como papel e lápis para desenhar. Se precisar anotar algo, explique à
criança o motivo e o tipo de informação que é registrada, reforçando
que elas não serão compartilhadas com pessoas do seu convívio.

b) Adolescentes de 12 a 18 anos:

● Os profissionais responsáveis pelo atendimento devem iniciar a recepção


apresentando-se primeiro ao adolescente e em seguida ao guardião ou
representante legal que o(a) acompanha. Demonstre interesse no diálogo
com o adolescente, utilizando linguagem acessível, amigável e compatível
com sua idade (sem infantilizar a vítima), mas evite o contato físico.

● Desde o início, informe sobre o objetivo do atendimento e possíveis


desdobramentos, e questione se o adolescente se sente à vontade para
dar início à escuta (consentimento informado), questionando também
sobre seu estado de saúde e bem-estar, e se tem alguma necessidade
urgente a ser suprida naquele momento.

● O diálogo deve iniciar com temas neutros ou áreas de interesse do ado-


lescente, por exemplo jogos de videogame, time de futebol ou preferên-
cias musicais, a fim de estabelecer uma relação de confiança e respeito.
Pergunte ao adolescente se ele sabe porque está ali, e suas expectativas
diante do atendimento e dedique um tempo para explicar as funções de
cada profissional (e do intérprete, se aplicável) e cada instituição envol-
vida no acompanhamento do caso, evitando o uso de termos técnicos
ou jurídicos. Solicite que ele confirme, com suas palavras, o que foi dito
pelo entrevistador.
● O atendimento deve ser planejado para não durar mais de 60 minutos.
O adolescente deve ser informado que poderá interromper ou solicitar
um intervalo a qualquer momento.

5.2.3 – Narrativa livre

O atendimento deve iniciar com o uso de perguntas abertas pois, além de deixar a
criança ou o adolescente à vontade para narrar o fato à sua maneira, trazem informações
mais confiáveis e menos influenciadas pelo contexto trazido pelo entrevistador. São
exemplos de perguntas abertas: “me conte tudo que aconteceu” e “como você chegou
até aqui?”. As perguntas fechadas são aquelas de respostas específicas, ou de sim ou
não. Elas podem ser utilizadas na etapa seguinte, para esclarecer dúvidas, por exemplo:
“Para qual cidade te levaram?”, “Quanto tempo você ficou nesse hotel?”.

A comunicação, no atendimento, também ocorrerá através da linguagem não verbal. O


entrevistador deve estar atento à sua postura diante do atendido e também observar
possíveis desconfortos com os assuntos trazidos.

Sempre explique o motivo pelo qual está realizando determinada pergunta. Se a criança
ou o adolescente tiver dificuldades em narrar o ocorrido a partir de perguntas abertas,
faça perguntas fechadas e o estimule a desenvolver a partir delas, a livre narrativa.

5.2.4 – Detalhamento

Nessa etapa, são aprofundados os assuntos mais relevantes da narrativa da vítima, a fim de
preencher lacunas, verificar informações controvertidas e introduzir temas que não foram
abordados. No atendimento a adolescentes de 12 a 18 anos, o(a) entrevistador(a) pode
fornecer explicações adicionais sobre as informações que necessita e o porquê, e também
perguntar de forma detalhada sobre o ocorrido, questionando o(a) adolescente sobre seus
sentimentos e contexto do acontecimento, evitando interrompê-lo(a) nesse momento.

Os níveis de concentração e de maturidade podem comprometer a estrutura planejada


do atendimento. Deve-se evitar um roteiro rígido de perguntas e adaptar a linguagem e
o método se perceber que o(a) atendido(a) não tem maturidade para esse formato de
entrevista. Nesses casos, é relevante utilizar outros instrumentos e técnicas cognitivas,
como o uso de desenhos.
5.2.5 – Encerramento

Um bom encerramento do atendimento é muito importante para assegurar que a vítima


teve a oportunidade de relatar todas as informações relevantes e também para que ela
se sinta segura para tirar dúvidas e seguir os próximos passos. Ao final da narrativa
e esclarecimento de dúvidas, tanto por parte do entrevistador quanto da criança,
do adolescente e seu guardião ou representante legal, deve iniciar o fechamento da
escuta. Nesse momento, o(a) entrevistador(a) pode resumir as principais informações
compartilhadas no atendimento, e verificar se não ocorreu algum mal-entendido, o que
pode ser corrigido no relatório.

