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POEMAS DE BRINQUEDO: COM QUANTOS ADJETIVOS SE FAZ UM

LIVRO NO SÉCULO XXI?

Doutora Ana Elisa Ribeiro (CEFET-MG)


Mestranda Amanda Ribeiro Barbosa (CEFET-MG)

INTRODUÇÃO

Um dos livros de referência para o assunto de que aqui trataremos é o Dicionário do Livro, da
escrita ao livro eletrônico, das pesquisadoras portuguesas Maria Isabel Faria e Maria da Graça Pe-
ricão, publicado no Brasil pela Editora da USP, em 2008. O volume apresenta nada menos que 396
entradas, que definem algum tipo de livro adjetivado, além da entrada livro, que consta à página 458.
Um livro sem adjetivos assim está descrito:

conjunto de cadernos, manuscritos ou impressos, costurados ordenadamente e formando um


bloco ● obra, científica ou literária, que forma ou pode formar um volume ● cada uma das
partes principais em que se dividem os textos dos livros ● documento impresso ou não-im-
presso ● transcrição do pensamento por meio de uma técnica de escrita em qualquer suporte
com quaisquer processos de inscrição. O livro supõe um suporte, signos, um processo de
inscrição, um significado. Integra-se num processo de criação, reprodução, distribuição, con-
servação e comunicação. Dirige-se a um leitor, possui uma finalidade: a reflexão, o ensino, o
conhecimento, a evasão, a difusão do pensamento e a cultura ● segundo a agência portuguesa
para o ISBN (International Standard Book Number), é toda publicação não-periódica com
um mínimo de quarenta e cinco páginas e que esteja sujeita a depósito legal ● segundo a
ISO (International Standard Organization), é publicação impressa não-periódica, com mais
de quarenta e oito páginas, sem incluir as da capa, que constitui uma unidade bibliográfica:
monografia ● exemplar a partir do qual o editor faz a impressão. (FARIA; PERICÃO, 2008,
p. 458-459)

Neste trabalho, não nos deteremos nas muitas questões que podem emergir dessa definição, em
especial quanto a funções, usos, estrutura ou materialidades do livro. Também nos escapa agora um
debate aprofundado sobre as tecnologias do livro em nosso milênio, cada vez mais amplas e diversas1.
No entanto, interessa-nos provocar uma discussão sobre as tecnologias do livro, com base na existên-
cia efetiva de um eles: Poemas de Brinquedo, publicado no Brasil em 2016, numa parceria entre uma
casa editorial e um ateliê de artes digitais.
Com quantos adjetivos se compõe em um livro, no século XXI? Quantas respostas e quão aber-
tas podemos dar à questão “o que é um livro?”. As quase 400 entradas do Dicionário do Livro nos
dão alguma noção de quão complexo é esse objeto, e também quão dinâmico, dado que suas formas,
funções e materialidades foram se alterando ao longo de milênios, renovando sempre o debate e o
interesse sobre ele, ainda que esse tempo seja largo, de longa duração, e que a algumas gerações de
pessoas possa parecer que o livro muda pouco ou se exangue em algum momento.
Este trabalho propõe um olhar mais detido sobre uma obra específica, qual seja, Poemas de
Brinquedo, do autor mineiro Álvaro Andrade Garcia, publicado pelo ateliê Ciclope de Mídias Digi-
tais, de Belo Horizonte, dirigido pelo próprio autor, e pela editora Peirópolis, de São Paulo, em 2016,
sob a direção de Renata Farhat Borges. Em peças promocionais ou comentários, trata-se de um livro

