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Índice de Liberdade Econômica: Uma Farsa

Thiago Sussekind | 03/03/2017

Volta e meia, nas discussões sobre políticas que observamos em fóruns de internet e em
outras redes sociais, como o próprio Facebook, o Índice de Liberdade Econômica é
mencionado. Elaborado pela Heritage Foundation, o ranking é utilizado de duas maneiras
distintas: para demonstrar que os países na frente da lista são mais desenvolvidos do que
aqueles que ocupam as últimas posições e para fingir que as nações escandinavas têm
pouca intervenção estatal na economia. Ambas as argumentações, contudo, são
mentirosas.

Em primeiro lugar, os critérios utilizados pelo ranking favorecem os países desenvolvidos,


independentemente da “liberdade económica” no sentido definido pelos libertários – isto é,
uma intervenção estatal mínima ou inexistente na economia. Os títulos usados ​de início são
“Respeito às Leis”, subdivididos em “direito de propriedade” e “ausência de corrupção”. Ou
seja, o exclusivo é um mero medidor de desenvolvimento, uma vez que os países “primeiros
mundistas” costumam ser menos corruptos e possuem uma burocracia que funciona
melhor. E desde quando ter corrupção é algo inesperado? É algo que não está relacionado
com ideologias políticas, mas sim com a condição de um país.

O segundo sorteio é “Governo Limitado”, que por sua vez tem duas subdivisões: “carga
tributária” e “gastos governamentais”. O terceiro discurso é sobre a “Eficiência Regulatória”,
que engloba também “facilidade para fazer negócios”, “flexibilidade no mercado de trabalho”
e “estabilidade de preços sem controle direto de preços”. No quarto específico, a Heritage
Foundation cobra “mercados abertos”, no qual estão incluídas “abertura de comércio”,
“abertura de investimento” e “abertura financeira”.

A maior parte desses critérios tem relação com opiniões políticas, como a referente ao
mercado de trabalho, já que existem aqueles que defendem leis trabalhistas e os que
preferem a flexibilização das mesmas. Mesmo assim, há vários pontos que podem entrar
em debate também, como a “facilidade para fazer negócios”. Esses prêmios podem ser
auxiliados com a ajuda do Estado, como através de incentivos ao microempreendedorismo
e às pequenas empresas ou, ainda, podem funcionar apenas como medidor de
desenvolvimento de um país.

A crença do índice de estar medindo com precisão a liberdade econômica é difícil de


acreditar. Mas mesmo que isso fosse possível – e fosse feito pela Heritage Foundation – o
ranking ainda não diria muita coisa. Em seu livro Kicking Away the Ladder: Development
Strategy in Historical Perspective , o economista sul-coreano Ha-Joon Chang argumenta
que os países são capazes de “liberarem” as suas economias depois de se desenvolverem.
Isso, é claro, após um árduo estudo no qual analisou as instituições de países como a
Inglaterra, a Alemanha e o Japão, consideradas “bem-sucedidos”. Nas palavras de Ha-Joon
Chang:

“(os países) quando estavam em situação de recuperação, protegiam a indústria nascente,


cooptavam mão-de-obra especializada e contrabandeavam máquinas dos países mais
desenvolvidos, envolviam-se em espionagem industrial e violavam obstinadamente as
patentes e marcas. Entretanto, mal ingressaram no clube dos mais desenvolvidos,
puseram-se a defender o livre comércio e a proibir a circulação de trabalhadores e de
tecnologia; também foram obtidos grandes protetores de patentes e marcas registradas.
Assim, parece que as raposas têm se transformado em guardiãs do galinheiro com
perturbadora regularidade”.

Como exemplo, basta retomar o caso dos Estados Unidos, que foram extremamente
protecionistas entre 1816 e 1946, mas após a Segunda Guerra, passou a defender o livre
mercado (situação esta que só está mudando com Trump). A conclusão do sul-coreano é:

“Ao exigir dos países em desenvolvimento padrões institucionais que eles mesmos não
tinham quando estavam em estágios comparáveis ​de desenvolvimento, os países
avançados estão usando, efetivamente, dois pesos e duas medidas, e Lesando-os com a
imposição de muitas instituições de que eles não precisam e as quais não podem
sustentar.”

O livro do renomado economista asiático serve para, mais uma vez, demonstrar que não
necessariamente um medidor de liberdade econômica vai indicar o caminho a ser seguido
por todos. O ranking ainda contém uma série de bizarrices, como por exemplo, o fato do
Catar estar em 29º e a França em 72º. Sim, o Catar, país acusado de manter trabalho
escravo para as obras da Copa do Mundo de 2022, que já matou mais de 1000 operários , é
considerado melhor que a França.

O Índice de Liberdade tem um relatório cujo intuito é que o leitor veja todas as virtudes da
“liberdade”. A meia página é usada para mostrar que os países que melhoraram a
classificação no seu índice apresentaram as melhores taxas de crescimento econômico e
uma página para destacar os países mais ricos têm classificações melhores. Porém, uma
das primeiras conclusões de estatística é que não implica causalidade : ou seja, é possível
que as melhores taxas de crescimento económico melhorem a posição do país no ranking,
e não o contrário. Senão, teria gente acreditando que o aumento no consumo de sorvete
está ligado a um crescimento da taxa de homicídio . Existem muitos textos muito bons sobre
o assunto, como esse aqui.

