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A Estratégia Da Lagartixa
A Estratégia Da Lagartixa
A ESTRATÉGIA DA LAGARTIXA
novo século
Dedico este livro a alguém que, além de ter sido muito importante
para o desenvolvimento da cirurgia de emergência, me inspirou a
optar por essa especialidade.
Sua criatividade pode ser aferida na versatilidade de suas obras.
Desenvolveu várias técnicas e classificações conhecidas
internacionalmente. Desde estratégias cirúrgicas nos ferimentos
cardíacos e descrições de regiões anatômicas até como salgar com
perfeição um prato do seu Almeida (garçom do seu restaurante
predileto) ou estratificar a beleza feminina...
Não desperdicei o tempo em que convivemos no pronto-socorro;
assimilei os seus conselhos e aforismos. Posso dizer que, graças a
eles, soube enfrentar com sucesso cenários complexos, que iam de
lesões hepáticas graves à angústia da minha esposa com suas
dúvidas em relação à melhor cor dos nossos "bem-casados".
Pode parecer ridículo dedicar este livro a alguém cujo maior ídolo é
Camões, mas...
... ao cirurgião, caricaturista, músico, poeta e amigo, prof. Dr.
Adoniram de Mauro Figueiredo
In bocca al lupo! Agradeço à minha amada esposa, que tanto
detestou as horas que passei longe dela, catando milho no teclado do
meu computador e tentando organizar minhas ideias.
A vocês, queridos pais, que com muito sacrifício me presentearam
com o maior tesouro que carrego: a educação.
Aos professores que eu, sem muito sucesso, tentei me espelhar
como, Dario Birolini, Eugênio Ferreira, Paulo D. Branco, Marcelo
M. Machado, Adib Jatene, Nelson F. Margarido, Celso de O.
Befnini e Adoniram de M. Figueiredo.
A todos os colegas que me ajudaram, lembrando de incríveis
histórias e ponderando sobre minhas divagações (nesse quesito, eu
seria muito injusto se citasse apenas vinte ou trinta nomes).
Ao apoio técnico que recebi, com tanto carinho, de Reynaldo Ayer
de Oliveira, Roberto Figueredo, Dráuzio Varella, Samir Rasslan,
Vania Toledo, Fernando Zamith, Caio Soares e Maria Helena
Huebra.
À lucidez de Paulo Schiller, às sugestões de Jocielle Miranda, e à
disposição em ajudar de Antonio Mauro S. C. Bocalho, Wagner C.
Pádua Filho, Alfredo Salim Helito, Miguel Srougi, Maria Lúcia V
da Silva, Carlos A. da Silva, Fernando Buischi, Waltênio
Vasconcelos e Euclides E de A. Cavalcanti.
À empolgação de Cristina de E M. Barretti. Sem a sua insistência eu
teria desistido.
À Novo Século e sua equipe, por todo o apoio recebido e por
acreditarem em meu trabalho.
Por fim, agradeço a você leitor. É o meu primeiro livro e ainda não
conheço direito como funcionam os meandros desse terreno, mas
além de compartilhar experiências e pensamentos, com a compra
deste exemplar você estará ajudando a Ong para benefício próprio
"Faça um Birolini feliz"...
SUMÁRIO
Prefácio
Desculpas
Introdução fundamental
1 — O INÍCIO
A pré-história
O trote
O curso básico
Fugindo do curricular
Como examinar um paciente
Anamnese? O que é isso?
Treinando os cinco sentidos
Os exames complementares
A linguagem médica
2 — O INTERNATO
Preparo emocional
A prática
Como não fazer um parto
A hierarquia
A supervisão
Postura de médico
A empatia e o escudo protetor
O jogo de cintura
3 -A RESIDÊNCIA BÁSICA
A inspiração e a seleção
Serei um boneco-cabeção de Olinda?
O hipotálamo maluco e a cueca molhada
Furor operandi
Anestesia e anestesistas
"As" xerifes
5 — O DESMAME DO HOSPITAL
O peso da profissão
A vitrine da loja
Atestados
VIP
Caindo no mercado de trabalho e se espatifando...
Complicações
Erros
Algumas consequências negativas...
...e algumas consequências positivas
6 — ENCARANDO A REALIDADE
Novas faculdades...
...novas dificuldades
O consultório particular
Um mar de dúvidas
A medicina baseada em clarividências
A medicina virou um negócio da China!
7 — EPÍLOGO
O ensino
O fim do honro cirurgicus
PREFÁCIO
A pré-história
Caso você não tenha lido a introdução deste livro (seu preguiçoso!),
volte e leia. Pensando bem, a cada dez capítulos será recomendável relê-la.
Nunca fui uma daquelas pessoas que desde criança sonhava com uma
atividade específica, como boa parte dos médicos. Entrei na faculdade muito
jovem. Naquela época, desconhecia, por ignorância mesmo, 90% das
profissões. Das poucas que sabia, Medicina era a que me parecia a mais
segura em termos de emprego e também a de maior glamour. Não estava tão
em voga o erro médico. Parecia ser um bom ramo. Assim, aos 17 anos, e
admirando vários parentes doutores, resolvi prestar vestibular para Medicina.
Não deixei de realizar um daqueles populares testes de aptidão. Para
variar, o resultado foi muito vago e não me ajudou. De qualquer forma,
futuramente, não ficaria muito angustiado com isso. Sabe por quê?
Porque uma das grandes vantagens na Medicina é que, com o
amadurecimento, temos um leque enorme de escolhas pela frente. Conheço
poucas pessoas que abandonaram o curso para prestar outra faculdade.
Aqueles que entraram por pressão dos pais ou romantismo e que, na verdade,
queriam ser psicólogos, desde que tenham tido paciência, acabaram virando
psiquiatras.
Essa adaptação pode funcionar com uma série de outras áreas. Para
não dizer que sou preconceituoso ou que tenha ressentimentos, resolvi
reproduzir este quebra-cabeças, desenvolvido por um grupo de cientistas
anônimos.
Pegue uma caneta. Agora você mesmo poderá juntar as setinhas e
chegar às suas próprias conclusões.
Exemplo:
Eu queria ser administrador de empresas — então faça administração
hospitalar. Agora é com você... — Ajudante de pedreiro — Plantão de
pronto-socorro — Técnico em Informática — Informática médica —
Advogado — Medicina legal — Marcenaria — Ortopedia — Engenheiro —
Engenharia Genética — Procurador de pelo em ovo — Auditoria de
convênios
Além das vontades, aptidões e ambições, o próprio perfil do médico
acaba sendo responsável pela escolha de sua área.
