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Este artigo é, principalmente, uma resposta às ideias de Mises e de Lange. Para um artigo dos autores sobre as
ideias de Hayek, ver “De Volta ao Debate Sobre o Planejamento Socialista II – Preços, Informação,
Comunicação e Eficiência (https://ominhocario.wordpress.com/2019/05/09/de-volta-ao-debate-sobre-o-
planejamento-socialista-ii-precos-informacao-comunicacao-e-eficiencia/)“.
Alguns trechos abaixo envolvem conceitos de Economia, Matemática e de Computação, mas mesmo que não se
domine esses conceitos por completo, vale a pena acompanhar os trechos, mesmo que seja de maneira superficial
– embora, é claro, esse conhecimento possibilite uma melhor compreensão dos argumentos apresentados pelos
autores. Tentei deixar pelo menos o link para o termo na Wikipédia na primeira ocorrência da maioria dessas
situações.]
Introdução
As duas histórias do debate
Mises sobre a impossibilidade de cálculo socialista
Racionalidade e máxima eficiência
Planejamento em espécie (in natura)
Uso do valor-trabalho
A negligência do custo dos recursos naturais
A heterogeneidade do trabalho
Uso de preços de mercado
Oskar Lange e a resposta do “socialismo neoclássico”
Alguns contra-argumentos dos austríacos
Outras objeções e conclusão
A resposta que faltava: um cálculo do tempo de trabalho
Cálculo do tempo de trabalho no marxismo clássico
A distribuição proporcional do trabalho social e o planejamento da produção
Críticas ao “dinheiro-trabalho” e a Crítica ao Programa de Gotha
Planejamento socialista e tempo de trabalho: algumas novas propostas
A viabilidade técnica do cálculo do tempo de trabalho
A racionalidade econômica do cálculo do valor-trabalho
Conclusão
Apêndice A: Valores-trabalho e preços sob produção conjunta
Apêndice B: Por que usar o valor-trabalho?
Apêndice C: Observações sobre a possibilidade de coordenação e planejamento computadorizado de
toda uma economia industrial
Apêndice D: Um programa de planejamento simples
Apêndice E: Pacotes implementando programas de planejamento
“A produção socialista só poderia parecer racionalmente realizável se fornecesse uma unidade de valor
objetivamente reconhecível, o que permitiria o cálculo econômico em uma economia onde nem o dinheiro nem trocas
estivessem presentes. Somente o trabalho poderia ser concebivelmente considerado como tal [unidade]”
1. Introdução
Este artigo oferece uma reavaliação do debate sobre o cálculo socialista das décadas de 1920 e 30, e
examina até que ponto as conclusões alcançadas nesse debate devem ser modificadas sob a luz do
desenvolvimento da teoria e da tecnologia da computação desde aquela época. O artigo está organizado
da seguinte forma: Após uma breve introdução às duas principais perspectivas sobre o debate que foram
oferecidas na literatura até o momento, examinamos na seção 2 o argumento clássico de von Mises
contra a possibilidade de qualquer tipo de cálculo econômico racional sob o socialismo. A seção 3 discute
a resposta a Mises e Hayek dada por Oskar Lange; também consideramos nessa seção os contra-
argumentos a Lange que foram feitos do ponto de vista austríaco, incluindo os argumentos de Don
Lavoie. A seção 4 apresenta o que chamamos de “resposta ausente”, isto é, uma reafirmação do
argumento marxiano clássico por um cálculo econômico em termos do tempo de trabalho. Ou seja, nós
endossamos a afirmação feita por Mises que tomamos como nossa epígrafe, mas contestamos sua visão
de que o cálculo por tempo de trabalho seria impraticável. Especificamente, argumentamos (A) que o
cálculo do tempo de trabalho pode ser defendido como um procedimento racional, particularmente
quando complementado por algoritmos (https://pt.wikipedia.org/wiki/Algoritmo) que permitam que a
escolha dos consumidores guie a alocação de (um subconjunto de) recursos econômicos, e (B) que tal
cálculo é agora tecnicamente viável, com o tipo de maquinário computacional atualmente disponível no
Ocidente, com uma escolha cuidadosa de algoritmos eficientes.
Nosso argumento, portanto, vai no sentido oposto das discussões sobre planejamento econômico em
décadas recentes, que continuam afirmando que a tarefa seria de complexidade insolucionável (por
exemplo, Nove, 1983). A seção final apresenta nossas conclusões.
Talvez devêssemos também apontar aquilo de que este documento não trata: embora nós defendamos
uma versão do planejamento socialista contra o desafio austríaco, está além de nosso escopo oferecer um
argumento completo e positivo pelo socialismo (ou uma crítica socialista completa do capitalismo). [1]
No entanto, acreditamos que tal argumento pode ser estabelecido e tentamos fazê-lo em outro lugar. [2]
1.1. As Duas Histórias do Debate
Antes de nos envolvermos com a essência do argumento austríaco, vale a pena observar as duas
principais interpretações do debate que foram oferecidas até o momento. Podemos chamá-las de Versão
Padrão e de Versão Revisada. Por Versão Padrão, nos referimos àquela apresentada por vários autores
neoclássicos proeminentes no início do período do pós-guerra, especialmente Bergson (1948),
Schumpeter (1954) e Samuelson (1948). Tomando Bergson como um exemplo típico dessa abordagem, a
ordem dos eventos é basicamente a seguinte: [3]
1. Na primeira década do século XX, Pareto e Barone demonstraram a equivalência formal entre a
alocação mais eficiente [ou “ótima”] de recursos em uma economia socialista e o equilíbrio de um
sistema de mercado perfeitamente competitivo. Em ambos os casos, seria necessária a solução das
equações do equilíbrio geral (https://pt.wikipedia.org/wiki/Teoria_do_equil%C3%ADbrio_geral)
walrasiano.
2. Em 1920, Mises afirma a impossibilidade do cálculo econômico racional sob o socialismo. Isso parecia
intrigante: por acaso ele desconhecia os resultados de Barone? Se Mises estivesse afirmando a
impossibilidade lógica de se alcançar o equilíbrio geral sob o socialismo, mesmo considerando
informações completas sobre as avaliações dos consumidores sobre os diversos bens, juntamente com
o conhecimento detalhado das técnicas de produção e de “capacidades lógicas” ilimitadas entre os
planejadores, então seu argumento seria “facilmente descartável”- na verdade, já havia sido
respondido antecipadamente. Talvez então ele estivesse na verdade argumentando que, embora o
cálculo racional fosse logicamente possível sob o socialismo, não haveria “nenhuma maneira prática
de realizá-lo”.
3. Esta segunda posição foi adotada por Hayek no livro de 1935 em que re-imprimiu o artigo de Mises
junto de dois ensaios próprios: os austríacos, desse modo, recuaram de uma alegação forte e
insustentável sobre a impossibilidade, para uma afirmação mais fraca sobre como o cálculo socialista
enfrentaria dificuldades práticas – na realidade, afirmava-se que os socialistas não seriam capazes de
resolver todas as equações necessárias, enquanto que o mecanismo de mercado o seria.
4. Esta posição enfraquecida dos austríacos foi então atacada com sucesso por Lange em 1938, quando
ele demonstrou que os socialistas poderiam emular o leiloeiro walrasiano [4], usando um processo de
“tentativa e erro” para se chegar ao vetor de preços do equilíbrio geral. [4B] Não seria necessário
resolver todas as equações “no papel”, antecipadamente. Assim, de acordo com a versão padrão, o
debate se encerrou com uma clara derrota para os austríacos. Havia sido demonstrado que o cálculo
racional em uma economia socialista era, por assim dizer, praticável em princípio. É claro, pode-se
ter dúvidas sobre a exequibilidade real de um sistema como o de Lange, mas era o suficiente como
uma resposta teórica para Mises e Hayek.
***
A Versão Revisada [defendida por autores da escola austríaca no final do século XX] é bem diferente. A
apresentação mais completa dessa visão foi feita por Lavoie (1985); versões anteriores foram
apresentadas por Ramsay Steele (1981) e Murrell (1983), entre outros, e, desde então, o argumento foi
ampliado por Temkin (1989).
De acordo com esta perspectiva, a crítica de Mises ao socialismo não havia sido invalidada
antecipadamente pela tese de equivalência de Barone-Pareto, e nem havia sido respondida efetivamente
por Lange. Em vez disso, os walrasianos e os austríacos estariam o tempo todo falando sobre coisas
diferentes. Durante todo o “debate”, o lado walrasiano estava pensando em termos da obtenção do
equilíbrio geral estático, enquanto os austríacos tinham um problema bem diferente em mente, a saber,
os ajustes (e a descoberta) dinâmicos diante de tecnologias e preferências em constante mudança. De
acordo com Lavoie, Mises nunca negou que o socialismo seria capaz de ter um bom desempenho sob
condições estáticas – mas que isso seria irrelevante para o mundo real.
Todo o aparato walrasiano – cuja aceitação era compartilhada por economistas socialistas ocidentais do
grupo de Lange e pelos comentaristas neoclássicos da versão padrão – serviria, na melhor das hipóteses,
para definir o ponto final [de equilíbrio geral entre ofertas e demandas de todos os produtos], no limite
do ajuste dinâmico sob o capitalismo competitivo. Mas esse limite nunca seria alcançado em uma
economia capitalista real, e nem poderia ser alcançado sob o socialismo. O argumento da equivalência
formal de Barone-Pareto seria, portanto, irrelevante para a acusação dos austríacos de que o socialismo
não seria capaz de emular efetivamente a dinâmica de ajuste das ofertas às demandas, que a busca pelo
lucro exerce em meio ao desequilíbrio dinâmico do capitalismo.
Como ficará evidente, desejamos contestar ambas as leituras acima do debate sobre o cálculo.
Concordamos com Lavoie que o sistema walrasiano de Lange não fornece um modelo adequado para
uma economia socialista real; por outro lado, devemos desafiar sua afirmação de que a crítica de Mises
seria efetivamente irrespondível. Em particular, procuramos estabelecer que o “argumento
computacional” é relevante e que avanços recentes na tecnologia da computação de fato tornam possível
um sistema de planejamento socialista eficaz. Começamos por oferecer nossa própria avaliação dos
argumentos originais de Mises.
Em 1920, com os bolcheviques vitoriosos na guerra civil russa e o espectro do comunismo assombrando
a Europa uma vez mais, von Mises produziu seu clássico artigo sobre o “Cálculo Econômico na
Comunidade Socialista” (von Mises (1935)). Suas afirmações eram impressionantes e, se pudessem
mesmo ser sustentadas, aparentemente devastadoras para a causa do socialismo. A concepção marxista
dominante de socialismo envolve a abolição da propriedade privada nos meios de produção e a abolição
do dinheiro, mas Mises argumentava que “cada passo que nos afasta da propriedade privada dos meios
de produção e do uso do dinheiro também nos afasta da economia racional ” (von Mises (1935): p. 104).
A economia planejada de Marx e Engels inevitavelmente se encontraria “tateando no escuro”,
produzindo “o resultado absurdo de um aparato sem sentido” (p. 106). Os marxistas contrapunham o
planejamento racional à alegada “anarquia” do mercado – mas, de acordo com Mises, tais alegações
seriam totalmente infundadas; em vez disso, a abolição das relações de mercado destruiria a única base
adequada para o cálculo econômico, ou seja, os preços de mercado. Por mais bem-intencionados que
fossem os planejadores socialistas, eles simplesmente não teriam nenhuma base para tomar decisões
econômicas sensatas: o socialismo não seria outra coisa senão a “abolição da economia racional”.
Como Mises chegou a essa conclusão? Seu argumento envolve, primeiro, uma definição do que seria
racionalidade econômica e, segundo, uma listagem supostamente exaustiva de possíveis meios de tomada de
decisão econômica racional; sua tarefa seria, então, mostrar que nenhum desses meios poderia ser
implementado sob o socialismo.
No que diz respeito à natureza da racionalidade econômica, está claro que Mises tem em mente o
problema de se produzir o máximo possível de efeito de utilidade (a satisfação de desejos) com base em
um dado conjunto de recursos econômicos. O problema também pode ser expresso em termos de seu
inverso: como escolher o método mais eficiente de produção para minimizar o custo para se produzir
um determinado efeito de utilidade. Mises retorna repetidamente a esta última formulação em sua
crítica ao socialismo, com os exemplos de construção de uma ferrovia ou de uma casa: [6] Como os
planejadores socialistas poderiam calcular o método de menor custo para se alcançar esses objetivos?
Nós podemos aceitar essa formulação do problema para os propósitos atuais, enquanto deixamos
observado que ela é inescapavelmente imprecisa: O que exatamente significa a “maximização do efeito de
utilidade”? Efeito de utilidade para quem, conforme definido por quem? A formulação alternativa não
escapa desse problema: se for para não levantar essa questão, o “custo” que deve ser minimizado precisa
já estar pré-definido teoricamente em termos de um efeito de utilidade ou de satisfação de desejos.
Se alguém pretendesse argumentar que um determinado tipo de sistema econômico, digamos S1, resolve
esse problema geral de maneira mais efetiva do que outro sistema, digamos S2, então, falando
estritamente, essa pessoa seria obrigada a demonstrar que para o sistema S1 existe um atractor
(https://pt.wikipedia.org/wiki/Atractor) que está mais próxima do ‘verdadeiro ótimo’ [ou da máxima
eficiência] do que qualquer atractor correspondente para o sistema S2. Essa pessoa precisaria, portanto,
enfrentar o problema de produzir uma definição de ‘verdadeiro ótimo‘ – e se for para definir isso em
termos de satisfação máxima de desejos, então presumivelmente seria necessário construir algum tipo de
função de bem-estar social ou função de utilidade, uma tarefa notoriamente difícil, se não quimérica – e que
Mises nem tenta. Por outro lado, se descartamos como irreal a noção de um ‘verdadeiro ótimo‘ – um
padrão independente e definitivo pelo qual os resultados de certos sistemas concretos poderiam ser
julgados – então é preciso encontrar uma base diferente para se argumentar a favor de um sistema ao
invés de outros. Descobrimos que Mises vacila neste ponto: ele quer argumentar que o capitalismo de
fato chegaria mais perto dessa otimalidade, ao mesmo tempo em que mantém à distância o tipo de teoria
formal de equilíbrio geral estático que poderia se pensar que pudesse dar sustentação para tal afirmação.
Voltaremos a este ponto na seção 2.4.
Quanto aos meios de tomada de decisão racional, Mises identifica três candidatos possíveis:
planejamento em espécie (in natura); planejamento com ajuda de uma “unidade de valor objetivamente
reconhecível” independente dos preços de mercado e do dinheiro, como o tempo de trabalho; e cálculo
econômico baseado em preços de mercado. Consideraremos separadamente cada uma destas três
possibilidades.
2.2. Planejamento em espécie (in natura)
O problema, vamos conceder por enquanto, seria decidir como implantar recursos determinados, de
modo a maximizar o efeito de utilidade resultante. Isso envolve algum tipo de “julgamento de valor” (ou
seja, avaliação do efeito de utilidade). No caso dos bens de consumo final (na terminologia de Mises,
“bens de ordem inferior“), isso é bem direto e não exige nenhum cálculo real como tal: “Via de regra, o
homem que conhece sua própria mente está em posição para avaliar o valor de bens de ordem inferior ”
(von Mises (1935): p. 96). Em sistemas econômicos muito simples, essa avaliação imediata pode ser
estendida aos meios de produção:
Não seria difícil para um fazendeiro em isolamento econômico chegar a uma distinção entre a expansão do
pasto/agricultura e o desenvolvimento de atividade no campo de caça. Em casos desse tipo, os processos de
produção envolvidos são relativamente poucos e a despesa e a renda acarretadas podem ser facilmente avaliadas
(von Mises (1935): p. 96).