1 Para debates em outras oportunidades, ver: Ribeiro (2018), Ribeiro (2018a; 2020).

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considerado digital, infantil, audiovisual e transmídia, adjetivação que parece querer, além de espe-
cificar público-alvo, tecnologias e possibilidades midiáticas, também apontar para a materialidade
transitória do livro de hoje, tornando-o muito mais do que um livro impresso “convencional” (e nisso
não vai juízo de valor).
Entre as centenas de entradas do dicionário de Faria e Pericão (2008), encontramos livro digital
como sinônimo de livro eletrônico; livro infantil para livro para crianças; mas não encontramos uma
definição para livro audiovisual, embora haja a entrada livro sonoro (ou audiobook), assim como falta
também uma definição de livro transmídia. É possível dizer que as questões da transmídia vêm sendo
discutidas há vários anos, mas ainda não foram absorvidas por este dicionário e talvez sequer pelos
profissionais do livro, que certamente estão perturbados com as possibilidades que ainda emergem e
se apresentam, em especial as tecnológicas.
Dessa simples anotação decorre que, tal como ocorre a muitos outros documentos, as práticas
sociais andam adiante das legitimações, definições e mesmo dos regramentos. Poemas de Brinquedo
se autodeclara e intitula ou classifica como um livro de novos contornos, que emprega muitas pos-
sibilidades de criação, projeto, processo editorial, distribuição, consumo, etc. Não está “previsto”
em obras como a de Faria e Pericão (2008), o que de forma alguma detém suas possibilidades e sua
existência entre leitores e leitoras.
Das definições de livro com as quais temos contato, é certo que, hoje, não seja possível estar-
mos satisfeitos/as com as mais limitadas e tradicionais; talvez seja justo dizer que as definições mais
fechadas e pretensamente definitivas tornem-se, logo, obsoletas e insuficientes. Por óbvio que se
pode produzir definição e teoria sobre o que quer que seja, sendo também óbvio que provavelmente
algo que nos escapa entrará em cena. No caso do livro, em sentido muito amplo, há quem exclua
objetos existentes com base em definições de enquadre estreito. Em nosso caso, preferimos verificar
a existência do objeto, que por si flagra as lacunas das definições, propondo novas teorias e modelos,
reavivando o cenário e demonstrando dinamismos que nos são caros e que nos impressionam positi-
vamente na história dessas tecnologias. Dito de outro modo: preferimos sempre atualizar e reconsi-
derar as definições a ignorar objetos de ler reais e que se colocam para as práticas sociais de leitura,
assim como para a produção editorial, setor plenamente capaz da inovação e da reproposição, em
tantos níveis.
A fértil adjetivação de Poemas de Brinquedo nos ajuda a refletir sobre o cenário mais amplo da
produção editorial e dos produtos que dela advêm. São perguntas que nos fazemos, certamente com
respostas frágeis ou efêmeras: (a) com quantos adjetivos um livro pode ser produzido nos dias que
correm, e por que tais adjetivos cabem neste objeto?, já que Poemas de Brinquedo é definido como di-
gital, infantil, brincante2, audiovisual, transmídia, entre outros; (b) que relações há entre as versões do
livro e quão integradas ou facultativas ou combinatórias elas são; (c) que relações de autorias emer-
gem no processo editorial deste livro; (d) que relações ele estabelece com instâncias de legitimação,
em especial com o prêmio Jabuti (maior e mais antiga premiação editorial do país)? Para empreender
tal reflexão, levantamos certa bibliografia pertinente, assim como a apreciação direta da obra, além de
entrevistas com seus/suas produtores.

EDIÇÃO DE LIVROS LITERÁRIOS, INFANTIS, DIGITAIS...

De que forma as propriedades dos livros feitos para crianças contribuíram para a criação da
obra Poemas de Brinquedo? Teria o adjetivo infantil possibilitado ou potencializado as demais ad-
2 No site da editora Peirópolis, Poema de Brinquedo é apresentado como um “projeto transmídia brincante”. Ver:
<https://www.editorapeiropolis.com.br/256-as-10-h-lancamento-em-bh-poemas-de-brinquedo/>