Em seguida, o(a) profissional que realiza o atendimento deve fornecer informações


sobre os próximos passos, traduzindo para a criança ou adolescente, em linguagem
simples, as medidas compartilhadas com seu guardião ou representante legal. Agradeça
e valorize a importância da criança e do adolescente ter compartilhado sua história.
Se possível, no caso de crianças mais novas, além de agradecer lhe entregue alguma
recordação, como um brinquedo ou material de desenho. Finalize o diálogo com
comentários sobre assuntos positivos, trazendo para o momento presente, temas de
interesse e planos para um futuro próximo. Em alguns casos, o encerramento pode se
alongar no tempo, especialmente nos casos de a vítima apresentar muitas dúvidas ou se
sentir desamparada ou abalada psicologicamente.

Após o atendimento, a equipe deve analisar os encaminhamentos devidos e se há questões


supervenientes no atendimento que demandam acompanhamento ou atenção urgente,
como a identificação de problemas de saúde física e mental do adolescente ou de situação
de risco à sua integridade física ou de seus familiares. Crianças e adolescentes não têm
condições de avaliar situações de risco, compete aos profissionais envolvidos apresentar
respostas e oferecer ajuda, pois tem o dever de proteção para com o adolescente.

Não faça promessas que não possa cumprir ou que dependa de


terceiros e evite criar expectativas que possam ser frustradas.

Os(as) profissionais que realizarem a escuta devem dialogar sobre o caso com o Conselho
Tutelar e demais instituições e atores envolvidos para que haja clareza e transparência
sobre quais medidas e encaminhamentos a serviços e programas serão adotados. Cada
instituição deve estabelecer fluxos próprios de encaminhamento, conforme a rede de
atenção à criança e ao adolescente local, especialmente nos casos de indisponibilidade
ou insuficiência de serviços e equipamentos públicos.
5.3 – Escuta especializada e depoimento especial

O Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente Vítima ou Testemunha


de Violência define a escuta especializada como “o procedimento de entrevista
sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de
proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua
finalidade” e o depoimento especial como “o procedimento de oitiva de criança ou
adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária”
(BRASIL, 2017a).

Ambos devem ser conduzidos por autoridades ou profissionais capacitados, que devem
assegurar a livre narrativa, podendo intervir quando necessário, utilizando técnicas
para a elucidação dos fatos. O profissional poderá adaptar as perguntas à linguagem
de melhor compreensão da criança ou do adolescente, devendo sempre primar
pela não revitimização. É direito da criança e do adolescente ser informado sobre os
procedimentos adotados e os serviços disponíveis para atender às suas demandas,
respeitados os seus limites de desenvolvimento.

A escuta especializada e o depoimento especial devem ser realizados


em local apropriado e acolhedor, com infraestrutura e espaço físico
que garantam a privacidade da criança ou do adolescente vítima ou
testemunha de violência. Em ambos os casos, é resguardado à vítima o direito de
não falar sobre a violência sofrida e deve ser vedado qualquer contato, ainda que visual,
com o suposto autor ou acusado.

O que é escuta especializada? O que é depoimento especial?

Entrevista sobre situação de violência Oitiva de vítima ou testemunha de violência


perante órgão ou serviço da rede de perante autoridade policial ou judiciária
proteção
Tem a finalidade de produção de provas
Objetivo de assegurar o seu
acompanhamento e a superação da violação Será realizado apenas nos casos em que for
sofrida, não de produzir provas indispensável, consideradas as demais provas
existentes, visando preservar sua saúde e
O relato deve ser limitado estritamente ao desenvolvimento
necessário para o cumprimento da finalidade
de proteção social e provimento de cuidados Será realizado uma única vez, salvo quando
justificada pela autoridade e houver
A escuta especializada será realizada por concordância da vítima, testemunha, ou seu
profissional capacitado representante legal

O levantamento de informações deve É vedada a leitura da denúncia ou de outras


priorizar os profissionais envolvidos no peças processuais
atendimento, familiares ou acompanhantes
O depoimento especial será gravado em
Relato feito perante a rede de proteção áudio e vídeo e transmitido em tempo
real para a sala de audiência, no curso do
processo judicial, devendo tramitar em
segredo de justiça