Ou, novamente:
Dentro dos estreitos limites da economia doméstica, por exemplo, onde o pai pode supervisionar toda a
administração econômica, é possível determinar o significado das mudanças nos processos de produção, sem
auxílios à mente [tais como o cálculo monetário], e mesmo assim com mais ou menos precisão (von Mises
(1935): p. 102).
Nesses casos, podemos falar de planejamento em espécie, sem o intermédio de alguma unidade contábil,
como o dinheiro (ou o tempo de trabalho). O ponto é que “maçãs e laranjas” podem ser comparadas no
nível do valor de uso subjetivo – e, em casos em que a conexão entre a alocação de meios de produção e
a criação de valores de uso específicos está aparente de maneira imediata, isso pode ser o suficiente para
se alcançar eficiência.
Os limites desse tipo de planejamento em espécie são determinados pelo grau de complexidade dos
processos de produção. Em algum momento, torna-se impossível de se obter uma visão clara das
interconexões relevantes; além desse ponto, a racionalidade na alocação de recursos requer o uso de
alguma “unidade” objetiva na qual os custos e benefícios possam ser expressos. Curiosamente, do nosso
ponto de vista, a impossibilidade do planejamento em espécie para sistemas complexos é defendida
explicitamente por Mises em termos das capacidades da mente humana:
A mente de um só homem – não importa quão astuto ele seja, é fraca demais para compreender a importância de
qualquer um entre os incontáveis bens de ordem superior [meios de produção]. Nenhum homem poderia jamais
dominar todas as possibilidades de produção, inumeráveis como são, a ponto de estar em posição de fazer
julgamentos evidentes de valor sem o auxílio de algum sistema de computação (von Mises (1935): p. 102, ênfase
adicionada).
Portanto, será que o emprego de outros meios que não mentes humanas poderia tornar possível o
planejamento em espécie para sistemas complexos? O principal argumento pró-planejamento neste
artigo envolve o uso do tempo de trabalho como uma unidade contábil (e, portanto, não se enquadra na
categoria de planejamento puramente em espécie); entretanto, gostaríamos de sugerir que avanços em
Inteligência Artificial nas últimas décadas, em particular trabalhos sobre Redes Neurais, podem ser
relevantes para esta questão. [7]
Com efeito, Mises está argumentando que a otimização em sistemas complexos necessariamente envolve
aritmética, na forma da maximização explícita de uma função objetiva escalar
(https://mundoeducacao.bol.uol.com.br/fisica/grandezas-escalares-grandezas-vetoriais.htm) (o lucro sob
o capitalismo sendo o caso paradigmático). Mas o cálculo aritmético pode ser visto como uma instância
particular do fenômeno mais geral da computação ou da simulação.
Por outro lado, considere um exemplo de um sistema de controle neural. Uma borboleta em vôo precisa
controlar seus músculos torácicos para direcionar seu movimento em direção a objetos, frutas ou flores,
que provavelmente lhe fornecerão fontes de energia; ao fazê-lo, é preciso calcular qual dos muitos
possíveis movimentos de asa a levará mais perto do néctar. Sequências diferentes de movimentos
musculares possuem custos diferentes em termos de consumo de energia e trazem benefícios diferentes
em termos de néctar. O sistema nervoso da borboleta tem a tarefa de realizar a otimização com relação a
esses custos e benefícios, usando métodos não-aritméticos de computação. A sobrevivência contínua da
espécie é um testemunho de sua proficiência computacional. Parece que as redes neurais são capazes de
produzir um comportamento ‘ótimo’ (ou pelo menos altamente eficiente), mesmo quando confrontadas
com restrições extremamente complexas, sem reduzir o problema à maximização (ou minimização) de
uma variável escalar.
É provável que uma agência de planejamento faça uso generalizado da aritmética e, de fato, se alguém
quiser tomar decisões localizadas sobre o uso mais eficiente de recursos por meios aritméticos, então o
argumento de Mises sobre a necessidade de converter produtos diferentes em algum denominador
comum para fins de cálculo está bastante correto. Se, no entanto, se deseja realizar otimizações globais
por toda a economia, outras técnicas computacionais podem ser mais apropriadas – tendo muito em
comum com a forma como se pensa que os sistemas nervosos funcionam -, e estas podem, em princípio,
ser realizadas sem recurso à aritmética.
É claro que seria anacrônico criticar Mises por não levar em conta desenvolvimentos da ciência da
computação que ocorreram muito depois de ele ter escrito seus artigos. Ele e Hayek provavelmente
estavam corretos ao argumentar que as propostas de planejamento em espécie oferecidas em 1919 por
gente como Neurath e Bauer, com base na experiência da guerra, seriam altamente problemáticas em
condições de tempos de paz. [8] No entanto, é justo comentar sobre os críticos contemporâneos do
socialismo – que muitas vezes estão ansiosos para reciclar os argumentos de Mises – que eles não
deveriam repetir acriticamente pronunciamentos sobre o planejamento em espécie feitos antes da
compreensão científica sobre a natureza da computação. [9]
O único candidato que Mises consegue enxergar para tal unidade é o conteúdo de trabalho das
mercadorias, como nas teorias do valor de Ricardo e de Marx. [10] No entanto, Mises rejeita o trabalho
como uma unidade de valor. Ele apresenta dois argumentos relevantes, cada um pretendendo mostrar
que o conteúdo do trabalho não pode fornecer uma medida adequada do custo de produção. Em
primeiro lugar, ele afirma que a avaliação em termos do tempo de trabalho incorporado envolve
necessariamente a negligência do custo associado ao uso de recursos naturais não-reprodutíveis. Em
segundo lugar, ele argumenta que o tempo de trabalho não é homogêneo: somar horas de trabalho seria
enganoso, diz ele, em relação às qualificações envolvidas ou à intensidade do trabalho. Numa economia
capitalista, o mercado de trabalho fornece um conjunto de salários que tornam comensuráveis os
trabalhos de qualidades diferentes; mas numa economia socialista, sem mercado de trabalho, não
poderia haver meios racionais de comensuração. Vamos lidar com esses dois pontos aqui, deixando
outros argumentos sobre a adequação dos valores-trabalho para a seção 4.2. Discutimos a questão da
qualidade do trabalho na seção 2.3.2, que mostra como o problema de Mises pode ser resolvido por meio
do cálculo de “multiplicadores de mão de obra qualificada”. Para mais detalhes sobre essa solução e
exemplos práticos do cálculo desses multiplicadores, ver o capítulo 2 de nosso livro (Cockshott, 1993).
Antes disso, porém, vale a pena apontar que a crítica de Mises ao uso do valor-trabalho é muito breve e
superficial.
Mais ou menos duas páginas de argumentos substanciais aparecem em Mises (1935) e são reproduzidas
em Mises (1951). Em ‘Ação Humana’ (Mises, 1949), o tópico é descartado em duas frases. Isso sem dúvida
reflete o fato de que, embora Marx e Engels tivessem dado grande ênfase ao planejamento como uma
distribuição do tempo de trabalho, essa concepção já havia sido mais ou menos abandonada pelos
socialistas ocidentais na época em que Mises estava escrevendo. Voltaremos a este ponto mais abaixo.
Mises aceita que o conceito marxiano de valor-trabalho de fato inclui, em certo sentido, o consumo de
recursos naturais:
Em uma primeira impressão, o cálculo em termos de valor da mão-de-obra também leva em consideração as
condições naturais e não-humanas de produção. A lei dos rendimentos decrescentes
(https://www.infoescola.com/administracao_/lei-dos-rendimentos-decrescentes/) já está incluída no conceito de
tempo de trabalho médio socialmente necessário, na medida em que sua operação se deve à variedade das
condições naturais de produção. Se a demanda por uma mercadoria aumenta e recursos naturais em piores
condições precisam ser explorados, então o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de uma
unidade também aumenta (Mises, 1935: p. 113).
Entretanto, ele imediatamente argumenta que isso não é suficiente. Segundo ele, não seria racional que
os “fatores materiais de produção” devessem entrar no cálculo apenas na medida em que custam tempo
de trabalho para serem extraídos da natureza. Mises dá um exemplo de duas mercadorias, P e Q, das
quais cada uma requer um total de 10 horas de trabalho para ser produzida. Ambas as mercadorias
requerem um pouco da matéria-prima “a” em sua produção, e “a”, por sua vez, requer uma hora de
trabalho por unidade produzida. A mercadoria P é produzida com 8 horas de mão de obra direta e duas
unidades do material “a”, enquanto Q requer 9 horas de trabalho direto e apenas uma unidade de “a”.
Em termos de cálculo da mão-de-obra, as duas mercadorias “custariam” o mesmo, mas Mises afirma que
P na verdade deveria ser mais valiosa que Q, devido ao fato de que ela incorpora mais da matéria-prima
natural.
Não pretendemos negar que há um problema aqui. No entanto, achamos bastante digno de nota que
Mises (e seu expositor, Lavoie) falam como se esse problema fosse resolvido sob o capitalismo. Nenhum
dos dois oferece qualquer crítica à teoria ricardiana clássica, segundo a qual o sistema de preços de
mercado também não levaria em conta os recursos não-reprodutíveis. Para Ricardo, as restrições de
recursos naturais se manifestam no sistema de preços através do aumento do custo marginal de
produção – ou seja, justamente o efeito que Mises considera inadequado. [Sob essa teoria,] para a
produção intra-marginal, o preço de fato está acima do valor-trabalho, mas na margem a renda é zero e a
exploração dos recursos naturais vem de graça. (Há uma diferença aqui: se o valor-trabalho for definido
como o tempo médio de trabalho socialmente necessário, então o cálculo do valor-trabalho vai
“subvalorizar” certos produtos em relação aos preços ricardianos, mas isso poderia ser superado através
da avaliação dos produtos relevantes à partir de seu conteúdo de trabalho marginal.)
De fato, não é raro que esses aspectos sejam piores no capitalismo. O fato de que determinado recurso
seja esgotável, em última análise, não significa necessariamente que ele esteja sujeito a retornos
decrescentes no curto prazo. Na expansão para o oeste da agricultura estadunidense, por exemplo, a
terra (geograficamente) marginal na verdade era a mais produtiva. Em tais casos, o mercado não oferece
qualquer incentivo para a conservação dos recursos; os resultados ficaram dolorosamente evidentes no
“Dust Bowl” dos anos 1930. [11] Não estamos afirmando que o cálculo do tempo de trabalho se sairia
necessariamente melhor nos casos em que o mercado fracassa na conservação de recursos. Nós
afirmamos, no entanto, que planejadores socialistas devem ser capazes de tomar decisões mais
prudentes sobre a conservação de recursos do que empresas buscando maximizar o seu lucro. [12] Não
podemos discutir este ponto em profundidade aqui; duas observações terão que bastar. [13]
Em primeiro lugar, a autoridade de planejamento poderia estabelecer o princípio de que sempre que ela
for empregar tecnologias que consumam recursos não-reproduzíveis, ela também teria de investir em
pesquisas sobre a produção de substitutos. O montante que deveria ser realizado de tais investimentos
não tem como ser decidido por qualquer algoritmo simples (seja em sistemas de mercado ou em
sistemas planejados), mas uma vez que uma decisão seja alcançada, o custo da pesquisa poderia ser
“cobrado” das indústrias consumidoras desse recurso (ou seja, os planejadores iriam aumentar o tempo
de trabalho exigido neste esforço por todos os produtos dessas indústrias). Aqui está uma maneira não
arbitrária de trazer as considerações sobre recursos para o domínio da contabilidade do tempo de
trabalho. Mas, em segundo lugar, devemos enfatizar que não consideramos o cálculo do tempo de
trabalho como um procedimento de decisão mecânica para todas as questões de planejamento. Uma
sociedade socialista poderia abrir um debate democrático sobre tecnologias ou projetos específicos com
impactos ambientais substanciais e permitir que considerações ambientais ficassem acima da “eficiência”
medida em termos de minimização do trabalho. Não temos nenhum problema com a idéia de que
considerações ambientais e a contabilidade do tempo de trabalho não sejam necessariamente redutíveis
a um denominador comum escalar, e que o equilíbrio entre essas considerações possa exigir julgamentos
políticos sobre os quais as opiniões das pessoas podem diferir. Mises, para seu crédito, também está bem
disposto a admitir que questões ambientais importantes também não podem ser trazidas para o âmbito
do cálculo monetário – como mostra sua discussão sobre a decisão sobre a construção de um sistema
hidráulico que poderia destruir a beleza natural de uma cachoeira – e que foi projetada para ilustrar o
argumento geral de que o dinheiro “nunca pode obter uma medida daqueles elementos determinantes
de valor que estão fora do domínio das transações de trocas” (1935: pgs. 98-99). Se para a conservação da
cachoeira de Mises podemos confiar mais em um proprietário privado que voluntariamente deixe de
lado a maximização do seu lucro, ou em um Conselho Nacional de Parques, isso é uma questão de
julgamento: nos inclinamos na direção da segunda opção.
Nas palavras de Mises, “o segundo defeito no cálculo em termos de tempo de trabalho é ignorar as
diferentes qualidades do trabalho” (1935: p. 114). Mises nota a afirmação de Marx de que o trabalho
qualificado conta como um múltiplo do “trabalho simples” (e que portanto, pode ser reduzido a ele),
mas argumenta que não haveria como efetuar essa redução a não ser através da comparação dos
produtos de diferentes trabalhos no processo de troca no mercado. Como ele apresenta o problema:
O que deveria ser conclusivo para decidirmos a questão sobre se a contagem em termos de trabalho é aplicável
ou não, é se existe ou não a possibilidade de trazer sob um denominador comum diferentes tipos de trabalho sem
a mediação da avaliação de seus produtos pelos sujeitos econômicos (ibid.) .
Mises sustenta que isso não seria possível. Diferenciais salariais podem parecer oferecer uma solução,
mas o processo de equalização neste caso seria “um resultado de transações de mercado e não o seu
antecedente”. Mises assume que a sociedade socialista vai operar com uma política de renda igualitária,
então salários determinados pelo mercado não estariam disponíveis como um guia para o cálculo. A
conclusão é que “o cálculo em termos de trabalho teria que estabelecer uma proporção arbitrária para a
substituição do trabalho complexo pelo simples, o que exclui seu uso para fins de administração
econômica” (1935: p. 115).
É verdade que o trabalho não é homogêneo, mas não há justificativa para a afirmação de que o fator de
redução do trabalho complexo precisa ser arbitrário sob o socialismo. O trabalho qualificado pode ser
tratado da mesma maneira que Marx trata os meios de produção em ‘O Capital’, ou seja, como um
insumo produzido que “transfere” o trabalho incorporado para o seu produto ao longo do tempo. Dado
o tempo de trabalho necessário para produzir uma qualificação e um horizonte de depreciação para essas
habilidades, pode-se calcular uma “taxa de transferência” implícita do tempo de trabalho incorporado
nessas habilidades. Se chamarmos essa taxa, para a habilidade i, de ri, então a mão-de-obra desse tipo
deve ser contada como um múltiplo (1 + ri) da mão-de-obra simples, para o propósito de “custear” seus
produtos. É claro que a mão-de-obra necessária para a produção de habilidades provavelmente será uma
mistura de trabalho qualificado e trabalho simples, o que dificulta o cálculo dos multiplicadores de
habilidades. É necessário um procedimento iterativo [14]: primeiro calcular as taxas de transferência
como se todos os insumos fossem mão-de-obra simples, então usar as taxas de transferência da primeira
rodada para reavaliar os insumos de mão-de-obra qualificada, e sobre essa base recompilar as taxas de
transferência e assim por diante até que a convergência seja atingida. [15]
Além da questão das habilidades que requerem trabalho para sua produção, também reconhecemos que
nem todos os trabalhadores de determinado nível de qualificação realizam o mesmo trabalho em uma
hora. Nos casos em que seja possível avaliar a produtividade individual com algum grau de precisão, o
trabalho de determinado nível de habilidade poderia ser classificado em diferentes categorias de
produtividade (digamos, acima da média, médio e abaixo da média) e multiplicadores apropriados poderiam
ser determinados empiricamente para esses níveis. Os trabalhadores poderiam, por exemplo, ser
avaliados periodicamente (por eles mesmos e por seus pares) e receber uma nota de produtividade.