Mesmo assim, ainda vai ter gente insistindo em usar o ranking para “comprovar” que
Suécia, Finlândia, Dinamarca e Noruega têm grande liberdade econômica (no sentido de
“menos Estado”). Porém, uma pesquisa comparativa entre 173 países sobre legislação
trabalhista e proteção aos trabalhadores, coordenada pela pesquisadora Jody Heymann,
fundadora do Global Working Families em Harvard e diretora do Instituto para Políticas
Sociais e de Saúde da Universidade Mc Gil em Montreal, indicada a Suécia, em conjunto
com a Finlândia como os países em que os trabalhadores e trabalhadoras obtêm mais
benefícios em previsão legal.

Apenas o fato de 80% dos trabalhadores suecos serem sindicalizados deveria ser o
suficiente para que os liberais não utilizassem a nação como exemplo de sua utopia. Hoje, a
Suécia tem um Estado do Bem-Estar Social muito bem desenvolvido, com bastante capital
acumulado e um modelo de industrialização pautado em parcerias entre o setor público e o
privado.
No ano de 1892, a Suécia começou a se tornar o “paraíso” dos sociais-democratas, com a
implementação de um imposto progressivo anual sobre o capital. Uma tarifa protetora e
subsídios ao setor industrial, principalmente o novo setor de engenharia, também foram
adotadas. O protecionismo se desvia da concorrência estadunidense no setor agrícola. Na
época, a Suécia teve, após a Finlândia, o segundo maior (em termos de PIB por hora de
trabalho) crescimento das dezasseis maiores economias industriais, num estudo com dados
entre 1890 e 1900, e o crescimento mais rápido entre 1900 e 1913. Isso só foi capaz em
decorrência de uma forte colaboração entre o setor público e o privado nas mais diversas
áreas. Para a transparência agrícola e esquemas de condução, para as estradas de ferro (já
a partir da década de 1850), para o telégrafo e telefone (no fim do século XIX) e até na
indústria do ferro. Esse modelo foi semelhante ao alemão, começando em 1870 e liderado
por Bismarck.

Mesmo assim, o economista Thomas Piketty, autor do best-seller “O Capital no Século XXI”,
mostrou que até o ano de 1912, a Suécia possuía um patamar de desigualdade de riqueza
e de detenção de capital a níveis comparáveis ​ao do Reino Unido e acima da média
europeia. A política económica sueca só sofreria uma grande mudança após a vitória
eleitoral do Partido Trabalhista Social Democrata em 1932 e, em 1936, a assinatura do
acordo de “Saltsjöbaden”, entre associações patronais e sindicatos. Assim, o modelo de
Estado do Bem-Estar Social generoso e financiado pelos financiados começou, em troca da
moderação salarial do sindicato e de evitar greves. Após a Segunda Guerra Mundial, os
SAC's, subcentrais sindicais (a grande central era a LO , ou “Landsorganisationen i
Sverige”) passou a ter até assentos nos conselhos das empresas e o Estado promoveu o
altíssimo nível de sindicalização dos trabalhadores, enquanto implementava os “fundos de
assalariados”.

Pouco depois, nas décadas de 1950 e 1960, o sindicato centralizado do LO desenvolveu o


chamado Plano Rehn-Meidner. Isso foi dinâmico a chamada “Política Salarial Solidária”, que
visava equalizar explicitamente a evolução entre os setores para os mesmos tipos de
trabalhadores. Essa medida foi aumentada pelas políticas públicas de realocação de mão
de obra, que proporcionaram apoios de reconversão e deslocalização aos trabalhadores
neste processo de modernização industrial. Nesse contexto, a indústria bélica
desempenhou um papel importante, sendo um destaque em inovação tecnológica e
lucrando com exportações para ditaduras asiáticas e africanas.

Porém, o país sofreu, como quase todo o mundo (há questões, como a Noruega, que se
beneficiou) com as chamadas “Crise do Petróleo”. Dessa forma, na década de 70, a
indústria metalúrgica teve resultados ruinosos que afetaram o país, por exemplo. Além
disso, houve sobrevalorização dos juros das dívidas mundiais que ainda causariam
problemas fiscais e a alta dos preços de produtos essenciais seria responsável por uma
onda inflacionária.

A Suécia, assim, teve que promover reestruturações produtivas e ajustes fiscais. Promoveu
uma liberalização sobretudo no setor de serviços e reduziu gastos em programas sociais
para diminuir a moeda circulante e a carga tributária. Após uma forte pressão popular, tudo
voltou à normalidade, com novos programas de segurança e bem-estar social. Assim, hoje
a carga tributária sueca chega a representar cerca de 50% da renda nacional, devido aos
impostos progressivos iniciados em 1892.

O que importa é observar que a Suécia – que tem um modelo bastante semelhante às
demais nações escandinavas – detém um modelo longe do qual os liberais argumentam ser
o melhor.

Como se não bastasse tudo isso, a Heritage Foundation não pode ser considerada um
agradecimento lá muito confiável. Eles se definem como “conservadores”, e dizem ter a
missão de “formular e promover políticas públicas conservadoras”.

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