Na verdade, não sei quem seria o ovo ou quem seria a galinha, mas
existe até uma tese de doutorado em Psicologia a esse respeito. Esta, de
forma muito resumida, aponta, por exemplo, o cirurgião como sendo muito
focado, objetivo e direto, ao passo que o clínico costuma ter uma visão mais
aberta, perdendo um pouco o foco1. Mas antes de discutir a evolução da
escolha por uma ou outa área, tinha de entrar em alguma faculdade e dei
sorte. Prestei o vestibular e fui aprovado.
Fim do curso básico. Os doentes ainda eram algo distante para mim.
Entretanto, antes que o curso médico o fizesse, o destino acabou antecipando
esse contato na forma de uma ingrata surpresa.
Um dos meus colegas, que ultimamente não se sentia bem, começou
a ter convulsões. Só não morreu porque o levaram ao hospital, onde foi
diagnosticada grave falência dos rins. Estava inchado, com pressão alta e
toxinas em concentrações elevadíssimas em seu sangue. Começou a fazer
diálise e pouco tempo depois, muito deprimido, submeteu-se a um
transplante renal. No primeiro dia de pós-operatório, fomos visitá-lo.
Tentando animá-lo, um amigo falou:
— Fique tranquilo. Ouvi casos de transplantados que viveram até dez
anos!
Que maravilha deve ter sido ouvir isso no terceiro ano da faculdade.
Mais quatro anos para se formar, oito com a especialização, e depois ele
morreria?
Quase linchamos o nosso colega pelo seu comentário descerebrado.
E descabido, pois o colega ainda vive normalmente.
Esse relato serve para mostrar como éramos totalmente crus. No
terceiro ano começaria o tão esperado contato com os pacientes. Entretanto,
como pude perceber, essa introdução é gradual, entre outros motivos, para a
própria segurança dos doentes.
Inicialmente, os pacientes apareciam apenas como reforço do tema
ensinado nas aulas teóricas. Por exemplo, logo depois de estudar
insuficiência hepática, íamos ao hospital conversar com algum enfermo que
estivesse sofrendo desse mal. É um dos melhores métodos para fixar o
aprendizado teórico. A prova disso é que nunca mais me esqueci dessas
aulinhas.
Quando começamos a ter aulas práticas, nós nos pavoneávamos para
cima e para baixo, vestidos de branco e ostentando os nossos estetoscópios
como se fossem coroas reais. Como se o simples fato de portar tais
instrumentos nos transformasse em autoridades ou em alunos superiores aos
demais. Nós os carregávamos até quando íamos assistir às aulas de fraturas,
em que os ortopedistas não fazem muita questão de conhecer a sua serventia.
Certa vez, estávamos no estágio de cirurgia plástica e reparadora e
fomos apresentados a uma moça que se queimara no fogão enquanto
cozinhava. Ela havia convulsionado devido à epilepsia, da qual se tratava
sem regularidade, e caíra desmaiada em cima do fogão aceso. Sua mama,
gravemente queimada, necessitou de enxertia: uma técnica utilizada no
tratamento de queimaduras profundas que retira uma camada fina de pele
saudável para cobrir a área atingida. Nesse caso, após a cicatrização, ficou
sem o mamilo.
Sentamos ao redor da paciente formando uma roda. O professor
então nos perguntou como poderíamos reconstituir o mamilo.
Todos pararam para pensar, talvez tão ansiosos quanto a paciente por
alguma resposta genial. De repente, um dos "moços-de-branco-ede-
estetoscópio" arriscou:
— Podemos retirar seu clitóris e implantá-lo na mama! Na mesma
hora a paciente se retraiu, cobriu com as mãos a sua região pudenda e
começou a gritar:
— Comigo não, comigo não. Prefiro ficar sem mamilo! Socorro! O
professor precisou acalmá-la, explicando qual seria a técnica mais adequada
em seu caso e lembrando que aquilo não era uma junta médica, e sim uma
aula prática para alunos de Medicina...
Apesar desses memoráveis encontros, foi somente no curso de
propedêutica que começamos a aprender como colher a história clínica e
realizar o exame físico. Aí, sim, podíamos sentir o verdadeiro gostinho de
"ser médicos" e, ainda, sem o peso da responsabilidade.
No início, como em qualquer outro tipo de aprendizado,
encontrávamos muita dificuldade para realizar essas atividades.
Precisávamos transparecer normalidade aos pacientes enquanto
executávamos tais passos, mas parecíamos máquinas sem óleo tentando
funcionar aos trancos e barrancos. E o pior de tudo é que muitas vezes
perdíamos até o propósito do que estávamos realizando. Comportamento
totalmente artificial!
Quando uma equipe termina o período de plantão deve relatar, para a
equipe que a substitui, todos os casos e as condutas tomadas. Isso é o que
chamamos de passagem de plantão. Ao assistir a alguns médicos passando
rotineiramente o plantão, tinha a impressão de que nunca conseguiria fazer
aquilo. Como eles decoravam e descreviam várias histórias e exames físicos
de múltiplos pacientes e, ainda, conseguiam raciocinar sobre as
possibilidades diagnósticas ao mesmo tempo? E tudo a toque de caixa!
Logo ao primeiro dado alterado da história ou do exame físico de
algum caso discutido, já me perdia. Gastava um tempo enorme para
raciocinar nas hipóteses diagnósticas, enquanto eles já estavam passando
outros dados que abriam portas a novos diagnósticos!
Claro que com a prática tudo passa a ser automático e simultâneo. O
primeiro passo a dar e, sem dúvida, o mais importante, era a anamnese.
Anamnese? O que é isso?
1. Queixa e duração
Aqui o médico, de forma rápida e sucinta, identifica qual é o
problema que aflige o doente, buscando focar a condução do interrogatório.
A duração ajuda a determinar a urgência e a gravidade do caso. É um
poderoso instrumento na triagem médica.
Em grandes hospitais públicos, a procura por atendimento pode ser
enorme. Para separar urgências de não urgências e orientar o
encaminhamento e tratamento de todos os que procuram o hospital, existe o
médico da triagem. Este precisa ser experiente para, de forma rápida e
segura, separar os pacientes sem prejudicá-los. Ele não pode bloquear todos
os atendimentos, pois certamente estará mandando embora urgências mal
"triadas". Por outro lado, não pode deixar qualquer caso crônico entrar, o que
atrasaria ainda mais o pronto atendimento das urgências. Na maioria das
vezes, essa divisão é fácil, graças a duas simples perguntas: "Qual é o seu
problema e há quanto tempo?".
— Dor nas costas desde ontem!