Diferentemente do caso da mão-de-obra especializada versus mão-de-obra simples, os multiplicadores
neste caso poderiam ser usados razoavelmente para determinar taxas diferenciais de pagamento. Nem
todo trabalhador precisa ser um estakanovita (https://pt.wikipedia.org/wiki/Stakhanovismo); pode-se
escolher um ritmo de trabalho mais fácil, aceitando uma taxa de remuneração um pouco menor.
Para concluir esta seção, constatamos que as duas objeções específicas de Mises ao uso da contabilidade
do tempo de trabalho não são tão convincentes. Devemos apontar também a acentuada assimetria nos
tratamentos de Mises sobre os preços de mercado e sobre o cálculo por tempo de trabalho. Ao discutir preços de
mercado, ele está bem disposto a admitir que “o cálculo monetário tem seus inconvenientes e defeitos
sérios” – ele até discute alguns deles longamente – mas, ainda assim, conclui que “para os propósitos
práticos da vida”, tal cálculo “é sempre suficiente” (1935: p. 109). Já ao discutir o cálculo do tempo de
trabalho, ele chama a atenção para dois defeitos, mas em vez de concluir que tal cálculo seria apenas
aproximadamente válido – ou que haveria uma necessidade de mais reflexão sobre como as questões
que ele apresenta poderiam ser tratadas no contexto da contabilidade do tempo de trabalho – ele toma
esses defeitos como base para a completa rejeição da idéia, e alega que os socialistas, portanto, não
teriam nenhum meio para o cálculo econômico.
Em sua discussão sobre preços de mercado, Mises está preocupado em estabelecer dois pontos: a
adequação dos preços de mercado como um meio de cálculo racional sob o capitalismo; e como eles
estariam necessariamente indisponíveis sob o socialismo. Vamos tratar um ponto por vez.
Está claro que os preços de mercado de fato fornecem uma base para o cálculo no capitalismo. Tomando os
preços como referência, as empresas são capazes de decidir sobre tecnologias de minimização de custos
e sobre quais produtos produzir entre as diversas opções, com base em sua lucratividade. Não
contestamos a alegação de Mises de que o sistema de preços possibilita uma coordenação razoavelmente
eficaz das atividades econômicas, até certo ponto. De fato, isso foi reconhecido explicitamente (e até
mesmo enfatizado) por Marx e Engels, como observamos na seção 4.1 abaixo.
Apesar de sua crítica à “anarquia” do mercado, Marx via o mecanismo de preços como levando a um
ajuste (imperfeito, embora melhor do que arbitrário) da oferta das mercadorias em linha com a
demanda, ao mesmo tempo em que força a convergência para métodos de produção que não exijam
mais do que o tempo de trabalho socialmente necessário. Tampouco afirmamos que a minimização do
custo monetário de produção ou a maximização do lucro não tenham nada a ver com alcançar eficiência na
satisfação das necessidades humanas – mas esses dois critérios são muito menos identificados entre si do
que Mises indica. Considere a seguinte passagem:
Qualquer um que deseje fazer cálculos em relação a um processo de produção complicado, perceberá
imediatamente se ele conseguiu trabalhar de maneira mais econômica que outros ou não; se ele descobrir,
tomando por referência os valores de troca obtidos no mercado, que ele não será capaz de produzir de maneira
lucrativa, isso mostra que os outros entendem como fazer um melhor uso dos bens de ordem superior em questão
(Mises, 1935: pgs. 97-8).
A pessoa à qual Mises se refere pode “perceber imediatamente” se conseguiu trabalhar de maneira mais
lucrativa do que outros ou não, mas a afirmação implícita de identidade entre o que seria mais lucrativo e
o que seria mais “econômico” (ou simplesmente “melhor”) não é justificada. [16] Certamente, os
capitalistas não podem lucrar produzindo algo que ninguém queira, ou produzindo com uma
ineficiência técnica sem sentido, mas isso não é suficiente para sustentar a afirmação de Mises. Não seria
possível reduzir o custo monetário da produção, explorando de maneira imprudente os recursos
naturais, atualmente baratos, mesmo que no longo prazo eles possam ser exauridos? Se a produção de
carros de luxo se mostra mais lucrativa do que a produção de ônibus para o transporte público, ou do
que a construção de casas para moradia, isso mostra que os carros representam um uso melhor dos
recursos? A lista de perguntas poderia seguir em frente…
Um aspecto que os socialistas frequentemente apontam como algo que enfraquece a suposta identidade
entre a busca pelo lucro e a satisfação das necessidades, diz respeito à desigualdade dos rendimentos
sob o capitalismo. A resposta de Mises a esse argumento é interessante; ele alega que a própria noção de
uma “distribuição de renda” sob o capitalismo é enganosa, baseado em que “os rendimentos surgem
como resultado de transações de mercado que estão indissoluvelmente ligadas à produção” (1951: p.
151). [17] Para ele, não existiria algo como produzir “primeiro” e depois “distribuir” o produto. Somente
sob o socialismo poderíamos falar de uma “distribuição de renda”, decidida politicamente como um
assunto separado do plano da produção. Porém, adotar a posição de Mises – de que a alocação do poder
de compra sob o capitalismo seria um elemento endógeno ao sistema produtivo – é admitir que a
produção de mercadorias pelo lucro não é governada pela “satisfação máxima dos desejos humanos”, a menos que
se tente argumentar que os desejos humanos são gerados numa correlação milagrosa com os
rendimentos monetários.
Não é nossa intenção aqui produzir mais uma crítica ao capitalismo, já existe mais do que o suficiente
delas na literatura socialista. Apenas queremos salientar que Mises não pode ter as duas coisas ao mesmo
tempo. Se ele estiver oferecendo a defesa dinâmica, pragmática e realista do capitalismo que Lavoie
detecta e aplaude, então ele não pode contrabandear para dentro dela a afirmação de que a maximização
do lucro seria o mesmo que a maximização da satisfação das necessidades humanas. Se essa afirmação
fosse passível de ser sustentada – o que, é claro, nós contestamos -, ela só poderia ser feita tomando por
referência todo o aparato da teoria do equilíbrio geral, junto de uma função de bem-estar social – um
aparato que Mises evita deliberadamente. Em vez disso, Mises teria de se contentar com a afirmação de
que o capitalismo “funciona muito bem” de certas maneiras, ao que os socialistas poderiam, é claro,
responder que ele também funciona muito mal (https://ominhocario.wordpress.com/sobre-capitalismo-
leituras-tematicas-1/) de outras maneiras.
Vamos agora para a questão da indisponibilidade de preços como meios de cálculo econômico sob o
socialismo. Mises aceita que poderia haver mercados – e portanto, preços de mercado – para bens de
consumo em uma economia socialista, mas o problema viria quando a questão for os meios de produção.
“Bens de produção em uma comunidade socialista são exclusivamente comunais; eles são uma
propriedade inalienável da comunidade e, portanto, res commercium extra” [18], escreve Mises (1935: p.
91). E “como nenhum bem de produção jamais se tornará objeto de troca, será impossível determinar seu
valor monetário” (p. 92). Para Mises, preços significativos são necessariamente o resultado de transações
de mercado genuínas entre proprietários independentes. A característica principal do preço ou valor de
troca seria que ele “surge da interação das avaliações subjetivas de todos os que participam nas trocas”
(p. 97); somente em virtude desse fato o valor de troca “fornece um controle sobre o emprego apropriado
dos bens” (p. 97). Nós tendemos a concordar com Mises sobre isso.
Pode haver outros meios de “controlar o emprego apropriado dos bens”, mas nós aceitamos o conceito
de Mises de preço como sendo os termos nos quais os proprietários estão dispostos a ceder ou adquirir
mercadorias. Oskar Lange, no entanto, acreditava que Mises era vulnerável precisamente nessa questão,
e fez dela o ponto de entrada para o seu ataque.
“O termo ‘preço‘”, diz Lange, [19] citando a autoridade de Wicksteed, “tem dois significados. Pode
significar tanto o preço no sentido comum, ou seja, a proporção pela qual se trocam duas mercadorias
em um mercado, ou pode ter o significado generalizado de “termos sob os quais alternativas são
oferecidas”… É apenas no sentido generalizado que os preços são indispensáveis para se resolver o
problema da alocação de recursos” (1938: pgs. 59-60). Lange baseia sua defesa do socialismo sobre a
idéia de que uma economia socialista poderia operar com um sistema de preços no sentido generalizado,
imitando de certa forma o funcionamento de um sistema de mercado, mesmo sem contar com mercados
reais para os meios de produção. Vamos descrever as principais características da posição de Lange, a
fim de estabelecer um contraste com as nossas próprias propostas, e para fornecer um contexto para os
contra-argumentos austríacos que possam também ter alguma relevância para elas.
Lange parte dos princípios do equilíbrio geral walrasiano, enfatizando o ponto de que o vetor de preços
de equilíbrio de uma economia competitiva seria determinado na condição em que ele equilibraria a
oferta e a demanda de todas as mercadorias, contanto que (a) os agentes tratem os preços como dados e
fora do seu controle e (b) que eles realizem uma otimização de maneira definida em relação a esses
preços. Dados (a) e (b), cada vetor de preços aponta para um padrão definido de demandas ou ofertas
em excesso para todas as mercadorias, e apenas um vetor de preços aponta para o vetor zero de
demandas em excesso. [20]
Não há razão para que uma economia socialista não possa explorar este princípio, argumenta ele. O que
precisaríamos é que a autoridade de planejamento definisse “preços contábeis” para todos os meios de
produção e que emitisse certas instruções aos gerentes das empresas: que tratem os preços contábeis
como dados; que escolham aquela combinação dos fatores de produção que minimize o custo médio de
produção com os preços dados; e que ajustem a produção de forma que o custo marginal seja igual ao
preço de produção. Ao mesmo tempo, os gerentes de setores industriais inteiros deveriam seguir a
última regra “como um princípio para guiá-los na decisão sobre se uma indústria deveria ser expandida
(com a construção de novas instalações ou a ampliação das antigas) ou contraída” (1938, pgs. 77).
Consumidores e trabalhadores, por sua vez, deveriam tomar suas decisões sobre demanda e sobre a
oferta de mão-de-obra, respectivamente, com base nos preços e salários paramétricos que encontrassem.
É claro, não há garantia de que as decisões tomadas diante de qualquer vetor de preços contábeis sejam
mutuamente compatíveis. Em caso de incompatibilidade, a autoridade de planejamento desempenharia
o papel do “leiloeiro” walrasiano, elevando os preços contábeis de mercadorias com demanda em excesso
e baixando os preços daquelas mercadorias com oferta em excesso. [21] Esse processo deveria, ao longo
de várias iterações, levar ao equilíbrio geral socialista.
Não dá para negar a engenhosidade dessa “solução”. Também não é difícil enxergar a sua vantagem
tática: os economistas neoclássicos inclinados a aceitar a teoria walrasiana como uma explicação
adequada do funcionamento das economias capitalistas aparentemente se veriam forçados a aceitar a
validade do socialismo langeano, mutatis mutandis.
Contra este breve esboço da proposta de Lange, vamos examinar algumas das objeções levantadas por
seus críticos na escola austríaca. Identificamos três pontos principais: a afirmação de que a proposta de
Lange comprometeria as premissas básicas do socialismo; a natureza estática da teoria de Lange; e o
problema dos incentivos.
Mises (1949, pgs. 701-2) afirma que, na definição tradicional, o socialismo envolve necessariamente “a
eliminação completa do mercado e da ‘concorrência cataláctica’”. A suposta superioridade do socialismo se
assentaria na “unificação e na centralização” inerentes à noção de planejamento.
É, portanto, nada menos que o reconhecimento completo da correção e da irrefutabilidade da análise e da crítica
devastadora dos economistas sobre os planos dos socialistas o fato de que os líderes intelectuais do socialismo
estão agora ocupados projetando esquemas… em que o mercado, os preços de mercado para os fatores de
produção e a concorrência cataláctica devem ser preservados.
Embora Lange não seja mencionado pelo nome, parece claro que esquemas como o dele são o alvo aqui.
Embora aceitemos que grande parte da literatura subsequente sobre o “socialismo de mercado” de fato
compromete o socialismo, vários argumentos podem ser apresentados em defesa de Lange.
Em primeiro lugar, ele enfatiza que em seu sistema a distribuição de renda estaria sob controle social e
seria bem diferente daquela observada no capitalismo.
Em segundo lugar, Lange argumenta que os planejadores socialistas levariam em conta custos e
benefícios externos que são ignorados pelas empresas privadas (embora ele não diga exatamente como).
Em terceiro lugar, embora seu sistema de certa forma emule uma economia competitiva, ele aponta como
no capitalismo real “prevalecem o oligopólio e o monopólio” (1938, p. 107), levando a uma alocação
inferior dos recursos.
Em quarto lugar, em seu Apêndice sobre a Literatura Marxista, Lange sustenta que a proposta socialista
clássica do “livre compartilhamento” de bens (nas palavras de Marx, “para cada um de acordo com suas
necessidades”) “não é, de modo nenhum, o absurdo econômico que pode parecer à primeira vista” (p.
139). Numa economia tecnicamente avançada, o ponto de saturação pode ser alcançado para certos bens
(ou seja, o ponto em que o preço seja tão baixo que a demanda se torna “bastante inelástica” [22]). Lange
fala de um “setor socializado” de consumo; inicialmente, esse setor incluiria principalmente as
“necessidades coletivas”, mas ele continua: “É perfeitamente concebível que, à medida que aumente a
riqueza, esse setor também cresça, e um número crescente de mercadorias seja distribuído através do
livre compartilhamento até que, finalmente, todas as necessidades primárias da vida sejam providas
dessa maneira, e a distribuição pelo sistema de preços seja confinada a [bens de] melhores qualidades e
luxos” (p. 141).
Por fim, fazemos referência ao ensaio de Lange (1967) no qual ele revisita seus argumentos de trinta anos
antes. Aqui ele situa suas propostas originais – similares ao modelo de mercado – essencialmente como
um meio para resolver um sistema de equações simultâneas (aquelas da teoria do equilíbrio geral).
Agora que os computadores eletrônicos estão disponíveis, ele diz, por que não resolver as equações
diretamente? “O processo do mercado, com seus pesados ciclos de ajustes iterativos e parciais por
tentativa e erro [23], parece antiquado – de fato, ele pode ser considerado como um dispositivo de
computação da era pré-eletrônica” (1967, p. 158). Sob essa luz, talvez seja mais apropriado rotular as
idéias de Lange como “socialismo neoclássico” em vez de “socialismo de mercado”: está claro que ele
pensava no mercado (até mesmo no seu mercado artificial de 1938) apenas como um meio possível para
se alcançar um certo tipo de otimização.