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jetivações? Entre as definições ou os enquadramentos que caracterizam este livro, infantil é um dos
que mais têm suscitado discussões controversas e têm sido objeto de pesquisa e debate. Ao mesmo
tempo, parece ser nas obras para crianças e na poesia (às vezes na coincidência entre elas, como é o
caso aqui) que os livros encontram mais espaço de experimentação e exploração de possibilidades.
No meio editorial, as adjetivações podem caracterizar diferentes aspectos do produto. Asso-
ciadas ao livro, elas podem se referir ao formato, às linguagens, a mídias e tecnologias utilizadas, ao
público-alvo, a um recorte de autores e autoras, a temas e gêneros editoriais; podem delinear iden-
tidades e direcionar reflexões, contribuindo para a representatividade de determinadas categorias e
para estudos da própria produção editorial. Parte delas, ainda, não escapam de gerar questionamentos
sobre o quanto essa delineação pode ser, em alguns casos, limitadora. De todo modo, dado que os
adjetivos usados dizem respeito a aspectos diversos da mesma obra/do mesmo livro, é esperado que
os adjetivos vão se sobrepondo, se apinhando até, numa tentativa de recorte curiosa e tão expressiva
dos estranhamentos e das vontades tanto de quem edita quanto de quem lê.
A escritora e professora argentina María Teresa Andruetto, ao defender uma “literatura sem
adjetivos”, discute os problemas enfrentados por aquela produzida para crianças e jovens. Segundo a
autora, os adjetivos infantil e juvenil empobrecem o substantivo, pois partem de ideias preconcebidas
de infância e juventude e contribuem “para formar um gueto de autores reconhecidos, às vezes até
mesmo consagrados, que não têm valor suficiente para serem lidos por leitores tão somente” (AN-
DRUETTO, 2012, p. 60). A literatura infantil/juvenil acaba sendo, “com demasiada frequência, rela-
cionada ao funcional e ao utilitário” (p. 61). Alguns pesquisadores e pesquisadoras optam por fazer
uso dos termos para crianças/para jovens ou para a infância/para a juventude quando se referem à
literatura ou ao objeto livro, com a justificativa de que estes, sim, caracterizam o público a quem se
destina, e não um formato com regras prescritas sob uma visão limitadora. Aqui, optamos por nos
referir aos livros em questão como “para crianças”3, embora as peças de divulgação ou o paratexto de
Poemas de Brinquedo faça referência a um livro infantil. De todo modo, essa reflexão pode caber à
adjetivação também do objeto. Será possível defender um “livro sem adjetivos”?
Os livros para crianças, por seu caráter intensamente multimodal, possibilitam uma complexa
exploração dos recursos que os compõem. Aqueles que recebem o adjetivo ilustrado, por exemplo,
diferem dos livros com ilustrações devido à sua condição de obra intermídia. Segundo Longhi (2002),
foi o poeta Dick Higgins quem, em 1966, definiu intermídia como uma “inter-relação orgânica entre
diferentes formas artísticas e seus significados estéticos, reunidos em um mesmo modo de represen-
tação” (2002, p. 2). Flicts, lançado em 1969 pelo escritor mineiro Ziraldo, é considerado o primeiro
livro ilustrado para crianças no Brasil. Essas produções exigem que o leitor faça a leitura de ambos os
textos, o verbal e o visual, e ainda de outros componentes da edição, como a materialidade, uma vez
que a narrativa é construída pelo diálogo entre todos esses elementos. Nesses casos, o protagonismo
relativamente simétrico entre o texto escrito, as ilustrações e o projeto gráfico formam o tripé que
alguns pesquisadores identificam, casos de Moraes (2008), Ramos (2013) e Corrêa, Pinheiro e Souza
(2019).
Nos livros digitais, podemos notar que a materialidade assume outras formas. Giselly Lima
de Moraes (2015) aponta, em sua análise sobre a multimodalidade na literatura para crianças, que
“se na tradição impressa tal materialidade se assenta no livro, contemporaneamente, na era digital,
o texto ganha, com o meio eletrônico, uma nova materialidade, cujas potencialidades se aproximam
das possibilidades do próprio texto literário” (p. 234). Os livros passam a ser pensados a partir dos
recursos que o meio digital oferece, não sendo apenas deslocados de um meio para o outro. Dito de
outro modo: têm uma gênese digital. Dessa forma, os formatos impresso e digital de uma mesma obra

3 A sinopse de Poemas de Brinquedo diz que o livro é destinado “a crianças e adultos”. No blog do Managana,
base sobre a qual o livro é feito, encontramos a recomendação “para crianças e adultos a partir de quatro anos de idade”.

