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Contracapa

"A atividade clínica cria em alguns médicos o desejo 'irresistível de


contar casos. Neste livro, Dário Birolini explora os limites de seu
talento como escritor, ao alinhar as experiências vividas desde os
primeiros anos na faculdade, até atingir a maturidade profissional.
A narrativa é cheia de humor, observações atentas do
comportamento humano, confissões corajosas a respeito das
fraquezas e limitações do médico, e de reflexões sobre o papel que
desempenhamos na sociedade moderna. As histórias são contadas
em velocidade próxima à de uma metralhadora rotatória, como se o
autor estivesse empenhado em não deixar nada para trás.
O resultado é um livro daqueles que o leitor não consegue parar de
ler".
Dr. Drauzio Varella

"Quase 300 páginas devoradas, porém, de um fôlego. Sua escrita


tem agudo senso de humor. Consegue arrancar riso em muitas
passagens sobre os bastidores da Medicina. E o melhor: não é um
livro que coleciona histórias de médico. Começa assim, mas lança a
isca para ao seu trecho final pontuar sobre o que é ser médico hoje e
o futuro da Medicina. Para os médicos, será instigante. Para os
leigos, revelador".
Fernando Zamith
Jornalista, Rádio Jovem Pan/Jovem Pan Online
"De uma maneira absolutamente descontraída e com uma pitada
suave de bom humor, o Dr. Dário Vianna Birolini retrata nesse livro,
baseado em casos verídicos, a realidade da nossa vida médica e da
importância da relação médico-paciente, tão desprezada na
atualidade. É uma obra que enriqueceu minha maturidade médica".
Dr. Alfredo Salim Helito
Clínico Geral, médico de família do Hospital Sírio Libanês
Consultor da Rádio Jovem Pan
Autor do livro Saúde, Entendendo as Doenças.
Orelhas

"Este é o livro que todo médico desejaria ter escrito. Pois a


medicina é uma das poucas disciplinas que não reflete sobre a sua
atividade. O estudo de sua história, de seus aspectos sociais,
antropológicos e filosóficos tornaria sua prática mais rica, mais
eficaz e mais humana. O texto resgata a subjetividade que se perdeu
com a evolução da ciência. O autor enfrenta com elegância e
determinação a corporação médica: os que a denunciam de seu
interior são vistos como fracos ou traidores, e os que o fazem de
fora são tidos como ingratos. A Estratégia da lagartixa ilumina os
recessos mais obscuros da profissão por meio de um texto que
mescla seriedade e bom humor, sem fazer concessões.
Se este é o livro que todo médico gostaria de ter escrito, ele é,
natural mente, o livro que todo médico desejará ler. A linguagem
franca e acessível faz dele uma narrativa ao alcance de todo leitor
que deseje se aproximar da intimidade e dos bastidores da clínica a
que todos têm de recorrer inevitavelmente um dia."
Paulo Schiller
Formado em 1995 pela Faculdade de Medicina da USP, Dário
Vianna Birolini se especializou em Cirurgia Geral Avançada pelo
Hospital das Clínicas, em Cirurgia do Aparelho Digestivo pelo
CBCD e em Gestão na área da Saúde pela FGV.
Atualmente, é assistente do Departamento de Cirurgia no Hospital
das Clínicas em São Paulo e coordena o Departamento de Cirurgia
do Aparelho Digestivo em um hospital privado em São José dos
Campos (SP), onde reside com a sua família.
DÁRIO VIANNA BIROLINI

A ESTRATÉGIA DA LAGARTIXA

Uma viagem pelos bastidores da medicina

Coleção NOVOS TALENTOS DA LITERATURA


BRASILEIRA

novo século

São PAULO 2010


Copyright (c) 2010 by Dário Vianna Birolini

PRODUÇÃO EDITORIAL: Equipe Novo Século


PROJETO GRÁFICO E COMPOSIÇÃO: S4 Editorial
CAPA: Diego Cortez
IMAGEM DE CAPA: Vania Toledo
REVISÃO: Patrizia Zagni
Luci Kasai

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA


PUBLICAÇÃO (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Birolini, Dário Vianna A estratégia da lagartixa : uma viagem pelos
bastidores da medicina / Dário Vianna Birolini. — Osasco, SP :
Novo Século Editora, 2010. — (Coleção Novos Talentos da
Literatura Brasileira)
1. Birolini, Dário Vianna 2. Médicos — Reminiscências I. Título. II.
Série.
10-00294
CDD-610.92
Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil : Médicos :
Reminiscências 610.92
2010
NOVO SÉCULO EDITORA LTDA.
Rua Aurora Soares Barbosa, 405 — 2º andar
CEP 06023-010 — Osasco — SP
Tel. (11) 3699.7107 — Fax (11) 3699.7323
www.novoseculo.com.br
atendimento@novoseculo.com.br
"A melhor coisa que você pode fazer por uma pessoa é inspirá-la."
BOB DYLAN
Dedicatórias

Dedico este livro a alguém que, além de ter sido muito importante
para o desenvolvimento da cirurgia de emergência, me inspirou a
optar por essa especialidade.
Sua criatividade pode ser aferida na versatilidade de suas obras.
Desenvolveu várias técnicas e classificações conhecidas
internacionalmente. Desde estratégias cirúrgicas nos ferimentos
cardíacos e descrições de regiões anatômicas até como salgar com
perfeição um prato do seu Almeida (garçom do seu restaurante
predileto) ou estratificar a beleza feminina...
Não desperdicei o tempo em que convivemos no pronto-socorro;
assimilei os seus conselhos e aforismos. Posso dizer que, graças a
eles, soube enfrentar com sucesso cenários complexos, que iam de
lesões hepáticas graves à angústia da minha esposa com suas
dúvidas em relação à melhor cor dos nossos "bem-casados".
Pode parecer ridículo dedicar este livro a alguém cujo maior ídolo é
Camões, mas...
... ao cirurgião, caricaturista, músico, poeta e amigo, prof. Dr.
Adoniram de Mauro Figueiredo
In bocca al lupo! Agradeço à minha amada esposa, que tanto
detestou as horas que passei longe dela, catando milho no teclado do
meu computador e tentando organizar minhas ideias.
A vocês, queridos pais, que com muito sacrifício me presentearam
com o maior tesouro que carrego: a educação.
Aos professores que eu, sem muito sucesso, tentei me espelhar
como, Dario Birolini, Eugênio Ferreira, Paulo D. Branco, Marcelo
M. Machado, Adib Jatene, Nelson F. Margarido, Celso de O.
Befnini e Adoniram de M. Figueiredo.
A todos os colegas que me ajudaram, lembrando de incríveis
histórias e ponderando sobre minhas divagações (nesse quesito, eu
seria muito injusto se citasse apenas vinte ou trinta nomes).
Ao apoio técnico que recebi, com tanto carinho, de Reynaldo Ayer
de Oliveira, Roberto Figueredo, Dráuzio Varella, Samir Rasslan,
Vania Toledo, Fernando Zamith, Caio Soares e Maria Helena
Huebra.
À lucidez de Paulo Schiller, às sugestões de Jocielle Miranda, e à
disposição em ajudar de Antonio Mauro S. C. Bocalho, Wagner C.
Pádua Filho, Alfredo Salim Helito, Miguel Srougi, Maria Lúcia V
da Silva, Carlos A. da Silva, Fernando Buischi, Waltênio
Vasconcelos e Euclides E de A. Cavalcanti.
À empolgação de Cristina de E M. Barretti. Sem a sua insistência eu
teria desistido.
À Novo Século e sua equipe, por todo o apoio recebido e por
acreditarem em meu trabalho.
Por fim, agradeço a você leitor. É o meu primeiro livro e ainda não
conheço direito como funcionam os meandros desse terreno, mas
além de compartilhar experiências e pensamentos, com a compra
deste exemplar você estará ajudando a Ong para benefício próprio
"Faça um Birolini feliz"...
SUMÁRIO

Prefácio
Desculpas
Introdução fundamental
1 — O INÍCIO
A pré-história
O trote
O curso básico
Fugindo do curricular
Como examinar um paciente
Anamnese? O que é isso?
Treinando os cinco sentidos
Os exames complementares
A linguagem médica

2 — O INTERNATO
Preparo emocional
A prática
Como não fazer um parto
A hierarquia
A supervisão
Postura de médico
A empatia e o escudo protetor
O jogo de cintura

3 -A RESIDÊNCIA BÁSICA
A inspiração e a seleção
Serei um boneco-cabeção de Olinda?
O hipotálamo maluco e a cueca molhada
Furor operandi
Anestesia e anestesistas
"As" xerifes

4 -A RESIDÊNCIA AVANÇADA (3º, 4º E 5º ANOS)


O dia do raio e algumas superstições
Cuidando de um médico doente, sendo um doente
médico
Pronto-socorro
Cliente habitual: o motobói
Cliente habitual: o bêbado
Cliente habitual: o bandido
Cliente habitual: a histérica — DNV
Pequeno manual de situações inusitadas

5 — O DESMAME DO HOSPITAL
O peso da profissão
A vitrine da loja
Atestados
VIP
Caindo no mercado de trabalho e se espatifando...
Complicações
Erros
Algumas consequências negativas...
...e algumas consequências positivas

6 — ENCARANDO A REALIDADE
Novas faculdades...
...novas dificuldades
O consultório particular
Um mar de dúvidas
A medicina baseada em clarividências
A medicina virou um negócio da China!
7 — EPÍLOGO
O ensino
O fim do honro cirurgicus
PREFÁCIO

Dário Vianna Birolini se expressa de modo direto. Sua escrita flui


com humor, a começar pelo título do livro. Emprega um mínimo de termos
técnicos. Evita palavras eruditas, mas revela ser possuidor de erudição. Por
vezes, expressa-se como os doentes que contam os seus males e aflições.
Respeita a ética, não indicando pessoas nem entidades; no entanto, tudo que
descreve reflete a sua experiência na medicina até o presente, no âmbito da
cirurgia geral, com destaque à cirurgia de urgência.
Nessa área da cirurgia possui formação exemplar. Após a sua
graduação na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
(FMUSP), fez quatro anos de residência em Cirurgia e foi por dois anos
Preceptor de Cirurgia no Hospital das Clínicas (HC) da FMUSP. Teve ampla
atuação no Pronto-Socorro Cirúrgico do Instituto Central do HC. Descreve, a
seguir, com pertinência, a difícil e dolorosa passagem da "casa paterna", o
HC (Hospital Escola Universitário da FMUSP), para a vida profissional
médica, em outras instituições hospitalares e na sua clínica privada. Até o
presente, o autor mantém vínculo empregatício com o Pronto-Socorro
Cirúrgico do HC. Saibam que fui, também, médico clínico do Pronto-
Socorro do HC-FMUSP de 1959 a 1968. Sou, portanto, um fiel avalista de
tudo que ele relata sobre o PS-HC. O cenário era o mesmo, estressante.
Tratamentos com sucesso. Tratamentos sem sucesso. Pacientes com medo,
porém portadores de doenças simples. E, também, episódios tragicômicos.
Fiz menção ao estilo de redação do autor, com humor. Embora o
leitor sorria com frequência, pois o texto é agradável e divertido, A
estratégia da lagartixa é um livro muito sério. A biologia ensina que a
lagartixa, quando em perigo, presa pela cauda, livra-se dela para fugir. Essa
estratégia enseja uma metáfora. Na vida da gente, em certas ocasiões,
abrimos mão de algumas coisas para sobreviver ou viver melhor.
Dário Vianna Birolini discorre, entre outros temas, sobre a imperiosa
necessidade de domínio pleno da técnica cirúrgica. Concordo, porque só
assim o cérebro do cirurgião fica liberado para estabelecer as estratégias e
executar as táticas e os gestos durante o ato operatório, tendo em mente o pré
e o pós-operatório. Comenta sobre o erro médico e o diferencia da
complicação inerente a qualquer procedimento, ainda que executado à
perfeição. Analisa, com perspicácia, os planos de saúde e os seus auditores,
bem como os médicos, as clínicas e os hospitais conveniados e, nesse
contexto complexo, insere os pacientes que pagam pelos planos de saúde.
Faz menção aos três pecados: negligência, imperícia e imprudência. Enfim,
são muitos os aspectos abordados no texto, todos ilustrados com casos
médicos e situações inusitadas.
Tenho tido curiosidade de, por vezes, perguntar às pessoas a que
faixa etária gostariam de voltar, se fosse possível retornar no tempo. Dou
preferência a fazer essa indagação àquelas que já viveram o bastante, por
terem um passado mais longo. As respostas são muito variadas. Nos
extremos, há os que retornariam à infância remota e, na outra ponta, os que
negam qualquer retorno, porque estão no presente prospectando o futuro. A
pergunta dá ensejo a conversas "de se jogar fora" que servem para fazer o
tempo passar. Mas quando sou eu o indagado sobre o tema, tenho sempre a
mesma resposta: desejaria retornar aos 40 anos de idade, quando já se
acumularam experiências no trabalho e na vida em geral e ainda se tem a
vida pela frente para poder enfrentar vários desafios, inclusive no trabalho.
Dário Vianna Birolini está por aí, nesse tempo de vida de cerca de 40
anos. Ao escrever o livro A estratégia da lagartixa, no qual leva o leitor a
uma "viagem aos bastidores da medicina", ele revela a sua experiência
vivida e, após analisá-la, conta e comenta. Esses bastidores estão repletos de
emoções, boas e más, e de coisas certas e erradas. Deixa transparecer,
também, desafios que poderão ser enfrentados. Afinal, pela sua idade, ele
tem a vida pela frente.

MARCELLO MARCONDES MACHADO


Professor titular emérito e ex-diretor da FMUSP
DESCULPAS

A você que comprou o livro, pensando que o seu autor fosse o


professor emérito de cirurgia da FMUSP, importante pesquisador, divulgador
do ensino da Clínica Cirúrgica, pioneiro, entre outras conquistas, ao trazer,
para o Brasil, a unidade de terapia intensiva (UTI) nos anos 1960, o resgate e
a cirurgia do trauma nos anos 1990, minhas desculpas.
Ele é meu homônimo que, involuntariamente, algumas vezes tornou
a minha vida mais fácil e, em outras, muito mais difícil.
Caríssimo tio, minhas desculpas. Talvez este livro o faça passar por
certo constrangimento pela segunda vez. Não sei se ficou sabendo da
primeira, mas foi bem esquisita e vou lhe contar...
Atendi um paciente com problemas mentais quando era residente no
segundo ano (R-2) de cirurgia. Ele se queixava de dor no ânus — fazia 12
anos — quando procurou o pronto-socorro. Como eu o examinei e não achei
nada de errado, expliquei que o encaminharia ao ambulatório. Lá poderia ser
realizada uma investigação mais detalhada, uma vez que não se tratava de
uma urgência, embora seus sintomas persistissem. Não sei por que, mas o
paciente ficou por vários dias andando pela rua com a guia de
encaminhamento carimbada com o nosso nome e assinada por mim. Para
todos os médicos com quem se defrontava nas calçadas, mostrava o papel e
perguntava se conheciam aquele profissional — apontando para o meu
carimbo. Após uma resposta afirmativa (pois pensavam se tratar do senhor),
contava que esse médico — e apontava para o nosso nome — teria enfiado
um prego no reto dele. Puro delírio, mas a reação era sempre de surpresa e
piorava quando ele, como prova, mostrava uma foto que teria tirado em
close-up do próprio bumbum (evidentemente sem prego)... Até que o
paciente mudasse de atitude, o senhor foi motivo de chacota.
Basta assistir a dez minutos de videocassetadas para perceber como
somos politicamente incorretos. Achamos graça de quem cai, bate,
escorrega, leva uma paulada. Rimos do sofrimento alheio. Mas será que a
pessoa que caiu também se divertiu tanto assim com o seu flagrante?
Neste livro, narro situações curiosas, mas que sempre acabam
envolvendo alguém que sofre ou é tratado de algum mal. Para os que,
infelizmente, passaram por situações parecidas às das histórias, seja como
pacientes seja como parentes destes, minhas desculpas. Estar do outro lado,
sofrendo, não é nada fácil.
INTRODUÇÃO FUNDAMENTAL

Uma comparação grotesca, porém cabível:


O único modo, e talvez a última chance, de salvar a vida daquele
paciente seria amputando a sua perna.
A troca de um membro pela vida — exclamou o doutorando -, assim
como uma lagartixa acuada por um predador...
Certa vez fui comprar um livro numa dessas grandes livrarias. A
balconista, ao me atender, pediu o meu cartão de crédito e a minha
identidade. Dei, por engano, o cartão do plano de saúde em vez do de
crédito. Ela logo percebeu o erro e educadamente me alertou do fato. Pedi
desculpas, ao que a moça simpaticamente completou:
— Tudo bem, errar é humano! Não perdi a oportunidade de fazer
uma brincadeira: — Mesmo sendo médico? Para a minha completa surpresa,
a moça ficou atordoada. — Mas você é médico! Então não deveria errar!
Será que ela nunca teria aventado essa possibilidade?
Normalmente, consideraria esse diálogo irrelevante e insípido, mas
ele gerou uma série de reflexões em minha mente. O primeiro pensamento
foi, na verdade, um pedido aos céus para que ela nunca fosse minha
paciente, pois sou falível. Não gostaria de tratar de alguém assim tão
intolerante. Mas o que veio depois foi a semente deste livro.
Não era a primeira vez que percebia essa cobrança das pessoas que se
esquecem do fato de que nós, médicos, somos humanos. Será que ela
ocultava tal dado por pura conveniência, ou toda aquela reação era resultado
de nossa própria hipocrisia como médicos?
Quantas vezes ouvi indagações semelhantes a esta: — Hoje tenho um
importante compromisso, mas entrei em contato com a minha irmã, que está
com diarreia. Desenvolverei os mesmos sintomas?
Respondo, de forma bem-humorada, dizendo que a irmã dele era a
terceira do dia que atendera por diarreia. Não podemos ser negligentes com a
higiene, mas se a doença passasse de uma pessoa para a outra assim tão
facilmente, teria de trabalhar sentado num vaso sanitário!
Será que esse fulano acha que, por ser médico, eu sou imune? Muito
pelo contrário! Se ficar doente, ainda sofro o risco de infecções pela flora
hospitalar. Imagine uma moléstia causada por alguma daquelas bactérias que
só morrem a marteladas! Mas parece que o impulso inicial (irracional),
exceto a consternação, é: médico também fica doente?
Surpreendente! O médico fica doente! Isso para não falar de quando
é suspeito de metralhar a plateia num cinema ou de abusar de adolescentes
sedados, por exemplo.
É evidente que tais acontecimentos estão muito distantes do normal
ou do aceitável, mas a profissão dos autores desses delitos amplifica nossa
indignação. Por quê? Resquício da época em que "doença-pecado" e
"médico-sacerdote" eram quase considerados sinônimos?
Outra vez, ao ser questionado por um paciente quanto à demora no
atendimento em um hospital público, expliquei que naquele dia a demanda
vinha muito acima do normal. Estávamos fazendo o possível. Ele
questionou, indagando se não poderíamos ser mais rápidos. Eu disse que já
estávamos no limite da segurança. Um pequeno acréscimo na agilidade do
atendimento aumentaria em muito as nossas chances de errar, e as vítimas
poderiam ser eles mesmos. Pedi paciência e brinquei dizendo que desde
manhã não tínhamos tido tempo nem para ir ao banheiro. A sua resposta,
muito dura, foi:
— Se precisa ir ao banheiro, não deveria ter escolhido esta profissão!
Por acreditar que presto um serviço de alta qualidade, comumente fico
frustrado quando não sou bem atendido por qualquer um que seja. É muito
difícil não fazer comparações. O paciente tem o mesmo direito de ser
exigente. E não deve ser nada fácil ficar esperando muito, quando se sente
náuseas ou dores. Mas não precisava ter dito isso. Não somos super-homens.
Você pensa que isso só acontece em hospital público? Trabalhei num
hospital privado de primeira linha. Nele, mensalmente, era enviado um
relatório aos plantonistas com as queixas e sugestões advindas do serviço de
atendimento ao cliente.
Eu tinha o hábito de ler as reclamações. A meu ver, algumas queixas
eram totalmente pertinentes. Outras evidenciavam, claramente, falta de
conhecimento sobre o médico e a sua vida. Poderia citar várias delas, mas
mencionarei aqui a primeira que me veio à mente. Era mais ou menos assim:
— Fui atendida neste hospital por causa de uma dor muito forte nas
costas. Apesar de aliviar a minha dor e de ter feito o diagnóstico correto de
cólica renal, me incomodou o fato de o médico estar com cara de sono, todo
amassado e com o cabelo despenteado. Senti-me desrespeitada. Horário do
atendimento: 04h30min.
A apresentação do médico é fundamental. Mas nesse caso não era
nem de longe a prioridade. Calcula-se que até 25% da população possa ter
uma crise de cólica renal na vida. Se você já foi um desses azarados, deve se
lembrar da intensidade da dor. Dizem que é pior do que a dor do parto.
Quando acordaram o colega às quatro da manhã, dizendo que um
paciente com provável cólica renal tinha chegado, ele saiu correndo para
aliviar o sofrimento e não para retocar a maquiagem. Esta é uma das razões
por que em muitos locais os plantonistas trabalham de uniformes-pijamas.
Essa pessoa provavelmente não ficou frustrada ao descobrir que
aquele profissional deitava sem aquelas redinhas de cabelo, mas, sim, ao
perceber que ele dormia durante o plantão. O plantonista estaria "dormindo
em serviço", fato esse comprovado pela sua cara!
Pode causar surpresa, mas nós dormimos no plantão. Por quê?
Primeiro, porque também somos escravos dos nossos relógios biológicos e
muitas vezes não chega nenhum paciente de madrugada. Segundo porque,
em geral, trabalharemos normalmente no dia seguinte. Nós também ficamos
amassados e despenteados quando acordamos.
Quanto tempo você levaria para se desamassar e trocar de roupa,
caso fosse acordado às quatro da matina? Preferiria esperar todo esse tempo
com uma das piores dores que o ser humano conhece, para depois ser
atendido por alguém engomado?
Talvez você esteja dizendo: — Ah, espera aí! Não somos tão radicais
assim! É uma exceção! Concordo. Mas imagine que você vá a um pronto-
socorro com alguma queixa (que não seja emergencial ou dolorosa) e o
médico demore um pouco para atendê-lo. Se essa demora (suponhamos que,
de cinco minutos) ocorrer porque o médico estava terminando de almoçar,
certamente lhe explicarão que ele estava em outro procedimento. Nunca lhe
dirão: "Aguarde um pouquinho, pois o doutor está na sobremesa. Falta só o
cafezinho".
Embora sabendo que nos alimentamos diariamente, duvido que a
segunda resposta o deixe mais confortável que a primeira. Eu também
preferiria a primeira.
Eu aqui esperando, enquanto o médico toma um cafezinho?
Guardadas as devidas proporções, pergunto se no seu trabalho você não tem
tempo para almoçar ou não termina de tomar o cafezinho antes de atender
alguém?
Sempre que vou ao ambulatório, ao ver aquele monte de gente
esperando, fico imaginando o que os pacientes diriam se colocássemos uma
plaqueta, como aquelas que já vi em alguns bancos:
— Seguimos aqui a determinação do Ministério do Trabalho. A cada
sessenta minutos de trabalho, descansamos dez (algo mais ou menos
assim)...
E quanto aos erros... Cometemos pequenos erros diariamente,
embora também os corrijamos constantemente ao conduzirmos nossos casos
clínicos.
Como não errar?
Várias doenças podem ter exatamente as mesmas manifestações
clínicas e laboratoriais. Para tudo existem resultados falso-positivos e falso-
negativos. Nenhum exame possui 100% de acurácia. O paciente às vezes
mente ou oculta fatos. A mesma doença pode apresentar-se com diferentes
manifestações dependendo do paciente, das afecções associadas, de
interações medicamentosas e até do clima!
Como não errar, se somos imperfeitos? Será nosso raciocínio
igualmente eficaz quando atendemos um mendigo ou o presidente da
República ou no começo e ao fim do plantão?
Basta seguir protocolos e não haverá enganos! Duvido... A maioria
dos protocolos esclarece muito bem o que fazer, por exemplo, no caso de dor
abdominal "presente" ou "ausente". Mas nada orientam para os "não sei",
para os "mais ou menos" e os "não é bem uma dor", que podem aparecer em
muitos casos.
Além disso, poderia (ou deveria) o médico seguir a mesma trilha
diagnóstico-terapêutica com o paciente pouco abastado e o credenciado pelo
seguro "plus-diamond-universal"? Com o senhor alérgico a iodo e o
superobeso? Na rua, na cadeia, no hospital geral?
A falsa impressão de que o médico não erra, não precisa comer ou
não tem fadiga, é realmente muito conveniente. Dessa forma, enquanto
pacientes, estaremos seguros. Não seremos vítimas de imperfeições
humanas.
Desculpe-me, leitor, mas pretendo decepcioná-lo constantemente.
Sabe aquele médico de família excelente, solícito e que sempre acerta? Ele
também já teve o seu primeiro paciente. Sofre as angústias, dúvidas, medos e
fraquezas do nosso dia a dia. Engana-se. Fica doente, alimenta-se e possui as
mesmas necessidades fisiológicas que todos nós.
Por essas e outras, com a intenção de mostrar que somos feitos de
carne e osso, como qualquer outro mortal, comecei a colecionar relatos de
casos e "causos".
Que valor teria narrar o que ocorre em 90% do nosso tempo e que
você já conhece? Falar dos acertos médicos, das inovações tecnológicas, da
nossa enérgica disposição e da dedicação ao trabalho, dos casos corriqueiros
e sem desafios, do sacerdócio e da ética inabalável? Isso apenas solidificaria
uma imagem de perfeição, a qual desejo refutar!
A crescente intolerância às nossas imperfeições humanas, algumas
vezes absolutamente inevitáveis, acabará levando à extinção da profissão
médica, coisa que já vem ocorrendo em muitos locais e especialidades.
Talvez uma forma de salvar o médico — assim como a lagartixa —
seja mutilando parte da sua imagem e reputação, ao expor os 10% restantes.
A minha intenção não é de macular a imagem do médico, mas
acredito que, expondo a nossa condição de seres humanos, as pessoas se
tornarão mais tolerantes. Não há nada melhor do que exemplos para
demonstrar, desnudar nossas fraquezas, dúvidas e erros. Porém, a exposição
de eventos desconexos tornaria a narrativa muito enfadonha. Assim, pensei
em escrever, em sequência cronológica, sobre a formação e o dia a dia de um
médico, enquanto relato um pouco da nossa rotina, tantas vezes imaginada
de forma diferente, romântica.
Apesar de contar alguns fatos que realmente se passaram comigo
(com algumas modificações para preservar a imagem dos envolvidos),
aproveitei para enriquecer a narrativa inserindo várias histórias do folclore
médico. Da mesma forma, alguns questionamentos e reflexões instigantes
que mencionarei, apesar de muitas vezes deles discordar, também provêm de
outros autores. Portanto, é extremamente importante que o leitor saiba que
esta obra de ficção não é uma autobiografia, apesar de desenvolver os
capítulos na primeira pessoa. Todos os lugares, pessoas e acontecimentos, da
forma como narro, são imaginários.
(Mesmo assim, se sua avó for uma daquelas pessoas que, ao se
encontrar com o vilão da novela na rua, o repreende pelas maldades do seu
personagem, me previna, por favor.)
Tentei lembrar-me das dúvidas e curiosidades mais frequentes, dos
graduandos e de meus amigos que não eram médicos, sobre os bastidores da
medicina atual. Ao discorrer sobre esses assuntos, deparei-me com temas
muito espinhosos e polêmicos, o que não significa estar de acordo com eles,
aceitá-los ou achá-los divertidos. Caberá ao leitor avaliá-los.
Minha intenção não é fazer rir, embora tente, com bom humor, relatar
algumas histórias pitorescas que despertaram a curiosidade em todos que as
ouviram. Isso não constitui uma novidade. Vários médicos já escreveram
livros sobre suas aventuras e desventuras. Alguns, posteriormente, se
tornaram competentes escritores a ponto de brincarem que pagariam uma
gorda recompensa para quem achasse um exemplar do seu primeiro livro e o
queimasse. Tudo por vergonha do conteúdo e da forma do que teriam escrito
décadas atrás. Não temo tanto assim o meu futuro, uma vez que não
pretendo ser escritor-médico nem médico-escritor. Mas peço desculpas ao
leitor pelo meu amadorismo na área. Tentarei ser o mais didático e o menos
técnico possível.
Quando comecei a escrever, muitas pessoas me disseram que os
leigos não entenderiam e que o livro queimaria o filme dos médicos.
Mas, desde que eu consiga mutilar a imagem desses "super-homens"
na medida correta, acredito que, além de ajudá-los, este livro pode ser uma
fonte de descoberta e de sentimentos muito interessantes para ser descartado.
Isso foi confirmado por vários amigos, inclusive um que, após ler
algumas linhas, me estimulou de forma óbvia, mas sincera:
— Se todo mundo ler o seu livro, será um best-seller! Espero que
esteja correto e que eu consiga tirar, do médico, somente a cauda.
1 — O INÍCIO

A pré-história

Caso você não tenha lido a introdução deste livro (seu preguiçoso!),
volte e leia. Pensando bem, a cada dez capítulos será recomendável relê-la.
Nunca fui uma daquelas pessoas que desde criança sonhava com uma
atividade específica, como boa parte dos médicos. Entrei na faculdade muito
jovem. Naquela época, desconhecia, por ignorância mesmo, 90% das
profissões. Das poucas que sabia, Medicina era a que me parecia a mais
segura em termos de emprego e também a de maior glamour. Não estava tão
em voga o erro médico. Parecia ser um bom ramo. Assim, aos 17 anos, e
admirando vários parentes doutores, resolvi prestar vestibular para Medicina.
Não deixei de realizar um daqueles populares testes de aptidão. Para
variar, o resultado foi muito vago e não me ajudou. De qualquer forma,
futuramente, não ficaria muito angustiado com isso. Sabe por quê?
Porque uma das grandes vantagens na Medicina é que, com o
amadurecimento, temos um leque enorme de escolhas pela frente. Conheço
poucas pessoas que abandonaram o curso para prestar outra faculdade.
Aqueles que entraram por pressão dos pais ou romantismo e que, na verdade,
queriam ser psicólogos, desde que tenham tido paciência, acabaram virando
psiquiatras.
Essa adaptação pode funcionar com uma série de outras áreas. Para
não dizer que sou preconceituoso ou que tenha ressentimentos, resolvi
reproduzir este quebra-cabeças, desenvolvido por um grupo de cientistas
anônimos.
Pegue uma caneta. Agora você mesmo poderá juntar as setinhas e
chegar às suas próprias conclusões.
Exemplo:
Eu queria ser administrador de empresas — então faça administração
hospitalar. Agora é com você... — Ajudante de pedreiro — Plantão de
pronto-socorro — Técnico em Informática — Informática médica —
Advogado — Medicina legal — Marcenaria — Ortopedia — Engenheiro —
Engenharia Genética — Procurador de pelo em ovo — Auditoria de
convênios
Além das vontades, aptidões e ambições, o próprio perfil do médico
acaba sendo responsável pela escolha de sua área.
Na verdade, não sei quem seria o ovo ou quem seria a galinha, mas
existe até uma tese de doutorado em Psicologia a esse respeito. Esta, de
forma muito resumida, aponta, por exemplo, o cirurgião como sendo muito
focado, objetivo e direto, ao passo que o clínico costuma ter uma visão mais
aberta, perdendo um pouco o foco1. Mas antes de discutir a evolução da
escolha por uma ou outa área, tinha de entrar em alguma faculdade e dei
sorte. Prestei o vestibular e fui aprovado.

1BELLODI, P. L. O clínico e o cirurgião: estereótipos, personalidade e


escolha da especialidade médica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.
O trote

"Os trotes começaram


ainda na Idade Média,
quando os calouros
eram colocados nos
vestíbulos (daí a
origem da palavra
vestibular), que
antecediam a sala de
aula. Ali, eles tinham
os cabelos raspados,
por uma medida
profilática, pois havia
a possibilidade de
propagação de
doenças, sobretudo a
peste. É interessante
destacar que,
enquanto naquela
época os cabelos
eram raspados por
medida preventiva,
hoje, é sinal de
sucesso, de realização
e de posição de
destaque."
Marcos Antônio SIlveira Reis

Embora esse ritual de passagem tenha mudado bastante, a primeira


coisa que ocorreu quando entrei na faculdade foi o trote.
Ainda que fazendo jus à sua definição, raramente era abusivo. A
maioria das vítimas o levava na brincadeira. Talvez por isso era parcialmente
negligenciado pelas autoridades da faculdade.
Não tinha piolho nem era portador da peste, mas cortaram meu
cabelo, me pintaram todo, recortaram minhas roupas e me deram um monte
de cerveja e refrigerante.
Depois desse linchamento "consentido", levaram-me a um churrasco
de confraternização.
Antes da faculdade, tinha um único amigo de olhos puxados. Não
sabia distinguir um chinês de um japonês. Imagine o meu trote, cercado por
sessenta orientais carecas e com a face pintada. Não sabia com quem estava
confraternizando nem com quem tinha confraternizado!
Para ir da faculdade ao clube onde seria o churrasco, os veteranos
amarraram, simbolicamente, um barbantinho no punho de cada calouro e
formamos uma imensa fila indiana. Esta passava por um lava-rápido de
gente, em que alguns veteranos tiraram o excesso de guache do nosso corpo.
Depois, caminhamos para o deck ao redor da piscina. Lá, em volume
altíssimo, uma bateria e caixas de som enormes tocavam os hinos e as
músicas da faculdade que deveríamos aprender para as competições. No
meio dessa bagunça, de repente, os veteranos gritaram:
— Piscina!
Nessa hora, quase duas centenas de calouros saíram correndo como
se fossem uma manada e pularam ou foram jogados, seja pelos veteranos,
seja por seus amigos de escola, para dentro da água. Foi tudo tão rápido que
nem vi quem me jogou.
Na piscina, os novatos ficaram nadando, gritando, espirrando jatos
uns nos outros e em quem tinha ficado de fora. Devido à tinta do trote, a
água ficou turva (pra não dizer preta, na área mais profunda). Foi uma
tremenda algazarra que deixou boas lembranças.
Quem diria que, uma década depois, uma faculdade ficaria maculada
para sempre com a terrível morte de um dos seus calouros. Eu não sei como
ninguém previu essa evidente possibilidade, uma vez que o trote parece ter
sido similar.
Eu era o residente de cirurgia mais graduado do pronto-socorro,
quando apareceu uma aluna esbaforida, gritando que um calouro estava se
afogando no clube. Rapidamente, pedi ao residente do 32 (R3) e do 2º anos
(R2) que pegassem o material de reanimação normalmente utilizado para
recepcionar os helicópteros e fossem voando com a ambulância do hospital
para o local. Pouco tempo depois, meu R3 retornou em choque, indignado,
frustrado e estressado.
Após acalmá-lo, ele me explicou que, ao chegar de sirene ligada e a
mil por hora na piscina do clube, constatou que o aluno estava morto havia
horas. Tudo o que fez foi chamar os bombeiros para resgatar o corpo.
Segundo o residente, a piscina estava muito escura por conta de todo
o guache dos calouros mal limpos pelo lava-rápido de gente. O funcionário
do clube passava o aspirador no fundo da piscina quando notou algo
estranho em seu leito. Ao prestar mais atenção, identificou o corpo. Isto,
pelo menos, 30 minutos após iniciar a limpeza da piscina. Com essa
informação, o médico resolveu declará-lo morto, pois antes dessa meia hora
ninguém teria tido acesso à piscina, a não ser na noite anterior. Mesmo
assim, foi pressionado para retirar o aluno da água e tentar reanimá-lo. Não
deve ter sido nada fácil.
Ouvi quinhentas versões diferentes do ocorrido e não gostaria de
polemizar algo tão doloroso. A morte desse moço foi um fato absurdo,
irreparável e lamentável. Mas, se é que resultou de um ritual parecido com o
que passei anos antes, pelo menos fez com que as pessoas se
conscientizassem dos perigos daquela"inocente"brincadeira. É óbvio que,
algum dia, algo poderia sair errado!
Ao terminar o evento, voltei para casa a pé (acho que nenhum meio
de transporte público me aceitaria naquele estado) com o que restava da
roupa, rasgada e pintada. Todo mundo na rua me olhava. Expressões de dó,
espanto e indignação.
Paradoxalmente, transpirava satisfação. Ostentava alegremente a
minha careca pintada como um grande troféu.
Não sou a favor do trote. Mas é curioso como alguns ficam
orgulhosos ao passarem por esse constrangimento público, enquanto outros
se sentem extremamente humilhados. Eu não me senti violentado. Tentei
entrar na brincadeira e agraciar-me com os louros da conquista.
Calouro é mesmo um ser esquisito, não? Poucos dias depois tivemos
a aula inaugural com um ilustre professor de cirurgia cardíaca. Ao sairmos
do teatro da faculdade, onde ocorrera a brilhante exposição, mais tinta e
meleca. Literalmente, chovia farinha e guache na porta do teatro. Por sorte,
aquele foi o meu último contato com a sujeira.
Iniciaríamos, então, o período de adaptação à nova etapa de nossa
vida.
A essa altura dos acontecimentos, não tinha a menor ideia do que
significava uma universidade. Estava acostumado com o esquema de tocar o
sinal para começar e acabar uma aula. Onde estavam os bedéis? A lista de
presença? A diretora?
Sabendo que estávamos perdidos, vários veteranos surgiram para nos
"ajudar". O instrutor de anatomia, por exemplo, nos orientou sobre os
materiais que seriam utilizados no curso de mesmo nome e assim por diante.
Não era raro aparecermos em casas de material cirúrgico procurando por
uma caixinha de foramens, carretel de linha Alba, um axônio de vinte
centímetros ou outros absurdos.
Foramens são orifícios naturais nos ossos, por onde passam vasos ou
nervos. Linha Alba é o nome dado ao tendão dos músculos abdominais.
Axônio é a cauda da célula nervosa, o neurônio.
Outros veteranos filiados ao centro acadêmico perguntavam se
desejaríamos vagas no estacionamento. Para adquiri-las, bastaria pagar um
pequeno valor. Teríamos até placas indicativas com o nosso próprio nome.
Quão orgulhosas ficariam as nossas mães!
Mas o estacionamento de graça era para todos. Será que ninguém
havia notado a inexistência de plaquinhas exclusivas?
Foi muito divertido descobrir onde eles colocaram a minha plaqueta.
As elegantes palavras "Reservado — Doutorando Dário" estavam fixadas no
galho de uma árvore. Havia outras no porão, dentro dos banheiros e até na
frente das placas que demarcavam as vagas de alguns professores. E era
engraçado quando algum calouro, crédulo, estacionava o carro ali...
Acreditando que o trote teria terminado, começou o curso. A
primeira aula, intitulada "Medicina natural — Os poderes da banana na cura
do onfaloma" (um tipo de tumor que dá no umbigo), foi ministrada por um
professor, que devia ter uns quarenta anos, no anfiteatro da disciplina de
Medicina Legal. Apesar da idade mais avançada que a nossa, ele ainda era
um estudante da faculdade. Só percebemos a pegadinha quando alguns
"alunos repetentes" começaram a discutir entre si se a banana nanica era
mais potente que a prata, com argumentos que os levaram a cair na
gargalhada.
Agora sim o trote havia terminado. Mas começou a frustração...
O curso básico

Antes de passar pelas áreas médicas, o aluno entrará em contato com


as básicas, muito distantes do que ele desejava e imaginava ser uma
faculdade de Medicina. Hoje isso vem mudando, com sua inserção cada vez
mais precoce no contato com o paciente, até mesmo para que perceba a
importância das matérias básicas. Mas, naquela época, fiquei muito frustrado
por um motivo diferente. Ao contrário da maioria dos alunos, ao entrar na
faculdade comecei a pensar em trabalhar com laboratório, especificamente
na área de genética. Logo nos primeiros meses pude conhecer a realidade da
pesquisa em nosso país mesmo dentro da universidade e concluí que
Einstein tinha razão: — "a ciência é uma coisa maravilhosa, se você não
tiver que ganhar a vida com ela"...
Nessa fase aprendemos duas coisas fundamentais para qualquer
aluno de Medicina. Por meio das enfadonhas aulas de bioquímica, biofisica,
histologia, genética, entre outras, incorporamos o que serviria mais tarde
como pilar de toda a nossa formação médica. Aprendemos também a jogar
truco, um jogo de baralho em que o blefe é muito importante.
Sorte ou azar, aprendi mais sobre os pilares do que sobre as cartas de
baralho, embora elas tivessem me proporcionado boas risadas e reforçado o
contato com alunos de outros cursos no campus.
Estes sempre nos perguntavam sobre uma vedete do nosso
aprendizado básico. E não eram as maravilhosas aulas sobre "Estudos dos
Problemas Brasileiros". Falemos um pouco, então, sobre os cadáveres.
O contato com os cadáveres não é muito agradável, mas eles são
peças fundamentais e indispensáveis para se aprender anatomia. Se alguém
duvida, basta tentar aprendê-la apenas com a leitura. Para exemplificar, abri
aleatoriamente um livro-texto (com mais de trezentas páginas) e copiei o
pequeno trecho:
"O ramo da ilíaca interna passa para trás entre o primeiro e o segundo
ou segundo e terceiro nervos sacrais e deixa a pelve pelo forame isquiático
maior, abaixo do piriforme. Desce no glúteo medial ao nervo isquiático sob
o glúteo máximo, atrás do obturatório interno...."2
Pelo amor de Deus! Imagine-se estudando isso numa madrugada,
véspera de prova. Não tenho dúvidas de que aqui realmente funciona o
ditado que diz: "uma imagem vale mais que mil palavras". Diria ainda que o
cadáver vale mais que mil imagens, pois podemos analisá-lo
tridimensionalmente e em vários ângulos, além de sentir sua textura, seu
peso e... seu cheiro.
Atualmente existem técnicas mais agradáveis de conservação, como
a plastinação (vide aquelas exposições "artísticas" do corpo humano). Mas
naquela época só tínhamos o formol, que fede muito, faz os olhos
lacrimejarem e as narinas arderem. E pasme: algumas mulheres ainda pagam
para utilizar isso no alisamento dos cabelos!
Além do desconforto físico, havia o emocional. Não que eu
imaginasse a vida daquele corpo ou o seu eventual sofrimento. Com o
tempo, eles passam a parecer bonecos inanimados. Literalmente, peças de
anatomia. Mesmo assim, não dava para sair da aula e ir direto ao Bandejão
Lavoisier (refeitório da universidade) comer carne de panela com aqueles
nervinhos que dificultam a deglutição. É igualzinha à musculatura humana!
Eu tinha náuseas só de pensar.
Brincávamos que os cozinheiros eram adeptos da teoria de que nada
se perde e tudo se transforma, principalmente quando o cardápio da semana
incluía, consecutivamente, bife, estrogonofe e carne moída...
Mas isso ocorria só no começo. A capacidade de adaptação do ser
humano é imensa. Após alguns dias, dissecávamos sem problemas, e a
vontade de comer bife voltava quando a aula começava a se prolongar
demais.
Após utilizarmos o cadáver, ele precisava ser devolvido para o
tanque de formol. Não podíamos levá-lo para uma lição de casa. Já os ossos,
podiam ser examinados sem luvas, exigindo apenas cuidado na manipulação,
para sua conservação. Assim, recebíamos uma sacola cheia de ossos diversos
para cada pequeno grupo de anatomia. Graças a um desses sacos, ocorreu
um episódio curioso.
Eu deixei a sacola de ossos guardada dentro do meu carro e fui
assistir a um jogo no Pacaembu. Ao retornar, descobri que tinha sido
roubado. Como não achei mais o meu veículo, procurei uma delegacia para
lavrar um boletim de ocorrência. Ao relatar os objetos que teriam sumido,
talvez por ser uma coisa tão natural para nós, nem pensei nas consequências
que sofreria ao declarar a lição de casa:
— Tinha algum pertence dentro do automóvel? — Sim, uma carteira,
documentos, meu rádio e uma sacola com ossos. — Carteira, documentos,
rádio, osso de cachorro... — Não eram de cachorro. Eram humanos. — De
plástico? De brinquedo? — Não, né! De cadáver...
O boletim instantaneamente se transformou em inquérito. O policial
não se conformava.
— Ossada de quem? Como morreu? Onde achou os ossos? Tem
como provar?
Ah, se arrependimento matasse... Eu achei que seria detido e fiquei
indignado, o que conturbou ainda mais o ambiente. No fim quase fui preso
mesmo, devido às "incongruências" do meu depoimento.
Coincidência ou não, fato é que depois daquele episódio na delegacia
duas coisas aconteceram:
• Proibiram a retirada de ossos do ambiente acadêmico;
• Os assaltantes abandonaram aquele carro sem levar nada. Vai ver
acharam que pertencia a um serial killer...

Passado o impacto inicial, as aulas de anatomia e os experimentos


com sapos ou ratinhos passaram a ser rotina e perderam o encanto.
Continuamos sentindo falta dos pacientes e do hospital, que só apareceriam
por volta do terceiro ano da faculdade ou nas atividades extracurriculares.

2GARDNER, G.; RAHILLY, O. Anatomia. Rio de Janeiro: Guanabara,1988.


Fugindo do curricular

Desde o início do curso, podemos participar de muitas atividades


paralelas, mas na minha ingênua e imatura cabeça elas representavam uma
grande novidade que acabei aproveitando muito pouco.
Atividade extracurricular, no segundo grau, era sinônimo de cabular
aula. Inclusive na faculdade, achava estranho participar de algo oferecido
pela instituição, o que, necessariamente, implicaria abrir mão de algumas
aulas. Eu ainda era muito imaturo e "caxias" para isso. Ainda não tinha
percebido que a faculdade era um meio de me tornar autodidata.
Acredito que o objetivo primordial da Escola de Medicina seja o de
formar médicos. Penso que a atividade curricular deve ser muito mais
valorizada do que a extracurricular. Os cursos curriculares, que foram
estudados e reformados várias vezes, têm por objetivo formar o melhor
profissional possível.
Dificilmente um aluno repete o ano na faculdade. E como passar de
ano, em geral, é moleza, parte dos professores tende a desvalorizar os que se
dedicam mais ao curso propriamente dito do que às atividades paralelas. É
como se fazer o curricular fosse apenas uma obrigação, independentemente
de como o cursamos. Há alunos que passam pelo estágio de cirurgia
estudando apenas os resumos das aulas dadas. Outros, após estudarem quase
todo o livro-texto, coisa que, muitas vezes, nem os próprios residentes
conseguiram. Será que esses estudantes teriam tempo para atividades extras?
O fato de os médicos trabalharem muito também torna irrelevante
aos professores as nossas queixas de excesso de carga horária. Como ousaria
reclamar que estava trabalhando muito se meu chefe, um professor livre-
docente fluente em três idiomas, tinha sido boia-fria e depois auxiliar num
banco, enquanto cursava a faculdade em período integral?
De uma forma ou de outra, os cursos, as ligas, as pesquisas e os
estágios eram muito valorizados. E, talvez, o aspecto mais importante deles
tenha sido a abertura dos horizontes que poderiam nos proporcionar.
Na minha entrevista para entrar na residência médica, fui muito
criticado por não ter trabalhos publicados ou monitorias. Em resposta, disse
que dera prioridade à atividade curricular. Pude dizer isto embasado em
minhas notas, que eram muito boas. Para não falar que minhas atividades
extracurriculares foram nulas, participei de vários cursos e algumas
pesquisas.
Na primeira pesquisa, o objetivo era estudar a hipotermia (baixa
temperatura corporal) durante o atendimento de pacientes acidentados,
tentando relacioná-la ao tratamento e às suas complicações.
No atendimento de um traumatizado grave é muito comum que
quatro ou cinco médicos atendam o paciente ao mesmo tempo, realizando
atividades simultâneas e coordenadas, com alguns auxiliares de enfermagem.
Enquanto um verifica e trata os eventuais problemas da respiração, outro
médico cuida da circulação e dos sangramentos, outro, da parte neurológica,
outros, ainda, dos membros e das fraturas, e assim por diante.
No meio dessa bagunça, como um contorcionista, tinha que me
aproximar do paciente, apresentar-me, explicar a pesquisa e pedir permissão
para aplicá-la.
Uma vez concedida, driblando todos aqueles procedimentos médicos,
inseria um termômetro digital no ânus do paciente e acompanhava a sua
evolução.
Por isso, fiquei conhecido no pronto-socorro (PS) como "o rapaz do
sorvetão". Quando algum médico me via, saía correndo e escondendo o
bumbum só por gozação.
A pesquisa empacou depois de um tempo. Seria necessária a minha
presença constante no pronto-socorro e ainda teria que ter a sorte de pegar
um acidentado no plantão. Muitas vezes isso não ocorria. Outras vezes, esse
acidentado chegava ao fim do meu período e eu não conseguia aproveitar o
caso, além daqueles que, compreensivelmente, se negavam a participar do
protocolo.
Mas não me arrependo de ter passado todo aquele tempo esperando
no pronto-socorro. Enquanto não vinha ninguém que pudéssemos encaixar
nos padrões da pesquisa, eu aprendia com os atendimentos e situações que
ocorriam à minha volta. É o famoso "aprendizado por osmose".
Frustrado com a dificuldade em realizar uma pesquisa clínica, resolvi
ajudar numa outra, retrospectiva, com prontuários. Queríamos relacionar as
diferentes técnicas de colostomia e suas complicações.
Colostomia é a exteriorização de um segmento do intestino através
da pele, necessitando daquelas famosas bolsinhas coletoras.
Após discutir com um orientador sobre quais seriam as diretrizes do
estudo, fui levantar os prontuários dos pacientes colostomizados. Esta era
uma tarefa hercúlea.
Para começar, tinha de ir ao arquivo médico e aguardar que alguma
boa alma me atendesse naquele maldito balcão. O serviço, na ocasião,
correspondia aos padrões de atendimento público do nosso país.
Com o tempo, muita paciência e puxação de saco, alguns
funcionários começavam a facilitar a nossa vida (não quero parecer injusto,
isso hoje melhorou muito). Mesmo assim, não era fácil localizar os
prontuários no meio daqueles milhões de envelopes empilhados.
Uma vez localizados, descobríamos que suas páginas, apesar de
juntas, estavam totalmente fora de ordem. Algumas internações
correspondiam a períodos de vários meses, com verdadeiros calhamaços de
páginas. Após serem organizados, vinha a parte mais gostosa: decifrar os
hieróglifos dos médicos!
Como escrevemos mal! Letras ilegíveis que, mesmo decifradas, nos
frustravam novamente pela falta de dados registrados.
Consegui aguentar esse martírio durante quase mil prontuários. A
minha energia e a confiança na veracidade do que coletava foram se
esgotando. Não tinha muita segurança quanto aos dados, devido à fonte
inadequada de que dispunha. A cada cinquenta prontuários, parecia-me que
apenas um era confiável.
Temos tendência a acreditar em tudo o que lemos. Depois dessa
experiência pessoal, comecei a ficar mais cético em relação às pesquisas
médicas. Quem pode garantir que gente exausta e com essas dificuldades
não acabe se embaralhando com os dados ou que, para obter um bom
número de casos, acabe sendo liberal demais para com os relatórios
incompletos?
Achei que estava gastando muito tempo em algo que, no meu íntimo,
não me deixava confortável.
Decidi gastar mais energia estudando o que já fora pesquisado do que
pesquisando o que não fora estudado. Mais uma vez, voltei a minha atenção
ao curso curricular.
Como examinar um paciente

Fim do curso básico. Os doentes ainda eram algo distante para mim.
Entretanto, antes que o curso médico o fizesse, o destino acabou antecipando
esse contato na forma de uma ingrata surpresa.
Um dos meus colegas, que ultimamente não se sentia bem, começou
a ter convulsões. Só não morreu porque o levaram ao hospital, onde foi
diagnosticada grave falência dos rins. Estava inchado, com pressão alta e
toxinas em concentrações elevadíssimas em seu sangue. Começou a fazer
diálise e pouco tempo depois, muito deprimido, submeteu-se a um
transplante renal. No primeiro dia de pós-operatório, fomos visitá-lo.
Tentando animá-lo, um amigo falou:
— Fique tranquilo. Ouvi casos de transplantados que viveram até dez
anos!
Que maravilha deve ter sido ouvir isso no terceiro ano da faculdade.
Mais quatro anos para se formar, oito com a especialização, e depois ele
morreria?
Quase linchamos o nosso colega pelo seu comentário descerebrado.
E descabido, pois o colega ainda vive normalmente.
Esse relato serve para mostrar como éramos totalmente crus. No
terceiro ano começaria o tão esperado contato com os pacientes. Entretanto,
como pude perceber, essa introdução é gradual, entre outros motivos, para a
própria segurança dos doentes.
Inicialmente, os pacientes apareciam apenas como reforço do tema
ensinado nas aulas teóricas. Por exemplo, logo depois de estudar
insuficiência hepática, íamos ao hospital conversar com algum enfermo que
estivesse sofrendo desse mal. É um dos melhores métodos para fixar o
aprendizado teórico. A prova disso é que nunca mais me esqueci dessas
aulinhas.
Quando começamos a ter aulas práticas, nós nos pavoneávamos para
cima e para baixo, vestidos de branco e ostentando os nossos estetoscópios
como se fossem coroas reais. Como se o simples fato de portar tais
instrumentos nos transformasse em autoridades ou em alunos superiores aos
demais. Nós os carregávamos até quando íamos assistir às aulas de fraturas,
em que os ortopedistas não fazem muita questão de conhecer a sua serventia.
Certa vez, estávamos no estágio de cirurgia plástica e reparadora e
fomos apresentados a uma moça que se queimara no fogão enquanto
cozinhava. Ela havia convulsionado devido à epilepsia, da qual se tratava
sem regularidade, e caíra desmaiada em cima do fogão aceso. Sua mama,
gravemente queimada, necessitou de enxertia: uma técnica utilizada no
tratamento de queimaduras profundas que retira uma camada fina de pele
saudável para cobrir a área atingida. Nesse caso, após a cicatrização, ficou
sem o mamilo.
Sentamos ao redor da paciente formando uma roda. O professor
então nos perguntou como poderíamos reconstituir o mamilo.
Todos pararam para pensar, talvez tão ansiosos quanto a paciente por
alguma resposta genial. De repente, um dos "moços-de-branco-ede-
estetoscópio" arriscou:
— Podemos retirar seu clitóris e implantá-lo na mama! Na mesma
hora a paciente se retraiu, cobriu com as mãos a sua região pudenda e
começou a gritar:
— Comigo não, comigo não. Prefiro ficar sem mamilo! Socorro! O
professor precisou acalmá-la, explicando qual seria a técnica mais adequada
em seu caso e lembrando que aquilo não era uma junta médica, e sim uma
aula prática para alunos de Medicina...
Apesar desses memoráveis encontros, foi somente no curso de
propedêutica que começamos a aprender como colher a história clínica e
realizar o exame físico. Aí, sim, podíamos sentir o verdadeiro gostinho de
"ser médicos" e, ainda, sem o peso da responsabilidade.
No início, como em qualquer outro tipo de aprendizado,
encontrávamos muita dificuldade para realizar essas atividades.
Precisávamos transparecer normalidade aos pacientes enquanto
executávamos tais passos, mas parecíamos máquinas sem óleo tentando
funcionar aos trancos e barrancos. E o pior de tudo é que muitas vezes
perdíamos até o propósito do que estávamos realizando. Comportamento
totalmente artificial!
Quando uma equipe termina o período de plantão deve relatar, para a
equipe que a substitui, todos os casos e as condutas tomadas. Isso é o que
chamamos de passagem de plantão. Ao assistir a alguns médicos passando
rotineiramente o plantão, tinha a impressão de que nunca conseguiria fazer
aquilo. Como eles decoravam e descreviam várias histórias e exames físicos
de múltiplos pacientes e, ainda, conseguiam raciocinar sobre as
possibilidades diagnósticas ao mesmo tempo? E tudo a toque de caixa!
Logo ao primeiro dado alterado da história ou do exame físico de
algum caso discutido, já me perdia. Gastava um tempo enorme para
raciocinar nas hipóteses diagnósticas, enquanto eles já estavam passando
outros dados que abriam portas a novos diagnósticos!
Claro que com a prática tudo passa a ser automático e simultâneo. O
primeiro passo a dar e, sem dúvida, o mais importante, era a anamnese.
Anamnese? O que é isso?

Ambulatório de clínica médica. Moço com estranhos sintomas.


Já bem longe da puberdade, o jovem havia notado um aumento
gradual de suas mamas, acompanhado de alteração no timbre da sua voz.
Ambas as alterações eram notáveis ao exame físico.
O médico que assistia aos alunos e residentes (médico assistente)
perguntou ao paciente se ele estava usando anabolizantes ou alguma droga, o
que ele negou veementemente.
O caso chamou a atenção dos professores, que passaram a discutir
várias síndromes raras tentando explicar os achados clínicos. O leque de
opções diagnósticas era enorme, assim como o número de exames
possivelmente necessários. Quais testes deveriam solicitar visando a
confirmar ou descartar síndromes que poderiam ser endócrino-metabólicas,
neurológicas, urológicas ou, até, genéticas?
Diferentemente da concepção dos médicos, para os alunos e o
paciente, "droga" significaria apenas algo ilícito. Enquanto os médicos
discutiam sobre quais exames pedir, um aluno foi completar a sua "listinha
de perguntas que não posso me esquecer de formular". Perguntou ao
paciente se ele estava tomando alguma medicação, e ele disse que sim. Ao
ser perguntado sobre qual seria o medicamento, ele cochichou:
— Estou tendo relações sexuais com a minha namorada, mas o pai
dela não pode saber. Para que não corramos riscos de ser descobertos, eu é
que estou tomando os anticoncepcionais dela...
Parece bobagem, mas é um ótimo exemplo de como a história clínica
é fundamental. Às vezes uma simples pergunta reduz drasticamente o custo,
o tempo e o sofrimento de qualquer tratamento, sem contar com a queima
desnecessária de massa cinzenta.
Várias pessoas têm a curiosa impressão de que o médico faz
diagnóstico por meio do exame físico ou dos exames complementares. Ledo
engano!
O diagnóstico, na maioria das vezes, é alcançado pela história
clínica. Anamnese é a história que disseca cronológica e detalhadamente os
eventos relacionados com o atual quadro clínico. É fundamental para o
profissional saber obtê-la de forma adequada, se pretende alcançar bons
resultados diagnósticos e terapêuticos.
Isso explica por que os médicos detestam ser solicitados para dar
apenas uma olhadinha, ou por que havia numa Faculdade deVeterinária a
seguinte placa:
Consulta 50 reais
Só uma olhadinha 100 reais

Ao dar uma rápida olhadinha, nós, médicos, precisaremos aplicar


conhecimentos que vão desde a anatomia até a farmacologia, mas teremos
maior dificuldade para chegar ao diagnóstico sem uma avaliação adequada.
Cai a nossa eficácia e não ficamos isentos da responsabilidade!
A história é a nossa pedra fundamental, sendo útil em praticamente
todas as situações. Assim, irei explicá-la um pouco melhor.
Ela é dividida em cinco partes:

1. Queixa e duração
Aqui o médico, de forma rápida e sucinta, identifica qual é o
problema que aflige o doente, buscando focar a condução do interrogatório.
A duração ajuda a determinar a urgência e a gravidade do caso. É um
poderoso instrumento na triagem médica.
Em grandes hospitais públicos, a procura por atendimento pode ser
enorme. Para separar urgências de não urgências e orientar o
encaminhamento e tratamento de todos os que procuram o hospital, existe o
médico da triagem. Este precisa ser experiente para, de forma rápida e
segura, separar os pacientes sem prejudicá-los. Ele não pode bloquear todos
os atendimentos, pois certamente estará mandando embora urgências mal
"triadas". Por outro lado, não pode deixar qualquer caso crônico entrar, o que
atrasaria ainda mais o pronto atendimento das urgências. Na maioria das
vezes, essa divisão é fácil, graças a duas simples perguntas: "Qual é o seu
problema e há quanto tempo?".
— Dor nas costas desde ontem!
A conduta será o atendimento imediato com o ortopedista do pronto-
socorro.
— Dor nas costas há mais de dez anos! A conduta será o
encaminhamento ao ortopedista do posto de saúde.