***
Uma segunda objeção feita pelos austríacos contra Lange diz respeito à natureza estática de sua solução.
Lavoie (1985, capítulo 4) sustenta que Lange teria respondido a uma questão que Mises considerava
trivial, enquanto que teria fracassado totalmente em lidar com a difícil questão da dinâmica. Agora, não
há dúvida de que Lange emprega uma teoria de equilíbrio estático, mas seu método é no mínimo
relativamente estático, já que ele especifica um mecanismo de ajuste que supostamente converge para o
equilíbrio geral, após qualquer mudança nos parâmetros (por exemplo, uma mudança na tecnologia ou
nas preferências dos consumidores). É verdade, Mises negou que o cálculo econômico fosse um
problema sob condições estáticas. No entanto, por “condições estáticas”, Mises queria dizer uma
verdadeira estase, onde “os mesmos eventos da vida econômica são sempre recorrentes” (1935, p. 109).
Quaisquer que sejam os problemas que o sistema Langeano possa ter, dificilmente se poderia afirmar
que Mises o teria refutado antecipadamente.
O argumento mais substancial levantado por Mises e Hayek, e posteriormente enfatizado por Lavoie,
envolve a velocidade do ajuste após mudanças nos parâmetros. Hayek, por exemplo, observando que no
mundo real a “mudança constante é a regra”, afirma que “até que ponto seria possível se atingir
qualquer coisa próxima do equilíbrio desejável, depende inteiramente da velocidade com que os ajustes
pudessem ser feitos” (1949, p. 188). Hayek prossegue argumentando que preços ditados de maneira
central não poderiam responder às mudanças de maneira tão flexível quanto verdadeiros preços de
mercado. A importância deste ponto vai além da avaliação do argumento específico de Lange. Em
termos mais gerais, se os cálculos exigidos para o planejamento socialista demorarem demais, em
relação ao ritmo das mudanças na demanda dos consumidores e na tecnologia, o planejamento estará
em dificuldades. Argumentaremos na seção 4.2 que, com a tecnologia de computação atual, os cálculos
relevantes poderiam ser realizados com rapidez suficiente. [Lembrando que o artigo é de 1993, mas
tentamos incluir dados mais atualizados nesse sentido.]
Talvez devêssemos nos deter um pouco mais nesta questão. A acusação de que a natureza “estática” do
sistema de Lange roubaria dele qualquer desejabilidade, na realidade é a peça central do renascimento
do argumento austríaco (via Lavoie) entre os anos 80 e 90, e embora as propostas positivas que
apresentamos a seguir sejam substancialmente diferentes das de Lange, alguém pode pensar que elas
seriam vulneráveis às mesmas críticas. Não queremos ser acusados de errar o alvo mais uma vez.
***
A terceira objeção diz respeito aos incentivos, em conexão com a função social dos capitalistas. Para
Lange os gerentes socialistas devem seguir certas regras para obter uma alocação ideal de recursos.
Mises responde que, embora possa parecer razoável traçar um paralelo entre esses gerentes socialistas e
os gerentes assalariados de uma empresa capitalista, todo o argumento estaria negligenciando o papel
vital dos próprios capitalistas – que não poderia ser imitado por funcionários assalariados. O ajuste
dinâmico de uma economia capitalista exige que
o capital seja retirado de determinadas linhas de produção, de determinados empreendimentos e negócios, e que
ele seja aplicado em outras linhas de produção… Esta não é uma questão para os gestores de empresas, é
essencialmente uma questão para os capitalistas – capitalistas que compram e vendem ações e quotas, que fazem
empréstimos e que os recuperam, … que especulam com todos os tipos de mercadorias (Mises, 1951, p. 139).
Além disso, Mises argumenta, “nenhum socialista contestaria que a função que os capitalistas e
especuladores realizam sob o capitalismo… só é realizada porque eles estão sob o incentivo de preservar
suas propriedades e de receber lucros que as aumentem – ou que pelo menos permitam que eles vivam
sem diminuir seu capital” (p. 141). Talvez seja assim, mas a importância desse argumento aqui não fica
totalmente clara. Por um lado, Mises está argumentando contra o socialismo de mercado, alegando que
o sistema de mercado não poderia funcionar sem os capitalistas. Isso pode ser verdade, mas como já
observamos, “socialismo de mercado” pode não ser um rótulo apropriado para o sistema de Lange. Por
outro lado, ele pode estar dizendo que grandes decisões de investimento – decisões sobre encerrar ou
consolidar empresas e assim por diante – não poderiam ser reduzidas a se seguir regras simples. Isso
também é verdade, e talvez esse argumento realmente tenha algum valor contra Lange.
No entanto, se Mises estiver afirmando que tais decisões podem ser tomadas de maneira conscienciosa –
com a devida atenção ao risco, mas sem excessivo conservadorismo – apenas por indivíduos motivados
pela perspectiva de uma grande riqueza pessoal (em caso de sucesso) ou pela ruína financeira pessoal
(no caso de fracasso), então nós discordamos totalmente.
***
Não temos espaço para expandir aqui uma discussão sobre as instituições necessárias para o
planejamento de grandes investimentos e de mudanças econômicas estruturais no socialismo; um breve
comentário terá de ser suficiente. Concordamos com Mises que essa função não será confiada a pseudo-
capitalistas; ela deve envolver uma combinação de opiniões de especialistas e de métodos democráticos.
[26]
Podemos esperar que os “especialistas” que sejam chamados a exercer seu julgamento em tais assuntos
ganhem prestígio e conquistem a admiração de seus pares se forem bem-sucedidos, e que sejam
rebaixados e que percam sua influência se forem mal sucedidos. É importante que haja um clima de
debate aberto, de responsabilidade e de prestação de contas, mas onde os vencedores não devam
acumular grandes fortunas e onde os perdedores não sejam lançados na penúria. (Alguém poderia dizer
que nada além da perspectiva de grande riqueza pessoal foi necessária para induzir Mises e Hayek a
envidar seus melhores esforços na defesa intelectual do capitalismo!) Um outro ponto deve ser
enfatizado aqui: o outro lado da moeda das inovações bem-sucedidas é que os planejadores devem ter o
direito de fechar empresas que não funcionem de maneira econômica. Embora o emprego garantido seja,
evidentemente, um princípio socialista básico, não pode haver, portanto, garantia de emprego
permanente em nenhuma indústria ou negócio específicos. David Granick (1987) argumentou que os
direitos trabalhistas de facto desse tipo foram um freio importante no desenvolvimento da economia
soviética, e a análise de Kornai das “restrições orçamentárias suaves” aponta na mesma direção. Quanto
ao critério para avaliar se uma dada empresa é “anti-econômica”, voltaremos a este ponto na seção 4.2.2
abaixo
Na seção anterior nos concentramos naquelas objeções dos austríacos a Lange com as quais
discordamos. Alguns argumentos apresentados pelos austríacos, no entanto, são bem próximos daqueles
que gostaríamos de elaborar: nós compartilhamos seu ceticismo sobre a teoria walrasiana do equilíbrio
geral, tanto como uma explicação do capitalismo quanto como um guia para o planejamento socialista.
Existe uma ambigüidade crucial na noção de Lange de um processo de alinhamento iterativo socialista.
[27] Em 1938, isso parecia ser um processo que ocorreria em tempo histórico real; em 1967, ele sugere
que isso poderia ocorrer em “menos de um segundo” num computador. De qualquer forma, existem
problemas graves. O problema com a versão em tempo histórico é apontado por Lavoie (1985: pgs. 97-8),
em sua discussão sobre o comércio com “preços falsos”. A menos que a economia seja mantida em
contínuo equilíbrio geral, sempre haverá inconsistências entre os planos ótimos de agentes econômicos
dispersos. Um sistema de mercado real pode viver com tais inconsistências (ele possui a regra de que as
mercadorias vão para aqueles que estão dispostos a pagar mais), mas existe o perigo de que elas possam
reduzir uma economia socialista à incoerência.
O que realmente acontece em uma economia langeana diante de excessos de “demanda” (“pedidos” pode
ser um termo melhor, já que não há um mercado verdadeiro) para meios de produção específicos? Como
se espera que a autoridade de planejamento evite interrupções em cascata na oferta? Parece que a
produção de um plano equilibrado e coerente (nem vamos falar em otimizado) precisa aguardar o
término do processo de “tentativa e erro”.
Aqui tocamos em um problema mais geral para o planejamento – uma questão sobre a qual Mises,
ironicamente, está disposto a ceder muito para o socialismo. Mesmo com todas as suas negações da
possibilidade de cálculo racional sob o socialismo (no sentido de se encontrar os meios mais eficientes
para atingir determinados objetivos), Mises não questiona a capacidade dos planejadores de planejar:
É verdade que a produção deixaria de ser “anárquica”. O comando de uma autoridade suprema governaria o
comportamento da oferta. Em vez de uma economia de produção “anárquica”, a ordem sem sentido de uma
máquina irracional seria suprema (Mises, 1951: p. 120).
Críticos mais recentes da economia soviética adotaram uma visão muito diferente. Nove (1977), por
exemplo, enfatiza demais a dificuldade para se construir um plano equilibrado – os planejadores não
teriam (e ele afirma que nem poderiam ter) os meios para calcular detalhadamente toda a produção
necessária de bens intermediários, a fim de dar base para se atingir quaisquer metas determinadas para
os produtos finais (ver também Ellman, 1971). Como resultado, o plano seria sempre mal formulado: as
instruções para as empresas seriam excessivamente agregadas; ofertas e demandas específicas não
corresponderiam; e uma boa dose de escambo informal e de “gambiarras” (“anarquia” socialista, por
assim dizer) seriam necessários para se alcançar até mesmo uma aproximação grosseira do equilíbrio.
Discordamos da opinião de Nove de que tais problemas são inescapáveis (ver seção 4.2 abaixo), mas,
para evitá-los, deve haver um meio de assegurar a consistência do plano, mesmo enquanto a economia
estiver processando seus ciclos rumo à otimização, e não vemos isso na versão em tempo histórico do
sistema de Lange.
para uma utilização das equações que descrevem o estado de equilíbrio, é necessário um conhecimento da
gradação dos valores dos bens de consumo nesse estado de equilíbrio. Essa gradação é um dos elementos dessas
equações assumidos como conhecidos. No entanto, o diretor conhece apenas suas avaliações atuais, e não suas
avaliações sob o hipotético estado de equilíbrio (1949: p. 707). [28]
Certos cálculos importantes podem agora ser feitos em tempo computacional, mas concordamos com
Mises que uma solução baseada em estimativas e prognósticos [29] para o equilíbrio geral walrasiano não é
viável.
Um comentário final sobre Lange servirá para conduzir a exposição para nossa apresentação da
“resposta que faltava” a Mises. Em um apêndice ao seu artigo de 1938, Lange considera “A Alocação de
Recursos Sob o Socialismo na Literatura Marxista”. Contra Mises, ele argumenta que é “muito exagerado
dizer que os socialistas marxistas não viram o problema e não ofereceram solução” (p. 141). Por outro
lado, ele concorda com Mises que os valores-trabalho não podem fornecer uma base adequada para o
planejamento socialista: “A verdade é que [os marxistas] viram e resolveram o problema apenas dentro
dos limites da teoria do valor-trabalho, estando assim sujeitos a todas as limitações da teoria clássica.”
Além disso, Lange cita Kautsky sobre a impossibilidade de se calcular o conteúdo de mão-de-obra nas
mercadorias (sobre o que trataremos mais profundamente abaixo). Nós discordamos, e sustentamos que
os valores-trabalho fornecem uma base mais robusta para o planejamento do que as concepções
neoclássicas de Lange.
4. A resposta que faltava: um cálculo do tempo de trabalho
Entre os escritos de Marx e Engels, há dois tipos de argumentos relevantes para o nosso tema. Primeiro,
há argumentos relacionados ao planejamento da produção com referência ao tempo de trabalho
socialmente necessário e, segundo, argumentos relativos à distribuição de bens de consumo de acordo
com a contribuição de trabalho feita por trabalhadores individuais. Vamos examiná-los, um por vez.
É claro que a maior parte da discussão da teoria do valor-trabalho em ‘O Capital’ está orientada para a
natureza e a dinâmica do capitalismo (teoria da exploração capitalista, teoria da tendência de queda da
taxa de lucro e assim por diante). Porém, há várias passagens que elaboram uma concepção mais geral
da distribuição proporcional do tempo de trabalho como uma necessidade básica diante de qualquer forma de
economia, o que coloca a teoria do valor-trabalho no contexto como a “forma específica de manifestação”
dessa necessidade sob as condições do capitalismo. Tais passagens estão dispersas, mas se as coletamos,
elas revelam uma “visão” substancial da economia como um sistema de alocação de tempo de trabalho para
diferentes propósitos produtivos – uma visão que é tão relevante para a organização de uma economia
socialista quanto para qualquer outro sistema.
Talvez a afirmação mais marcante dessa visão geral esteja contida na carta de Marx a Kugelmann, de 11
de julho de 1868:
Toda criança sabe que qualquer nação que parasse de trabalhar, não por um ano, mas, digamos, apenas por
algumas semanas, pereceria. E toda criança sabe, também, que as quantidades de produtos que correspondem às
diferentes quantidades de necessidades demandam porções diferenciadas e quantitativamente determinadas do
trabalho agregado da sociedade. É auto-evidente que esta necessidade de distribuição do trabalho social em
proporções específicas certamente não será abolida pela forma específica de produção social; isso só pode mudar
sua forma de manifestação. (Marx e Engels, 1988: 68, ênfase original removida)
Esta visão é ampliada em várias passagens do Volume III de ‘O Capital’. Por exemplo:
Para que uma mercadoria seja vendida pelo seu valor de mercado, isto é, proporcionalmente ao trabalho social
necessário nela contido, a quantidade total de trabalho social usada na produção da massa total dessa
mercadoria deve corresponder à quantidade do desejo social por ela, isto é, o desejo social efetivo (Marx, 1972: p.
192).
Uma passagem da p. 636 da mesma obra desenvolve de maneira semelhante o tema da lei do valor, na
medida em que se aplica a “cada produto total das esferas sociais específicas de produção, tornadas
independentes pela divisão do trabalho”: o que é necessário é
não apenas [que] não seja utilizado mais do que o tempo de trabalho necessário para cada mercadoria específica,
mas [também que] apenas a quantidade proporcional necessária do total do tempo de trabalho social seja
utilizada nos vários grupos. Porque a condição permanece de que a mercadoria representa um valor de uso. Mas
se o valor de uso das mercadorias individuais depende de elas satisfazerem ou não uma necessidade específica,
então o valor de uso da massa do produto social depende de ela satisfazer de maneira adequada [ou não] a
necessidade social quantitativamente definida para cada tipo específico de produto, e do trabalho ser distribuído
proporcionalmente entre as diferentes esferas, de acordo com essas necessidades sociais, que são
quantitativamente circunscritas.
Nossa citação final nesse sentido é do Volume 1 de ‘O Capital’ (Marx, 1976: pgs. 169 e segs.). Marx
começa com uma história com Robinson Crusoé, destacando que “a própria natureza obriga [Robinson]
a dividir seu tempo com precisão entre suas diferentes funções. Se uma função ocupa um espaço maior
em sua atividade total do que outra, isso depende da magnitude das dificuldades a serem superadas na
obtenção do efeito útil visado.” Depois de discutir a contraparte dos cálculos robinsonianos em
sociedades feudais e primitivas, Marx chega ao caso do socialismo.