A conduta será o atendimento imediato com o ortopedista do pronto-
socorro.
— Dor nas costas há mais de dez anos! A conduta será o
encaminhamento ao ortopedista do posto de saúde.
4. Antecedentes familiares
Uma queixa de alteração do hábito intestinal me deixará mais
preocupado em relação a um paciente que possui vários familiares falecidos
por câncer do intestino do que a um aluno morando numa república, cuja
dieta costuma ser macarrão com pizza e gelatina.
É curioso notar que parte das pessoas não percebe existir um sentido
lógico na investigação médica. Ele existe e é fundamental.
Após realizar a anamnese, o médico faz suas hipóteses diagnósticas e
busca um maior detalhamento pelo exame físico. O bom profissional
costuma fazer várias suposições, embora deva se focar nas mais prováveis
ou emergenciais. Caso o diagnóstico ainda não seja confirmado, entrarão em
cena os exames complementares. O objetivo deles será confirmar ou afastar
as hipóteses.
Entendo que, com a desmoralização da profissão em razão de
médicos incompetentes e negligentes, pelos baixos salários, pela
segmentação do paciente em especialidades e pelo glamour com que a
moderna tecnologia é anunciada na mídia, os pacientes acreditem que os
exames possam ser mais importantes do que a anamnese. Isso não é verdade.
Os exames são fundamentais, mas não deixam de ser
complementares. Eles complementam a história clínica e o exame físico,
jamais podendo substituí-los. Muitas vezes, após vários exames
sofisticadíssimos que não levaram a nenhum diagnóstico, resolvemos
conversar novamente com o doente para ver se captamos alguma dica do que
está acontecendo!
Por isso, para irritar qualquer médico, basta dizer: "Não precisamos
nem conversar. Vim aqui porque quero um "raios X'!".
Com tal atitude, o paciente anula toda essa parte de conhecimento e
raciocínio e nos transforma instantaneamente em escriturários solicitadores
de exames. Ao mesmo tempo, nos força a funcionar de um modo a que não
estamos habituados, o que diminui nossa eficácia e segurança. Apesar disso,
continuaremos sendo responsáveis pelos nossos atos, o que nos trará certo
desconforto.
Não demorou muito para que eu passasse por algo parecido... Após
cumprimentar o paciente, iniciei o interrogatório. Tudo bem que no início
éramos meio prolixos, mas ele logo me interrompeu, dizendo que estava
com tosse. Não queria ficar no lero-lero, precisava de raios X do peito e
pronto! Essa é uma típica postura desestimulante para qualquer estudante
ansioso por realizar exames físicos, raciocinar e chegar a diagnósticos.
Nesse caso, o residente também ficou incomodado com a abordagem
do paciente, mas acolheu a sua ordem. Achei estranho; nem conversar ou
nem examinar o paciente? Apenas pediu o exame.
Existem várias formas de se realizar uma simples radiografia de
tórax. Cada uma delas tem detalhes técnicos que diferem de acordo com o
objetivo do examinador.
Se a indicação da radiografia for por causa de uma pneumonia,
deverá ser realizada nas incidências ântero-posterior e perfil; para descartar
um pneumotórax, o melhor momento será durante a expiração; para analisar
uma fratura no esterno, a carga de radiação precisa ser mais intensa. Que tipo
de radiografia o médico solicitaria, uma vez que desconhecia o seu objetivo?
Será que a radiografia era mesmo necessária ou apenas corresponderia a uma
amostra grátis de radiação?
Fiquei angustiado. E se o paciente estivesse infartando? Não
deveríamos tê-lo alertado sobre a necessidade de um eletrocardiograma? Ele
poderia morrer no setor de RX esperando um exame inútil por nossa causa!
Quando a chapa ficou pronta, o residente lhe entregou educadamente
o envelope, virou as costas e saiu do recinto. O senhor ficou meio perdido e
perguntou pelo resultado. Foi a deixa para o R-3 perguntar ao paciente se ele
desejava uma radiografia ou uma avaliação. Afinal, ele não saberia
interpretá-la sem antes examiná-lo. Então, realizou uma consulta decente (na
visão do médico) e cheia de lero-lero (na visão do paciente). Tratava-se
apenas de um resfriado, sem a menor necessidade de radiografia...
Os exames complementares são uma das maravilhas da medicina
moderna. Hoje, por exemplo, é quase uma piada fazer diagnóstico de
inflamação da vesícula com o ultrassom (mas não podemos nos esquecer de
que, às vezes, indicamos cirurgia a pacientes com diagnóstico clínico de
colecistite, mesmo com o ultrassom normal. Afinal, nenhum exame alcançou
a acurácia diagnóstica das bolas de cristal).
A ultrassonografia é um recurso que não existia em nenhum hospital
há meros vinte anos. E, quando existia, até o radiologista demorava a
entender o que via, dada a baixa qualidade da imagem. Na atualidade, as
imagens são fantásticas, apesar de ainda necessitarmos daquele gel
gosmento.
Não pedimos bexiga cheia nem passamos gel à toa. O objetivo é
facilitar o exame, uma vez que o ultrassom não atravessa nem a fina lâmina
de ar entre o aparelho e o seu abdome. Caso você ainda tivesse dúvidas, isso,
na minha opinião, provaria que a saga de J. J. Benitez "Operação Cavalo de
Troia" é uma ficção. Nela, o herói realiza uma ultrassonografia à distância de
Jesus, sem lambuzá-lo, enquanto ele é crucificado.
Com a evolução tecnológica, os exames ficaram tão sensíveis e
específicos que algumas vezes tendem a atrofiar nosso cérebro. Apesar de
não ser a regra, em várias circunstâncias o médico pode ser tentado a se
fazer o seguinte questionamento: "Pára que executar uma minuciosa
propedêutica neurológica, chegando ao diagnóstico em uma hora, se posso
solicitar uma tomografia sem queimar meus neurônios?".
Realmente é uma tentação. Mas quem segue esse raciocínio deixará
de promover uma interação adequada entre o quadro clínico e os exames
complementares; uma hora, fatalmente, cairá do cavalo...
Um rapaz deu entrada num hospital com queixas neurológicas
incomuns, iniciadas havia poucos minutos. O neurologista o examinou
superficialmente e solicitou uma série de exames. Após tomografia, liquor e
ressonância normais, ele recebeu alta com a suspeita de uma manifestação de
fundo emocional.
O paciente, insatisfeito, pois ainda apresentava os sintomas, procurou
outro hospital. Dessa vez, por meio de uma boa anamnese e um exame físico
detalhado, o neurologista chegou ao diagnóstico.