2. História pregressa da moléstia atual


Nela, o médico dirige a história do doente, dando ênfase ao que pode
estar relacionado à sua queixa inicial. É a parte realmente trabalhosa, que
exige arte e uma técnica enorme. O colega precisa saber ouvir, mas deve
ajudar o paciente a chegar onde precisa. Não interessa ouvir se sicrano come
muito feijão ou se tem hemorroidas, quando o seu problema é um tiro no
peito!
Parece um bate-papo, mas na verdade envolve uma série de métodos.
Não devemos, por exemplo, influenciar as respostas. Ao perguntar se a dor é
em peso ou queimação, já restringimos a resposta a apenas duas opções. Não
é fácil.
O diálogo a seguir entre um médico e seu paciente representa apenas
um dos tipos de dificuldade que enfrentamos:
— O que a trouxe? — O ônibus, né! — Onde começou a dor? — Na
casa de uma prima. Ela mora na Bahia... — Usou algum remédio? — Uns
comprimidos vermelhinhos.
Por mais que finja, o médico nunca sabe a cor do comprimido. Não
perca tempo com isso!
Imagine tirar a história clínica desse paciente durante um plantão de
pronto-socorro, sem parecer indelicado ao tentar separar o joio do trigo.
Precisamos de muita paciência e compaixão.

3. Antecedentes pessoais e hábitos


Haveria alguma doença, cirurgia, medicação, alergia ou hábito que
poderia ter colaborado para o aparecimento ou o agravamento dos sintomas?
Quando o médico menospreza esse passo, pode cair numa armadilha.
Veja o que aconteceu com um cirurgião ao tirar uma história sem pesquisar
adequadamente os antecedentes:
— O senhor está com apendicite! — Mas não é possível. Tem
certeza? — Não há dúvida. Tudo indica — falando com o peito estufado e as
pálpebras semicerradas — tratar-se de uma apendicite aguda! — Mas eu já
retirei o apêndice... — Talvez — ainda no pedestal — tenha sido mal
operado. Devem ter deixado um pedaço dele. — Mas foi o senhor que me
operou. Não se lembra?

4. Antecedentes familiares
Uma queixa de alteração do hábito intestinal me deixará mais
preocupado em relação a um paciente que possui vários familiares falecidos
por câncer do intestino do que a um aluno morando numa república, cuja
dieta costuma ser macarrão com pizza e gelatina.

5. Interrogatório sobre os diversos aparelhos


Busca ativa do médico por outras alterações e sintomas em todos os
sistemas (eventualmente esquecidos no relato dado pelo paciente),
investigando-os de forma holística. Parte fundamental para tratar uma pessoa
e não o seu estômago.

Apesar do treino, às vezes obter uma anamnese pode ser um parto a


fórceps. A história clínica mais difícil que já tirei foi numa aula de
propedêutica neurológica.
O professor, sem saber dos diagnósticos, distribuiu aleatoriamente os
alunos pelos leitos da enfermaria de neurologia. Nossa missão seria colher
uma história clínica em "apenas" uma hora. Caí com o número onze e
extrapolei o tempo disponível, pois não conseguia encontrar nexo no que o
paciente falava. Esgotado o período, o professor pediu que eu relatasse o
meu caso clínico para o grupo. A história era terrível, sem pé nem cabeça.
Desculpei-me alegando que o paciente era muito difícil, quando tive de
engolir um famoso bordão em Medicina:
— Não existe história difícil, e, sim, quem não sabe tirá-la!
Estimulante para quem está aprendendo, não? Mas a vingança não tardou.
Para que pudesse mostrar aos outros alunos sua refinada técnica, o professor
foi entrevistar o meu paciente. Logo viu que entraria em apuros, caso não
tivesse percebido o problema. O doente possuía afasia de Wernicke, devido a
um derrame cerebral. Em outras palavras, ele falava fluentemente, mas sobre
coisas totalmente sem sentido. Quando eu perguntava as horas, ele respondia
garfo ou verde. Nunca tinha visto isso e, sem conhecer a existência de uma
patologia assim, escrevi a história mais esdrúxula que o professor teria
ouvido. Ele desculpou-se pela sua própria rigidez e nos ensinou um pouco
mais sobre a síndrome.
Além de todas as técnicas que tinha de aprender, sofria grande
dificuldade para decorar tudo o que o paciente falava, filtrar o importante,
passar para o papel e, finalmente, raciocinar no diagnóstico e na conduta.
Não sabia ainda me focar no que era pertinente nem refletir enquanto ouvia.
Aliás, ficávamos mais preocupados com as perguntas que precisaríamos
aplicar do que com as respostas. Ainda não sabíamos fazer o mais
importante: ouvir.
No início, as perguntas são decoradas. Às vezes as esquecíamos ou
as fazíamos sem a menor necessidade, uma vez que não estavam sendo
elaboradas com base num raciocínio lógico, mas na decoreba. Mais uma vez,
faziam parte da "listinha de perguntas que não devemos nos esquecer de
fazer". Por isso, no começo, as histórias dos terceiro-anistas são verdadeiros
tratados de besteirol, recheadas de dados inúteis e indagações, algumas vezes
até inconvenientes. Esse problema ocorre porque o questionário não deve ser
sempre o mesmo. Ele muda de acordo com o contexto. No começo, somos
muito rígidos para mudar também. Isso me levou a vivenciar uma série de
situações interessantes, como:
— A senhora sente falta de ar quando anda? — Se a paraplegia me
permitisse andar, talvez eu soubesse lhe responder!
— O senhor está com a menstruação atrasada? (Afinal, sempre temos
que perguntar da parte ginecológica...)
Às vezes escrevíamos enormes bobagens sem pensar, compatíveis
apenas com a que li na bula do medicamento que se compra para o filho:
"Contraindicações da pomada específica para tratamento de fimose: gravidez
e amamentação'
Pergunto-me: "Mulher grávida por acaso trata de fimose? Homem
amamenta?"
Passado algum tempo, finalmente aprendemos a ser mais maleáveis
e, principalmente, a pensar enquanto conversamos, para que as perguntas
sejam úteis e direcionadas ao que nos interessa. Superada essa fase,
passaríamos por novos desafios visando a desenvolver a segunda ferramenta
mais poderosa da propedêutica: o exame físico.
Treinando os cinco sentidos

Estávamos sentados na enfermaria da cirurgia geral esperando pelo


professor para mais uma aula de propedêutica cirúrgica. A equipe de
residentes daquela enfermaria era muito gozadora. Fingindo que nem notara
nossa presença enquanto cumpria suas obrigações, o R1 perguntou ao R3:
— Eu retirei a bolsa coletora do dreno abdominal daquele paciente
que foi operado do intestino.
Mostrando a bolsinha com seu conteúdo amarronzado, ele continuou:
— Qual será a origem desta secreção? É claro que nessa hora todos
queríamos aprender também. Fingindo não estar prestando atenção na
conversa, afinamos nossos ouvidos.
O R3 pegou o coletor em suas mãos, olhou atentamente para seu
conteúdo (previamente preenchido com leite achocolatado) e, didaticamente,
proferiu:
— Você se lembra da importância de nossos sentidos. Olhe! Tem cor
de fezes.
— Cheire. Tem cheiro de fezes! — Hã, hã! E, então, rápida e
simultaneamente, ao sorver o líquido, concluiu: — Se tem gosto de fezes, só
podem ser fezes! O R1 agradeceu a explicação e foi embora caminhando,
como se tivesse assistido à coisa mais normal do mundo. Ficamos
boquiabertos...
Aprender a realizar o exame físico é muito interessante, pois acaba
sendo um treinamento para os cinco sentidos. Aqueles residentes sabiam que
os alunos no terceiro ano eram ávidos por essas descobertas. Ficávamos
ansiosos como se fôssemos aprender a utilizar superpoderes ainda ignorados.
Os olhos são tão treinados para enxergar cada nuance que eu ficava
imaginando como alguém havia reparado naquilo pela primeira vez. Depois
de notar que determinada lesão é um pouco mais cinza ou granulosa do que a
outra, a diferença parece saltar aos olhos!
Algumas alterações são quantificadas em cruzes. Anemia uma cruz
(+) é mais leve do que quatro cruzes (++++). Para se aferir isso, só na
prática.
Os ouvidos são treinados para diferenciar um sopro cardíaco causado
pelas diferentes válvulas do coração. É "tunsshhtá" ou tunshhhá"?
Começamos a reconhecer o cheiro de uma apendicite perfurada,
distinguir o odor de um sangramento nas fezes originário do estômago ou do
intestino e até de uma secreção no curativo causada por diferentes tipos de
bactérias.
O tato é fundamental para perceber um fígado aumentado, febre,
rigidez muscular ou a textura de algum órgão doente.
Vários outros detalhes nos vão sendo ensinados, sem que o
percebamos. Que força devo fazer para palpar um fígado? E para fazer uma
massagem cardíaca? Qual será o tônus normal de um músculo abdominal?
Eu não me esqueci do paladar, mas, por sorte, inventaram o exame de
glicemia. Não precisamos mais pesquisar diabetes experimentando a urina
para ver se está docinha. Hoje só bebe urina o crédulo em urinoterapia.
Da mesma forma que a anamnese, o exame físico é padronizado e
focado na queixa do doente. Quando bem realizado, é um importante
instrumento para confirmar, mudar ou acrescentar hipóteses diagnósticas.
Além disso, pode nos mostrar o grau de repercussão que a doença está
causando, eventualmente mudando a sequência das condutas terapêuticas e
ou diagnósticas.
Visando à prática do exame físico, os professores de propedêutica
nos levavam a várias enfermarias todos os dias. O objetivo era examinarmos
casos já em tratamento, com diagnósticos e achados bem típicos ao exame
físico. Alguém internado com hepatite provavelmente seria examinado pelos
alunos para aprender como detectar uma icterícia (olhos amarelos, urina cor
de coca-cola e fezes com a cor de massa de vidraceiro). Um indivíduo com
pneumonia teria os pulmões auscultados e assim por diante.
No começo, a realização do exame físico também não é automática e,
às vezes, esquecíamo-nos de pesquisar algo. Ou pior, pesquisávamos a mais.
Lembro-me de uma paciente com tosse, de quem examinei tudo,
menos o sistema respiratório... E de quantos outros com queixas simples,
mas em quem realizávamos até testes neurológicos minuciosos ou exame do
ouvido...
Com o tempo, o futuro médico aprenderá como realizar um exame
mais dirigido, não se esquecendo de observar os pontos fundamentais de
determinada doença. Não é preciso examinar a orelha de. quem está com
unha encravada, mas não podemos abolir o toque vaginal na suspeita de
infecção ginecológica!
Esse treinamento vai sendo realizado nas diferentes especialidades.
Não era incomum sermos submetidos a exames e procedimentos, servindo
assim de cobaia voluntária para o aprendizado dos outros alunos.
Fui cobaia na maioria desses testes, o que acabou me rendendo um
check-up peculiar, mas gratuito. Auscultaram-me, colheram meu sangue,
urina, fiz eletrocardiograma, radiografia de tórax, eletroencefalograma e, até,
exame de fundo de olho. Aliás, diga-se de passagem, houve o caso de um
colega que, por ter olhos claros, foi o escolhido para ser examinado na aula
de oftalmologia. Logo notaram algo estranho em seu fundo de olho. Para
tirar as dúvidas, chamaram o professor que, ao examiná-lo, diagnosticou um
melanoma na retina. Este é um câncer agressivo que, graças ao diagnóstico
precoce, pôde ser curado através da retirada do seu olho. Pelo menos em
mim, não acharam nada.
Após dominarmos a realização dos testes de exame físico,
precisamos aprender a interpretá-los. Um achado em determinado paciente
pode ser relevante ou não. Muitas vezes, os próprios testes não podem ser
universalizados.
Vivi um bom exemplo disso com um teste comumente realizado para
avaliar doenças neurológicas, como demência e outras alterações cognitivas
(Mini Mental). Nele, são solicitadas pequenas tarefas em que o desempenho
do paciente será analisado em relação à orientação (espacial e temporal), à
memória de palavras e à linguagem. Dependendo das alterações encontradas,
podem ser indicadas provas específicas.
O paciente que entrevistamos possuía uma rara alteração
neurológica. Ele foi trazido ao hospital universitário após ter sido atendido
em vários outros serviços, sem que lhe fizessem pelo menos um diagnóstico.
Ainda estava em investigação. Na aula, o professor sugeriu que
realizássemos nele alguns testes, incluindo o Mini Mental. Num desses, meu
colega pediu ao paciente para que falasse o nome de todos os animais que
conseguisse, durante um minuto. E este começou:
— Vaca, jegue, cavalo, cachorro, galinha, porco,... tatu, calango!...
Vaca, jegue, cavalo, cachorro, galinha, porco, ...tatu, calango!... Vaca, jegue,
cavalo, cachorro, galinha, porco,... tatu, calango!
Ficamos empolgados com a descoberta de algo errado em seu teste.
Seria uma demência, algum déficit de memória?
Não, não era nada disso. O paciente morava no meio da caatinga
desde que nascera. Ele não conhecia nenhum outro bicho além daqueles
cujos nomes repetia sem parar — e sem novas opções! Seus testes eram
normais e logo percebemos como devemos ser prudentes na interpretação de
qualquer avaliação.
Muitas vezes a história e o exame físico não fornecem o diagnóstico.
O que fazer então?
Uma das possibilidades é a observação clínica. Assim como tempo,
incubação e características de apresentação inicial, as doenças também
possuem uma evolução esperada. Uma dor abdominal que desaparece não
pode ser uma perfuração intestinal. A febre de uma gripe não dura três
meses...
Às vezes, a observação clínica nos fornece dicas para chegar ao
diagnóstico muito mais rapidamente do que imaginávamos.
Um paciente procurou atendimento por acessos de tosse e vômitos
havia meses. Era um japonês bem magrinho e recatado, beirando os seus
setenta anos. Sempre trabalhou na roça e falava muito pouco em português,
com um forte sotaque. Durante a história clínica, tive muita dificuldade em
conversar, dado o seu escasso vocabulário. Mesmo quando ele entendia a
pergunta, muitas vezes eu não compreendia a sua resposta.
Enquanto tentava colher a história clínica da melhor forma possível,
tive a impressão de que a sua pochete se movia. No começo parecia ser só
um palpite, mas com o tempo percebi que os movimentos continuavam.
O mistério da bolsinha, que parecia estar viva, começou a me intrigar
muito mais do que o diagnóstico do doente.
Eu ainda não tinha grandes hipóteses diagnósticas quando resolvi
examiná-lo. O paciente tirou a camisa e a deixou, com a pochete, em cima
da escrivaninha. Postada, se mexeu. Não tive mais dúvidas, era animada!
Em Medicina, dentro do possível, tentamos juntar todos os fatos e
sintomas na mesma síndrome. Mas terminei o exame físico sem chegar a um
diagnóstico. Seriam necessários exames complementares.
Nesse caso, porém, a breve observação clínica mostrou o seu
potencial ao esclarecer o enigma.
Enquanto preenchia um formulário para requisição de exames,
tentava organizar meus pensamentos a fim de discutir o caso com o médico
assistente. Durante esse breve período, o paciente teve um forte acesso de
tosse. Tossiu, tossiu, tossiu e começou a regurgitar várias lombrigas.
Pediu desculpas e, com toda a simplicidade do mundo,
cuidadosamente recolheu os vermes do chão e os guardou em sua pochete.
Afinal, cuspir lombrigas no chão é falta de educação.
Não havia mais necessidade de raciocinar nem de pedir exames. O
paciente estava superinfestado por vermes...
Mas a observação clínica também falha. Aí, lançamos mão da quarta
e, atualmente, mais alardeada ferramenta.
Os exames complementares

É curioso notar que parte das pessoas não percebe existir um sentido
lógico na investigação médica. Ele existe e é fundamental.
Após realizar a anamnese, o médico faz suas hipóteses diagnósticas e
busca um maior detalhamento pelo exame físico. O bom profissional
costuma fazer várias suposições, embora deva se focar nas mais prováveis
ou emergenciais. Caso o diagnóstico ainda não seja confirmado, entrarão em
cena os exames complementares. O objetivo deles será confirmar ou afastar
as hipóteses.
Entendo que, com a desmoralização da profissão em razão de
médicos incompetentes e negligentes, pelos baixos salários, pela
segmentação do paciente em especialidades e pelo glamour com que a
moderna tecnologia é anunciada na mídia, os pacientes acreditem que os
exames possam ser mais importantes do que a anamnese. Isso não é verdade.
Os exames são fundamentais, mas não deixam de ser
complementares. Eles complementam a história clínica e o exame físico,
jamais podendo substituí-los. Muitas vezes, após vários exames
sofisticadíssimos que não levaram a nenhum diagnóstico, resolvemos
conversar novamente com o doente para ver se captamos alguma dica do que
está acontecendo!
Por isso, para irritar qualquer médico, basta dizer: "Não precisamos
nem conversar. Vim aqui porque quero um "raios X'!".
Com tal atitude, o paciente anula toda essa parte de conhecimento e
raciocínio e nos transforma instantaneamente em escriturários solicitadores
de exames. Ao mesmo tempo, nos força a funcionar de um modo a que não
estamos habituados, o que diminui nossa eficácia e segurança. Apesar disso,
continuaremos sendo responsáveis pelos nossos atos, o que nos trará certo
desconforto.
Não demorou muito para que eu passasse por algo parecido... Após
cumprimentar o paciente, iniciei o interrogatório. Tudo bem que no início
éramos meio prolixos, mas ele logo me interrompeu, dizendo que estava
com tosse. Não queria ficar no lero-lero, precisava de raios X do peito e
pronto! Essa é uma típica postura desestimulante para qualquer estudante
ansioso por realizar exames físicos, raciocinar e chegar a diagnósticos.
Nesse caso, o residente também ficou incomodado com a abordagem
do paciente, mas acolheu a sua ordem. Achei estranho; nem conversar ou
nem examinar o paciente? Apenas pediu o exame.
Existem várias formas de se realizar uma simples radiografia de
tórax. Cada uma delas tem detalhes técnicos que diferem de acordo com o
objetivo do examinador.
Se a indicação da radiografia for por causa de uma pneumonia,
deverá ser realizada nas incidências ântero-posterior e perfil; para descartar
um pneumotórax, o melhor momento será durante a expiração; para analisar
uma fratura no esterno, a carga de radiação precisa ser mais intensa. Que tipo
de radiografia o médico solicitaria, uma vez que desconhecia o seu objetivo?
Será que a radiografia era mesmo necessária ou apenas corresponderia a uma
amostra grátis de radiação?
Fiquei angustiado. E se o paciente estivesse infartando? Não
deveríamos tê-lo alertado sobre a necessidade de um eletrocardiograma? Ele
poderia morrer no setor de RX esperando um exame inútil por nossa causa!
Quando a chapa ficou pronta, o residente lhe entregou educadamente
o envelope, virou as costas e saiu do recinto. O senhor ficou meio perdido e
perguntou pelo resultado. Foi a deixa para o R-3 perguntar ao paciente se ele
desejava uma radiografia ou uma avaliação. Afinal, ele não saberia
interpretá-la sem antes examiná-lo. Então, realizou uma consulta decente (na
visão do médico) e cheia de lero-lero (na visão do paciente). Tratava-se
apenas de um resfriado, sem a menor necessidade de radiografia...
Os exames complementares são uma das maravilhas da medicina
moderna. Hoje, por exemplo, é quase uma piada fazer diagnóstico de
inflamação da vesícula com o ultrassom (mas não podemos nos esquecer de
que, às vezes, indicamos cirurgia a pacientes com diagnóstico clínico de
colecistite, mesmo com o ultrassom normal. Afinal, nenhum exame alcançou
a acurácia diagnóstica das bolas de cristal).
A ultrassonografia é um recurso que não existia em nenhum hospital
há meros vinte anos. E, quando existia, até o radiologista demorava a
entender o que via, dada a baixa qualidade da imagem. Na atualidade, as
imagens são fantásticas, apesar de ainda necessitarmos daquele gel
gosmento.
Não pedimos bexiga cheia nem passamos gel à toa. O objetivo é
facilitar o exame, uma vez que o ultrassom não atravessa nem a fina lâmina
de ar entre o aparelho e o seu abdome. Caso você ainda tivesse dúvidas, isso,
na minha opinião, provaria que a saga de J. J. Benitez "Operação Cavalo de
Troia" é uma ficção. Nela, o herói realiza uma ultrassonografia à distância de
Jesus, sem lambuzá-lo, enquanto ele é crucificado.
Com a evolução tecnológica, os exames ficaram tão sensíveis e
específicos que algumas vezes tendem a atrofiar nosso cérebro. Apesar de
não ser a regra, em várias circunstâncias o médico pode ser tentado a se
fazer o seguinte questionamento: "Pára que executar uma minuciosa
propedêutica neurológica, chegando ao diagnóstico em uma hora, se posso
solicitar uma tomografia sem queimar meus neurônios?".
Realmente é uma tentação. Mas quem segue esse raciocínio deixará
de promover uma interação adequada entre o quadro clínico e os exames
complementares; uma hora, fatalmente, cairá do cavalo...
Um rapaz deu entrada num hospital com queixas neurológicas
incomuns, iniciadas havia poucos minutos. O neurologista o examinou
superficialmente e solicitou uma série de exames. Após tomografia, liquor e
ressonância normais, ele recebeu alta com a suspeita de uma manifestação de
fundo emocional.
O paciente, insatisfeito, pois ainda apresentava os sintomas, procurou
outro hospital. Dessa vez, por meio de uma boa anamnese e um exame físico
detalhado, o neurologista chegou ao diagnóstico.
O paciente estava intrigado, pois seus sintomas começaram
justamente após comemorar um gol do seu time. Nessa hora, ele estava
sentado na arquibancada quando, subitamente, levantou-se estendendo os
braços e a cabeça para trás. Ao ouvir o relato desse movimento, o
neurologista logo suspeitou de uma lesão arterial (rompimento do
revestimento interno da artéria obstruindo parcialmente o seu próprio fluxo),
que foi posteriormente confirmada e tratada por arteriografia. Nesse exame,
o médico estuda os vasos injetando um líquido que se molda às suas paredes
e é visível aos raios X. O procedimento é diagnóstico e pode ser terapêutico
(um exemplo famoso seria o cateterismo cardíaco). Não existe o menor
sentido em se pedir rotineiramente esse exame, mas ele foi fundamental para
confirmar a suspeita clínica nesse caso. Talvez, com uma história adequada
desde o início, dinheiro, tempo e adrenalina tivessem sido economizados.
Existem vários motivos para pedirmos exames. Mas se eles
acrescentam alguma informação, então por que não pedi-los sempre?
Por algumas razões:

1. Se o exame não vai mudar a conduta médica, não tem


utilidade!
Esta é uma regra muito simples. Imagine um menino com história
típica de apendicite e exame clínico com evidentes sinais de irritação interna
do abdome, que tornam a indicação de uma intervenção cirúrgica
obrigatória. Para que o cirurgião pediria nesse caso um ultrassom, se
independentemente do seu resultado a abordagem cirúrgica será inevitável?
Lembre-se de que não existe bola de cristal e, com certa frequência,
vemos exames normais nos pacientes com apendicite.

2. Os exames podem aumentar custos sem trazer vantagens


adicionais.
Se a radiografia simples de abdome mostrou perfuração do intestino
com indicação cirúrgica, por que realizar uma tomografia? Aumentaria o
custo, o tempo de pré-operatório e não alteraria a conduta definitiva.

3. Às vezes os exames podem atrapalhar, desviando o foco do


problema e causando males desnecessários.
Neste contexto, foi descrita a "VOMIT syndrome", ou "Victim Of
Modern Image Technology" (vítima da tecnologia de imagem moderna)!
Um grande exemplo disso ocorreu quando a ressonância magnética
ainda engatinhava. A ressonância, hoje em dia, é um exame imprescindível
em ortopedia. É tão sensível que detecta lesões até onde não deveriam ser
vistas. Digo isso porque algumas vezes, apesar de existirem, não possuem
significado clínico nem precisam de tratamento. Entretanto, antes de os
médicos se acostumarem à utilização do método de forma mais criteriosa,
algumas lesões foram superestimadas e operadas sem necessidade. É a típica
situação em que o médico trata o exame e não o doente.
As vítimas da síndrome também se incluem entre os pacientes em
que o médico procurando (às vezes desnecessariamente) alho, acaba pedindo
exames e encontra a suspeita de bugalho. Bugalho este que o leva a pedir
outros testes, submetendo o paciente a uma série de procedimentos, no final
das contas, inúteis.

4. Os exames podem fazer mal.


Estava assistindo a uma aula sobre esôfago de Barrett. Trata-se de
uma alteração que aumenta a incidência de câncer do esôfago em seus
portadores. Quando diagnosticada, os pacientes devem submeter-se a
endoscopias de rotina para detecção precoce do câncer, caso este venha a se
desenvolver. Discute-se qual seria o melhor intervalo de tempo entre os
exames. Mais endoscopias talvez pudessem prevenir mais cânceres, mas
certamente aumentariam os custos. O inverso também poderia ser
verdadeiro.
O professor, jocosamente, defendia a opinião de que o intervalo entre
as endoscopias fosse ampliado, alegando que apenas um paciente do seu
ambulatório especializado havia morrido por causa do Barrett. Mesmo
assim, de forma indireta.
Esse paciente estava esperando a sua condução para ir ao hospital
realizar a endoscopia de rotina (prevenção de câncer no Barrett), quando foi
atropelado por uma ambulância e morreu. Talvez, se pedissem menos
exames, ele ainda estivesse vivo.
É cada vez mais raro ver complicações dos exames, mas existem e
podem ser previsíveis. Ou não, como a que foi relatada.
Das "esperadas", podemos citar a reação anafilática ao contraste da
tomografia, a perfuração acidental do intestino durante a colonoscopia, o
hematoma no cateterismo e as mutações causadas por radiação... A lista é
interminável. Também considerável é a lista das complicações imprevisíveis.
Delas, além das anteriormente citadas, também poderíamos asar como
exemplo o caso do bário contaminado, utilizado nos exames de enema opaco
que mataram pessoas em Goiás em 2003.

5. Exames custam caro e sempre há alguém pagando por eles.


Como na maioria das vezes são os convênios que pagarão os exames,
alguns pacientes têm aquela ideia de que "como pago caro, vou fazer
bastantes exames"! É o que chamo de o raciocínio da churrascaria-rodízio.
Mas quando não existe indicação médica trata-se de um desperdício de
dinheiro. E se quem paga o exame é o convênio, saiba que o número de
exames estará diretamente relacionado às suas futuras mensalidades ou à
impossibilidade de ajuste dos honorários médicos. Se for o Estado, saiba que
as verbas mal geridas têm fim e, eventualmente, poderiam ter sido mais
úteis. Se o dinheiro for seu, talvez seja mais agradável gastá-lo na mesa de
um restaurante do que num tubo de pomada para assaduras, após a
colonoscopia.
Apesar de tudo o que escrevi, o fato é que as pessoas gostam de
exames. Muitas vezes alguns questionamentos do paciente nos ajudam a
abrir o leque de possíveis diagnósticos e podem até mudar a condução do
caso. O grande problema é que sem ter um adequado embasamento teórico,
o paciente muitas vezes "ordena" exames ou tratamentos inconvenientes e
desnecessários.
Quando o doente é mandão, pode ser muito mais fácil acatar todas as
suas ordens e se livrar logo dele do que discutir os porquês de cada exame.
No fim, quem sairá perdendo será o próprio paciente.
Antigamente havia quase uma imposição médico-paciente. Quando o
médico precisava amputar a perna de alguém, ele não conversava com o
doente; simplesmente avisava. Muitas vezes o paciente nem sabia o porquê
da cirurgia. Essa relação foi ficando mais saudável e equilibrada, mas,
depois, infelizmente, começou a pender para o outro lado. Surgiu a
imposição paciente-médico, explicando essa atitude tão comum em nossa
prática diária.
Essa parte humana do atendimento é um dos nossos maiores
desafios. Atender pessoas educadas, atenciosas e compreensivas é fácil.
Difícil é atender pacientes famintos, com dor, após terem aguardado durante
horas em fila de espera e, principalmente, com a falsa sensação de
conhecimento médico...
Aprendemos a pedir provas e análises de forma acadêmica, quando
poderão mudar a conduta ou ajudar a decidir entre diagnósticos e
tratamentos diferentes.
Lembro-me de um senhor que havia sofrido um infarto e estava com
muita dor abdominal. Ficamos em dúvida entre duas hipóteses para justificá-
la: infarto intestinal e diverticulite aguda. Se fosse infarto do intestino e não
o operássemos, ele morreria. Se fosse diverticulite e o operássemos,
aumentaríamos a gravidade do problema cardíaco. A tomografia indicou o
segundo diagnóstico e evitamos uma cirurgia, naquele momento,
desnecessária e muito arriscada.
Foi um ótimo exemplo de como utilizar a tecnologia disponível, mas
no dia a dia existem indicações para se pedir exames que não são,
propriamente, médicos. Dou a mão à palmatória. Às vezes são solicitados
para nos defendermos juridicamente, deixar o paciente feliz, aliviar a sua (ou
a nossa) angústia, demonstrar o potencial diagnóstico de determinada
instituição e, finalmente, para convencer um interrogante de algum
diagnóstico. Tipo de paciente que fica olhando o médico meio de lado, com
um ar de descrença: é o que mais realizará exames desnecessários.
A linguagem médica

"Proparoxítona! Isto tem cura?"

Paciente angustiado, após ter sido corrigido pelo docente quanto à


acentuação da palavra "ínterim".
Embora não tivesse importância alguma do ponto de vista
estritamente curricular, uma das atividades acadêmicas mais disputadas era o
"Show". Trata-se de uma apresentação de teatro criada há mais de cinquenta
anos e realizada anualmente pelos alunos da Faculdade de Medicina. O
espetáculo, besteirol puro, era dividido em três segmentos que se
alternavam. No Balé, os alunos mostravam suas "delicadas" coreografias; no
Coral, as suas músicas; e, nos Quadros, a sua arte cênica, todos parodiando a
vida na faculdade e no hospital.
No primeiro ano da faculdade não entendi quase nada do que
apresentaram no "Show", embora tenha sido muito engraçado: Os principais
motivos para não ter compreendido alguns quadros foram o
desconhecimento da rotina do hospital e, principalmente, da linguagem e da
cultura médicas. Para exemplificar, um dos quadros era sobre um vilão
querendo destruir o hospital com uma bomba de prótons (em vez de
nêutrons), a bomba H+! Então chamaram um super-herói para defender a
humanidade. Seria o Super-homem? O Homem-Aranha? Não: era o
Homeemm-prazol!
Todos riram e eu fiquei "boiando". Era um trocadilho de omeprazol,
medicação que bloqueia as bombas de hidrogênio no estômago para reduzir
a sua acidez. Ninguém seria mais adequado contra uma bomba H+ do que o
Homem-prazol...
Após aprendermos como interrogar e examinar, precisávamos
aprender a comunicação médica, seja entre os próprios médicos seja entre
estes e os pacientes, coisa que incorporamos totalmente pela prática.
Ao nos integrarmos à vida hospitalar, incorporamos, além da
linguagem técnica, as gírias, as abreviações e os epônimos — Aquele ou
aquilo que dá o seu nome a qualquer coisa ou pessoa (Houaiss).
Lentamente, vamos criando um linguajar próprio, nem sempre
compreensível pelo leigo.
Os termos técnicos podem facilmente tornar um diálogo indecifrável,
fazendo com que as pessoas se sintam da mesma forma que eu quando levo
o meu carro ao mecânico. Devemos saber dosá-los principalmente com os
pacientes, um detalhe que alguns médicos esquecem com frequência.
Os epônimos também podem atrapalhar bastante. Apesar de estarem
sendo gradualmente substituídos, alguns, consagrados pelo uso, dificilmente
sairão de moda. Ninguém pede um dreno laminar: pede, sim, um dreno de
Penrose, nome de quem o descreveu pela primeira vez. O uso de epônimos é
tão comum que não é raro ver um médico conversando, com naturalidade, de
modo incompreensível:
— O tumor era um Bormann 3 e acabamos fazendo uma Billroth 2,
depois de soltar o duodeno com uma manobra de Kocher...
Existe uma tendência em abandoná-los, pois, muitas vezes, nem os
médicos sabem o que significam.
Quanto às gírias, variam de hospital para hospital. No primeiro dia de
internato, qualquer um ficaria totalmente perdido. Apenas citando alguns
exemplos, não era incomum ouvir expressões do tipo: -Traga o
"buchômetro", "cave" o exame, colha o "internograma". Calma, calma! Eu
posso explicar... Quando passamos uma visita médica em uma enfermaria,
esta pode ser didática ou "buchativa". Na didática, um professor é inteirado
dos casos por meio dos internos ou residentes e dá sua opinião sobre eles,
ensinando sobre suas doenças. Com isso, os alunos aprendem como passar
um caso e sobre as patologias. Na visita "buchativa", os residentes interam-
se da evolução clínica por meio dos internos e orientam o que deve ser feito
para cada paciente. É uma passagem que tem por objetivo primário definir
condutas médicas e não o ensino (embora nela o aluno também aprenda
como enrolar o professor na visita didática). A agenda que registrava quem
ficaria em jejum, faria tomografia, mudaria de antibiótico ou receberia alta
era o "buchômetro". Cada uma dessas tarefas era designada "bucha".
"Cavar" é tentar fazer algum exame antes do prazo habitual ou em
cima da hora. Tentávamos encaixá-los, quando havia maior urgência, na já
abarrotada agenda do médico responsável pelo procedimento desejado. Isso
não é fácil e, para aumentar as nossas chances de sucesso, existiam vários
métodos que iam desde o emprego de técnicas avançadas em dramaturgia até
o recrutamento de colegas do sexo feminino, digamos, bem agraciadas pela
mãe natureza.
"Internograma" é o nome do conjunto de exames de sangue que mais
comumente solicitamos.
Assim como as gírias que variavam de hospital para hospital,
existiam novos epônimos, criados em cada instituição. A "Mostificação" da
alça intestinal, o ponto de Aninha e a manobra de Diba eram alguns do meu
meio.
Todos têm uma história interessante. A manobra de Diba, por
exemplo, surgiu no atendimento de um paciente alcoolizado que sofrera um
acidente de auto e fora trazido ao pronto-socorro pelo resgate. A sua
avaliação estava sendo realizada por uma residente do primeiro ano de
cirurgia. Era uma japonesa baixinha que passava um ar de delicadeza e
fragilidade. Fazia parte dessa avaliação o toque retal. Apesar da explicação
em linguagem bem acessível de que realizaria esse exame, o paciente não
deve tê-la compreendido. Ao perceber seu início, ele agarrou o braço da
médica e começou a torcê-lo, enquanto dizia: — Aqui só sai! Mesmo tendo
abortado o exame, o acidentado continuava torcendo-lhe o braço de forma
muito agressiva. Dr. Diba estava ao seu lado e tentou soltá-la do golpe, sem
sucesso. Vendo que o bêbado era mais forte do que ele e que estava
realmente machucando a colega, não teve dúvidas: agarrou e apertou com
toda força o saco escrotal do paciente, até que ele soltou a médica. Que eu
saiba, ela nunca precisou ser repetida, mas ficou conhecida como a "eficaz
manobra de Diba".
Como você deve ter percebido, temos que tomar muito cuidado para
sermos compreendidos, o que, às vezes, pode não ser fácil. Tenho, por
exemplo, muito mais dificuldades em dar uma aula para leigos do que para
médicos. Entretanto, muitas vezes, o motivo de não sermos compreendidos é
surpreendente. Colecionei alguns "causos" que exemplificam bem essas
situações esdrúxulas da comunicação médico-paciente.
Eu quase apanhei no estágio de dermatologia. Nessa especialidade é
fundamental olhar e tocar. Para aprendermos, tínhamos de ver várias lesões.
Para isso, nesse estágio, havia as checagens. Nelas, vários pacientes
passavam em sequência por um professor para que ele conferisse os
diagnósticos dos residentes. Assim, os internos aproveitavam para
acompanhá-lo e ouvir os seus comentários. Em poucos minutos, passavam
lúpus, hanseníase, micose, herpes, líquen plano, escabiose, desidrose...
Numa dessas ocasiões, entre esses doentes, quase consecutivamente e
por coincidência, houve três casos de grandes eczemas de contato (lesões
dermatológicas causadas ou por um agente irritante ou quando o paciente é
alérgico).
O primeiro e o segundo pacientes explicaram que teriam sofrido as
alterações após uso tópico de chá de picão (Bidens graveolens — aquela
sementinha de mato envolta por espinhos). Eu nem sei pra que serve o chá
de picão e desconheço a sua popularidade. Mas quando vi o terceiro caso na
sequência, igualzinho, não me contive e, antes de ouvir a história do
paciente, declarei:
— É chá de picão!
O paciente ficou revoltado. Gritou comigo achando que eu estava
duvidando de sua masculinidade. Só não houve agressão física por ele ter
sido contido.
Em boca fechada não entra mosquito.
Durante o estágio de cirurgia plástica, acompanhei um paciente que
se recuperava de um reimplante do braço após uma amputação traumática.
Todo santo dia eu narrava a sua evolução clínica na visita que o professor
passava. Meu relato seguia uma padronização, começando com o nome do
paciente e em qual pós-operatório (PO, no jargão médico) ele se encontrava:
— Seu João, 3º P. O. do reimplante, blá-blá-blá. Lá pelo quinto dia
da evolução médica, o paciente começou a soluçar e chorar no meio da
visita. Apreensivos e curiosos, perguntamos o porquê de seu repentino
desespero, ao que ele respondeu:
— Apesar de o doutor todo dia me falar que estou melhorando,
desmente na visita, falando que estou cada vez pior. Já estive no primeiro
pior, segundo pior, e já estou no quinto pior, não sei onde isto vai parar...
Outras vezes a comunicação não funciona porque o médico não
entende o paciente. Isso pode ocorrer, entre outros motivos, devido à
existência de dialetos regionais ou pelo desconhecimento do significado de
termos utilizados por eles. A lista de expressões idiomáticas é tão grande
quanto a imensidão geográfica brasileira. Como, em nosso país, a saúde não
anda tão bem assim, era frequente recebermos pacientes vindos de tudo
quanto é canto do Brasil para resolvermos seus problemas:
— Doutô, faz cinco dia que num Obro. Sai vento, mas tenho umas
coxada na pança que parece que a tripa grande qué cume a tripa pequena.
Fora um fastio danado e os gômito!
Mesmo desconsiderando as gírias e os regionalismos, alguns
diálogos interessantes surgem a toda hora:
— A senhora já foi submetida a alguma cirurgia? — Sim, doutor.
Tiraram meu pênis. — O que? Seu pênis? — Sim, doutor, ele já estava
"estupurado" (ao mesmo tempo que apontava para a cicatriz de uma cirurgia
de apêndice).
— O senhor toma alguma medicação? — Sim, o Vio vinte. — Vio
vinte? Vio vinte... ah! O Vioxx!
A escrita também faz parte da comunicação e todos conhecemos a
fama da caligrafia dos médicos, que nem eles mesmos entendem. Assim
como a linguagem falada, a nossa caligrafia também acaba sendo modificada
durante o internato. Nesse caso específico, acho que a culpada é a pressa.
Quando atendemos um paciente passando mal, queremos ajudá-lo o mais
rápido possível. Uma das formas de fazê-lo é abreviando o tempo da escrita.
Tal fato, somado a certo desleixo, acaba por deformar nossa letra. Surge,
então, aquela situação em que muitas vezes precisamos do especialista em
caligrafia de médico: o farmacêutico.
Mas mesmo esse coitado pode cometer erros e quem vai sair
perdendo é o doente.
Em qualquer área de atividade, a comunicação é fundamental, mas
posso dizer que na medicina é, literalmente, vital.
Um jovem foi transferido para a enfermaria, onde faria a sua
recuperação de uma cirurgia por tiro na barriga.
Na mesma noite, o plantonista foi chamado, com urgência, pela
enfermagem. O paciente do tiro subitamente havia parado de respirar. Estava
em coma e roxo.
O médico não entendeu o porquê daquilo, mas, rapidamente, inseriu
um tubo na traqueia do doente e, ventilando-o com o aparelho manual,
voltou a oxigená-lo adequadamente. Poucos minutos depois, ele começou a
recobrar os sentidos. Quando acordou por completo, o residente pôde tirar o
tubo de sua boca. Aí, ele relatou o que havia ocorrido.
A enfermeira teria aplicado uma injeção e logo depois, apesar de ter
se mantido consciente, ele não conseguia mais se mexer ou respirar. Tinha
sido horrível...
Por sorte, este era um paciente "vivedor" (para variar, mais uma
gíria). Existem os pacientes "morredores" e os "vivedores". Brincamos entre
nós que os morredores são aqueles que, mesmo com todo o tratamento
impecável, morrerão. Já os vivedores, como este, são os "Highlanders";
referência ao filme de mesmo nome, no qual a única forma de matar o herói
era a decapitação, já que eram imortais.
Graças a Deus o paciente ficou bem e sem sequelas. O colega não
sabia qual medicação a auxiliar havia aplicado, mas ficou claro que a culpa
era do fármaco. Como o paciente era um jovem muito inconveniente, o
médico inferiu que a enfermeira teria aplicado algum tipo de sedativo para
ambos poderem dormir, sossegados, no plantão (dormindo, ele pararia de
conturbar o ambiente). Quem sabe ela tivesse exagerado na dose?
Caso a sua teoria estivesse correta, algo muito sério teria ocorrido.
Sorrateiramente, colheu amostras de sangue e urina para encaminhar ao
laboratório de toxicologia. Quando estava guardando os tubos, a enfermeira
perguntou quais exames seriam aqueles. Todo constrangido, ele se enrolou e
deu uma desculpa qualquer. Percebeu que ela tinha notado algo estranho no
ar.
Ele se recolheu para dormir no quarto da enfermaria, mas ainda
estava pensando na sua teoria da sedação. Se tivesse aplicado algum
medicamento no doente, que quase o matara, e os exames confirmassem tal
fato, ela iria, no mínimo, perder o emprego. A enfermeira devia desconfiar
que os exames seriam enviados à toxicologia. E se, enquanto estivesse
dormindo, ela decidisse injetar nele a mesma substância? Aí ela não perderia
o emprego! Afinal, se aplicou o sedativo num paciente, por que não nele?
No outro dia de manhã, ninguém conseguiu abrir o quarto do
residente, apesar de não possuir tranca na porta. Bateram e fizeram barulho,
mas nada de ele acordar.
Depois de muito tempo, o médico acordou e saiu do quarto. Ninguém
conseguiria abrir sua porta. O medo de morrer dormindo foi tão grande que
ele havia construído uma barricada de móveis atrás da porta de seu quarto...
Imagine a paranoia.
Não foi preciso um exame de toxicologia para entender o ocorrido.
Bastou conferir as ampolas utilizadas e o mistério foi desvendado. É
evidente que a enfermeira não tinha a menor intenção de matar ninguém.
Graças à caligrafia do médico, ela havia aplicado Quelicin (curare de
ação rápida) em vez de Keflin (antibiótico). O curare é uma medicação que
utilizamos durante a anestesia geral para relaxar os músculos do doente, o
que facilita, em muito, o ato operatório. Imagine se, durante a anestesia, o
paciente ficasse se virando de um lado para o outro ou fosse sonâmbulo
(brincadeirinha, afinal anestesia não é só induzir o sono). Ele não é um
sedativo nem reduz a consciência ou a lucidez, mas impede qualquer
movimentação muscular voluntária, como piscar os olhos, mexer um braço e
respirar. É por isso que apenas o utilizamos durante a anestesia geral,
enquanto os índios o aplicavam nas pontas das flechas. Ao serem atingidos
pelo veneno, os animais simplesmente caíam, imóveis, e morriam por
asfixia. Prático, não?
2 INTERNATO

Preparo emocional

Após assimilarmos os vocábulos e as técnicas imprescindíveis para


nossa atuação, estávamos ávidos por praticá-las. Porém, antes de exercer a
medicina, o aluno precisa aprender a tolerá-la...
Fui colher a história de um paciente que estava com pneumonia.
Entre várias outras perguntas, questionei se a sua tosse tinha catarro. Como a
resposta foi afirmativa, pedi para descrevê-lo, o que é típico de estudante.
Naquele caso, nada mudaria se o catarro fosse verde ou amarelo. O paciente
achou mais didático dar uma catarrada em vez de perder tempo lembrando-
se dos detalhes de sua secreção. Após aqueles barulhos guturais típicos, ele
expectorou.
Quando vi aquela bola de tênis úmida e gosmenta em suas mãos,
senti as pernas ficando bambas, a visão sumir e... "catapimba", lá estava eu,
estirado no chão.
O desmaio, na verdade, é um mecanismo de defesa contra a pressão
baixa. Ao presenciar algo chocante, por exemplo, podemos desencadear um
reflexo. Este leva a uma queda súbita da pressão arterial, diminuindo de
forma abrupta a quantidade de sangue que chega ao encéfalo. O cérebro para
de funcionar, perdemos a força nas pernas e caímos ao chão. Passa a ser
muito mais fácil para o coração levar sangue aos neurônios na horizontal que
na vertical, protegendo-os, assim, de um eventual dano irreversível.
Não é raro que a pressão baixe tão rapidamente, a ponto de a pessoa
desmaiar antes que possa se escorar em algo ou, até mesmo, proferir alguma
frase.
Como os desmaios dos alunos são muito comuns em nossa formação,
é mister aprender a controlá-los. Mas no começo não é nada fácil. Lembro-
me de dois exemplos bem marcantes.
Ninguém sai operando gente assim, sem mais nem menos. Antes de
mais nada, precisávamos praticar em cadáveres e em animais. Para isso,
tínhamos as aulas de técnica cirúrgica. Nelas, operávamos cachorrinhos
anestesiados, realizando assim os procedimentos mais elementares.
Sempre adorei os bichos e, antes que um ardoroso defensor dos
animais rasgue este livro, gostaria de justificar tal treinamento, uma vez que
estão cada vez mais em voga os ataques, muitas vezes radicais e infundados,
a qualquer experimento que envolva animais. Na minha época, o vira-lata de
rua, que"viraria sabão', era operado pelos alunos e, depois, sacrificado.
Atualmente, devido à pressão exercida pelas sociedades protetoras dos
animais, os alunos operam porcos (quanta ignorância a minha. Eu nem sabia
que um porco vale menos que um cão!). Apesar de concordar com a opinião
de que alguns procedimentos pudessem ter sido (na teoria) ensinados sem
utilizá-los (na prática), creio que o treinamento de algumas operações teria
sido impossível sem os animais de laboratório. Nenhum boneco, por melhor
que seja, consegue simular textura, consistência, umidade, viscosidade,
peristalse, tensão, pulsação, sangramento, coagulação e muitas das várias
outras características inerentes aos seres vivos. Para quem ainda não se
convenceu da sua importância, gostaria de mencionar que várias técnicas
cirúrgicas revolucionárias e salvadoras só puderam ser criadas e
desenvolvidas por meio de intervenções em animais. Poucos sabem, mas a
primeira cirurgia de transplante do coração, por exemplo, ocorreu no Brasil,
após o sacrifício benéfico de 68 cães.3 Dessa forma, quando assisto a
agressivas argumentações em prol dos animais, penso em quanto faz falta
uma "associação defensora dos animais humanos" Esta deveria lutar pela
exigência de que o cirurgião só pudesse tratar das pessoas depois que
comprovasse ter operado, no mínimo, uns dez cães.
Na primeira vez que meu amigo cortou a barriga do cachorrinho e
viu suas tripas, sentiu um suor frio. Disse que estava passando mal e que
precisava se sentar. Saiu andando e, antes de alcançar o banco, sumiu por
completo do nosso campo de visão. Olhamos ao redor sem confirmar
nenhum vestígio de sua presença!
Intrigados, fomos esclarecer a causa do seu desaparecimento súbito.
Ao sair andando, ele perdeu os sentidos e caiu dentro do hamper. O hamper é
uma espécie de saco de lixo grande, onde os cachorros eram colocados
depois de sacrificados. Quando ele caiu no sacão e ficou de ponta cabeça, os
seus sentidos voltaram. Mas ele demorou a entender o que estava fazendo
num saco, tendo ao lado um cachorro morto...
Mais impressionante que ver as tripas de um animal era assistir a
uma cirurgia. Não é por menos que iniciávamos o nosso treinamento no
ambulatório da pequena cirurgia que, pelo mesmo motivo, foi por nós
apelidado de "ambulatório da pequena iatrogenia" — Empregado
frequentemente para designar os erros da conduta médica (Houaiss).
Nesse local eram realizados procedimentos de pequeno porte, com
anestesia local e executados por residentes menos graduados ou por alunos
da faculdade.
Passávamos em grupos de três. Cada um desses grupos era tutorado
por um professor. O paciente do nosso grupo seria submetido à ressecção de
um pequeno tumor benigno de gordura localizado nas suas costas. A
anestesia seria apenas na pequena incisão. Um dos alunos faria a cirurgia
sendo guiado pelo professor. Os outros dois também ficariam paramentados
em campo para poder participar do procedimento.
O paciente deitou-se de barriga para baixo e aplicamos o antisséptico
no local que seria operado. Colocamos os lençóis estéreis (campos
cirúrgicos) ao redor do tumor e o professor aplicou a anestesia. Apontou,
então, em silêncio para o bisturi, como que nos perguntando "quem se
candidataria?".
Ninguém queria ser fominha e, ao mesmo tempo, todos estavam com
medo de assumir a posição de cirurgião. Assim, cada um ficou oferecendo o
lugar para o outro. Sem ter a menor noção do ridículo, resolvemos tirar na
sorte para definir quem interviria. Para a incredulidade do professor e do
paciente, começamos o tradicional "dois 0000uuu ummm" sobre seu dorso!
Minha amiga ganhou e assumiu o bisturi. Olhou para os gestos do professor
e incisou a pele.
Imediatamente, o paciente ouviu um "turn". Era o corpo dela caindo
ao chão. Enquanto um auxiliar ajudava a doutoranda desmaiada, o professor,
objetivamente, passou a lâmina para outra aluna. Ela conseguiu se escorar no
paciente, mas também desmaiou do outro lado. Tum!
O paciente transformou-se em impaciente, começou a se ajeitar
constantemente na maca com pequenos movimentos. A situação piorou
quando ele me ouviu dizendo que não queria tentar, pois estava com a mão
muito trêmula. O tutor não quis mais arriscar e assumiu o bisturi. Para o
alívio do paciente, retirou o tumor rapidamente e com maestria.
Nunca mais tive um desmaio, mas, embora consiga me controlar,
uma coisa ainda me nauseia: miíase.
Ela ocorre quando uma mosca coloca seus ovos no corpo humano.
Os ovos costumam eclodir em tecidos de viabilidade duvidosa, como numa
perna com gangrena ou num tumor de pele apodrecido. Em poucos dias,
surgem larvas parecidas com aquelas da goiaba, que ficam passeando e se
alimentando por pequenos túneis nos tecidos. No caso, o corpo humano é a
goiaba. Entretanto, as larvas também podem ser úteis. Por distinguirem os
tecidos viáveis dos inviáveis e ter preferência alimentar pelos últimos,
podem ser utilizadas para remover tecidos mortos sem cirurgia. Segundo os
defensores dessa "limpeza" biológica, elas conseguem remover os tecidos
inviáveis com grande eficácia e maior precisão que os médicos. Cirurgiões
são piores que as larvas!
Úteis ou inúteis, as minhoquinhas não são nada agradáveis. Com o
tempo, aprendemos a nos controlar melhor e, agora sim, poderíamos praticar.

3ZANTUT, L.F. C. Vida por um segundo. Atheneu, 2008.


A prática

"A prática faz o mestre."

Em todo começo de ano, tinha contato com residentes vindos de


vários cantos do Brasil, que iniciavam a sua especialização no hospital.
Sempre surgiam alguns gênios que conheciam a resposta para qualquer
pergunta e se lembravam até dos rodapés de livros médicos. Mas algumas
vezes, sendo provenientes de faculdades desprovidas de bons hospitais-
escola, ignoravam a lida com pacientes. Não tinham treinamento em
anamnese, exame físico e procedimentos, pela simples inexistência de um
curso adequado. Apesar da grande bagagem teórica, bastava colocá-los
diante de um doente para que descobríssemos a falta de traquejo deles.
Exerciam uma medicina de baixa eficácia. Deixavam de perceber am.a
massa palpável, uma arritmia cardíaca ou qualquer outra alteração sutil.
Pensavam nas coisas mais improváveis e pediam vários exames inúteis; não
resolviam nada...
Em medicina, além de um bom corpo docente, é fundamental que a
faculdade propicie condições adequadas de ensino e treinamento. No nosso
hospital, doenças não faltavam. Para evitar aquelas deficiências de formação,
fomos submetidos a uma grande imersão hospitalar chamada "internato". Ele
se inicia no quinto ano da faculdade, dura dois anos e consiste num amplo
rodízio pelas enfermarias, na forma de estágios e plantões. Vivemos um
aprendizado intenso, voluntário e involuntário.
Todos podem decorar livros para depois esquecê-los (embora não
demoremos a perceber que nada é tão certinho como os tratados dão a
entender). Entretanto, ao se responsabilizar por um paciente sofrendo de
determinada doença, ela deixa de ser apenas umas "letrinhas em um
parágrafo" e passa a existir. Torna-se real e palpável. Tem nome e
sobrenome. Isto nos motiva a ler sobre aquela patologia e seu tratamento. A
experiência é ainda mais intensa que nas aulas de semiologia, porque agora
há envolvimento emocional.
Quando alguém me fala dos diagnósticos diferenciais de apendicite,
para exemplificar, lembro-me do "homem-pus" e não da página 1.345 de um
compêndio de cirurgia.
Seu nome era Lazarino. Ele foi operado por suspeita de apendicite
que não se confirmou na cirurgia. Fizeram um cortinho do lado direito, mas
o seu apêndice era normal. A conduta nesses casos é, mesmo assim, retirá-lo.
Caso contrário, o paciente poderá sofrer nova dor no futuro e ser novamente
operado, ou pior, deixar de ser operado supondo-se que já retirou o apêndice.
Segundo o relato do médico que cuidou dele, não havia nenhuma
alteração no abdome que sugerisse outra doença cirúrgica e o tratamento
consistiu apenas em analgesia e observação. No outro dia, estava sentindo-se
bem e recebeu alta precocemente.
Sete dias depois, ele voltou ao pronto-socorro com febre alta, pus no
pulmão, no abdome e, até, ao redor do coração! Seguindo o antigo ditado
atribuído a Hipócrates, Ubi pus ibi evacuai (Onde há pus, deve-se drená-lo),
resolvemos operá-lo. Drenamos todas as regiões e descobrimos, logo no
início do quadro, que a causa fora uma perfuração do intestino por uma
espinha de peixe.
Como o furo era pequeno e na parede posterior do intestino, ele não
pôde ser visualizado pelo acesso cirúrgico habitual. Sem o tratamento ideal,
a infecção se alastrou por vários órgãos. Após várias intervenções e a perda
de mais de vinte quilos, ele sobreviveu.
O caso de Lazarino, vivido há quase duas décadas, prova como a
prática é importante em nosso aprendizado. Mas não era apenas a teoria que
reforçávamos com o exercício da medicina. Aprendíamos coisas impossíveis
de se captar apenas com a leitura, como a pressão manual a ser exercida pelo
médico para estancar uma hemorragia pela compressão direta sobre o local
do sangramento, a força para se reduzir uma luxação de ombro, a cor de uma
cianose ou a tensão correta de um fio de sutura.
Além do aprendizado desse conteúdo eminentemente prático,
aprimorávamos, sem perceber, um conjunto de qualidades e habilidades não
tangíveis, que acredito ser o mais interessante do internato. O internato
reforçava a ciência e, principalmente, lapidava a ARTE. Nela, incluo os
conhecimentos indiretos e subjetivos que adquirimos pela simples
companhia dos outros médicos.
Exemplificarei com o breve caso da Maria José. Essa criança tinha
um ano de idade quando seus pais a levaram ao ambulatório de urologia
pediátrica. Era um caso raro de intersexo. Como não era possível definir o
seu sexo pelos órgãos genitais externos, sua mãe a chamava de "Maria José"
e a criava como menina. Entretanto, o pai insistia no "Zé Maria" e o
estimulava como um menino. Imagine a confusão!
Como o médico deveria agir em relação a essa questão? Como
abordá-la? Qual linguagem? A decisão do "futuro sexo da criança" deveria
ser estritamente científica ou abordar o contexto familiar e social? Envolver-
se ou manter distância? Como eu poderia aprender a melhor conduta nesse
caso, apenas lendo um capítulo?
É vivendo com os médicos que aprendemos a ser médicos. Somos
inseridos em um hábitat completamente diferente daquele ao qual estamos
acostumados, quer em termos acadêmicos, quer em termos didáticos. Nesse
novo ambiente desafiador, passamos a conviver com muitas emoções
intensas, sejam elas de estresse, alegria ou frustração. Percebemos nossas
limitações. Ajudamos e atrapalhamos. Aprendemos a falar, gesticular,
explicar, ocultar, acolher e a nos relacionar com os pacientes e os colegas,
como profissionais. Somos forçados a trabalhar em equipe sob rígida
hierarquia e nos tornamos mais responsáveis. Seremos, gradualmente,
inseridos na engrenagem do hospital até sairmos do curso com um canudo
debaixo do braço.
Na teoria, tudo parece relativamente fácil. Mas, assim que começou o
quinto ano, em menos de uma semana, pude perceber minha falibilidade.
Não é muito agradável para o paciente, mesmo em uma instituição de
ensino, saber que será usado para o aprendizado de outrem (o velho medo de
ser cobaia). É lógico que ninguém vai demonstrar para 15 alunos,
individualmente, como fazer um exame de toque vaginal. Assim, tentamos
não constranger ou assustar o doente durante o nosso aprendizado, mas nem
sempre isso é possível. Se você deseja ser atendido por um médico
experiente, lembre-se de que sua experiência não caiu dos céus.
Só aprenderemos a fazer fazendo. E, se a experiência leva aos
acertos, sabemos que ela surge com os erros!
Apesar de parecer, iatrogenia não é necessariamente um erro médico,
e, sim, um dano ou alteração provocados por um diagnóstico ou tratamento.
Por exemplo, a radioterapia para o tratamento de câncer do útero pode curá-
lo, mas também pode causar sangramento anal por agredir o intestino
adjacente. Desde que a dose de radiação tenha sido respeitada, não se
evidencia um erro, e, sim, um efeito deletério secundário ao tratamento. Mas
pequenos erros também estão inseridos na definição e não poderia esquecer-
me da minha primeira iatrogenia. Afinal, a primeira iatrogenia a gente
também nunca esquece...
Já tinha visto alguém tirar sangue umas mil vezes, mas eu mesmo
nunca havia colhido. Seria a primeira vez e achei que o paciente não gostaria
de sabê-lo.
Se já não é confortável para o paciente saber que será vítima da
primeira execução de algum procedimento por um jovem aluno, pior ainda
deve ser ouvir frases como:
— Não, aí não. Mais pra cima, mais para a direita, cuidado com o
nervo! Deste jeito vai coagular lá dentro...
Normalmente, nessa situação, o responsável acompanha o colega
menos graduado tentando interferir o mínimo possível, mas orientando o
procedimento.
Então, antes de abordar o paciente, solicitei uma pequena revisão ao
atarefado R2. No meio da correria, ele não teria como me acompanhar nessa
tarefa tão básica, mas relembrou:
— Colocar o garrote, passar algodão com álcool em cima da veia,
puncionar e depois comprimir o local com um algodão seco.
Por conveniência, o "Opus 1" (como denominamos a primeira vez
que executaremos uma operação qualquer) é sempre selecionado. Nunca me
deixariam picar a primeira veia numa criancinha ou em alguém fazendo
quimioterapia. Como eu não possuía a habilidade daqueles auxiliares que
acham veia até em orelhão telefônico, me indicaram um senhor que possuía
vasos extremamente dilatados e visíveis.
Apresentei-me como interno e fiz todos aqueles procedimentos sem
problemas, tentando demonstrar a maior tranquilidade e segurança possível.
Dei sorte e, satisfeito, levei as amostras ao laboratório. Pouco tempo depois,
quando retornei, vi o braço do paciente todo ensanguentado.
"Putisgrila"! Havia me esquecido de tirar o garrote! O que eu deveria
dizer?
Fiquei muito constrangido. Tive vergonha de falar para o paciente
sobre o meu esquecimento. Não é fácil assumir os erros e eu tinha acabado
de cometer um básico.
Acabei tomando uma atitude que hoje abomino, mas que vi muitos
fazerem.
Postado na frente do paciente, olhei calmamente para o relógio e
declarei:
— Acho que já dá para tirar o garrote. Abri o elástico, limpei o seu
braço e saí, como se aquilo fosse a coisa mais normal do mundo...
Infelizmente, esses deslizes fazem parte do jogo. No nosso caso,
cedo ou tarde, praticaremos com pessoas. Não são somente os alunos que
praticam com os pacientes. Como o médico precisa, continuamente,
aprender novos métodos e atualizar-se, o exercício nunca acabará.
Embora esses pequenos erros ocorram, os pacientes, na maioria das
vezes, não são muito prejudicados. Outras vezes, porém, isso pode ocorrer...
Apesar daquele evento, não fui eu o vencedor do troféu "Dr. Iatros".
Informalmente criado pelos alunos, oferecíamos esse título ao interno autor
da iatrogenia mais absurda.
Henry Louis Mencken dizia: "Consciência é a voz interior que nos
adverte de que alguém pode estar olhando". Como se não bastasse o peso da
própria consciência e a desaprovação dos outros, aquele era mais um jeito de
sermos punidos por nossa indelével natureza humana.
E o vencedor do Dr. Iatros foi... O acadêmico sabia como introduzir a
sonda urinária e havia assistido ao procedimento várias vezes, mas nunca
tinha inserido uma delas pessoalmente. Essa sonda de borracha possui na
ponta um pequeno balão, que enchemos de água após passá-la pelo canal da
urina. Estando cheio, ele aumenta o diâmetro do cateter, ancorando-o dentro
da bexiga.