Para variar, vamos finalmente imaginar uma associação de homens livres, trabalhando com os meios de
produção mantidos em comum, e gastando suas muitas formas diferentes de força de trabalho em total
autoconsciência, como uma única força de trabalho. Todas as características do trabalho de Robinson são
repetidas aqui, mas com a diferença de que elas são sociais, em vez de individuais… O produto total da nossa
associação imaginada é um produto social. Uma parte deste produto serve como novos meios de produção e
permanece social. Mas outra parte é consumida pelos membros da associação como meio de subsistência.
Numa economia socializada como essa, a repartição (direta) do tempo de trabalho “mantém a proporção
correta entre as diferentes funções do trabalho e as várias necessidades das associações”, e aqui “as
relações sociais dos produtores individuais, tanto em relação ao seu trabalho como em relação aos
produtos de seu trabalho são… transparentes em sua simplicidade.” [30]
Esses temas também podem ser encontrados no texto bem conhecido sobre planejamento no ‘Anti-
Duhring’ (Engels, 1954: pgs. 429–30). Engels afirma que, no socialismo, “quando a sociedade entra em
posse dos meios de produção e os usa em associação direta para a produção, o trabalho de cada
indivíduo, por mais variado que seja seu caráter especificamente útil, se transforma no início e
diretamente em trabalho social.” Então, não seria mais necessário expressar o conteúdo de mão-de-obra
dos bens na forma “indireta” de seu valor de troca. Em vez disso, “a sociedade pode simplesmente
calcular quantas horas de trabalho estão contidas em uma máquina a vapor, um alqueire de trigo da
última colheita ou cem metros quadrados de tecido de uma certa qualidade”. Usando esse
conhecimento, “os efeitos úteis dos vários artigos de consumo, comparados entre si e com as
quantidades de mão-de-obra necessárias para sua produção, acabarão determinando o plano. As pessoas
serão capazes de administrar tudo de maneira muito simples, sem a intervenção do tão alardeado
‘valor’”. [31]
O outro tipo de argumento com relevância direta para o uso do cálculo do tempo de trabalho no
planejamento da produção é dado no capítulo 15 de ‘O Capital’, Volume I (Marx, 1976: pgs. 515-7).
O uso de maquinário com o propósito exclusivo de baratear o produto está limitado pela exigência de que menos
trabalho deve ser gasto na produção do maquinário do que o total de trabalho substituído pelo emprego desse
maquinário. Para o capitalista, no entanto, há um limite adicional para o seu uso. Em vez de pagar pelo
trabalho, ele paga apenas o valor da força de trabalho empregada; o limite para o uso de uma máquina é,
portanto, fixado pela diferença entre o valor da máquina e o valor da força de trabalho substituída por ela.
Na teoria de Marx, é claro, o valor da força de trabalho de um trabalhador em qualquer período dado,
conforme determinado pelo conteúdo de trabalho dos meios necessários para sua subsistência, é menor
do que o trabalho que ele de fato realiza naquele período (a diferença constituindo a mais-valia). Assim,
Marx argumenta que os capitalistas necessariamente não economizam a mão-de-obra em toda a sua
extensão. A passagem citada acima é seguida por vários exemplos de, como coloca Marx, “o
esbanjamento descarado da força de trabalho humana”, que atinge seu pior ponto quando os salários
estão mais baixos, e, portanto, a divergência entre economia de mão de obra e economia de dinheiro está
em seu maior nível. Uma nota de rodapé deduz que “o campo de aplicação do maquinário seria,
portanto, completamente diferente em uma sociedade comunista de como é na sociedade burguesa”.
Implicitamente, a sociedade comunista fará uso rigoroso do princípio de economia do tempo de trabalho
em suas decisões de planejamento, e isso constitui parte de sua superioridade sobre o capitalismo.
Assim, vemos um papel duplo para um cálculo do tempo de trabalho na abordagem marxiana clássica
sobre o planejamento da produção. Primeiro, a tarefa econômica básica da “associação” socialista é
concebida em termos de uma alocação do trabalho social de acordo com a produção proporcional dos
valores de uso obtidos dos vários ramos da divisão do trabalho. Essa proporcionalidade deve ser
alcançada diretamente, ao contrário do mecanismo indireto da “lei do valor” sob o capitalismo. Isso exige,
entre outras coisas, a medição do trabalho necessário para produzir bens e serviços específicos. Segundo,
um objetivo geral do planejamento socialista deve ser a economia do tempo de trabalho – a redução
progressiva do trabalho necessário para a produção de valores de uso específicos, ou, em outras
palavras, o aumento progressivo do quantum de valor de uso que pode ser produzido com qualquer
gasto de trabalho social.
O objeto básico da crítica de Marx e Engels pode ser descrito como uma apropriação “socialista ingênua”
da teoria ricardiana do valor. Os reformistas argumentam que se pelo menos pudéssemos impor a
condição de que todas as mercadorias realmente fossem trocadas de acordo com o trabalho incorporado
a elas, então, certamente, a exploração seria eliminada. Daí os esquemas, desde John Gray na Inglaterra,
passando por uma longa lista de “socialistas ricardianos” ingleses, até Proudhon, na França, e
Rodbertus, na Alemanha, para impor a troca de acordo com os valores do trabalho. [33] Do ponto de
vista de Marx e Engels tais esquemas, por mais honrosas que sejam as intenções de seus propagadores,
representam uma tentativa utópica e de fato reacionária de fazer voltar para trás o relógio, para um
mundo de ‘produção simples de mercadorias’ e de trocas entre produtores independentes, donos de
seus próprios meios de produção.
Os utópicos do dinheiro-trabalho não reconhecem dois pontos vitais. Primeiro, a exploração capitalista
ocorre através da troca de mercadorias de acordo com seus valores-trabalho (com o valor da mercadoria
especial que é a força de trabalho sendo determinado pelo conteúdo de trabalho dos meios de
subsistência dos trabalhadores). Segundo, embora o conteúdo de trabalho regule as taxas de troca entre
as mercadorias no equilíbrio de longo prazo sob o capitalismo, o mecanismo pelo qual a produção é
ajustada continuamente de acordo com as mudanças nas demandas e sob a luz das transformações
tecnológicas, no sistema de mercado, depende da divergência dos preços de mercado em relação aos seus
valores no equilíbrio de longo prazo. Tais divergências geram taxas de lucro diferentes, que por sua vez
guiam o capital para ramos de produção onde a oferta esteja inadequada, e empurram o capital para fora
de ramos onde a oferta seja excessiva, como analisado nos clássicos de Adam Smith e David Ricardo. Se
tais divergências forem simplesmente descartadas por decreto, e, portanto, o mecanismo de sinalização
dos preços de mercado for desativado, haverá caos, com escassez e excedentes de mercadorias
específicas surgindo por toda parte. [34]
Um argumento que surge repetidamente na crítica marxiana é o seguinte: de acordo com a teoria do
valor-trabalho, é o tempo de trabalho socialmente necessário que governa os preços de equilíbrio, e não
apenas o conteúdo “bruto” de trabalho (Marx, 1963: pgs. 20-21, 66, 204-5). No entanto, numa sociedade
produtora de mercadorias, o que seria o trabalho socialmente necessário [para produzir uma
mercadoria] emerge apenas através da concorrência no mercado. Antes de mais nada, o trabalho é
“privado” (realizado em oficinas e empresas independentes), e só passa a ser validado ou constituído
como trabalho social através da troca de mercadorias. A necessidade social do trabalho tem duas
dimensões. Em primeiro lugar, nos referimos às condições técnicas de produção e à produtividade física
do trabalho. Produtores ineficientes ou preguiçosos, ou aqueles que usam tecnologia superada, não
conseguirão realizar um preço de mercado compatível com o seu uso real de mão-de-obra, mas sim
apenas [um preço compatível] com aquela quantidade menor de mão-de-obra que for definida como
‘necessária’ (em relação à produtividade média ou às melhores práticas técnicas – Marx nem sempre é
consistente sobre qual delas seria, exatamente). Em segundo lugar, como testemunham as passagens do
Volume III d’’O Capital’ citadas acima, há um sentido em que a necessidade social do trabalho é relativa
à estrutura predominante da demanda. Se uma certa mercadoria for super-produzida em relação à sua
demanda, ela não conseguirá realizar um preço compatível com seu valor de mão-de-obra – mesmo que
seja produzida com eficiência técnica média ou mesmo acima da média. Os proponentes do dinheiro-
trabalho querem dar um curto-circuito nesse processo, e agir como se todo trabalho já fosse
imediatamente social. Os efeitos disso, sob uma sociedade produtora de mercadorias, não podem deixar de
ser desastrosos.
Agora, a lição que Marx e Engels deixaram para os socialistas do dinheiro-trabalho, sobre as belezas do
mecanismo de oferta/demanda sob o capitalismo e sobre a tolice da fixação arbitrária de preços
compatíveis com o conteúdo real de trabalho nas mercadorias, obviamente é bastante agradável para os
críticos de socialismo. Terence Hutchison (1981: pgs. 14-16), por exemplo, elogia Engels por seu
reconhecimento do “papel essencial do mecanismo do mercado competitivo”, como demonstrado em
sua crítica a Rodbertus. “Mises e Hayek”, escreve Hutchison, “dificilmente poderiam ter apresentado o
argumento com mais força.” Porém, como o elogio de Hutchison é meramente um prefácio à sua
denúncia de Engels por falhar em perceber que a mesma crítica [supostamente] cortaria as bases sob as
suas próprias propostas (e de Marx) de planejamento socialista, devemos ter o cuidado de definir os
limites da crítica marxiana do dinheiro-trabalho.
Com mais importância para a história do debate, Kautsky também parece ter lido a crítica do dinheiro-
trabalho como se ela jogasse uma sombra de dúvida sobre o objetivo marxiano de cálculo direto em
termos de conteúdo de trabalho – de modo que na década de 1920 a figura amplamente considerada
como maior autoridade e guardiã oficial do legado marxista no Ocidente efetivamente abandonara esse
princípio central do marxismo clássico. [35] Contra esse pano de fundo, é possível apreciar por que
Mises foi capaz de se safar com uma rejeição breve e bem sem cerimônia do planejamento por meio de
valores-trabalho.
Da explicação que demos acima sobre a crítica do dinheiro-trabalho, os limites dessa crítica devem estar
aparentes: O que Marx e Engels estão rejeitando é a noção de fixação dos preços de acordo com o
conteúdo real do trabalho no contexto de uma economia produtora de mercadorias, onde a produção é
privada. Numa economia onde os meios de produção estejam sob controle comunal, por outro lado, o
trabalho de fato se torna “diretamente social”, no sentido de que está subordinado a um plano central pré-
estabelecido. Nesse caso, o cálculo do conteúdo da mão-de-obra contida nos bens é um elemento
importante no processo de planejamento; além disso, nesse caso o rearranjo dos recursos de acordo com
as mudanças das necessidades e prioridades sociais não prossegue através da resposta de empresas em
busca de lucros às divergências entre preços de mercado e valores no equilíbrio de longo prazo –
portanto a crítica do dinheiro-trabalho aqui é simplesmente irrelevante. Este é o contexto para a sugestão
de Marx de distribuição de bens de consumo através de “certificados de trabalho”.
Essa sugestão aparece em sua forma mais completa entre os comentários críticos de Marx sobre o
Programa de Gotha do Partido Social-Democrata Operário Alemão, de 1875 (Marx, 1974: pgs. 343-8). Em
primeiro lugar, contra a alegação de que cada trabalhador deveria receber “o rendimento de seu
trabalho, sem diminuição”, Marx assinala que uma sociedade socialista deveria alocar uma parte
substancial do produto total para cobrir depreciação e acumulação de meios de produção, seguro social,
administração, satisfação comunitária de necessidades (escolas, serviços de saúde, etc.) e para as
necessidades daqueles sem condições para trabalhar. Não obstante, isso deixa uma porção do produto
total para distribuição como meios de consumo pessoal. Quanto à natureza dessa distribuição, Marx fala
de dois estágios no desenvolvimento do comunismo. Em algum ponto no futuro, quando “todas as
fontes da riqueza cooperativa fluírem de maneira mais abundante”, será possível “atravessar o estreito
horizonte do direito burguês” e instituir o famoso princípio “de cada um de acordo com suas
habilidades, para cada um de acordo com suas necessidades”, mas no primeiro estágio do comunismo,
Marx prevê uma situação na qual o indivíduo recebe de volta (depois das deduções mencionadas acima)
a sua contribuição com a sociedade.
O que ele forneceu é o seu quantum individual de trabalho. Por exemplo, o dia de trabalho social consiste na
soma das horas individuais de trabalho [de todos]. O tempo de trabalho individual do produtor individual
constitui assim a sua contribuição para o dia de trabalho social, a sua parte nele. A sociedade lhe daria um
certificado declarando que ele realizou tal e tal quantidade de trabalho (depois que o trabalho feito para o fundo
comunal já tivesse sido deduzido), e com este certificado ele poderia retirar da oferta social de meios de consumo
uma quantidade equivalente em custos àquela quantidade de trabalho (p. 346).
Os certificados de trabalho de que Marx fala aqui são bem diferentes do dinheiro. Eles não circulam; ao
contrário, são cancelados contra a aquisição de bens de consumo de conteúdo equivalente de trabalho. E
eles só podem ser usados para bens de consumo; não podem comprar meios de produção ou força de
trabalho e, portanto, não podem funcionar como capital.
Vamos começar com a questão relativamente fácil. É claramente uma pré-condição para a
implementação das concepções de planejamento discutidas acima, que deve ser possível medir o
conteúdo necessário de trabalho dos bens a serem produzidos na economia socialista. Apesar das
declarações de Marx e Engels sobre a “simplicidade” desta tarefa, marxistas desde Kautsky até Charles
Bettelheim têm sido céticos sobre ela, enquanto os críticos do planejamento central têm assumido
prontamente que ela simplesmente não pode ser realizada. [36] Se os céticos estiverem certos, o resto do
nosso argumento cai por terra, por isso é importante estabelecermos de início que o cálculo do trabalho é
viável.
Se assumirmos, como uma primeira aproximação, que as condições de produção podem ser
representadas como um sistema linear (https://www.stoodi.com.br/blog/2014/06/02/sistemas-lineares-o-
que-sao-e-como-resolve-los/) de insumos-produtos
(http://www.erudito.fea.usp.br/PortalFEA/Repositorio/835/Documentos/Guilhoto%20Insumo%20Produto
[ou entradas-saídas], então o problema do cálculo dos valores-trabalho [37] para todos os bens no sistema
aparece como a tarefa de computar a matriz inversa de Leontief (https://www.youtube.com/watch?
v=daSvEueSQkQ). O valor-trabalho do bem i é dado pela equação:
V = Λ + AV
onde I é a matriz identidade (n × n). Assim, o vetor de valores pode ser obtido, dado o conhecimento de
A e de Λ, desde que sejamos capazes de gerar a matriz inversa de Leontief,
−1
(I − A)
No que diz respeito à complexidade computacional bruta, essa é a parte mais difícil de se resolver no
planejamento socialista; mas perceba que, se ela puder ser resolvida, isso abre novas possibilidades:
além de fornecer os valores-trabalho de todos os bens e serviços, [38] isso é exatamente aquilo de que
precisamos para calcularmos o vetor de produtos brutos de todos os bens necessários para possibilitar
qualquer vetor desejado de produtos finais para o consumo e para a acumulação de meios de
produção. Em outras palavras, é disso que precisamos para produzir um plano coerente e equilibrado.