O paciente estava intrigado, pois seus sintomas começaram
justamente após comemorar um gol do seu time. Nessa hora, ele estava
sentado na arquibancada quando, subitamente, levantou-se estendendo os
braços e a cabeça para trás. Ao ouvir o relato desse movimento, o
neurologista logo suspeitou de uma lesão arterial (rompimento do
revestimento interno da artéria obstruindo parcialmente o seu próprio fluxo),
que foi posteriormente confirmada e tratada por arteriografia. Nesse exame,
o médico estuda os vasos injetando um líquido que se molda às suas paredes
e é visível aos raios X. O procedimento é diagnóstico e pode ser terapêutico
(um exemplo famoso seria o cateterismo cardíaco). Não existe o menor
sentido em se pedir rotineiramente esse exame, mas ele foi fundamental para
confirmar a suspeita clínica nesse caso. Talvez, com uma história adequada
desde o início, dinheiro, tempo e adrenalina tivessem sido economizados.
Existem vários motivos para pedirmos exames. Mas se eles
acrescentam alguma informação, então por que não pedi-los sempre?
Por algumas razões:
Preparo emocional
"O importante é
termos a capacidade
de sacrificar aquilo
que somos para ser o
que podemos ser."
Charles Dubois
A inspiração e a seleção
"Anestesista é igual a
pernilongo. Está
sempre picando a
veia ou enchendo o
saco de alguém."
Residente de cirurgia em furor operandi.
LOUIS REYBAUD
O curso básico de cirurgia geral (Ri e R2) havia terminado. Fiel aos
meus ideais, optei por também me especializar em cirurgia geral.
Mais uma prova abriu as portas para o R3 e o R4, cujos estágios
seriam concentrados na área que eu escolhera. No fim das contas, acabaram
sendo mais três anos, o último deles exclusivamente em emergências
cirúrgicas.
Durante a residência, o nosso dia a dia é muito rico e intenso;
acabamos entrando em contato com diversas situações num curtissimo
espaço de tempo. A experiência cirúrgica do R2 para o R4 dá um salto
gigantesco. Muito maior que do R15 para R20, caso existissem.
A transição do R2 para o R3 pode ser uma experiência enigmática.
Quando alguém termina o R2 para dias depois começar o R3, não vive
nenhum mistério. Não foi o meu caso. Eu vivi o obscuro dia do raio.
Esse dia ocorre quando, trabalhando sem pausa e sob o mesmo teto, à
meia-noite, uma força sobrenatural instantaneamente nos transforma de
ignorantes e inexperientes residentes do segundo ano em experientes e
sábios residentes do terceiro ano. Chamamos essa força de "o raio". Como
poderia esquecer a minha própria metamorfose?
Eu era um R2 ignorante e inexperiente dando o último plantão do ano
no PS de cirurgia. Por falta de sorte, fui aprender a fazer uma colostomia
apenas nesse último plantão. Todas as colostomias tinham sido realizadas
pelos outros da minha panela. O R3, tendo feito várias, me orientou sem
maiores dificuldades.
Após as doze badaladas da meia-noite, acabou o meu último plantão
como R2 e, no mesmo estágio, imediatamente, começou o meu primeiro
como R3: "Shazam!".
O raio caiu e logo notei que meu conhecimento tinha se multiplicado.
Havia me tornado experiente e sábio. Subitamente os "R menos" passaram a
me temer e pedir orientações, que lhes fornecia graças aos meus grandes
conhecimentos adquiridos do cosmos.
Nesse dia, por coincidência, atendi outro paciente que precisaria de
uma colostomia. Três horas após aprender a tal cirurgia, ensinei o novo R2 a
fazer a sua primeira. Evidentemente não foi difícil, graças à "grande"
experiência que eu já possuía...
É exatamente assim que os residentes se sentiam quando subiam de
"R menos" para "R mais" (R3, R4), o que, no começo dos estágios, dava
dores de cabeça para os assistentes. Afinal, a coragem muitas vezes provém
da ignorância. Intrepidez aliada a inexperiência costuma resultar em
catástrofe. Se esse médico não for supervisionado, poderá transformar-se
num rei Midas às avessas. Como brincávamos, um médico que onde tocasse
brotaria pus...
É claro que a história do raio se trata de uma fantasia, mas grande
parte das pessoas é fantasiosa. Você pode não acreditar, mas se der para
evitar passar embaixo de uma escada, aposto que evita.
Talvez a sorte e o azar realmente existam. Basta lembrar o senhor
que escapou de um tiro no coração graças à caneta do seu bolso ou, no
sentido oposto, da história de Mr. Ray Sullivan, um guarda-florestal dos
Estados Unidos que, sem virar R3 ou R4, foi atingido por raio sete vezes!
Quando alguém nasce sem esôfago, possui uma agenesia de esôfago.
Pois bem, este moço devia ter agenesia de anjo da guarda.
Mas, diferentemente dos pacientes, o médico, de forma geral, é
cético. Ele precisa acreditar no seu tratamento e, para isso, deve ser
científico. Tenta pensar sempre com lógica. É necessário confiar na lógica,
caso contrário a medicina deixa de ser racional para virar um jogo de
adivinhação. Sorte ou azar.
Se com todo o rigor técnico, os seus resultados dependessem
exclusivamente da boa ou da má sorte ou de uma força sobrenatural
incontrolável, os médicos ficariam loucos, além de prejudicar seus pacientes.
Se eu acreditasse que o sucesso cirúrgico depende da cor das minhas
meias, fatalmente ficaria inseguro em atender a alguma emergência, se
estivesse com meias sem a tonalidade adequada. A insegurança piora nosso
desempenho e é justamente dele que dependem nossos pacientes. O bom
cirurgião precisa ser ágil no raciocínio e seguro do que faz. Dizemos que ele
até pode tomar uma decisão errada, desde que depois a corrija. O que não
pode é ficar em dúvida "galinhando", parado, enquanto se deterioram as
condições do paciente.
Sabemos que a medicina não é uma ciência exata. Por melhor que
sejam aplicados os pontos, o resultado da costura dependerá de um número
imenso de fatores, muitos deles imprevisíveis. Mas seria muito complicado
unir segmentos do intestino com uma sutura malfeita e ficar pedindo ao
Senhor que interceda num milagre multiplicador dos fibroblastos (células
responsáveis pela cicatrização). Independentemente de existir uma crença —
ou da ausência dela -, os cirurgiões preferem costurar direito e contar com
uma ajuda lá de cima, em vez de, simplesmente, rezar pela boa cicatrização.