Relato feito perante autoridade policial ou


judiciária

A escuta especializada e o depoimento especial são procedimentos planejados para o


registro do relato da criança e do adolescente vítima de violência. Contudo, há situações não
planejadas, nas quais ocorre a revelação espontânea da violência. Ela está prevista
no art. 4º, §2º, da Lei, e pode ser realizada pela vítima ou testemunha, em qualquer local: no
ambiente familiar, entre amigos, na escola ou durante um atendimento de saúde.
Como mencionado anteriormente, a Lei nº 13.431/2017, em seu Art. 13 determina que:

“Qualquer pessoa que tenha conhecimento ou presencie ação


ou omissão, praticada em local público ou privado, que constitua
violência contra criança ou adolescente tem o dever de comunicar
o fato imediatamente ao serviço de recebimento e
monitoramento de denúncias, ao conselho tutelar
ou à autoridade policial, os quais, por sua vez, cientificarão
imediatamente o Ministério Público”. (grifos nosso)

Portanto, quando a revelação espontânea ocorrer, deve-se permitir que a vítima narre
livremente sobre o ocorrido e, por meio da escuta qualificada, acolha seu relato, sem
intervir. Em seguida, deve-se informar à criança ou ao(à) adolescente sobre possíveis
desdobramentos da revelação, identificar as demandas de cuidados urgentes, comunicar
o Conselho Tutelar e encaminhá-la para acompanhamento especializado no CREAS.

ACOMPANHAMENTO E PARTICIPAÇÃO DO
REPRESENTANTE LEGAL/GUARDIÃO

O guardião/representante legal deve agir em prol do melhor


interesse da criança e do adolescente, apoiando-o(a) na
compreensão dos procedimentos e processos em curso e na
tomada de decisões que lhe dizem respeito. Ele tem o direito
de fazer perguntas ou comentários e interceder para que
os interesses da criança e do adolescente sejam levados em
consideração.

É importante diferenciar a guarda da tutela e da adoção. Esses três


institutos estão definidos no Estatuto da Criança e do Adolescente:

Guarda: quando derivada do poder familiar, é geralmente


exercida de forma conjunta pelos genitores, mas também
pode ser nomeada a apenas um deles (guarda unilateral) ou
designada judicialmente a terceiros (família substituta) de
forma provisória ou definitiva. O guardião da criança e do
adolescente será responsável por praticar os atos necessários
à garantia da sua assistência material, moral e educacional.
Tutela: aplica-se aos casos de suspensão, destituição ou
perda do poder familiar por morte dos genitores. Ela impõe
todas as obrigações de assistência relativas à guarda e pode
ser instituída por testamento ou por decisão judicial.

Adoção: medida excepcional e definitiva aplicada quando forem


esgotados todos os recursos de manutenção da criança ou do
adolescente na família natural ou extensa. Ela confere os mesmos
direitos e deveres atribuídos aos descendentes naturais (como
a herança) e põe fim a todos os vínculos com a família biológica.

Todos os procedimentos para a colocação da criança ou do


adolescente em família substituta estão disciplinados no Estatuto
da Criança e do Adolescente. Quaisquer práticas que envolvam
o reconhecimento voluntário da maternidade ou paternidade,
por meio do registro da criança como filho, constituem crime
contra o estado de filiação previsto no Art. 242 do Código Penal
Brasileiro: “Dar parto alheio como próprio; registrar como
seu o filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo,
suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil”. Essa
prática, popularmente chamada de “adoção à brasileira”, viola
o direito de proteção da criança, pois descumpre as exigências
legais relativas ao procedimento de adoção essenciais para
prevenir a ocorrência do tráfico de crianças e adolescentes.

A violência contra crianças e adolescentes se manifesta de


diversas formas e tem origem em questões estruturais que,
muitas vezes, levam à banalização dessas violações de direitos,
em um contexto de desproteção e rompimento de vínculos
familiares e comunitários. Estudos apontam a estreita relação
existente entre a violência doméstica e a situação de rua de
crianças e jovens, e entre o abuso sexual dentro de casa e os
casos de exploração sexual (SAYÃO, 2006).