O aluno explicou para a velhinha sobre a necessidade do


procedimento e como o faria. Deitou-a de costas com as pernas abertas,
deixando-a parcialmente coberta por um lençol. Aplicou antisséptico na
região genital, afastou os grandes lábios vaginais, lubrificou a sonda e a
inseriu no orifício. Após enfiá-la por uns 15 centímetros, insuflou o seu
balão e conectou-a num sistema coletor.
Como não estava vindo urina, resolveu tracioná-la levemente, pois
poderia estar dobrada. Mas ela continuou sem débito urinário. Puxou um
pouco mais forte e... PLUFT!
A sonda rompeu algo e exteriorizou-se. Perplexo, o acadêmico
perguntou à paciente: — Caramba! A senhora era virgem? — Como assim,
era? — Não, nada não. Então o aluno percebeu que a sonda não fora passada
na uretra, e, sim, um pouco mais abaixo, num orifício que em determinadas
circunstâncias pode ser bem estreito, como numa vagina outrora virgem...
Como não fazer um parto

Às vezes, é mais importante saber o que não devemos fazer do que o


que devemos fazer.
No internato fomos divididos em grupos de quinze alunos. Os grupos
usualmente são designados como panelas. Essas panelas passam
alternadamente por vários estágios num esquema de rodízio.
O trabalho em equipe foi uma experiência muito interessante. Ao
passar, por exemplo, na enfermaria da pediatria, nossa equipe ficava
responsável por todos os leitos. Assim, era necessário dividir tarefas entre
nós. Claro que, com o passar do tempo, muitos se tornavam mais integrantes
que amigos e vice-versa. Muitas brigas já começavam na divisão de plantões
e de funções.
Quem iria trabalhar no domingo, na final da copa do mundo? Quem
cuidaria daquele paciente chato?
Se um casamento traz dores de cabeça, imagine um poligâmico com
quatorze pessoas! Por sorte, o meu grupo era muito divertido, trabalhador e
integrado.
Nosso primeiro estágio foi na obstetrícia. Rodaríamos pela
enfermaria, ambulatório, pronto-socorro e centro obstétrico. Este último
seria particularmente interessante, pois teríamos de realizar, no mínimo,
vinte partos.
Aquela ansiedade em se tornar médico começa a ser saciada com
pequenas amostras grátis do nosso futuro. Mesmo no internato, precisamos
ser expostos a demonstrações gradualmente mais complexas. Assim, um
bom lugar para começar é nos ambulatórios.
Neles, os pacientes não apresentam emergências e o número de
consultas é limitado. Com isso, o atendimento pode ser realizado com mais
calma e ser bem didático. Além de discutirmos os casos com assistentes e
residentes, podíamos ir pegando o jeitão da coisa sem muito estresse.
Mesmo assim, não era nada fácil chegar ao corredor, enfrentar todos aqueles
olhares apreensivos e chamar por um paciente, que estava ansioso, torcendo
por ouvir o seu nome. Tinha gente que vinha de muito longe, da periferia da
cidade e até de outros estados. Contudo, não acredito que recordaria deste
dia, se não fosse pelo nome e pelo que ocorreu com a minha primeira
paciente: Dilícia da Costa!
As pessoas acharam que eu estava de gozação, mas não foi essa a
primeira vez em que me deparei com nomes diferentes: lembro-me dos
gêmeos Indigo Blue e Blue Jeans, do Ri Mein (He Man), Letisgo
(pronunciava-se Let's Go). Isso, para não falar dos Mdicou Douglas Pereira e
Micaellequisson da Silva.
Lá estava a Dona Dilicia vindo à sua primeira consulta de pré-natal.
Ela era linda e trabalhava como modelo fotográfico. Estava radiante, pois,
após descobrir a gravidez, fora pedida em casamento pelo namorado.
O obstetra a avaliou clínicamente e depois realizou seu primeiro
exame de ultrassom.
O exame ultrassonográfico do primeiro trimestre é muito importante.
Entre outras informações, traz com uma boa margem de segurança o tempo
de gestação e a provável data do parto.
O feto estava saudável e sem sinais de malformações. Entretanto, ao
ouvir do médico a idade do feto em dias, a futura mãe discordou. Para ela, a
data citada era impossível. Tinha de ser uns vinte dias antes para estar
correta. Para a minha surpresa, o médico, muito seguro de si, foi taxativo:
— Me desculpe, senhorita, mas a data está absolutamente correta!
Desolada, a paciente exclamou: — Merda de camisinha! Merda de
camisinha! Entreolhamo-nos discretamente, sem nada entender. Então a
coisa piorou ainda mais:
— Doutor, dá pra ver aí no exame a cor da criança? Pelo que entendi,
seu ex-namorado angolano a visitou justamente no dia em que havia brigado
com o seu atual namorado. A data dessa visita coincidia com a do
ultrassom...
Não acompanhei o parto do Diliciosinho, mas achava que fazer o
primeiro parto teria um gosto especial, o que posteriormente pude confirmar.
Estava empolgado com a evolução clínica da minha primeira
gestante em período expulsivo. Acompanhei todo o seu período pré-parto,
quando aprendi a primeira lição do estágio: "Jamais segure a mão de uma
gestante em trabalho de parto!".
Nos filmes, ver o médico segurando a mão da grávida pode parecer
muito meigo. Mas se a cena for verídica, preste maior atenção nas feições do
médico. Durante as cólicas, elas apertam tanto a nossa mão que causam a
sensação de ter quebrado algum osso.
E o pior é que, nessa situação, elas sempre lhe estendem a mão.
Como recusar?
Depois dessa primeira experiência, quando me estendiam o braço,
em vez de ignorá-las, eu checava o seu pulso e depois, delicadamente,
acomodava a sua mão de volta ao abdome...
(Lição número dois: "Carregue sempre uma bolinha de borracha no
bolso, caso não obtenha êxito nessa manobra".)
Quando constatei que a dilatação era suficiente, deitei-a na mesa de
cirurgia e realizei novamente o toque vaginal para definir a posição do bebê.
Conhecendo a posição da criança, poderia auxiliar em sua saída pelo canal
vaginal realizando movimentos de rotação. Tudo estava indo muito bem.
Assim que a cabeça da criança apareceu, comecei a rodá-la do modo
que havia estudado.
Não obstante, para meu estresse, a criança não vinha e comecei a
suar. Tentei girá-la levemente, um pouco mais forte e ainda mais forte, sem
sucesso. Em poucos (mas eternos) segundos, já estava molhado de suor,
enquanto o obstetra preparava-se para assumir o meu lugar. Angustiado com
a possibilidade de a criança encalacrar logo no meu primeiro parto, soltei as
minhas mãos para pedir auxílio ao médico assistente. Exatamente nesse
momento o bebê descreveu sozinho o movimento correto e nasceu.
Saiu mais lubrificado que um quiabo e quase o deixei cair do meu
colo.
Toda essa dificuldade e estresse (meus) ocorreram por um motivo
muito simples: estava rodando o nenê para o lado errado! Bastou que eu
parasse de atrapalhar para que a natureza fizesse o seu trabalho, expulsando-
o pelo canal de parto...
Rapidamente adquiri os macetes para acompanhar a dilatação, as
contrações uterinas e o traçado eletrocardiográfico do nenê. Depois disso, os
outros partos passaram a ser bem mais tranquilos, mas nem por isso deixei
de viver situações interessantes e inusitadas no estágio.
Iniciamos também os plantões nas enfermarias. E como em qualquer
estreia, desconhecemos algumas coisas básicas que, no segundo plantão,
passam a ser óbvias. De acordo com uma amiga, o primeiro aprendizado no
plantão foi jamais utilizar o seu despertador de galinha em um dormitório
coletivo. Quando este, subitamente, começou a cacarejar a 100 decibéis —
có, có, cocoricó — o residente tomou um susto tão grande que caiu do
beliche!
Precisamos nos acostumar com a coletividade e com certa
praticidade.
Ainda hoje tenho dificuldade para pegar no sono quando dou plantão,
por ficar adrenalizado. E quando o outro plantonista ronca? Pior ainda ocorre
quando um colega não tem o menor "simancol" e, ao entrar no quarto de
madrugada, liga a televisão ou acende a luz.
Pelo menos, ao subir na escala hierárquica, cresce o respeito. Quando
íamos de madrugada acordar os assistentes, utilizávamos lanterninhas de
examinar garganta.
Podemos ser chamados de urgência a qualquer hora e devemos estar
prontos para isso. Não é muito conveniente atender a uma parada cardíaca de
baby-doll, como uma outra amiga pode perceber. As vestes precisam ser
práticas, o que explica, mais uma vez, o uso dos pijamas-uniformes.
Uma das peças de vestuário que mudei após dar meus primeiros
plantões foram os sapatos. Passei a usar os sem cadarços para não ter que
ficar amarrando e desamarrando, cada vez que me acordavam.
Além desses detalhes, as condutas mais emergenciais precisam ser
automáticas para podermos agir mesmo com muito sono e o cérebro
tentando pegar no tranco. Como costumamos dizer, por brincadeira, elas têm
de estar na medula (ser reflexas) e, não, no cérebro.
Certa vez o assistente foi chamado no meio da madrugada para
orientar o atendimento num caso de emergência. Ele estava num sono tão
pesado que, após levantar na correria, teve de ir ditando as condutas
enquanto tapava os olhos com as mãos devido à claridade.
Imagine abrir os olhos no meio de um sonho e ter de enxergar
detalhes, embaixo das potentes luzes de um foco cirúrgico. Se a pupila ainda
nem tinha se contraído, pense como devia estar o seu raciocínio!
Ainda na obstetrícia, muitos colegas procuraram estágios em
maternidades, onde exerceram atividades extracurriculares. Nelas, pelo que
me contaram, puderam ter o seu primeiro contato com atitudes e
comportamentos antiéticos. A parte mais proeminente era a dos abortos.
O aborto, legalmente falando, é de natureza criminosa na maioria das
situações que vivenciamos no pronto-socorro: meninas querendo se livrar de
uma gravidez indesejada.
Independentemente do que acreditamos, não podemos ser cúmplices.
Isso acaba sendo complicado para os médicos. Por saberem que é crime, as
pacientes tentam inventar as histórias mais malucas para ocultar ou,
eventualmente, justificar o abortamento.
Existe um ótimo remédio para estômago de homens, pois é abortivo.
Deve ser um dos medicamentos mais vendidos no mercado negro, uma vez
que atendi algumas moças que o teriam utilizado.
A apresentação era sempre a mesma. Uma jovem entrava no pronto-
socorro pálida e com muita cólica no baixo-ventre. Nunca contava uma
história muito coerente e enquanto investigávamos o que estaria
acontecendo, de repente, ela eliminava um feto. Sempre negava o uso de
abortivos, mas aposto que este era a causa da expulsão fetal na maioria das
pacientes com histórias pouco claras.
Um desses casos me marcou. Era uma moça de dezesseis anos.
Mesma história sem nexo, mas com uma gravidez bem mais avançada que as
habitualmente "abortáveis". Enquanto eu fazia a anamnese, o feto saiu na
maca. Eu o peguei e, com as minhas mãos, pude sentir seu coração batendo
rapidamente. Não era um feto de idade viável; sei que, de um jeito ou de
outro, morreria. Por ainda ser desproporcional, parecia com aquelas
ilustrações de extraterrestres. Assim que amarrei o cordão umbilical, senti o
seu coração parar. Isso me deu uma péssima sensação de aperto no peito,
como se eu o tivesse matado. Talvez a mesma que os anestesistas sentem
quando desligam os aparelhos que mantêm a respiração e os batimentos
cardíacos do corpo de uma pessoa em morte encefálica e anotam a "hora do
óbito", ao término da retirada dos órgãos que serão doados.
Estamos acostumados a salvar, e não "a matar". Estava habituado a
ver abortos em que a jovem eliminava coágulos junto ao pequeno embrião
ou algo ainda irreconhecível. Mas este doeu...
A hierarquia

"Em uma situação de


risco, hierarquia é
muito mais eficiente
que democracia."
Frans de Waal, biólogo especialista em chimpanzés.

O professor de cirurgia do fígado era extremamente dedicado,


rigoroso e exigente. Passava visita na enfermaria todos os dias, inclusive aos
sábados e domingos. Tinha por volta de sessenta anos, um metro e noventa
de altura e olhos claros, inquisidores. Embora não fosse grosseiro, era
incisivo. Tinha o poder de, com algumas palavras, fazer-nos sentir seres
insignificantes. Não seria difícil imaginá-lo utilizando um daqueles
capacetes alemães com uma ponta afiada no topo, gritando ordens aos
soldados.
Havia muitos pacientes internados por transplante hepático, que
necessitavam de um acompanhamento complexo e trabalhoso. Assim, cada
paciente submetia-se, diariamente, a vários exames e a um controle
constante dos seus parâmetros vitais. Os dados eram tantos que os
registrávamos, dia após dia, em gráficos traçados em cartolinas do tamanho
de um jornal aberto, chamadas "folhões". Apesar de a enfermaria comportar
por volta de vinte pacientes, o nosso chefe parecia saber de cor todos os
dados e exigia o mesmo de nós, reles mortais. Para não falarmos bobagens
ou dados contraditórios (o que fatalmente seria notado, e seríamos
repreendidos), antes da visita fazíamos um treinamento.
Esse estresse pré-visita era o estímulo para que a preparássemos da
forma mais perfeita possível. Apesar de muito tentar, não somos perfeitos, e
o professor sempre achava algum erro para nos detonar na frente dos
pacientes. A equipe foi se aperfeiçoando, com o objetivo de passar pelo
menos uma visita sem broncas até o final do estágio. Finalmente, chegou o
grande dia, houve a visita em que não tínhamos incorrido em nenhuma gafe,
até o penúltimo paciente. O último seria a Dona Maria.
Ela era uma senhora de aproximadamente 70 anos, que estava
internada por um câncer que obstruía o canal da bile. Apesar de estar
amarela como um canarinho, era gordinha e extremamente bemhumorada.
Muito simples e bastante simpática, nos tratava como netinhos, sempre
distribuindo balinhas a todos nós. Eu relatei o seu caso com precisão.
Empolgado com o nosso sucesso, quis encerrar com chave de ouro:
— De novidade, a paciente desenvolveu uma pitiriase versicolor. Esta é uma
micose que se manifesta por manchas brancas na pele, mas não de um dia
para outro, ainda mais dentro de uma enfermaria. Nessa hora, a paciente me
corrigiu:
— Ih, doutor, essas manchinhas? Foi não! Eu as tenho há meses...
Foi a deixa para o professor. Ele nos deu uma tremenda bronca, por não
termos examinado adequadamente a paciente e por desconhecermos a
fisiopatologia da micose. Foi uma baita frustração.
Ao término da visita, ela me contou que percebera as consequências
da "besteira" que cometera e pediu desculpas. Acalmei-a, mas pedi que
durante a próxima não se manifestasse.
O dia seguinte seria o último do estágio. Nossa oportunidade
derradeira de passar uma visita inteira sem repreensões. Ela transcorria
melhor ainda, com todos os casos sem furos. Ao chegar à última paciente,
Dona Maria, o professor a cumprimentou. Conhecendo toda a sua animação,
ele estranhou que ela tivesse apenas respondido com um "hum-hum".
Perguntou se estava tudo bem e ouviu um novo "hum-hum".
— Tem certeza de que não está nada errado? — Hum-hum! Pediu
então que ela estendesse as mãos para verificar tremores, típicos de quando o
fígado, por algum motivo, tem uma piora no seu funcionamento. "Será que
ela está em insuficiência hepática?", deve ter pensado.
Mãos firmes. — Mas por que não está falando? A senhora está se
sentindo bem? — Sim, doutor, eu estou bem. É que o doutor pediu para eu
não falar mais nada na visita e estou quieta...
Ficamos brancos de medo, mas foi a primeira e única vez que vi o
professor gargalhar.
Essa forma de relação entre alunos e professores era muito comum.
Nós os respeitávamos muito, mas mais que isto, os temíamos. No ensino
médico existe essa hierarquia por mérito e admiração, que em alguns locais
pode ser bem rígida, quase militar.
Um assistente decano me contou um exemplo desses extremos.
Segundo ele, antigamente havia no serviço de cirurgia um médico que não se
relacionava com os internos e R-menos (residentes dos 14 e 22 anos). Para
ele, simplesmente não existiam. Quando um residente queria falar com ele,
tinha que ser no mínimo R3 (de terceiro ano). Aí, cenas surreais ocorriam.
Imagine os três médicos juntos, R1, R3 e assistente. O R1 perguntava qual
seria a conduta em determinado caso (assistente com cara de paisagem). O
R3, então, repetia a pergunta e, de forma solícita, o assistente respondia (ao
R3). Este, por sua vez, repetia a resposta ao R1. Se o R1 ainda tivesse
alguma dúvida, teria que perguntar novamente por meio do R3 ao assistente
e assim por diante... Que bagunça!
Ainda hoje, o interno reporta-se ao residente de primeiro ano. Se este
tiver dúvidas, dirige-se ao R2 e, assim por diante, até o médico assistente.
Embora essa sequência em geral seja seguida, não existe uma
obrigatoriedade. Faz parte do treino do residente orientar seus subordinados.
Todo trabalho em plantões, ambulatórios ou enfermarias era
realizado pelos internos, residentes e assistentes. Os internos são os médicos
em formação, enquanto os residentes, os médicos em especialização. Os
internos são orientados pelos residentes e estes são supervisionados por
assistentes. Os assistentes são os médicos especialistas que prestam serviços
de atendimento e ensino em cada estágio. Estes, por sua vez, são
coordenados por professores, doutores e livre-docentes. Mas o chefão
supremo, próximo a Deus, é o professor titular (e, como corre nas piadas do
meio médico, se achando acima de Deus está o neurocirurgião).
Apesar de sempre ter sido muito rígido, o código hierárquico, com o
passar do tempo, vem amolecendo. Antigamente seria impensável sair de
uma cirurgia para comer ou para urinar caso a pessoa mais graduada não o
tivesse feito. Sair da cirurgia porque o plantão acabou e trocar a equipe com
a barriga do paciente aberta? Tá maluco!
Isso já ficou um pouco mais humano, embora ainda pegue mal...
Vivendo nessa cultura, pude sentir na pele as vantagens desse
comportamento.
Ao sairmos da faculdade, estamos (teoricamente) preparados para
atuar nas grandes áreas básicas de clínica geral, pediatria, ginecologia.
Sabemos como lidar com as doenças mais frequentes. Por outro lado,
parecemos peixes fora d'água quando iniciamos a especialização em cirurgia,
anestesia ou oftalmologia, por exemplo. Nessas áreas é muito importante que
a conduta seja definida pelo seu superior hierárquico. É claro que na clínica
isso também é importante, embora um pouco menos. Numa pneumonia, o
R1 de clínica sabe muito bem o que fazer. Seu superior terá muito mais
experiência, mas não mudará grande coisa nesse caso corriqueiro. Na
cirurgia, mesmo uma apendicite simples não poderá ser operada pelo R-1
sozinho. O resultado pode ser catastrófico. Como a experiência dele, nesses
casos, é próxima a zero, ele poderá operar o paciente apenas por controle
remoto, como brincamos entre nós (corte aqui, amarre ali, cuidado com este
vaso, empurre o músculo para cá).
Muitas vezes, as pessoas têm opiniões diferentes sobre os mesmos
assuntos e é mister que a mais experiente (em geral, com a razão) tenha o
comando das decisões para que as possíveis complicações de uma conduta
inadequada sejam minimizadas.
Além disso, ao ficar na cirurgia até o seu final, independentemente
do horário, mostramos compromisso para com o doente, aprendemos e
vemos os detalhes da cirurgia do começo ao fim. Assim, fica muito mais
fácil prever e entender possíveis alterações e complicações no pós-
operatório. A pior coisa que existe é alguém responsabilizar-se pelo
acompanhamento de um paciente no período de pós-operatório se não o
operou ou não esteve presente na cirurgia.
Por outro lado, esse código hierárquico também causava malefícios.
Um amigo estava no quinto ano da faculdade e, apesar de estar com diarreia
e um pouco de náuseas, seria inadmissível faltar àquela cirurgia. Ela seria
realizada pelo seu professor titular e ele estava escalado para auxiliá-lo.
Tomou um remédio para enjoo e se paramentou. Começou a sentir muitas
cólicas durante a cirurgia. Devido à hierarquia, ele estava se segurando do
jeito que dava para não sair do campo operatório. Não aguentando mais as
dores, resolveu soltar um silencioso pum. Infelizmente, para o seu azar,
embora silencioso, não foi só o pum que saiu.
Nesse momento, a cirurgia já estava terminando, faltava apenas
fechar o abdome do paciente. E ele, coitado, estava todo melado. O avental
cirúrgico escondia o aspecto de suas calças, mas não o cheiro nem a sua
vergonha. Se a situação já era constrangedora, imagine na frente do
catedrático!
Ao sentir o cheiro de fezes, o professor ficou preocupado e começou
a procurar alguma lesão no intestino do paciente. A cirurgia transcorrera de
forma muito tranquila, embora o cheiro não deixasse dúvidas; deveria existir
alguma lesão intestinal despercebida! O cheiro não passava e, pensando na
perfuração intestinal, o professor revisou todos os passos da cirurgia. Após
várias revisões infrutíferas, o titular ainda não desistira da procura por uma
lesão. Constrangido pelo prolongamento inútil do tempo de anestesia, o
interno se manifestou:
— Professor, o senhor já olhou várias vezes, não há lesão intestinal!
— Calma, meu filho, devemos ser persistentes. Uma lesão intestinal
despercebida pode ser catastrófica para este doente.
— Me desculpe, professor, mas não há essa possibilidade. Na
verdade, fui soltar um pumzinho e...
Mas de nada adiantaria um rígido código hierárquico, se uma
supervisão contínua não existisse. Por isso, os mais graduados serão cada
vez mais supervisores, enquanto a linha de frente ficará aos cuidados dos
supervisionados, internos e residentes.
A supervisão

"E Jesus disse: —


Um cego pode guiar
outro cego? Naão!
Porque irão cair na
mesma cova!
LUCAS 6.36

O "golpe precordial" consiste em um soco com o punho cerrado, na


parte anterior do tórax, imediatamente à frente do coração. Trata-se de uma
manobra clássica em caso de parada cardíaca. Ela pode funcionar mas, sem
dúvida, é menos eficaz do que os aparelhos de desfibrilação. Hoje, com a
proliferação dessas máquinas, inclusive em áreas públicas, o "golpe"
praticamente desapareceu.
Na UTI, os pacientes ficam com vários monitores, inclusive o do
coração (ECG). Às vezes, este último pode sofrer algum tipo de
interferência, comumente traduzida por irregularidades em seu traçado. Estas
costumam logo desaparecer, não há uma correlação com o estado clínico do
doente e nada precisa ser feito. Não trazem maiores preocupações, pois o
clínico experiente as reconhece facilmente.
Num plantão na UTI, a acadêmica que acabara de fazer estágio
teórico de cardiologia notou que o traçado do ECG de um paciente estava
irregular. Ele dormia placidamente, o que a levou à errônea interpretação de
que estivesse ocorrendo uma parada cardíaca.
Ela não teve dúvidas. Graças ao seu conhecimento recentemente
adquirido, deu um soco no peito do paciente. Ele acordou agitado pela dor e,
enquanto se refazia do susto, ouviu o seguinte comentário da "médica"
agressora:
— Que bom, o senhor voltou! Teve uma arritmia, mas agora
melhorou graças ao golpe no peito.
A aluna saiu sorridente. Como era de madrugada, achou que não
valeria a pena acordar o residente para contar o ocorrido. Afinal, ele estava
melhor! Por via das dúvidas, resolveu observar de perto o monitor por mais
um tempo. Nesse ínterim, o doente adormeceu e o eletrodo, que estava
parcialmente descolado, voltou a dar interferência. Ela não hesitou e
esmurrou novamente o paciente, que acordou assustado e assistiu à mesma
cena.
Não é preciso dizer que nenhum dos dois conseguiu mais dormir. O
paciente tinha medo de adormecer novamente, ter arritmia e levar pancada.
A acadêmica tinha receio de abandoná-lo e não perceber outra arritmia antes
que fosse tarde.
Eles foram encontrados pela manhã roncando profundamente. A
aluna estava sentada numa cadeirinha de frente para o leito, enquanto o
paciente estava deitado, mas com um travesseiro sobre o seu peito...
Qualquer médico ouvindo esse relato chegará à conclusão de que não
ocorreu, de fato, uma arritmia, e, sim, uma interferência no monitor. Em
outras palavras, não existiria a menor necessidade dos golpes precordiais.
O que ocorreu? Faltou supervisão! Por isso que, no aprendizado
médico, a supervisão é fundamental e deve ser ininterrupta. Entretanto, os
alunos, muitas vezes, por sentirem-se seguros de sua conduta ou
constrangidos em abordar seus superiores com dúvidas "tolas" acabam não
recorrendo à sua orientação, o que aumenta a incidência de erros e
complicações.
Por vezes, o ritmo do PS é tão puxado que o nível dessa supervisão
diminui. Os residentes podem estar atribulados, cercados de pessoas
passando mal, urgências e reclamações. Facilmente percebemos que este não
seria o melhor momento para ensinar algo. Nessa hora, os acadêmicos ficam
um pouco mais livres. É neste cenário que acabam, às vezes, fazendo
bobagens. É claro que não são intencionais, mas não é fácil no meio do caos
ficar o tempo todo fazendo perguntas básicas e interrompendo o
atendimento. Assim, os internos ficam constrangidos e podem tomar
decisões que, para eles, parecem corretas.
Um exemplo interessante ocorreu com uma acadêmica que, no meio
da confusão, perguntou ao médico o que deveria fazer. Estava atendendo
uma paciente em crise de pressão alta e gostaria de uma opinião sobre a
medicação. Ele apenas disse (ao mesmo tempo que gesticulava):
— Coloque uma nifedipina (medicação anti-hipertensiva) embaixo
da linguá e fura!
Virou-se e continuou atendendo os outros pacientes. Ela pegou a
cápsula e colocou sob a linguá da paciente, mas ficou em dúvida quanto ao
furo. Seria com uma agulha grossa ou fina? Na dúvida, pegou uma agulha
intermediária.
Como o residente poderia prever que a acadêmica, após colocar a
medicação embaixo da linguá da paciente, não furaria a cápsula, e, sim, a
língua dela?
A doente não deve ter entendido nada, mas pelo menos a sua pressão
abaixou. Espero que ela não ensine esse truque para seus conhecidos, uma
vez que melhorou devido à medicação, e, não, ao sangramento...
Embora seja essencial, a supervisão deve ser dosada, pois, quando
em excesso, pode levar a insegurança, dependência ou ser interpretada como
pressão.
Por mais absurdo que possa parecer, muitas vezes, a simples
presença de outro profissional pode intimidar o médico, afetando
negativamente o seu desempenho.
Nunca gostei muito daquela ideia de parto humanizado. Nele, o pai
entra na sala de cirurgia para assistir ao nascimento. Na maioria dos casos,
não há interferência e todos acham tudo muito bonitinho. Mas penso em
algumas daquelas situações raras e inusitadas, porém existentes, nas quais a
atuação do obstetra é definitiva para minimizar os riscos do nenê ou da mãe.
Será que nessa situação emergencial, com a presença do pai na sala, o
médico agiria da mesma forma e com a mesma competência?
Sinceramente? Acredito que não. Dou graças a Deus por ainda não
terem inventado a moda da cirurgia de emergência humanizada. Uma pessoa
não treinada e inserida no ambiente cirúrgico, se não ajuda, atrapalha. Sem
mencionar a possibilidade de contaminar algum material ou tropeçar num
cabo elétrico, a presença do estranho, muitas vezes, acaba por modificar as
condutas habituais do cirurgião. O que foge do habitual, dificilmente, sairá
tão bem. É o tal do "já que o parente está aqui, vou fazer um corte menor".
Parece bobagem, mas não é.
Certa vez uma moça que trabalhava como atriz submeteu-se a uma
cesárea. Além do obstetra, também estava na sala de cirurgia o cirurgião
plástico para fechar a sua pele. Ambos tentariam minimizar ao máximo a
cicatriz da cesárea. Assim, o corte foi um pouco menor que o habitual e, na
hora de retirar a criança, ela não passava pelo orifício. Foi um tremendo
estresse, pois a incisão precisou ser prolongada imediatamente e a criança
acabou nascendo com rebaixamento do Apgar (escala que avalia as
repercussões do estresse sofrido pelo recém-nascido durante o processo do
parto). Ainda bem que os pediatras a recuperaram rapidamente, pois caso
contrário teríamos mais uma criança com paralisia cerebral por causa de uma
baboseira. O obstetra certamente sofreu interferência em sua conduta pela
simples presença do cirurgião plástico na sala.
Conheci um professor de cirurgia que era considerado por todos um
verdadeiro gentleman. Além de ser muito habilidoso, todos admiravam a sua
calma e educação. Para se ter uma ideia de quão sereno era o seu
comportamento, certa vez, seus colegas de plantão convenceram-no a
realizar uma tomografia de crânio, simplesmente porque estava falando
muitos palavrões...
E não é que a tomografia veio alterada! Seu comportamento mudara
devido a um sangramento cerebral indolente, resultado de uma pancada na
cabeça que havia sido negligenciada por ele mesmo alguns dias antes. Foi
tratado e voltou ao seu normal.
Esse mesmo professor, anos antes, realizou uma cirurgia que foi
transmitida por videoconferência em tempo real. Era a moda nos congressos
da época. Casos de doenças coincidentes aos temas do evento eram
selecionados, operados, e sua cirurgia era demonstrada, ao vivo, para outros
médicos daquela área. No caso, uma plateia repleta de cirurgiões que, de
imediato, podiam opinar e discutir as suas dúvidas.
Não era nenhum caso diferente daqueles aos quais ele estava
acostumado. Eu era interno e instrumentei na sua cirurgia.
Tudo transcorreu perfeitamente, sem nenhum percalço. Entretanto,
pude perceber o seu estresse muito acima do habitual. Ele transmitia aquela
sensação de tensão a todos nós na sala. Sabia que não ficaria bem aplicar um
nó mais frouxo ou um ponto um pouco assimétrico, pois todos na plateia
notariam.
Tenho certeza de que o estresse por ele passado não afetou o
resultado da cirurgia. Mas o contrário poderia ter acontecido.
Postura de médico

"O importante é
termos a capacidade
de sacrificar aquilo
que somos para ser o
que podemos ser."
Charles Dubois

Imagine a seguinte situação: sua avó, com 90 anos, está internada na


UTI. O caso é gravíssimo. Seus pulmões e rins estão funcionando à custa de
aparelhos. Toda a medicação foi trocada e ela continua a piorar, apesar da
cirurgia.
O médico pode chegar para a família e dizer que o caso não tem mais
cura e a dignidade já se foi. Restaria apenas amenizar o seu sofrimento e
abreviar sua agonia. Ou pode preferir outra abordagem: dizer que, apesar do
péssimo prognóstico, existe uma pequena luz no fim do túnel. Não podemos
desistir! Devemos transferi-la para uma clínica nos Estados Unidos, onde
será cuidada por um "papa" de determinada área e assim por diante.
Acredito que algumas pessoas preferirão a primeira abordagem.
Outras se sentirão mais tranquilas com a segunda. Mas qual abordagem eu,
como médico, deveria seguir?
Este é apenas um dos inúmeros desafios com que lidamos
constantemente no trato com os pacientes: como se vestir, como falar, de que
forma abordar os males e seus tratamentos, qual grau de liberdade e
envolvimento emocional dispensar.
A maioria das pessoas fica mais à vontade quando o médico se
aproxima da imagem da fantasia que elas possuíam dele.
O profissional que aparece nas propagandas de hospitais ou de planos
de saúde, com certeza, reflete a imagem que a maioria das pessoas espera do
seu doutor. Eu nunca vi um comercial de TV em que o médico seja um punk
cabeludo com piercing, ou um gordão todo tatuado. Mesmo as pessoas mais
modernas parecem ser um pouco caretas quando escolhem o seu doutor. Não
deve ser muito tranquilizador saber que o profissional que irá cuidar da sua
mãe é um cirurgião bem doidão!
Não há uma disciplina de etiqueta médica e, na grade curricular,
nunca tive aulas com expoentes das boas maneiras.
Foi por meio da educação familiar e da observação dos vários
médicos com comportamentos diferentes que acabei burlando e
incorporando o meu próprio estilo. Procurei buscar uma postura que
agradasse à maioria dos indivíduos, sem perder a minha identidade.
Não deixamos de ser garotões aos vinte anos, mas começamos a nos
vestir de forma menos desleixada, a fazer a barba com mais frequência, falar
menos gírias e a exercer as nossas funções com um pouco mais de
responsabilidade. Em outras palavras, a essa altura, mudei a casca e tentava
lentamente ir mudando o conteúdo. É claro que este último é essencial, mas,
se a aparência não fosse digna de nota, ninguém gastaria dinheiro com
marketing.
É muito mais fácil acreditar no tratamento de um médico de meia-
idade, carismático, bem-vestido e com um lindo consultório repleto de
diplomas do que no de um jovem com roupas amassadas e trabalhando numa
espelunca. Pude atestar essa verdade em várias ocasiões.
Quando você ingressa numa Faculdade de Medicina sem ter repetido
um ano sequer na escola, terá 17 ou 18 anos. Após seis anos de curso, terá
23 ou 24. Com mais quatro anos de residência, 27 ou 28. Nessa idade, os
médicos ainda têm cara de menino, mas já estão treinados para atuar em suas
áreas. Aí começam as perguntas dos pacientes:
— Tão novinho e já é médico? — Nossa! Já é cirurgião?
Incomodados, muitos colegas começam a deixar a barba crescer, a usar
cavanhaque ou, até mesmo, a andar de gravata. Com o tempo, a face vai
envelhecendo e a confiança do paciente vai aumentando. Aí, raspam o
bigode, tiram a gravata e submetem-se a cirurgias plásticas
rejuvenescedoras...
Existe uma lógica no comportamento dos pacientes. O médico mais
velho deve ser mais experiente. É claro que o amadurecimento conta e, em
geral, eles estão corretos. Mas a experiência vem com o número de
atendimentos e não com a idade.
Alguns alunos entram na Faculdade de Medicina bem mais velhos do
que a média dos estudantes. Acabam sendo utilizados pelos próprios colegas
para determinados propósitos. Um deles, como já mostrado, era o da aula
trote. Outro, atender pacientes inseguros. Quando isso ocorria, o profissional
com a face mais madura, independentemente de sua patente acadêmica, era o
escolhido para comunicar a conduta.
Para se ter uma ideia da importância de nossa casca, vi em um
programa de televisão chamado Zoo Humano (ou algo assim) uma
experiência muito simples. Colocaram um ator no meio da rua, trajando
roupas esportivas e simulando um mal súbito. A câmera escondida mostrou
que ninguém parava para ajudá-lo, embora todos o notassem e ficassem
olhando. Poucos dias depois, o mesmo ator, no mesmo local, repetiu
exatamente a mesma atuação, só que de terno e gravata. Todos pararam para
ajudá-lo!
Depois desse dia, a minha esposa finalmente me convenceu a usar
gravata no consultório. Mesmo que seu uso não fosse efetivo em termos de
marketing para a clientela, pelo menos alguém me socorreria caso eu
passasse mal na rua...
Mais interessante do que o vestuário isoladamente ou a aparência é a
postura do médico em relação a seus pacientes. Embora seja óbvio, é
interessante notar que colegas de estilos divergentes atraem pacientes
diferentes. Assim, conseguimos algumas vezes até descobrir quem é o
médico de determinada pessoa, baseando-nos apenas no seu comportamento.
Doutores intolerantes e apressados costumam atrair pessoas com as mesmas
características. Existem exceções, mas é mais comum um halterofilista
comprar um pit bull, que um minipoodle (ou, pelo menos, eles escondem o
cachorrinho).
Uma das ferramentas que ainda exercito na medicina, para agir de
uma forma ou de outra, é muito simples. Tento me colocar no lugar do
paciente. Pelo menos os pacientes parecidos comigo apreciarão o meu
atendimento. Espero estar incluído na média.
É claro que os exemplos que vivi foram muito úteis. Alguns fugiam
muito do habitual, mas, curiosamente, havia procura para todos os estilos.
Talvez o personagem hors concours tenha sido um professor de
dermatologia. Todos nós, alunos, o adorávamos, dada a sua atenção e dado o
seu carinho, embora alguns o considerassem excêntrico.
Seu visual, assim como seu jeito, não era nada convencional. Tinha
um cabelo que me lembrava o He Man, embora grisalho. Comumente usava
avental, mas sem camisa por baixo. Em vez de anel de esmeralda (anel de
médico cada vez mais em desuso), portava um com a caveira do Fantasma,
herói que marcava sua presença em várias gravuras do consultório. Não
tinha secretária. O primeiro paciente que chegava ficava encarregado de
aguar as plantas, fazer o chá e servir os outros que fossem chegando. Não
atendia a convênios, o preço era livre. Orientava para que pagassem o que
pudessem. Adorava estudar. Conhecia a história da medicina, língua
portuguesa, latim, física, química e não perdia as aulas dos telecursos uma
manhã sequer. Classificava as árvores que encontrava na rua. Sabia o nome
científico de todas. Em suma, nós o achávamos adoravelmente maluco.
Ele havia escolhido fazer dermatologia, pois, diferentemente de todas
as outras especialidades médicas, o exame físico é mais importante do que a
anamnese. Entretanto, assim como um de seus heróis prediletos (Sherlock
Holmes), ele tentava imprimir seu raciocínio e sua perspicácia a cada
simples diagnóstico. Enquanto a maioria dos dermatologistas olhava para a
lesão e proferia o diagnóstico, ele, aplicando seus conhecimentos adquiridos
em um curso de detetive que havia feito em Londres, abordava todo o
contexto da patologia para depois chegar à mesma conclusão. Podia ser
menos prático, mas era interessante observá-lo utilizando a sua lupa em
busca de vestígios.
Por pensar assim e abordar as doenças dessa forma, muitos o
ignoravam ou debochavam de suas condutas. Mas os seus poucos
diagnósticos, que eu havia presenciado e verificado com outros
dermatologistas, estavam corretos.
Exemplificarei o seu modo de agir citando alguns episódios.
Especialistas em dermatologia se reuniram em um evento para
discutir seus diagnósticos e tratamentos diante de vários casos clínicos que
seriam apresentados. O clima era bem formal.
No primeiro caso seria discutida a melhor conduta em relação a um
paciente com uma extensa e grave inflamação dos pelos nas nádegas.
Após uma breve introdução, os slides mostraram uma fotografia do
paciente, de costas, com as calças abaixadas e mostrando o seu bumbum.
Terminada a apresentação, o caso foi à discussão. Não havia dúvidas quanto
ao diagnóstico. Todos na mesa concordaram tratar-se da mesma doença.
Então, um especialista de cada vez daria a sua opinião em relação à
melhor abordagem terapêutica. Um preferiu determinado antibiótico, pois
seu custo é baixo, enquanto outro ressaltou seus frequentes efeitos colaterais
e sugeriu outro fármaco, e assim por diante.
Quando chegou a vez do nosso herói, ele pediu para que
apresentassem novamente a imagem da lesão. Para o espanto dos ouvintes,
declarou:
— Reparem no uniforme azul do indivíduo e na conformação de suas
lesões (só faltou falar da unha grande do dedo mindinho). Olhem o tamanho
do bumbum. Provavelmente esse homem é motorista de ônibus ou cobrador.
Se ele deseja mesmo melhorar, deveria emagrecer um pouco. Além disso,
alguém tem que avisar esse rapaz para parar de fazer curvas tão drásticas.
Deste jeito, ele fica chacoalhando as nádegas de lá para cá e nunca vai
melhorar!
Desnecessário dizer que, enquanto eram proferidas essas palavras, o
professor titular que presidia a mesa apenas balançava a cabeça lentamente,
de lá pra cá e de cá pra lá, com uma expressão de desânimo...
O paciente era mesmo motorista e o tratamento, apesar de inusitado,
correto.
No mesmo encontro se discutiu a melhor conduta no tratamento do
rubor facial.
Existem várias situações em que podemos ficar com o rosto
avermelhado, como quando estamos envergonhados, enraivecidos ou em um
ambiente muito quente. Algumas pessoas ficam muito mais coradas do que o
habitual, mesmo não estando expostas a essas situações, o que pode
atrapalhar suas atividades sociais e profissionais. Você não tem nenhum
amigo apelidado de tomate ou cereja?
Pois bem, imagine esse seu amigo apresentando um telejornal ou,
como presidente de uma empresa, dando uma entrevista.
Após a descrição do caso clínico, vários profissionais foram dando a
sua opinião sobre o uso de fármacos e até mesmo de cirurgias para o
controle do rubor facial. Chegou a vez do nosso herói.
Ele perguntou em qual situação o paciente ficava ruborizado. O
expositor explicou que o rubor acentuava-se quando o paciente estava
constrangido. Para ilustrar qual seria a sua abordagem terapêutica, relatou
um caso que teria atendido no seu consultório.
O paciente também se ruborizava pelo mesmo motivo. Dada a baixa
eficácia das medicações e a agressividade da cirurgia, chegou à conclusão de
que a melhor abordagem seria tratar o constrangimento e não sua
consequência. Para tanto, propôs a terapia de exposição, que pode ser
utilizada em várias circunstâncias, como no medo de avião. O paciente vai
sendo gradativamente exposto à situação desencadeante, enquanto aprende
lentamente a controlar o seu medo. Existem até cenários que imitam o
ambiente do avião, com ruídos, personagens e trepidação.
Para aplicar a terapia, agendou algumas consultas. Nelas, fuzilava o
paciente com as piadas mais sujas que conhecia. Após algumas seções, o
paciente teria perdido totalmente o pudor e, com isso, o seu rubor. Nesse
momento o professor titular continuava o seu movimento da cabeça, agora
ruborizada...
Nesses casos não havia nenhuma doença mais séria. Mas o que
ocorre quando há uma doença grave? Eu tinha as minhas dúvidas.
Devo conversar sobre o caso com a família demonstrando maior
gravidade do que realmente acredito? Ou devo minimizar a gravidade?
Alguns médicos sabem jogar com isso de forma muito produtiva,
diminuindo a ansiedade e o sofrimento tanto da família quanto do paciente.
Como não acredito que tenha tal habilidade, tento sempre explicar o que está
ocorrendo em linguagem acessível e otimista, mas sem tirar os pés do chão.
Nenhuma das abordagens é errada, desde que não sejamos
desonestos. A abordagem suavizante pode diminuir a angústia da família e
dar um pouco mais de esperança, devendo ser utilizada eventualmente. Já a
abordagem que maximiza o problema pode diminuir as expectativas,
apaziguando o sofrimento e a surpresa no caso de uma evolução
desfavorável.
Esta última é jocosamente conhecida como "colocar o gato no
telhado"; pode também dar margem à safadeza.
A origem desta expressão vem da anedota a seguir.
Assim que Joaquim chegou em casa, contou ao Manoel: — Sabe o
gato que você pediu para eu cuidar? — Sim. — Ele morreu! O amigo, então
desesperado, lamentou: — Como você me dá uma notícia desta forma? Da
próxima vez, me conte de forma mais branda. Fale que o gato subiu no
telhado. Depois, que escorregou. Que o levou ao veterinário. Só aí, quem
sabe, que não resistiu e morreu. Poucos dias se passaram e o amigo recebeu
uma nova ligação do Joaquim: — Manoel, sua mãe subiu no telhado!
Ao colocar o gato no telhado, o médico pode posar de herói e vítima
ao mesmo tempo, o que pode ser muito confortável e, às vezes, desonesto.
Imagine um paciente que foi operado por causa de uma apendicite
leve. Apesar de não ser grave, o cirurgião dramatiza. Conta para a família
sobre a infecção gravíssima que estava escondida no abdome, com pus e
fezes espalhadas. Orienta que o quadro é delicado e há possibilidade de
morte. Aproveita para descrever sua incrível e ímpar perícia ao operá-lo.
Pede à família para agradecer aos céus por ter colocado o caso em suas mãos
e não nas de qualquer outro médico.
Como, na verdade, o caso não era complexo, a probabilidade de
sucesso será muito grande e o médico sairá como o herói da história. Apesar
de pesados, os seus honorários serão justíssimos: afinal, uma vida foi salva!
Por outro lado, se algo sair errado, não será nada mais que o
esperado: o médico já havia alertado sobre a gravidade da doença. Era uma
apendicite terrível!
Em outras palavras, se tudo der certo, é mérito do médico. Se der
errado, culpa do destino...
Na medicina há casos típicos e atípicos. Na maioria das vezes o
quadro clínico será intermediário. Estima-se que as doenças manifestem-se
de forma totalmente "típica" em apenas 30% das vezes. Aprendi que quase
não existem o branco nem o preto. Bem mais comuns são o cinza-claro e o
cinza-escuro.
Quando o caso é cinza, apesar dos exames complementares, e a
incerteza permanece, realizamos a conduta que acreditamos ser mais segura
para o paciente. Isso pode significar uma cirurgia, mesmo na dúvida: "In
dublo pro reo."
Por isso, uma das cirurgias de barriga que indicamos com frequência
é a laparotomia exploradora. Em palavras mais simples: abrir, entender e
resolver o que está lá dentro. Nessa situação, nós não sabemos o que
encontraremos nem o que faremos. Isso não é muito fácil de ser assimilado
pelo leigo.
Independentemente de minimizada ou maximizada, será fundamental
uma explanação médica adequada para que o doente compreenda e ajude a
solucionar seu problema. Porém, dependendo da postura do médico, seu
paciente ficará totalmente tranquilo ou completamente apreensivo com as
suas justificativas. Um exemplo desse tipo de habilidade, ou inabilidade,
ocorreu com uma paciente de oitenta anos, que foi flagrada ao tentar fugir do
hospital. Tudo isso devido ao breve diálogo entre ela e o residente de
primeiro ano que iria operá-la:
— Me desculpe fazer estas perguntas, doutor, mas é que eu nunca fui
operada. Com você será a minha primeira vez.
— Toque aqui! — estendendo a mão, alegremente, para
cumprimentar a paciente. — Também será a minha primeira vez...
Outro aspecto marcante da postura médica que precisávamos
incorporar era a responsabilidade.
Ser responsável não quer dizer apenas chegar no horário e cumprir
suas tarefas. É se comprometer com os problemas dos pacientes. Trabalhar,
cuidar, ajudar. Se houver dúvida, estudar, discutir o caso com outros colegas,
ouvir diferentes opiniões, correr atrás de respostas. Quando nada funcionar,
começar tudo de novo.
Há uma tendência em segmentar o doente. Em um grande hospital
universitário é muito fácil nos diluirmos naquele bando de profissionais que
serve o doente. Um pode deixar alguma dúvida para o outro, que deixa para
um terceiro e não se resolve nada. Já diz o ditado: "cachorro que tem dois
donos morre de fome".
Por isso, aprendi que cada paciente deve ter seu "dono". Na verdade,
foi mais uma doutrinação do que um ensino. Devemos nos responsabilizar
pelo doente e defendê-lo com unhas e dentes. Não podemos abandoná-lo.
Operei, certa vez, um paciente que precisaria de reserva de sangue
para a sua cirurgia. Seu sangue era tipo O negativo e, para variar, estava em
falta. Necessitaríamos apenas de mais uma bolsa e eu não queria suspender a
cirurgia. Doei meu sangue (O-), comi o sanduíche de presunto com suco de
laranja e fui operá-lo. Concordo que houve certo exagero de minha parte,
mas é tudo culpa dos meus professores. Esta era a sua ideia de
responsabilidade e compromisso.
Ouvindo e absorvendo intensamente as várias situações, comecei a
adquirir uma postura que teria como objetivo final o bom relacionamento
médico-paciente.
Apesar de, nem sempre, as pessoas valorizarem, o relacionamento
médico-paciente é a parte mais importante de qualquer tratamento. Se não
confiarmos em nosso médico, as possibilidades de um determinado
tratamento ser efetivo serão mínimas.
O bom relacionamento é aquele em que há, literalmente, uma boa
relação! Não consigo entender como ainda existem pacientes que se deixam
operar por médicos de quem nem sabem o nome! Por outro lado, entendo,
mas também me frustro com a existência de colegas que se prostituem para
fazer tudo o que seus pacientes mandam.
Num bom relacionamento, o médico orienta as opções e, com o
paciente, traça o seu caminho avaliando os riscos e os benefícios. Existe uma
confiança do paciente no médico e do médico no paciente. O jogo deve ser
aberto, não burocrático. Há respeito dos dois lados e um consentimento
falado. O paciente sabe que o médico é humano e tem as suas limitações.
Este, por outro lado, deve se empenhar no tratamento, buscando estar
atualizado e dando sempre o melhor de si.
Mas quanto mais intenso for o relacionamento maiores tenderão a ser
os laços emocionais. Para que isso não nos atrapalhe, treinamos outras
habilidades.
A empatia e o escudo protetor

"Ser empático não é


ser simpático. A
simpatia pressupõe
solidariedade, a
empatia pressupõe
compreensão. A
simpatia cria um
envolvimento
emocional, que pode
prejudicar o
julgamento. A
empatia estabelece
comunicação
eficiente."
Eugenio C. Mussax

Muitas vezes as pessoas se surpreendem com a falta de sensibilidade


dos médicos, quando estes assistem a pessoas com dor ou morrendo.
Excluindo os raros profissionais realmente insensíveis, esta é uma verdade
parcial. Se existe uma coisa que me incomoda muitíssimo, por exemplo, é
presenciar um indivíduo com dor sendo tratado por alguém que anda
arrastando os chinelos. Mas nós somos seres extremamente adaptáveis.
Depois de ver alguém cortado ao meio por um trem, dificilmente ficaremos
chocados com um pequeno corte na cabeça, mesmo que seja na cabeça do
próprio filho. Assim como no contato com cadáveres, a repetição levará ao
hábito. E o habitual deixa de chocar ou, pelo menos, minimiza o choque
emocional. Uma manchete de jornal noticiando "Bala perdida mata criança"
deve ter maior impacto na Finlândia do que em Uganda! Caso nós nunca nos
acostumássemos, depois de presenciarmos a décima morte, provavelmente
também nós nos mataríamos.
Além da influência exercida pela força do hábito, também somos
treinados para ter empatia. Em outras palavras, tentamos compreender o que
a pessoa está passando para podermos ajudá-la da melhor forma possível.
Mas, apesar de nos importarmos com os pacientes, não devemos nos
envolver no seu sofrimento como se fôssemos seus familiares. Deve existir
uma distância, pois sem ela o nosso raciocínio poderia ficar comprometido e
desapareceria parte de nossos poderes. Assim, vamos criando uma espécie
de escudo protetor emocional, o que não é fácil, embora seja fundamental.
A empatia e o escudo se desenvolvem com o treino e é evidente que
no início, por ainda sermos crus, as surpresas e os insucessos tendem a
causar mais sofrimento. Nessa fase, há maior tendência em se envolver
emocional, em vez de profissionalmente. Quanto maior a ligação emocional,
maior será a nossa angústia e, consequentemente, maior será a dificuldade
em raciocinar.
Lembro-me de um cirurgião muito competente que resolveu operar o
próprio pai. A cirurgia foi muito tranquila, mas no pós-operatório a evolução
mostrou-se insatisfatória.
Em vez de melhorar, ele começou a vomitar, a mencionar dor e a
apresentar distensão abdominal. O caldo entornou quando um líquido
estranho começou a vazar pelas suas incisões. O médico sentiu-se totalmente
inseguro e perdido. Não conseguia discernir se suas decisões estavam sendo
embasadas em dados racionais ou emocionais.
Nessa altura, desesperado, o filho chamou outro cirurgião para
avaliar seu pai.
Para seu amigo, era evidente que estava se desenvolvendo uma
infecção grave e que havia a necessidade de uma nova operação. Acharam
uma perfuração no intestino em decorrência da primeira cirurgia.
Afligiu-o um sentimento de culpa e indignação por um fato que,
embora raríssimo, pode ocorrer. A perfuração foi corrigida e a sua vida,
salva. O mais curioso é que esse médico, com certeza, tomaria as decisões
corretas caso seu escudo protetor fosse à prova de emoções envolvendo os
seus familiares. Até a simples interpretação do líquido que vazava foi difícil:
"Será que é apenas um líquido mais espesso e estou achando que é intestinal
por ser no meu pai?".
Não pense que com o tempo acabamos ficando imunes ao sofrimento
dos nossos pacientes. Sofremos. E muito. Ainda bem que, ao contrário do
caso anterior, a maioria dos tratamentos dá certo. É sempre muito gostoso
dizer que a cirurgia foi um sucesso ou que a resposta ao tratamento vem
sendo excelente. Mas, infelizmente, existem muitas exceções. Más notícias e
insucessos também precisam ser relatados para os que não gostariam de
ouvi-los. Aí, o escudo aparece novamente, para nos salvar.
Nunca me esquecerei de um casal que estava no saguão do pronto-
socorro numa sexta-feira à noite. Ela, de vestido longo azul e com o cabelo
todo armado. Ele, de smoking. Ambos aparentavam uns cinquenta anos.
No meio daquela bagunça com pacientes sangrando, baleados e
enfaixados, estavam destoantes. Em harmonia com o ambiente, apenas as
suas feições. Ambos com medo, desespero e angústia.
Não era por menos. Seu filho dependurou-se em um cabo de alta-
tensão que, em decorrência, rompeu-se. Ele caiu de uma altura razoável e,
depois, pegou fogo. O espetáculo pirotécnico grotesco teria ocorrido em
plena festa de formatura!
O seu smoking estava derretido e aderido ao corpo. Ele ainda tentou
brincar com um dos médicos, sobre como seria inesquecível a sua colação de
grau...
Apesar de estar consciente e com os sinais vitais estáveis, sabíamos
de antemão que morreria. Era apenas uma questão de tempo, tendo em vista
o prognóstico das suas lesões.
Horrível. Mas sem o escudo, como ficaríamos? Como olharíamos
para a cara dos seus pais?
Você conhece algum bom jeito para ser despedido? Excluídas as
performances grotescas, não existem ótimas formas de se contar péssimas
notícias.
Na primeira vez em que anunciei uma morte, os parentes demoraram
cinco minutos para entender o que eu dizia. Tudo isso porque eu fiquei
enrolando, devido ao meu medo de usar a palavra "morreu".
Dificuldade similar pode existir na revelação diagnóstica de alguma
doença grave. A família, em geral, não quer revelar o diagnóstico ao
paciente com o argumento de que este não o suportaria. Por outro lado, a
emparia nos permite avaliar quando dizer e como contar ao paciente. Às
vezes, não posso negar, as nossas suposições estão redondamente
enganadas...
O prédio do hospital possuía vários andares. Cada andar tinha quatro
corredores dispostos como os lados de um quadrilátero. Externamente a
estes ficavam os ambulatórios das diversas especialidades. As partes internas
dos lados delimitavam um grande vão aberto, que se estendia do teto ao
térreo.
Certa vez, após ouvir as más notícias de seu médico e descobrir sua
doença incurável, o paciente se jogou pelo vão. Ele caiu de vários andares e
se esborrachou no chão. A narrativa do anestesista que passava pelo térreo,
neste momento, é inacreditável.
Para começar, o paciente quase o atingiu. Tudo o que percebeu foi
um ventinho próximo à sua orelha, imediatamente seguido por um "turn"
seco ao seu lado. Antes que ele pudesse compreender o ocorrido, começou
uma chuva estranha pelo mesmo vão; eram gazes, ataduras, tubos e cateteres
que despencavam de diversos ambulatórios.
Os servidores que presenciaram a tentativa de suicídio jogavam pelos
andares tudo o que podiam para tentar servir o médico. O anestesista coletou
as provisões e começou a atender o paciente do jeito em que ele estava,
estirado no chão. Parecia uma instrumentação cirúrgica a distância. Ele
gritava "laringoscópio" e alguém jogava um, do setor de endoscopia. "Tubo
de intubação" e voava uma cânula do terceiro andar... Com isso, ele pôde
inserir um tubo na traqueia do doente e fazer curativos compressivos. Mas,
mais tarde, as lesões se mostrariam incompatíveis com a vida.
Embora essas catástrofes possam ocorrer, na maioria das vezes o
paciente quer, e deve, saber do diagnóstico. Só assim ele entenderá e
permitirá os tratamentos; e poderá eventualmente até reprogramar a sua vida.
Você não mudaria nada em seu dia a dia, caso soubesse que morreria em três
meses?
Percebemos que quando o paciente não quer saber o diagnóstico ele
não pergunta. Então, não dizemos.
Apesar de ser útil a tentativa de nos colocarmos no lugar do paciente,
só ele sabe o que se passa em sua cabeça. Eventualmente, ao ocultarmos
informações, podemos estar privando os pacientes de coisas que jamais
imaginaríamos. É justo?
Acompanhei um paciente portador de uma grave doença
degenerativa que gradualmente ia minando as suas forças. Não havia
tratamento específico e a musculatura ficara tão fraca que, além de não
conseguir se movimentar, respirava com o auxílio de um aparelho portátil.
Ele estava internado e nunca mais receberia alta.
Não havia a possibilidade de home care nem se dispunha da
variedade de aparelhos que existem hoje. Por isso, o paciente utilizava um
respirador que, para nós, era um velho conhecido. Tratava-se de um aparelho
de respiração compacto e que dispensava energia elétrica. Para funcionar,
bastava conectá-lo a uma fonte de oxigênio sob pressão. Um engenhoso
sistema de ímãs fazia o restante do trabalho. Apesar de ser muito prático,
volta e meia alguma de suas mangueiras se soltava e ele parava. Por serem
extremamente úteis, os hospitais mantinham os aparelhos funcionando
durante décadas sem aposentá-los. Embora o pessoal da manutenção se
esforçasse, era relativamente comum nos depararmos com alguma pane da
máquina.
É muito angustiante perceber que o paciente parou de respirar e que
vai ficando cada vez mais roxo. Enquanto isso, o coitado do médico,
desesperado, fica procurando a causa do problema.
Mas aquele homem estava tão habituado à sua maquininha que,
quando algo parava de funcionar, ele mesmo detectava o problema e nos
orientava sobre como proceder.
Sua doença estava em fase terminal e, frequentemente, ele adquiria
infecções respiratórias que deterioravam ainda mais a sua delicada condição.
Quando notou uma nova piora, perguntou-me sobre o seu prognóstico. Eu
não sabia o que dizer e desconversei.
Fui pedir orientação ao médico assistente, que me disse para ser
franco e lhe contar a verdade. Quando ele me procurou pela segunda vez
naquele dia, revelei nossas preocupações. Não lhe restaria muito tempo de
vida.
Como poderíamos prever o que ele faria a seguir?
Ninguém havia cogitado aquela hipótese, mas ele, no mesmo dia,
resolveu se casar!
Sua parceira de muitos anos ficou emocionada com a ideia.
Imediatamente, no outro dia após a tomada de decisão, a cerimômia foi
celebrada pelo capelão do hospital.
Casou-se na enfermaria. De um lado, o seu aparelho. Do outro, o seu
amor. Sob a bênção do padre e rodeado de seus companheiros, pôde realizar
o seu último sonho.
Exatamente vinte e quatro horas depois, ele faleceu.
O jogo de cintura