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costumam proporcionar ao leitor experiências singulares que, muitas vezes, se complementam, de
forma alguma se excluindo, se dispensando ou se compensando.
Nota-se, no entanto, que a literatura digital feita para crianças desperta questionamentos rela-
cionados aos dois adjetivos que a constituem. Moraes também comenta que esse tipo de obra:

(...) por seu caráter híbrido, enfrenta obstáculos maiores em face da cultura de valorização
simbólica do livro e da palavra escrita, e também de sua incipiência, se consideramos como
marco de seu nascimento, nos anos 1990, a tecnologia do CD-ROM. Ao se situar entre o
jogo, o filme e o livro (Kirshof, 2014), desafia critérios historicamente estabelecidos sobre o
que é bom ou não para a formação leitora dos pequenos. A despeito disso, esta forma de lite-
ratura é uma realidade, podendo ser experimentada em tablets, smartphones e computadores,
em produções de diferentes gêneros que lançam mão de recursos multimodais cada dia mais
sofisticados, acrescentando ao texto sons, imagens em movimento e interatividade através do
tato. (MORAES, 2015, p. 237)

O livro de Álvaro Andrade Garcia traz em seu nome a inquietante possibilidade de se brincar
com poemas e desafia os limites do impresso e do digital; materializa a palavra, ao mesmo tempo
que a liberta de qualquer forma fixa; bagunça os sentidos – os dela, quando a desdobra em outras e
também em imagens, cores e sons (incluindo voz e palavra falada), e os nossos, quando nos exige a
leitura atenta, o toque dinâmico, a escuta aguçada, o timing da brincadeira, a memória. Incita-nos a
uma lectoescuta criativa e ativa (e de forma alguma queremos dizer que livros impressos demandem
menos movimentos sensoriais e mentais, isto é, convocam outros desses movimentos, em outras in-
tensidades e proporções).

O LIVRO POEMAS DE BRINQUEDO

Os diferentes formatos de Poemas de Brinquedo podem ser considerados, isoladamente, livros


intermídia, pois estabelecem uma rede de interconexões entre as linguagens que os compõem. Por
se tratar de uma obra disponível em diferentes formatos, pensados e formulados a partir das pro-
priedades ou affordances que cada dispositivo/ambiente propicia, e não por meio de uma simples
transposição entre eles, Poemas de Brinquedo é, também, um livro transmídia. As experiências pro-
porcionadas por um dos formatos não substituem aquelas viabilizadas pelo outro; elas se interligam e
se complementam, o que os faz uma obra integrada, mas que pode ser lida de diversas maneiras e por
meio de dispositivos e sentidos diferentes.
No impresso e na versão para e-reader4, o leitor e a leitora encontram um QR code que, lido
pela câmera do smartphone, redireciona para a página de conteúdo expandido no blog do Managana5.
A página dispõe de informações técnicas e curiosidades sobre o processo de criação do livro, vídeos
com amostras das animações do aplicativo, fotos do formato impresso, áudio da entrevista que Álvaro
Andrade Garcia e Ricardo Aleixo concederam à Rádio Inconfidência, de Belo Horizonte. Ela também
contém links de download para Windows, de acesso a frames do aplicativo e a textos relacionados
à obra. A experiência do impresso e do digital, então, alcança o audiovisual – aqui viabilizado pelo
virtual. Veja-se também a obra no YouTube6, onde está um vídeo que explora as possibilidades mul-
timodais do livro impresso.

4 Consultamos a versão MOBI do e-reader Kindle, da Amazon.


5 Disponível em: https://sitiodeimaginacao.blog/2020/02/03/poemas-de-brinquedo/
6 Neste endereço: https://www.youtube.com/watch?v=xR-W1rvZPBI

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FIGURA 1: QR code das versões digitalizada e impressa.
FONTE: arquivo das autoras.