Deve-se ter especial cuidado com a identificação e nomeação


de guardiões/representantes legais que possam estar
envolvidos na situação de exploração. É preciso verificar se a
pessoa que se candidata a essa função não é um ente familiar
abusivo ou alguém que participou direta ou indiretamente da
venda ou do aliciamento da criança ou adolescente vítima.
5.4 – O atendimento a crianças e adolescentes
desacompanhados, separados ou indocumentados

A Resolução MDH/Conanda nº 232/2022 estabelece os procedimentos de identificação,


atenção e proteção para criança e adolescente fora do país de origem desacompanhado,
separado ou indocumentado. A ausência de documentação não pode impedir a proteção
integral e o exercício de direitos da criança ou adolescente.

Nesse sentido, só será permitido o retorno de criança ou adolescente para seu país de
nacionalidade (repatriação) nos casos em que se demonstrar favorável para a garantia de
seus direitos ou para a reintegração à sua família de origem e quando não representar
risco à vida, à integridade pessoal ou à sua liberdade. A criança ou o adolescente deve
participar, ser consultado(a) e mantido(a) informado(a), no idioma de sua preferência
(BRASIL, 1990a) e de forma adequada à sua etapa de desenvolvimento, sobre os
procedimentos e as decisões tomadas em relação a ela ou ele e aos seus direitos.

DIFERENÇAS ENTRE CRIANÇA E ADOLESCENTE


DESACOMPANHADO, SEPARADO OU INDOCUMENTADO

Desacompanhado: aquele que está separado de ambos os


pais e de outros parentes, e não está aos cuidados de um
adulto legalmente responsável.

Separado: aquele que está separado de ambos os pais, mas


acompanhado de outros membros da família extensa e não
está aos cuidados de um adulto legalmente responsável.

Indocumentado: aquele que não possui nenhuma


documentação válida comprobatória de sua identidade ou
filiação, independentemente de estar acompanhado, separado
ou desacompanhado (BRASIL, 2022).

A referida Resolução em seu art. 5º, dispõe que “A criança e ao adolescente


desacompanhados, separados ou indocumentado(a) não serão criminalizados em razão
de sua condição migratória” e, no art. 8º, dispõe que o atendimento deve ser feito em
uma linguagem compreensível e adequada à idade e identidade cultural da criança e do
adolescente. A presença de um intérprete de idiomas ou mediador cultural é, portanto,
essencial para garantir a viabilidade da escuta. A seleção do intérprete deve incluir a
verificação de seu perfil e experiência, considerando: i) sua capacidade e sensibilidade
para trabalhar com vítimas de tráfico de pessoas; e ii) a confiabilidade em sua atuação,
buscando averiguar se seu envolvimento não trará mais riscos para a vítima (OIM, 2022).

A autoridade de fronteira ao receber, no controle migratório, a criança ou o adolescente


com indícios ou constatação de estar desacompanhado, separado ou indocumentado,
deverá registrar a ocorrência e a identificação biográfica e biométrica e proceder
ao registro de entrada no controle migratório. Em seguida, deve notificar o Juízo e
a Promotoria da Infância e Juventude, o Conselho Tutelar e a Defensoria Pública da
União (DPU) (BRASIL, 2022).

A Defensoria Pública da União (ou outro órgão de proteção) é responsável por


realizar entrevista para análise de proteção, com o objetivo de avaliar sua situação
de vulnerabilidade e registrar a sua história, incluindo, quando possível, a identificação
de sua filiação e de seus irmãos, bem como sua cidadania e a de seus pais, mães e
irmãos. Na análise devem constar: as razões pelas quais a criança ou o adolescente
está desacompanhado, separado ou indocumentado; a avaliação de vulnerabilidade e a
identificação de possíveis situações de exposição e risco à violência.

Nesse momento, são analisadas a saúde física, psicossocial, questões materiais e


outras necessidades de proteção internacional, no que se incluem informações sobre
o tráfico de pessoas e sobre a condição de refugiado. Compete à DPU, ou outro
órgão de proteção, realizar os pedidos de regularização migratória ou de solicitação
de reconhecimento da condição de refugiado, solicitação de documentos e demais
atos de proteção, bem como acompanhar a criança e adolescente desacompanhado,
separado ou indocumentado nos procedimentos subsequentes à sua identificação
preliminar, não afastando a cooperação e ciência dos atores do Sistema de Garantia de
Direitos tal como o Conselho Tutelar, Conselho Municipal dos Direitos da Criança e
do Adolescente, a Justiça da Infância e da Juventude, o Ministério Público e Defensoria
Pública Estadual (BRASIL, 2022).