"Tudo seria fácil se


não fossem as
dificuldades."
Apparício F. de B. Torelly (Barão de Itararé)

Além de tolerância, boa postura, escudo protetor e empatia, é muito


importante que desenvolvamos outra característica...
Apesar das desculpinhas esfarrapadas, como na da minha primeira
coleta de sangue, "tivemos" de mostrar um pouco de jogo de cintura.
Precisamos lidar com pessoas que, muitas vezes, não estão no seu
melhor dia e em situações para as quais não existe um manual de condutas
preestabelecidas. Nessas horas, a ginga pode ser salvadora. Assim como
qualquer outro colega de profissão, passei por várias "saias justas" durante a
fase de minha formação; acredito que os próximos exemplos serão bem
didáticos para exemplificá-las.
O "causo" ocorreu no interior do Amazonas. Entraram no
ambulatório o pai enraivecido — gritando pelo médico — e a mãe tentando
acalmá-lo, ao lado de uma moça barriguda. De um lado, o senhor dizia que
ia matar a filha caso "a vagabunda estivesse prenha", ao mesmo tempo que
lhe aplicava alguns cascudos na cabeça. Do outro, trajando um vestido longo
como seus cabelos, a mãe repetia que a filha era virgem. Sua religião não
permitia o ato carnal'antes do casamento. A menina estava tão nervosa que
não parava de soluçar nem conseguia verbalizar direito.
Imediatamente, o médico pegou a primeira radiografia que viu por
perto e começou a analisá-la, aparentemente alheio à situação. Poucos
instantes depois, denunciado pela enfermeira, o médico, que ainda olhava
para uma radiografia sem saber como agir, concluiu que essa desculpa não se
prolongaria por muito tempo. Identificou-se e pediu à menina que entrasse
em seu consultório. Solicitou ao pai que parasse de agredi-la e esperasse do
lado de fora, pois teria que examiná-la. Pelo menos ganharia uns minutos...
Ele não conseguiria mais trabalhar se não resolvesse rápido o caso
dessa família, pois estavam conturbando todo o atendimento.
Ao examiná-la, podia auscultar os batimentos cardíacos do nenê,
palpar sua cabeça e membros. O diagnóstico de gravidez no terceiro
trimestre era evidente. Começou a pensar como acalmaria o pai, pois a filha
realmente estava prenha e, provavelmente, ele não aceitaria nenhuma
explicação envolvendo boto do igarapé ou anjo Gabriel. Como prevenir,
então, o duplo homicídio?
O médico, ansioso, ficou matutando sobre o que deveria fazer. Pelas
atitudes que vinha demonstrando, o pai provavelmente mataria a filha. Tendo
visto a postura dele, achou que valeria a pena tentar uma abordagem
alternativa.
Com um semblante de preocupação, chamou os parentes e lhes disse:
— Estou muito preocupado. Ou ela está grávida — pausa de alguns
segundos enquanto o pai fazia cara de "eu sabia!" — ou está com um câncer
em estágio muito avançado — nova pausa enquanto a expressão facial
paterna mudava para "meu Deus, como fui injusto e intolerante". —
Precisamos fazer um ultrassom de urgência!
— Mas, doutor, e se for câncer? — Muito grave. Disseminado. Mas
gostaria de conversar sobre isso somente após ter certeza.
Levantou-se e saiu caminhando em direção ao radiologista. Não é
preciso dizer que o pai ficou pálido e a mãe, pasma. Agora, era ele quem
tentava acalmá-la.
Foi realizado o exame. Por se tratar do primeiro ultrassom desta
gestação (e que deveria ser o terceiro), o exame demorou um pouco mais que
o normal. Os pais observaram o radiologista sair da sala com uma cara séria
e levar o laudo ao outro médico. A tensão não parava de aumentar, até
quando o médico e a enfermeira, sorridentes, cumprimentaram os pais no
meio do corredor:
— Não é câncer. É um machão e está perfeitamente saudável! Foi
quando os pais, em prantos, abraçaram a filha: — Graças a Deus, minha
filhinha, graças a Deus...
O médico estava passeando pelo pátio do bucólico hospital
psiquiátrico, quando avistou um de seus pacientes em cima da torre da caixa-
d'água. Visivelmente agitado, ele gritava que iria "avoar". Estava em surto
psicótico. O psiquiatra não tinha a menor ideia de como ele subira lá.
Independentemente de como ocorrera, criou-se uma situação muito delicada.
O paciente acreditava poder voar e não deixava ninguém se aproximar da
escada. Não era possível medicá-lo sem uma zarabatana, nem trazer algo
para amortecer sua queda caso ele realmente não saísse planando. Vários
enfermeiros e auxiliares aglomeraram-se no local da cena, perguntando-se o
que fazer. Preocupado, o médico tentou estabelecer contato com o doente:
— Manoel, é o doutor Carlos. Desça daí. Você pode se machucar! —
Doutor, eu posso "avoar". Vou descer "avoando". — Ah! Voar dai é fácil,
qualquer um faz. Eu quero ver é você voar daqui de baixo até aí em cima!
— Você duvida? Vou mostrar! Confrontado, o.paciente desceu pela
escada e, ao lado do médico, pôs-se a bater vigorosamente os braços.
Enquanto tentava, arduamente, burlar as leis da física, os enfermeiros o
restringiram...
Não são só as tiradas geniais que salvam alguns profissionais ou
pacientes. O médico às vezes também precisa ser ator. Ouvi uma história que
confirma essa tese.
Uma senhora que não andava muito bem do ponto de vista emocional
acabou fraquejando e pensou em trair o marido. Mas, antes que fosse tarde,
ela se arrependeu e decidiu voltar para casa. Enquanto retornava, sua
consciência começou a pesar tanto que se tornou um fardo insuportável. Ela
era muito religiosa e não teve dúvidas; embora 'fosse tarde da noite, dirigiu-
se à igreja que frequentava. Não sossegaria enquanto não confessasse sua
tentação.
Quando chegou à paróquia, pôde verificar que esta, obviamente,
estava fechada. Tentou abrir as portas, mas, mesmo com toda a sua gritaria,
não obteve êxito. E, após a tentativa infrutífera, seu desespero aumentou.
Quase em pânico, resolveu pular as grades que circundavam a igreja.
Ao tentar transpô-las, acabou tendo o punho transfixado por uma das
lanças e, ali, ficou dependurada. Já em surto, delirando, gritava o mais alto
que podia:
— Começaram! As chagas de Cristo! Com todo aquele escarcéu,
alguém resolveu chamar o resgate, que, prontamente, a socorreu. Segundo os
bombeiros, apesar do "estigma" no braço esguichando sangue, ela recusava
qualquer atendimento que não fosse de um padre. Vendo que sua hemorragia
era muito grave, arrastaram-na para o hospital mesmo contra a sua vontade.
Chegando ao PS, não deixava ninguém atendê-la, pois queria se
confessar. Estava nitidamente fora de si, o que fez com que os médicos
tramassem sua sedação à força para estancar logo o sangramento. Porém,
antes de agarrá-la, um colega com um nome bem conveniente para a
situação — Bento — teve um plano. Uma das formas de abordar um delirio
é passar a fazer parte dele.
Expôs o crucifixo do seu colar por cima da camisa e caminhando,
calmamente, em direção à paciente, identificou-se:
— Boa-noite, irmã. Tenho formação religiosa e estou cursando
Medicina. Me chame de padre Bento. Posso ajudá-la?
Para ela, aquilo foi uma bênção, em todos os sentidos. Dessa forma,
ele pôde acalmá-la, ao mesmo tempo que lhe salvava o corpo —
comprimindo o punho ferido — e a alma — ouvindo-lhe os pecados.
Evitando entrar em detalhes, ele a perdoou e orientou para que
rezasse dez "pais-nossos" e cinco "ave-marias".
Peço desculpas ao leitor, mas, assim como ele, também desconheço a
equação que define o número de rezas de acordo com a gravidade do pecado.
Com a paciente bem mais calma, puderam ocluir a artéria e corrigir
suas lesões de nervos e tendões. Graças ao tratamento multidisciplinar
(ortopédico, fisioterápico, psiquiátrico e religioso), a paciente recuperou-se
muito bem.
Pouco tempo depois, ela voltou ao ambulatório para
acompanhamento. Muito satisfeita, redigiu uma carta de agradecimento
encaminhada a todos, mas, principalmente, ao padre Bento...
3 — A RESIDÊNCIA BÁSICA (1º E 2º ANOS)

A inspiração e a seleção

O generalista é o médico que sabe um pouco de tudo e o especialista,


o que domina tudo sobre quase nada.
— Dário, como funcionam aquelas próteses comandadas pela mente?
— Não tenho a menor ideia. Nunca ouvi falar. — Como não sabe, se está
quase terminando a faculdade? — Maldito Discovery Channel! —
murmurei.
Ao final do sexto ano, o conhecimento teórico do graduando é o mais
amplo possível em termos de generalidades médicas. Sabemos o básico da
psiquiatria à cardiologia e da neurologia à proctologia. Mas não é fácil
chegar ao fim do curso e perceber que aquela ideia de que dominaríamos a
medicina por volta do quinto ano não se confirmaria nem no epílogo do
sexto (... quem sabe um dia).
Mesmo assim, a impressão dos leigos, incluindo os alunos menos
graduados, é de que o sexto-anista tem que saber absolutamente tudo de
tudo. O que é impossível. O nosso conhecimento é a cada dia mais amplo e
mais complexo.
O interessante é que imediatamente depois de me formar nenhum
familiar ou amigo me procurava mais para questionar suas dúvidas médicas.
Sabe por quê? Porque, ao contrário do sexto-anista, dizem que médico
recém-formado não sabe nada... É uma injustiça! Sabendo bastante ou
sabendo pouco, o fato é que no sexto ano estudávamos muito, pois sabíamos
que logo chegaria a hora de abandonar o gerúndio doutorando e virar doutor.
Que frio na barriga!
Por mais esburacado que seja um caminho, costuma ser mais
confortável manter-se nele que optar por desvios e bifurcações. Depois de
seis anos caminhando na inércia da faculdade, surgiu uma encruzilhada: ou
eu entrava numa boa residência, ou teria que cair na vida até as provas do
ano seguinte. As duas perspectivas pareciam-me assustadoras.
O destino seria definido pelo segundo vestibular que enfrentaríamos.
Se no primeiro tínhamos que estudar química e matemática, agora teríamos
que saber clínica, cirurgia, obstetrícia, ginecologia... A área de estudos era
muito maior. O pior é que nas faculdades mais puxadas o tempo disponível
para se estudar era exíguo. Sabia que o internato de algumas escolas
terminava cinco meses antes do da nossa. Seus alunos teriam muito mais
tempo livre para estudar.
Como se não bastasse, inventaram os cursinhos para residência
médica. Caso você não tivesse a sorte de ter estudado numa boa faculdade,
poderia sanar suas deficiências tendo aulas específicas para concursos de
residência com professores extremamente didáticos. Passaria na "decoreba".
Não vejo esses cursinhos com maus olhos. Talvez até preparem um
pouco melhor os futuros médicos. Mas, como frutos dos seus próprios
objetivos, reduzem as vantagens que os alunos de boas faculdades
naturalmente teriam numa prova teórica. Nivelando essa balança, deixam-
nos apreensivos. Da minha parte, o que poderia fazer é estucar.
Quanto ao concurso de residência, talvez, por levar em consideração
essas desvantagens, foi determinada a realização de uma prova prática.
Alguém pode decorar as causas de perfuração intestinal, mas se nunca tiver
visto os sinais radiográficos dessa complicação, de nada valerão os seus
conhecimentos teóricos. Então, por que não questionar sobre radiografias ou
fotografias de lesões, para valorizar o conhecimento prático?
Estava um pouco mais tranquilo com o surgimento desse novo tipo
de avaliação, mas ainda teria que decidir sobre qual especialidade seguir.
Há uma piada que indica uma das formas de diferenciar o clínico do
cirurgião:
— Basta vê-los tentando impedir o fechamento, já avançado, das
portas de um elevador.
O clínico sairá correndo e tentará pará-las esticando as suas mãos.
Mas o cirurgião, por outro lado, jamais se arriscaria a machucar os seus
preciosos dedos. Ele projeta-se para frente, mergulhando e parando as portas
com a cabeça...
Eu decidi parar elevadores com a cabeça. Na verdade, vinha
ensaiando essa opção desde o quarto ano, época em que me apaixonei pelas
emergências cirúrgicas. Talvez consiga até determinar a hora em que alguém
plantou a semente no meu cérebro...
Urgência denota uma condição grave que exige tratamento em horas,
enquanto a emergência, em minutos.
Uma jovem colidiu seu veículo com uma árvore. Estava sem o cinto
de segurança e bateu o pescoço no volante. Foi trazida às pressas pelo
resgate, pois estava roxa e com muita falta de ar. Sua respiração era ofegante
e fazia um ruído incrível, como se 90% da sua traqueia estivesse obstruída. E
estava. Foi quando presenciei o que considero um dos mais angustiantes
desafios para o cirurgião.
Após administrar oxigênio por máscara facial, o médico tentou
inserir um tubo na traqueia através da boca. Mas não conseguiu visualizar
nada, pois havia muito sangue no local. Aspirou o quanto pôde daquele
sangue, mas de nada adiantou. O coração estava quase parando. Palpou o
pescoço dela para tentar fazer uma cricotireoidostomia, mas a anatomia
estava tão destruída pelo trauma que não sabia onde cortar. A única saída
seria uma traqueostomia de emergência.
A cricotireoidostomia é um procedimento cirúrgico que, desde que
alguns pontos da anatomia do pescoço possam ser palpados, permite um
acesso às vias aéreas com muita rapidez. Foi o que realizaram, ainda na
pista, de emergência, num grande herói da Fórmula-1. A traqueostomia é
bem mais trabalhosa, mas, a médio e longo prazo, traz complicações menos
sérias que as da cricotireoidostomia.
Ela estava em torpor, mas ainda consciente, agitada pela falta de
oxigênio e, com isso, dificultando terrivelmente a atuação do cirurgião. Ele
contou com a ajuda de outros dois médicos para segurar os braços dela. A
cena era medieval. A pressa era tanta que o médico pareceu degolá-la. Na
hora em que ele abriu a traqueia, todo o fluxo de ar começou a passar por ali.
Formou-se um aerossol, borrifando o sangue que escorria dos vasos
seccionados. Todos na sala pareciam ter contraído uma forma aguda de
sarampo coletivo, mas a jovem conseguiu respirar melhor e foi salva.
Esse estresse durou pouquíssimos minutos, embora tivessem
parecido uma eternidade. Todos os que participaram desse atendimento
enfrentaram um check-up cardíaco grupal. Adrenalina pura misturada com
ciência, habilidade e uma pitadinha de sangue.
Se algumas vezes a cirurgia de emergência é frustrante, em outras é
extremamente gratificante. Seus resultados são quase imediatos. Apesar de
protocolos, estudos e discussões, as surpresas ocorrem a todo momento. Há
uma variável tão grande de lesões, manifestações clínicas e combinações
destas que o cérebro do cirurgião passa a ser constantemente exercitado e a
uma velocidade estonteante. Isso me empolgou e prestei exames para
cirurgia.
A prova teórica foi superada. A prática também se mostrou
exequível, reforçando o meu escore. Lembro-me da única questão que errei
com certeza. Pediram para que eu identificasse o nome de um instrumento
cirúrgico. Fácil! Era uma tesoura de dissecação, mas na hora de escrever o
seu nome: Metzenbaum...
Superada a etapa da prova de residência de cirurgia geral do hospital,
começou um novo desafio.
Serei um boneco-cabeção de Olinda?

"O cirurgião tem uma


arma na mão. Não
pode ser afoito."
Sérgio Almeida de Oliveira

No início da faculdade não tinha a menor ideia sobre qual área me


especializaria. Após experimentar o pout-pourri de ensinamentos, não tinha
dúvidas da minha opção. Diferentemente daquela vacilante escolha do
vestibular, agora estava convicto em prestar cirurgia. Dentro de todo
contexto, não conseguia me ver como um especialista de hemorroidas, ou de
varizes, ou de vesícula. Na contramão do desejo da maioria dos formandos
em Medicina, gostaria de exercê-la como generalista.
Certamente, o cirurgião geral de hoje não é mais como era no
passado. O pai de um grande amigo me contou que, antigamente, não era
raro o médico anestesiar seu paciente e, depois, operá-lo. O cirurgião geral
fazia quase tudo. É claro que os casos mais complexos ficavam para algum
profissional que estivesse mais habituado a tratá-los, mas estes
representavam uma pequena minoria.
O cirurgião geral de hoje acaba atuando de forma mais ativa nas
cirurgias do trato digestivo e nas urgências. Apesar de existir uma pressão
crescente da sociedade e do Estado pela formação de mais generalistas, os
próprios médicos preferem que existam os especialistas, o que facilita, em
muito, a sua vida.
A maioria das cirurgias realizadas pelo cirurgião de cabeça e
pescoço, por exemplo, é a retirada de tireoide. Um bom cirurgião geral as
fazia com o pé nas costas e, se hoje continuasse a fazê-las, certamente o
número de especialistas nesta área poderia ser bem menor. Restariam alguns
poucos para realizar as cirurgias mais complexas.
Mas a maioria dos médicos não deseja ser generalista e ter que
conhecer e operar várias outras doenças, o que seria bem mais difícil e,
como se não bastasse, menos reconhecido.
Explica-se então a pressão para que todos os procedimentos,
inclusive os mais simples, sejam realizados por especialistas específicos,
desta ou daquela área. Intervenções de diferentes especialidades cirúrgicas,
como as drenagens pleurais da cirurgia torácica, as varizes da vascular,
hemorroidas da proctologia, vesículas da gastrocirurgia e cistos de ovário da
ginecologia poderiam ser (e muitas vezes são) realizadas pelo cirurgião
geral.
Não devemos radicalizar para um lado ou para o outro. Os
especialistas em órgãos ou sistemas são absolutamente necessários, mas
deveriam ser mais raros que os generalistas (não podemos nos esquecer de
que o verdadeiro cirurgião geral é um especialista como qualquer outro, mas
o é em cirurgia geral).
O campo da geral contraiu-se com a criação de outras disciplinas,
mas ainda é, entre as especialidades cirúrgicas, o mais amplo. Além disso,
entre os cirurgiões, o generalista é o profissional que possui a visão mais
holistica do doente. Exatamente o que eu procurava.
Para percorrer minha nova trilha, cursaria dois anos um curso básico
em que todos os cirurgiões precisam passar antes de se especializarem.
Nesses anos, rodaríamos por várias áreas cirúrgicas aprendendo os seus
procedimentos mais simples. Depois, caso fosse feliz num terceiro e quarto
vestibulares, poderia cursar mais três anos, finalmente me especializando em
cirurgia geral.
No passado, o residente era assim denominado porque morava dentro
do hospital. Cada clínica tinha um quartinho, onde, literalmente, habitava o
médico que se especializava naquela área. Graças a alguns colegas com
complexo de Princesa Isabel de Bragança, foram mudando essa regra, até
transformar a residência no que é atualmente. Ainda existem os quartinhos e
os senhores de engenho. Entretanto, o dia a dia aproximou-se da realidade
extra-hospitalar.
Lembro-me de quando alguns residentes entraram em greve por
melhores condições de trabalho. Entre as reivindicações estava a limitação
das horas de jornada. Achei isso meio ridículo e explicarei por quê.
O residente é um médico em especialização buscando aprender o
máximo possível na área escolhida. Destarte, alguns hospitais descobriram
outra vantagem em lidar com residentes, que é a mão de obra barata. Surgiu,
então, um ofício quase escravo, com baixa remuneração e péssimo
aprendizado. Para esses residentes, uma redução das horas seria justificável,
mas para os das boas instituições, acredito que não.
Quando a residência é de qualidade, o aluno se esforça para ficar o
maior tempo possível aprendendo e mantendo contato com os pacientes dos
seus estágios.
Eu nunca saí de uma cirurgia mais cedo porque "tinha terminado o
horário comercial"! Antes de ir embora, dava uma passada na enfermaria,
para ver se estava tudo bem. Ficaria desapontado se aparecesse algum bedel
para me expulsar, argumentando que não poderiam pagar hora extra.
Quanto mais tempo maior conhecimento; é um aprendizado de
imersão. Nessa época somos ávidos por informação e pela prática.
A primeira coisa que percebi ao entrar na residência foi o peso da
responsabilidade, que aumentou muito. Além disso, temos que aprender a
nos virar sozinhos.
Quando o professor solicita um exame de cintilografia, ele não
fornece o manual de como, onde e com quem marcar o exame. Não ministra
uma aula instantânea sobre a doença e seu tratamento. Precisamos estudar e
correr atrás das coisas. É um período em que nos tornamos ainda mais
autodidatas. Mas não fique aflito, ninguém sai fazendo experiências in anima
nobile (no ser humano). A supervisão e a hierarquia acentuam-se ainda mais.
É nessa hora que se inicia a nossa verdadeira curva de aprendizado.
Mais uma vez, sempre haverá um primeiro caso. Nele, o corte será
maior, assim como o tempo de cirurgia. Ninguém deixará o cirurgião júnior
ultrapassar os seus limites ao enfrentar algo que suas condições técnicas não
permitam, mas, mais uma vez, esses limites serão imprecisos.
A residência de cirurgia representava um desafio inédito. Vários
problemas parecidos com os do internato seriam enfrentados.
Evidentemente, em boa parte deles a superação viria por uma simples
questão de empenho. O que mais me preocupava é que, talvez, mesmo com
muita dedicação, eu nunca viesse a ser hábil o suficiente. Aquele velho papo
de precisão cirúrgica me assombrava. Seria eu coordenado o suficiente ou
teria a "precisão cirúrgica" das bombas na primeira guerra do golfo? Sempre
me achei um desastrado.
Certa vez, marquei um encontro com uma nutricionista. É claro que
gostaria de impressioná-la. Esse desejo costuma exacerbar algumas de
nossas características positivas e negativas. Além disso, devia estar num dia
especial.
Assim que nos sentamos frente a frente, à mesa do barzinho,
puxamos as nossas cadeiras simultaneamente para dar aquela ajeitadinha. Ao
nos inclinarmos, batemos nossas cabeças.
Logo após, gesticulando e contando algum "causo" com empolgação,
esbarrei no seu copo de cerveja e derrubei-o. Quase indo embora, fiz
qualquer brincadeira sobre como voltar para casa. Ao fingir estar pedindo
uma carona, sem querer, enfiei o dedão no olho dela.
Foi um pastelão inesquecível. Não é preciso dizer que, além de não
conquistá-la, nunca operei sequer um único paciente que fosse por indicação
sua.
Seria eu, no balé cirúrgico, o equivalente a um boneco cabeçudo do
carnaval de Olinda, em meio aos seus ágeis dançarinos de frevo?
Poderia eu, operando uma vesícula, esbarrar no bisturi elétrico e
queimar o estômago? Ops!
Além de estabanado, era distraído. Esqueceria uma compressa a cada
cirurgia realizada?
Se uma pessoa é desatenta, para diminuir a possibilidade de esquecê-
las dentro da barriga do doente, basta seguir a técnica de prendê-las com
pinças e conferi-las ao final da cirurgia.
Quanto à habilidade, para a minha sorte (e dos meus pacientes),
descobri que ela provém em sua maior parte não do talento, mas sim do
treino. Muuuito treino.
Apenas para exemplificar, existem vários tipos de nós cirúrgicos que
precisamos dominar. No início não era nada fácil, pois tínhamos que fazê-los
de forma rápida, com a tensão adequada, sem afrouxar, sem arrancar as
estruturas envolvidas pelo fio e sob o olhar impaciente de alguém mais
experiente.
Antigamente, os cirurgiões em treinamento recebiam pequenas
madeiras com pregos para treinar os seus nós, apelidadas de barquinhos. Eu
não tinha um barquinho, mas bastava achar um fio e lá estava eu dando os
nós. Só meus pais saberão dizer quantos milhares deles eu treinei em
cordinhas de varal, fios de costura, barbantes, laços e cadarços. Às vezes,
essa obsessão em aperfeiçoar a técnica dos nós cirúrgicos podia ser tão
grande que, por causa dela, um colega acabou se metendo em uma grande
fria.
Ele era residente de cirurgia e estava voltando de férias no Nordeste
brasileiro. Entediado no avião, começou a treinar nós no cadarço que
amarrava a sua bermuda. Fazia um nó após, e sobre, o outro, sem
desmanchar o nó anterior e terminava por entrelaçar os dois ramos do
cadarço em toda a sua extensão até ficarem muito curtos e não ser mais
possível amarrá-los. Nesse ponto os soltava um a um e, num ritual repetitivo,
começava tudo de novo. Em dado momento, enquanto desfazia uma longa
sequência de nós, percebeu um reflexo intenso dos acarajés que havia
ingerido, traduzido por uma dor de barriga monumental. Pálido, os pelos do
seu braço eriçados, saiu correndo até o toalete do avião que, por sorte, estava
livre. Ao sentar no vaso, já em pânico, descobriu que a bermuda não saía,
por maior esforço que fizesse. Tentou desmanchar os nós o mais rápido que
conseguia, mas não foi hábil o suficiente e acabou evacuando dentro dela e
nas paredes do toalete. Além de jogar suas roupas na lixeira, viu-se na difícil
tarefa de limpar as paredes do banheiro, durante turbulências, com papéis de
seda e aquela torneira econômica intermitente. Deve ter sido a primeira vez
que, apesar dos apelos de aeromoças, comissários e até do comandante da
aeronave, alguém pousou sentado na privada e depois fez check-out
enrolado em um "pareô da companhia aérea"...
Assim como nos nós, tudo na cirurgia tem um jeito certo e um
errado. Aprendíamos como segurar uma tesoura, quando usar alguma pinça,
que fio escolher, quando se movimentar e muitos outros detalhes técnicos. É
evidente que existem pessoas mais jeitosas, mas a técnica é um bom modo
de nos nivelar. E por mais habilidosa que a pessoa seja, se fugir da técnica,
fará bobagem. Mas pior, muito pior, pode ocorrer quando a técnica ainda não
está estabelecida e vem sendo aprimorada.
Um velho jargão médico já dizia: "Grandes cirurgiões, grandes
incisões". O tamanho do corte não poderia limitá-lo no exercer de sua arte. O
paciente deveria pagar o tributo necessário para que a sua cirurgia fosse
benfeita. Um doloroso pós-operatório era justificável desde que as costuras
ficassem lindas! E isso dentro do abdome, pois do lado de fora... A estética
ainda era algo secundário, muito distante.
Hoje todo cuidado voltou-se no sentido de minimizar o sofrimento do
paciente, mesmo que para manter a cirurgia linda o cirurgião sofra mais. Isso
porque, algumas vezes, as cirurgias minimamente invasivas podem ser muito
mais trabalhosas do que as clássicas. Nelas, realizam-se os mesmos
procedimentos (que antes seriam efetuados por grandes cortes) através de
pequenos e limitantes orifícios ou incisões. O trabalho em campo cirúrgico
pode ser maior, mais delicado, exigir mais treino e também mais paciência,
inclusive para aguentar um anestesista reclamando da morosidade. Mas, em
contrapartida, compensa pelo resultado.
Muitas vezes os convênios e os próprios colegas não compreendem a
lógica de perdermos mais tempo, trabalharmos mais e utilizarmos recursos
caros para corrigirmos algo que poderia ser tratado de forma mais simples,
rápida e barata. Existe lógica nesse raciocínio e, em algumas vezes, eles têm
razão, mas o cirurgião não pensa apenas no ato cirúrgico ou anestésico, ele
inclui o pós-operatório. Nesse período, seja a curto ou a longo prazo, o
anestesista e os convênios não costumam perceber a diferença entre os
resultados das diferentes técnicas. Sabemos que sendo menos invasivos
(desde que com a técnica adequada), poderemos obter melhores resultados.
Uma cirurgia de vesícula, por exemplo, pode ser realizada por uma
grande incisão ou pelos furinhos da laparoscopia. O material necessário
nesta última técnica é mais caro que na tradicional. Desta forma, a princípio,
ela parece representar uma desvantagem para o pagador que, na maioria das
vezes, será o convênio ou o Estado. Para que gastar mais, se os resultados
serão similares?
Simples, os resultados não serão similares. Como a dor e a agressão
cirúrgica geradas pela laparoscopia são menores, a recuperação acaba sendo
mais rápida (essa diferença é nítida em alguns procedimentos, mas em outros
não é tão clara assim. Já contraindiquei cirurgias por laparoscopia
acreditando que naqueles casos seriam mais agressivas que a tradicional ou
que os seus custos não seriam justificados pelos benefícios).
O paciente ficará mais satisfeito, pois sofrerá menos. Recuperando-se
mais rapidamente, ele voltará a trabalhar mais cedo e com menor
desconforto. Usará menos medicamentos, ficará internado por menos tempo
e não precisará se pendurar na previdência social. Assim sendo, o custo
hospitalar pode até ser maior, mas o custo social, menor.
Indubitavelmente, a introdução da videolaparoscopia nos anos 1990
representa um dos grandes avanços na cirurgia. Ela é mais conhecida pelos
leigos como "a cirurgia a laser que a vizinha fez da vesícula". Na verdade,
não tem nada a ver com laser. São pinças e tesouras como na cirurgia
convencional, orientadas por uma microcâmera. Entretanto, o material é
adaptado para ser utilizado através de pequenos portais que atravessam a
parede abdominal.
Eu acompanhei os primeiros passos da laparoscopia no início do meu
internato. Como qualquer avanço na medicina, a técnica seguiu os estágios
habituais:
— Inicialmente foi desprezada. Diziam que só serviria para aumentar
os ganhos dos fabricantes do material específico. Depois, graças aos bons
resultados, começou a ser aceita. Finalmente, a maioria dos seus críticos
começou a dizer ter previsto, desde o início, que seria um excelente método!
Também podemos enxergar as fases desta forma: — Não serve para
nada! -Tem as suas indicações. -Serve para tudo! — Serve para a maioria das
coisas.
Nas primeiras intervenções por vídeo, o tempo de cirurgia era
enorme. Uma cirurgia de vesícula durava três horas; depois de toda aquela
trabalheira, o resultado era pior que o habitual. O problema não era do
método, e, sim, da falta de treino. Ninguém estava adaptado.
Surgiram as caixas-pretas, que simulavam a cavidade abdominal.
Nelas, os cirurgiões podiam treinar seus movimentos. Afinal, não era fácil
operar em duas dimensões e com o tato atenuado. O desempenho foi
melhorando e as complicações diminuindo. Nessa época, a minha impressão
de laparoscopia era a mesma da primeira fase: "Não serve para nada!".
Passados poucos anos, coincidindo com o início de minha residência,
a experiência começou a mostrar suas grandes vantagens. O pós-operatório
era bem melhor, mas ainda possuía suas restrições. Aí começou a moda de
indicar laparoscopia para resolver qualquer problema cirúrgico. Serve para
tudo!
Assim que indicações esdrúxulas começaram a surgir, vieram
acompanhadas de iatrogenias e complicações escabrosas. Finalmente, os
médicos começariam a descobrir as diferenças entre o que podia e o que
devia ser realizado por laparoscopia. Opa, não serve para tudo!
Entretanto, a evolução não para. Muito material foi desenvolvido e
aperfeiçoado. Com o grande know-how adquirido, as recomendações
puderam voltar a ser ampliadas num ritmo mais saudável. A laparoscopia é
um exemplo típico da curva de aprendizado coletiva.
Tive sorte de aprender laparoscopia durante a minha residência com
médicos já treinados, seguindo os passos habituais do ensino de qualquer
outra cirurgia. Comecei como instrumentador, depois como segundo auxiliar,
primeiro auxiliar e, finalmente, como cirurgião principal. Foi muito mais
difícil para quem teve que aprender a laparoscopia em cursinhos de dois ou
três dias e depois se virar sozinho. O mercado pediu a laparoscopia e quem
não soubesse fazê-la estava fora.
Este é só um exemplo de como o médico precisa ser autodidata e ter
uma noção muito boa do que deve, ou não deve fazer, principalmente se
estiver sozinho.
O hipotálamo maluco e a cueca molhada

"Sofrimento pode ser


necessário,
desnecessário ou
voluntário."
Robert Fripp

Para percorrer os estágios do curso básico de cirurgia geral,


formávamos grupos de três residentes. Esses grupos se alternavam num
programa de rodízios pré-estipulados, de forma que cada estágio estivesse
sempre preenchido por um deles. Os três residentes que faziam parte de cada
uma das equipes deveriam trabalhar juntos em todos os plantões, durante os
dois anos seguintes.
Tive uma evolução muito boa em técnica operatória, apesar de, volta
e meia, ao gesticular, continuar enfiando o dedo no olho de minhas
namoradas. A prática cirúrgica era muito intensa. Alguns estágios eram tão
puxados que eu não conseguia adaptar o meu ritmo' de sono a eles. No
pronto-socorro de cirurgia, por exemplo, trabalhávamos noite sim, noite não.
Não podíamos dormir nenhum minuto durante o plantão e, muitas vezes,
nem nos sentávamos. No dia seguinte ainda, tínhamos que ir ao ambulatório,
assistir a aulas ou preparar reuniões. Após três meses, não éramos mais seres
humanos normais.
Essa pressão para não dormir era tanta que, quando alguém pegava
no sono, acabava sendo vítima de alguma armação dos que continuavam
trabalhando. Uma das formas de escapar do flagra era dormir um pouquinho
e escondido. Alguns cochilavam até dentro de armários, mas na maioria das
vezes não íamos dormir: caíamos no sono. E aí...
Certa vez eu estava tão cansado que peguei no sono sentado numa
cadeirinha de metal no meio do saguão daquele agitado PS. Estava tão
esgotado que nem ouvi aquela máquina de lavar o chão que passava de
madrugada fazendo o maior barulho e inundando tudo. Não era à toa que
chamávamos esse evento de "a pororoca".
Enquanto estava dormindo, um colega aqueceu soro glicosado e
colocou a ponta daquele caninho de plástico que fica conectado ao frasco
(equipo) dentro do meu bolso. O soro ficou pendurado em um mastro ao
meu lado, gotejando lentamente. Como estava aquecido, demorei a perceber.
Quando acordei, percebi algo estranho em minha roupa. Tive a sensação de
ter urinado nas calças. Instintivamente, ao colocar a mão no molhado, senti
que estava melado. Uma delícia; aquela sensação de refrigerante seco em
todo o meu corpo.
Aos poucos fui despertando e enquanto pensava na improbabilidade
de uma enurese noturna (emissão involuntária de urina), notei o esquema. A
sorte é que eu estava com o uniforme de plantão: um pijama do centro
cirúrgico. Tomei banho e troquei de roupa, mas naquele dia, tive que ir à
reunião sem cueca.
É estranho ouvir falar de médicos agindo de tal forma. Mas essas
brincadeiras não eram incomuns entre os residentes. Não sabia mais se
dormia de noite ou de dia nem quando devia me alimentar. Tentei inverter o
ciclo de vigília, acordar mais cedo, fazer sesta, mas foi tudo em vão. Com
todo o estresse e falta de sono, meu hipotálamo (centro regulador das
funções vitais, como sono, fome, temperatura) ficou maluco e, assim como
ele, todos nós também começávamos a ficar meio alterados. As brincadeiras
serviam como uma válvula de escape para toda essa tensão.
A privação do sono não acomete apenas os residentes. Hoje em dia, o
médico tem que trabalhar muito mais se quiser ganhar, aproximadamente, o
equivalente ao que recebia em épocas passadas. Um dos métodos para
alcançar esse objetivo é dar plantões. Não é raro que algum colega trabalhe
36, 48 ou até 72 horas seguidas e, não tendo um horário de descanso, lute
contra o sono em algum momento. Isso mina insidiosamente o seu poder de
concentração e de raciocínio. Por essa razão, de forma geral, os hospitais
proíbem que o médico trabalhe ininterruptamente por mais de 12 horas. O
que ele faz? Simples! Trabalha durante vários períodos de 12 horas, um após
o outro, só que em lugares diferentes!
Eu mesmo dou o "plantão da meia", esporadicamente, de 24 a 36
horas. Como nesse período fico alternando 12 horas em cada hospital,
vestindo uniformes próprios, brinco que só troco de meia (e de cuecas).
Colaborando para piorar ainda mais o funcionamento do nosso centro
do sono, há outra peculiaridade, muito comum, entre os jovens médicos.
Chama-se o "furor".
Furor operandi

"Anestesista é igual a
pernilongo. Está
sempre picando a
veia ou enchendo o
saco de alguém."
Residente de cirurgia em furor operandi.

Segundo uma pesquisa, o médico treinado em videogame teria maior


facilidade em realizar cirurgias videolaparoscópicas. Nunca passei em um
estágio de fliperama na residência de cirurgia, embora pudesse ter adorado
uma ideia desse tipo. Na verdade, só se aprende a operar operando!
O treinamento em cirurgia não inclui apenas o desenvolvimento de
técnicas e habilidades psicomotoras; envolve o raciocínio constante em
situações dinâmicas e imprevisíveis. Há pequenos truques e soluções que só
compreenderemos quando formos expostos a problemas muito particulares.
Certa vez, enquanto raspava, com uma haste, amostras da lesão na
virilha de um paciente nu, a residente quase foi a nocaute. Uma rápida
ereção peniana atingiu-a no queixo como se fosse um golpe cruzado de
esquerda! Nunca imaginei que isso fosse tão comum. Com certeza não havia
nada no livro de micoses que a pudesse auxiliar naquele momento, mas uma
experiente professora lhe ensinou: "Quando for raspar o exame micológico
na região genital, afaste o saco escrotal para o lado, valendo-se de um
algodão embebido com éter. Ele é tão gelado que frustrará qualquer indício
de ereção!".
Embora nunca tenha passado por situação similar, seja como médico,
seja como "embolorado", aprendi vários truques durante a residência: como
aplicar a primeira camada de pontos na cirurgia do esôfago, como achar uma
trompa uterina que não é palpável, como estancar rapidamente o
sangramento de uma facada no coração... Esses são apenas alguns exemplos
do que chamamos de "o pulo do gato". Ou seja, manobras eficazes e pouco
conhecidas, voltadas para situações específicas. A forma mais fácil de
aprendê-las é assistindo a alguém mais experiente em ação.
A expressão originou-se de uma fábula. O gato ensinou todos os seus
métodos de caça para a onça. Em determinado momento, valendo-se de todo
o seu aprendizado, a onça o atacou. Entretanto, ele conseguiu escapar graças
a um mirabolante salto. A onça, frustrada, surpreendeu-se com essa manobra
que ele nunca havia ensinado. Afinal, era o seu segredo: — o pulo do gato.
Quando iniciei a especialização, estava ansioso para começar o
treinamento, aprender os vários pulos do gato e aprimorar minhas
habilidades. Entretanto, é muito importante que dominemos a clínica
cirúrgica antes de sairmos incisando alguém, o que faremos depois, durante
toda a residência. Em outras palavras, devemos saber quando indicar uma
cirurgia, como conduzir um pós-operatório e que exames solicitar no pré-
operatório, antes de operar propriamente. Porém, não queríamos saber de
aprender pré e pós-operatório, embora estivéssemos cientes da importância
de conhecê-los. Em vez disso, ficávamos o tempo todo com uma terrível
coceira nos dedos, querendo cortar tudo o que passasse pela nossa frente. O
nome que demos a esse comportamento é "furor operandi".
Se você gosta de fazer tricô e depois ver como a roupinha ficou
bonita, imagine só como é gostoso fazer uma bela cirurgia e perceber com
isso o benefício propiciado ao doente. Operar pode ser o inferno, mas na
maioria das vezes, além de ser recompensador, é literalmente muito gostoso.
Costurar, cortar, fazer desvios, dissecar na "espuminha de Túlius" era muito
bom.
Mais um epônimo regional. Veio de um médico, o Dr. Túlius. Ele
tinha uma saudável obsessão por dissecar nos planos cirúrgicos adequados.
Estes são separados por uma "espuminha frouxa" que, por mérito, foi
batizada com o seu nome.
Além de adorar operar, tínhamos uma sede sem igual para sorver
dessa fonte ainda inexplorada.
Os procedimentos cirúrgicos eram divididos entre os residentes, de
acordo com a sua complexidade. Uma hérnia inguinal seria realizada pelo R-
1, uma retirada de vesícula, pelo R-2, do estômago, pelo R-3, e assim por
diante. Como trabalhávamos em panelas de três, cada cirurgia era realizada
por um de nós, denominado a "bola da vez".
Brincávamos que a pior situação para o paciente num hospital
universitário era ter uma dor em flanco direito. Ou seja, nem abaixo das
costelas nem no pé da barriga, mas no meio do caminho e à direita. Nesse
caso, o R=1 — salivando — sempre tenderia a achar que se trata de uma
inflamação em um apêndice "meio alto", enquanto o R-2 — amolando o
bisturi — pensaria em uma inflamação na vesícula "um pouco baixa". Uma
vez possuídos pelo furor, cada um tendia a puxar o diagnóstico para a
patologia que se encaixasse nas cirurgias contempladas pelo seu grau
técnico. Na dúvida, o assistente examinaria o caso e bateria o martelo
estabelecendo a conduta definitiva. O furor operandi na maioria das vezes
acaba sendo saudável, pois demonstra interesse e determinação. Porém, deve
ser utilizado com moderação...
Algumas patologias, por serem mais emergenciais, deverão ser
operadas independentemente do horário. Outras, não urgentes, podem ser
abordadas em períodos mais adequados, com a equipe descansada e
completa. Nós não queríamos saber disso. Com uma energia inesgotável,
fazíamos cirurgia de apêndice às duas da manhã para depois encaixar o caso
do esôfago às três, do cólon às quatro e assim por diante. Já os assistentes,
conhecendo as suas limitações e cansados de saber que o índice de
complicações aumenta nas cirurgias da madrugada, reservam para esse
período só os casos de extrema necessidade. Nesta hora, surgia um conflito
entre a nossa vontade e a sua prudência. Para suplantá-la, alguns residentes
com maior furor criaram métodos não muito ortodoxos, mas bastante
criativos.
Uma das complicações mais temidas das úlceras gástricas é o
sangramento. Quando a lesão se aprofunda, pode erodir os vasos que nutrem
a parede do estômago, causando grandes hemorragias. O paciente pode
vomitar sangue ou defecá-lo em volumosa quantidade e, se nada for feito,
correrá o risco de morrer rapidamente.
Hoje em dia, a endoscopia digestiva consegue coibir o sangramento
na maioria dos casos, restando a necessidade de cirurgia apenas aos casos
refratários. Há uns vinte ou trinta anos, a endoscopia não era disponível
como hoje em dia. Além disso, só servia como um instrumento para
diagnóstico e não para terapêutica. Por isso, nos casos que voltavam a
sangrar apesar das medidas iniciais, a indicação cirúrgica era bem mais
liberal.
Quando esses pacientes chegavam ao PS, entre outras medidas,
passavam uma sonda pelo seu nariz até o estômago (sonda nasogástrica). Por
ela, infundiam soro e depois aspiravam o conteúdo várias vezes para lavar o
sangue do estômago. Após o débito ficar incolor, era fácil perceber uma
recidiva do sangramento.
Independentemente do motivo de indicação, se o sangramento pela
sonda cessasse, a cirurgia poderia ser postergada, o que permitiria melhor
preparo do paciente. Não representava mais uma emergência. Mas a visão
dos residentes era outra. Como seu plantão é de 12 horas, caso o paciente
fosse operado pela manhã, seria tratado por outra equipe. Perderiam essa
oportunidade?
Foi exatamente num desses casos com a sondagem de conteúdo
claro, sem sangramento ativo, mas com indicação de cirurgia decretada, que
um grupo de residentes dominados pelo furor teve uma ideia maquiavélica.
A noite estava tranquila, sem baleados ou outras urgências. O caso il
seria operado, mas como não estava com sangramento em atividade, ficaria
para o período da manhã. Aborrecidos, os residentes colheram sangue para
exames de controle do ulceroso e... Eureca!
Aproveitaram para introduzir alguns mililitros do sangue colhido na
sonda nasogástrica. Esta ficou vermelha novamente. Chamaram o 1
assistente e o alertaram para o fato de estar ocorrendo uma nova hemorragia.
Este, apesar de verificar que os sinais vitais (pulso, pressão i arterial) não
tinham se alterado, achou prudente intervir antes que isso pudesse ocorrer e
o paciente foi encaminhado para a sala de operações.
Excluídas as histórias mais apimentadas, o furor operandi ajuda mais
do que atrapalha. Mas há um grupo, com quem convivemos diariamente, que
sempre se julga prejudicado: os anestesistas.
Anestesia e anestesistas

"Aqui jaz W.T.G.


Morton, o
descobridor e
inventor da anestesia.
Antes dele, cirurgia
era sinônimo de
agonia. Por ele foram
vencidas e
aniquiladas as dores
do bisturi. Depois
dele, a ciência é
senhora da dor."
Inscrição na lápide de William Thomas Green Morton

A invenção da anestesia moderna pôde mudar toda a história da


cirurgia. Ela possibilitou a transformação do barbeiro em cirurgião e abriu as
portas para que saíssemos da era medieval e penetrássemos no mundo
moderno. A sua história é muito interessante e cheia de percalços, mas irei
resumi-la em poucas linhas.
Primeiro descobriram o gás hilariante (N20). Trata-se de um gás com
propriedades analgésicas, mas, antes de lhe perceberem essa qualidade,
haviam constatado outra que lhe valeu o nome: provoca o riso.
Consequentemente, surgiram nos Estados Unidos reuniões em que o
N20 era utilizado para diversão. Era uma espécie de lança-perfume lícito da
época. Em um desses encontros ocorreu um pequeno acidente que poderia
ser considerado corriqueiro: um participante escorregou, bateu a perna num
móvel e a machucou. Entretanto, sob o efeito do gás, não sentiu dor!
Enquanto todos gargalhavam daquela "videocassetadossaura", um
dentista, Horace Wells, que estava presente, vislumbrou, a partir desse fato,
aplicações muito mais úteis.
Wells estava acostumado a causar dor, pois diariamente extraía
dentes dos seus pacientes. Aquilo parecia bom demais para ser verdade.
Então resolveu ser sua própria cobaia em um experimento.
Inalou o gás e permitiu que lhe extraíssem um dente. Para a sua
surpresa, não sentiu nada. Começou a realizar cirurgias com o gás, mas
justamente no dia em que exporia a sua descoberta numa faculdade o tiro
saiu pela culatra. O paciente gritou e ele foi taxado de impostor.
Os norte-americanos não deviam ser muito caretas, pois, além do
NO, também existiam festinhas regadas a éter, as ether parties. Mas, dessa
vez, outro dentista valeu-se de métodos mais acadêmicos para achar uma
nova substância. Por meio de discussões com um químico chegou à
indicação do éter. Dessa vez, a demonstração funcionou. Em 1846, William
Thomas Green Morton realizou a primeira anestesia oficialmente, criando
definitivamente essa disciplina e seus especialistas. O seu epitáfio é
merecido.
A anestesia evoluiu e ficou muito segura. Uma vez em curso, chega a
ser até entediante (brinca-se que os próprios anestesistas, quando acordados,
costumam concordar com essa afirmativa). Mas não pense que tudo é um
mar de rosas. Há surpresas que demandam desses mestres do Sudoku,
tratamento emergencial, como mostra o ditado: "Anestesistas são médicos
quase dormindo tomando conta de pacientes quase acordados. Mas não se
iludam! Numa anestesia existem horas de grande marasmo e minutos de
enorme terror".
O problema desses minutos é que, na correria, se não houver muita
calma e experiência, tudo começa a dar errado. Sob estresse, já vi um
anestesista aplicar anestésicos na borracha do estetoscópio pensando ser a do
equipo de soro, ou no próprio dedo ao errar de alvo, e até ficar travado, sem
reação.
Algumas complicações podem ser completamente inusitadas e,
independentemente de sua gravidade, também exigir do anestesista rapidez
de raciocínio.
Antes da anestesia propriamente dita, podemos aplicar um sedativo
para diminuir o sofrimento psíquico dos pacientes. Algumas vezes, esses
remédios anestesiam a autocrítica e nossa lingua pode nos trair...
Um desses pré-anestésicos foi aplicado na esposa de um médico.
Quando ela entrou no centro cirúrgico, onde o seu marido se encontrava,
para assistir à cirurgia, estava "pra lá de Bagdá". Não sabia da presença dele
e, mirando o anestesista, começou a relatar os seus desejos sexuais, digamos,
não muito convencionais. Nesse momento, o marido caminhava em direção
à sala de cirurgia. O anestesista, percebendo que dispunha de poucos
segundos para salvar um casamento antes que o esposo chegasse, de súbito
inseriu um tubo à força na traqueia dela, imobilizando suas cordas vocais
(mais rápido do que levaria para preparar qualquer medicamento). Antes que
o marido pudesse ouvir os comentários ou entender o ocorrido, o colega lhe
explicou:
— Ela ia vomitar e tive de induzir imediatamente para proteger os
seus pulmões...
Os pré-anestésicos realmente são fantásticos. Acalmam o paciente,
diminuem sua carga de hormônios do estresse e até regularizam a pressão
arterial. Um efeito que costumam causar, muito conveniente, é a amnésia.
Esta é muito bem-vinda já que a maioria das pessoas prefere não se lembrar
do centro cirúrgico, mesmo tendo ficado acordada antes ou ao longo da
cirurgia. O efeito costuma ser muito intenso. Por outro lado, quando por
algum motivo ela não ocorre, as lembranças podem ser bem desconcertantes.
Houve casos de pacientes que saíram do plano anestésico e
lembraram-se da desagradável sensação de imobilidade involuntária devido
ao curare (aquele veneno dos índios) e até de palavrões ditos pelos seus
cirurgiões.
Uma paciente me contou que teria ouvido as queixas do seu médico
durante a cirurgia. Não gostou nada dos comentários que ele usara referindo-
se à sua gordura intra-abdominal. Eu estivera presente ao procedimento e só
acreditei no seu relato quando ela reproduziu as palavras do cirurgião (e que
eu ouvira):
— Ela diz que só come peixe e faz natação o dia inteiro. Com essa
banha toda só pode ser uma baleia. Uma baita cetácea!
Quem causa ou resolve todas essas questões é o anestesista. Como
cirurgiões, convivemos com eles e dependemos deles. Não é raro que
percebamos atritos nesse relacionamento, principalmente quando envolve os
residentes de cirurgia. O motivo, segundo estes, é simples: não existe furor
anestesiandi. Como residentes, nós queríamos operar tudo a toda hora e a
qualquer hora, enquanto os anestesistas queriam anestesiar o estritamente
necessário. O conceito de necessário não é tão simples.
Os anestesistas trabalhavam exclusivamente no centro cirúrgico, bem
menos expostos à pressão dos pacientes. Eles não vivenciavam o caos do PS
nem a enorme fila de candidatos à cirurgia que lotavam as nossas macas.
Podiam ser casos menos ou mais graves, mas todos necessitavam de cirurgia
com certa urgência. Algumas vezes, quando indicávamos intervenções em
um desses casos menos urgentes, eles tentavam barrigar (empurrar com a
barriga, deixar para o plantão seguinte; sinônimo de "vamos hidratar mais
um litro", "melhorar um pouquinho o potássio" e "repetir um exame de
coagulação").
Apesar de exercerem as suas funções com extrema competência e
dedicação, não têm o mesmo relacionamento e, por isso, o mesmo
compromisso que os cirurgiões possuem com os seus pacientes. Não é por
má vontade. Afinal, o cirurgião que atendeu o doente, fez o seu diagnóstico,
internou, indicou o tratamento cirúrgico e é quem acompanhará o seu pós-
operatório, seja hospitalar ou ambulatorial. Os anestesistas serão apenas um,
embora indispensável, elo dessa corrente.
Eles têm outros empregos em que não podem chegar atrasados e,
frequentemente, emendam plantões de 24 ou 36 horas. Precisam de descanso
e pontualidade. Anestesiar um monte de casos eletivos poderia minar as suas
forças ainda nas primeiras 12 horas. Além disto, como disse um sábio
professor: "Cirurgia tem hora para começar, mas não tem hora de terminar",
o que pode lhes causar problemas nos outros empregos.
Quanto a nós, residentes de cirurgia, estávamos lá para aprender. Não
havia tempo a perder nem outro trabalho para ir depois das cirurgias. Desta
forma, era comum assistir a um residente puxando a brasa da sardinha para o
seu lado, dizendo que a inflamação na vesícula é uma emergência, enquanto
o anestesista levava para o outro, argumentando que não se tratava sequer de
urgência.
Aprendi que quando há uma boa relação entre os cirurgiões e
anestesistas todos têm a ganhar. Assim como com as enfermeiras, a equipe
funcionará bem melhor se estiver entrosada.
Enquanto no papel de cirurgiões, não visamos apenas a uma boa
cirurgia, e, sim, a um bom tratamento, o que inclui a anestesia. São os nossos
pacientes que sofrerão mais, ou menos, dependendo da qualidade da
anestesia. O indivíduo que fica vomitando no pós-operatório imediato tende
a relacionar isso com a cirurgia e não com o anestesista. Se não vomitar
nada, o cirurgião é excelente!
Em outras palavras, nós servimos aos anestesistas propiciando-lhes
clientes (ninguém vai ao consultório do anestesista) e tentando fazer a
cirurgia da melhor forma possível. Eles, por outro lado, também nos servem.
Nada melhor que um colega competente que saiba aplicar uma boa anestesia,
aliviar as tensões do ambiente ao contar piadas e, segundo os mais maldosos,
ajustar o foco cirúrgico.
"As" xerifes

Nota explicativa: Eu estudava inglês em um grupo formado por mim


e por mais duas alunas. O professor se referia a nós, "meninos". Três meses
depois, uma moça juntou-se ao grupo, quando o professor passou a nos
chamar de "meninas". O coletivo, na proporção de três para um, mudou de
gênero. Cansei de ser chamado de "meninas". Peço desculpas aos Niltão,
Rangelzão, Diegão, entre outros, mas como a proporção de enfermeiras é
maior, mantendo a regra, os chamarei de "enfermeiras".
Além dos anestesistas, havia outro grupo de profissionais com que
convivíamos ou, mais uma vez, segundo os mais maldosos, sobrevivíamos...
Trabalhar bem-vestido em um pronto-socorro que atenda a
emergências não é fácil nem seguro. Era muito comum assistir a alguma
acadêmica indo ao seu primeiro plantão no pronto-socorro de cirurgia (PSC)
com lindas melissinhas e voltando ao segundo plantão de galochas. Os
clínicos brincavam que essa sigla foi assim designada por conter as iniciais
dos problemas mais atendidos: pus, sangue e cocô! Todos já tinham perdido
bonitos calçados ou casacos que acabaram ficando sujos devido a, pelo
menos, uma das possíveis combinações desses três problemas.
Tive de jogar fora as minhas cuecas em mais de uma ocasião. E não
foi por encharcá-las de soro glicosado: foi com sangue. Por isso, a minha
esposa dizia que o cirurgião de urgência, para evitar Aids, devia operar de
preservativo.
É claro que existem óculos de proteção e aventais impermeáveis. As
vezes, entretanto, eles podem ter acabado ou, simplesmente, não há tempo
hábil para vesti-los. Nessas circunstâncias, era habitual que o sangramento
abundante acabasse ensopando as nossas vestes.
Basta ver o cenário de guerra com que fica se parecendo uma sala de
emergência após o atendimento de um acidentado grave, para entender por
que é comum fornecerem uniformes de serviço aos profissionais dessas
áreas.
No hospital-escola onde estagiei, os médicos usavam as roupas do
centro cirúrgico para atuar na emergência.
Apesar de muito práticas, tais roupas eram proibidas fora do centro
cirúrgico. Porém, os médicos insistiam em desafiar essa regra visando a
poupar as próprias vestes. Com o tempo, aquelas que sempre nos
repreendiam nos ajudaram — finalmente — a fazer um uniforme próprio
para o pronto-socorro. Elas podiam ser as nossas fiéis escudeiras ou as
nossas piores inimigas: as enfermeiras.
O termo "enfermagem" abrange as auxiliares de enfermagem e as
enfermeiras. As enfermeiras cursaram faculdade; há especialização,
mestrado e doutorado, igualzinho aos médicos. Já as auxiliares têm uma
formação técnica (às vezes também com especializações).
Ao contrário do que eu achava (e acredito que a maioria das
pessoas), os cuidados imediatos ao paciente são funções da auxiliar de
enfermagem. Embora as enfermeiras também o façam, seu trabalho é muito
mais administrativo do que assistencial.
O funcionamento adequado de qualquer serviço médico seria
impossível sem a enfermagem. Elas são as xerifes dos hospitais. Como
administradoras, precisam deixar as engrenagens rodarem com a maior
sincronia possível, aliando suas habilidades reguladoras e de planejamento
ao conhecimento da área médica. Esta é uma responsabilidade delas e, para
isso, as regras e protocolos ajudam muito.
Nós, médicos, por outro lado, detestamos qualquer forma de
controle. Talvez por trabalharmos quase sempre com a incerteza, precisamos
ser muito maleáveis. Além disso, sendo profissionais liberais, ainda não
percebemos que a nossa época de patrão já terminou. Somos empregados de
luxo, mas ainda não engolimos esse fato e, por isso, detestamos seguir
normas a toda hora. Mas elas existem e, para a lubrificação das engrenagens,
devem ser seguidas. Em algum momento, porém, podem se chocar com as
intenções e as atitudes dos médicos, independentemente de estarem certas ou
erradas.
É impossível fazer alguma regra que valha para o infinito leque de
situações em que vivemos. Quando o maleável se defronta com a rigidez,
surgem as faíscas e brincadeiras entre nós.
Por isso, um cirurgião resumiu o currículo do curso de enfermagem
da seguinte forma:
— No primeiro ano se aprende a fazer escalas de plantão. No
segundo, a trancar a caixinha de medicações psicotrópicas — remédios
controlados, sedativos. No terceiro, a perturbar os médicos e a enquadrá-los
nas regras. Finalmente, no quarto e último ano, há uma revisão geral dos
temas previamente abordados.
Esta é, obviamente, uma brincadeira, mas pelo simples fato de irritar,
continua sendo disseminada entre os médicos...
Quando um colega brincou citando o "curso avançado de como
perturbar o médico" do terceiro ano, baseou-se em fatos reais. Não que
exista essa cadeira, mas todos sabem que a enfermeira pode ser ou uma
bênção ou uma "infernagem" na vida dos médicos. O auxiliar idem.
Conhecemos auxiliares que, de tanto viverem no PS, apenas de olhar
na cara do doente já sabem o seu diagnóstico. Quantas vezes nos ajudavam
quando éramos residentes. Suas sugestões podiam nos fornecer a luz que
faltava na condução de um caso. Mas se o auxiliar não fosse com a nossa
cara, poderia criar um grande pesadelo. Qual médico nunca foi acordado às
quatro, às cinco e às seis da manhã com a célebre pergunta: "Doutor, o
paciente do leito dois também está com febre. Posso dar o antitérmico
prescrito?".
A utilização da massa cinzenta pela enfermagem é diretamente
proporcional ao apreço que tem por nós.
Logo no início de nossa prática, começamos a perceber que não
somos uma ilha. Para que o tratamento funcione, uma equipe inteira existe
para ajudar-nos. Não é nada agradável trabalhar em um grupo em que um
dos participantes é mal-educado ou metido a besta. Quanto mais integrada
estiver a equipe melhor para todos e, principalmente, para o paciente.
Quando o médico não respeita a enfermagem, esta faz o que tem de
fazer e de cara feia. Mas se ele a respeita ela faz tudo o que pode fazer. É
bem diferente.
Alguns acreditam que talvez seja esta a explicação para a diferença
de sorte entre o primeiro e o segundo piloto de uma certa escuderia. Para o
segundo, algo sempre dava errado: quebrava o câmbio, acabava a gasolina
na última volta, o pé do mecânico entrava na frente do pneu...
Embora os pacientes também os chamem de enfermeiros, não posso
me esquecer dos fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos... Hoje em dia é
quase impossível instituir um tratamento mais complexo sem uma equipe
multidisciplinar. Os doentes começam a perceber tal fato, embora ainda não
estejam totalmente acostumados com ele. Não é raro confundirem,
injustamente, as fisioterapeutas com massagistas ou as nutricionistas com
copeiras.
Apesar dos grandes avanços alcançados graças a esses profissionais,
o médico não pode se esquivar da condução do caso. Um maestro pode não
saber tocar violino tão bem, mas é necessário para reger o conjunto. Da
mesma forma que o maestro, com uma visão mais ampla, entra o médico
para reger o conjunto.
Ao interagir com todos esses profissionais, aprendíamos a trabalhar
em equipe e, aí sim, podíamos subir mais um degrau na nossa formação.
4 — A RESIDÊNCIA AVANÇADA (3º, 4º E 5º ANOS)

O dia do raio e algumas superstições

"De todos os meios


que conduzem à
sorte, os mais seguros
são a perseverança e
o trabalho."