A interatividade está presente tanto no aplicativo para smartphones quanto no impresso. O pri-
meiro dispõe de recursos de voz, animação, música e permite que o toque produza efeitos sobre os
quadros. O segundo, em formato de cartões que se sobrepõem em ordens e formas diversas, assume
a qualidade de jogo. Na página/carta “palavras gêmeas bivitelinas”, os leitores e leitoras são convi-
dados a “descobrir quais são separadas, têm hífen ou são escritas junto”; na das “palavras gêmeas
univitelinas”, deve-se “ler cantando, ritmo rápido com paradas no reco reco legal” – forma de leitura
adotada pelo poeta Ricardo Aleixo no aplicativo. Em entrevista para o NET Educação7, Garcia co-
menta que o formato em papel gerou até mais interatividade que a versão digital, uma vez que, no
tablet, a criança frequentemente opera os comandos sozinha. O jogo de cartas do impresso convida à
interação de mais pessoas, propiciando um momento de brincadeira em família. Daí podemos pensar
em uma obra múltipla, cujas leituras podem acontecer integradamente ou não, por uma pessoa ou
coletivamente, a partir de proposições dadas pelo objeto em sua polivalência.

FIGURA 2: Livro Impresso.


FONTE: arquivo das autoras.

7 Disponível em: https://www.institutoclaro.org.br/educacao/nossas-novidades/podcasts/livro-com-acesso-


gratuito-transforma-poemas-em-brinquedos/

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PRODUÇÃO AUDIOVISUAL E AUTORIAS

Do ponto de vista autoral, Poemas de Brinquedo é considerado e apresentado como uma obra
do poeta mineiro Álvaro Andrade Garcia, em colaboração com vários outros artistas, em segundo
plano, tais como o programador Lucas Junqueira, o designer gráfico Márcio Koprowski e o performer
e poeta Ricardo Aleixo. A coparticipação quase simétrica entre atores e profissionais do livro torna a
autoria um debate à parte aqui, renovando as percepções de quantas pessoas/profissionais são neces-
sárias para fazer uma obra como esta, em pé de igualdade, embora socialmente a noção de que autor
é o escritor de palavras seja ainda muito forte.
O livro foi lançado em papel e como aplicativo, em uma parceria entre um ateliê de produções
multimídia e uma editora, tal como as conhecemos. No ano seguinte, foi indicado ao prêmio Jabuti,
na categoria Livro Infantil Digital. Poemas de Brinquedo é apresentado, nos sites da editora e da
Ciclope, assim como em livrarias virtuais, como um livro e um aplicativo, isto é, “em versão papel e
audiovisual interativa” (PEIRÓPOLIS, 2016). Está disponível, até hoje, em lojas da Apple e no Goo-
gle, como aplicativo gratuito. Ao que parece, a obra é chamada de transmídia justo porque apresenta
versões em papel, ePUB e app, estas duas últimas versões com base no uso do software Managana,
produzido pela própria Ciclope. Esta poesia, segundo o site, “apresenta toda a potencialidade artística
da poesia que ultrapassa o impresso e transborda para outras mídias”, “aliando a palavra escrita à pa-
lavra entoada”, resultado da “reinterpretação” de poemas concretos de Álvaro Andrade Garcia por ele
mesmo, agora audiovisualmente, e vocalizados pelo poeta Ricardo Aleixo. Nas teorizações de Aleixo,
aliar “as imagens poéticas às imagens cinematográficas” resulta no que pode ser considerado “poesia
expandida”. Nesse sentido, o “livro-aplicativo” (e não apenas adjetivado, mas composto) “transbor-
da” o impresso por permitir que se possa brincar com os poemas,

ler com sotaque, trava-línguas, palavras inventadas, medonhas e coisas escritas errado para
consertar. Jogo do dicionário: palavrórios incríveis para adivinhar. Estórias engraçadas e ba-
rulhentas, sons para cantar e também azucrinar. Palavras com arestas e desenhos malucos,
ainda sem significado, para você batizar. (GARCIA, 2016, Sinopse)