O pedido de regularização migratória poderá ser apresentado à unidade da Polícia Federal


por meio do guardião, provisório ou não, ou de curador especial designado pelo juízo.
Quando constatada a necessidade de encaminhamento a serviço de acolhimento para
crianças e adolescentes, o Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora terá preferência
ao acolhimento institucional sendo recomendável, sempre que possível, o acolhimento por
família acolhedora da mesma origem étnica ou cultural da criança ou adolescente.
6 – CONCLUSÃO

Esta material busca fortalecer a interlocução entre aos atores que compõem a rede de
enfrentamento ao tráfico de pessoas e os da rede de proteção à criança. O objetivo é que
cada instituição, seja do poder público ou da sociedade civil, disponha de parâmetros mínimos
para prestar o melhor atendimento às crianças e adolescentes vítimas de tráfico de pessoas.

Este documento não pretende se sobrepor a materiais desenvolvidos por instituições


especializadas no atendimento de crianças e adolescentes, mas ser um material basilar
para as instituições que possam se deparar com o atendimento de crianças e adolescentes
possíveis vítimas de tráfico.

Esperamos que este esforço produza novas articulações entre os atores da rede de proteção
das crianças e adolescentes e da rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas.
7 – REFERÊNCIAS

ASBRAD (2012). Metodologia de Atendimento Humanizado a Crianças


e Adolescentes Vítimas de Tráfico de Pessoas para Fins de Exploração
Sexual em Região de Fronteira. Brasília: Associação Brasileira de Defesa da
Mulher, da Infância e da Juventude, Secretaria de Direitos Humanos da Presidência
da República, 2012. Disponível em: https://asbrad.org.br/docs/METODOLOGIA_DE_
ATENDIMENTO_ HUMANIZADO.pdf

ASBRAD (2018). Guia para Atendimento Humanizado às Mulheres em


Situação de Tráfico de Pessoas e Outras Formas de Violência. Matriz
de Formação 2018. Disponível em: https://www.asbrad.org.br/wp-content/
uploads/2020/11/Guia-para-atendimento-humanizado.pdf
Brasil (1990). Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e
do Adolescente. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm

Brasil (1990a). Decreto nº 99.710 de 21 de novembro de 1990. Promulga a


Convenção sobre os Direitos da Criança. Disponível em: https://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d99710.htm

Brasil (2006). Decreto nº 5.948, de 26 de outubro de 2006. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2004-2006/2006/decreto/d5948.htm

Brasil (2008). Decreto nº 6.481, de 12 de junho de 2008. Disponível em: https://


www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/decreto/d6481.htm

Brasil (2013). Pesquisa ENAFRON Diagnóstico Sobre Tráfico de Pessoas nas


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Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) e International Centre
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download/48337/file/Assessment%2520of%2520Trafficking%2520in%2520Persons%25
20in%2520the%2520Border%2520Areas%2520in%2520Brazil%2520PT.pdf

Brasil (2016). Lei nº 13.344, de 6 de outubro de 2016. Disponível em: http://


www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13344.htm

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e adolescentes ameaçados de morte. 2.ed. Brasília: Ministério dos Direitos
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planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13431.htm

Brasil (2018). Decreto nº 9.440, de 3 de julho de 2018. Disponível em: http://


www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/D9440.htm
Brasil (2018a). Decreto nº 9.579, de 22 de novembro de 2018. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/d9579.htm

Brasil (2018b). Decreto nº 9.603, de 10 de dezembro de 2018. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/d9603.htm

Brasil (2019). Guia prático para implementação da política de atendimento


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Teresi, Maria Verônica & Healy, Claire (2012). Guia de Referência para a Rede de
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TJBA (2019). Cartilha Depoimento Especial. Salvador: Coordenadoria da Infância
e da Juventude, TJBA, 2019. Disponível em: https://www.mpba.mp.br/sites/default/files/
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UNICEF (2006). Reference Guide on Protecting the Rights of Child Victims


of Trafficking in Europe. UNICEF, 2006. Disponível em: https://www.refworld.org/
pdfid/49997af7d.pdf

UNODC (2022). Global Report on Trafficking in Persons 2020. Vienna. 2021.


Com financiamento de:

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