Seria uma imprudência, da mesma forma que dificilmente o mais ardoroso
fiel pularia de uma ponte para provar que Deus o salvaria. Por essas e outras,
não conheço nenhum médico muito supersticioso.
Muitas vezes vemos um jogador dando uma ajoelhadinha para afagar
a grama, fazendo o sinal da cruz e batendo três vezes na madeira do banco
de reservas para, finalmente, entrar em campo. Não é comum assistir de um
cirurgião rituais similares, a não ser, quem sabe, numa pelada de futebol. De
qualquer modo, existem algumas superstições que mesmo os médicos
temem. Temos muito medo de falar, por exemplo, "o plantão está tranquilo".
A consequência não costuma demorar.
Outras são clássicas e irei destrinchá-las um pouco mais. If anything
can go wrong, it will!
É impressionante como se aplica a lei de Murphy no meio médico.
Se algo pode dar errado, vai dar errado!
O capitão Edward Murphy, ao testar os efeitos da desaceleração no
ser humano (ele era a cobaia), proferiu a célebre frase, posteriormente
intitulada como a primeira lei de Murphy. Todos nós tememos essa lei; há
até estudos a seu respeito, como no pitoresco artigo intitulado Tumbling
toast, Murphy's law and the fundamental constants.4
Quem nunca foi acionado para a única emergência do dia na hora dos
pênaltis? Por que a anatomia resolve ser anômala nas cirurgias
demonstrativas?
Mais do que medo, essa lei criou nos médicos o saudável hábito de
checar tudo antes de executar qualquer procedimento. Se algo pode dar
errado, conseguirei prevenir? Desde que possível, mesmo nas situações de
emergências, tentamos checar tudo. Será necessário intubar a traqueia do
doente? Então antes devemos confirmar se a cânula funciona, se a lâmpada
do laringoscópio não está queimada e assim por diante.
"Os males vêm aos pares."
É a famosa lei de Velpeau. Já passei por situações em que ela se
aplicou muito bem.
Fui chamado para avaliar duas senhoras octogenárias em coma na
UTI. As duas estavam com uma infecção grave de provável origem
abdominal. Precisei operar as duas no mesmo dia, devido ao mesmo
diagnóstico: inflamação da vesícula com perfuração e bile espalhada por
todo o abdome!
"A gravidade do
ferimento é
inversamente
proporcional à
maldade da vítima."
Jim
Sendo ele médico, não podia deixar de sugerir algo. Assim, pediu
para que não fosse administrado contraste na veia durante a tomografia.
Sendo portador de pressão alta e diabetes, ele estava com medo de vir a
sofrer complicações renais em decorrência da sua toxicidade. Apesar de
acreditarmos que naquela situação os benefícios suplantariam os riscos, seu
pensamento era lógico e acabamos cedendo contra a nossa vontade. Por azar,
justo no caso dele, o diagnóstico só teria sido possível com o uso do
contraste. Sem este, o resultado foi normal e não nos ajudou.
Como os sintomas persistiram, sugerimos uma laparoscopia
exploradora. Introduziríamos, sob anestesia, uma microcâmera em seu
umbigo para enxergar por dentro do abdome. Assim foi feito. Encontramos
um segmento intestinal infartado próximo ao apêndice. Abordamos a doença
por uma pequena incisão orientada pela câmera. Retiramos o pedaço
comprometido e costuramos os dois cotos remanescentes. Por mais que
pesquisássemos, não encontramos nenhuma explicação para o infarto. A
causa da doença permaneceu misteriosa.
Ele evoluiu no pós-operatório com um rompimento da costura na
parede abdominal e teve que ser abordado novamente. Sofreu uma série de
complicações, mas sobreviveu.
Esta é apenas uma das histórias que envolvem o médico na condição
de paciente (ou como brincamos, com fator CRM positivo), mas ilustra bem
as suas características.
Para começar, ele costuma ser um tigre. Essa é a nossa gíria para
imprudente, inconsequente e desleixado com o próprio tratamento.
Nos CRM positivos, parece que a lei das probabilidades se altera. Os
sintomas típicos de uma apendicite num médico, provavelmente,
corresponderão a um infarto intestinal com manifestações atípicas.
Como se não bastasse, o médico é um dos pacientes mais difíceis de
lidar. Antes de ser doutor, é pessoa, marido ou filho. Dessa forma, é natural
que em situações de estresse por doença própria ou de seus familiares aja
como marido ou filho e não como profissional. O maior problema ocorre
quando ele não se dá conta dessa mudança.
Passa a funcionar emocionalmente, mas, inteligente que é,
racionaliza seus sentimentos. Muitas vezes cita dados técnicos de trabalhos
científicos para explicar e nos induzir a concordar com suas condutas e
diagnóstico. Mas o raciocínio muitas vezes está distorcido e ele nil percebe.
Sob efeito desse raciocínio deformado e camuflado, tornam-se
frequentes as suas solicitações por mudanças nas condutas ou por exames
inúteis, apenas por "desencargo de consciência". Como tem um
conhecimento muito maior do que o leigo sobre eventuais complicações ou
confusões diagnósticas, fica fosforilando sobre milhares de consequências
negativas esdrúxulas que poderiam ocorrer na condução do seu tratamento.
Prolonga, assim, o caminho da investigação e do tratamento, pois exames
desnecessários são, na maioria das vezes, desnecessários!
Os pacientes leigos têm uma grande vantagem em relação aos
pacientes médicos: ainda preferem nos ver como um supermédico: infalível,
sábio, adivinho.
Essa ignorância (no bom sentido) é muito tranquilizadora, mas o
colega sabe que isso não é verdade. O seu médico pode errar. O tratamento
pode complicar. Pode vir a morrer.
Tudo isso aumenta a sua angústia, que passa a ser multiplicada
quando ele se recorda de que, para piorar, também acredita na superstição
dos doentes CRM+.
É claro que se trata de uma caricatura, mas todos nós vivemos isso
principalmente do lado do médico e não do paciente.
Quando tomamos ciência da existência de alguma doença, passamos
a temê-la. Seja após o conhecimento em alguma aula ou descobrindo algum
conhecido que a desenvolveu. Somos humanos, portanto isso é natural. O
problema ocorre quando passamos a senti-la. Sensações normais passam a
ser, por nós próprios, distorcidas e interpretadas como sintomas "leves" das
doenças que tememos. Mesmo eu, durante a minha formação, várias vezes
somatizei algum sintoma que os professores explicavam. Lembro-me de ter
achado a minha urina muito espumosa após as aulas de fisiologia renal. Seria
uma perda de proteínas anormal na urina? E aquele desconforto no tórax
depois da aula de tumores da parede torácica? É claro que não eram nada!