LOUIS REYBAUD
O curso básico de cirurgia geral (Ri e R2) havia terminado. Fiel aos
meus ideais, optei por também me especializar em cirurgia geral.
Mais uma prova abriu as portas para o R3 e o R4, cujos estágios
seriam concentrados na área que eu escolhera. No fim das contas, acabaram
sendo mais três anos, o último deles exclusivamente em emergências
cirúrgicas.
Durante a residência, o nosso dia a dia é muito rico e intenso;
acabamos entrando em contato com diversas situações num curtissimo
espaço de tempo. A experiência cirúrgica do R2 para o R4 dá um salto
gigantesco. Muito maior que do R15 para R20, caso existissem.
A transição do R2 para o R3 pode ser uma experiência enigmática.
Quando alguém termina o R2 para dias depois começar o R3, não vive
nenhum mistério. Não foi o meu caso. Eu vivi o obscuro dia do raio.
Esse dia ocorre quando, trabalhando sem pausa e sob o mesmo teto, à
meia-noite, uma força sobrenatural instantaneamente nos transforma de
ignorantes e inexperientes residentes do segundo ano em experientes e
sábios residentes do terceiro ano. Chamamos essa força de "o raio". Como
poderia esquecer a minha própria metamorfose?
Eu era um R2 ignorante e inexperiente dando o último plantão do ano
no PS de cirurgia. Por falta de sorte, fui aprender a fazer uma colostomia
apenas nesse último plantão. Todas as colostomias tinham sido realizadas
pelos outros da minha panela. O R3, tendo feito várias, me orientou sem
maiores dificuldades.
Após as doze badaladas da meia-noite, acabou o meu último plantão
como R2 e, no mesmo estágio, imediatamente, começou o meu primeiro
como R3: "Shazam!".
O raio caiu e logo notei que meu conhecimento tinha se multiplicado.
Havia me tornado experiente e sábio. Subitamente os "R menos" passaram a
me temer e pedir orientações, que lhes fornecia graças aos meus grandes
conhecimentos adquiridos do cosmos.
Nesse dia, por coincidência, atendi outro paciente que precisaria de
uma colostomia. Três horas após aprender a tal cirurgia, ensinei o novo R2 a
fazer a sua primeira. Evidentemente não foi difícil, graças à "grande"
experiência que eu já possuía...
É exatamente assim que os residentes se sentiam quando subiam de
"R menos" para "R mais" (R3, R4), o que, no começo dos estágios, dava
dores de cabeça para os assistentes. Afinal, a coragem muitas vezes provém
da ignorância. Intrepidez aliada a inexperiência costuma resultar em
catástrofe. Se esse médico não for supervisionado, poderá transformar-se
num rei Midas às avessas. Como brincávamos, um médico que onde tocasse
brotaria pus...
É claro que a história do raio se trata de uma fantasia, mas grande
parte das pessoas é fantasiosa. Você pode não acreditar, mas se der para
evitar passar embaixo de uma escada, aposto que evita.
Talvez a sorte e o azar realmente existam. Basta lembrar o senhor
que escapou de um tiro no coração graças à caneta do seu bolso ou, no
sentido oposto, da história de Mr. Ray Sullivan, um guarda-florestal dos
Estados Unidos que, sem virar R3 ou R4, foi atingido por raio sete vezes!
Quando alguém nasce sem esôfago, possui uma agenesia de esôfago.
Pois bem, este moço devia ter agenesia de anjo da guarda.
Mas, diferentemente dos pacientes, o médico, de forma geral, é
cético. Ele precisa acreditar no seu tratamento e, para isso, deve ser
científico. Tenta pensar sempre com lógica. É necessário confiar na lógica,
caso contrário a medicina deixa de ser racional para virar um jogo de
adivinhação. Sorte ou azar.
Se com todo o rigor técnico, os seus resultados dependessem
exclusivamente da boa ou da má sorte ou de uma força sobrenatural
incontrolável, os médicos ficariam loucos, além de prejudicar seus pacientes.
Se eu acreditasse que o sucesso cirúrgico depende da cor das minhas
meias, fatalmente ficaria inseguro em atender a alguma emergência, se
estivesse com meias sem a tonalidade adequada. A insegurança piora nosso
desempenho e é justamente dele que dependem nossos pacientes. O bom
cirurgião precisa ser ágil no raciocínio e seguro do que faz. Dizemos que ele
até pode tomar uma decisão errada, desde que depois a corrija. O que não
pode é ficar em dúvida "galinhando", parado, enquanto se deterioram as
condições do paciente.
Sabemos que a medicina não é uma ciência exata. Por melhor que
sejam aplicados os pontos, o resultado da costura dependerá de um número
imenso de fatores, muitos deles imprevisíveis. Mas seria muito complicado
unir segmentos do intestino com uma sutura malfeita e ficar pedindo ao
Senhor que interceda num milagre multiplicador dos fibroblastos (células
responsáveis pela cicatrização). Independentemente de existir uma crença —
ou da ausência dela -, os cirurgiões preferem costurar direito e contar com
uma ajuda lá de cima, em vez de, simplesmente, rezar pela boa cicatrização.
Seria uma imprudência, da mesma forma que dificilmente o mais ardoroso
fiel pularia de uma ponte para provar que Deus o salvaria. Por essas e outras,
não conheço nenhum médico muito supersticioso.
Muitas vezes vemos um jogador dando uma ajoelhadinha para afagar
a grama, fazendo o sinal da cruz e batendo três vezes na madeira do banco
de reservas para, finalmente, entrar em campo. Não é comum assistir de um
cirurgião rituais similares, a não ser, quem sabe, numa pelada de futebol. De
qualquer modo, existem algumas superstições que mesmo os médicos
temem. Temos muito medo de falar, por exemplo, "o plantão está tranquilo".
A consequência não costuma demorar.
Outras são clássicas e irei destrinchá-las um pouco mais. If anything
can go wrong, it will!
É impressionante como se aplica a lei de Murphy no meio médico.
Se algo pode dar errado, vai dar errado!
O capitão Edward Murphy, ao testar os efeitos da desaceleração no
ser humano (ele era a cobaia), proferiu a célebre frase, posteriormente
intitulada como a primeira lei de Murphy. Todos nós tememos essa lei; há
até estudos a seu respeito, como no pitoresco artigo intitulado Tumbling
toast, Murphy's law and the fundamental constants.4
Quem nunca foi acionado para a única emergência do dia na hora dos
pênaltis? Por que a anatomia resolve ser anômala nas cirurgias
demonstrativas?
Mais do que medo, essa lei criou nos médicos o saudável hábito de
checar tudo antes de executar qualquer procedimento. Se algo pode dar
errado, conseguirei prevenir? Desde que possível, mesmo nas situações de
emergências, tentamos checar tudo. Será necessário intubar a traqueia do
doente? Então antes devemos confirmar se a cânula funciona, se a lâmpada
do laringoscópio não está queimada e assim por diante.
"Os males vêm aos pares."
É a famosa lei de Velpeau. Já passei por situações em que ela se
aplicou muito bem.
Fui chamado para avaliar duas senhoras octogenárias em coma na
UTI. As duas estavam com uma infecção grave de provável origem
abdominal. Precisei operar as duas no mesmo dia, devido ao mesmo
diagnóstico: inflamação da vesícula com perfuração e bile espalhada por
todo o abdome!

4MATTHEWS, R. A. J. Tumbling toast, Murphy's law and the fundamental


constants. European Journal of Physics 1995;16:172-176. (Fiquei
imaginando onde o pesquisador conseguiu verbas para realizá-la.)
Exemplos não faltariam

"A gravidade do
ferimento é
inversamente
proporcional à
maldade da vítima."

Um tiro no peito do bandido provavelmente passará ao lado do


esôfago, atrás da aorta, dará a volta no coração e sairá sem nada lesar. A
mesma bala, mas num policial, vai furar tudo e, ainda, encontra um jeito de
ricochetear para depois atingir o cérebro.
Não é fácil matar bandido; uma colega até bolou uma interessante
teoria para explicar tal fato. Segundo ela, a própria sobrevivência até a idade
adulta em um ambiente altamente hostil já teria selecionado os duros de
matar.
Faltou discorrer sobre outra superstição: — O médico, quando
doente, tem doença rara e de apresentação atípica.
Porém, por ser um tema muito amplo e associado a outras
características bastante curiosas, preferi discuti-lo em um subcapítulo
específico.
Cuidando de um médico doente, sendo um doente médico

"O que os olhos não veem, o coração não sente."

Dr. José era um médico de 50 anos com cento e sessenta quilos e um


metro e setenta de altura, que começou a sentir dor na parte inferior direita
do seu abdome. Tomou vários medicamentos acreditando que a dor passaria.
Cogitou a possibilidade de apendicite e incluiu na lista um antibiótico,
conduta que não leva à cura e dificulta ainda mais o diagnóstico dessa
doença. Como piorou muito em poucas horas, resolveu procurar ajuda.
A intensidade da dor chamou a nossa atenção. O paciente suava frio,
ficava nauseado e pálido.
Poderia até ser uma cólica "de rim". Mas, apesar da obesidade
dificultar muito, o seu exame físico não sugeria dor de origem renal. Havia
sinais de irritação interna do abdome, mas muito leves e desproporcionais à
sua dor para pensar em apendicite. Ele realizou exames de sangue e de urina
com resultados inconclusivos. Sua ultrassonografia não conseguia visualizar
nada além da camada de gordura.
Uma laparotomia branca lhe traria sérias complicações. Não operá-lo
poderia ser pior. Se corrêssemos, o bicho pegaria, se ficássemos, o bicho
comeria.
Laparotomia branca ou não terapêutica: cirurgia que indicamos
suspeitando de uma condição que necessitaria de tratamento cirúrgico
obrigatório, mas que acaba não se confirmando durante o procedimento.
Passa então, somente a posteriori, a ser chamada de"não terapêutica"
Optamos por realizar uma tomografia de abdome, porém a máquina
do hospital não suportaria seu peso e o engenheiro proibiu o exame.
Segundo ele, além de o exame não poder ser finalizado, quebraria a máquina
de milhões de dólares por mau uso. Angustiados, fomos à enfermaria de
obesos mórbidos, a fim de perguntar onde realizav as suas tomografias
naquela condição, embora soubéssemos da resposta não faziam.
Falamos com o residente de plantão, um novato que me deixo com
algumas dúvidas sobre a sua resposta.
O paciente era muito educado e simpático; não seria muito agradável
revelar-lhe a possibilidade de o exame vir a ser feito no jóquei. Mas, como
ele precisava, ligamos para o local. O atendente não sabia dizer se lá havia
uma tomografia e sugeriu outra opção.
Mas como eu explicaria ao médico que o seu exame poderia ser
realizado no zoológico?
— Dr. José, conseguimos! Seu exame será às quatro horas, depois da
girafa...
Após muita conversa, conseguimos marcar o seu exame em um
hospital privado, cuja máquina era mais resistente.

Jim
Sendo ele médico, não podia deixar de sugerir algo. Assim, pediu
para que não fosse administrado contraste na veia durante a tomografia.
Sendo portador de pressão alta e diabetes, ele estava com medo de vir a
sofrer complicações renais em decorrência da sua toxicidade. Apesar de
acreditarmos que naquela situação os benefícios suplantariam os riscos, seu
pensamento era lógico e acabamos cedendo contra a nossa vontade. Por azar,
justo no caso dele, o diagnóstico só teria sido possível com o uso do
contraste. Sem este, o resultado foi normal e não nos ajudou.
Como os sintomas persistiram, sugerimos uma laparoscopia
exploradora. Introduziríamos, sob anestesia, uma microcâmera em seu
umbigo para enxergar por dentro do abdome. Assim foi feito. Encontramos
um segmento intestinal infartado próximo ao apêndice. Abordamos a doença
por uma pequena incisão orientada pela câmera. Retiramos o pedaço
comprometido e costuramos os dois cotos remanescentes. Por mais que
pesquisássemos, não encontramos nenhuma explicação para o infarto. A
causa da doença permaneceu misteriosa.
Ele evoluiu no pós-operatório com um rompimento da costura na
parede abdominal e teve que ser abordado novamente. Sofreu uma série de
complicações, mas sobreviveu.
Esta é apenas uma das histórias que envolvem o médico na condição
de paciente (ou como brincamos, com fator CRM positivo), mas ilustra bem
as suas características.
Para começar, ele costuma ser um tigre. Essa é a nossa gíria para
imprudente, inconsequente e desleixado com o próprio tratamento.
Nos CRM positivos, parece que a lei das probabilidades se altera. Os
sintomas típicos de uma apendicite num médico, provavelmente,
corresponderão a um infarto intestinal com manifestações atípicas.
Como se não bastasse, o médico é um dos pacientes mais difíceis de
lidar. Antes de ser doutor, é pessoa, marido ou filho. Dessa forma, é natural
que em situações de estresse por doença própria ou de seus familiares aja
como marido ou filho e não como profissional. O maior problema ocorre
quando ele não se dá conta dessa mudança.
Passa a funcionar emocionalmente, mas, inteligente que é,
racionaliza seus sentimentos. Muitas vezes cita dados técnicos de trabalhos
científicos para explicar e nos induzir a concordar com suas condutas e
diagnóstico. Mas o raciocínio muitas vezes está distorcido e ele nil percebe.
Sob efeito desse raciocínio deformado e camuflado, tornam-se
frequentes as suas solicitações por mudanças nas condutas ou por exames
inúteis, apenas por "desencargo de consciência". Como tem um
conhecimento muito maior do que o leigo sobre eventuais complicações ou
confusões diagnósticas, fica fosforilando sobre milhares de consequências
negativas esdrúxulas que poderiam ocorrer na condução do seu tratamento.
Prolonga, assim, o caminho da investigação e do tratamento, pois exames
desnecessários são, na maioria das vezes, desnecessários!
Os pacientes leigos têm uma grande vantagem em relação aos
pacientes médicos: ainda preferem nos ver como um supermédico: infalível,
sábio, adivinho.
Essa ignorância (no bom sentido) é muito tranquilizadora, mas o
colega sabe que isso não é verdade. O seu médico pode errar. O tratamento
pode complicar. Pode vir a morrer.
Tudo isso aumenta a sua angústia, que passa a ser multiplicada
quando ele se recorda de que, para piorar, também acredita na superstição
dos doentes CRM+.
É claro que se trata de uma caricatura, mas todos nós vivemos isso
principalmente do lado do médico e não do paciente.
Quando tomamos ciência da existência de alguma doença, passamos
a temê-la. Seja após o conhecimento em alguma aula ou descobrindo algum
conhecido que a desenvolveu. Somos humanos, portanto isso é natural. O
problema ocorre quando passamos a senti-la. Sensações normais passam a
ser, por nós próprios, distorcidas e interpretadas como sintomas "leves" das
doenças que tememos. Mesmo eu, durante a minha formação, várias vezes
somatizei algum sintoma que os professores explicavam. Lembro-me de ter
achado a minha urina muito espumosa após as aulas de fisiologia renal. Seria
uma perda de proteínas anormal na urina? E aquele desconforto no tórax
depois da aula de tumores da parede torácica? É claro que não eram nada!
Esse fenômeno é facilmente verificável quando alguma
personalidade famosa fica doente.
Quando um cantor sertanejo teve uma dor torácica e descobriu um
tumor de mediastino, ou quando uma artista de televisão declarou seu câncer
no ânus, houve uma enxurrada em nossos consultórios. Todos os pacientes
estavam preocupados com "sintomas iniciais" que teriam sentido e que,
"certamente", relacionavam-se com tais doenças. Queriam fazer, de qualquer
forma, algum exame para atestar que não possuíam essas doenças.
Os médicos também não escapam desse fenômeno que ocorre com os
leigos. Num momento qualquer e a qualquer momento, também poderemos
ficar doentes e, apesar de ninguém gostar disso, pelo menos tem o seu lado
bom.
Sentir uma ardência para urinar é diferente de imaginar uma ardência
para urinar. A doença na própria pele é uma das formas mais didáticas de se
aprender. Um professor sempre dizia que os alunos, ao se formarem, deviam
ter uma de suas pernas quebradas para saberem o que é a dor (não era o Dr.
Mengele quem dizia isso).
Graças a Deus, não adquiri amplos conhecimentos advindos de
experiências em ficar doente, mas nunca me esquecerei de quando me
autodiagnostiquei, equivocadamente, um tumor de testículo.
Após várias palpadas, confirmei e reconfirmei a existência do
tumorzinho. Como médico, sabia que, independentemente do diagnóstico,
nada mudaria nas oito horas seguintes. Poderia conversar pela manhã com
um amigo urologista e fui dormir.
Mas quem disse que eu consegui adormecer? Após muito rolar na
cama, prá lá e pra cá, peguei no sono. Ao acordar, a primeira coisa que fiz
foi palpar o testículo; é claro que o nódulo ainda estava lá.
Encontrei-me com o urologista. Após um breve questionário e exame
físico direcionados, disse tratar-se de um cisto. Um pouco mais endurecido
que o normal, mas um simples e inofensivo cisto.
Naquele instante, ao retirar o peso das minhas costas, meu amigo não
parecia o meu amigo e, sim, uma espécie de entidade divina, superior. Estava
mais alto e brilhante do que o normal. Agradeci pela gentileza e também
pelo diagnóstico, como se ele pudesse ter escolhido a minha patologia, e fui
embora. Com esse acontecimento, pude entender um pouco melhor algumas
visões do paciente.
Seja exagerando ou minimizando os nossos sintomas, algumas vezes
fazemos autodiagnósticos. Mas, pior do que isso, é não perceber quando
estamos doentes. Uma de nossas características mentais mais importantes é a
autocrítica. Quando a perdemos, perdemos o discernimento.
O microcirurgião, por exemplo, não poderá se dar ao luxo de
continuar reimplantando dedos quando o seu mal de Parkinson se tornar
incontrolável. Se ele não perceber isso, quem irá alertá-lo?
Eu frequentava uma reunião do departamento de cirurgia cujo
objetivo era discutir os casos clínicos que não haviam evoluído
satisfatoriamente. Conhecia todos os médicos participantes, menos um
novato que começou a acompanhar nossas conferências.
Embora aparentasse ter uns 50 anos, possuía uma aparência frágil em
razão de sua bengalinha que sempre o acompanhava. Era muito educado,
mas extremamente reservado. Dificilmente conversava e nunca se
manifestou publicamente, seja para emitir alguma dúvida, alguma opinião ou
para questionar alguma conduta. Assíduo, sentava toda reunião sozinho e no
mesmo local. Eu sabia apenas se tratar de um cirurgião plástico com
louvável interesse em cirurgia de emergência.
Era final de dezembro quando o professor do departamento anunciou,
ao término da reunião, uma festa de encerramento das atividades anuais.
Todos estavam convidados. Agradeceu ao corpo clínico e deu o endereço do
local da comemoração, que seria na casa de um dos médicos do serviço.
Fomos à festa. Lá estava o misterioso cirurgião plástico, que passaria
despercebido se não fosse por um interessante acontecimento.
Como a casa era muito grande, havia um canil com dois rotweillers
que, por serem muito ferozes, ficariam presos durante o encontro. Um
grupinho observava o comportamento dos cães quando alguém comentou
sobre sua agressividade. Nesse momento, o senhor da bengalinha se
manifestou:
— São apenas animais. Basta saber lidar com eles. Deixe-me entrar
no canil e mostrarei como acalmá-los.
Todos se entreolharam incrédulos. Conhecendo suas feras, o dono da
festa não permitiu a arriscada façanha.
Cinco dias depois fomos novamente a uma reunião, quando notamos
que o cirurgião plástico não estava presente. Começamos a nos perguntar
sobre o motivo da sua inesperada ausência e um dos colegas cochichou:
— Vocês não leram os jornais, não assistiram ao noticiário? Ele está
preso!
— Preso? — É! Dizem que matou e estripou uma de suas pacientes
no próprio consultório!
Como aquela pessoa de aparência tão inocente, que sentava todos os
dias ao nosso lado naquele fórum de mestres e doutores, seria capaz de
tamanha barbaridade?
Ficamos boquiabertos até que um dos médicos, sempre muito
espirituoso, deu uma bronca no colega que havia sido o anfitrião da festa:
-Tá vendo? Você devia tê-lo deixado entrar no canil. Teria evitado
esse homicídio!
Ao que o outro respondeu: -Você está louco?! Ele também teria
matado os meus cachorrinhos...
Pronto-socorro

"O pronto-socorro é
uma organização
desorganizada que
desorganiza qualquer
organização."

Apesar de sempre parecer uma bagunça, o pronto-socorro era a nossa


melhor escola. Um local onde os professores nos cobravam o seguimento de
protocolos teóricos rígidos de tratamento e diagnóstico (o que certamente
nos torna muito mais eficazes). Mas a infinidade de quadros clínicos, com
apresentações das mais malucas possíveis, nos forçava a fugir de regras e a
raciocinar. Um cenário para se viver descobertas, gambiarras e situações
inusitadas, pois era extremamente dinâmico e imprevisível. Isso exigia dos
seus funcionários bastante praticidade e maleabilidade, aliadas a uma grande
capacidade de decisão e resolução. Dentro da medicina, acredito que a
cirurgia de urgência seja o segmento que mais se encaixa nessas
características. Em outras palavras, se você tiver um quadro cirúrgico de
urgência, fuja de um cirurgião que lhe pareça muito burocrático. Pode se
tratar de uma questão de sobrevivência.
As características dos pronto-socorros mudam de hospital para
hospital, mas independentemente do tipo de instituição, a correria é sempre a
mesma. Quando vejo uma daquelas placas de "não buzine" na frente do
hospital, reflito sobre a sua inutilidade, uma vez que a maioria da bagunça
— gritaria, buzinas, barulhos e alarmes — é intrínseca ao PS, 1 às UTIs e
aos seus aparelhos.
Mas é claro que existem diferenças entre os diversos tipos de PS.
Pacientes, doenças, queixas e tratamentos são diferentes.
O movimento cai durante o carnaval num hospital particular. Ele fica
vazio, pois todos foram viajar, restando as queixas psicossomáticas dos
solitários e algumas urgências. No hospital público, o movimento pode
aumentar em razão do álcool e dos acidentes.
As doenças raras aparecem mais nos hospitais públicos, mas há
problemas bem incomuns que só serão vistos nos privados. Explicarei
melhor.
O único caso de doença da vaca louca de que eu já vi foi num
hospital público. Mas, por outro lado, foi no privado que um colega meu
atendeu uma família extremamente angustiada trazendo o seu filho ao
serviço de urgência, por este ter se declarado homossexual!? Ou, ainda, um
jovem que esperou mais de uma hora para passar por uma consulta de
urgência, apenas querendo a ajuda do médico para solucionar uma dúvida no
seu trabalho de fisiologia da Faculdade de Medicina!
A geografia e a localização também interferem. Um hospital de
periferia atende a tentativas de homicídio, o central, a acidentados de moto, e
assim por diante.
A minha maior experiência naquela época era do PS de um hospital-
escola público. Penso que este seja o ambiente hospitalar mais dinâmico
existente. Talvez os melhores exemplos do que vivi no hospital sejam os
atendimentos de diversas catástrofes: queda de um avião de passageiros,
desabamento do teto de uma igreja, do teto de um supermercado, isso sem
contar a explosão de um shopping center. Toda a equipe era mobilizada para
o atendimento da ocorrência. O PS era evacuado, acionava-se o sistema de
triagem das vítimas, estabelecíamos pontos diferentes para o tratamento de
pacientes com gravidades crescentes. Fechávamos o movimento das salas do
centro cirúrgico e avisávamos os bombeiros para direcionar pacientes menos
graves para outros hospitais. Tudo isso resultava em uma bela bagunça.
Apesar disso, na primeira tragédia citada antes, infelizmente não
tínhamos a quem socorrer, pois morreram todos na queda do avião. No caso
da igreja, tivemos vítimas, mas não muito graves. Difícil mesmo foi lidar
com aquele monte de gente passando mal ao lado de outros tantos orando em
voz alta para que se recuperassem.
Na do shopping, como se não bastassem suas vitimas, chegaram ao
mesmo tempo mais dois baleados. Certa bagunça administrada se
estabeleceu. Não é raro que tenhamos que lidar com essas situações. Neste
dia, um dos médicos assistentes subiu em cima de um banquinho da sala de
emergência e, imitando uma free speech area com um cone de papel na boca,
gritava:
— Dr. Luís, entube o paciente 1. Dr. Alberto, drene o tórax do lado
direito do paciente 2. Dr. Flávio, disseque logo a veia do paciente e peça
sangue O negativo. Dr. Cláudio, comprima esta lesão com mais força...
Parecia um diretor filmando alguma cena de batalha. Conseguia
priorizar o atendimento das vítimas ao mesmo tempo que supervisionava
toda a cena.
Já que falei em cinema, às vezes precisamos fazer a "escolha de
Sofia" às avessas — romance de William Styron que narra o dilema de uma
mãe judia forçada por um oficial nazista da SS a escolher entre um dos seus
dois filhos para ser morto. Na catástrofe, em que os recursos são limitados,
paradoxalmente, as prioridades se invertem. O paciente em parada cardíaca
deixa de ser uma emergência absoluta, para virar apenas mais um óbito. É
uma"crueldade" necessária para salvar mais vidas.
Tentando minimizar os erros, além de os pacientes serem etiquetados
de acordo com a sua gravidade, escrevíamos seus nomes, suas lesões e seus
dados vitais neles mesmos ou em seus lençóis. Não seria muito difícil tratar
a coisa errada na pessoa errada na linha de frente daquela guerra. Por isso,
tão importante quanto o estetoscópio passou a ser a caneta esferográfica.
Assim treinados a atender a desastres, nunca imaginamos que
teríamos de enfrentar uma catástrofe ocorrida dentro do próprio hospital.
Era véspera de Natal, época em que tentamos a todo o custo passar os
plantões. Mas como eu não havia conseguido, excluindo, talvez, um
muçulmano ou budista, acho que era o único médico não judeu no hospital.
Estava operando um baleado nessa noite atípica para essa forma de
agressão, quando a luz do foco cirúrgico se apagou. Antes que pudéssemos
praguejar contra a manutenção, começou a sair uma fumaça preta pelo ar-
condicionado e extinguiram-se as luzes da sala e as de emergência. Instalou-
se de forma súbita um silêncio absoluto, possibilitando que eu percebesse a
infinidade de barulhos que escutamos normalmente sem perceber. Foi como
se várias geladeiras parassem de refrigerar ao mesmo tempo.
O centro cirúrgico não possui janelas e deu-se um completo breu,
perfumado por plástico queimado. Aquilo era inédito, pois, mesmo no
"apagão", o gerador deu conta do recado muito rapidamente. Dessa vez,
além de a luz não voltar, caiu a pressão da rede de oxigênio, fazendo com
que todos os aparelhos de respiração travassem. Algo muito estranho
acontecia e eu ainda não sabia o que era.
O paciente estava com a barriga aberta sangrando de vários pontos e
sem respirar, mas não conseguíamos enxergar nem as próprias mãos. Foi
com a ajuda da luz emitida pelos teclados de alguns celulares que
começamos a achar os instrumentos mínimos necessários para tentar salvá-
lo. Enquanto o anestesista pegou o fole de respiração manual e reiniciou a
ventilação, prendemos pinças hemostáticas em tudo o que era foco de
sangramento, enfiamos compressas na barriga e a fechamos com apenas uma
presilha cirúrgica.
Nessa hora ouvimos alguém gritando: "Fogo!!!". Era só o que
faltava! O hospital em chamas?! Com a iluminação dos celulares e de um
laringoscópio, mudamos o paciente para uma maca e começamos a empurrá-
lo para fora do centro cirúrgico. A situação ficou realmente perigosa quando
percebemos que a luz dos celulares não conseguia transpor a fumaça e
iluminar o mínimo necessário. Os olhos ardiam e respirar fundo era
impossível, sem desencadear um acesso de tosse que se retroalimentava.
Depois de colidir a maca e nossas cabeças algumas vezes contra a parede,
conseguimos chegar à luz dos corredores da outra ala.
Lembramos que havia várias enfermarias lotadas e começamos a
evacuá-las. Se não é fácil esvaziar um cinema, imagine um hospital com
vários pacientes confusos, enfraquecidos, amputados, conectados a soros e
aparelhos. Os doentes de todos os locais foram encaminhados ao saguão do
pronto-socorro, o que multiplicou instantaneamente o trabalho das
enfermeiras. Depois de todo esse esforço, nos ocorreu que estávamos
operando alguém. Mas para onde teria sido levado o baleado?
Precisamos localizar o anestesista pelas alas do hospital para depois
atravessar a rua empurrando o paciente com a barriga aberta, suplicar à
enfermeira do outro bloco que nos deixasse entrar no seu centro cirúrgico e
terminar a cirurgia. Não foi nada fácil, mas o paciente sobreviveu e não
desenvolveu nenhuma infecção!
Embora tenha espalhado muita fuligem e gases pelo sistema de ar-
condicionado, o incêndio queimou apenas uma pequena parte do hospital.
Assim que os bombeiros liberaram os elevadores e as enfermarias, os
pacientes iriam voltar para os seus andares. Mas quais andares? Ninguém
sabia de onde tinham vindo e precisávamos devolvê-los logo, pois havia, em
algum lugar, prescrições a serem cumpridas.
Criamos, então, uma junta médica muito esquisita, cujo objetivo era
descobrir a origem dos pacientes. Com um rápido questionamento e exame
físico, tentávamos chegar a um diagnóstico de endereço:
— Este deve estar com um tumor de pâncreas, vai para a enfermaria
das vias biliares.
— Este pode ser um aneurisma de aorta, encaminhe para a da
vascular. — Não tenho a mínima ideia. Deve ser da reumatologia... Agora
entendo a existência das pulseirinhas de identificação, mesmo porque não é
preciso nenhuma catástrofe para ocorrer uma troca de pacientes.
Você deve se recordar do paciente que seria avaliado pelo
otorrinolaringologista num posto de saúde e acabou sendo vasectomizado:
— 'Eu chamei Aldemar. Valdemar entrou, o médico confirmou o
nome dele e começou a cirurgia', explicou a atendente Já para o paciente,
não havia nada de anormal. "Eu achei que a dor de ouvido tinha virado
caxumba e tinha descido e não perguntei mais nada.5
Vivi outros tipos de bagunça no PS que não dependiam muito do
número, mas do tipo de pacientes. Uma delas ocorreu no dia em que houve
aquela famosa briga em um estádio de futebol. De cada lado do corredor
havia torcedores dos dois times, se xingando e com cortes no rosto e na
cabeça. Todos tinham tomado pauladas. Ao questionar o que teria ocorrido,
as explicações variavam apenas de time, filho e prostituta. Não foi fácil
conter os ânimos.
Se os jogos de futebol movimentam o PS de cirurgia, as paradas do
orgulho gay costumam lotar o de clínica médica. A regra era chegar todo
mundo alcoolizado ao cair da tarde. Devem ter servido algum drinque de
vinho com morango que, graças aos vômitos, empesteou o PS. Todo tipo de
tribo homossexual ou simpatizante estava ali representada. Não deixava de
ser engraçado ver uma drag queen abanando um travesti, uma fortona
tatuada amparando um bigodudo delicado, e assim por diante. Todos muito
extrovertidos no meio de velhinhos doentes e horrorizados.
Como disse um médico, e você deve ter percebido, "basta um
caderninho e alguns dias de pronto-socorro para que possamos escrever um
livro". Assim sendo, dedicarei os próximos subcapítulos aos clientes
habituais do PS e às situações inusitadas que vivenciamos continuamente.

5TV Globo/MG.
Cliente habitual: o motobói

"Motobói — espécie
de contínuo (de
banco, empresa
comercial, farmácia,
pizzaria etc.) que faz
entregas rápidas de
motocicleta."
Houniss

Cada região do País possui um padrão diferente de traumatismos.


Os habitantes da Amazônia, na sua maioria, têm cabelos lisos e
compridos. Seu principal meio de transporte é fluvial. Muitas vezes o motor
de popa de seus barquinhos não possui aquela tampa de proteção. Assim,
houve vários casos de pessoas que foram escalpeladas por terem mechas de
cabelos presas nas engrenagens do motor.
No Pará, dizem que é comum atender vítimas de queda do açaizeiro.
No litoral do Nordeste é relativamente frequente o trauma craniano por
queda de coco na cabeça da vítima.
No hospital, apesar de já ter atendido até uma vítima de queda de
jaca na cabeça, era muito mais usual a ocorrência de queda da moto ou da
laje.
Embora seja um tipo de acidente corriqueiro na periferia, a queda da
laje perde de longe para a de motobói nos hospitais centrais. Assim, lhes
dedicarei alguns comentários, começando por um paradoxo.
Quando solicitamos uma pizza e ela demora a chegar, esfria e acaba
com o nosso prazer de comê-la quentinha. Entretanto, quanto mais rápido ela
chegar, maiores serão as chances de o entregador cometer maluquices no
trânsito e recebermos uma "meia oito queijos e meia sem recheio". Também
detestamos isso.
Os motobóis nos amedrontam no trânsito por uma exigência indireta
de nós mesmos. Esses personagens são cada vez mais frequentes em nossas
vidas, exercendo uma ampla gama de serviços (e, às vezes, desserviços) por
nós solicitados. Embora a sua presença seja essencial nas grandes cidades,
poderia não ser nos hospitais.
Há uns quinze ou vinte anos era muito comum atender um
acidentado que fosse trazido ao PS no fosquinha do vizinho. Hoje, esses
pacientes chegam pelo resgate, como dizia um colega, devidamente
"embalados para presente". Todos já se acostumaram com aquela cena da
vítima presa a uma prancha rígida com tirantes, usando colar cervical,
ataduras e enrolada no lençol térmico prateados.
Essa mudança de perfil no atendimento foi fundamental para
aumentar as chances de sobrevivência após algum trauma mais grave. Por
outro lado, o número de acidentes automobilísticos se multiplicou em razão,
entre outros fatores, dos motobóis. As estatísticas a seu respeito são sempre
impressionantes:
— Há um estudo sobre os acidentes de motocicleta ocorridos apenas
no município de São Paulo. Ele mostra um total de 4.480 vítimas, das quais
166 faleceram. Sabe quando?
Apenas durante o ano de 1982!6 — Segundo outro estudo regional,
em 1993 houve 23.300 acidentes de moto.7
Sabe onde? Somente nos arredores de Goiânia! As estatísticas do
hospital seguiam a mesma tendência e eu não poderia deixar de ressaltar o
aspecto mais curioso da pesquisa que ainda realizo, pessoalmente, com esses
pacientes:
— Todo dia morre algum motociclista e se quebram outros tantos,
mas sempre, sempre a culpa é de uma mulher que os fechou!
Independentemente do tipo de acidente, a culpa nunca é deles. Outra
pergunta que faço é se, apesar de terem sido fechados pela tal mulher
hipotética, estavam dirigindo muito rápido ou de forma imprudente.
A resposta é uma negativa em 100%. Fantástico! Tudo indica que, ao
contrário do que eu imaginava, os acidentes só ocorrem com motobóis
prudentes e vagarosos em razão de mulher barbeira?
Talvez apenas com o simples reconhecimento, ainda que parcial, de
sua culpa, o número de acidentes com motobóis parasse de aumentar.
Infelizmente, parece que isso é mais difícil do que eliminar a fictícia mulher-
navalha. Enquanto isso, meu filho vai acabar aprendendo que andar de moto
entre duas faixas é normal. Dirigir com a buzina acionada, perfeitamente
coerente. Arrancar retrovisores? Sem maiores problemas, desde que
transitando numa tal de faixa cidadã...
Os motobóis queixam-se de que muitos motoristas não os respeitam.
Acredito nisso, mas considero ainda maior a falta de respeito por parte deles.
Boa parte não dirige de forma que considero prudente nem prima pela
educação. É óbvio que não podemos generalizar, mas existe uma pressão
constante para que se tornem assim. Afinal, queremos a pizza cada vez mais
rápido. Para que sejam eficientes e nutram as nossas exigentes expectativas
enquanto consumidores de seus produtos e serviços, precisam ser audazes e
velozes. Quanto maior for a velocidade menor será a sua margem de
segurança.
Curiosamente, uma das formas de se vangloriar de sua audácia é a
comparação entre eles de quantas vezes caíram ou precisaram ser atendidos
em algum PS.
— Eu tenho um pino aqui do primeiro acidente e dois ali do segundo
e terceiro...
— E eu que tenho um parafuso aqui e outro acolá... Bom, o que eles
não falam (ou, pelo menos, do que não se vangloriam) é de quantas vezes
sofreram toque retal ou passagens de sondas desconfortáveis; passos
obrigatórios no atendimento de acidentados graves. De quantos dias se
afastaram de seus afazeres, de quantas pessoas machucaram e de quanto
pagamos com o seu evitável atendimento.
Os acidentes com motobóis, além das lesões gravíssimas que
causam, atingem uma parcela da população bem específica. Você já viu
algum motoaged, ou motoold? Eles são jovens trabalhadores que morrem
aos 20, 30 anos de idade. E mesmo que não morram, correm o risco de ficar
com sequelas nessa idade precoce. Representam um enorme ônus à saúde
pública.
6KoizuMi, M. S. Acidentes de motocicleta no município de São Paulo, SP
(Brasil): 1. Caracterização do acidente e da vítima. Revista Saúde Pública
1985;19:475-489.

7Site do corpo de bombeiros.


Cliente habitual: o bêbado

"O fígado faz muito mal à bebida."


APPARÍCIO E DE B. TORELLY, O BARÃO DE ITARARÉ

Quando analisamos os gastos com saúde, também devemos


considerar o álcool, pois os seus usuários são personagem assíduos nos
serviços de emergência. O motivo da procura por atendimento médico inclui
um amplo leque de problemas. São desde as intoxicações agudas e os
acidentados até dermatite, hepatite, pancreatite e abstinência, só para
começar.
Independentemente da manifestação clínica, os pacientes serão
atendidos como qualquer outra pessoa. Entretanto, existe um subgrupo que
pode nos causar muita dor de cabeça: o dos bêbados impertinentes.
O bêbado impertinente é o que chega ao PS com alguma queixa não
urgente, mas que, a seu ver, requer tratamento emergencial e, como se não
bastasse, preferencial. Não consegue andar direito ou articular palavras, mas
grita, xinga, desrespeita a enfermagem e cria caso.
Atendê-lo é um desafio, uma vez que dificilmente se estabelecerá
uma comunicação adequada. Esse personagem pode ser um prato cheio para
o residente naquela fase de estresse e grande cansaço, como pude comprovar
ao ouvir algumas histórias antiéticas, porém engraçadas...
Ouvi relatos de médicos que teriam fingido tirar uma radiografia
apenas acendendo e apagando a luz de um megatoscópio, e simulado uma
ultrassonografia passando o feixe de uma ponteira a laser por alguma parte
do corpo. Mas a situação mais inusitada parece ter ocorrido com outro
senhor que insistia em medir a sua pressão de dentro da cabeça.
O paciente teria lido em alguma revista que o álcool pode elevar esse
tipo de pressão. Como tinha bebido muito, chegou à conclusão de que seria
necessário aferi-la. Mais uma vez conturbando o ambiente, acabou virando
prioridade.
As causas de hipertensão intracraniana são bem específicas, assim
como as indicações para medi-la. Para tal, colocamos um cateter dentro do
cérebro através de neurocirurgia. Nenhum médico deste mundo faria uma
punção encefálica só porque o paciente quer!
Ele estava nitidamente alcoolizado, mas não apresentava nenhuma
alteração sugestiva de hipertensão intracraniana. Entretanto, rejeitou "um
não" como resposta. Como "sabia dos perigos" e queria descartá-los,
rechaçou todas as explicações do médico.
Sem vislumbrar outra saída, o colega calmamente pegou o
esfigmomanômetro (aparelho para aferir pressão arterial) e o ajustou ao
redor da cabeça do paciente como se fosse um turbante. Encostou o
estetoscópio no pescoço do bêbado e insuflou lentamente o aparelho, sob o
olhar incrédulo dos que aguardavam por atendimento.
Esvaziou o manguito e, resmungando as palavras "doze por oito",
dispensou o cliente.
É claro que esse procedimento não permite a medida de nada. Mas
foi o jeito de acalmar a fera e, sem maiores traumas, resolver o problema.
O alcoolista (antigo alcoólatra) costuma fazer uso diário do etanol.
Tremedeiras e náuseas surgem quando o organismo acusa seu baixo nível na
circulação. Assim, não é difícil flagrá-lo pela manhã tomando uma dose de
destilados para aliviar o seu mal-estar. Uma pausa prolongada na ingestão de
bebidas poderia levá-los a uma grave síndrome de abstinência. Nesta, além
dos sintomas descritos, somam-se vários outros, inclusive alucinações.
Quando ocorrem, enriquecendo ainda mais esse quadro clínico, caracteriza-
se o delirium tremens.
Caso este se manifestasse, por falta de álcool, o tratamento mais
"lógico" seria repô-lo! Se os sintomas melhoram ao ingerir vodca, o
desodorante do vizinho ou as bisnagas de álcool a 70% da enfermaria, por
que não o fariam com uma poção alcoólica específica?
Nesse intuito existia, extraoficialmente, a poção de Todd. Sua
formulação varia de acordo com a criatividade das nutricionistas e eu
desconheço o motivo desse nome. Alguns dizem que por ser uma mistura de
pinga com achocolatado, outros por ter sido criada pelo lendário psiquiatra,
"sir Todd". Independentemente da razão, hoje sabemos que oferecer álcool
não é o tratamento mais adequado, e, sim, o uso de sedativos específicos.
Um paciente sendo tratado por abstinência no pronto-socorro entrou
em delirio. Como ele estava muito agitado, as enfermeiras o "restringiram ao
leito" — expressão chique utilizada pela enfermagem para designar "amarrar
o indivíduo na cama com os próprios lençóis".
Graças às medicações, a sua agitação foi diminuindo, mas ainda
estava confuso. Antes gritava e esperneava; agora estava melhor: pedia,
educadamente, a todos que passavam, um facão para se soltar...
O professor de psiquiatria que estava dando uma aula prática para os
seus alunos resolveu aproveitar esse caso para discussão.
Antes que pudessem se aproximar do paciente, este voltou a se agitar
e começou a gritar:
— Barata! Barata! Tirem esta barata de mim!
O psiquiatra ficou empolgado com o momento "oportuno" daquele
sintoma. Poderia aproveitar o evento para discutir sobre as alucinações no
delirium tremens.
Começou a discorrer sobre as alucinações liliputianas (anões e coisas
pequenas) até que o desconforto do paciente passou a incomodá-lo. Como
não parava de gritar, ele pediu à enfermagem que preparasse mais uma dose
do sedativo. O paciente continuou berrando até que o auxiliar de
enfermagem chegou com a medicação e viu a barata que, de fato, passeava
sobre o paciente.
Bastou espanar a alucinação liliputiana do seu peito que o delirium
voltou a melhorar sem fármaco algum...
Cliente habitual: o bandido

"Antes só que mal acompanhado."

Não poderia deixar de discorrer sobre os bandidos, mas antes vale a


pena lembrar uma historinha.
Uma moça foi presa por matar seu bebê com cocaína na mamadeira.
O caso foi amplamente veiculado na mídia, gerando muita revolta fora e
dentro da cadeia, onde espancaram a "assassina". No final se comprovou que
o pó não era cocaína e que a mãe tinha sido presa sob uma acusação
inverídica, alardeada pela mídia indignada. A mídia se retratou de forma
discreta, mas nada apagaria as lembranças da injustiça, do espancamento e
de uma caneta sendo enfiada em sua orelha até perfurar o tímpano.
Guardo esse exemplo comigo para tentar não prejulgar as pessoas.
Mas mesmo que o faça, os bandidos e mocinhos serão atendidos da mesma
forma, o que às vezes não é fácil.
Um tio meu havia sido assaltado, com ameaça de estupro de sua filha
e todos os outros comemorativos. No mesmo dia, tive de avaliar um
assaltante de residências, baleado, capturado pela polícia. Confesso que
atendê-lo não seria nada fácil para mim e pedi para que outro médico o
fizesse. Mas isso foi uma exceção. Em geral, há respeito e empatia, mas às
vezes também existe o medo.
Há muitos anos, um médico operou um famoso bandido que havia
sido baleado pela polícia. Depois da intervenção cirúrgica, ele ficou
algemado à maca.
Ainda no pós-operatório imediato, um policial da escolta teria
perguntado ao cirurgião na frente do paciente:
— Doutor, quando poderei dar uma surra nesse safado? — Mas por
que bater no coitado? — Coitado, doutor? Ele já matou 32 pessoas! Ao que
o bandido, ainda meio sedado, apontou para os dois e lhes disse:
— Vocês aí: 33 e 34... Na maioria das vezes, os bandidos são muito
bem tratados. Mas nem sempre é assim. Ouvi relatos de médicos que teriam
judiado de bandidos ou até pior. Diziam que um anestesista teria matado um
bandido por submetê-lo a uma cirurgia apenas com curare, após reconhecê-
lo como o foragido estuprador de sua esposa. Mas pelo que sei, não
passavam de lendas. Mesmo sentindo uma dorzinha no estômago, não
deixamos de seguir o juramento de Hipócrates. E se já não é fácil segurar
nossa vontade, às vezes podia ser ainda mais difícil segurar o ímpeto de
alguns policiais dentro da sala de emergência. Entretanto, nunca vi um
policial agredindo um paciente. O máximo que ouvi foram histórias de
sugestões maldosas...
Um bandido chegou ao PS após uma troca de tiros com a polícia e
precisaria ser submetido a uma cirurgia. Ao entrar na sala de emergência, o
policial perguntou ao cirurgião se ele não poderia "dar um jeitinho" durante a
intervenção do rapaz. Indignado, o médico respondeu:
-Vocês não fazem o serviço direito e agora querem que eu resolva o
problema?
Esse moço foi operado e no mesmo dia voltou para o pronto-socorro,
onde se recuperaria da cirurgia, algemado e escoltado pelo mesmo policial.
Poucas horas depois, o bandido começou a ficar pálido, ofegante e
sofreu uma parada cardíaca. O militar não sabia o que fazer e começou a
procurar uma enfermeira. Quando chamou, já era tarde. Frustrado com a
morte inesperada do paciente, o cirurgião voltou-se ao policial'. e perguntou:
— Puxa vida, você não ouviu os alarmes? Por que não ligou o
oxigênio ou nos chamou prontamente?
— Eu? Vocês não fazem o serviço direito e agora querem que eu
resolva o problema?
Dizem que, em tempos passados, após balear um bandido, a polícia
passeava com ele por toda cidade para depois chegar ao PS, quando a chance
de salvá-lo seria mínima. Isso quando o ladrão não morria "debatendo-se
sozinho", como dizem que faleceu o sequestrador do ônibus, ou sofria uma
"recidiva de FAF" (ferimento por arma de fogo): o paciente chegava com um
tiro e era salvo pelos médicos. Assim que saía do hospital era imediatamente
readmitido com outro tiro, dessa vez letal.
Lidar com bandidos internados é uma situação muito complicada
para o emergencista. Além de todos os outros comemorativos, ainda existe o
risco de resgate. Assim, quando um bandido mais "importante" passava a
noite no PS, nós o deixávamos propositalmente numa maca bem próxima à
saída...
Os médicos também podem entrar em contato com bandidos fora do
hospital, quando a profissão pode ajudar ou complicar a nossa vida. Já houve
vários casos de sequestros de médicos para que pudessem atender bandidos
baleados nas favelas. Mas, se naqueles casos os médicos foram sequestrados
por serem médicos, neste o médico foi liberado por ser médico. Quando
surgiu o sequestro-relâmpago, o colega foi uma das suas primeiras vítimas.
Apesar do clima de violência, ele conseguiu estabelecer um diálogo com os
algozes. Relatou quantas vezes teria ajudado companheiros dos meliantes
aliviando suas dores e salvando-os em situações críticas como facadas,
acidentes, maus-tratos e, até, tiros da polícia. Eles ficaram tão sensibilizados
com os seus múltiplos salvamentos que resolveram soltá-lo. Devolveram a
sua carteira, o seu carro e até acenaram na hora de partir.
As suas histórias não eram inverídicas, tanto é que pouco tempo
depois ele foi matéria de uma reportagem publicada numa famosa revista
semanal em que a repórter o enaltecia, destacando as duas mil vidas que ele
teria salvado.
Como consequência dessa matéria, os residentes instituíram o
"salvavidômetro": um livro em que registravam um escore com quantas
vidas cada residente teria salvado ou deixado de salvar. O personagem
entrevistado encabeçava o placar com 2.001 vidas, seguido de perto pelo
catedrático da disciplina. Na lanterninha, com cinco vidas negativo, estava
um dos residentes mais azarados.
O caso vivido pelo colega mostrou o poder de sua lábia e o
amadorismo de alguns bandidos. Mas eles evoluíram...
O paciente sofreu um ferimento por arma de fogo. Foi levado a um
pronto-socorro em estado grave, onde um cirurgião realizou uma pequena
cirurgia para drenar seu tórax. Ele ficou internado sob os cuidados desse
colega por quatro dias. Quando em condições, recebeu alta. Uma semana
após, esse médico foi assaltado naquelas redondezas. Não demorou muito
para que ele reconhecesse o ladrão. Era o paciente do tórax!
— Você não está lembrado? Fui eu que o salvei do tiro no peito há
poucos dias! — falou indignado.
— Puxa vida, é verdade! Obrigado doutor, mas... amigos, amigos,
negócios à parte!
E roubou a carteira do médico. Devia ser o típico ladrão profissional.
Dificilmente o vemos, uma vez que não são amadores. Assaltavam com duas
camisas para poder mudar a cor de suas roupas em uma perseguição.
Vestiam sunga e sempre estavam em jejum para caso fossem apanhados e
necessitassem de uma cirurgia de urgência. O kit incluía um santinho no
pescoço ou uma oração de corpo fechado no bolso da calça.
Pude atender um deles. Ainda estava com uma dessas orações no que
restou do seu jeans. Ele havia roubado um banco e estava fugindo com seu
carro, quando a polícia iniciou uma perseguição. Para tentar se livrar, o
ladrão jogou uma granada na viatura que o perseguia. Entretanto, não
percebeu que o vidro do seu carro estava fechado. A granada ricocheteou na
janela e caiu no seu colo, onde explodiu. O que sobrou dele ainda chegou
vivo no hospital, mas a granada foi mais potente que a sua oração e ele não
resistiu.
Cliente habitual: a histérica — DNV

"... Naquelas mulheres, os


espaços encontrar-se-iam mais
vazios que ordinariamente, o
útero ressecado e mais leve
deslocar-se-ia em direção aos
vários órgãos. Quando este se
lançava sobre o fígado, causava
uma sufocação súbita que
interceptava a via respiratória
"localizada no ventre". Nestas
ocasiões, os olhos se reviravam,
a mulher tornava-se fria e
lívida, cerrava os dentes,
salivava abundantemente e
assemelhava-se aos epilépticos
em crise. O prognóstico era
bom e o ataque sobrevinha em
plena saúde. O útero também
podia lançar-se sobre outros
órgãos, como o coração, a
vesícula etc. A sintomatologia
era variada: vômitos, afonia,
dores de cabeça, esfriamento
das pernas etc."

HIPÓCRATES (377 A.C.)


O meu plantão de interno estava tranquilo quando, de repente, uma
jovem foi trazida à sala de emergência. Estava cercada por vários parentes
assustados e angustiados. Não respondia aos seus chamados; parecia algo
muito sério!
Hoje, apenas de olhar aquela cena, saberia o seu diagnóstico. Afinal,
não se desmaia e fica em pé. Além disso, por mais que tentássemos, ela não
permitia que abríssemos os seus olhos a fim de verificar suas pupilas.
Ninguém desacordado faz força para fechar os olhos!
Todo médico já viu essa cena. É o que às vezes chamamos de
peripaque, piti, crise histérica ou, de modo menos depreciativo, distúrbio
neurovegetativo (DNV).
A história da histeria na medicina é muito curiosa. Acreditava-se que
as crises de DNV ocorriam apenas nas mulheres. Isso explica a origem do
nome "histeria", proveniente do latim histerus (útero). A teoria era de que,
quando subaproveitado, o útero deslocava-se pelo organismo danificando o
funcionamento de outros órgãos. Para colocá-lo em seu devido lugar, várias
manobras poderiam ser tentadas. Dependendo do estado civil, o tratamento
poderia consistir no aumento da quantidade (ou qualidade) das relações
sexuais ou num consolo. Os médicos da antiguidade não eram nem um
pouco politicamente corretos! Imagine o que aconteceria se um médico, na
atualidade, ao atender uma jovem desmaiada, pedisse para que
introduzissem algo em sua vagina ou receitasse um coito de oito em oito
horas... Mesmo que esse tratamento venha a funcionar, devemos agradecer
aos céus pela evolução da medicina.
Essa situação é muito frequente no PS, principalmente em jovens do
sexo feminino, sempre causando grande comoção nos leigos, mas sem
apresentar agudamente alguma gravidade. Faz parte de um capítulo da
psiquiatria, cujas síndromes têm como fator comum a imitação de doenças
orgânicas. Os pacientes podem simular sintomas de uma patologia que não
existe ou exacerbá-los em caso de doença. Fazem parte desse grupo as
manifestações psicossomáticas, fadiga crônica, síndrome de Münchausen
(queixas dramáticas inventadas pelo paciente, por motivos conscientes ou
não), distúrbios conversivos, entre outros.
Apesar da imitação, caracteristicamente, nesses distúrbios os
sintomas não respeitam a anatomia e neurofisiologia, e, sim, o que o
paciente inconscientemente acredita ser o seu funcionamento neurológico.
Assim, é comum vermos falsas convulsões, desmaios, tremores e paralisias;
"teatrinhos" ora conscientes, ora inconscientes, que, claramente,
desobedecem às características esperadas nos quadros clínicos que
pretendem simular (o que facilita o seu diagnóstico).
Voltando ao caso da jovem, os parentes contaram que, após uma
discussão feia com o seu namorado, ela teria desmaiado. Já tinham dado sal
para a pressão e como não houve resposta, ofereceram açúcar. Não vendo
melhora, trouxeram-na rapidamente para o pronto-socorro antes que alguém
tentasse outro condimento (pimenta talvez curasse esse caso, pois a
aplicação de um "choque" às vezes pode alterar uma crise histérica. Seria a
"versão em pó" do velho tapa na cara da pessoa que grita
descontroladamente na novela das oito).
O colega pediu uma maca para deitá-la e a chamou pelo nome, sem
resposta. Começou a verificar os seus sinais vitais, que estavam normais.
Levantou um de seus braços para realizar um teste e, ao soltá-lo, para a
surpresa dos familiares, este não respondeu à lei da gravidade. A moça ficou
com o braço duro, estendido no ar. A mesma coisa ocorreu com o outro
membro. Parecia aquela posição de sonâmbulo, mas deitada.
Então ele fez algo totalmente inesperado. Achei que aplicaria um
sedativo ou algo assim. Nada disso! Acalmou os parentes e falou para que
todos ouvissem, inclusive a paciente, que a curaria após alguns movimentos
terapêuticos. Com uma postura de segurança e imposição, disse que tais
movimentos sempre curam 100% desses casos. Fiquei pensando... Eu não
me lembrava de nenhuma manobra tão' milagrosa. Na verdade, não se
tratava de nenhum exercício preestabelecido. Ele, simplesmente, inventou
uma massagem nas mãos da paciente que, lentamente, recuperou-se. Para a
alegria e espanto dos acompanhantes, ficou curada! O colega conversou com
a família e explicou o ocorrido. Todos se acalmaram e foram embora
satisfeitos. Fiquei boquiaberto!
É bem verdade que ele, de fato, usou uma manobra: a sugestão. Por
meio dela, fez a paciente acreditar que restabeleceria os seus movimentos e
conseguiu. Apesar de parecer enganação, é um instrumento que pode ser
aproveitado sem os efeitos colaterais dos medicamentos. A sugestão é muito
útil em várias situações.
Segundo a ciência, muitos "milagres" que acontecem em cultos
podem servir de exemplos do seu poder e eficácia. Não me surpreende que a
dor ou a incapacidade de alguém realmente desapareçam.
Lembro-me de um hipnotizador que conseguia criar bolhas na pele
de um sujeito induzido a acreditar ter sido queimado! Moleza? Pois saiba
que há um estudo científico demonstrando ser possível matar alguém apenas
com a simples sugestão!8 Ele foi realizado na Índia com um condenado à
morte, obviamente quando ainda não existiam as comissões de ética.
Explicando muito resumidamente, fingiram ter cortado os seus punhos e
sugeriram que ele estava perdendo todo o seu sangue. Minutos depois, o
paciente morreu!
Esse tipo de paciente ainda é visto de forma equivocada por alguns
médicos. Não o consideram um quadro psiquiátrico, e, sim, "frescurite"
aguda. Encarando dessa forma, eles acabam se aborrecendo: "Por que esta
chata veio me atordoar com tais fingimentos no meio de tanta gente
realmente doente?".
A partir dessa visão míope, tratamentos inadequados podem surgir.
Médicos se fazendo de exorcista e mandando sair o capeta, aplicando
diuréticos em quem acredita estar catatônico e forçando-os, dessa forma, a
acordar ou a se urinar... Nunca presenciei nenhuma dessas maldades, mas
lembro-me de um caso em que o médico foi sádico, mas muito criativo.
Chegou um paciente desmaiado ao pronto-socorro. Todos os testes
clínicos mostraram se tratar de um DNV. O médico tentou acordar o paciente
pela sugestão, sem efeito. Tudo que tentava para acordá-lo não dava certo.
Teve então uma ideia. Teria que deixar o paciente na sala de atendimento
sozinho e, para isso, retirou a maca com o outro doente que estava ao lado.
Enquanto empurrava essa maca, explicou em voz alta para que todos
ouvissem:
— Precisamos evacuar esta área imediatamente. Está vazando gás de
um dos bicos (toda sala de emergência possui bicos de ar comprimido,
oxigênio e vácuo na parede). Ele é altamente inflamável!
Logo após retirar a outra maca, sem que o DNV percebesse, abriu a
torneira da fonte de ar comprimido ao máximo. Para quem não conhece, o
barulho é um assovio infernal. Começou, então, a gritar enquanto corria para
fora da sala:
— Vai explodir, vai explodir, salve-se quem puder! Nesse momento,
mais rápido que o médico, o paciente desmaiado levantou e saiu correndo.
Ao deixar a sala, os médicos o cumprimentaram:
— Parabéns, você está curado!