Os textos que compõem Poemas de Brinquedo foram “recortados e reunidos para o público
infantil de todas as idades”, a partir de livros anteriores de Garcia, como O verão dentro do peito
(1998) e Álvaro (2004). Não escapa também ao paratexto da obra um discurso escolar, em especial na
explicitação de temas possíveis para serem tratados, embora seja atribuído ao poeta um depoimento
sobre a necessidade de brincar com as palavras, enfatizando a criatividade e a liberdade.

FIGURA 3: Frames do aplicativo e paratexto.


FONTE: arquivo das autoras.

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Tão importante quanto os aspectos da materialidade do produto Poemas de Brinquedo é seu
processo de produção, tanto por sua complexidade quanto por sua relativa novidade, no campo da
produção editorial. Grande parte das experiências de edição digital vêm de dois segmentos, pelo me-
nos ou mais evidentemente: a poesia e a literatura infantil. No caso em foco, superpõem-se as duas
coisas, embora o infantil, neste projeto, seja uma possibilidade aberta.
Num texto de Garcia produzido para um encontro da Electronic Literature Organization (ELO),
em 2017, o artista relata a importância das trocas e experimentações com outros poetas e professores;
sua intimidade com diversos meios de publicação (rádio, TV, instalações, livros, etc.), desde a década
de 1980; a busca por “novos espaços para a circulação poética”; a fundação do ateliê Ciclope, em
1992, com a finalidade de fazer arte digital, em “quase todas as ondas digitais”. Neste ateliê, Garcia
afirma ter produzido “videopoesia com computação gráfica, sistemas multimídia”, CD-roms, DVDs,
aplicativos, sites e o software livre Managana, base de seus trabalhos desde aí, sempre em parceria
com programadores e outros agentes que hoje estão plenamente envolvidos na produção editorial.
Poemas de Brinquedo é então apresentado pelo poeta como “aplicativo-livro-performance”, “publi-
cação que serve como exemplo para abordar as possibilidades e dificuldades da poiesis transmídia
nos dias atuais” (GARCIA, 2016).
Em entrevista às autoras deste trabalho, o programador Lucas Junqueira admite os transbor-
damentos da produção de Poemas de Brinquedo, em todas as suas apresentações. Sobre a autoria,
trata-se, segundo ele, de uma “questão que a gente mesmo tenta entender qual é”. Segundo explica,
a respeito da produção do livro:

Ele foi criado usando a “plataforma” Managana, que foi pensada para a publicação de vários
tipos de conteúdo digital, mas com um “carinho” especial pra poesia – dá pra gente dizer isso
porque ele foi sendo criado enquanto o poema Grão do Álvaro era feito. A experiência foi
bacana: a funcionalidade do software ia sendo definida pela necessidade do grão ao mesmo
tempo que o grão era escrito para se encaixar nas possibilidades do software. Foi uma inte-
ração conteúdo/plataforma muito grande aí, um ajudando a definir o outro. Pensando assim,
me vejo com uma parte maior de autoria no caso do grão que no do Poemas de Brinquedo.
Explico: a estrutura do Managana já estava mais madura quando fizemos o infantil, então a
minha participação nele foi muito mais a de ajustes pra que o livro tomasse forma (tanto da
plataforma quanto do conteúdo). (LUCAS JUNQUEIRA, entrevista por WhatsApp em 22
jan. 2020)