Se na base da força bruta a inversão analítica de uma matriz de 107 x 107 está fora de cogitação, no
entanto, isso não significa o fim da história. Em primeiro lugar, como é amplamente reconhecido,
existem métodos de aproximação iterativa que são substancialmente mais eficientes (os métodos de
Gauss-Seidel (https://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A9todo_de_Gauss-Seidel)e de Jacobi
(https://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A9todo_de_Jacobi) – ver Varga, 1962). Aqui, a ordem do tempo é
de n2r, onde r é o número de iterações necessárias para produzir uma aproximação satisfatória. Com r =
8
20, a repetição dos cálculos acima dá um tempo de execução de 10 segundos, ou cerca de 3 anos. [40 –
DADOS MAIS ATUALIZADOS] Embora isso agora pareça mais próximo da viabilidade, ainda é
claramente lento demais para ter uso prático. [41] O passo restante, no entanto, é reconhecer que a
matriz de coeficientes técnicos provavelmente será muito esparsa, quando especificada nesse nível de
detalhes. Pode haver 10 milhões de produtos no sistema, mas o número médio de insumos diretos
diferentes para cada produto certamente será muito menor que isso – talvez na casa das dezenas ou
centenas [de insumos por produto]. Este fato pode ser explorado se representarmos o sistema de
insumos-produtos na forma de uma estrutura de dados de lista encadeada
(https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_ligada) (Sedgewick, 1983), ao invés da forma de matriz. Nesse caso,
a ordem de tempo do procedimento iterativo de solução cai para nmr, onde m é o número médio de
insumos diretos para cada produto. Sob as mesmas suposições que adotamos acima, mas definindo m =
3
100, chegamos a um tempo de execução de cerca de 10 segundos, ou 17 minutos. [42] Dada uma
escolha cuidadosa de estruturas de dados e de algoritmos, parece que a produção em tempo apropriado
da matriz inversa de Leontief, para um sistema especificado em todos os detalhes, está bem dentro da
capacidade da tecnologia computacional atual. [43 – DADOS MAIS ATUALIZADOS]
Evidentemente, o argumento acima não diz nada sobre a tarefa de reunir a imensa quantidade de dados
necessários para implementar tal cálculo – uma questão para a qual Mises e Hayek dão importância
demais. Não temos espaço para abordar essa questão aqui, mas já argumentamos em outro lugar
(Cockshott e Cottrell, 1989, apêndice) que isso também seria viável, usando uma rede de computadores
pessoais baratos que englobasse toda a economia, com eles executando programas de planilhas
representando as condições de produção em cada empresa, em conjunto com um sistema nacional de
Teletexto [hoje já disponível, a internet] e um sistema de códigos universais de produtos. [Com a
universalização dos computadores, da internet e dos celulares, com os sistemas para lidar com grandes
bancos de dados e técnicas de Big Data, e os sistemas de comunicação, gerenciamento e distribuição de
empresas globais como Amazon, Google, etc; a infraestrutura apontada como necessária pelos autores já
foi construída, faltando apenas a integração dos programas representando as condições de produção de
cada empresa (com os dados já existentes) num formato comum e a integração dos processos produtivos
menos informatizados.]
Um outro ponto relevante deve ser mencionado aqui. Nosso argumento pela viabilidade técnica do
cálculo do tempo de trabalho claramente depende de hardware e de algoritmos computacionais de
origem bastante recente. [Em 1993; hoje, estamos falando de tecnologias e técnicas com décadas de
idade.] Disso segue-se que aqueles (tanto socialistas quanto críticos do socialismo) que na primeira
metade do século XX estavam defendendo que tal cálculo seria impraticável, provavelmente estavam
corretos na época. É interessante observar que na União Soviética, onde a aderência às concepções
marxistas clássicas era mais tenaz do que no Ocidente, a exequibilidade era o obstáculo. Em 1920, S. G.
Strumilin defendia o uso do tred (da trudovaya edinitsa ou “unidade de trabalho”) como o denominador
comum para o planejamento, mas a Administração Estatística Central da URSS não era capaz de
administrar a tarefa (Manevich, 1989; Zauberman, 1967). Com a construção do primeiro modelo
soviético de insumos-produtos em 1960, os planejadores soviéticos deram um passo importante para
concretizar o objetivo de Strumilin, mas esse modelo distinguia apenas 157 produtos e, portanto, era de
pouca utilidade para propósitos práticos. [44] Retornaremos às implicações deste ponto em nossa
conclusão.
Se o cálculo do tempo de trabalho é agora tecnicamente viável, como afirmamos, a próxima questão que
surge é sobre a racionalidade econômica de tal cálculo. Já contestamos as duas objeções levantadas por
Mises, a saber, a negligência dos custos dos recursos naturais e a falta de homogeneidade da mão de
obra (ver seção 2.3). Nesta seção, abordamos dois pontos adicionais, relativos à dimensão temporal da
produção e à necessidade de incorporar as avaliações dos consumidores sobre os produtos,
respectivamente. O exame deste último ponto leva à nossa proposta de um “algoritmo de bens de
consumo” como um meio pelo qual as escolhas dos consumidores podem determinar a alocação daquela
porção do tempo de trabalho social dedicado aos meios de consumo pessoal.
Quanto à dimensão temporal da produção, este é um ponto complexo e não temos espaço para oferecer
um tratamento detalhado aqui. Nosso objetivo principal neste artigo é defender o socialismo contra a
crítica de Mises, e uma vez que Mises não levanta essa questão, seremos breves, deixando apenas a
essência das nossas conclusões sobre o assunto. [45]
A questão é se o conteúdo de trabalho, somado sem considerar as suas etapas temporais, é uma medida
adequada do custo, ou se o planejamento racional requer que os insumos do trabalho sejam datados,
com o trabalho passado sendo “marcado” com alguma taxa específica. Samuelson e Weiszacker (1972)
ofereceram uma influente análise dessa questão, sob o título provocativo de “Uma nova teoria do valor
do trabalho para o planejamento racional através do uso da taxa de lucro burguesa”. [46] Sua conclusão
foi que valores-trabalho simples são aplicáveis somente num sistema estacionário: em caso contrário, um
plano racional deveria exigir um conjunto de valores modificados, que poderiam, em princípio, ser
obtidos pelo expediente de ‘explodir’ todos os coeficientes no sistema de insumos-produtos por um fator
(1 + b) (1 + g), onde b denota a taxa de progresso técnico de economia de trabalho e g denota a taxa de
crescimento da oferta de trabalho. Deixando de lado a polêmica identificação espúria de Samuelson de
tal parâmetro do plano com a “taxa de lucro burguesa”, [47] a sugestão tem algum mérito, e talvez
pudesse ser implementada. Entretanto, acreditamos que os “erros” decorrentes do uso de valores-
trabalho simples provavelmente não serão sérios (particularmente, como o próprio Samuelson observa,
se o crescimento populacional for lento e se o conteúdo histórico de trabalho for usado na definição dos
valores).
Além disso, a divergência entre valores-trabalho simples e suas versões samuelsonianas só se torna
realmente significativa no caso de projetos de longo prazo, e é aqui que a racionalidade dos cálculos de
desconto é mais questionável. Pelo lado contrário, parece fazer sentido que iríamos preferir ter um
produto agora do que tê-lo mais tarde, mas o inverso é que as necessidades do futuro são consideradas
relativamente sem importância – uma implicação menos atraente desse desconto. Críticos da avaliação
econômica do governo britânico de uma barragem cruzando o rio Severn (para fins de geração de
eletricidade usando energia das correntes) objetaram que a taxa de desconto aplicada faz com que a
geração de energia virtualmente gratuita em trinta anos seja quase completamente irrelevante para o
cálculo. Da mesma forma, os enormes custos potenciais do desmonte das estações de energia nuclear
atuais são rotineiramente reduzidos à insignificância pelo uso de uma taxa de desconto positiva.
Acreditamos que tais questões exigem um julgamento: embora o elemento temporal não deva ser
ignorado, é falso supor que ele seria “resolvido” por uma simples aplicação do cálculo do Valor
Descontado Atual. [48]
***
Portanto, já argumentamos sobre como a contabilidade com base no tempo de trabalho é tecnicamente
viável e indicamos como se pode responder às principais objeções à idéia de que os valores-trabalho
fornecem uma medida razoável do custo de produção. Mas em que tipo de estrutura de planejamento o
cálculo do tempo de trabalho deveria ser colocado? Se as decisões sobre a alocação do trabalho social
para as categorias amplas de uso final (acumulação de meios de produção, consumo coletivo, consumo
pessoal) forem questões para a política democrática e se o princípio da minimização do tempo de
trabalho for adotado como critério básico de eficiência (como em Marx), o que podemos dizer sobre o
padrão detalhado da produção dos bens de consumo?
Nesse aspecto, nossa proposta pode ser descrita como “Marx mais Lange mais Strumilin”. De Marx,
adotamos a idéia do pagamento do trabalho em ‘certificados de trabalho’ e a noção de que os
consumidores podem retirar do fundo social uma quantidade de produtos e serviços com um conteúdo
de trabalho equivalente à sua contribuição de trabalho (após a dedução de impostos para compensar os
usos comunais de tempo de trabalho). De Lange, adotamos uma versão modificada do processo de
“tentativa e erro”, em que os preços de mercado dos bens de consumo são usados para orientar a
realocação do trabalho social entre os vários bens de consumo. Do economista soviético Strumilin,
adotamos a idéia de que, em um equilíbrio socialista, o valor de uso criado em cada linha de produção
deveria estar em uma proporção comum em relação ao tempo de trabalho social gasto. [49]
A ideia central é a seguinte: o plano determina a produção de algum vetor específico de bens de
consumo final, e esses bens são marcados com seu conteúdo de trabalho social. Se as ofertas e as
demandas de consumo planejadas para os bens individuais já coincidirem quando as mercadorias
estiverem precificadas de acordo com seus valores-trabalho, o sistema já estará em equilíbrio. Em uma
economia dinâmica, no entanto, isso é improvável. Se a oferta e a demanda não forem equivalentes, a
“autoridade de mercado” para os bens de consumo será encarregada de ajustar os preços, com o
objetivo de alcançar um equilíbrio (aproximado) no curto prazo – ou seja, os preços dos bens em falta
serão aumentados, enquanto em casos de sobra, os preços serão reduzidos. [50] Na próxima etapa do
processo, os planejadores examinarão as proporções entre os preços que “limparam” o mercado e os
valores-trabalho para os vários bens de consumo. (Observe que essas duas grandezas são
denominadas em horas de trabalho – o conteúdo de mão-de-obra no primeiro caso e os certificados de
trabalho, no outro). Seguindo a concepção da Strumilin, essas proporções deveriam ser equivalentes
(e iguais a um) no equilíbrio de longo prazo. O plano de produção de bens de consumo para o
próximo período deveria, portanto, determinar uma expansão na produção dos bens com uma relação
preço/valor acima da média, e uma redução na produção daqueles bens com uma relação abaixo da
média (embora, naturalmente, um elemento de previsão de demanda também seja necessário nesse
ponto: as proporções atuais fornecem um guia útil, ao invés de uma regra completamente mecânica).
Em cada período, o plano precisa ser equilibrado, usando métodos de insumos-produtos ou alguma
alternativa de algoritmo de balanceamento. [51] Ou seja, é preciso calcular com antecedência os
números brutos de produção para os bens necessários para possibilitar o vetor com a meta de
produtos finais (para que, se a obtenção do equilíbrio exigir um processo iterativo, essa iteração deva
ser executada em “tempo computacional”, ao invés de em tempo histórico). Já aludimos a essa
necessidade nas críticas ao sistema de Lange, onde esse equilíbrio parece ser deixado para o acaso.
Nosso esquema, porém, não impõe a exigência irracional de que o padrão de demanda de consumo
seja antecipada perfeitamente com antecedência – o ajuste nesse sentido é deixado para um processo
de “tentativa e erro” que ocorre em tempo histórico.
Esse esquema atende à objeção de Nove (1983), que defende que os valores-trabalho não poderiam
fornecer uma base para o planejamento, mesmo que eles possam fornecer uma medida válida do custo
de produção. O argumento de Nove é sobre como o conteúdo de trabalho por si só não nos diz nada
sobre o valor de uso dos diferentes bens. É claro que isso é verdade, [52] mas isso significa apenas que
precisamos de uma medida independente para as avaliações dos consumidores; e o preço (em
certificados de trabalho) que equilibra aproximadamente a oferta planejada e a demanda dos
consumidores, fornece justamente uma medida para isso. Da mesma forma, podemos responder a
uma objeção feita por Mises em sua discussão dos problemas enfrentados pelo socialismo sob
condições dinâmicas (1951: pgs. 196 e próximas). Um dos fatores dinâmicos que ele considera é a
mudança na demanda dos consumidores, sobre o que ele escreve: “Se o cálculo econômico fosse
possível – e com ele, fosse possível uma averiguação mesmo que aproximada dos custos de produção
– então, dentro dos limites do total de unidades de consumo designadas para ele, cada cidadão
poderia ter permissão de exigir aquilo que quisesse…”; mas, continua ele, “uma vez que sob o
socialismo tais cálculos não são possíveis, todas essas questões de demanda precisam
necessariamente ser deixadas para o governo”. Nossa proposta permite precisamente a escolha do
consumidor que Mises alega estar indisponível.
Retornando brevemente a algumas preocupações levantadas na seção 3.1 acima, estamos agora em
posição para definir o critério básico para uma inovação “bem-sucedida”, por um lado, e para um
processo de produção “não-econômico”, por outro. O “sucesso” de um produto significa que as pessoas
estão dispostas a pagar, na forma de certificados de trabalho, pelo menos tanto tempo de trabalho
quanto o produto incorpora. Um processo de produção “não econômico” – que deve ser encerrado e
seus recursos, realocados para outras funções – é aquele para o qual não existe uma escala de operação
na qual essa condição seja satisfeita.
5. Conclusão
Pode-se perguntar, qual é a relevância destes argumentos numa época em que o socialismo foi rejeitado
ou está em crise em todos os lugares? Essa realidade bruta não mostra que, apesar de nossos protestos
extenuantes em contrário, basicamente Mises e Hayek estavam certos o tempo todo? Ou, de maneira
alternativa, se o socialismo for um “pato morto”, por que deveria importar se os argumentos específicos
apresentados por Mises em 1920 estavam corretos ou não?
Em primeiro lugar, é instrutivo exercitar o senso histórico de cada um. Faz poucas décadas desde que
havia sido amplamente aceito que a Grande Depressão mostrava a falência histórica do capitalismo.
Mesmo entre aqueles que não subscreviam a tal afirmação, muitos economistas estavam dispostos a
conceder a superioridade básica do socialismo. [53] Se tal julgamento pôde ser revertido tão
completamente nos anos do pós-guerra, certamente não é impossível que outras reversões possam
ocorrer no futuro. Segundo, não se pode supor que, por o socialismo estar em apuros hoje, isso de
alguma forma confirmaria as críticas austríacas. Este não é o lugar para uma explicação das complexas
razões históricas (https://ominhocario.wordpress.com/2017/05/08/economia-e-planejamento-sovieticos-e-
as-licoes-na-queda/) por trás da crise do socialismo soviético, mas nossas investigações nos permitem
identificar um componente do problema: as condições materiais (a tecnologia computacional) para o
planejamento socialista efetivo de uma economia complexa em tempo de paz não foram estabelecidas
até, digamos, meados da década de 1980. Se estivermos certos, as características mais notórias da
economia soviética (planos cronicamente incoerentes, recorrentes escassez e sobras de mercadorias
específicas, falta de capacidade de resposta à demanda dos consumidores), embora fossem também
em parte o resultado de políticas equivocadas, eram em certa medida consequências inevitáveis da
tentativa de operar um sistema de planejamento central “antes do seu tempo”. A ironia é óbvia: o
socialismo estava sendo rejeitado no exato momento em que estava se tornando uma possibilidade
real.