8YAGWER, N. S. As emoções como causa de morte rápida e súbita.


Archives of Neurology and Psychiatry, 1936;36:875
Pequeno manual de situações inusitadas

"Mais importante que


o conhecimento é a
imaginação."

ALBERT EINSTEIN

Mesmo que não atendamos nossos "clientes preferenciais", coisas


inusitadas continuaram a aparecer no PS. Algumas podem ser bem
esquisitas, mas, num mundo com mais de seis bilhões de pessoas, elas
acabam acontecendo. Caso contrário, não haveria artigos científicos
intitulados "Acute Management of the Zipper-Entrapped Penis"9 ou
"Transmission of Gonorrhea Through an Inflatable Doll"10, por exemplo.
Eu já tinha ouvido muitas histórias estranhas, mas uma, envolvendo
bolsinha de colostomia, me marcou.
Certa paciente, ao contrário do habitual, parecia fazer de tudo no
sentido de postergar a operação para o fechamento da sua colostomia. Mais
adiante, viemos a descobrir que, na verdade, era o seu marido que a impedia
de fechar sua bolsinha, pois praticava sexo naquele orifício!11
Atendemos a vários casos de anéis entalados no dedo, drops no
ouvido, camisinha dentro da traqueia, gilete no esôfago, garfo no estômago,
pálpebra presa na braguilha...
Na maioria das vezes, aprendemos com os mais experientes algumas
manobras que, talvez, nem foram descritas. Dificilmente encontraremos
discussões específicas desses temas nos tratados de medicina. Para sanar
essa falha, criei este capítulo.
A supercola Ao chegar em casa do trabalho mais cedo do que
habitualmente, um homem ouviu barulhos estranhos em seu quarto.
Assustado com a possibilidade de um assalto em curso, pegou o seu revólver
e foi, lentamente, observar o que ocorria. Surpreendeu a sua esposa com o
vizinho, ambos completamente nus e entrelaçados. Tomado pela raiva, teve
um acesso de criatividade. Sob sua mira, ordenou-lhes que aplicassem uma
famosa cola; primeiro na mão da esposa e depois no pênis do vizinho.
Solicitou, então, que ela voltasse a segurar aquilo que havia soltado.
Horas depois o casal entrou num PS, grudados pela paixão. O
homem usava camisa e calça, esta com a braguilha aberta por onde entrava a
mão da mulher. Ela também usava calça, mas não conseguira vestir a blusa
totalmente devido ao braço direito, que estava preso ao homem. Por cima do
braço da mulher havia um lençol dobrado. Este acabava servindo mais para
chamar a atenção, do que para esconder qualquer coisa.
A quantidade de cola usada foi enorme. A palma e os dedos da mão
estavam completamente aderidos à pele do pênis. O médico nunca tinha
visto nada igual e, infelizmente, teve que fazer experiências in pênis nobile.
O que removeria aquela cola?
Colocou álcool, vaselina, éter, benzina, acetona, até que saiu a cola.
Assim, se você der o azar de ser "o vizinho", não vá ao pronto-socorro.
Saiba que o mesmo fabricante das supercolas também fabrica os
superdescolantes.

A rodinha do carrinho de rolimã


Um rapaz criativo resolveu se masturbar com um rolimã (um
daqueles rolamentos de aço com bolinhas, utilizados como rodinhas nos
carrinhos). Introduziu o seu pênis dentro do orifício central do rolamento de
aço para que, com a movimentação deste, pudesse simular um coito. Ao
término de sua diversão percebeu que não conseguia mais retirar seu falo de
dentro do rolamento. Muito angustiado, procurou o pronto-socorro.
Teria de passar inicialmente pela triagem médica. Estava esperando
num saguão com vários pacientes, quando ouviu o seu nome. Dirigiu-se para
o balcão conjunto, onde três médicos de especialidades diferentes atendiam,
de pé, três indivíduos ao mesmo tempo. Ombro a ombro com os outros
pacientes ouviu:
— Seu José, qual o seu problema? — Estou com dor na virilha —
disse quase sussurrando. — O quê? — Dor na virilha — repetiu ainda em
murmúrio.
Percebíamos muito rapidamente quando o paciente tinha algum
problema urológico exatamente por essa postura de falar pouco,
genericamente e bem baixinho. O médico o colocou para dentro do PS
evitando prolongar desnecessariamente o seu constrangimento.
Um clínico o atendeu. Notou que a glande estava muito inchada,
impedindo a saída da peça mesmo com a tração. Tentou, então, lubrificar o
pênis e puxar o rolamento, sem sucesso. Chamou o cirurgião.
Ele aplicou uma anestesia na base do pênis e depois apertou por
alguns minutos a glande para reduzir o edema. Mesmo assim não deu certo.
Cada insucesso atraía mais gente ao redor do rapaz que, por sua vez, ficava
mais preocupado e constrangido.
Veio, então, o urologista. Puncionou a glande com uma agulha
calibrosa e aspirou o sangue do pênis, que murchou muito pouco, mas não
saiu.
Enquanto fazia um "a-ham", o urologista coçava o queixo e tentava
fazer cara de tranquilidade. Queria passar aquela impressão de "mais um
simples caso de rolamento". Por dentro, entretanto, estava desesperadamente
em pânico, pensando o que mais poderia fazer. Qual seria o passo seguinte?
O caso já tinha sido visto por clínico, por cirurgião, por urologista. Seria ele
último elo daquela cadeia de profissionais? Daria para serrar o rolimã? Não,
é claro que não...
A movimentação deixou curioso um antigo professor de cirurgia que
estava passando visita no local. Este se aproximou da rodinha de médicos.
Naquele instante, a discussão era sobre o que deveria ser feito e qual
especialista seria acionado. Tinham duas dúvidas.
A dúvida menor era sobre quem poderia ser chamado para
reimplantar o pênis por meio de microcirurgia, uma vez que não
conseguiram libertá-lo. Alguém sugeriu o cirurgião vascular. Outro achou
melhor chamar alguém da plástica ou da cirurgia de mão (as quais possuem
a microcirurgia como especialidades).
Mas havia uma outra dúvida muito maior: "quem cortaria o pênis?"
Depois, se não fosse possível o reimplante? Quem assumiria a conduta?
Quem diria ao paciente o famoso "desculpe aí, hein"?
Foi quando o antigo professor, com toda a sua sapiência, calmamente
sugeriu:
— Se for para chamar alguém, acionem o técnico da manutenção.
Nessa hora todos olharam na sua direção com um ar de interrogação. Existe
um "ali catão" apelidado "bernardão" que utilizamos para cortar anéis que
não podem ser removidos por outras técnicas mais sutis. Usaria o bernardão?
Uma serra? Martelo?
Não, nada disso. Ele explicou o seu raciocínio que, posteriormente,
foi confirmado pelo técnico: o rolimã é de um aço muito duro. Ele não
deforma, quebra.
Dissolvida a junta médica, o paciente surpreendeu-se com quem
chegou. Para seu desespero, não era outro médico engravatado qualquer, e,
sim, um homem robusto usando um macacão azul sujo de graxa.
O técnico ouviu a história dos médicos e, após algumas ponderações,
orientou a utilização de uma prensa hidráulica. Ao ouvir a conversa, o
paciente estava quase infartando.
Para acalmá-lo, os médicos explicaram que estava tudo bem (é em
cada hora que a gente diz que está tudo bem!). Iriam "apenas" colocar o seu
pênis numa prensa hidráulica e comprimir o rolamento com toda pressão
possível. Tranquilo, né?
Com muita calma, colocaram o pênis e o rolimã dentro da prensa.
Esta foi lentamente aumentando a pressão sobre o rolimã, assim como sobre
todos os presentes. O paciente suava frio. Os médicos suavam frio. O técnico
suava frio, e sempre que reviso este texto também suo frio.
Quando a pressão estava em seu ápice, ouviram um "deck", seguido
por um "aí-minha-mãeeezinhaaa".
O rolamento se partiu e o pênis foi liberado de sua prisão, apenas
com sequelas emocionais. Viva a experiência!
Mansa de cupim Um estranho conjunto chegou ao PS. Tratava-se de
uma moça ruborizada e arqueada para trás, tentando segurar, às suas costas,
algo que parecia estar conectado a elas. Não era possível identificar a
"bagagem", pois estava coberta por um lençol. Apesar disso, o médico
percebeu um estranho movimento rítmico balançando o pano de um lado
para o outro.
Ela entrou na sala de atendimento visivelmente constrangida e
demorou a explicar o que ocorrera. Não seria necessário, bastava levantar o
lençol para ver o simpático cachorrinho abanando a cauda. Estavam
engatados após uma relação sexual havia mais de uma hora!
O plantonista nunca estudara nada a respeito disso, apenas conhecia
dados da "sabedoria popular". Sabendo que não deve ser nada fácil juntar a
coragem necessária para aparecer dessa forma em um pronto-socorro, intuiu
que ela já havia se molhado com um balde de água fria, eliminando essa
possibilidade terapêutica. Assim, começou a pensar no que fazer.
Ele poderia puncionar o pênis do cão para murchá-lo mais
rapidamente, mas ficou com medo de levar uma mordida. O mesmo
ocorreria se jogasse éter. Lembrando-se de que os cachorros nunca vivem
engatados o restante de suas vidas, deixou-os deitados em observação.
Acabou tendo que prescrever um calmante para a jovem, pois a angústia dela
aumentava a cada minuto que transcorria sem a resolução do quadro. Foi
ótimo, pois o pênis só murchou depois de uns vinte minutos!
Mais tarde, a dona do cãozinho pôde conversar com um veterinário,
que teria lhe explicado:
— Quando o cachorro ejacula, um bulbo na base do seu pênis se
enche de sangue, aumentando subitamente de diâmetro. Esse bulbo ancora o
cão à cadela com o objetivo de manter o esperma no canal vaginal. Esse
inchaço no pênis dura em média uns trinta minutos, mas pode persistir por
mais de uma hora.
Excalibur Um paciente entrou caminhando calmamente no pronto-
socorro. Após ser questionado pelo médico sobre qual seria o seu problema,
ele se virou e apontou para o cabo de uma faca, enfiada na parte posterior do
seu tórax.
Em geral, não encontramos nesses casos lesões internas muito
graves. Curiosamente, há dois motivos para isso. Primeiro, porque se a lesão
interna fosse mais grave, o paciente certamente não chegaria andando.
Segundo, se a faca não tivesse ficado bem presa (e bota presa nisso!), o
agressor a teria enfiado outras vezes.
Chamamos essa condição de síndrome de Excalibur, pois, assim
como no poema de Robert de Baron, apenas o Dr. Artur conseguirá retirá-la.
Tal qual o fenômeno da tampa emperrada de maionese, nem sempre o Dr.
Artur é o mais forte.
Fenômeno da tampa emperrada de maionese é quando uma criança
ou alguém muito fraco consegue retirar a tampa da maionese que estava
emperrada, após múltiplas tentativas infrutíferas de pessoas bem mais fortes.
Porém, além de exigir grande força para extirpá-la, é necessário
muito cuidado, pois, ao movimentarmos a faca, podemos desencadear um
sangramento que estava previamente tamponado. Assim, só o fazemos no
centro cirúrgico e sob anestesia. A anestesia exige uma intubação da
traqueia, que habitualmente é realizada com o paciente de barriga para cima.
Aqui, esse paciente trazia um novo problema: como intubá-lo — passo
imprescindível para o procedimento — de bruços?
Os médicos tentaram de um lado, do outro, pelo nariz e com o
auxílio de um endoscópio, sem conseguir. Por sorte, apareceu Dr. Merlin
com a solução.
Colocaram duas macas em paralelo e deitaram o paciente de barriga
para cima, de modo que o cabo ficasse exatamente no vão entre elas.
Superado esse passo, o terceiro médico que tentou, sagrou-se Dr. Artur.
O prego Após deliciar-se com um famoso refrigerante, o paciente
resolveu divertir-se também com a garrafa e introduziu-a no ânus, a partir do
gargalo, onde ela ficou entalada. Por mais que tentasse, o vácuo que havia se
formado não permitia a sua retirada. Estava muito angustiado pois, se sua
esposa descobrisse, seu relacionamento ficaria estremecido. Ela jamais
aceitaria o ocorrido.
Como metade da garrafa estava para fora do ânus do paciente,
tentamos puxá-la de várias formas, sem sucesso. Explicamos, então, a ele
sobre a possível necessidade de aplicar uma raquianestesia para retirar o
corpo estranho.
Sua primeira reação foi de desespero. Não poderia ser internado;
seria muito difícil explicar para a esposa o porquê de uma cirurgia.
Fomos discutir o caso com um cirurgião mais experiente. Ele ouviu
os detalhes e nos orientou a procurar dois misteriosos artefatos: — um prego
e um martelo.
— Precisam ser estéreis? — perguntei. — Não, pode ser até
enferrujado — foi a resposta. A solução foi muito interessante. Se você
reparar na parte inferior da garrafa de vidro, perceberá em sua borda lateral
um pequeno ponto arredondado onde o vidro é mais frágil. Bastou bater o
prego neste local, com firmeza.
O vidro se partiu apenas nessa porção, permitindo a entrada de ar na
garrafa. O vácuo se desfez e pudemos retirá-la com facilidade.
Esta é mais uma dica de utilidade pública...
O ninja manquitola e outros seguidores de Vlad Diferentemente de
um hospital escandinavo, a pluralidade dos pacientes que entravam e saíam
do PS dificilmente desviaria a atenção para alguma pessoa específica. Até
que um estranho "ninja" destacou-se naquela multidão.
Naquele calor, alguém com roupas negras e com um gorro de
esquiador só poderia ser um assaltante, desde que excluído um pequeno
detalhe: ele não caminhava normalmente.
Basculava o seu corpo de um lado para o outro com o tronco e as
pernas rígidas, de forma que uma ficasse ligeiramente anterior à outra a cada
oscilação. Ao locomover-se, emitia um misterioso grunhido.
Em pouco tempo, o enigma foi solucionado. O paciente havia
"caído" em cima de um espeto (bipartido) de assar linguiça. O cabo estava
preso em seu ânus e cada ponta do espeto, escondida numa das pernas da sua
calça de moletom. Andar devia doer muito, explicação mais provável para os
seus gemidos.
Embora possa não ser uma situação inusitada, o empalamento
continua sendo algo que desperta a curiosidade, dada a variedade de
apresentações existentes. Esta era uma forma de tortura, muito apreciada por
Vlad III, "O Empalador". Ele matava seus desafetos introduzindo-lhes
estacas de madeira pelo ânus ou os empalava após tê-los executado,
exibindo-os como troféus para intimidar os inimigos. De lá pra cá, as coisas
mudaram e ocorrem muito mais devido a práticas masturbatórias pouco
convencionais do que à tortura, embora esta também possa ocorrer.
Comumente somos procurados por pacientes com objetos
introduzidos em suas cavidades naturais. Existem histórias sobre os mais
diversos objetos que se possa imaginar, desde cenouras a botinas natalinas
de cerâmica.
A situação é sempre muito constrangedora. Assim, os pacientes
acabam procurando o pronto-socorro apenas em algumas circunstâncias
extremas.
Embora seja raro, o objeto pode ter sido introduzido contra a
vontade, seja por tortura, seja acidentalmente. Na maioria das vezes,
entretanto, o objeto é introduzido voluntariamente. Aí o paciente procura o
médico somente quando se machuca ou fica entalado.
A pior situação, sob o nosso ponto de vista, ocorre quando o paciente
introduz algo que perfura o reto. Muitas vezes com vergonha de contar o
ocorrido, ele procura o serviço médico por dor abdominal e oculta o fato de
ter se "autoempalado", o que dificulta sobremaneira o diagnóstico. Uma dor
leve e inespecífica associada a uma história inverídica acaba retardando o
diagnóstico e piorando o prognóstico. Não é raro ter de indicar uma cirurgia
exploradora por uma dor abdominal estranha e descobrir uma perfuração no
reto. É comum verificarmos após a intervenção que, ao ser indagado, a
cirurgia curou não só a perfuração, mas, também a "amnésia" do paciente.
Quando a pessoa nos procura com o objeto ainda in loco, não há
como ocultar a causa do problema. Contudo, a história costuma envolver um
azar fenomenal e é sempre muito parecida. Dificilmente alguém relataria
estar se masturbando, por exemplo. Então preferem dizer algo como:
— Estava pelado, fazendo exercício de barra no meu banheiro,
quando ela se soltou e caí em cima de uma cenoura...
Às vezes a história pode ser ainda mais inusitada. Lembro-me de um
senhor que referia ter engolido um pepino sob efeito de drogas ilícitas. Teria
o legume de vinte e cinco centímetros passado pelo esôfago, estômago,
intestino delgado, cólon e ido entalar justamente no ânus?!
Se você fosse um investigador de polícia, acreditaria nos relatos
desses azarados?
Você poderia chegar à conclusão de que essas pessoas são azaradas
de verdade caso não fosse pela típica resposta a uma perguntinha maldosa,
que já ouvi sendo formulada algumas vezes:
— Seu fulano de tal, preciso saber se o senhor introduziu o xampu ou
se foi uma queda mesmo, afinal o tratamento é completamente diferente para
cada caso (quando na verdade não muda em nada).
Com frequência, o paciente responderá: — É verdade, eu caí. Mas
pode tratar como se eu tivesse enfiado! Nunca vi uma profissional da área ou
um homossexual assumido empalados. A maioria dos casos de empalamento
ocorre no ânus, em homens casados, de meia-idade e com família
constituída.
Já tinha me questionado quanto ao porquê disso algumas vezes;
afinal, sou um homem casado, de família constituída, um dia alcançarei os
50 anos e não quero chegar empalado em nenhum hospital! E a resposta é
relativamente simples: jamais atendi alguém entalado com um consolo de
borracha específico para este fim!
Não sei se algum instituto respeitável, como o Inmetro, avalia e
regulamenta os "consolos" (e se os avalia, como será que o faz?), mas os
fabricantes devem ter suas preocupações.
Mesmo que não venha um manual de instruções anexo, os pênis
industrializados, com certeza, não soltam a glande ou farpas, não esfarelam,
não grudam nem criam vácuo. Possuem uma base larga como um cálice e
imagino que talvez possam até ser feitos de material "testado e aprovado"
por alguma associação específica. Dificilmente criarão problemas —
problemas ocorrem quando se introduz um objeto adaptado, uma gambiarra
sexual.
Em outras palavras, se eu fosse um homem casado e com vontade de
conhecer o meu "lado B", dificilmente compraria um vibrador de borracha.
Como explicaria ao meu filho ou esposa, caso eles descobrissem o artefato?
— É o novo brinquedo do cachorro? Seria complicado explicar. É
mais fácil evitar esse risco com o cabo da piaçava, a escova de dente elétrica
da esposa ou algum legume. Depois, bastará lavar e devolver ao local de
origem.
Às vezes, o empalamento ocorre não por diversão, mas a trabalho (e
não me refiro aos pilotos de prova dos institutos de pesquisa). Não é nova a
ideia de se introduzir papelotes de cocaína no ânus, ou celulares na vagina,
para entrar em presídios. Entretanto, como o espaço interno desses orifícios
não é lá grande coisa, quando se quer esconder algo maior no trato digestivo,
fica mais fácil engoli-lo.
Avestruzes Atendemos pessoas que deglutiram coisas estranhas com
uma frequência maior do que a dos empalamentos (e olhe que não estou
incluindo os consumidores de churrasquinhos nos estádios de futebol ou os
chineses e seus insetos). Devido a distúrbios psiquiátricos, o paciente pode
comer moedas, pilhas, garfos, bolas de bilhar e até cabelos! Já vi algumas
obstruções de estômago de tanto que o paciente comia os próprios cabelos
(tricobezoar). Observe os fios úmidos que às vezes se acumulam no ralo do
seu banheiro. O tricobezoar é um pouquiiiinho maior!
Contudo, na maioria dos casos que vi, a ingestão ocorrera por uma
tentativa frustrada de contrabando. Essas pessoas que engolem papelotes de
cocaína são apelidadas de "mulas" pelos policiais. Como se há de convir, é
um bom apelido.
Sempre tive curiosidade em saber como os policiais faziam para
descobrir tais pessoas. Segundo um deles, entre outras estratégias, eles
tinham conhecimento das rotas mais utilizadas (países da África
Subsaariana) e das características habituais dos mulas. Em geral, são jovens
solteiros sem condições financeiras, que desconhecem a nossa lingua e não
possuem familiares no Brasil. Sempre apresentam alguma desculpa
esfarrapada para sua entrada no país. Além disso, há sempre um policial à
paisana infiltrado na fila dos passageiros. Volta e meia, ele esbarrava "sem
querer" na barriga dos suspeitos. Como os mulas tomam várias medicações
para ficarem constipados (evitando evacuar a carga em trânsito, pois, quando
isso ocorre, eles acabam reingerindo os papelotes melecados), sempre
estavam com gases ao término de sua jornada. Quando um deles se
incomodava mais do que seria o esperado com o esbarrão, levavam-no para
ser submetido a uma radiografia de abdome. Era um método tupiniquim,
mas parecia funcionar.
Certa vez, estava passando visita nos pacientes do pronto-socorro na
qualidade de R3 e o R1 começou a descrever o caso de um jovem negro, que
havia chegado naquele dia da Nigéria. Tinha vindo diretamente do
aeroporto, com dor e distensão abdominal. Sua história clínica era esquisita e
havia dificuldade de comunicação, pois ele compreendia muito pouco a
nossa lingua. O residente ainda não havia chegado a um diagnóstico
conclusivo.
Quando nos acontece de atender uma mulher obesa que já passou dos
40 anos de idade, que teve mais de uma gestação e se queixa de dor
abdominal do lado direito, um grupo de neurônios se agita compulsivamente
para nos alertar sobre a hipótese de inflamação na vesícula biliar. Não se
trata de um conjunto de células preconceituosas, estão apenas se lembrando
de dados estatísticos que qualquer aluno de terceiro ano conhece: os
problemas de vesícula são muito prevalentes quando se juntam os quatro "F"
(female, forty, fat, fertile — mulher, acima dos 40, obesa, fértil).
Enquanto ouvia o relato do R1, lembrei-me da descrição que o
policial havia me dado dos "mulas". Ele se encaixava nos "4F" dos mulas e
perguntei ao residente se ele havia solicitado uma radiografia de abdome,
com o intuito de descartar a possibilidade dos papelotes.
Ao meu lado, estava uma moça que ouviu minhas suspeitas e, em
inglês, contou para o paciente. Este ficou indignado, enquanto a mulher (que
era brasileira) gritava que eu era racista e assim por diante. Só não fui
agredido graças à turma do deixa disso que, por sorte, incluía o investigador
de polícia do plantão.
Até hoje não sei se estava certo (como suspeitou o investigador, dada
à resposta exaltada do paciente seguida de sua evasão) ou se fui um
"preconceituoso infeliz".
Ao menos biologicamente, segregar alguém por ser"diferente" me
parece idiotice. Vejo, por exemplo, a cor da pele, como resultado de um
breve período sob ação da seleção natural. Precisamos da vitamina D para
incorporar o cálcio aos nossos ossos e evitar doenças como a osteoporose.
Para que a pele possa sintetizá-la, necessita da radiação da luz solar. Por
outro lado, muito ultravioleta induz queimaduras solares e câncer de pele.
Para bloquear o excesso de luz solar, a pele produz um pigmento escuro
chamado melanina. Assim, é natural que os menos pigmentados estivessem
em desvantagem nos trópicos, pois sofreriam queimaduras terríveis. Teriam
de caçar em horários em que a radiação fosse menor e morreriam muito
precocemente por infecções ou câncer de pele. Nas regiões temperadas, por
outro lado, os mais pigmentados sofreriam com osteoporose e fraturas
frequentes, uma vez que não existia um suplemento vitamínico pré-histórico.
Algum desses espécimes passa a ser mais puro ou mais digno por
causa dessa simples adaptação bioquímica à luz solar? Por pensar dessa
forma é que encaro alguns termos politicamente corretos como babaquice.
"Afro-americano"é o indivíduo cujos pais são negros angolanos ou brancos
egípcios?
Todos são "afro-descendentes", parentes de Lucy. A única diferença é
que os negros saíram de lá, no máximo, há uns quinhentos anos, enquanto os
antepassados dos brancos já haviam migrado para a Europa e Oriente Médio
havia cinquenta mil anos.
Desculpe-me, mas um"ministro da igualdade racial" apoiado
pelas"comunidades negras" parece só piorar o problema. Deveria ser
"ministro da igualdade" apoiado pela "comunidade".
Um desabafo...
Geneticamente, os homens, independentemente de qualquer
característica a ser comparada, são 99,9% idênticos. A variação no nosso
código genético é mínima: duas vezes menor do que a do genoma dos,
absolutamente iguais, pinguins!12

9NOLAN, J. E; STILLWELL, J.; SANDS JR., J. P. Tratamento agudo do


pênis preso no zíper. J Emerg Med. 1990; 8: 305-7. (Minha esposa
vomitou ao ler este parágrafo.)

10KLEIST, E.; Moi, H. Transmissão de gonorreia por meio de uma boneca


inflável. Genitourinary Medicine 1993;69:322.

11A minha esposa também vomitou ao ler este parágrafo.

12WATSON, J. D.; BERRY; A. DNA: o segredo da vida. São Paulo:


Companhia das Letras, 2005.
5 — O DESMAME DO HOSPITAL

O peso da profissão

"Podemos escolher o
que semear, mas
somos obrigados a
colher o que
plantamos."
DITADO CHINÊS

Há cinco anos, eu vivia mergulhado no hospital. No pouco tempo


livre que dispunha, acabava saindo com os amigos da residência. Agora
resolvera me casar, antes disso, queria me encontrar com os velhos colegas
do colegial.
Sempre que encontrávamos antigos conhecidos, num bate-papo
informal, surgiam questões relacionadas às suas curiosidades sobre o corpo
humano e suas doenças. Muitas vezes esses temas embalavam a conversa
por horas, confirmando o ditado "para estragar uma festa, basta chamar dois
médicos". Dessa vez, sendo eu o anfitrião do encontro, o papo foi 100%
medicina. Mas, embalados pelo chope, começou uma discussão engraçada.
Um amigo advogado me perguntou algo que o intrigava: — Dário, anus
ebrium nec dominus cit?
— O quê? — Cu de bêbado tem dono?
Dei risada; mas que dúvida! Essa questão pode nos assolar há
tempos, mas nunca teria coragem de formulá-la, ainda mais bebericando
numa roda de amigos!
De qualquer forma, surpreendeu-me a curiosidade que todos
demonstraram ao esperar pela minha resposta; talvez temessem um dia se
embebedar... Mas antes que pudesse dar o veredicto, ele exclamou:
— Do ponto de vista médico, não sei, mas existe jurisprudência. E
citou as conclusões de um tribunal de justiça no julgamento do caso de um
homem que acreditava ter sido sodomizado numa orgia enquanto
alcoolizado.
"...3. Quem procura satisfazer a volúpia sua ou de outrem, aderindo
ao desregramento de um bacanal, submete-se conscientemente a
desempenhar o papel de sujeito ativo ou passivo, tal é a inexistência de
moralidade e recto neste tipo de confraternização;
4. Diante de um ato induvidosamente imoral, mas que não configura
crime noticiado na denúncia, não pode dizer-se vítima de atentado violento
ao pudor àquele que ao final da orgia viu-se alvo passivo do ato sexual;... "13

Eu nunca perdi tempo discutindo ou estudando tais besteiras durante


a faculdade. Mas não ficaria surpreso se descobrisse algum artigo tipo "o
estudo da sensibilidade anal após ingestão de etanol em macacos-prego".
Existem pesquisas médicas das mais esquisitas e criativas que você possa
imaginar: — Elucidation of chemical compounds responsible forfoot
malodour; the effect of country music on suicide; impact of wet underwear
on thermoregulatory responses and thermal comfort in the cold...14
Não conheço nenhuma publicação científica a respeito do tema
abordado, mas a resposta para a questão é simples: tudo depende de quão
bêbado esteja o indivíduo.
Um professor dizia que acidentes não acontecem, são provocados.
Sei que pode cair um meteoro na sua cabeça e a culpa será apenas do seu
desatento anjo da guarda. Mas, na maioria das vezes, uma colisão ocorre por
causa de um motorista sonolento, falta de manutenção do carro,
ultrapassagens proibidas e excesso de velocidade. Portanto, não e de se
surpreender com o fato de o álcool estar intimamente associado a todo tipo
de morte violenta. Alguns estudos mostram a sua participação em 13%, 27%
e até 40% dos acidentes. Tenho a impressão de que essa porcentagem é bem
maior.
Quando atendemos algum paciente de emergência, um dos primeiros
passos será a verificação do seu nível de consciência. Este pode variar do
alerta e estar orientado ao coma profundo. Sua avaliação é fundamental para
guiar o tratamento. Se o paciente está em coma, por exemplo, deverá ser
imediatamente intubado na traqueia para respirar adequadamente e proteger
as vias aéreas. O nível de consciência pode ser aferido de forma objetiva
com um teste simples e rápido. Para iniciar o teste, realizamos uma simples
pergunta como: "O senhor está bem?" ou "Qual o seu nome?".
Quando o paciente não responde ao chamado verbal devido a um
rebaixamento do seu nível de consciência, o passo seguinte do teste será o
estímulo doloroso. Este pode ser realizado ao torcer o mamilo ou
pressionando com os nós dos dedos a região do esterno. Assim, verificamos
se o paciente acorda, se fala algo conexo ou desconexo, se emite sons e,
ainda, se localiza a dor ou tem movimentos inadequados. Para cada resposta
a cada item é atribuído um valor numérico. No fim, a soma desses valores
dará o nível de consciência.
A escala do nível de consciência, Escala de Glasgow varia de 15
(normal) a três (sem função cerebral detectável). Alguém em confusão
mental estará de nove a catorze. Se estiver em coma, de três a oito. Parece
difícil, mas não é.
Durante o atendimento emergencial de um acidentado é muito
comum que quatro ou cinco médicos estejam atendendo o paciente
simultaneamente. Muitas vezes, enquanto um deles está avaliando a
consciência, outros estão retirando-lhe as vestes, auscultando o tórax,
aferindo a pressão arterial, fazendo o toque retal e passando sondas. O toque
retal é fundamental para avaliar uma série de quesitos. Como o atendimento
é simultâneo, o nível de consciência pode estar sendo testado quase ao
mesmo tempo que se pratica o toque no reto.
Atendi alguns acidentados tão alcoolizados que, devido aos efeitos
do álcool, não respondiam ao estímulo verbal nem ao doloroso.
Academicamente, poderiam ser classificados como inconscientes e
necessitariam de intubação. O indivíduo que não fala, não abre os olhos e
não se movimenta, mesmo sob a ação de estímulos dolorosos, até que se
prove o contrário, também não respira adequadamente. Enquanto o material
de intubação traqueal era preparado, alguém realizava o exame retal. Para a
surpresa de todos, nesse momento, o paciente abria os olhos, se mexia e
verbalizava:
— Aí não, chefia! Epa, epa, olha a sacanagem! Então, a intubação
passava a ser desnecessária. O teste de Glasgow deveria ser interpretado com
cuidado, pois reagiam mais à dor moral do que à física.
Portanto, a conclusão final é sim. Na maioria das vezes, ânus de
bêbado tem dono!
O encontro foi muito divertido, mas me deixou um pouco deprimido.
Será que o tempo todo eu voarei ao redor da medicina como uma mariposa
ao redor das lâmpadas? Estava cansado e precisando dar um tempo. Após
me formar, passei cinco anos sem tirar férias de verdade. Estar o dia inteiro
no hospital-escola era a minha rotina e eu precisava quebrá-la. A minha lua
de mel viria bem a tempo.
Queríamos nos desligar do mundo e curtir. Recém-casados, fomos
para uma ilha onde teríamos um descanso merecido! Havia, no arquipélago,
um controle de entrada dos turistas. Entre outras, perguntas a respeito da
minha profissão. Médico. Logo em seguida, perguntaram-me de qual
especialidade. Achei estranho. O mesmo ocorreu com a minha esposa.
Dois dias depois, curtindo o nosso tão sonhado repouso, resolvi ir a
um passeio de barco, mergulhar com tubarões. Apesar de saber que são
inofensivos, ela ficou muito apreensiva e preferiu ficar na pousada
esperando pelo meu regresso (de preferência intacto).
O barco atrasou e retardou o meu retorno. Passadas algumas horas,
minha angustiada esposa ouviu o telefone do nosso quarto tocar. Quem
ligaria para aquele desconhecido número telefônico?
A pessoa se identificou como sendo a telefonista do hospital local.
Imagine o susto que minha esposa levou quando a moça lhe avisou que a
aguardavam no hospital!
— Ai, meu Deus! O meu marido está bem? Foi atacado? O que
aconteceu?
— Seu marido? Não tem nada a ver com ele! Estou avisando que já
marcamos as consultas do SUS para a senhora atender.
Ainda atordoada com o estresse que passara me imaginando como
aperitivo de tubarão, ela não conseguia acreditar no que ouvira.
— Como é? Tem consultas marcadas para eu atender? Hoje? No
segundo dia da minha lua de mel? (Afinal, no primeiro só se dorme...)
— Não há dermatologistas residindo na ilha, eles vêm apenas uma
vez por mês. Então, quando aparece algum turista de uma especialidade que
precisamos, nós marcamos as consultas.
Há lógica, mas o Conselho Federal de Medicina só permite que os
médicos atuem fora do seu estado em urgências. Nesse caso, não teríamos
maiores constrangimentos em burlar a regra por questões humanitárias. O
que irritou a minha já fragilizada cônjuge foi o fato de a telefonista
simplesmente avisar o horário das consultas. Ela nem perguntou se poderia
fazer uma gentileza e, para piorar, ainda explicou que, como não se tratava
de urgências, ela até poderia remarcar as consultas para mais tarde.
Irritada, ela se negou a comparecer ao hospital. Uma coisa é
convocar o padeiro a fazer pães, pois há farinha e fome. Outra coisa é
convocá-lo, pois o povo quer croissant o mais rápido possível, de graça,
infringindo a lei e na hora que a padaria já fechou. Pensei: "Da próxima vez
vou dizer que sou escritor de romances ou fiscal da receita...".
Apesar de acostumado com a profissão na residência, ainda não tinha
percebido o fardo que carregava. Como não possuía pacientes particulares
ou outros empregos, ao chegar em casa e tirar o meu avental, tinha a
impressão de que podia deixar de ser médico. Na verdade, nós o somos
durante o tempo todo e, mesmo nas horas mais impróprias, não podemos nos
eximir de nossas obrigações e responsabilidades.
Um dos meus colegas viveu uma situação que exemplifica,
claramente, esse aspecto da nossa escolha.
Ele estava em um 747 voltando da Inglaterra, quando ouviu a famosa
solicitação: "Há algum médico a bordo?".
Era residente de cardiologia e, como qualquer outro médico, temia
enfrentar algo diferente do habitual e num cenário hostil.
Contou-me, meio envergonhado, não ter se mobilizado sob o
pretexto de que deveria haver mais algum colega naquele enorme avião. Mas
se é que havia um outro médico na aeronave este deve ter pensado em
alguma desculpa semelhante, pois anunciaram novamente. Dessa vez, a
consciência falou mais alto.
Ainda prostrado de sono, foi ao local que orientaram. Ao chegar lá,
notou um senhor no chão, com muita dor no peito. Foi fácil diagnosticar a
angina.
Havia um bom arsenal de medicamentos disponíveis. O médico
selecionou o remédio e ofereceu ao paciente, aliviando a sua dor
prontamente. Satisfeito e orgulhoso por ter sido útil, o colega pensava: "não
foi tão difícil assim. Da próxima vez, acordarei ao primeiro chamado...".
Nesse momento apareceu o comandante da aeronave procurando o
médico. Após lhe agradecer, o piloto explicou que ainda poderiam aterrisar
em Dacar (Senegal). Porém, em poucos minutos ultrapassariam um ponto a
partir do qual seria impossível retornar, mesmo que o paciente precisasse...
Conduziu-o até um cantinho reservado e perguntou:
— E então doutor, devemos prosseguir o voo? — Prosseguir com o
voo? Eu preciso decidir se o senhor deve prosseguir com o voo?
Por essa ele não esperava! Olhou para as cadeiras daqueles trezentos
passageiros dormindo tranquilamente com tapa-olhos e provavelmente
sonhando com a volta ao lar. Imaginou-se na posição do gigante Atlas,
tentando sustentar sobre os ombros um 747.
Ele sabia que a dor poderia voltar e até mesmo desencadear um
infarto, mas constrangido em atrapalhar a vida de centenas de passageiros,
sugeriu prosseguir o voo.
O comandante deve ter ligado o piloto automático e ido dormir
tranquilo. Mas ele ficou a noite inteira ao lado do paciente, estréssado com
cada ronco diferente que o cardíaco emitia. Além da insônia, quem quase
infartou de tanto estresse foi o médico.
Posteriormente, ele ponderou que talvez não tomasse mais tal
decisão. Mesmo que os riscos fossem mínimos, o estresse que sofreu com a
possibilidade de o paciente vir a infartar e até morrer por não ter descido em
Senegal teria sido injustificável. A responsabilidade seria inteiramente dele,
que tinha entrado na história de gaiato. Como é fácil passar de bom
samaritano a médico incompetente! Pelo menos recebeu uma carta de
agradecimento da companhia aérea...
Alguns colegas talvez tivessem uma vontadezinha de se omitir, caso
soubessem o desenrolar dessa experiência. Mas às vezes isso é impossível,
mesmo que se queira.
Costumamos nos vestir de branco. Quando ocorre algum acidente ou
mal-estar súbito na rua, o povo não quer saber se você é pai de santo,
dentista ou cabeleireiro. Se estiver de branco é médico e com ampla
experiência no atendimento de emergências. Mas mesmo sendo doutores,
encontramos inúmeros desafios nesses cenários. O leque de situações a que
estamos expostos e de habilidades que gostaríamos de ter para contorná-las é
imenso. E não incluem apenas pessoas doentes ou passando mal.
Um médico do interior me contou que fora ao velório de um paciente
para prestar condolências à família do falecido. Estava de branco. Antes que
pudesse ir embora do cemitério, foi puxado e arrastado para dentro de um
saguão onde ocorria outro velório. Simplesmente, o raptaram. Embora fosse,
mesmo, um velório, o ambiente não lembrava, em nada, o de um funeral.
Todos gritavam e abanavam o caixão da falecida desesperadamente.
A filha da defunta, inconformada com a morte da mãe, levara um
espelhinho na sua bolsa. Segundo ela, ele teria ficado embaçado ao ser
colocado debaixo do nariz do cadáver.
Antes que o médico pudesse se perguntar o porquê do espelhinho,
eles o forçaram a atender o corpo. Morto. No caixão. Ao tentar verificar os
sinais vitais da morta, ele percebeu que isso seria impossível devido ao
rebuliço que a filha, dona do espelhinho, causava. Pediu aos parentes mais
calmos que a retirassem do local.
Ao seu exame, o diagnóstico parecia óbvio. Ela não respirava, não
tinha pulso, estava fria. Ele até podia ver as marcas da autópsia!
Quando o médico se voltou para a plateia, lenta e solenemente, todos
o questionaram:
— E aí, doutor... e aí? E ele, para o alívio de todos, proferiu a notícia
de uma forma inédita:
— Calma, gente, está tudo bem. Graças a Deus, ela morreu. —
Obrigado, doutor! A paz voltou a reinar e todos voltaram a rezar e a se
lamentar... Essas situações nos relembram a maravilha da invenção dos
hospitais. Mas mesmo fora desses ambientes, continuamos sendo médicos e
os pacientes, a surgir. Independentemente da situação, o médico sempre se
expõe. Sem as medidas de proteção e as condições adequadas de
atendimento, corre o risco de contrair alguma doença e, até, de passar a ser
uma vítima a mais do mesmo incidente.
Não é nada fácil, podemos até ser linchados. É comum encontrar a
vítima de algum acidente envolta por um bando de curiosos. A pressão para
pegar o acidentado e o transportar para um hospital é enorme e raramente
será a melhor escolha. Quando aparece um médico, o povo exige que ele
faça algo, mesmo que sirva só para amainar a própria angústia e a sensação
de impotência. Mas em boa parte das vezes, não existe algo a ser feito, e,
sim, muito a ser evitado.
Já houve emergências extra-hospitalares em que colegas realizavam
manobras fúteis apenas para fingir estar tratando de algo, enquanto o resgate
não aparecia. Caso contrário, eles seriam agredidos pela população ansiosa.
É o que alguns chamam de teatrinho de sobrevivência...
Eu estava de branco caminhando para pegar o metrô, quando ouvi
um segurança gritando para que chamassem uma ambulância. Alguém fora
baleado!
Corri para o local e vi um senhor caído. O segurança berrava, quase
em pânico, que as tripas estavam saindo. Criou-se um rebuliço.
Ao me aproximar, notei suas roupas esfarrapadas e sujas,
compatíveis com as de um morador de rua. Não havia sangue algum na cena
do suposto acidente. Havia, no ar, um forte odor de pinga e ele estava bem
sonolento. Seus parâmetros vitais eram bons, exceto pelo leve rebaixamento
do nível de consciência, provavelmente devido ao álcool.
O homem mantinha uma das mãos apoiada sobre o abdome e, sob
essa mão, eu podia ver um segmento de alça intestinal e um pouco de fezes.
Ao examiná-lo com mais rigor, percebi que aquilo não se tratava de um
ferimento recente por tiro ou facada. Era uma colostomia!
O indivíduo, embriagado, perdera a bolsinha em algum lugar. Como
estava caído e sonolento, o segurança intuiu que teria sofrido algum
ferimento naquele instante.
Mesmo tendo entendido a situação, não vi ninguém calmo o
suficiente para que pudesse explicar coerentemente o ocorrido. O frenesi era
imenso, com todos gritando e dando opiniões diferentes. Eu era o doutor e
precisava fazer alguma coisa para salvá-lo. Achei que, de uma forma ou de
outra, seria interessante levá-lo para um hospital. Pelo menos receberia uma
hidratação, vitaminas e glicose. Assim, tentei acalmar as pessoas dizendo
que ele aguentaria o tiro e ordenei que discassem para "193, sem ficha".
Como no restante da medicina, até estas decorebas evoluíram. Na
primeira vez que eu participei de um curso de primeiros-socorros, aprendi
que, ao constatar a inconsciência da vítima, a primeira coisa a fazer seria
gritar: "Por favor, chamem um médico!" Com o tempo vieram os cursos de
atualização e esse pedido genérico evoluiu para uma ordem dirigida a uma
pessoa específica: "Você aí, chame um médico!" Percebendo que não era tão
fácil assim achar um médico a frase foi reformulada: "Ligue 192, sem
ficha!': Aí surgiu o resgate e a nova atualização: "Ligue 193, sem ficha!"
Hoje não existem mais fichas telefônicas e a ordem mudou novamente:
"Traga um desfibrilador!"
Todos gritavam para apertar o local, o que fiquei fazendo levemente
com um pano (foi um teatrinho que, provavelmente, acabou por salvar a
minha vida). Não pude deixar de sujar as minhas mãos, pois, para cada
segmento de fezes que escapava, ouvia-se um "ohhh, aperte mais!".
O resgate veio rápido. Expliquei ao bombeiro e este o levou ao
hospital, onde o paciente se recuperou da bebedeira e ganhou nova bolsinha.
A pressão moral exercida pelos que me cercavam foi imensa. A
quantidade de bobagens que falavam, procurando me orientar, maior ainda:
"Dê sal, abane, levante, comprima mais, põe pano na boca, puxa a lingua...".
Graças à encenação, pude ajudar e não sofri ameaças. Mas agora
entendo por que alguns colegas, ao flagrarem um acidente na rua, pensam
duas vezes antes de ajudar. Se chegarem à conclusão de que só farão
teatrinho, nem aparecem.
Todos esses relatos demonstravam, sem que eu percebesse, quão
intrincada a minha vida ia ficando com a medicina. Essa tendência nunca
mais seria modificada...
13Tribunal de Justiça de Goiás. Transcrição literal.

14KANDA, F;YAGI, E.; FUKUDA, M.; NAKAJIMA, K.; OHTA,T.;


NAKATA, O."Elucidação dos componentes químicos responsáveis pelo
mau cheiro dos pés". British Journal of Dermatology 1990; 122: 771-6.
STACK, S.; GUNDLACH, J. "Estudo do efeito da música country na
incidência de suicídio". Social Forces 1992; 71: 211-218. BAKKEVIG,
M. K.; NEILSEN, R. "Estudo do impacto da cueca molhada na resposta
termorregulatória e no conforto térmico em ambientes frios". Ergonomics.
1994; 37: 1375-89.
A vitrine da loja

"Você nunca tem uma


segunda chance de
causar uma primeira
impressão."

AARON BURNS

Um assistente da cirurgia sempre nos falava sobre a sua teoria da


vitrine. Para ele, nosso trabalho durante a residência ocorria dentro de uma
vitrine, como as das lojas de roupas, por exemplo. Os clientes do
estabelecimento assistiriam à exposição e escolheriam os seus produtos
baseando-se em seus defeitos e qualidades.
Nós não sabíamos, mas muitos dos chefes de departamento em
diversos hospitais eram os nossos próprios médicos assistentes ou
conhecidos deles. Quando precisavam de algum novo médico em seu
serviço, podiam escolhê-lo simplesmente observando-os na vitrine. É claro
que provas e análises de currículos são importantes, mas o que seria melhor
para um selecionador do que ter ciência prévia do temperamento,
comportamento e conhecimento dos seus candidatos em cenários parecidos
aos que iriam trabalhar?
As tarefas da residência eram muito árduas e sempre tentei executá-
las da melhor forma possível. Sem me dar conta, eu fazia uma espécie de
networking.
Quando decidi fazer medicina, um experiente ortopedista me disse
que pouco importaria a área que eu escolhesse, desde que fosse o melhor.
Evidentemente, ser competente é muito importante. Mas não acredito que ser
"o melhor" seja essencial.
Esse conceito de "o melhor", quando visto de perto, é nebuloso. No
fim das contas, todos buscam o sucesso. Mas este também pode ser
interpretado por uma série de ângulos diferentes. Muitos médicos de sucesso
que conheço não são nem de longe os melhores, mais ricos ou mais felizes
com a profissão.
Não nego a validade do conselho, mas aprendi a importância do
contato. Em outras palavras, quando meu filho me perguntar o que fazer para
se dar bem na vida, direi: "Seja ético, faça algo que o sustente e que lhe dê
prazer, pois assim ficará mais fácil ser competente e dedicado. E tenha QI —
é muito importante!".
QI, na nossa gíria, quer dizer "quem indica", ser bem relacionado.
Quase todos os meus empregos surgiram graças a indicações. Estando em
uma renomada instituição de ensino, demonstrando dedicação e
competência, além de um bom relacionamento, meu nome chegou aos
ouvidos de alguns chefes.
Os empregos que precisavam de uma entrevista ficavam mais
acessíveis se o chefe conhecesse o entrevistado. Outros serviços escolhiam
os seus candidatos por meio de provas escritas. Também ficavam mais
tangíveis se, além de conseguir uma boa nota, você fosse um dos que
soubesse a data da prova. É claro que nada era escondido, mas também
nunca vi um anúncio na capa de uma revista divulgando a data da prova do
hospital. Era comum ser avisado por algum daqueles personagens: "Haverá
uma seleção de médicos plantonistas no hospital X, na data Y. Você teria
interesse?". Eu tive, mas demorou...
Dez anos após terem ingressado em outras faculdades, todos os meus
amigos estavam advogando, construindo, projetando, arquitetando e tendo
filhos. Eu, dez anos após ter ingressado na Faculdade de Medicina, ainda
continuava às voltas com a residência de cirurgia. Apesar de ela requerer
período integral, a cada ano que passava o número das propostas de emprego
aumentava, assim como a minha vontade de cair na vida. Entretanto, os PFs
(plantões fora) eram malvistos pelos professores. Tínhamos de fazer
esquemas para que não atrapalhassem o nosso curso e que, ao mesmo tempo,
fossem compatíveis com o nosso grau de conhecimento.
Os residentes de primeiro e segundo anos, por vezes, começavam a
dar plantões de remoção de ambulância. Eram plantões mal pagos, mas
também tranquilos para que pudessem descansar. Com o passar dos anos, a
segurança ia aumentando e criávamos coragem para enfrentar plantões como
clínico geral emergencista. Mais tarde perdíamos essa intrepidez em clínica,
mas ganhávamos pujança em cirurgia. Aí, passávamos a dar plantões como
cirurgião de emergência em hospitais periféricos.
Porém, foi apenas ao finalizar a preceptoria (quinto ano de
especialização em cirurgia geral) que comecei, de fato, a me inserir no
mercado de trabalho e descobri que a vida era bem diferente do que eu
imaginava.
O cirurgião geral, por melhor que venha a ser, carrega,
indevidamente, uma imagem de profissional de segunda linha. Não deveria
ser assim. Entretanto, acaba sendo, pois a maioria dos cirurgiões gerais é
constituída por médicos que cursaram apenas os dois anos básicos de
cirurgia ou nem isso. Às vezes foram apenas estágios não reconhecidos pelo
Ministério da Educação. Não há vagas de residência para todos os que se
formam. Infelizmente, somos uma minoria de, aproximadamente, 50%.
Conheço vários colegas que não tiveram essa sorte e são extremamente
competentes, mas é claro que não representam a regra. Quanto melhor for o
preparo melhor tenderá a ser o profissional.
Para escapar um pouco desse rótulo, prestei a prova de especialista
em cirurgia do aparelho digestivo e virei o que chamam de "gastro". Ainda
assim, pude ver a realidade dos que me cercavam. Cirurgiões competentes,
com títulos acadêmicos, formados havia mais de vinte anos, dando plantões
para conseguir complementar a sua renda. Seus consultórios eram quase que
virtuais, vítimas de uma concorrência brutal com muitos outros médicos e
especialistas em qualquer coisa. A carga horária era sempre abusiva e a
responsabilidade, enorme. Trabalhavam em ambiente insalubre, com
remuneração indigna.
Cheguei à conclusão de que, para vencer na vida, poderia cursar
trajetos pedregosos ou pegar alguns atalhos, como grudar em alguém famoso
e ser o seu assistente. Tornar-me um superespecialista referência de
insulinomas da cauda do pâncreas ou de qualquer outra doença exótica. Criar
uma empresa para explorar médicos recém-formados. Ou, como ouvi numa
dica na rádio, candidatar-me a vereador. Segundo a paródia, seria um ótimo
emprego: mais fácil de entrar do que na Faculdade de Medicina, com
estabilidade, baixíssima exigência intelectual, carga horária inspirada no
livro O ócio criativo, bom salário, décimo terceiro, jeton e, até, mensalão
(como ficou conhecido o escândalo do esquema de compra de votos de
parlamentares).
Quanto a esses possíveis atalhos, sempre quis ser o doutor e não o
assistente do doutor. Sou honesto, gostaria de operar um pouco de tudo e
nunca quis ser um burocrata. Embalado por essas dúvidas, comecei a
procurar emprego.
Atestados

De boas intenções o inferno está cheio!

O meu primeiro emprego foi em um hospital simples, cujo público-


alvo consistia em beneficiários de planos de saúde básicos fornecidos pelas
empresas. Em outras palavras, 90% dos atendimentos envolviam
funcionários e seus respectivos familiares. A primeira coisa que me chamou
a atenção nesse emprego foi a quantidade de atestados que eles solicitavam.
Um número de atestados que quase alcançava o de receitas!
Sei como é desagradável trabalhar doente. Imagine um DJ tocando
com enxaqueca ou um motobói dirigindo com crise de hemorroidas! É claro
que as doenças podem ainda ser piores e, para que possamos gozar dos
nossos direitos quando aparecem, lançamos mão do atestado médico. Além
disso, os empregados tinham o dever de comprovar sua ida aos doutores e
justificar eventuais afastamentos por motivos de saúde às suas firmas. Esses
fatores explicariam uma enorme demanda pelo documento, mas descobri que
algumas pessoas também o solicitavam sem a devida retidão, o que acabava
nos criando um grande incômodo. Por quê? Por vários motivos que irei
abordar.
Uma das coisas que mais me frustravam era a solicitação de
atestados por queixas tolas. Quantas vezes ao darmos plantão gripados, com
febre ou muito cansados, atendemos alguém que solicita um "atestado para
dois dias", pois o nariz está escorrendo? Esses "atestados bobinhos" eram
solicitados com maior frequência pelos funcionários de menor patente. Essa
relação inversamente proporcional à hierarquia do cargo parecia ser uma
aplicação, na CLT, da velha lei de Gérson.
Segue a Lei de Gérson a pessoa que "gosta de levar vantagem em
tudo", no sentido negativo de se aproveitar de todas as situações em
benefício próprio, sem se importar com questões éticas ou morais.