Outros elementos interessantes da produção de uma obra como Poemas de Brinquedo dizem
respeito ao conteúdo para cada mídia. Segundo Lucas Junqueira, o poeta Álvaro Garcia domina tam-
bém a linguagem do vídeo, sendo capaz de produzir e dirigir produtos audiovisuais. A seguir, somou-
-se o trabalho do editor e montador de vídeos Joacélio Batista. Já para a versão impressa, é apontada
como imprescindível e mesmo autoral a intervenção da editora de livros Renata Farhat Borges, pro-
jetando os cartões embaralháveis e jogáveis. Nas palavras de Junqueira (2020),

não era via de mão única: o digital não gerou o impresso, vamos dizer assim, ele o instigou.
Digo isso porque com a evolução do impresso fomos vendo formas melhores de associar o
audiovisual e fomos mexendo nas coisas – inclusive adotando o projeto gráfico do impresso.
Dá-lhe mais edição de vídeo... (LUCAS JUNQUEIRA, entrevista por WhatsApp em 22 jan.
2020)

Acrescenta-se ainda a intervenção do poeta e performer Ricardo Aleixo, que interferiu em es-
colhas de palavras, evocando mais atenção às sonoridades e às possibilidades vocais de um livro que
seria lido, visto, ouvido e assistido. Estão envolvidas no processo de criação deste livro aplicativo
“camadas criativas” que vão das propriedades dos próprios dispositivos (telas, touch screen, etc.) ao

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projeto gráfico que se apropria dessas potencialidades, inspirando um projeto editorial que dependeu
de “tradução intersemiótica”, partindo da criação do aplicativo para, então, alcançar a produção do
livro-app. “Nesse universo de jogos, tiroteios e dragões, abrimos uma janela para a poesia”, afirma
Álvaro Garcia (2016). Além da perspectiva brincante e da planejada facilidade de navegação, Poe-
mas de Brinquedo pode alcançar pessoas analfabetas e deficientes visuais, por suas características
altamente multimodais. A despeito disso, o “principal impacto visual” é das palavras, protagonistas,
mesmo num livro-tela.
Do ponto de vista da produção editorial contemporânea, uma peculiaridade de Poemas de Brin-
quedo é exatamente o fato de ele ser uma tradução semiótica na mão inversa do que normalmente
vemos, isto é, trata-se de um livro que existiu primeiramente como aplicativo (“versão eletrônica”)
e, só depois, como livro impresso, o que, segundo Garcia (2016), trouxe desafios “como pensar uma
versão impressa tão interativa quanto a digital?”. Esta é uma questão que interessa particularmente a
quem estuda processos de retextualização, para mencionar um termo dos estudos linguísticos, e mes-
mo processos de escrita multimodal.
No caso de Poemas de Brinquedo, tanto o designer Márcio Koprowski quanto a editora de
livros impressos Renata Borges tiveram participação na criação do livro transmídia, dando a ele a
forma de cartões, que possibilitassem ao/à leitor/a “rearranjos e reagrupamentos, para vários usos,
até mesmo para brincar”, falar e ler em voz alta. Nasceu, então, um “livro”, em sentido expandido,
vez que não se trata de um códice. Para além dessas possibilidades, o performer Ricardo Aleixo par-
ticipou da expansão do livro para o corpo, em apresentações declamadas para adultos e crianças, em
áudio e vídeo. Daí se originou uma experiência de interatividade no estímulo à criação de palavras
ou da experimentação delas com o corpo e a voz, o que superou as expectativas dos produtores na
experiência com “leitores/as”. Segundo Álvaro Garcia:

Nossa equipe incluiu autor, editor, animador, designer gráfico, designer de som e programa-
dor, em uma rica troca de experiências e opiniões. Nós superamos os desafios de passar de
um sistema semiótico para outro. Exploramos os poemas em sua interanimaverbivocovisu-
alidade: suas possibilidades interativas, sonoras, visuais e lógicas em múltiplos ambientes.
Criamos um trabalho que evolui em revisões e versões e também se desdobra e transforma
através de diferentes mídias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como vimos num sobrevoo, uma obra como Poemas de Brinquedo, a que nos dedicamos bre-
vemente aqui, embora seja chamada de livro, imanta uma série de adjetivos que ajudam a explicá-la
ou a identificá-la, embora tudo continue soando impreciso e fluido, o que não necessita ser visto como
algo negativo ou ruim. Os produtos editoriais, em alguma medida, espelham aspectos interessantes
dos processos editoriais que os forjam e dão a eles existência, ainda que os dicionários apenas consi-
gam admiti-los muito depois das experiências que temos como leitores e leitoras, editores e editoras.
Retomando nossas perguntas-guias: é extensa a adjetivação que usamos para os livros, em es-
pecial nos dias que correm, diante de tantos displays, gadgets e devices de que dispomos para experi-
mentar leituras. Estão expandidos os sentidos não apenas do livro, mas de toda a rede que o tem como
peça central, isto é: a leitura, o/a leitor/a, a produção editorial, os profissionais do livro, as autorias,
etc. Os livros nos desafiam e às nossas teorias sobre ele, deslocando nossas percepções, obrigando-
-nos a reformulações interessantes e bem-vindas, assim como nos fazendo deslizar entre tecnologias
e processos. Neste objeto específico, o livro-app Poemas de Brinquedo, cabem adjetivos previstos
em dicionários, mas também e principalmente os imprevistos e os imprevisíveis. Digital por sua

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natureza tecnológica, infantil por seu público preferencial ou principal, audiovisual por suas formas
de experiência sensorial e motora, transmídia por deslizar entre possibilidades de acesso, consumo e
distribuição, brincante por provocar o jogo e a ludicidade, em todas as suas apresentações, Poemas de
Brinquedo será sempre parcialmente lido, a depender de onde o acessamos e como; jamais será total
e integralmente lido, a depender das mesmas condições; só existe porque diversas formas de autoria
nele convergiram e o erigiram; e se legitima como livro e como experiência de leitura millennial
quando encontra espaço em uma instância de consagração como o prêmio Jabuti, que esteve pouco
à vontade com essas tecnologias do livro que obrigam a repensar tudo, em todos os sentidos, quando
estamos acostumados a uma concepção de livro apenas pretensamente dada e universal (RIBEIRO,
2018). Ao que parece, para nossa instigação maior, demos a sorte de estar no mundo neste novo mo-
mento de revolução (no sentido apenas de revolver) das questões do livro e da leitura.
Das 397 entradas para livro, no dicionário de Faria e Pericão (2008), apenas uma está sem
adjetivos. Todas as outras estão complementadas por uma ou mais palavras. Certamente, a todos os
verbetes falta algo, ou lhes sobra. Um livro, hoje e sempre, esteve de mãos dadas com muitos adje-
tivos, palavras relacionadas às múltiplas facetas deste objeto central em nossas vidas culturais, tão
vivo quanto nós.

REFERÊNCIAS

ANDRUETTO, Maria Teresa. Por uma literatura sem adjetivos. Trad. Carmen Cacciacaro. São Pau-
lo: Editora Pulo do Gato, 2012.
CORRÊA, Hércules Tolêdo; PINHEIRO, Marta Passos; SOUZA, Renata Junqueira de. A materiali-
dade da literatura infantil contemporânea: projeto gráfico e paratextos. In: PINHEIRO, Marta Passos;
TOLENTINO, Jéssica M. Andrade. (Orgs.) Literatura infantil e juvenil: campo, materialidade e pro-
dução. Belo Horizonte: Contafios/Moinhos, 2019. (Coleção Pensar Edição)
FARIA, Maria Isabel; PERICÃO, Maria da Graça. Dicionário do Livro. Da escrita ao livro eletrônico.
São Paulo: EdUSP, 2008.
GARCIA, Álvaro Andrade. Poemas de Brinquedo e software livre Managana: desafios de uma publi-
cação Transmídia. Editora Peirópolis, jun. 2016. Disponível em: <https://www.editorapeiropolis.com.
br/poemas-de-brinquedo-os-desafios-de-uma-publicacao-transmidia/>. Acesso em: 21 jan, 2020.
LONGHI, Raquel Ritter. Intermedia, ou para entender as Poéticas Digitais. In: CONGRESSO BRA-
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COM - Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2002. Disponível em:
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Acesso em: 14 jan. 2021.
MORAES, Giselly Lima de. Do livro ilustrado ao aplicativo: reflexões sobre multimodalidade na
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