Don Lavoie conclui seu estudo de 1985 sobre o debate em torno do cálculo socialista com a observação
de que o debate nunca foi realmente resolvido, e com a esperança de que seu livro “possa ajudar a
estimular os defensores e os críticos contemporâneos do planejamento central a retornarem a essa
rivalidade intelectual que tanto enriqueceu a profissão da economia na década de 1930.” Concordamos
que o argumento marxiano foi mais apagado do que “atualizado” pelas posições problemáticas dos
socialistas neoclássicos. Se o socialismo de mercado fosse o melhor que a esquerda pode oferecer,
teríamos de concordar que Mises venceu o debate. Pode ser tarde, mas esperamos ter mostrado como o
desafio de Mises – seu argumento de que o socialismo não poderia operar uma economia racional – pode
ser vencido.
Neste apêndice, damos substância à alegação feita no texto de que a produção conjunta não representa
um problema sério para o tipo de algoritmo de otimização baseado no trabalho que propomos para o
planejamento socialista, apesar do fato de que neste caso os valores-trabalho individuais dos bens
produzidos em conjunto seriam indefinidos.
Considere um processo que produz dois bens, a e b, em uma proporção fixa de x unidades de a para y
unidades de b, de maneira que x / y = k. (O seguinte argumento pode ser prontamente generalizado para
mais de dois bens produzidos em conjunto, mas vamos ilustrar com o caso mais simples.) Vamos definir
um bem composto, c, composto de x unidades de a mais y (= x / k) unidades de b. Nós assumimos que o
valor-trabalho de c, definido como v(c), seria bem definido. O processo deve ser operado em uma
intensidade s > 0, onde s é medido em unidades de c; caso contrário, o processo simplesmente não seria
realizado. Portanto, em uma intensidade s = s0 > 0, são produzidas a quantidade de s0x e s0x / k dos
produtos a e b, respectivamente.
Sejam p(a) e p(b) os preços que “limpam” o mercado para os bens a e b, respectivamente – com os preços
declarados em certificados de trabalho. Então, o preço correspondente do bem composto c, é uma soma
ponderada de p(a) e p(b), a saber:
isto é, o preço que “limpa” o mercado do bem composto deve ser igual ao seu valor-trabalho. É razoável
supor que os preços individuais que limpam os mercados dos produtos em produção conjunta, p(a) e
p(b), são ambos funções declinantes em relação à escala de operação do processo conjunto, s. Apenas por
uma questão de argumento, vamos escrever estas funções como relações lineares simples:
onde a1, b1 > 0 e a2, b2 < 0. Substituindo (A.2) e (A.3) em (A.1), temos:
A expressão acima fornece a intensidade otimizada de operação do processo de produção conjunta como
uma função do valor-trabalho do bem composto, da razão técnica entre os produtos conjuntos e os
parâmetros de demanda. Implica também, através de (A.2) e (A.3), em preços otimizados para os bens
individuais:
p*(a) = a1 + a2s*
p*(b) = b1 + b2s*
Os valores otimizados s*, p*(a) e p*(b) podem ser obtidos diretamente somente se os parâmetros de
demanda forem conhecidos antecipadamente. No texto, salientamos que provavelmente isso não deveria
ser assumido. Portanto, caímos de volta na solução iterativa em tempo real: conforme p(c) exceder (ou
não atingir) v(c), expandir (ou contrair) o processo de maneira incremental – ou seja, ajustar s para cima
ou para baixo, respectivamente – enquanto se busca (aproximadamente) preços que “limpem” os
mercados [p(a), p(b)] em cada estágio do processo. Esses últimos preços são usados para recalcular p(c)
em cada estágio.
O único problema especial que pode surgir no caso de produção conjunta é que o preço de “equilíbrio”
de um dos produtos pode acabar sendo um preço negativo. O sintoma disso no contexto da iteração em
direção ao equilíbrio seria que p(c) permanecesse acima de v(c) mesmo quando a escala de produção
fosse tal que o preço de “limpeza” de mercado de um dos bens (digamos, b) tivesse chegado a zero. Pode
ser então que, em níveis de produção ainda maiores, b se tornasse um incômodo (na margem), de tal
forma que as pessoas teriam que ser pagas para aceitar mais um pouco desse bem. Se um excedente do
bem b puder ser descartado ou reciclado de alguma forma, a baixo custo, a solução seria expandir a
produção (s) até que p(a) = v(c), e distribuir b como um bem gratuito, descartando qualquer excedente
de b acima da demanda de consumo. Se for dispendioso descartar o produto excedente de b, esse custo
terá que ser incluído como um fator na composição do valor-trabalho do bem composto, v(c), o que
resultará em uma menor intensidade otimizada para a operação do processo conjunto.
Em uma conferência em 1992 – organizada por iniciativa de Waclaw Klaus, no Instituto Pareto, em
Lausanne – fomos os únicos economistas defendendo a ideia de uma economia planificada. Nosso uso
da teoria do valor-trabalho foi criticado como uma forma de “naturalismo”. Argumentaram que não
fazia mais sentido dizer que o trabalho é a base do valor do que dizer que o petróleo é a base do valor.
[10] Um elemento de nosso programa de pesquisa nas últimas décadas tem sido contribuir para
restabelecer a validade científica da teoria do valor-trabalho. Existe agora todo um crescente corpo de
pesquisa empírica que valida a teoria do valor-trabalho [54], e estamos mais confiantes do que nunca
sobre a solidez dessa abordagem.
Duas outras questões foram levantadas, dessa vez por economistas de esquerda. Primeiro, há a questão
sobre se seria válido usar a categoria valor-trabalho em uma economia socialista. Não deveríamos ver o
valor e o “trabalho abstrato” no qual ele se baseia como algo específico ao capitalismo? Segundo, Marx
não foi um crítico severo da ideia de “dinheiro-trabalho”, e não estamos propondo justamente aquilo
que Marx atacou? Sobre esta última questão, ver a seção 4.1.2 acima.
Quanto à primeira questão, a ideia de que o conceito de valor-trabalho seria específica ao capitalismo
possui algum apelo inicial. Não se quer cometer o erro da economia clássica e neoclássica de confundir
formas históricas transitórias, como salários e capital, com características eternas de todas as economias.
Com a abolição da produção de mercadorias sob o socialismo, o próprio valor não desapareceria?
Acreditamos que essa ideia confunde categorias trans-históricas com suas formas históricas de
aparência. Instrumentos de produção são uma categoria trans-histórica; o capital é uma forma
historicamente específica na qual estes podem ser representados. Vemos o trabalho humano abstrato
como uma categoria trans-histórica semelhante. É a adaptabilidade do trabalho humano o que nos
distingue de outros animais. Ao contrário de formigas ou abelhas operárias, não nascemos para uma
tarefa: nós aprendemos nossos papéis na vida e podemos aprender a nos mover entre os papéis. É essa
potencialidade abstrata e polimorfa do trabalho humano que torna a sociedade humana possível. Todas
as sociedades são limitadas pelas horas do dia e pelo tamanho da população. Elas diferem nos meios
pelos quais os indivíduos humanos são levados de bebês indiferenciados a agentes produtivos,
preenchendo papéis concretos. Nas sociedades baseadas em castas, a potencialidade abstrata de cada
indivíduo pode não ser realizada, mas essa potencialidade abstrata está presente. Não há diferença
genética significativa entre um bebê intocável e outro bebê brâmane, mas a natureza fixa dos costumes
sociais pode fazer parecer aos atores em tal sociedade que essas diferenças existem. O cristianismo e o
islamismo podem pregar a igualdade humana, mas no nível abstrato da igualdade das almas – a
abstração religiosa da humanidade, mas na ausência de condições sociais apropriadas, seria uma
igualdade realizada pela alma após a morte.
A sociedade capitalista – que em princípio permite que qualquer pessoa seja contratada para qualquer
trabalho que ela possa ser treinada para fazer – realça o polimorfismo abstrato do trabalho humano mais
claramente do que os modos de produção anteriores. É claro que sabemos que existe discriminação em
razão da cor da pele, religião ou gênero nesses países, mas tal discriminação é visível como uma
contradição com o princípio subjacente da mobilidade do trabalho, e a tendência na sociedade capitalista
é de reduzir essa discriminação. [55] Essa fluidez abstrata do trabalho humano é contida na sociedade
capitalista pelas divisões de classe que restringem a educação e o treinamento das famílias da classe
trabalhadora. Mas são apenas essas restrições remanescentes sobre o trabalho abstrato que o socialismo
abolirá, permitindo a todas as crianças as mesmas escolhas de ocupações. [56] Essa é uma característica
essencial do socialismo: ela transforma a abstração da igualdade humana em uma realidade social.
O texto deste apêndice na verdade está disponível como parte de uma outra postagem com outros artigos dos
autores neste link (https://ominhocario.wordpress.com/2017/05/08/economia-e-planejamento-sovieticos-e-as-
licoes-na-queda/#parte4).
Este apêndice na verdade está disponível como parte de um outro artigo dos autores, neste link
(https://ominhocario.wordpress.com/2019/05/09/de-volta-ao-debate-sobre-o-planejamento-
socialista-ii-precos-informacao-comunicacao-e-eficiencia/#apendiceA).
Na pasta no GitHub existem duas versões implementadas em duas linguagens de programação diferentes, uma
em Java e outra mais recente, em Vector Pascal, que segundo o autor, graças a melhorias nas estruturas de
dados e no algoritmo, possui um desempenho de 30 a 40 vezes melhor do que a outra versão.]
Notas
[1] Aqui n’O Minhocário temos tentado organizar elementos nesse sentido em algumas coletâneas de
artigos publicados aqui no blog e em outros espaços: sobre os problemas do capitalismo e a necessidade
de refletirmos sobre alternativas (https://ominhocario.wordpress.com/sobre-capitalismo-leituras-
tematicas-1/); sobre a impossibilidade de mantermos a orientação atual no futuro, diante dos desafios
que a humanidade vai encarar nas próximas décadas
(https://ominhocario.wordpress.com/2018/04/07/vida-apos-o-capitalismo-quatro-futuros-conclusao/);
sobre a impossibilidade de resolvermos esses problemas de maneira satisfatória através de soluções
baseadas na expansão de mercados sobre a vida social (https://ominhocario.wordpress.com/sobre-
mercados-liberalismo-economico-e-neoliberalismo-leituras-tematicas-2/); sobre as possibilidades do
socialismo como resposta a essas questões (https://ominhocario.wordpress.com/os-abcs-do-socialismo/).
[N.M.]
[2] Este artigo foi concebido como um complemento a um livro sobre a redefinição do socialismo
(Cockshott e Cottrell, 1993 (http://ricardo.ecn.wfu.edu/~cottrell/socialism_book/)). Algumas das questões
em que tocamos aqui são tratadas com mais detalhes no livro, embora ele não lide com o debate
histórico sobre o cálculo socialista.
[3] Nos baseamos aqui em Bergson (1948: págs. 445-8). Apresentações similares da versão padrão foram
fornecidos por Lavoie (1985: págs. 10-20) e Temkin (1989: págs. 33-4).
v1 = {30 3 12 15}
v2 = {25 100}
v3 = {19}
v1 é um vetor formado pelos valores 30, 3, 12 e 15; v2 é um vetor formado pelos valores 25 e 100; v3 é um
vetor com um único valor, 19. A quantidade de elementos em um vetor pode variar de zero (um
conjunto vazio) ao infinito inteiro positivo.
No caso mencionado no trecho do texto, o vetor de preços do equilíbrio geral seria um conjunto com os
preços de todos os bens e serviços comercializados como mercadorias em uma economia, onde para
cada produto, o seu preço garantiria um perfeito equilíbrio entre a demanda e a oferta, sem sobras ou
escassez de nenhum produto.
A diferença entre um vetor e uma matriz é que o vetor possui apenas uma dimensão, enquanto a matriz
é bi-dimensional – pode-se pensar no vetor como uma matriz de n colunas por 1 linha (n x 1); também
pode-se pensar em uma matriz de n colunas por m linhas (n x m) como um sistema formado por m
vetores ( n x 1 ) – esse é o caso do sistema linear formado pela matriz de insumos-produtos abordada no
artigo: cada linha dessa matriz é um vetor que representa o processo de produção de uma unidade de
um determinado produto (bem ou serviço), indicando a quantidade necessária de cada produto usado
como insumo nesse processo de produção. Assim, a matriz de insumos-produtos completa inclui todos
os vetores descrevendo os insumos necessários para se produzir 1 unidade de qualquer produto
presente na economia. [N.M.]
[5] No original, “optimality”, a qualidade da alocação “ótima”. Optamos por “máxima eficiência” por que
o uso de “ótimo” pode soar um tanto estranha para pessoas menos acostumadas com o jargão da
Economia, mas em vários trechos acabamos não conseguindo escapar do uso de “ótimo”, como por
exemplo em “verdadeiro ótimo”. [N.M.]
[6] O exemplo da ferrovia está em Mises (1935, p. 108). O exemplo da construção de casas está em “Ação
Humana” – Mises (1949, p. 694). Deve-se notar que as discussões sobre o cálculo socialista tanto em
“Ação Humana” quanto em “Socialismo” (Mises, 1951) são essencialmente as mesmas que em Mises
(1935), com grande parte do material sendo repetido quase que palavra-por-palavra em todos os textos.
[7] Resultados recentes na teoria de redes neurais, também conhecidos como processamento distribuído
paralelo, são apresentados em Rumelhart et al. (1986). Um resumo útil das questões envolvidas é dado
por Narayanan (1990). Donald Hebb (1949) é comumente creditado como o criador dessa linha de
pensamento, mas a implementação prática não era possível na época.
[8] Ver Hayek (1935, pgs. 30-31). Mises menciona Neurath na p. 108 do mesmo trabalho. Eles se referem
aos livros de Neurath e Bauer (respectivamente, ‘Durch die Kriegswirtschaft zur Naturalwirtschaft’ e ‘Der
Weg zum Sozialismus’, ambos publicados em 1919) que não parecem estar disponíveis em tradução para o
inglês [ou para o português].
[9] Cockshott (1990) apresenta uma proposta específica para o balanceamento de um plano econômico
na presença de restrições na forma de estoques de meios de produção específicos, com base na idéia de
“recozimento simulado (https://pt.wikipedia.org/wiki/Simulated_annealing)” da literatura de redes
neurais. Sua proposta de fato envolve o uso de aritmética – essencialmente, a minimização de uma
função de perda em relação a um vetor desejado de resultados finais – mas aponta o caminho para a
aplicação de técnicas de inteligência artificial à tarefa do planejamento econômico.
[10] De um ponto de vista matemático formal moderno, o destaque da mão de obra para tal papel pode
parecer arbitrário – Não seria o caso de que qualquer mercadoria básica, que entre direta ou
indiretamente na produção de todas as outras, poderia ser usada da mesma maneira como a base do
valor? Farjoun e Machover (1983) fornecem uma discussão cortante sobre esse ponto e uma defesa eficaz
da escolha do trabalho como base.