Esse fenômeno é facilmente verificável quando alguma
personalidade famosa fica doente.
Quando um cantor sertanejo teve uma dor torácica e descobriu um
tumor de mediastino, ou quando uma artista de televisão declarou seu câncer
no ânus, houve uma enxurrada em nossos consultórios. Todos os pacientes
estavam preocupados com "sintomas iniciais" que teriam sentido e que,
"certamente", relacionavam-se com tais doenças. Queriam fazer, de qualquer
forma, algum exame para atestar que não possuíam essas doenças.
Os médicos também não escapam desse fenômeno que ocorre com os
leigos. Num momento qualquer e a qualquer momento, também poderemos
ficar doentes e, apesar de ninguém gostar disso, pelo menos tem o seu lado
bom.
Sentir uma ardência para urinar é diferente de imaginar uma ardência
para urinar. A doença na própria pele é uma das formas mais didáticas de se
aprender. Um professor sempre dizia que os alunos, ao se formarem, deviam
ter uma de suas pernas quebradas para saberem o que é a dor (não era o Dr.
Mengele quem dizia isso).
Graças a Deus, não adquiri amplos conhecimentos advindos de
experiências em ficar doente, mas nunca me esquecerei de quando me
autodiagnostiquei, equivocadamente, um tumor de testículo.
Após várias palpadas, confirmei e reconfirmei a existência do
tumorzinho. Como médico, sabia que, independentemente do diagnóstico,
nada mudaria nas oito horas seguintes. Poderia conversar pela manhã com
um amigo urologista e fui dormir.
Mas quem disse que eu consegui adormecer? Após muito rolar na
cama, prá lá e pra cá, peguei no sono. Ao acordar, a primeira coisa que fiz
foi palpar o testículo; é claro que o nódulo ainda estava lá.
Encontrei-me com o urologista. Após um breve questionário e exame
físico direcionados, disse tratar-se de um cisto. Um pouco mais endurecido
que o normal, mas um simples e inofensivo cisto.
Naquele instante, ao retirar o peso das minhas costas, meu amigo não
parecia o meu amigo e, sim, uma espécie de entidade divina, superior. Estava
mais alto e brilhante do que o normal. Agradeci pela gentileza e também
pelo diagnóstico, como se ele pudesse ter escolhido a minha patologia, e fui
embora. Com esse acontecimento, pude entender um pouco melhor algumas
visões do paciente.
Seja exagerando ou minimizando os nossos sintomas, algumas vezes
fazemos autodiagnósticos. Mas, pior do que isso, é não perceber quando
estamos doentes. Uma de nossas características mentais mais importantes é a
autocrítica. Quando a perdemos, perdemos o discernimento.
O microcirurgião, por exemplo, não poderá se dar ao luxo de
continuar reimplantando dedos quando o seu mal de Parkinson se tornar
incontrolável. Se ele não perceber isso, quem irá alertá-lo?
Eu frequentava uma reunião do departamento de cirurgia cujo
objetivo era discutir os casos clínicos que não haviam evoluído
satisfatoriamente. Conhecia todos os médicos participantes, menos um
novato que começou a acompanhar nossas conferências.
Embora aparentasse ter uns 50 anos, possuía uma aparência frágil em
razão de sua bengalinha que sempre o acompanhava. Era muito educado,
mas extremamente reservado. Dificilmente conversava e nunca se
manifestou publicamente, seja para emitir alguma dúvida, alguma opinião ou
para questionar alguma conduta. Assíduo, sentava toda reunião sozinho e no
mesmo local. Eu sabia apenas se tratar de um cirurgião plástico com
louvável interesse em cirurgia de emergência.
Era final de dezembro quando o professor do departamento anunciou,
ao término da reunião, uma festa de encerramento das atividades anuais.
Todos estavam convidados. Agradeceu ao corpo clínico e deu o endereço do
local da comemoração, que seria na casa de um dos médicos do serviço.
Fomos à festa. Lá estava o misterioso cirurgião plástico, que passaria
despercebido se não fosse por um interessante acontecimento.
Como a casa era muito grande, havia um canil com dois rotweillers
que, por serem muito ferozes, ficariam presos durante o encontro. Um
grupinho observava o comportamento dos cães quando alguém comentou
sobre sua agressividade. Nesse momento, o senhor da bengalinha se
manifestou:
— São apenas animais. Basta saber lidar com eles. Deixe-me entrar
no canil e mostrarei como acalmá-los.
Todos se entreolharam incrédulos. Conhecendo suas feras, o dono da
festa não permitiu a arriscada façanha.
Cinco dias depois fomos novamente a uma reunião, quando notamos
que o cirurgião plástico não estava presente. Começamos a nos perguntar
sobre o motivo da sua inesperada ausência e um dos colegas cochichou:
— Vocês não leram os jornais, não assistiram ao noticiário? Ele está
preso!
— Preso? — É! Dizem que matou e estripou uma de suas pacientes
no próprio consultório!
Como aquela pessoa de aparência tão inocente, que sentava todos os
dias ao nosso lado naquele fórum de mestres e doutores, seria capaz de
tamanha barbaridade?
Ficamos boquiabertos até que um dos médicos, sempre muito
espirituoso, deu uma bronca no colega que havia sido o anfitrião da festa:
-Tá vendo? Você devia tê-lo deixado entrar no canil. Teria evitado
esse homicídio!
Ao que o outro respondeu: -Você está louco?! Ele também teria
matado os meus cachorrinhos...
Pronto-socorro
"O pronto-socorro é
uma organização
desorganizada que
desorganiza qualquer
organização."
5TV Globo/MG.
Cliente habitual: o motobói
"Motobói — espécie
de contínuo (de
banco, empresa
comercial, farmácia,
pizzaria etc.) que faz
entregas rápidas de
motocicleta."
Houniss
ALBERT EINSTEIN
O peso da profissão
"Podemos escolher o
que semear, mas
somos obrigados a
colher o que
plantamos."
DITADO CHINÊS
AARON BURNS
WIKIPÉDIA
Outra coisa complicada era enfrentar um indivíduo que deseja
resolver os seus problemas pessoais com atestados. Não é raro ouvirmos a
solicitação de um "atestado para o dia todo", quando essa pessoa apenas
passou pelo médico das oito às nove da manhã e para trazer exames. Nesses
casos, a justificativa costuma ser assim: "Doutor, já que eu viria aqui,
aproveitarei para ir ao banco, à casa da minha prima e ao cartório. Gostaria
que o senhor justificasse o meu dia inteiro".