WIKIPÉDIA
Outra coisa complicada era enfrentar um indivíduo que deseja
resolver os seus problemas pessoais com atestados. Não é raro ouvirmos a
solicitação de um "atestado para o dia todo", quando essa pessoa apenas
passou pelo médico das oito às nove da manhã e para trazer exames. Nesses
casos, a justificativa costuma ser assim: "Doutor, já que eu viria aqui,
aproveitarei para ir ao banco, à casa da minha prima e ao cartório. Gostaria
que o senhor justificasse o meu dia inteiro".
Se nos recusamos a dar esse atestado, ainda passamos por antipáticos
e injustos!
Como em qualquer lugar, os atestados para gripe, diarreia e outras
afecções corriqueiras são comuns. Entretanto, esse número se multiplicava
drasticamente em circunstâncias suspeitas, como na véspera de Natal e após
o Ano-Novo. Por que as pessoas ficavam mais doentes nessas épocas?
Lembro-me do ortopedista que atendeu um paciente queixando-se de
dor no tornozelo. Examinou e solicitou uma radiografia. Paradoxalmente, o
moço não queria se submeter aos raios X (normalmente eles querem, mesmo
que não sejam necessários). Por fim, o indivíduo pediu um atestado. O
médico afastou qualquer patologia mais séria, passou algumas orientações e
deu o atestado. O paciente agradeceu e saiu mancando da sala. Ao se
despedir, o ortopedista notou que a esposa e as filhas do atendido o
aguardavam ansiosamente na sala de espera. Até aqui não haveria nenhuma
novidade, se não fosse pelo fato de ser véspera da Páscoa e as crianças
estarem em trajes de banho e segurando baldinhos para brincar na areia.
Curioso, ele resolveu espiar aquela família indo embora. Não é que o
pai parou de mancar ao se aproximar de seu carro! Teria ele ganho um fim
de semana na praia em troca de alguns minutos de embromação, uma pitada
de radiação e um atestado médico?
Para viajar, às vezes as pessoas fazem coisas bem piores. Uma delas
era conhecida no pronto-socorro como "síndrome da desova do velhinho
enrolado no cobertor". Isso se caracterizava pelo abandono de um idoso,
com demência, no serviço de emergência, na véspera do feriado, alegando
sintomas inespecíficos: "Ele está mais apático do que o habitual e teve suor
frio ontem".
O médico examina, não acha nada (pois não há nada) e resolve
interná-lo para exames. Quando se toca, a família foi embora e só voltará no
domingo à noite para recolhê-lo...
No caso ortopédico era evidente a simulação. Isso muitas vezes não é
tão fácil de se descobrir, pois precisamos confiar no doente. Os sintomas são
subjetivos e, assim sendo, podemos ter muita dificuldade para definir a
veracidade de algumas queixas. Se a pessoa não se comunica, como no caso
do velhinho, fica ainda mais difícil. Como posso avaliar uma piora de
apatia?
Além disso, não é fácil deixar de medicar alguém que me diz estar
sofrendo de dor. Ainda não inventaram um aparelho medidor de sofrimento!
Sabemos que a dor é um sintoma difícil de se avaliar. Que o mesmo
procedimento cirúrgico pode causá-la com maior intensidade em alguns
pacientes do que em outros. Que a sensibilidade individual é variável e
precisa ser respeitada (uma jovem adolescente costuma reclamar mais de
uma martelada no dedo do que um ancião japonês).
Mas, para ter um atestado, alguns indivíduos inventavam ou
amplificavam os seus sintomas mesmo que os problemas fossem muito
tênues. Essa desonestidade nos irritava, pois, de modo geral, podemos
perceber quando alguém está com muita dor ou gravemente doente. A
pessoa não fala, fica lívida e sudoreica, com expressão de desespero. Não
quer conversa nem explicação, quer solução. Não ordena, implora.
É bem diferente de quando atendemos alguém que nos faz um
entediante relato de uma dor insuportável, mas que não quer nenhuma
medicação ou tratamento, apenas o atestado.
Depois de ver várias pneumonias fica mais fácil reconhecê-las, e isso
vale para a identificação dos embromadores em busca de atestados falsos. O
reconhecimento deles começava assim que entravam no consultório.
As pessoas que vinham ao hospital para pedir um atestado duvidoso
apresentavam um comportamento diferente das que realmente precisavam
dele. Agiam de forma singular e padronizada.
A maioria dos pacientes, quando chamados, simplesmente entrava na
sala e se sentava. O cumprimento se restringia a um bom-dia. Os que
tentariam forjar um atestado entravam na sala com a mão estendida para nos
cumprimentar, sendo desproporcionalmente simpáticos. Tentavam criar um
vínculo por meio desse comportamento. Nessa hora já acendia a minha
luzinha de alerta, que brilhava ainda mais quando os indivíduos falavam:
"Doutor, eu vou ser sincero com o senhor."
Relatavam uma história esquisita cujos dados, ao destrincharmos os
seus detalhes, não batiam. Indagações sobre sintomas associados eram
prontamente confirmadas, mesmo que fossem apenas armadilhas
arquitetadas por nós. O exame físico invariavelmente era normal ou
escancaradamente teatral e recusavam-se a realizar exames. Ao iniciar a
explicação do tratamento que seria adotado, percebia que os pacientes não
prestavam muita atenção ao que eu dizia e notava a angústia deles. Eles
queriam me dizer algo, mas eu não lhes dava oportunidade propositalmente.
Ao lhes entregar a receita, eles nem olhavam direito e já iam me
pedindo um atestado para dois ou três dias...
O limite entre o verídico e o inverídico não é fácil de ser estabelecido
e, na dúvida, o médico ao menos fingirá acreditar no que o paciente lhe diz.
Algumas histórias tristes não são inventadas e realmente ficamos muito
comovidos com elas. Mas nem por isso podemos "roubar um banco" ou
"fornecer atestados falsos" para ajudá-los. Os pacientes precisam entender
que isso é ilegal, além de, certamente, estar prejudicando alguém. Gostaria
de ilustrar os seus possíveis malefícios com duas breves histórias.
Um senhor contou ao médico que a sua madrinha falecera em Minas
Gerais e queria vê-la antes do sepultamento. Não poderia faltar ao emprego,
pois seu patrão era muito rigoroso e tinha medo de ser despedido. Confessou
ao médico que não estava doente e, explicando a sua triste história, pediu um
"atestado de três dias". Assim poderia se despedir da falecida. O plantonista
ficou sensibilizado e forneceu o atestado.
Imediatamente, esse mesmo senhor dirigiu-se ao diretor clínico do
hospital e contou o ocorrido exigindo uma punição. Ele não fez isso apenas
para sacanear o médico. Na verdade, esse senhor era dono de uma pequena
fábrica que, além de estar indo mal das pernas, tinha funcionários que, a toda
hora, apareciam com atestados do mesmo doutor. Assim, ficou demonstrado
que aquela tradicional expressão "não custa nada" custava o rendimento da
fábrica e custou o emprego desse colega...
O porteiro do prédio notou que o seu Nicolau não descia à portaria
havia dois dias. Apesar de ser bem idoso e de morar sozinho, ele não era o
tipo de velhinho que se enclausurava em algum canto. Raramente deixava de
aparecer na portaria para pegar correspondências, dar uma caminhada e bater
um papo com o zelador.
Estranhando tal atitude, o porteiro interfonou ao seu apartamento,
mas não obteve resposta. Tentou mais tarde, também sem sucesso.
Preocupado, telefonou para o filho do seu Nicolau e lhe explicou o ocorrido.
Pouco tempo depois o filho, Nelson, chegou ao prédio e tocou a
campainha do apartamento que, novamente, não foi atendida. Eles
chamaram um chaveiro e abriram a porta.
Ao entrarem no pequeno apartamento, puderam ver o seu Nicolau
caído de bruços no chão da cozinha. Estava pálido e imóvel. Nelson tentou
chamá-lo chacoalhando o tronco e gritando pelo seu nome, mas o velho não
parecia esboçar nenhum sinal de vida. Triste e aturdido, o filho tentou pensar
no que fazer.
Todo mundo um dia morrerá, mas nunca estamos preparados quando
isso acontece. Ele não sabia se ligava para o instituto médico legal, serviço
de verificação de óbitos ou resgate. Telefonou para o serviço funerário, que
orientou não poder fazer nada sem um atestado de óbito.
Como conseguiria um atestado de óbito? Teria de ir ao Instituto
Médico Legal (IML)? Ao Serviço de Verificação de Óbitos (SVO)?
Nelson resolveu ligar para um médico que era seu amigo desde os
tempos de ginásio. Explicou o ocorrido e perguntou se ele não poderia emitir
um atestado de óbito para o seu pai. O médico conhecia muito bem Nelson e
sua relação com o seu Nicolau. Ele jamais duvidaria de seu amigo ou
suspeitaria de assassinato, ainda mais em se tratando daquele velhinho
simpático e educado, com carinhosos e cativantes olhos azuis.
O médico sabia que, naquelas circunstâncias, o correto seria enviá-lo
ao IML. Realizariam uma necropsia para determinar a causa mortis,
afastando morte violenta. Ponderando sobre a situação do amigo, ele disse
que não havia necessidade em perder tempo levando o corpo a lugar algum.
Já houvera sofrimento demais por um dia. Como o seu Nicolau era
cardiopata, ele preencheria um documento colocando como causa da morte
um infarto do coração, bem provável naquela situação. Mesmo que o
diagnóstico não fosse o correto, achou que esse pequeno desvio ético seria
justificável para ajudar o seu amigo.
Havia, no entanto, um detalhe. Ele não poderia ver o seu Nicolau tão
cedo. Estava de plantão no pronto-socorro de um hospital privado e só sairia
às 19 horas. Para não atrasar os trâmites do funeral, perguntou ao Nelson se
ele poderia mandar alguém pegar o atestado no plantão. Não haveria
problema algum, afinal o hospital era apenas a duas quadras de distância.
Uma vez em poder do documento, o filho chamou o serviço funerário
para buscar o corpo. Nelson saiu do recinto assim que chegou o funcionário
da funerária com o caixão escolhido. Enquanto telefonava para os seus
irmãos e parentes em um cômodo contíguo àquele onde estava o falecido, o
rapaz da funerária deu início aos seus serviços. Assim que desvirou o
defunto, percebeu que algo estava errado.
Acostumado a ver cadáveres, notou que o corpo, apesar de pálido e
imóvel, não estava frio nem duro (rigor mortis). Intrigado, prestou mais
atenção e notou que o cadáver às vezes respirava, muito superficialmente.
— Meu Deus, ele está vivo! — correria para cá e para lá. — O que
vamos fazer?
O funcionário descobriu que o seu Nicolau ainda estava vivo e temia
que se ninguém fizesse algo, e rápido, ele realmente passaria a ser seu
cliente.
— Precisamos levá-lo ao hospital! — Mas como o removeremos?
Não é fácil carregar um adulto desfalecido por dois quarteirões! Resolveram
o problema do jeito mais prático e rápido possível. Jogaram o seu Nicolau
dentro do caixão e colocaram no carro funerário.
Juntos, o funcionário e Nelson tocaram o carro o mais rápido
possível para o hospital mais próximo, justamente aquele onde estava de
plantão o amigo médico. A cena seguinte, segundo relatos da enfermagem
do hospital, foi surreal.
O plantão não estava mais movimentado do que o habitual. De
repente soou a campainha da emergência, alertando que iria chegar uma
ambulância em alta velocidade. Nessa hora toda a enfermagem se mobilizou
e o corre-corre acabou chamando a atenção dos pacientes que ainda estavam
na sala de espera. Mas, em vez de uma ambulância, entrou um carro
funerário a toda velocidade! Será que alguém teria passado mal num
velório? Não! A surpresa ficou ainda maior!
As enfermeiras e os pacientes da sala de espera assistiram a um
apressado agente funerário retirar o caixão do carro fúnebre, colocá-lo em
cima de uma maca e empurrá-la velozmente em direção à sala de
emergência, gritando: "O falecido está morrendo! Alguém nos ajude!".
Cada um que chegava à sala de emergência surpreendia-se com
aquela cena: um paciente sendo reanimado dentro de um caixão mortuário!
Todo médico que por ali passava ficava curioso ao ver aquele defunto com
máscara de oxigênio, soro e punções. Até que fosse transferido para um
leito, foi um rebuliço.
Seu Nicolau ainda não tinha morrido. Sofrera um derrame e ficara
em coma por várias horas até ser atendido, mas depois de alguns dias veio a
falecer.
Um dos médicos que foi acionado para atender à urgência foi o
próprio amigo do Nelson, que, além de sofrer com o desespero do amigo,
ainda teve de suportar algumas brincadeiras de mau gosto, quando seus
colegas descobriram o atestado. Ele nunca mais quis dar um, do que quer
que fosse, sem antes confirmar pessoalmente o ocorrido.
VIP

"Que os pobres
continuem saudáveis
e que os ricos
continuem a pensar
que estão doentes..."
ou, se preferir:
"Enquanto há
dinheiro, há
esperança..."

O QI funcionou e, pouco tempo depois de trabalhar naquele hospital


dos atestados, comecei a dar alguns plantões em um bom hospital, de
renome. Lá pude entrar em contato com outra realidade. Embora fosse uma
exceção mesmo naquele local, atendi alguns pacientes VIP.
Diferentemente do CPX (cupincha de alguém importante) e do
"vipoide" (com delírio de VIP), a VIP é very important person, ou seja, parte
dos pacientes socialmente importantes, famosos ou endinheirados. Digo
parte, pois muitos (talvez a maioria) dos very important person são
extremamente frugais e discretos, como pude comprovar ao atender, por
exemplo, a esposa de um ex-presidente da república. Estes, para a sua
própria sorte, passam a ser atendidos no grupo dos standard.
Os caminhos para o diagnóstico e o tratamento das doenças podem
ser diferentes. Esse fato, associado à fragmentação do paciente de acordo
com as especialidades, me faz lembrar de um ditado: "Paciente que tem dois
médicos tem meio médico. O que tem três médicos tem um terço de médico.
O que tem quatro médicos não tem nenhum...".
Essa frase foi dita por um médico que estava doente. É extremamente
sábia e representa um fato ainda mais verdadeiro quando aplicado ao
paciente VIP.
Julgando-se mais importante do que os demais, ele solicita mais
serviços, exames e profissionais do que o paciente comum.
Mas o grande segredo, por eles desconhecido, é que, apesar de ricos
ou famosos, continuam sendo homo sapiens sapiens. Pasmem, mas a
fisiologia e a anatomia são idênticas às dos standard! Incrível, não? A única
coisa que muda será a sua investigação e o seu tratamento. Para o azar
dosVlPs, na maioria das vezes eles serão mais caros e dispendiosos, embora
atendidos com a mesma eficácia e, talvez, com um pouco mais de
complicações. Mas oVIP não se preocupa, pois desconhece os riscos e pode
pagar pelos exames. Dá até status falar que foi "submetido a uma
colonoscopia no Memorial, em Boston"!
Grande porcaria. Poderia ter se submetido ao mesmo exame
escolhendo entre dezenas de profissionais competentes, aqui mesmo e com
muito mais facilidades...
Ainda que perdulário, pelo menos o atendimento costuma ser
honesto. Mas se existir alguma margem para desonestidade, eles serão os
pratos prediletos. Ao ouvir esses pacientes conversando sobre exames e
terapias de última geração para resolver os seus corriqueiros problemas,
sempre me lembro de quando tirei férias em uma praia.
O lugar era lindo e não demorou muito para que os turistas
descobrissem seus encantos. Também não demorou muito para que os locais
descobrissem como explorar os seus turistas.
Um amigo me alertou para que tomasse cuidado com os rapazes que
dirigiam, na praia, as charretes para os turistas. Espertos, eles davam nó em
pingo-d'água. Seria prudente combinar os preços dos passeios previamente.
Estava com a minha esposa caminhando à beira-mar, quando passou
por nós uma daquelas charretes. Cauteloso, perguntei, antes de embarcar
numa canoa furada, quanto ele cobraria pelo passeio, para nos levar até o fim
da praia. Sabia que o preço habitual seria de 30 reais e ele disse exatamente
esse valor.
Mostrando a minha perícia, certifiquei-me de que aquele valor seria o
do frete e não por pessoa, como acabara pagando o amigo que me havia
alertado. Como o rapaz confirmou que o valor seria pelo veículo, topei.
Porém, quando retornamos ao local de partida, o moço me cobrou sessenta
reais. Indignado, perguntei:
— Mas não era trinta para os dois? — Sim, mas trinta para ir e trinta
para voltar... O paciente VIP corre o risco de encontrar médicos que fizeram
cursos com aqueles condutores de charrete...
Para que eu possa exemplificar a diferença entre o atendimento VIP e
o standard, contarei uma história parcialmente inventada.
Caso Standard — Jovem advogado colidiu seu Sedan médio contra
uma árvore em uma avenida qualquer há duas horas. Estava com cinto de
segurança, a uma velocidade de quarenta quilômetros por hora quando bateu.
É trazido pelo resgate ao pronto-socorro. O médico o examina atentamente e
não há nenhuma queixa ou alteração importante ao exame físico. Suas lesões
são apenas superficiais. Mesmo assim, ele fica em observação por algumas
horas e vai para casa com orientações. Dois dias depois, sentindo-se bem,
volta às suas atividades habituais.
Considere agora a mesma espécie, com o mesmo trauma e as mesmas
lesões, mas em outro contexto:
Caso VIP — Jovem pagodeiro colide seu Sedan alemão contra uma
árvore, em um balneário elegante, há duas horas. Estava com cinto de
segurança a uma velocidade de quarenta quilômetros por hora, quando bateu.
É trazido pelo resgate ao pronto-socorro. O médico o examina atentamente e
não há nenhuma queixa ou alteração importante ao exame físico. Suas lesões
são apenas superficiais. Mas o colega reflete: "E se justamente nele aparecer
depois alguma lesãozinha?". Ao mesmo tempo, o paciente quer que sejam
realizados "todos os exames". Sua família, muito angustiada, gostaria que
especialistas o avaliassem. A mídia cobra um boletim médico informando
seu estado clínico.
Sentindo o clima ao seu redor, o plantonista solicita um ultrassom de
abdome, uma tomografia de crânio e radiografias do corpo inteiro. Chama o
neurocirurgião, que comprova a normalidade da tomografia de crânio,
anteriormente avaliada pelo radiologista. Ele orienta um analgésico simples
e retorno a seu consultório dentro de sete dias, para reavaliação e tomografia
de controle. O cirurgião torácico não vê alterações significativas nas
radiografias, prescreve outro analgésico e inalações com soro fisiológico. O
cirurgião do abdome não ficou muito satisfeito com o ultrassom que sugeria
um pequeno "borramento" no fígado. Solicita, então, uma tomografia de
abdome. Esse exame confirma uma pequena lesão hepática que não causaria
nenhum problema (médico) caso não fosse identificada, uma vez que, pelas
suas proporções, é inócua. Mas, já que foi vista, o paciente ficará acamado
por sete dias. Assustada com a lesão do fígado, a família cobra a avaliação
de um hepatologista. Não há nada a fazer, mas para não parecer inútil, ele
receita vitaminas e pede exames da função hepática, que obviamente estarão
normais. O ortopedista não detecta lesões ósseas, mas acha melhor realizar
uma ressonância da coluna cervical. Com tantos analgésicos, ele não pode
mais descartar a presença de uma lesão pelo seu exame clínico.
Cada exame, uma angústia! E graças a Deus... mais um exame
normal! Sugere então um anti-inflamatório.
Passada a avaliação inicial, a família decide mudar de hospital, pois
quer ir para um mais famoso. Vão de helicóptero. Nesse novo hospital os
médicos concluem que os exames realizados não eram da melhor qualidade
e resolvem repeti-los com seu maquinário de última geração. Mostram,
então, para a família as lindas imagens de reconstrução em três dimensões da
pequena lesão hepática. Opa, opa, parece ter havido um erro; a lesão não era
de dois, e, sim, de três centímetros! Trocam de analgésico X por Y e mantêm
o paciente em repouso por cinco dias. O médico aproveita para comentar que
o colega do litoral devia estar desatualizado, pois no último congresso
europeu mostrou-se que o remédioY é 1% melhor do que o X.
A medicina é assim mesmo. Primeiro dizem que manteiga faz mal e
depois contradizem afirmando que a margarina é a vilã. Açúcar faz mal,
depois é o adoçante etc.
O paciente recebe alta após várias picadas nas veias, com gastrite
medicamentosa e dor nas costas devido à cama do hospital. Vai para a casa a
salvo, "graças aos vários exames de última geração que realizou", feliz com
a atenção que os vários médicos lhe dispensaram, satisfeito com "a cura".
Foi caro, mas fazer o quê? Precisava, né!
Resta apenas retornar aos consultórios dos especialistas, caso ainda
se lembre do nome deles, levando suas cinco receitas para não esquecer o
nome dos medicamentos. Após um mês de repouso, o paciente retornará às
suas atividades habituais, ainda com medo de o fígado voltar a sangrar...
É evidente que eu forcei um pouco a barra ao expor esse caso
hipotético, mas foi só um pouco. Os médicos são humanos e podem ficar
acuados como qualquer outra pessoa. Naturalmente, quando inseguros,
pedirão mais exames e tentarão dividir suas responsabilidades com outros
colegas. Ao tratar dos VIPs, muitas vezes é assim que se sentem.
Dessa forma, se você for um paciente VIP, agradeça a Deus pelas
possibilidades de escolha de que dispõe. Mas aconselho que, quando precise,
procure um bom hospital e principalmente um bom médico. De preferência,
solicite referências de fontes mais confiáveis do que de outro paciente VIP E
mais importante ainda: finja ser standard!
Caindo no mercado de trabalho e se espatifando...

"É fácil apagar as


pegadas; difícil,
porém, é caminhar
sem pisar no chão."
LAO TS

Eu já tinha trabalhado em vários locais na qualidade de plantonista,


mas agora arranjei uma forma de trabalho que ainda era inédita para mim: a
retaguarda de cirurgia.
Considerando que o hospital ficava do outro lado da cidade, era,
literalmente, um plantão à distância. Porém, os clínicos me acionariam
apenas quando chegasse algum paciente necessitando de uma avaliação
cirúrgica.
Assim que começou o emprego, iniciou-se a pior semana da minha
vida.
Se me chamassem, levaria, no mínimo, uma hora para chegar ao
hospital. Caso pedisse algum exame para definir a conduta, eu teria como
opções esperar pelo resultado ou gastar mais três horas no trânsito (voltar +
ir + voltar). Se a avaliação não resultasse num procedimento cirúrgico
qualquer, ganharia apenas 30 reais (que só receberia após dois ou três
meses). Se incluísse uma intervenção, receberia o que o convênio pagasse
por ela. Paradoxalmente, rezava para que não me ligassem. E estava certo. A
primeira vez já bastou para me convencer a largar o emprego.
Seu Alberto foi a primeira chamada. Era um jornalista de 40 anos
que, apesar de obeso, não possuía nenhum antecedente médico de
importância. Chegou com um quadro sugestivo de apendicite. Realizou uma
tomografia de abdome e exames de sangue que apontavam para o mesmo
diagnóstico. Baseado nesses dados, conversei com a família e indiquei uma
cirurgia.
Fiz um cortinho do lado direito e, apesar de ter encontrado pus, o
apêndice era normal. Então, abri a sua barriga pelo meio e descobri uma
diverticulite aguda no cólon. Como o seu cólon era muito comprido, ele
repousava do lado direito, em vez de fazê-lo à esquerda, e acabou simulando
uma apendicite perfurada.
Explicar o motivo das duas incisões e de uma colostomia, para o meu
primeiro paciente, que acreditava sair apenas com um cortinho, não foi fácil.
Mas, pelo menos, não pecaria por negligência. Visitava-o duas vezes por dia
sem, no entanto, parar com as outras atividades.
Depois de uma semana, ele recebeu alta e eu pedi afastamento. Eu
estava mais emagrecido e esgotado do que o doente. Não seria possível
exercer a atividade com a qualidade que eu desejava sem destruir minha
saúde ou acabar com os outros empregos.
Não posso negar que uma das minhas preocupações era justamente
com a profissão do paciente. Jornalista, ele poderia aumentar ainda mais a
minha dor de cabeça caso divulgasse uma versão fria e inconformada dos
fatos. Segundo o jurista Saulo Ramos: "Jornalismo, quando é bom, assegura
a tomada de consciência do povo em todos os assuntos. Mas, quando é ruim,
saia de perto! Nada existe de mais maléfico. Informa errado, insiste no erro,
parte em busca de prova para mostrar o certo e erra de novo; não se retrata,
falsifica fatos, inventa entrevistas, difama, injuria e autoelogia. É um
desastre sem remédio".
Ao contrário do que temia, o jornalista operado compreendeu o
ocorrido e tivemos um excelente relacionamento, pautado em sinceridade e
transparência. Mas bastaria um pouco de desinformação para me criar um
problema enorme.
Lembro-me, por exemplo, de uma denúncia na televisão sobre o
suposto roubo de órgãos no SVO, os quais teriam sido vendidos para
transplante. A moça narrava sobre a retirada das vísceras e a sua substituição
por serragem. Não é agradável assistir a uma necropsia nem sei como essa
pessoa teve acesso a isso. Mas esta é a rotina. E os rins estarão tão mortos
quanto o paciente. O doador cadáver precisa ter a morte encefálica
comprovada enquanto seus outros órgãos vitais ainda não morreram, pois, só
assim, servirão para transplantes. Caso contrário, não precisaríamos ficar
andando de madrugada com aquelas malinhas térmicas à procura de
potenciais doadores em hospitais...
Isso teria ocorrido no SVO e a repercussão foi maciça. A mídia,
leiga, veiculou essa bobagem. Como consertar o estrago?
Explicar algo a um jornalista pode não ser fácil mesmo no nosso
ambiente.
Certa vez, uma conceituada revista semanal resolveu fazer uma
matéria sobre o hospital. Nessa ocasião eu era o residente-chefe da cirurgia e
estava de plantão no pronto-socorro. O resgate trouxe uma criança de nove
anos que havia caído do quinto andar de um edifício. Ao entrar na sala de
emergência, ela ainda apresentava sinais vitais, porém eles desapareciam
rapidamente. O atendimento foi realizado por cinco médicos e quase dez
auxiliares comandados por mim. Precisamos intubar a sua traqueia, drenar os
dois lados do seu tórax, dissecar duas veias e passar sondas, enquanto
administrávamos concomitantemente soro e sangue.
A despeito de todas as manobras terapêuticas, o coração parou.
Sabíamos que, nesse momento, a chance de salvá-la era praticamente zero.
Mas não deixaria aquela criança morrer sem batalhar um pouco mais. Ao
mesmo tempo que abri seu tórax para coibir hemorragias no local e
massagear seu coração segurando-o em minhas mãos (forma mais eficiente
do que a tradicional massagem externa), orientei outro colega a abordar o
abdome e estancar a hemorragia hepática. Mas, como era de se esperar,
apesar de todo o nosso esforço, a criança morreu. Embora a sala de
emergência esteja preparada para tais atendimentos, ao seu término o cenário
é chocante.
Declarei o seu óbito e olhei lentamente para os lados, vislumbrando o
cenário de destruição ao nosso redor. No chão havia compressas
ensanguentadas, pares de luvas descartados, bolsas de transfusão vazias,
equipos, seringas, pinças cirúrgicas e uma enorme poça de sangue ao redor
da criança. Tudo parecia ser vermelho ou róseo, exceto o corpo da criança;
pálido, retalhado e iluminado pela potente luz do foco cirúrgico, que
evidenciava aquela tragédia.
Notei que algo destoava naquele cenário. Num dos cantos da sala,
um jovem de cabelos compridos (não muito comum entre os alunos da
época) parecia estar tão branco quanto o seu avental, talvez o único sem
manchas de sangue. Pasmo, segurava nas mãos trêmulas um caderninho e
um lápis. Eu não o conhecia. Dirigi-me até ele e perguntei-lhe se estava bem.
Respondeu que sim e identificou-se como repórter da famosa revista.
Por sorte, era um repórter de uma revista séria e não de um jornal
sensacionalista qualquer. Eu já estava imaginando uma manchete mais ou
menos assim: "Médico carniceiro opera criança em maca do pronto-socorro
sem anestesia!".
Se a interpretação de um texto pode ser tão variada, imagine a de
uma cena destas. Porém, poucos dias depois, li a reportagem na revista e,
para o meu alívio, ele não fez nenhuma colocação ignorante ou maldosa.
Havia entendido a lógica do atendimento. Surpreendeu-me a sua habilidade
em captar detalhes, como a minha angústia, por exemplo. Não foi fácil
decidir e indicar todos aqueles procedimentos, bem como comandar a
condução desse caso. Ele descreveu a atuação dos vários médicos
simultaneamente, mas com detalhes individuais!
Meu medo finalmente se dissipou. Embora soubesse que não houvera
nenhum erro no atendimento da criança, aos olhos de um leigo poderia
existir. Daí pra frente, até provar que focinho de porco não é tomada...
A mídia, como qualquer outra área de negócios, tenta vender
produtos que acredita serem vendáveis. Expõe o que dá audiência. Em
medicina, três coisas costumam dar muita audiência: grandes avanços
tecnológicos, tratamentos exóticos e erros médicos.
Desde que ajam de forma responsável, não vejo maiores problemas
na seleção desses temas. A grande questão é que, às vezes, a mídia veicula
como sendo grotesco e inaceitável algo que nem sempre é um erro (afinal,
errinhos bobinhos não dariam "Ibope").
Falar que um médico operou mil hérnias sem problemas é muito
mais insosso do que mostrar um caso dele que tenha evoluído com
hematoma. Faz-se tanto alarde que essa previsível complicação sofre uma
metamorfose aos olhos dos espectadores; transforma-se em um erro horrível.
Após a divulgação do fato, a reputação do profissional ficará injustamente
maculada. Na maioria das vezes, mesmo quando ele estiver eximido da
culpa, ela nunca ficará completamente limpa.
Sofri muito no caso do "apêndice" do jornalista. Pude sentir na pele,
de uma só vez, uma série de experiências. A angústia e a frustração do erro
de diagnóstico, a insegurança, o peso de ser "o" médico do caso, a
importância fundamental do bom relacionamento médico-paciente, nossa
fragilidade, nossa falibilidade. Tudo isso multiplicado pela nossa
"jornalistofobia". Enquanto tratei desse indivíduo, cansei de meditar,
frustrado, sobre a "injustiça" de acontecer um erro daquele justamente no
meu primeiro paciente privado! O tempo me mostrou que, na verdade, os
erros são muito mais frequentes do que gostaríamos que fossem. Aparecem
no terceiro paciente, no sétimo, no vigésimo, no milésimo...
Complicações

É complicado ter complicações!

"Urologista perfura intestino ao tentar retirar pedra do canal da


urina!" Erro médico sempre é terrível, mas vamos analisar esse caso,
aproveitando o fato de desconhecer seus detalhes.
Uma jovem foi submetida à retirada de um cálculo renal por
intermédio de uma microcâmera introduzida pelo canal da urina e... faleceu
devido a uma perfuração intestinal!
O meu primeiro impulso foi de indignação e revolta. Como alguém
que estudou anatomia pode furar o cólon entrando pela uretra? Se fosse
parente da doente e leigo ficaria revoltado. Como não sou, tenho o privilégio
de poder analisar o caso com menos paixão e de forma mais racional.
Muitas vezes, o cálculo é grande ou está muito aderido ao ureter
(onde a pedra se localizava), o que dificulta a sua retirada. Nesses casos,
pode ocorrer a sua perfuração em até 6% das vezes. Isso quer dizer que
inclusive o melhor profissional do mundo (para quem costumam ser
encaminhados os casos mais complicados e "perfuráveis") não escapará para
sempre do risco de cometer uma lesão. Como o ureter passa diretamente sob
o intestino grosso, este também poderá ser lesionado. Se sua ocorrência não
for percebida, o que não é impossível, a evolução clínica inadequada no pós-
operatório deverá chamar a atenção do urologista.15
Não posso atestar até aqui nenhum erro médico, apesar de você
provavelmente encarar essa complicação como tal. Se tudo foi realizado da
maneira preconizada e, mesmo assim, houve uma perfuração, trata-se de
uma complicação. Haveria erro se a perfuração tivesse ocorrido por
imperícia ou imprudência. Imperícia, caso descobríssemos que o colega não
era habilitado a realizar o procedimento. Imprudência, se ele houvesse
realizado a intervenção às pressas, sem as condições mínimas de segurança,
ou após ter dilatado suas pupilas em alguma consulta ao oftalmologista,
horas antes. Apesar disso, não descarto que tenha ocorrido um dos erros
mais comuns. Se a paciente evoluiu mal e o médico menosprezou seus
sintomas ou não a socorreu de forma adequada, incorreu em negligência.
Como você pôde perceber, às vezes não é tão fácil identificar um erro. E
muito mais difícil será erradicá-los.
As complicações e os erros continuarão existindo, assim como a
dificuldade em distingui-los. Essa diferenciação é importante e tentarei
explicá-la um pouco melhor.
Um paciente no pós-operatório de uma apendicite supurada evoluiu
com uma infecção de ferida cirúrgica. Abri os pontos da incisão cirúrgica,
drenei o pus e receitei antibióticos.
Meses depois, ao nos encontramos em uma festa, ele me perguntou:
— Doutor, numa boa: aquilo foi uma infecção hospitalar, não foi? Por
definição, era uma infecção hospitalar. Embora se admita que em até 40%
das cirurgias desse tipo possa aparecer uma infecção da ferida operatória, na
interpretação do paciente ela teria ocorrido em decorrência de um erro meu
ou do hospital.
Após eu ter respondido afirmativamente, ele me deu uma cutucada,
como se estivesse pactuando:
— Tranquilo... Ficará apenas entre nós dois... Às vezes é difícil para
o leigo entender que uma infecção possa surgir apesar de toda a higiene. Mas
elas aparecem e, desde que não tenha ocorrido uma quebra da técnica
operatória (não usou antisséptico, coçou o nariz durante a cirurgia...), não
caracterizam um erro, e, sim, uma complicação. Nós as detestamos. Além do
trabalho extra "evitável" que trazem, refletem nossas imperfeições e as
limitações da medicina, geram dúvidas e especulações nos pacientes e em
seus familiares.
Quando comecei a operar, tive a doce ilusão de que nada sairia
errado se realizasse tudo com capricho e carinho. Ingênua ilusão... Por mais
que apliquemos a melhor conduta cirúrgica possível e que imploremos, aos
tecidos biológicos, com muita educação, jamais adestraremos as células e
seus mecanismos de cicatrização. É evidente que complicações serão
maiores e mais frequentes nos cirurgiões irresponsáveis e incompetentes,
mas nunca deixarão de aparecer nas melhores mãos, o que também não
deixa de ser bom. Complicações, pelo menos, são didáticas e o aprendizado
em sua decorrência é muito mais sólido do que com os acertos. Assim como
com os erros, elas possuem um grande poder "humildogênico". Por isso é
que um dos melhores locais para controlar o insuflado ego do cirurgião é o
pronto-socorro. Ali, pacientes desnutridos e com doenças graves chegam
precisando de tratamento emergencial, impedindo a realização de um
preparo pré-operatório adequado. Nestes, é claro que os resultados serão
piores. Haverá mais infecções, vazamentos, sangramentos e, claro, óbitos.
As vezes ficamos tão deprimidos e inseguros com as mortes e complicações
sequenciais que passamos a operar apenas casos simples por algum período.
Assim, a probabilidade de algo sair errado é menor e o nosso ego pode voltar
a crescer. Quando atinge determinado tamanho e eleva a nossa autoestima, o
ciclo se repete e voltamos a operar casos graves.
Independentemente do estado psíquico ou de suas habilidades,
qualquer procedimento de qualquer médico em qualquer instituição tem a
sua taxa de complicações. Juntando essa constatação à medicina defensiva,
da qual em breve falarei, surgem coisas esdrúxulas, como uma das
conclusões de um simpósio do qual participei: "Não há benefícios médicos
que justifiquem o uso obrigatório de antibióticos nas cirurgias de
hemorroidas. Mas é melhor receitá-los, pois se, por azar, aparecer alguma
infecção, o juiz não entenderá o porquê de não terem sido administrados
preventivamente".
Lamentável... O consenso médico deveria servir de anteparo às
eventuais críticas e resguardar as boas condutas médicas, principalmente
quando ocorrem complicações. Aqui, o que ocorreu foi o contrário. Se
algum médico azarado tiver um paciente com uma infecção no pós-
operatório de hemorroidas, não poderá buscar proteção no consenso (desta
reunião), que, cá para nós, não foi nada científica. Saí do anfiteatro
pensando: "Estes médicos estão mais preocupados com o próprio ânus do
que com os dos seus pacientes...".
Mas, afinal, pensando em complicações, que mal poderia existir em
se aplicar um antibiótico?
Excluindo o fato de que o inútil é desnecessário, das questões de
custo e da seleção de bactérias resistentes, não podemos nos omitir dos
efeitos colaterais e idiossincrásicos. Idi-o-quê? Às vezes, tentando evitar
problemas, criamos outros piores...
Uma paciente foi internada com um tumor no crânio e a sua cirurgia
foi um sucesso. Os neurocirurgiões prescreveram, corretamente, um
antibiótico para prevenir infecções. Devido à medicação, ela desenvolveu
um terrível quadro de Stevens-Johnson. Trata-se da manifestação de uma
resposta extremamente exagerada do sistema imunológico do indivíduo,
devido a uma hipersensibilidade pessoal e imprevisível, que pode ser
desencadeada por vários fármacos. Nela, a pele do corpo todo e boa parte do
revestimento das mucosas se solta pela formação de bolhas, deixando a
pessoa em "carne viva" como se fosse um grande queimado. Ela quase
morreu; ficou internada por dois meses. Ainda bem que essa complicação é
muito rara, mas seria um erro caso o antibiótico fosse desnecessário.
Chamamos de Intracate o cateter que inserimos nas veias próximas
ao coração, designadas de veias "centrais". Esse acesso venoso possui várias
vantagens, de modo que basta entrar numa UTI para ver pacientes com esses
caninhos no pescoço. Existem algumas técnicas para inseri-los, todas
orientadas por pontos anatômicos preestabelecidos (mamilo, borda do
músculo do pescoço, entre outros), pois essas veias não podem ser palpadas
ou visualizadas. Assim, estimamos a sua posição por meio dos reparos
anatômicos (e um pouco de arte) para conseguirmos puncioná-las "às cegas".
Nem sempre é fácil. Quantas vezes senti a falta de uma forquilhinha
nos kits de lntracate, como aquelas que utilizam no agreste para achar água
no subsolo...
As taxas de sucesso são grandes, embora, como em tudo na
medicina, essas punções também apresentem suas desvantagens. Podem
furar o pulmão ou uma artéria que é praticamente aderida à veia, por
exemplo.
Quando eu era R5 de cirurgia, só me chamavam para passar esse tipo
de cateter quando os R1, R2, R3, R4 não tinham conseguido; algo totalmente
inusual. Esses pacientes acabavam ficando cheios de furos pelas tentativas
prévias, o que lhes conferia o apelido de "peneiras".
Claro que os peneirados sofriam consequências. Neles, apesar da
supervisão, grande experiência e cuidado, fiz algumas lesões. Também fiquei
sabendo de outras complicações, como perfurações pulmónares, hemorragias
gravíssimas e até morte. Esses casos críticos são raros, mas ficam bem
guardados na memória.
Uma situação terrível ocorreu na troca de um desses dispositivos.
Para minimizar os riscos de uma nova punção, a substituição é realizada por
meio de um fio-guia. Nesse método, inserimos um fio-guia que lembra a
corda de um violão por dentro do cateter e, depois, o retiramos. O trajeto da
punção é orientado pelo guia, que é então envolto pelo novo cateter. Este vai
sendo empurrado para dentro da pele até atingir o local original. No fim, o
fio-guia é retirado. Uma das táticas descritas para verificar se o fio está no
local adequado consiste na observação de uma espicula no traçado do
monitor cardíaco, assim que ele entra na veia e cutuca o coração.
Um paciente estava com febre diária. Pensando em uma
contaminação do cateter, optaram por trocá-lo. A técnica realizada foi
exatamente a descrita e realmente houve uma espicula. Mas esta
desencadeou uma arritmia irreversível que culminou com a morte do
indivíduo! Uma complicação.

15Projeto diretrizes, da Associação Médica Brasileira, 2001.


Erros

"Experiência é o
nome que cada um dá
a seus erros."
OSCAR WILDE

Quando iniciam uma anestesia, muitas vezes os anestesistas


demonstram a eficácia de suas medicações fazendo alguma brincadeira com
o paciente. Lembro-me de um anestesista que, durante a indução anestésica,
falou ao paciente:
— Começarei a injetar no Intracate e, antes que o senhor possa
contar até dez, já estará dormindo.
— Um, dois, três... — o anestesista começou a injetar o anestésico
pelo cateter. — ... quatro, cinco, seis...
— ... sete, oito, nove... — continuou injetando, sem nenhum efeito!
Incrédulo, injetou mais uma ampola. — ... vinte e três, vinte e quatro, vinte e
cinco... Antes que o paciente chegasse ao número 200 sem qualquer indício
de sono, o anestesista estranhou e resolveu puxar o êmbolo de uma seringa
conectada ao cateter para verificar a sua posição. Ficou surpreso, pois não
refluiu sangue (o que aconteceria caso estivesse dentro da veia), e, sim, o
equivalente a duas ampolas de anestésico branquinho... O cateter estava
dentro do tórax, onde a absorção do anestésico é muito lenta para surtir
efeito. Isso não teria ocorrido caso o anestesista testasse a localização do
cateter como manda o figurino, antes de administrar medicamentos. Isso foi
um erro médico.
Os famosos "imperícia, negligência e imprudência" deverão ser
combatidos a todo custo. Mas, apesar de todo o afinco, boa parte dos erros
continuará inevitável, pois não fará parte, necessariamente, de nenhum
desses conjuntos ou das complicações. Muitos acontecimentos só poderão
ser classificados como inadequados após o desfecho do caso, como no meu
primeiro paciente (aquele jornalista com diverticulite). Apesar de ter
seguido, corretamente, todos os passos para o diagnóstico e tratamento da
sua dor abdominal, descobri depois, amargamente, se tratar de uma
diverticulite. Se, logo no início, fosse possível prever esse diagnóstico, a
conduta certamente teria mudado para melhor.
Batizarei esses tipos de equívocos, muito presentes em nosso dia a
dia, de "erros informais".
Talvez você se pergunte indignado: "Os erros informais são tão
frequentes assim? Com toda a tecnologia disponível nos dias de hoje, ainda
existem dúvidas a respeito de determinada conduta ou diagnóstico?".
Os erros formais e os informais devem ser divulgados para que sejam
estudados e, dentro do possível, reparados, mas, principalmente, evitados no
futuro. Com esse intuito, nós e os assistentes nos engalfinhávamos
semanalmente em uma reunião em que expúnhamos as complicações e os
óbitos do serviço. Nela, não cabia nenhuma manobra do gato, pois o objetivo
consistia em analisar os casos "encacados" para tentar chegar a um veredicto
do que teria sido certo ou errado em sua condução.
Manobra do gato, ou cat's maneuver. os bichanos, após evacuarem,
escondem as fezes sob a areia. Desculpe-me pelo linguajar chulo, mas
quando um cirurgião faz alguma "cagada"e a esconde, está aplicando a
manobra do gato.
Não pense que havia unanimidade entre os especialistas. Uniformizar
algumas condutas e evitar novos erros informais é muito mais difícil do que
parece. Os vários colegas que frequentavam essas reuniões tentavam
alcançar esse objetivo havia mais de trinta anos, mas continuávamos a ter
nossas dúvidas e a errar diariamente, sem, no entanto, incorrer nos erros
formais. Por quê?
Para começar, sabemos que toda evolução tem o seu preço. "O
bumerangue não foi inventado partindo da compreensão dos princípios da
aerodinâmica... Esses e outros mecanismos foram alcançados por tentativa e
erro..."(Paul Davies). Embora na medicina não seja bem assim, apesar de
toda a ética e de toda a precaução, criamos e inovamos constantemente. E
quem inova está sujeito a se enganar, como já discorri sobre o início das
cirurgias laparoscópicas ou sobre o surgimento da ressonância magnética.
Mas mesmo que não sejamos ousados, equívocos sempre estarão presentes.
Segundo A. Gawande, um cirurgião, o funcionamento das pessoas
está em algum ponto da escala entre os previsíveis cubos de gelo e os
imprevisíveis furacões. Apesar do emprego dos mais avançados
computadores calculando milhares de operações por segundo, jamais
saberemos com antecedência se os atingidos serão haitianos ou dominicanos.
O mesmo ocorre com alguns aspectos da nossa fisiologia.
O médico não é mecânico nem você é uma torradeira! O médico não
estabelece um prazo de garantia nem o paciente vem procurá-lo portando um
manual de instruções.
Cada pessoa é um ser individual com características exclusivas e
inter-relacionadas. Um protocolo até pode estabelecer como tratar uma
úlcera hemorrágica, mas nunca orientará como tratar um senhor sangrando
com câncer de pâncreas, esofagite grave, úlcera gástrica, insuficiência
cardíaca e com o banco de sangue fechado!
Não existem dois casos iguais e qualquer abordagem jamais estará
imune a críticas. Entretanto, depois que o paciente morre na cirurgia, todo
mundo fala — com rara convicção — saber desde o início que o melhor
tratamento seria não operá-lo. Veja como é fácil ser "o médico do dia
seguinte"...
O código de ética médica considera o ato de acobertar um erro
médico antiético. Mas, infelizmente, alguns médicos adoram difamar e
criticar outros médicos, mesmo quando o que houve não constitui um erro, e,
sim, uma complicação ou fatalidade inevitável. Por isso, há um ditado que
diz: "Deus criou o médico e o diabo criou o colega'."
Além dos milhões de variáveis humanas, às vezes ocorre algum
problema tão inusitado, que nunca pensaríamos, antecipadamente, em como
evitá-lo.
Por exemplo, hoje existem várias soluções antissépticas. O álcool é
uma delas e o iodo-povidine, outra. Por que não associá-las? Surgiu, então, o
iodo-povidine alcoólico, um excelente antisséptico. Como é amarelado,
costumávamos usá-lo antes de um procedimento cirúrgico, para pintar o
paciente no local em que seria operado.
Depois de extrair o útero e fechar a barriga da paciente, o cirurgião se
lembrou de uma pequena lesão dérmica que ela queria retirar na mesma
ocasião, aproveitando a mesma anestesia. Como tinha saído do campo
operatório, ele pediu ao seu auxiliar que o fizesse. Tratava-se de um
procedimento muito simples, uma verruguinha na coxa. O cirurgião auxiliar,
com toda a sua maestria, passou o antisséptico alcoólico com uma mão e
cortou a verruga com a outra. Delicadamente, aproximou-se com a caneta do
bisturi elétrico e, para cauterizá-la, a acionou com um leve toque. Mas o
álcool ainda não tinha evaporado e — BUM! — a pequena faísca explodiu
numa labareda que subitamente atingiu a perna da paciente e a face do
cirurgião. Ele conteve o incêndio rapidamente, mas não evitou queimaduras
de primeiro grau. No outro dia, a paciente estava ótima, mas intrigada:
— Doutor, eu queria saber por que a cirurgia da verruga dói bem
mais que a do útero...
Porém, o cirurgião só soube responder após encontrar com o seu
auxiliar. A face avermelhada nacarada e o cheiro de sobrancelhas queimadas
o denunciaram. Seus amigos tentaram consolá-lo brincando que, pelo menos,
não ocorreria infecção no pós-operatório. Afinal, nenhuma bactéria resistiria
àquela flambada...
Não somos infalíveis. Apesar de muito estudo e dedicação, existem
situações em que simplesmente nos enganamos, esquecemos, escorregamos.
Somos humanos. Quantos tumores posso ter deixado passar despercebidos,
quantos remédios prescrevi por menos ou mais tempo, quantas doenças em
que não pensei ou simplesmente desconhecia? Quantas condutas recomendei
e, posteriormente, a mediciná passou a desconsiderá-las?
O diagnóstico da maioria das doenças é dado de acordo com um
colorido e amplo quadro clínico. Em outras palavras, a mesma doença
jamais se manifestará de forma idêntica, exatamente com as mesmas queixas
e alterações. Uma pneumonia pode dar febre ou não. Ter catarro ou não. A
radiografia de tórax pode estar alterada ou não. Em geral, juntando a história
clínica, o exame físico e os resultados dos exames complementares,
chegaremos a um mosaico de informações sugerindo um diagnóstico. Às
vezes, entretanto, o quadro não é tão claro e um exame falso-positivo ou um
falso-negativo (tendo em vista que nenhum exame é perfeito) pode sugerir a
conduta errada.
Certas doenças possuem exatamente a mesma manifestação clínica
em sua fase inicial. Muitas vezes, apesar dos exames complementares,
apenas a evolução clínica possibilitará o diagnóstico. Como não se enganar?
Não leve em conta o caso do interno que confundiu uma gestante em
período expulsivo com uma cólica renal e, ao contrário disso, pegue dois
renomados professores. Discuta com eles, separadamente, um caso atípico
de dor abdominal. Cada um pode achar uma coisa diferente. Mas, em geral,
mesmo que raciocinando por caminhos opostos, chegarão ao mesmo
diagnóstico. Os resultados podem ser diferentes, mas, em geral, similares.
Um dos dois deve ter se enganado na suspeita diagnóstica inicial, mas
nenhum dos dois errou na conduta referente à sua hipótese. Se não acertou,
reparou-a a tempo de não prejudicar o paciente. Essas pequenas "correções
de rumo" ocorrem a toda hora, pois também cometemos errinhos
constantemente. Entretanto, são praticamente inócuos e, algumas vezes,
como você pôde perceber, inevitáveis.
Não presenciei com frequência casos de negligência, imperícia ou
imprudência, mas vivenciei vários erros informais. Sendo humano, dispondo
de métodos limitados e atuando na incerteza, encaro isso racionalmente.
Todos erram em medicina, exceto os mentirosos e os que não têm a menor
experiência clínica. Entretanto, sempre tentamos indicar condutas que,
mesmo consideradas "erradas" a posteriori, prejudicarão o menos possível.
Mais uma vez, é melhor operar um apêndice "branco" do que postergar a
cirurgia e encarar um perfurado. Alguns apêndices normais pagarão o preço
dessa postura, contudo salvaremos mais vidas.
Algumas doenças que não necessitam de cirurgia podem simular um
quadro de apendicite. Se fossem diagnosticadas antes da intervenção,
poderíamos não ter operado. Mas às vezes, apesar de todos os exames, é
impossível sabermos disso até que abrimos a barriga e vemos um apêndice
normal (branco).
Se sabemos que continuaremos errando, como deveremos abordar o
tema com as nossas vítimas?
É muito mais fácil o paciente processar um médico mal-educado ao
descobrir que este o operou de apendicite "desnecessariamente"do que fazer
o mesmo com outro médico que expôs as suas angústias ao não conseguir
descartar o diagnóstico e explicou a necessidade de uma cirurgia exploradora
para minimizar os riscos de uma intervenção tardia. Mesmo assim, a
situação pode ser bem mais delicada. Sendo cirurgião, vou falar um
pouquinho de compressas e outros objetos...
Aviões não são feitos para cair, mas, apesar dos experientes pilotos,
da mais moderna tecnologia, de rigorosos protocolos e da supervisão por
competentes controladores de voo (não estou sendo irônico), eles caem.
Esquecer algo na barriga de um paciente durante uma cirurgia pode parecer
absurdo e, até mesmo, abstrato para quem não é do ramo. Como um
profissional bem treinado pode deixar um pano branco de 30 centímetros no
meio das tripas? Bom, isso é mais comum do que a queda de aviões...
Marcamos, prendemos as compressas, evitamos o emprego de gazes
dentro do abdome, conferimos o número de panos e revisamos os passos do
procedimento cirúrgico ao finalizá-lo. Entretanto, o cansaço, os
sangramentos, os erros de contagem, as gazes embebidas com sangue, o
revezamento de equipes, as incisões pequenas, a barriga-d'água e uma série
de outros fatores jogam contra o médico. Essa é uma preocupação tão
constante que nos atrapalha até o sono.
Lembro-me de estar no conforto médico esperando pela minha
paciente, quando o médico ao meu lado acordou do seu cochilo, gritando:
— Putisgrila, deixamos uma compressa atrás do fígado! Ele, sabe-se
lá por que, recordou e acordou a tempo de voltar à cirurgia e retirá-la, antes
que seus auxiliares fechassem o abdome...
Mesmo com todo o cuidado do mundo, o aumento do número de
"horas cirúrgicas de voo" contribuirá para que isso, em alguma ocasião,
aconteça.
Quando esse experiente cirurgião procurou o decano professor para
compartilhar a frustração, em vez de uma repreensão, percebeu
compreensão: "Bem-vindo ao clube...".
Segundo esse catedrático, todo cirurgião experiente teria participado
de algum evento parecido, direta ou indiretamente.
Ao ocorrer um desses problemas, os médicos revelam ou mentem ao
paciente, seja distorcendo os fatos, seja ocultando-os. A decisão será
individual ao avaliar sua consciência.
Um cirurgião esqueceu uma compressa na barriga do seu paciente
durante uma cirurgia de emergência. Exames no pós-operatório
demonstraram a existência do corpo estranho e o médico relatou a
descoberta ao doente, explicando a necessidade de um novo procedimento
para sua retirada. É evidente que o relacionamento entre os dois era muito
bom. Alguns médicos poderiam preferir abordar dizendo ter descoberto
qualquer outro problema que necessitasse de uma nova intervenção, mas
estariam mentindo. No pós-operatório, ao visitar seu paciente na enfermaria,
o médico começou a narrar os detalhes da última cirurgia, quando foi
interrompido pelo próprio doente:
— Pshhh. Fale baixo! Percebendo a perplexidade do médico,
explicou: — Esqueceu-se de que sou advogado? Se o vizinho souber que o
senhor esqueceu um pano em mim, vai questionar por que eu não o estou
processando!
Outras vezes, aplica-se a manobra do gato e nada é comentado... O
plantão no pronto-socorro era muito movimentado. A toda hora chegava um
baleado. Diziam que se você jogasse alguém para cima e atirasse no
indivíduo, pouco importaria o ângulo do disparo ou a posição da vítima, pois
a equipe já teria operado algum paciente com um trajeto de bala similar.
Nesse dia, porém, ocorreria algo inédito.
Chegou um homem praticamente morto, com um tiro na região do
coração. A equipe inteira se mobilizou para tentar salvá-lo. Enquanto
enfermeiras pegaram veias para dar soro, um médico intubou a traqueia e
outros iniciaram uma toracotomia de emergência. Em outras palavras,
abriram o seu peito do lado esquerdo até acessar o coração e os pulmões em
questão de segundos. Essa manobra é indicada em casos extremos, pré-óbito,
muito longe das condições ideais. Precisa ser rápida e eficaz, sem frescuras.
Diferentemente das cirurgias a que estamos acostumados a ver, não ache que
o cirurgião irá se escovar, se paramentar, pintar com antisséptico o tórax do
doente, fixar os campos, testar o foco, o bisturi elétrico e o aspirador para,
finalmente, começar a incisão. Na maioria das vezes, ele calça uma luva,
veste um avental, pega a lâmina do bisturi na mão e corta o tórax de uma só
vez. Se conseguir salvar o paciente, depois verá o que fazer.
A situação é tão dramática que me lembro claramente da primeira
vez em que salvei alguém com uma toracotomia de emergência, o que é
muito raro. Abri o tórax, costurei o coração e, para a minha surpresa, o
paciente começou a reagir. Nessa hora, fiquei meio perdido me perguntando:
"E agora, e agora, o que eu faço?" É curioso, mas normalmente depois de ter
feito tudo o que descrevi, o paciente morria. Era com isso que eu estava
acostumado. Mas e agora que o paciente viveu; o que eu faço?
Voltando à história, o baleado começou a dar sinais de vida após as
manobras de reanimação com o peito aberto. Rapidamente o transferiram da
sala de emergência para o centro cirúrgico, onde outros da equipe estavam
preparados para recebê-lo. Em campo cirúrgico foram revisadas e reforçadas
todas as costuras confeccionadas na sala de emergência. Os cirurgiões se
preparavam para fechar o peito do doente, quando ouviram uma pergunta
vinda da porta da sala de operações, muito estranha para aquele momento:
— Pessoal, alguém viu o meu relógio por aí?
Era o médico da sala de emergência, preocupado com o presente que
recebera havia poucos dias de sua noiva. Ele o perdera durante o
atendimento emergencial. Como fizera a massagem cardíaca segurando o
coração com as mãos (massagem intratorácica) na sala de emergência, quem
sabe algum dos colegas teria visto seu relógio...
A pulseira do relógio se abriu durante a toracotomia e, no meio da
confusão, ele caiu dentro do tórax, ficando escondido atrás do coração.
Não sei quem se espantou mais: o cirurgião em campo, ao encontrar
o relógio, ou o da sala de emergências, ao ouvir a resposta: "Por acaso é este
prateado, aqui no saco pericárdico?".
O paciente foi salvo e, para o restante de sua vida, sua ausculta
cardíaca continuou: "Tum-Tá, Turn-Ta". Mas poderia ser "Tic-Tac, Tic-
Tac"...
Não acredito que haveria algum benefício em contar o ocorrido ao
paciente, como também não vejo nenhum malefício em ter ocultado. Minha
postura geralmente é revelar o que ocorre, independentemente do que tenha
sido, mas, como viram, pode não ser a regra.
Como já disse, em algumas ocasiões o médico, preocupado com
problemas legais, acaba mentindo ao paciente. Contudo, às vezes, mentir
torna-se quase impossível.
A delicada cirurgia fora um sucesso. O paciente recebeu alta
sentindo-se muito bem. Entretanto, ainda relatava uma estranha queixa. Ao
se curvar para frente, sentia uma pontada no estômago. Era como se nessa
posição algo o pressionasse. Por outro lado, ao se inclinar para trás (o que
normalmente repuxa os pontos), não sentia dores. Inicialmente, essa
reclamação não mereceu muita atenção. Ele sobrevivera, o que em seu caso
já teria sido um grande mérito.
Era um paciente muito simplório, típico de hospital público. Tímido,
quietinho e sempre agradecido com a melhora dos sintomas que a cirurgia
havia lhe proporcionado. Vê-lo no ambulatório era sempre prazeroso... até
ouvir no fim da consulta a sua persistente queixa:
— Doutor, eu continuo sem poder me abaixar para amarrar os meus
calçados. Dá uma pontaaada no estômago!
Nas vindas subsequentes ao ambulatório, contava que a cirurgia
estava ótima, cada vez melhor. Mas a queixa persistia. Finalmente intrigado
e incomodado, o médico resolveu pedir raio X de abdome. Para sua surpresa,
a grotesca imagem da sapata aparecia lá.
O que vem a ser isso? Quando o abdome está com suas alças
intestinais muito distendidas, podemos ter dificuldade para fechá-lo. Os
pontos responsáveis pela contenção das vísceras são aplicados num tecido
firme (aponeurose) que circunda os músculos anteriores do abdome. Para
passar esses pontos sem correr o risco de furar as alças distendidas com a
agulha de sutura, podemos utilizar a sapata. A sapata é uma espátula de
metal na forma e do tamanho de uma sola de sapato que pode empurrar as
alças para baixo. Estando por detrás dos músculos, a agulha raspará nela e
não no intestino. Próximo ao término da sutura, retiramos a espátula e
redobramos nossa atenção ao dar os pontos. Naquele dia, o médico deve ter
se distraído e esqueceu-se de retirá-la!
Se já foi inusitado esquecê-la, a situação ficou ainda mais pitoresca
com a história que o médico inventou.
Dizem que a melhor defesa é o ataque. Pois bem, antes que o
paciente pudesse perceber o que ocorrera, levou uma bronca do seu doutor:
— Seu João, o senhor ainda não devolveu a sapata? Olha ela aqui
dentro da sua barriga. Não tem como mentir, eu sei que o senhor a levou
para casa! Como o senhor pôde ficar com ela tanto tempo assim? Não sabe
que outros pacientes também precisam? Pelo amor de Deus! Vamos removê-
la o quanto antes!
O paciente pediu mil desculpas pelo incômodo. Jurava que não havia
sido avisado e estava disposto a ajudar. Foi operado novamente e recebeu
alta. Ao se despedir do médico, para mostrar o benefício dessa última
intervenção e provar sua gratidão, curvou-se como um japonês e foi-se
embora...
Algumas consequências negativas...

"Uma anastomose
não realizada não
apresentará
vazamento."

A. MoosA

e acredito, até, que aumentarão. Isso se explicaria pelo fato de cada


vez mais médicos terem uma formação precária e segmentar. Além disso,
paradoxalmente, a maior quantidade de exames solicitados pode distanciar
os doutores de seus pacientes, aumentando as possibilidades de erros. Estes
serão mais divulgados e explorados. Não digo isso apenas em função da
liberdade de expressão, da internet ou de outros avanços. Alguns segmentos
adorariam que fôssemos, em certos aspectos, iguais aos norte-americanos.
Por exemplo, seguros contra erro médico.
Juridicamente, acho que os nossos maiores problemas, parcialmente
inflados pela mídia, são a imagem de infalibilidade a nós atribuída, a
inexatidão de nossa ciência, a confusão entre erro e complicação e o
desconhecimento a respeito da existência de erros inevitáveis.
Há um estudo que analisou as várias causas de aumento no número
de processos contra médicos nos Estados Unidos.16 Duas me chamaram a
atenção:
• O desaparecimento do médico generalista de família, que possuía
um relacionamento com os seus pacientes muito melhor do que os doutores
atuais (na maioria dos casos o processo decorre de problemas no
relacionamento médico-paciente).
• O próprio surgimento de seguros para médicos contra má prática!
Você conhece os norte-americanos. Nos Estados Unidos, até a capa
da fantasia de Super-homem precisa ter uma mensagem alertando sobre os
riscos de tentar voar.17 Deve ter ouvido falar da norte-americana Stella
Leibeck (81 anos), que se queimou com café enquanto bebia e dirigia ao
mesmo tempo — ela ganhou uma indenização milionária do McDonald's por
isso. Ou talvez do norte-americano Terence Dikson que, acidentalmente,
ficou preso durante oito dias na garagem de uma casa que assaltava,
comendo ração de cachorro e bebendo refrigerante
As complicações e os erros informais continuarão a surgir,
permitindo que nos aperfeiçoemos. Os erros clássicos e grosseiros também
seguirão quente — ele recebeu quinhentos mil dólares de indenização por
angústia mental indevida!
Nesse mesmo país, um dos parâmetros legais para se estabelecer má
prática é a ocorrência de um efeito adverso relacionado a um tratamento.
Oras! Todos os tratamentos têm, em maior ou menor grau, algum efeito
adverso! Nunca seria médico lá. Basta aparecer alguém mal-intencionado e
teremos processos até em tratamento de frieira!
Nos casos que vão a julgamento nos Estados Unidos é muito comum
que o júri enxergue o paciente como vítima. Ao mesmo tempo, vê o médico
como alguém segurado por alguma grande empresa que poderá arcar com as
indenizações sem maiores problemas. Para se ter uma ideia, no caso do
clínico geral, o preço do seguro contra má prática subiu 17% em 2000, 10%
em 2001 e 25% em 2002! Os processos envolvendo indenizações maiores do
que um milhão de dólares subiram de 34%, em 1996, para 52% em 2000. É
muito mais fácil ficar milionário processando médicos norte-americanos do
que trabalhando honestamente! Antes de 1960, apenas um a cada sete
médicos seria processado durante sua carreira inteira. Atualmente, um a cada
sete médicos é intimado a cada dois anos!
Esses dados assustadores trouxeram algumas consequências
positivas. Os advogados ficaram mais ricos, as seguradoras criaram um novo
nicho de atuação, cresceram e geraram empregos. Talvez mais justiça tenha
sido feita. Mas também houve consequências negativas. A pior delas incidiu
justamente sobre os pacientes: o surgimento da medicina defensiva.
Em vez de ajudar o paciente, o seu objetivo primário é defender o
médico de eventuais "pepinos" legais. Com o aumento da cobrança e da
intolerância aos erros médicos (mesmo para com os inevitáveis), é natural
que o profissional tente se proteger gastando seu dinheiro com seguros e o
do paciente com exames desnecessários.
Com a medicina defensiva, os médicos deixaram de procurar uma
doença para o paciente e passaram a excluir diagnósticos que poderiam
complicar juridicamente a vida deles, médicos. Se é que procuram por
alguma moléstia, isso inclui apenas o grupo de patologias que faz parte do
seu "rol de atuação" (afinal, são especialistas!).
Uma dor de cabeça que poderia ser um tumor em apenas 0,1% das
vezes deveria receber, segundo a medicina clássica, um analgésico. Mas,
com a defensiva, o raciocínio se altera: esse sintoma deverá ser amplamente
investigado, afinal em 0,1% haverá um tumor (e se eu apenas receitar um
analgésico, serei processado!). Por isso, fica cada vez mais comum ouvirmos
"excluímos esta possibilidade" em vez de "suspeitamos de tal doença".
Desse modo, ninguém mais dá um passinho sequer fora de sua
superespecialidade.
Passamos a presenciar um neurologista que afasta causas cerebrais de
dor de cabeça e "se livra" do paciente, encaminhando-o ao bucomaxilo, o
qual descarta causas dentárias com novos exames e o encaminha ao otorrino,
que descarta sinusite e o encaminha ao oftalmo... até que um aluno de
medicina resolve examiná-lo e, ao medir a sua pressão arterial, fica surpreso
com um alarmante vinte e dois por dezessete!
O maior número de médicos avaliando o mesmo paciente, com um
número cada vez maior de exames, não aumenta necessariamente a taxa de
sucesso do tratamento, mas certamente eleva o seu custo. Quem paga, no
fim, é o doente.