[11] O “Dust Bowl” (algo como “Sopro de Poeira”) foi um fenômeno climático caracterizado por
tempestades de areia, que durou cerca de 10 anos, e que foi causado pelo corte das plantas que antes
mantinham o solo fixo para serem substituídas por plantações. [N.M.]
[12] Recentemente ficou claro que os regimes socialistas da Europa Oriental tinham um péssimo
histórico sobre destruição ambiental, comparável ao do capitalismo do século XIX. Nos parece, no
entanto, que isso tinha mais a ver com a falta de responsabilidade e prestação de contas democráticas e
com uma ênfase historicamente específica no rápido desenvolvimento de indústrias pesadas a qualquer
custo, do que com a natureza do cálculo socialista como tal.
[13] A relação entre contabilidade do tempo de trabalho e considerações ambientais/de recursos naturais
é tratada de maneira mais completa em Cockshott e Cottrell (1993).
[14] Talvez para pessoas que não estejam muito familiarizadas com o jargão da Ciência da Computação
essa palavra possa parecer estranha, mas “iteração” se refere à repetição, a processos que precisam ser
executados repetidamente até que se atinja uma condição previamente estabelecida. No artigo essa
palavra (e derivadas) aparece várias vezes. [N.M.]
[16] Essa afirmação é feita de maneira bastante explícita em ‘Socialismo’: “Direcionar a produção para o
lucro significa simplesmente direcioná-la para a satisfação das demandas de outras pessoas… ˙ Entre
produção pelo lucro e produção para as necessidades [das pessoas], não existe diferença” (Mises, 1951:
p. 143).
[17] Isso não é diferente da visão de Marx de que a distribuição da renda é governada pelo modo de
produção (especificamente a distribuição dos meios de produção – ver, por exemplo, Marx, 1974: p. 348).
Em ambos os casos, o argumento dá origem a uma atitude desdenhosa em relação aos esquemas para a
redistribuição radical de rendimentos sob o capitalismo.
[18] “res commercium extra” – algo que não está na esfera do comércio. [N.M.]
[19] Variações em torno do tema tratado por Lange foram oferecidas por H. D. Dickinson (1933), Abba
Lerner (1934) e E. F. M. Durbin (1936), entre outros. Mas essas outras contribuições, apesar de
divergirem nos detalhes, são suficientemente semelhantes às propostas mais conhecidas de Lange para
que não exijam exame separado aqui.
[20] Apesar de estar ciente de que problemas de múltiplas soluções e de instabilidade de equilíbrio
podem surgir sob certas condições, Lange assume que um equilíbrio geral estável e único é a norma.
[21] A referência aqui é a Léon Walras, que em seu ‘Elements d’Economie Politique Pure’ de 1874 introduziu
a ficção teórica de um leiloeiro para toda a economia.
[22] Ou seja, um nível em que a demanda não aumentaria mais com o aumento da produção. Ver
“elasticidade (https://pt.wikipedia.org/wiki/Elasticidade_(economia))”. [N.M.]
[23] no original, “cumbersome t’atonnements” – como não consegui pensar numa tradução para
t’atonnements, tentei descrever seu significado usando o “ciclos de ajustes iterativos e parciais por
tentativa e erro”. [N.M.]
[24] Em Mises e Hayek o ponto válido de que uma economia dinâmica deve estar constantemente em
busca de novos métodos [de produção] e novos produtos – e, portanto, de que as informações para a
‘função de produção’ não estão dadas de uma vez por todas – tende a se transformar naquilo que
poderíamos chamar de “misticismo do empreendedor” – um subjetivismo radical para o qual não vemos
justificativa científica.
[25] Ainda não estamos prontos para definir o “sucesso” [de novos produtos e novos processos de
produção] neste contexto, mas faremos isso na seção 4.2.2.
[26] Métodos democráticos poderiam entrar [no sistema] indiretamente, na seleção do pessoal
encarregado dessas decisões; ou, em alguns casos diretamente, como no caso de programas rivais
apresentados por equipes de especialistas sendo levados ao voto popular.
[27] novamente, tentei mais descrever do que traduzir “socialist tˆatonnement”. [N.M.]
[30] É interessante que mesmo os comentaristas socialistas se sintam obrigados a se distanciar desse tipo
de declaração. Robin Blackburn (1991), por exemplo, sustenta que neste texto, Marx está sendo “no
mínimo um pouco brincalhão” e apelida a concepção de planejamento central que ela parece sugerir de
“falácia sinóptica”.
[31] Hoje em dia, é claro, essa passagem é comumente citada apenas para mostrar a “miopia e
analfabetismo econômico” de Engels (como em Ramsay Steele, 1981, p. 12). É verdade que Engels (assim
como Marx) era otimista demais em relação à “simplicidade” de se medir o conteúdo de trabalho dos
bens, e ele não arrisca entrar em detalhes sobre como os “efeitos úteis” devem ser comparados – mas se
tais afirmações forem tomadas como o ponto de partida para a elaboração de um argumento socialista,
então elas são bastante razoáveis, como mostraremos a seguir.
[33] Marx critica o esquema de Proudhon em ‘A Miséria da Filosofia’ ([1847] 1963), e trata de John Gray em
sua ‘Contribuição para a Crítica da Economia Política’ de 1859 (a seção relevante é reimpressa como um
apêndice em Marx, 1963), enquanto Engels aborda a variante de Rodbertus em seu prefácio de 1884 à
primeira edição alemã de ‘A Miséria da Filosofia’ (novamente, em Marx, 1963). Entre Marx em 1847 e
Engels em 1884, encontramos uma linha consistente de ataque a tais propostas.
[34] Quase não seria necessário citações diretas para estabelecer esses pontos. Ver, por exemplo, Marx
(1963: pgs. 17-20, 60-61, 66-9, 203-6).
[35] Em seu livro ‘A Revolução Social’ (1902, pgs. 129-33), Kautsky oferece uma discussão breve e um
tanto ambígua sobre a “lei do valor” e o socialismo, que combina afirmações de teses marxistas clássicas
com comentários estranhamente incongruentes sobre a “indispensabilidade” do dinheiro. Em seu
trabalho posterior, ‘A Revolução dos Trabalhadores’ (1925, pgs. 261-70), as formulações de Marx e Engels
são abandonadas em favor de um argumento geral pela necessidade do dinheiro e de preços. Este
argumento parece dever algo à “crítica do dinheiro-trabalho” discutida acima; também se baseia na ideia
de que a medição do conteúdo de mão-de-obra é impraticável – “não poderia ser realizada nem pelo
maquinário estatal mais complicado que se possa imaginar” (p. 267). A propósito, Kautsky (1925) é
altamente crítico em relação ao “planejamento em espécie” de Neurath pelos mesmos fundamentos que
Mises e Hayek.
[36] As visões de Kautsky já foram mencionadas acima. Os comentários céticos de Bettelheim – citados
com aprovação por Nove (1983: pgs. 27-8) – encontram-se em seu livro ‘Calcul économique et formes de
propriété’ (1971: 30).
[37] Observamos que Marx e Engels não falam de “valores” no socialismo. Embora seja bem aceito seu
argumento de que o conteúdo do trabalho não assume a forma do valor de troca em uma economia
socialista, ainda assim achamos útil empregar o termo “valor-trabalho“, ou simplesmente “valor“, como
um atalho para a soma dos conteúdos de trabalho diretos e indiretos [nos bens e serviços].
[38] Essa descrição não é muito precisa, na medida em que ignora o problema da produção conjunta.
Quando duas [ou mais] mercadorias são produzidas em conjunto e em uma proporção fixa [entre elas]
em um processo de produção, os valores-trabalho individuais dos bens serão indefinidos. Entretanto,
acontece que dado o uso específico que estamos propondo para os valores-trabalho dentro do processo
de planejamento (ver seção 4.2.2), é possível tratar a questão da produção conjunta prontamente, como
mostrado no Apêndice A deste artigo.
[39] No ano de 2018 o supercomputador mais poderoso do mundo naquele momento, o IBM Summit
(https://www.networkworld.com/article/3236875/embargo-10-of-the-worlds-fastest-
supercomputers.html#slide11), era capaz de alcançar a velocidade de 122 PetaFlops, ou seja, realizar 122
quadrilhões de operações de ponto flutuante por segundo( 1.22 x 1017 ). Isso significa que a tarefa de
inversão da matriz de Leontief por força bruta via eliminação Gaussiana para 107 produtos, que para a
tecnologia disponível para Cockshott e Cottrell em 1993 ainda demoraria 1.5 milhões de anos, com a
tecnologia disponível em 2018, poderia ser realizada em 8 x 105 segundos, ou seja, pouco mais de 9
dias de processamento. Isso significa que em 2018, se quiséssemos, nem precisaríamos buscar técnicas
mais avançadas do que a força bruta computacional, como precisaram fazer Cockshott e Cottrell no
artigo, para possibilitar a solução da inversa da matriz de insumos-produtos. Mas, é claro, não seria
necessário usarmos essa abordagem, pois com as técnicas usadas por Cockshott e Cottrell, como veremos
mais à frente, a tarefa computacional hoje seria trivial mesmo para computadores de mesa. [N.M.]
[40] Novamente, consideremos a tecnologia disponível em 2018, com o super-computador IBM Summit
sendo o máximo de desempenho possível, como indicado na nota anterior. Nesse caso, apenas a
aplicação dos métodos de Gauss-Seidel ou de Jacobi seria o suficiente para baixar o tempo de
execução da inversão da matriz de Leontief para uma economia de 107 produtos para 0.16 segundos,
claramente uma tarefa não apenas viável, mas trivial – e nem precisaríamos de buscar outras técnicas,
como fizeram Cockshott e Cottrell. Claro que para um computador de mesa equipado com um
processador Intel Core i7 7500U, capaz de lidar com apenas 49 milhões de instruções por segundo, esta
8
ainda seria uma tarefa completamente inviável – estaríamos falando de algo como 5 x 10 segundos, ou
seja, em torno de 15 anos. Para o cálculo em computadores domésticos, ainda precisaríamos avançar
para a utilização de outras técnicas, como fizeram Cockshott e Cottrell. [N.M.]
[41] Geoff Hodgson (1984) usa essa variante do cálculo para descartar a possibilidade de um
planejamento central eficaz. Ele chega a um tempo de execução muito mais longo, pois emprega um
computador agora obsoleto [em 1993] em seu padrão de velocidade.
[42] Observe que há uma margem de erro embutida nesses cálculos pela escolha como referência de um
computador rápido comercialmente disponível na metade da década de 1980. Hoje [1993] estão
disponíveis máquinas com velocidades duas ordens de magnitude mais rápidas, como a “superfície de
computação” da Meiko na Universidade de Edimburgo, e é claro que o progresso nesse campo continua
em ritmo acelerado. [N.M.: para dados mais atualizados, ver as notas 39, 40 e 43]
[43] Usando essa mesma técnica, novamente com a tecnologia de 2018, temos um tempo de execução de
processamento ridiculamente pequeno no IBM Summit para o procedimento iterativo de inversão da
matriz (agora na forma de listas encadeadas): 0.000006 segundos para o cálculo dos valores-trabalho de
todos os produtos para uma economia de 10 milhões de produtos. Se utilizarmos um computador de
mesa como aquele indicado nas notas acima, e utilizarmos esta mesma técnica, a tarefa de cálculo dos
valores-trabalho para todos os 10 milhões de produtos, do exemplo da União Soviética, temos um
3
processamento em 5 x 10 segundos, ou seja, em torno de 1 hora e 15 minutos de processamento. Se no
artigo acima os autores mostravam que esse processamento já era uma tarefa viável para os super-
computadores da sua época, aqui podemos ver que hoje ela é viável para qualquer computador
doméstico atual (e, em breve, para qualquer celular). [N.M.]
[44] O Instituto de Pesquisas Econômicas da Gosplan realizou alguns cálculos de valor-trabalho com
base na tabela de 1960 e, como observa Treml (1967: p. 79), isso “foi saudado como um acréscimo
importante às ferramentas mais tradicionais de planejamento do trabalho na União Soviética”. Mas esses
estudos pioneiros não parecem ter tido continuação. Os limites do poder computacional e da coleta de
dados na União Soviética restringiam o uso prático dos métodos de insumos-produtos a campos como a
análise inter-regional (Ellman, 1971, 1989).
[45] Alguns argumentos que sustentam essas conclusões podem ser encontrados em Cockshott e Cottrell
(1989). Um tratamento mais longo e mais técnico da questão pode ser encontrado em Cockshott e
Cottrell (1993).
[46] O argumento de Samuelson-Weiszäcker constitui o ponto de partida (e, poderíamos dizer, também
o ponto final) de tratamentos mais recentes do tópico, como Jon Elster (1985).
[47] O parâmetro do plano possui as mesmas propriedades formais que uma taxa de lucro, mas suas
magnitudes seriam iguais apenas em um mundo no qual a burguesia, de maneira abnegada, dedicasse
toda a sua renda à acumulação!
[48] Mises vivia repetindo a ladainha de que os socialistas supostamente seriam incapazes de reduzir as
decisões econômicas à comparação de grandezas escalares (monetárias). Ao contrário, consideramos
uma virtude que o socialismo seja capaz de definir certas questões como assuntos para julgamento – é
claro, um julgamento que seja informado por números relevantes, mas não redutível à uma maximização
unidimensional.
[49] Esse argumento – um tema básico do trabalho da Strumilin ao longo de meio século – está expresso
de maneira particularmente clara em seu livro (1977: p. 136-7).
[50] Com os preços de “limpeza” do mercado, como observamos, os produtos vão para aqueles
dispostos a pagar mais. Dada uma distribuição igualitária de renda [ou próxima disso], não vemos
objeção a isso.
[51] Um algoritmo alternativo que abre espaço para incluir estoques determinados de meios de
produção específicos é apresentado em Cockshott (1990).
[52] Como Marx havia entendido claramente: “Em uma dada base da produtividade do trabalho, a
produção de certa quantidade de artigos em cada esfera de produção requer uma quantidade definida
de tempo de trabalho social; embora essa proporção varie em diferentes esferas de produção e não tenha
relação interna com a utilidade desses artigos ou com a natureza especial de seus valores de uso.” (1972:
pgs. 186–7)
[53] A. C. Pigou é um caso notável nesse sentido. Embora ele mesmo pare numa cautelosa posição
fabiana (https://pt.wikipedia.org/wiki/Sociedade_Fabiana), sua discussão em ‘Capitalismo Versus
Socialismo’ (1954) representa uma notável admissão, do principal defensor da economia neoclássica na
Inglaterra no entre-guerras, dos poderosos argumentos em favor do Planejamento socialista.
[54] Ver, por exemplo: Ochoa (1989), Petrovic (1987), Shaikh (1984), Valle Baeza (1994), Cockshott e
Cottrell (1997), Cockshott, Cottrell e Michaelson (1995), Cockshott e Cottrell (2003).
[56] O caráter específico e prático desse polimorfismo do trabalho humano abstrato, numa sociedade
socialista, é o tema de outro debate enorme, que também não cabe neste espaço – Luis Felipe Miguel
busca retomar as posições de vários autores marxistas nesse sentido em seu livro ‘Trabalho e Utopia’
[N.M.]
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1.
Psionsocialismo
20/10/2019 às 18:36 • Responder
Excelente trabalho camaradas! Caso possível, teriam como dar uma olhada sobre o tal do
extrafisicismo e escrever um artigo nesse estilo sobre o extrafisicismo?
https://ppsib.wordpress.com/2019/09/22/extrafisicismo-resumido/
4. Pingback: Qual o programa econômico das esquerdas? O debate da planificação – Opção Binária
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