Se nos recusamos a dar esse atestado, ainda passamos por antipáticos
e injustos!
Como em qualquer lugar, os atestados para gripe, diarreia e outras
afecções corriqueiras são comuns. Entretanto, esse número se multiplicava
drasticamente em circunstâncias suspeitas, como na véspera de Natal e após
o Ano-Novo. Por que as pessoas ficavam mais doentes nessas épocas?
Lembro-me do ortopedista que atendeu um paciente queixando-se de
dor no tornozelo. Examinou e solicitou uma radiografia. Paradoxalmente, o
moço não queria se submeter aos raios X (normalmente eles querem, mesmo
que não sejam necessários). Por fim, o indivíduo pediu um atestado. O
médico afastou qualquer patologia mais séria, passou algumas orientações e
deu o atestado. O paciente agradeceu e saiu mancando da sala. Ao se
despedir, o ortopedista notou que a esposa e as filhas do atendido o
aguardavam ansiosamente na sala de espera. Até aqui não haveria nenhuma
novidade, se não fosse pelo fato de ser véspera da Páscoa e as crianças
estarem em trajes de banho e segurando baldinhos para brincar na areia.
Curioso, ele resolveu espiar aquela família indo embora. Não é que o
pai parou de mancar ao se aproximar de seu carro! Teria ele ganho um fim
de semana na praia em troca de alguns minutos de embromação, uma pitada
de radiação e um atestado médico?
Para viajar, às vezes as pessoas fazem coisas bem piores. Uma delas
era conhecida no pronto-socorro como "síndrome da desova do velhinho
enrolado no cobertor". Isso se caracterizava pelo abandono de um idoso,
com demência, no serviço de emergência, na véspera do feriado, alegando
sintomas inespecíficos: "Ele está mais apático do que o habitual e teve suor
frio ontem".
O médico examina, não acha nada (pois não há nada) e resolve
interná-lo para exames. Quando se toca, a família foi embora e só voltará no
domingo à noite para recolhê-lo...
No caso ortopédico era evidente a simulação. Isso muitas vezes não é
tão fácil de se descobrir, pois precisamos confiar no doente. Os sintomas são
subjetivos e, assim sendo, podemos ter muita dificuldade para definir a
veracidade de algumas queixas. Se a pessoa não se comunica, como no caso
do velhinho, fica ainda mais difícil. Como posso avaliar uma piora de
apatia?
Além disso, não é fácil deixar de medicar alguém que me diz estar
sofrendo de dor. Ainda não inventaram um aparelho medidor de sofrimento!
Sabemos que a dor é um sintoma difícil de se avaliar. Que o mesmo
procedimento cirúrgico pode causá-la com maior intensidade em alguns
pacientes do que em outros. Que a sensibilidade individual é variável e
precisa ser respeitada (uma jovem adolescente costuma reclamar mais de
uma martelada no dedo do que um ancião japonês).
Mas, para ter um atestado, alguns indivíduos inventavam ou
amplificavam os seus sintomas mesmo que os problemas fossem muito
tênues. Essa desonestidade nos irritava, pois, de modo geral, podemos
perceber quando alguém está com muita dor ou gravemente doente. A
pessoa não fala, fica lívida e sudoreica, com expressão de desespero. Não
quer conversa nem explicação, quer solução. Não ordena, implora.
É bem diferente de quando atendemos alguém que nos faz um
entediante relato de uma dor insuportável, mas que não quer nenhuma
medicação ou tratamento, apenas o atestado.
Depois de ver várias pneumonias fica mais fácil reconhecê-las, e isso
vale para a identificação dos embromadores em busca de atestados falsos. O
reconhecimento deles começava assim que entravam no consultório.
As pessoas que vinham ao hospital para pedir um atestado duvidoso
apresentavam um comportamento diferente das que realmente precisavam
dele. Agiam de forma singular e padronizada.
A maioria dos pacientes, quando chamados, simplesmente entrava na
sala e se sentava. O cumprimento se restringia a um bom-dia. Os que
tentariam forjar um atestado entravam na sala com a mão estendida para nos
cumprimentar, sendo desproporcionalmente simpáticos. Tentavam criar um
vínculo por meio desse comportamento. Nessa hora já acendia a minha
luzinha de alerta, que brilhava ainda mais quando os indivíduos falavam:
"Doutor, eu vou ser sincero com o senhor."
Relatavam uma história esquisita cujos dados, ao destrincharmos os
seus detalhes, não batiam. Indagações sobre sintomas associados eram
prontamente confirmadas, mesmo que fossem apenas armadilhas
arquitetadas por nós. O exame físico invariavelmente era normal ou
escancaradamente teatral e recusavam-se a realizar exames. Ao iniciar a
explicação do tratamento que seria adotado, percebia que os pacientes não
prestavam muita atenção ao que eu dizia e notava a angústia deles. Eles
queriam me dizer algo, mas eu não lhes dava oportunidade propositalmente.
Ao lhes entregar a receita, eles nem olhavam direito e já iam me
pedindo um atestado para dois ou três dias...
O limite entre o verídico e o inverídico não é fácil de ser estabelecido
e, na dúvida, o médico ao menos fingirá acreditar no que o paciente lhe diz.
Algumas histórias tristes não são inventadas e realmente ficamos muito
comovidos com elas. Mas nem por isso podemos "roubar um banco" ou
"fornecer atestados falsos" para ajudá-los. Os pacientes precisam entender
que isso é ilegal, além de, certamente, estar prejudicando alguém. Gostaria
de ilustrar os seus possíveis malefícios com duas breves histórias.
Um senhor contou ao médico que a sua madrinha falecera em Minas
Gerais e queria vê-la antes do sepultamento. Não poderia faltar ao emprego,
pois seu patrão era muito rigoroso e tinha medo de ser despedido. Confessou
ao médico que não estava doente e, explicando a sua triste história, pediu um
"atestado de três dias". Assim poderia se despedir da falecida. O plantonista
ficou sensibilizado e forneceu o atestado.
Imediatamente, esse mesmo senhor dirigiu-se ao diretor clínico do
hospital e contou o ocorrido exigindo uma punição. Ele não fez isso apenas
para sacanear o médico. Na verdade, esse senhor era dono de uma pequena
fábrica que, além de estar indo mal das pernas, tinha funcionários que, a toda
hora, apareciam com atestados do mesmo doutor. Assim, ficou demonstrado
que aquela tradicional expressão "não custa nada" custava o rendimento da
fábrica e custou o emprego desse colega...
O porteiro do prédio notou que o seu Nicolau não descia à portaria
havia dois dias. Apesar de ser bem idoso e de morar sozinho, ele não era o
tipo de velhinho que se enclausurava em algum canto. Raramente deixava de
aparecer na portaria para pegar correspondências, dar uma caminhada e bater
um papo com o zelador.
Estranhando tal atitude, o porteiro interfonou ao seu apartamento,
mas não obteve resposta. Tentou mais tarde, também sem sucesso.
Preocupado, telefonou para o filho do seu Nicolau e lhe explicou o ocorrido.
Pouco tempo depois o filho, Nelson, chegou ao prédio e tocou a
campainha do apartamento que, novamente, não foi atendida. Eles
chamaram um chaveiro e abriram a porta.
Ao entrarem no pequeno apartamento, puderam ver o seu Nicolau
caído de bruços no chão da cozinha. Estava pálido e imóvel. Nelson tentou
chamá-lo chacoalhando o tronco e gritando pelo seu nome, mas o velho não
parecia esboçar nenhum sinal de vida. Triste e aturdido, o filho tentou pensar
no que fazer.
Todo mundo um dia morrerá, mas nunca estamos preparados quando
isso acontece. Ele não sabia se ligava para o instituto médico legal, serviço
de verificação de óbitos ou resgate. Telefonou para o serviço funerário, que
orientou não poder fazer nada sem um atestado de óbito.
Como conseguiria um atestado de óbito? Teria de ir ao Instituto
Médico Legal (IML)? Ao Serviço de Verificação de Óbitos (SVO)?
Nelson resolveu ligar para um médico que era seu amigo desde os
tempos de ginásio. Explicou o ocorrido e perguntou se ele não poderia emitir
um atestado de óbito para o seu pai. O médico conhecia muito bem Nelson e
sua relação com o seu Nicolau. Ele jamais duvidaria de seu amigo ou
suspeitaria de assassinato, ainda mais em se tratando daquele velhinho
simpático e educado, com carinhosos e cativantes olhos azuis.
O médico sabia que, naquelas circunstâncias, o correto seria enviá-lo
ao IML. Realizariam uma necropsia para determinar a causa mortis,
afastando morte violenta. Ponderando sobre a situação do amigo, ele disse
que não havia necessidade em perder tempo levando o corpo a lugar algum.
Já houvera sofrimento demais por um dia. Como o seu Nicolau era
cardiopata, ele preencheria um documento colocando como causa da morte
um infarto do coração, bem provável naquela situação. Mesmo que o
diagnóstico não fosse o correto, achou que esse pequeno desvio ético seria
justificável para ajudar o seu amigo.
Havia, no entanto, um detalhe. Ele não poderia ver o seu Nicolau tão
cedo. Estava de plantão no pronto-socorro de um hospital privado e só sairia
às 19 horas. Para não atrasar os trâmites do funeral, perguntou ao Nelson se
ele poderia mandar alguém pegar o atestado no plantão. Não haveria
problema algum, afinal o hospital era apenas a duas quadras de distância.
Uma vez em poder do documento, o filho chamou o serviço funerário
para buscar o corpo. Nelson saiu do recinto assim que chegou o funcionário
da funerária com o caixão escolhido. Enquanto telefonava para os seus
irmãos e parentes em um cômodo contíguo àquele onde estava o falecido, o
rapaz da funerária deu início aos seus serviços. Assim que desvirou o
defunto, percebeu que algo estava errado.
Acostumado a ver cadáveres, notou que o corpo, apesar de pálido e
imóvel, não estava frio nem duro (rigor mortis). Intrigado, prestou mais
atenção e notou que o cadáver às vezes respirava, muito superficialmente.
— Meu Deus, ele está vivo! — correria para cá e para lá. — O que
vamos fazer?
O funcionário descobriu que o seu Nicolau ainda estava vivo e temia
que se ninguém fizesse algo, e rápido, ele realmente passaria a ser seu
cliente.
— Precisamos levá-lo ao hospital! — Mas como o removeremos?
Não é fácil carregar um adulto desfalecido por dois quarteirões! Resolveram
o problema do jeito mais prático e rápido possível. Jogaram o seu Nicolau
dentro do caixão e colocaram no carro funerário.
Juntos, o funcionário e Nelson tocaram o carro o mais rápido
possível para o hospital mais próximo, justamente aquele onde estava de
plantão o amigo médico. A cena seguinte, segundo relatos da enfermagem
do hospital, foi surreal.
O plantão não estava mais movimentado do que o habitual. De
repente soou a campainha da emergência, alertando que iria chegar uma
ambulância em alta velocidade. Nessa hora toda a enfermagem se mobilizou
e o corre-corre acabou chamando a atenção dos pacientes que ainda estavam
na sala de espera. Mas, em vez de uma ambulância, entrou um carro
funerário a toda velocidade! Será que alguém teria passado mal num
velório? Não! A surpresa ficou ainda maior!
As enfermeiras e os pacientes da sala de espera assistiram a um
apressado agente funerário retirar o caixão do carro fúnebre, colocá-lo em
cima de uma maca e empurrá-la velozmente em direção à sala de
emergência, gritando: "O falecido está morrendo! Alguém nos ajude!".
Cada um que chegava à sala de emergência surpreendia-se com
aquela cena: um paciente sendo reanimado dentro de um caixão mortuário!
Todo médico que por ali passava ficava curioso ao ver aquele defunto com
máscara de oxigênio, soro e punções. Até que fosse transferido para um
leito, foi um rebuliço.
Seu Nicolau ainda não tinha morrido. Sofrera um derrame e ficara
em coma por várias horas até ser atendido, mas depois de alguns dias veio a
falecer.
Um dos médicos que foi acionado para atender à urgência foi o
próprio amigo do Nelson, que, além de sofrer com o desespero do amigo,
ainda teve de suportar algumas brincadeiras de mau gosto, quando seus
colegas descobriram o atestado. Ele nunca mais quis dar um, do que quer
que fosse, sem antes confirmar pessoalmente o ocorrido.
VIP
"Que os pobres
continuem saudáveis
e que os ricos
continuem a pensar
que estão doentes..."
ou, se preferir:
"Enquanto há
dinheiro, há
esperança..."
"Experiência é o
nome que cada um dá
a seus erros."
OSCAR WILDE
"Uma anastomose
não realizada não
apresentará
vazamento."
A. MoosA
Novas faculdades...
19Acesso
20Acesso
... novas dificuldades
21Acesso
O consultório particular
"Dans la medicine et
dans l'amour, on ne
dit pas ni jamais ni
toujours."
(Na medicina e no
amor, não se diz nem
nunca nem sempre.)
SÓCRATES
O ensino