16FRIEDNBERG, R. M. "Malpratice Reform". Radiology 2004;231:3-6.

17NorrmcvrrT,W. O prêmio Darwin: a evolução em ação. Rio de Janeiro:


Frente, 2001.
... e algumas consequências positivas

"No ano passado,


quase 100 mil
pessoas morreram de
erros médicos e, em
metade dos casos, a
causa foi banal:
médicos que não
foram claros e
escreveram com letra
ilegível a receita,
levando o paciente a
tomar doses erradas
de um remédio".
Tommy Thompson,
Secretário de Saúde
dos EU no primeiro
governo de George
W. Bush

Independentemente da definição, a preocupação com a incidência de


malefícios iatrogênicos e gastos "evitáveis" está cada vez mais em pauta.
Algumas pesquisas falam em 180 mil mortes por erros médicos, por
ano, nos Estados Unidos, dando um prejuízo anual de quatro bilhões de
dólares. Embora seja factível, não é tão fácil matar alguém com o dobro do
analgésico, a metade do anti-hipertensivo ou com mais dias de algum
antibiótico. Garimpar erros médicos é uma tarefa consideravelmente árdua,
pois, além de não serem divulgados e uma vez excluídos os extremos, o seu
conceito é muito relativo.
Ao analisar a metodologia dessas pesquisas, veremos que são pouco
precisas e sempre recheadas das expressões "provavelmente", "estima-se",
"acredita-se". De qualquer forma, será sempre louvável qualquer tentativa de
minimizar os erros e os gastos com suas consequências. Uma das formas
mais eficazes para reduzi-los é por meio das padronizações.
Há alguns anos fiz um curso de paraquedismo. Entre várias outras
coisas, alguns detalhes me chamaram a atenção. Os comandos dos
paraquedas são colocados rigorosamente nos mesmos locais e têm formatos
similares, independentemente da marca ou do modelo. Isso, obviamente,
inclui o manete de abrir e o de descartar o paraquedas. Ao puxar a cordinha
da esquerda, o indivíduo não descartará por engano o paraquedas, mesmo
sendo um modelo japonês ou italiano. Padronização universal!
Ao saltar do avião, tínhamos que verificar a adequação de cada passo
da abertura do velame. Eles poderiam simplesmente nos enumerar os itens a
serem conferidos quando o paraquedas se abrisse, mas isso não seria prático
e o resultado variaria muito de pessoa para pessoa. Assim, todos precisavam
decorar e seguir os passos da checagem como se fosse uma reza, para fazer
tudo igualzinho e sem esquecimentos: "Velame retangular, cordas esticadas e
desembaraçadas, slider baixo, flair!".
Tente guardar na memória as palavras: hoje, nosso, dia, cada, pão.
Não é mais fácil decorar "pão nosso de cada dia"? Check list!
Até hoje, não me esqueço da frase em caso de pane: "Olha a
bananinha, olha o punho, puxa a bananinha, puxa o punho e volta à posição".
("Bananinha" era a manopla para descartar o paraquedas principal e
"punho", o responsável por abrir o reserva) nem do que fazer se os cabos do
velame estivessem torcidos: "Chuto para o lado, chuto para os lados até
destorcer"... Protocolos de conduta!
Os paraquedas eram conferidos antes que entrássemos no avião,
assim como o nosso nome. Esse rigor num hospital poderia evitar aqueles
procedimentos em que pacientes foram trocados, assim como foi trocado o
lado de suas intervenções. Rechecagens e identificação rigorosa!
Tudo foi padronizado porque, quando algo dava errado no processo
evolutivo do desenvolvimento dos paraquedas, as vítimas. não voltavam
mais para explicar o que falhara. Muitos devem ter morrido até que a
bananinha fosse padronizada!
Apesar de tudo isso, só parei de pular de paraquedas por um motivo:
o avião do aeroclube caiu. Pelo que fiquei sabendo, a sua asa teria soltado
em pleno voo! A causa teria sido falta de manutenção...
Você já reparou que o plugue do mouse não encaixa na tomada da
impressora? E que suas cores são diferentes? Por que não fazer algo assim
na medicina como um todo?
Não faz muito tempo que as padronizações começaram a surgir na
medicina. Já relatei histórias de troca de medicamentos. A tendência agora é
que as ampolas sejam de cores diferentes. Medicamentos que não podem ser
misturados vêm em kits que não permitem conexões inadequadas. A
mangueira de oxigênio é verde e não se conecta ao bico de ar comprimido,
que é amarelo. Estamos padronizando tudo o que é possível e impossível, a
começar pelos processos de acreditação hospitalar. Embora exista uma
tendência em estandardizar o atendimento médico, suas rotinas e condutas,
este ainda é o passo mais difícil. De qualquer forma, essa caminhada já
começou e um dos seus primeiros passos foi com o ATLS.
ATLS significa advanced trauma life suport (suporte avançado da
vida no trauma). É um curso para médicos de todas as especialidades, que
tem como objetivo aprimorar o atendimento emergencial das vítimas de
traumatismos (queda, atropelamento etc.). Considerando que o trauma é a
terceira maior causa de mortes, incidindo principalmente sobre a população
jovem e produtiva, podemos perceber a sua importância.
A história do ATLS é interessante. Em 1976, J. K. Styner, um
ortopedista, sofreu um acidente com o seu avião numa zona rural de
Nebrasca, Estados Unidos. Sua esposa faleceu na hora e ele sofreu sérias
lesões, assim como seus filhos. Sendo médico, percebeu quão inadequado
foi o atendimento prestado à sua família. Não por erros, mas por falta de unl
protocolo específico. Decepcionado, porém decidido, resolveu criar uma
forma lógica, eficaz e universal de lidar com essas situações. Com a ajuda de
clínicos, ortopedistas e cirurgiões, ele plantou a semente desse curso, que
hoje é aceito e difundido no mundo inteiro. Além do enorme me," rito por
ter criado uma forma altamente eficaz no atendimento do trau ma de
qualquer natureza (o atropelado, baleado, queimado são atendidos com as
mesmas prioridades), o curso foi pioneiro em seu formato. Dife—
rentemente dos tradicionais, incluía a prática por meio da simulação de
vítimas em cenários de trauma. Voluntários maquiados eram orientados para
simular determinadas lesões e sintomas enquanto eram atendidos pelos
médicos em treinamento. Para se ter uma ideia, até atores passando por
parentes desesperados ou representando o papel de padres surgiam nos
cenários. Esse pequeno truque mostrou favorecer um altíssimo índice de
retenção dos conhecimentos.
Assim como no paraquedismo, o ATLS começou a difundir algumas
"rezas", como o famoso ABC do trauma (Air way, Breathing e Circulation),
seguido pelo "choca e checa, choca e checa" do curso de suporte avançado
em cardiologia (aplicar o choque no coração e checar se o pulso voltou).
Essas novidades foram, sem dúvida, muito vantajosas para os pacientes e
também para os médicos, que passaram a trabalhar seguindo um mesmo
formato.
Muitas dessas estandardizações surgiram após complicações
extremamente didáticas.
Na maioria das paradas cardíacas, o coração entra num ritmo que I
chamamos de fibrilação ventricular. Quando olhamos para um coração nesse
ritmo, ele parece tremer como uma gelatina ao ser chacoalhada. Isso ocorre
porque, apesar de suas células musculares ainda estarem contraindo e
relaxando, perderam a sincronia. Assim, o coração não bate, ele vibra e o
sangue não circula. A forma mais efetiva para devolver a sincronia é
aplicando um choque no coração (desfibrilação elétrica). O choque não faz
as células voltarem a se contrair. Ele simplesmente as paralisa por um breve
momento, permitindo que voltem a se mexer de forma compassada. Mas o
choque pode levar a arritmias graves se empregado quando não há fibrilação.
Certa vez, após diagnosticar fibrilação ventricular, o médico aplicou
um choque no peito do paciente. Para a sua surpresa, o coração voltou a
bater ao mesmo tempo que o outro médico, que o auxiliava, caiu no chão
desfalecido. Ao socorrê-lo, percebeu que também se tratava de uma parada
cardíaca!
Por uma breve distração, esse auxiliar não se afastou da maca na hora
da descarga elétrica. A corrente o atingiu fazendo com que as suas células
cardíacas se desorganizassem e entrassem em fibrilação. Deve ter sido muito
estranho para os pacientes que assistiam ao evento ver o médico chocar o
paciente e depois chocar o seu próprio colega de trabalho!
Por sorte, ele imediatamente voltou à consciência e ainda queria
ajudar na reanimação do primeiro paciente. Graças à competência do
médico, ambos foram salvos, mas os dois poderiam ter morrido. Devido a
esse e a outros relatos similares, antes de aplicar o choque, é obrigatório
dizer: "Todos afastados? Um, dois, três e já!".
Parece bobagem termos que memorizar algumas dessas frases, mas
na hora do estresse, a coisa tem de sair por reflexo e fluir sem barreiras. Não
adianta todos estarem acostumados a essa sequência e quem for aplicar o
choque gritar: "Todos afastados? Um, dois já!" — o correto é "Um, dois, três
e já!
Todo esse esforço com cursos, uniformizações, reciclagens, controle
de qualidade é excelente, mas basta viver uns dias como médico para
perceber que desastres acontecem das formas mais inusitadas e
imprevisíveis, os quais muitas vezes são inevitáveis.
Num antigo pronto-socorro, existiam várias células, cada uma com
dois leitos. Como eram retangulares e tinham paredes ornadas de azulejos
azuis que lembravam um banheiro, esses ambientes foram apelidados de
boxes.
Em um dos boxes, havia dois pacientes. Um deles, alcoolizado, caíra
da própria altura, batendo a cabeça, e estava confuso. O outro sofrera um
trauma craniano por acidente de carro e mantinha-se em coma. Como esse
paciente comatoso não respirava adequadamente, foi conectado a um
aparelho de respiração. O respirador era (para variar) o velho aparelhinho já
descrito antes.
A localização dos boxes era estratégica, pois davam de frente para o
sofá do médico, onde ele, ou alguém da enfermagem, vigiava os pacientes.
Isso era muito importante naquela época, quando os monitores eram raros e
insuficientes.
Um residente estava sentado no sofá escrevendo quando percebeu
que o alarme do monitor conectado ao paciente com traumatismo estava
apitando. Parada cardíaca!
Ao se aproximar do leito, notou que o barulho do respirador havia
mudado do cíclico "tunsch-tá...tunsch-ti" para um "tunchhhhh" contínuo.
Algum tubo havia se desconectado.
Mobilizou rapidamente a equipe de enfermagem e, juntos,
começaram a reanimar o paciente. Infelizmente, era tarde demais.
Nessa hora, desolado, o residente apontou para o aparelho e
desabafou: — Merda de respirador! Não podia ter parado de "ciclar" e...
Quando o bêbado da maca ao lado se manifestou: — É uma merda mesmo.
Não parava de fazer barulho e não me deixava dormir. Mas agora que eu
soltei essa mangueirinha pelo menos o barulho melhorou!
O ambiente nunca será totalmente seguro, como pode ter
comprovado algum paciente hipotético ao ser atendido no ambulatório cinco
estrelas cheio de credenciais do World Trade Center em 11 de setembro de
2001. Mas de nada adiantarão todos esses esforços de prevenção e melhorias
se um pequeno elo dessa corrente não for de boa qualidade...
6 — ENCARANDO A REALIDADE

Novas faculdades...

Médico é igual a sal:


branco, barato e tem
em todas as esquinas.

Durante uma palestra de um renomado infectologista sobre "Avanços


e tendências na infecção intrahospitalar", um ouvinte levantou a seguinte
questão:
— Professor, em sua opinião, qual seria o elemento ou a ação mais
contundente para alterar a evolução das infecções hospitalares?
Satisfeito com a questão, o professor devolveu a pergunta à plateia de
médicos, que arriscou propostas diferentes:
— Antissépticos mais potentes, isolamento de doentes infectados,
comissão de infecção hospitalar, alta precoce, enfermagem bem treinada,
menor invasão do paciente...
Nessa hora, não pude deixar de me lembrar de um professor que
dizia ser preferível gastar um pouco mais com sabonetes de luxo perfumados
do que comprar antibióticos de última geração. Assim, também arrisquei:
— Lavar as mãos. Todos os elementos citados são importantes, mas a
resposta do professor foi ainda mais interessante:
— Um médico competente! Se o fator mais importante é o médico,
não seria interessante aumentar o seu número?
A proporção de médicos por habitantes no Brasil corresponde ao
dobro do recomendado pela Organização Mundial de Saúde (um médico
para cada mil habitantes). Mas o país continua carente nesse aspecto devido
à sua má distribuição, pois 70% dos médicos brasileiros trabalham no Sul ou
no Sudeste. Como dizia, coberto de razão, o meu homônimo,"50% das UTIs
brasileiras ficam na Região Sudeste. Destas, 50% ficam no Estado de São
Paulo. Destas, 50% ficam na cidade de São Paulo. E, destas, 50% ficam na
Avenida Paulista! Isto não é normal!"
O Brasil não precisa de mais um monte de doutores, e, sim, que eles
estejam mais bem distribuídos pelo território nacional. Para se ter ideia, a
sua disponibilidade para cada mil habitantes é quatro vezes superior à de
enfermeiros. Além disso, o número de médicos quase duplicou de 1997 para
2001, saltando de 1,35 para 2,08 por mil habitantes!18
Recebemos a visita de um Presidente da República na Faculdade de
Medicina. Talvez desconhecendo esses dados, ele se mostrou muito animado
com a possibilidade de abrir novas escolas médicas no Nordeste. Mas nada
mudará enquanto o generalista não for valorizado. Independentemente de
onde o doutor se formar, continuará ocorrendo o êxodo para o Sudeste com o
objetivo de buscar a especialização e um nicho de emprego. Grande parte
dos residentes do hospital vem do Norte e do Nordeste justamente por esse
motivo. E quase ninguém vem para estudar clínica geral.
De qualquer forma, esse fenômeno cria uma falsa ilusão de que não
há médicos. Uma vez iludido, qualquer um acreditará que a solução para
esse problema está na abertura de novas faculdades. De fato, o seu número
vem aumentando. Atualmente (devo estar desatualizado) são 169 Faculdades
de Medicina no Brasil. Mais do que nos Estados Unidos e na China!
Como eu já disse, volta e meia alguém descobre um novo filão
relacionado à medicina. Sabemos que nós, apesar de desvalorizados, ainda
ganhamos mais do que boa parte dos outros profissionais de áreas diferentes.
Assim, aplicar dinheiro numa faculdade dessas será um bom investimento
para os alunos e, principalmente, para os donos das instituições.
O comércio começa no vestibular. As propagandas para os concursos
dessas faculdades costumam ser parecidas com as de lojas de móveis
populares. Você pode começar a pagar apenas na Páscoa, marcar a data da
prova quando quiser... Mas não para por aí. Ouvi relatos de alunos que
entraram nos concursos dessas faculdades após depositar uma quantia
razoável na conta de pistolões, o que não é novidade. A polícia já
desmantelou algumas quadrilhas que vendiam vagas nessas instituições e
houve, até mesmo, o caso do calouro-fantasma.
Um aluno presta vestibular para Medicina. Passa na primeira fase e
falta realizar a segunda prova. Apenas para constar, pois sua vaga estava
garantida. Pouco antes da segunda prova, ele sofre um acidente
automobilístico e falece. Entretanto, parece que nem todo mundo fica
sabendo, pois ele é aprovado no vestibular! Seu amigo que prestou o mesmo
concurso, sem sucesso, notou a palhaçada e divulgou o fato.
Mas esta é uma exceção. Novas escolas serão boas para o povo! Qual
povo?
Um amigo me contou que paga uma mensalidade de R$ 3.800,00
para o filho que cursa o sexto ano em uma Faculdade de Medicina privada.
Uma bagatela! Quem possui R$ 273.600,00 (R$ 3.800,00 mensais X 6 anos)
para pagar uma faculdade? Ao mesmo tempo, vejo no jornal uma proposta
de emprego para clínico geral. São 20 horas semanais para ganhar R$
1.500,00 por mês.
Esse é um problema, mas me preocupo com outra questão bem mais
grave.
Se existe um curso que não pode ser realizado por correspondência é
o de médico. Muitas das escolas médicas que estão proliferando possuem
qualidade questionável. Para uma formação adequada, precisamos atender
doentes, o que é impossível sem o apoio dos hospitais-escola universitários.
Quantas dessas novas escolas os possuem?
Uma solução será associar-se a hospitais privados. Mesmo assim, na
maioria das vezes não há uma grande variedade de doentes e patologias,
fundamental para a boa formação. Além de esses hospitais não serem
grandes o bastante, muitas vezes não possuem vocação para o ensino. São
particulares onde o primeiro, o segundo e o terceiro objetivos principais
podem estar relacionados ao lucro. Os alunos, nesse aspecto, podem
atrapalhar. Quem pedirá ao seu paciente privado que permita a um interno
repetir o exame de toque retal?
Não será de se estranhar a baixa qualidade dos profissionais que
essas instituições tenderão a formar, independentemente da boa vontade dos
formandos.
Os políticos poderão se gabar de quantas faculdades abriram aqui e
acolá, mas, ao ficarem doentes, continuarão vindo ao melhor hospital...
Piorando ainda mais as perspectivas da sociedade, há brasileiros que se
aventuram a estudar em faculdades da América Latina, por não terem sido
aprovados no vestibular nacional. É evidente que existem ótimas faculdades
em países vizinhos, mas em geral não são nestas que os brasileiros se
matriculam.
Talvez você acredite que, mesmo com uma formação deficitária, os
médicos não terão muitas deficiências graças à tecnologia disponível. Será?
Eles precisam possuir um bom conhecimento sobre as doenças mais
prevalentes em todas as áreas. A maioria delas é simples e não requer
grandes investimentos diagnósticos ou terapêuticos, mas precisam ter sido
vistas pelo profissional.
As pessoas tendem a valorizar os locais muito equipados e com
ambiente físico sofisticado, mas, na verdade, sabemos que a fool with a tool,
is still a fool, ou seja, um tolo com uma ferramenta continua a ser um tolo!
Basta lembrar que as melhores escolas do mundo, na Finlândia, têm como
maior patrimônio a qualidade dos seus professores.
O fator humano ainda é o mais importante e assim continuará sendo,
enquanto o aparelho diagnosticador do doutor McCoy (médico da série
Jornada nas estrelas) não for uma realidade. Pensando bem, mesmo quando
for, o paciente continuará preferindo que o médico pegue em sua mão.
Afinal, quem controla o aparelhinho do Dr. McCoy continua sendo o Dr.
McCoy!
Muito pior do que não possuir uma tomografia é ter alguém que a
solicita ou a interpreta sem o preparo adequado.
Lembro-me de um cirurgião de determinado serviço que raramente
pedia exames de ultrassom em seu hospital. Quando lhe perguntei o motivo,
ele explicou: "De que adianta possuirmos excelentes aparelhos de ultrassom
se quem os aplica é a dupla de radiologistas que apelidamos de Steve
Wonder e Ray Charles?".
Talvez ainda mais grave que a síndrome de Vomit (Victim of Modern
Image Technology),19 ou a baixa acurácia de alguns radiologistas, seja a
síndrome de BARF (Brainless Application of Radiological Findings —
aplicação descerebrada dos achados radiológicos).20
Para citar um breve exemplo de perigos similares, contarei um caso
ocorrido no plantão controlador.
Esse plantão gerencia os encaminhamentos interhospitalares. Seu
funcionário (um médico) orienta para onde o paciente do hospital X deve ser
conduzido caso necessite de uma avaliação pelo profissional Y, e assim por
diante. Para isso, os detalhes dos casos clínicos devem ser discutidos entre o
médico do plantão controlador e o do hospital que o solicitou.
O colega do controlador atendeu à ligação de um médico pedindo a
transferência de seu paciente. Ele teria sido vítima de um acidente de carro e
necessitava de uma avaliação neurocirúrgica. Ao pesquisar os dados do
acidentado, o funcionário do controlador começou a perguntar sobre os
sinais vitais.
— PA (pressão arterial)? — Catorze por nove. — Frequência
cardíaca? — Oitenta. — Glasgow? (Caso você, leitor, não se lembre, é
aquele teste simples para quantificar o grau de consciência do paciente.)
— Entenda, Dr. Fulano, aqui é um hospital muito simples e nós não
dispomos de aparelhos para medir o Glasgow...
Oras bolas, o único aparelho que necessitamos para medir o Glasgow
de alguém é o nosso próprio cérebro, de preferência em G15 (nota máxima
desse escore). Se ele não dispunha deste, aquele hospital realmente era
preocupantemente escasso em recursos; o caso passou a ser uma prioridade e
imediatamente se autorizou a transferência em regime de urgência máxima.
Infelizmente, este pode ser justamente o tipo de profissional que sairá
das faculdades deficitárias, atrapalhando qualquer tentativa de melhorar a
qualidade dos serviços prestados e, como veremos a seguir, contribuindo
para a redução dos nossos salários.
18Brasil:
o perfil do Sistema de Serviços de Saúde. Organização
Panamericana de Saúde, 2005.

19Acesso

20Acesso
... novas dificuldades

"O médico cuida de


pessoas, mas o
mundo se tornou
materialista.
Atualmente o que
vale não é o que as
pessoas são, e, sim, o
que elas têm. Elas
perderam o seu valor,
assim como quem
cuida delas."
ADIB JATENE

Durante a faculdade, aprendemos a pensar e a agir como médicos.


Porém, quando terminamos a especialização e começamos a procurar
emprego, descobrimos o quanto somos despreparados para questões triviais
da nossa profissão. Além disso, na hora de pagar aluguel e outras despesas
por conta própria, percebemos o custo desse sacerdócio. Quando atendi
aquele jornalista com diverticulite aguda, pude sentir o quanto somos mal
remunerados. Os meus honorários referentes ao seu caso foram insuficientes
para pagar o que gastei com gasolina durante o seu tratamento!
A diversão tinha acabado. Dei-me conta de que deixara de ser
amador para me tornar profissional e que isso ninguém havia me ensinado.
Antes, o trabalho fazia parte do meu aprendizado e treinamento. Agora,
precisaria trabalhar para ganhar dinheiro e me manter.
Nessa fase inicial, não sabia como me comportar, seja como
empregado, seja como patrão. Como tive o privilégio de me dedicar
exclusivamente aos estudos, finalizei-os com 28 anos sem ter nunca visto um
holerite! Desconhecia coisas como "pessoa jurídica", tabela AMB90,
repasse, CLT, cobertura, classificação hierarquizada, guia de RPA e muitas
outras coisas.
Sabia diagnosticar e tratar um câncer, mas não tinha a menor ideia de
quanto cobrar por isso nem como fazê-lo! Descobri que tinha vergonha de
cobrar o que sempre havia realizado "de graça", quando, na verdade, eu é
que estava aprendendo "de graça".
Um colega me contou, nostálgico, sobre o seu primeiro paciente
particular, o que ilustra bem essa dificuldade:
— Era um amigo dos tempos de escola. Procurou-me queixando-se
de uma hérnia. Operei-o na mesma semana e a cirurgia foi um sucesso!
Naquela época meu professor me parabenizou, empolgado com o início de
minhas atividades profissionais. Ele me perguntou se tudo correra bem.
Respondi que sim, mas que estava em dúvida se deveria ou não cobrar os
meus honorários. Nessa hora, o professor me interrompeu orientando para
que eu cobrasse, como se esta fosse a conduta mais óbvia do mundo.
Ponderei que era um amigo do ginasial, quando ele novamente me
interrompeu: "Mas você precisa cobrar. Afinal, nunca irá operar inimigos!".
Dizem que saber cobrar é uma arte. Arte ou não, testemunhei
algumas técnicas meio esquisitas de fazê-lo. A estratégia de um cirurgião ao
combinar o preço de uma cirurgia, por exemplo, era mais ou menos assim:
— O custo médico da cirurgia será de dois mil reais. Nesse
momento, ele fazia uma pausa em suas explicações e analisava a reação dos
familiares. Se fosse de espanto: "Dois mil reais! Ai, meu Deus!", ele
prosseguia, dizendo:
— Calma. Esse é o custo da equipe toda, incluindo meu auxiliar, o
anestesista e eu...
Porém, se os familiares reagissem com tranquilidade: "Dois mil...
Beleza!", o preço mudava:
— Mas esta é a minha parte, ainda tem o honorário do anestesista, e
o do meu auxiliar...
Outro médico explicava como seria o pós-operatório, apenas para
investigar o cacife do paciente:
— Doutor, poderei comer normalmente? — Na primeira semana
você manterá uma dieta leve, mas depois poderá comemorar com um bom
prato! Qual restaurante que você gosta de frequentar? — Se a resposta fosse
um restaurante chique da moda, o preço subia. Se fosse o X-burguer
qualquer coisa, caía. Isso para não contar sobre a estratégia de descobrir,
vendo no monitor do circuito interno da clínica, qual é o veículo do
paciente...
Contudo, constatei que a maioria dos médicos estabelece o seu preço
avaliando o grau de dificuldade, tempo e risco que envolverão o tratamento.
O custo do consultório, das viagens para congressos e cursos de atualização,
assim como tabelas da Associação Médica Brasileira, ajudam a estipular os
honorários. Eles também levam em conta se o tratamento será emergencial
ou eletivo. Uma apendicite num jovem levará o colega a perder menos horas
e fios de cabelo do que uma úlcera perfurada em um idoso na véspera de
Natal.
Ouvi falar de uma ortopedista que, além desses fatores, avaliava
também o "adicional chatice". Ou seja, se o paciente fosse chato, pagaria
mais caro.
Excluindo os colegas de grife a quem, assim como roupas, você
também pagará mais caro, os médicos em geral cobram um preço aceitável.
Alguns clientes acham salgado, mas se esquecem de compará-lo ao do
marceneiro, encanador ou cabeleireiro. Não quero menosprezar suas
profissões, mas basta lembrar-se da responsabilidade e do investimento
técnico em cada caso. Porém, é claro que existem abusos.
Certa vez, um médico teria cobrado por uma neurocirurgia o valor
equivalente a 353 salários mínimos. Indagado por um colega sobre como
chegara ao incomum valor, ele apenas respondeu:
— É o que faltava para quitar o meu apartamento... Alguns pacientes,
por outro lado, também agem de forma curiosa. Guardado o senso do
ridículo, ficam indignados quando médicos cobram pelos seus honorários em
qualquer situação que seja:
— Não é um sacerdócio? Como podem explorar justo quem está
doente, ou com dor?
Um colega me contou da indignação de uma senhora idosa quando
ela ficou sabendo que teria de pagar pela consulta e que não conseguiria
desconto para aposentado. Puxa vida, como ele poderia dar desconto para
aposentado, se a sua especialidade era geriatria?
Ela achava um absurdo cobrar pela consulta. Este explicou que, se
preferisse, ele não cobraria, mas lhe enviaria suas contas pessoais de água,
luz e gás num valor similar...
Pior ainda é ser chamado de madrugada para ir de urgência na casa
de alguém que, após o atendimento, prontamente lhe estende a carteirinha do
convênio com uma expressão de "não pense que me esqueci de lhe pagar"
(como se andássemos com uma daquelas maquininhas ou atendêssemos
convênios nas casas das pessoas).
Antes de qualquer coisa, a medicina de hoje é uma profissão. Não é
para amadores. E, como profissionais, precisamos ser remunerados! Mas por
que recebemos tão mal?
"A remuneração do médico nada mudou nas últimas décadas. Em
1975, quando operava uma apendicite, cobrava o preço de um fusquinha.
Passados vinte anos, continuo cobrando o preço do fusquinha. O problema é
que se trata do mesmo fusca, já desvalorizado e envelhecido trinta anos..."
(Comentário de um professor de medicina).
Em primeiro lugar, focando um pouco na cirurgia geral, as pessoas
pagam pelo que desejam (uma plástica) e não pelo que precisam (uma
apendicectomia).
Em segundo lugar, remunera-se melhor o especialista que o
generalista. Em minha opinião, o especialista em clínica geral ou cirurgia
geral deveria ser um dos médicos mais respeitados e bem remunerados.
Entretanto, a tendência ainda caminha no sentido oposto. Sabemos que o
bom clínico pode resolver de 80% a 90% de todos os casos clínicos e que o
mesmo ocorre com o cirurgião geral e as doenças cirúrgicas. Isso se aplica
ainda melhor no pronto-socorro, onde precisamos de alguém com muita
vivência e amplos conhecimentos, pois nenhum hospital terá de corpo
presente especialistas em dermato, otorrino, cardio, oftalmo, proctologia...
Destarte, as patologias mais corriqueiras dessas especialidades podem ser
facilmente tratadas pelo emergencista: micoses, otites, hipertensão arterial,
conjuntivite, hemorroidas. Além disso, trabalhar em emergência é muito
pesado e difícil, técnica e socialmente falando. É um ambiente hostil e
insalubre. O paciente está sofrendo e desamparado, não conhece nem
escolheu o médico que o socorre. Não há tempo disponível para se
estabelecer uma boa empatia. São grandes os desafios e limitados os exames.
Fácil, não? Mas, paradoxalmente, o clínico geral e, principalmente, o
emergencista são os profissionais menos valorizados. Por quê?
Ao associar um trabalho pesado e insalubre com uma baixa
remuneração, afastam-se os bons profissionais. Explica-se, então, por que os
verdadeiros clínicos abandonam a emergência e acabam sendo substituídos
por recém-formados que não entraram na residência ou por residentes nos
seus primeiros anos, em busca de qualquer salário. Excluindo-se os
verdadeiros apaixonados pela área, sobram também os médicos que por
algum motivo não tiveram sorte em seu consultório privado e que, com a
crescente degradação da profissão, passaram a necessitar daquela fonte de
renda.
Aqui também vale a lei da oferta e da procura. Com vários médicos
em início de carreira procurando esse tipo de emprego (afinal, não podem
trabalhar como cirurgiões, anestesistas, endoscopistas...), cai o valor do
salário. Diminuindo o valor, perde-se a qualidade. Nesse ciclo, o maior
prejudicado acaba sendo o paciente. Como sempre.
Em razão dessa distorção, entre outras diversas causas, criou-se a
cultura de pagar melhor ao especialista que ao generalista, como se este não
fosse especializado no que faz. O clínico geral verdadeiro também fez
especialização, levando três ou quatro anos para tanto. Acontece que, hoje,
quem ainda não fez uma residência, acaba ficando conhecido como "clínico
geral".
O mesmo ocorre com o cirurgião geral emergencista. Este é mais
uma vez desvalorizado, o que faz com que os novatos assumam esse tipo de
cargo, quando deveria pertencer ao mais tarimbado dos profissionais. É ali
que os casos mais complexos precisam ser enfrentados com o menor número
de recursos e maior precisão.
Mas, olhando para a profissão como um todo, há outros motivos para
a nossa desvalorização.
Trinta ou quarenta anos atrás, o médico era uma raridade. Munido
apenas do estetoscópio e de seu conhecimento, responsabilizava-se pelo
diagnóstico, pelo tratamento e pelo conhecimento de boa parte da cultura
médica vigente. Foram os anos de ouro dessa profissão, em que ser médico
era sinônimo de status social, cultural e econômico.
Além de ser bem remunerado nos serviços públicos, ele podia cobrar
o valor que julgasse adequado para suas atividades privadas em quase todos
os casos. Poucas pessoas tinham acesso à medicina privada. Por outro lado,
graças aos seguros sociais e aos pacientes particulares, o médico ganhava
bem e podia se dar ao luxo de atender os necessitados sem onerá-los.
Gradualmente, os cursos de medicina proliferaram, aumentando de
forma significativa o número de profissionais. O conhecimento cresceu de
forma exponencial, criando as especialidades e as novas profissões
(nutricionista, fisioterapeuta...). Os instrumentos para diagnóstico e
tratamento foram criados e aperfeiçoados. Os custos multiplicaram-se.
Recebemos de acordo com a nossa raridade, e não nossa importância.
Com o maior número de médicos a oferta aumentou e o preço caiu. O
conhecimento expandiu tanto que nenhum médico conseguiu mais,
individualmente, abranger o conhecimento global da medicina. Surgiram
mais especializações, que segmentaram o homem, assim como os seus
problemas. Para um mesmo paciente, o número de profissionais aumentou.
O paciente deixou de ter o seu médico para ter o seu cardiologista, seu
endócrino, seu ginecologista...
O diagnóstico não é mais exclusividade do médico com o seu
estetoscópio. Passou a ser dividido com todos os outros aparelhos hoje
disponíveis. O conhecimento democratizou-se e o atendimento popularizou-
se.
Graças a tudo isso e a uma série de outros fatores sociais, o valor do
médico foi caindo, caindo, a ponto de ele ser comparável ao sal. De repente,
surgiu uma brilhante opção: os convênios. Por estes, entende-se medicina de
grupo, autogestão e seguro-saúde, além das próprias cooperativas médicas.
Os pacientes particulares estavam minguando e, segundo os vendedores dos
planos de saúde, a solução para os doutores seria trocar preços altos por
quantidade. De certa forma, optamos por trocar qualidade por quantidade.
Os custos também empurraram a favor dessas mudanças, assim como a
crescente, porém insuficiente, abrangência do sistema único de saúde.
Passados alguns anos, os convênios universalizaram o atendimento
médico privado, transformando os pacientes particulares em uma raridade.
Hoje, atendemos pacientes particulares que têm reembolso dos seguros de
saúde e os "particuloides": pessoas que não têm dinheiro para pagar um
convênio e juntam as suas economias para pagar uma consulta ou uma
cirurgia. Com isso, atender a convênios transformou-se na regra absoluta
para a maioria dos médicos. E o que parecia interessante, pois realmente
trouxe algumas vantagens para os pacientes, também ajudou, em parte, a
desgastar nossa profissão.
Não podemos negar que o segmento da "saúde suplementar" abriu as
portas da saúde para 40 milhões de brasileiros e permitiu que a tecnologia
médica se disseminasse rapidamente pela nossa nação. Mas, ao mesmo
tempo, apresentou ao médico, de forma intensa e penosa, as leis de mercado.
Enquanto algumas operadoras de saúde focaram na sua
diferenciação, qualidade da gestão da saúde, promoção, prevenção e
gerenciamento de doenças, outras focaram exclusivamente na competição
suicida por mensalidades cada vez mais baixas. Se a arrecadação da empresa
for baixa, a única forma de alcançar o lucro, diante dos custos crescentes da
medicina, será por meio de remunerações ainda menores.
Fatalmente, o valor dos procedimentos médicos foi caindo
vertiginosamente. Chegamos ao valor de 20 a 40 reais por consulta médica
(quanto foi que cobrou o seu cabeleireiro na última revisão?). Durante vários
anos, por falta de união e de unidade, os médicos nada reivindicaram e, aos
poucos, foram sendo fagocitados pelos convênios. Não faz muito tempo,
havia algumas seguradoras que não aumentavam os honorários médicos
havia mais de dez anos!
A tabela para remuneração de procedimentos estipulada por grande
parte dos convênios ainda é a AMB 90 (tabela da Associação Médica
Brasileira de 1990!). Essa tabela cita procedimentos que nos dias de hoje
raramente são solicitados e não menciona outros em vigor, pois inexistiam
em 1990 quando foi atualizada.
A relação médico-paciente modificou-se, passando a incluir um
terceiro elemento: o auditor do convênio. É ele que, ao fim das contas,
determina o que pode — ou não — ser realizado, quando, onde, com quem e
com quais materiais. Além disso, o paciente não procura mais um médico, e,
sim, um prestador de serviços credenciado. E o médico não atende mais um
paciente, e, sim, um associado.
Os convênios mudaram indiretamente o nosso modus operandi.
"Precisamos" operar com o material que eles autorizam ou apesar do que não
autorizam. Com o menor pagamento, o médico trabalha demais, não tem
tempo ou forças para estudar e se atualizar. Acaba realizando consultas
breves para que possa atender um maior número de doentes. Adquire menos
dados clínicos e, por isso, solicita mais exames. Por que gastar mais dez
minutos tentando diferenciar uma gastrite de uma cólica biliar, se posso em
dois minutos fazer um pedido de ultrassom e de endoscopia? O próprio
paciente pede isto, afinal é o convênio quem vai pagar! Novamente, é o
típico raciocínio do restaurante de rodízio que coloca o médico na rodinha
do rato: anda, anda e não sai do lugar. Faz o convênio gastar mais com
exames e este, por sua vez, hesita em aumentar os repasses aos prestadores,
evitando que suas despesas se tornem insustentáveis.
Mas não são apenas alguns dos convênios que pagam mal.
Ponderando o peso da carreira médica, posso dizer que tanto os empregos
públicos como os privados remuneram inadequadamente. Após verificar
nossas ofertas de empregos nos jornais e compará-las a carreiras como a
jurídica, secretária bilingue e técnico em informática, penso que você
concordará comigo. Para se ter uma ideia dessa distorção, saiba que algumas
seguradoras repassam ao médico obstetra valores próximos a 200 reais por
uma cesárea. Nos mesmos hospitais, os serviços de filmagem dos partos não
saem por menos do que o dobro desse valor!
Com essa dificuldade toda, é natural que encontremos clínicos gerais
inserindo-se na medicina estética, na ortomolecular ou em outros ramos
ainda não reconhecidos pelo Conselho Federal de Medicina e que, por isso,
não possam ser cobertos por planos de saúde (renderão pacientes
particulares).
Infelizmente, o baixo reconhecimento e a escassa remuneração
podem fazer com que alguns colegas se aproximem de atividades
irregulares, cuja distinção com as atividades honestas pode ser uma linha
bem tênue.
É fácil convencer um leigo de que ele precisa ser operado, mesmo
não havendo a real necessidade. Alguns diplomas na parede e uma elegante
gravata podem enganar muita gente. E, após terem sido operados, a
recuperação desses pacientes será ótima, já que nem doentes estavam.
Isso para não falar naquelas histórias que já ouvimos, nos jornais e na
TV, de médicos que indicavam cirurgias, pois ganhavam comissão dos
fabricantes de materiais utilizados nos procedimentos.
Apesar disso tudo, não podemos desanimar. Ainda é possível ajudar
honestamente muita gente e nos sustentarmos com certa tranquilidade.
Quando as coisas apertam ainda mais, o médico sempre dá um jeito.
Na cirurgia, a laparoscopia foi um grande diferencial. Os pioneiros
ganharam muito dinheiro. O método se difundiu e virou carne-seca. O
mesmo ocorreu com a cirurgia de obesidade, ela mesma realizada por video,
a cirurgia para diabetes e, finalmente, a cirurgia por orifícios naturais.
Vivenciei vários filões sendo criados para depois se diluírem, mas sempre
inovamos.
Fui para uma ilha do Caribe em 1997 e voltei da viagem deprimido.
Acredito que o principal motivo tenha sido o fato de ter encontrado por ali
pessoas altamente educadas e instruídas vivendo na pobreza. Normalmente,
associamos a miséria à falta de instrução ou de oportunidade. Mas lá, apesar
de a maioria ter o terceiro grau completo, não possuía dinheiro para comprar
um simples sabonete. Vi as aeromoças escondendo alguns sanduíches do
avião e levando-os para consumo próprio. Percebi a felicidade das pessoas
quando as presenteávamos com um xampu ou um creme dental. Descobri
que comida de verdade é arroz e feijão, pois presenciei senhores realizando
turismo sexual com mocinhas que se prostituíam em troca de chocolate, um
luxo supérfluo. Mocinhas estas, formadas em advocacia, odontologia e
pedagogia.
Mas voltando à viagem, essa ilha possuía vários contrastes e um
deles me interessou. Lá, o generalista era muito mais valorizado do que aqui.
A medicina preventiva era levada a sério, mesmo porque não havia muitas
verbas para os remédios caros da medicina curativa. Cada médico
generalista acompanha algumas dezenas de pessoas regularmente, visando a
prevenir o aparecimento de doenças. Existe um estímulo para que o médico
evite a doença em seus clientes e, mesmo assim, continue ganhando para se
sustentar. Quando os pacientes precisam ser internados, eles os
acompanham, ajudando o eventual especialista a tomar suas decisões.
Contrariamente, aqui vivemos um curioso paradoxo. Como médicos,
devemos promover a saúde, mas somos remunerados pela doença.
Não podemos promover doenças, mas se os pacientes não forem ao
consultório, morreremos de fome. O que fazer? Precisamos aumentar o
nosso mercado de trabalho! Mas como? Simples! Vamos incluir as pessoas
saudáveis em nossa clientela. Podemos fazer com que elas temam as doenças
que não possuem.
E assim o check-up virou o novo filão. É óbvio que, em muitas
situações, ele é valioso e útil, para não dizer essencial. Negar esse fato me
colocaria contra os reconhecidos e merecidos méritos do pré-natal e da
puericultura.
Além disso, até por uma simples questão de autossobrevivência, os
convênios deveriam se tornar planos de saúde e não de doença — o que
fazem na atualidade. Basta analisar as pirâmides etárias projetadas para os
próximos anos pelo IBGE21 para perceber a importância de se investir em
centros voltados para a promoção da saúde em vez de em hospitais, caso não
queiram falir.
Mas qual o sentido de comparecer ao médico a cada seis meses
(salvo em casos excepcionais) para acompanhar uma "gastrite endoscópica"?
Por que dosar anualmente o colesterol de alguém saudável com 20 anos de
idade? Solicitar a centenas de milhões de humanos, anualmente, dosagens de
ácido úrico após os 40?
Nessa hora, alguns pacientes e médicos deviam se lembrar do Jaguar,
famoso cartunista, desabafando: "Gastei uma fortuna em exames médicos e
no final não tinha nada. Podia ter gasto esse dinheiro em aperitivos..:'.

21Acesso
O consultório particular

"Dans la medicine et
dans l'amour, on ne
dit pas ni jamais ni
toujours."
(Na medicina e no
amor, não se diz nem
nunca nem sempre.)

A essa altura do campeonato eu havia experimentado algumas


formas de trabalho e remuneração. Tinha dado plantões como clínico,
cirurgião, feito uma breve retaguarda de cirurgia e ajudado alguns
professores em cirurgias particulares. Era hora de decidir qual rumo tomar,
antes que o alargamento das raizes me fixasse definitivamente e impedisse
grandes mudanças. Até que eu tinha bons empregos com seis anos de
formado, mas sempre em plantões e, como a maioria dos iniciantes, nos.
finais de semana. Trabalhava quase todas as sextas, sábados e domingos,
mas ficava livre no meio da semana. Com o passar do tempo seria natural a
inversão, uma vez que os mais novos são designados para os piores turnos.
Mas era isso o que eu desejava para o meu futuro? Correr daqui pra lá,
trabalhar 12, 24, 36 horas, sempre me deparar com pacientes estranhos e
nunca acompanhá-los no pós-operatório?
Convivia com outros excelentes cirurgiões, bem mais velhos,
ocupando os mesmos nichos. Independentemente de isso ser bom ou ruim,
se eu deixasse o tempo correr e nada fizesse, viraria o seu substituto natural.
Já que não me candidatei a vereador, comecei a cogitar uma mudança um
pouco mais radical: abandonar minha cidade natal.
Procurei empregos em Goiás, Tocantins, Paraná e Santa Catarina.
Todos tinham os seus encantos e desencantos, mas uma cidade no meu
próprio estado me chamou particular atenção. Ela ficava a apenas uma hora
de viagem de São Paulo e a oportunidade de trabalho parecia excelente.
Poderia realizar uma transição gradual, sem deixar todos os meus empregos
de uma só vez.
Essa mudança foi realizada de forma muito mais suave que o
esperado. Tive muita sorte em encontrar pessoas íntegras, maleáveis e
dispostas a ajudar, o que pode não ser a regra quando um médico de fora
chega a uma cidade do interior. De qualquer forma, o sacrifício inicial
sempre é grande.
Trabalhei alguns anos como clínico emergencista em um serviço
onde tirar os sapatos durante cinco minutos, mesmo às três da manhã,
representava uma completa exceção. O estresse era tanto que eu desenvolvi
uma urticária maldita por alguns meses. Apesar de controlada com
medicações, a coceira e as manchas só sumiram quando comprei a sala em
que iniciaria o meu consultório. Eu precisava me credenciar a convênios
médicos. Sem eles e sendo desconhecido, a minha procura seria nula.
Existem pessoas que alegam possuir contatos que facilitariam o nosso
credenciamento com alguns planos de saúde. Evidentemente, elas cobram
pelos seus serviços. Mas mesmo sem pagar propinas, consegui me vincular a
alguns planos e iniciei o meu atendimento privado.
Trabalhar no consultório tem um lado bom, pois é onde realmente
nos sentimos profissionais liberais, determinamos o horário, a dinâmica de
trabalho e, dentro de certos limites, as nossas próprias regras. Mas há o lado
penoso da inserção, ainda mais profunda, no mundo adulto do exercício da
Medicina.
Dei-me conta, mais uma vez, que ninguém havia me ensinado nada
na faculdade sobre consultórios. Como geri-lo, quais impostos pagar, que
material possuir, como obter licença da vigilância sanitária, alvará... Percebi
como pode ser delicado lidar com funcionários e com os próprios planos de
saúde.
Ao abrir o meu próprio negócio, descobri que até podia ser um ótimo
médico, mas era um péssimo empresário. De que adiantaria ser um excelente
profissional, se tivesse uma recepcionista mal-educada, uma secretária com
Alzheimer avançado, trabalhasse ao lado de um barulhento estádio de
futebol e não me relacionasse bem?
Não demorei a perceber quão importante seria ter uma recepção
competente.
Era fim de expediente quando eu, extenuado, interfonei à
recepcionista recém-contratada e perguntei se havia sobrado algum paciente
na sala de espera. Ela respondeu que ainda havia um casal. Suspirei e pedi
para que ela os colocasse para dentro. Não via a hora de pôr os meus pés
para cima e queria atendê-los logo.
Os dois entraram e comecei a abordagem pelo rapaz, que parecia
mais apreensivo. Este, entretanto, disse que teria vergonha em revelar o seu
problema. Procurei acalmá-lo explicando sobre o profissionalismo de
minhas atitudes e continuei a entrevista, não dando muita bola ao seu pudor.
Mais conformado, ele contou que havia surgido uma lesão em seu pênis e
que esta não teria desaparecido com uma pomada do farmacêutico. Resolvi
examiná-lo e ele, mais uma vez muito envergonhado, acabou cedendo aos
meus argumentos e tirou a roupa.
Após verificar que se tratava de uma doença sexualmente
transmissível (condiloma acuminado), expliquei a necessidade de esclarecer
algumas questões que poderiam ser um pouco constrangedoras. Perguntei a
data de sua última relação sexual, se realizara sexo oral e assim por diante.
Como a sua esposa não se manifestou e mantinha a cabeça abaixada, não a
questionei nesse momento.
Após ouvir as respostas, expliquei-lhes, olhando para a mulher, que
aquilo passava pela relação sexual e que, por isso, precisaria examinar
também a sua vagina. Foi quando ela se levantou indignada:
— A minha não. Eu não. O senhor está maluco? Eu tentei acalmá-la,
explicando-lhe os riscos que corria e a necessidade de um exame, mesmo
que fosse pela sua ginecologista.
— Mas eu não preciso deste exame! -Veja bem, na mulher as lesões
podem ser internas... — argumentava eu, quando ela me interrompeu pela
segunda vez:
— Doutor, eu nem conheço este homem! O senhor está
completamente maluco!
— Me desculpe, mas não são casados? — Casados? Nunca o vi
antes. Sua secretária é que nos mandou entrar juntos!
Como em qualquer outra atividade, o dia a dia me mostrava as
matizes dessa faceta do atendimento médico. Era bem diferente a minha
atuação na clínica privada, quando comparada aos ambulatórios do
hospital...
Durante a residência, costumávamos frequentar ambulatórios de
doenças previamente selecionadas. Eram dias específicos para hérnias, ou
para tumores ou para outras patologias quaisquer. Ao iniciar o consultório de
cirurgião geral e do aparelho digestivo, naturalmente esperava o mesmo tipo
de movimento. Estava afiado e pronto para atender vários pacientes com
úlceras, cânceres, mas logo, ao fim do primeiro dia, lamentei: "Mas que
engano...".
Quando o primeiro paciente entrou, chutei em pensamento o
diagnóstico: "Será uma hérnia!". Mas a queixa foi "lingua branca e boca
amarga". Ainda confiante, tentei adivinhar o problema do segundo: "Pedra
na vesícula!". Errei de novo: era mau hálito.
A queixa do terceiro eu jamais adivinharia: — Eu tenho uma dor que
volta e meia faz que vai doer, mas não dói. Não pude deixar de pensar:
"Então leve este comprimido. Faça que vai tomar, e não tome...".
Embora estivesse um pouco mais desanimado, quando notei o
comportamento da quarta paciente ao entrar, não pude deixar de chutar a sua
queixa e... errar novamente.
Assim que entrou no consultório, antes que minha recepcionista
pudesse puxar a porta da sala, a própria paciente já a fechou, com uma
expressão misturada de timidez e apreensão.
"Típico comportamento de quem reclamará das hemorroidas",
pensei. Mas, na verdade, a paciente só me procurou para esclarecer uma
dúvida:
— Doutor, sexo anal faz mal? Caramba! Nunca estudei um parágrafo
sequer sobre o assunto. Como poderia emitir uma opinião técnica, se o meu
conhecimento a respeito disso advinha mais de uma mistura de história da
antiguidade, religião e revistinhas pornográficas do que de aulas de
proctologia? E não foi por falta de curiosidade médica.
Lembro-me do congresso de cirurgia em que um professor italiano
demonstrou a sua nova técnica para operar hemorroidas. Ele desenvolveu
um aparelho especial que, ao ser acionado dentro do ânus do paciente,
ressecava todo o tecido excedente das hemorroidas. Ao mesmo tempo que o
aparato seccionava, grudava as bordas remanescentes por meio de vários
grampinhos que ficavam aderidos no local. A porção extirpada de mucosa
lembrava uma rodela de lula frita (médicos adoram essas comparações
nojentas). Uma vez retirado o aparelho, terminava o procedimento. Simples,
prático e genial.
Ficamos estupefatos. Enquanto eu ainda estava em transe, um colega
me cutucou e perguntou baixinho:
— Tudo bem que o método é excelente, mas será que depois de
prender todos estes grampinhos no reto, o paciente poderá fazer sexo anal?
Tendo ouvido a dúvida, os médicos ao redor também ficaram
curiosos. Não é incomum operarmos homossexuais. Eles certamente nos
questionariam sobre isso. Ficamos intrigados, mas, no meio daquele
auditório imenso, ninguém teve coragem de expor a dúvida. De qualquer
forma, quando recebemos um folhetinho do congresso questionando sobre a
qualidade das exposições e pedindo sugestões de novos temas, escrevemos:
visão médica do sexo anal. O congresso é anual, mas até hoje nunca houve
uma palestra a respeito; acho que não levaram a nossa sugestão a sério.
Voltando a falar sobre o consultório, constatei que para cada caso
atendido de pedra na vesícula, atendia uns vinte casos de mau hálito ou de
lingua branca. Para cada obstrução intestinal por tumor, vinte distensões
abdominais por origem emocional.
Tive de estudar tudo de novo, pois, durante a residência, para cada
hora de estudo nos capítulos de hérnias ou úlceras, devo ter gasto um
segundo nos capítulos de mau hálito, lipoma ou flatulência. Eram coisas que
nenhum residente de cirurgia tinha o menor interesse em aprender e que,
agora, movimentavam o meu consultório!
Isso ocorre em qualquer área. O cardiologista não vai encontrar na
clínica privada nenhuma síndrome de Wolf-Parkinson-White. Vai atender a
pressão alta e colesterol elevado. O endocrinologista não verá
acromegálicos, e, sim, gordinhos diabéticos.
Como cirurgião, acreditava que sairia operando a torto e a direito,
mas estava parcialmente enganado. Tendo em vista as queixas que abordava,
apenas uma minoria acabava sendo submetida a tratamentos cirúrgicos. E
dos procedimentos que indicava, a maioria não tinha o menor glamour.
Deixei a residência querendo enfrentar casos desafiadores. Entretanto, antes
que eu pudesse me tornar um pouco mais conhecido como cirurgião de
vísceras, virei referência em unha encravada!
Existe um sábio aforismo em cirurgia que diz"o ótimo é inimigo do
bom': Muitas vezes, ao querermos limpar um pouquinho mais uma artéria (o
que seria tecnicamente lindo, mas desnecessário), acabamos lesando-a e
perdendo um templo para estancar a hemorragia. É na área do agrião que
nossos auxiliares nos relembram desta frase, alertando-nos para não tentar
melhorar o que já é suficientemente bom. As manicures que não conheciam
esse aforismo acabavam, em busca da perfeição, encravando as unhas e me
gerando clientes.
Logo no início da clínica, pude constatar que, além da parte médica,
havia a administrativa. Tive que ordenar e estipular como seria o
agendamento das minhas consultas e em qual dia operaria. Decidir se faria
encaixes de atendimento e como os faria, quando receberia os
propagandistas, pagaria as secretárias e até como tiraria férias.
Curiosamente, alguns pacientes não viam com bons olhos médicos que
tiravam férias. Para evitar esses aborrecimentos, alguns colegas as juntavam
com viagens de eventos ou simplesmente batizavam as suas férias de
"congresso". É muito mais chique dizer para os pacientes que o médico foi
dar aulas num simpósio da Bahia do que "está relaxando na Bahia". Essa
constatação faz parte do próximo item que discutirei da clínica privada e que
acredito praticar muito mal.
Passei por algo muito peculiar no meu consultório: um senhor
solicitou um check-up anal!
Fiz várias perguntas relacionadas a possíveis doenças e sintomas
anais, sendo todas as respostas negativas. Após a história clínica, fui
examiná-lo. Não encontrei nada de anormal. Durante essa avaliação, o
paciente resolveu contar o que o angustiava:
— Doutor, na verdade o procurei pois o meu parceiro disse que sou
largo, frouxo. Será que o senhor poderia dar uma apertadinha?
Apesar de existirem cirurgias para incontinência anal, não domino
essas técnicas. Mas mesmo que as dominasse, nunca vi nenhuma indicação
com esse propósito sexual-estético. Eu conhecia o "ponto do marido", que
aproxima os músculos da vulva após incisão que alarga a vagina durante o
parto normal. Que eu saiba, não existe um ponto do marido gay e eu
contraindiquei uma intervenção cirúrgica. Para que ele não ficasse muito
frustrado, orientei alguns exercícios para fortalecer sua musculatura local.
Quando cheguei em casa, comentei o caso com a minha esposa que,
apesar de também ser médica, não é cirurgiã. Ela me perguntou:

— E por que você não o operou? Se você fizesse a cirurgia, poderia


virar referência na região!
Quem diria! Bastaria adaptar algumas técnicas de cirurgia anal para
esse propósito e, com um bom marketing, poderia ficar rico!
Expliquei os motivos para que ela também entendesse o porquê de
não tê-lo operado, mas não pude deixar de imaginar como seria o meu
consultório caso acatasse a sua sugestão: pôsteres da Golden Gate Bridge,
bandeiras com arcos-íris e a minha sala de espera lotada...
O marketing entre médicos ainda é muito malvisto, pois facilmente
nos colocará diante de dilemas éticos. Há plásticos que anunciam suas
cirurgias colocando fotos de antes e depois, dermatologistas que produzem e
vendem seus próprios cosméticos e muitas outras infelicidades similares. Eu
não divulgava resultados maquiados das minhas cirurgias, não inventava
cartas de agradecimentos nem ligava para as rádios da cidade fingindo ser
algum paciente agradecido. Não pagava matérias em revistas, não comprava
medalhas de supostas homenagens, não dependurava os certificados dos
milhares de cursinhos tolos que fizera durante o internato nem distribuía
panfletos nos semáforos alertando para os riscos de possuir uma pedra na
vesícula. Não interrompia as minhas consultas fingindo atender a um
telefonema do governador, não botava a culpa em outros colegas ou em
Deus quando as coisas iam mal. Não aumentava a gravidade da doença para
depois exaltar minhas vitórias. Não tirava fotos ao lado de grandes
personalidades da cirurgia como se fossem meus amigos íntimos.
Excluindo as condutas antiéticas, sei que marketing é fundamental e
que poderia ter feito muito mais. Sempre me esquecia de fornecer meus
cartões, não mandava cartão de Natal perguntando como estava o estômago
dos meus doentes, não passava o dia tomando café na cantina do hospital e
deixava o conceito de vitrine um pouco de lado. Mas, na verdade, isso
também fazia parte de uma estratégia.
Os pacientes e os colegas precisam saber o que fazemos e como
fazemos. Que somos responsáveis, cuidadosos, atenciosos e competentes.
Acredito que, por não ficar me pavoneando, por não dificultar o trabalho de
outros colegas (seja por meio de reserva de mercado, seja denegrindo-os
injustamente) e por tratar adequadamente meus pacientes, isso funcione
como uma boa publicidade. Entretanto, percebi que os pacientes e os
próprios colegas têm dificuldade em separar o joio do trigo.
Lembro-me de ter lido uma interessante reportagem em uma revista
semanal sobre "os médicos que os médicos indicam". Se o objetivo da
revista era, com essa estratégia, descobrir os melhores especialistas, poderia
ter errado. A questão mais adequada para esse fim seria "os médicos que os
médicos indicam quando a mãe deles fica doente".
Isso porque os colegas encaminham seus pacientes para quem eles
gostam ou lhes trará alguma vantagem e não, obrigatoriamente, para quem é
o mais competente. Apesar disso a lista, a meu ver, cumpriu com o seu
objetivo, mas fica aqui a minha recomendação para a próxima reportagem...
Com o consultório, voltei a dar plantões de retaguarda da cirurgia.
Dessa vez de uma forma muito mais viável e numa cidade que não registra
diariamente dezenas de quilômetros de congestionamento. Não precisaria
mais ficar duas ou três horas no trânsito para ver cada paciente. E nem por
isso o estresse desapareceu. À medida que ganhava reconhecimento, atendia
a casos mais complexos e minhas dúvidas aumentavam.
Um mar de dúvidas

"Só sei que nada sei."

SÓCRATES

Sempre que inauguramos uma etapa em nossa vida, evidenciam-se


novas dúvidas e há, naturalmente, certa insegurança. Isto é ainda mais nítido
para quem passa a trabalhar sozinho e com uma ciência inexata; exatamente
o meu caso ao deixar um ambiente universitário e inaugurar a clínica
privada.
Foi necessário muita garra para suportar a responsabilidade de
possuir pacientes particulares e viver na incerteza amplificada pelo
desamparo, na ausência de superiores hierárquicos e do seu conhecimento
acolhedor. Às vezes, tinha a impressão de que não sabia nada. Não por falta
de estudo; quanto mais lia, melhor compreendia a nossa ignorância.
Trabalhamos com algo que "não podemos errar", desconhecendo a sua
totalidade. O resultado só pode ser a incerteza, com quem não é fácil de
conviver, ainda mais na minha especialidade que lida com o abdome (essa
palavra deriva de abdère, que significa afastar, ocultar, esconder). O médico
é um grande apostador e o paciente pode ser, como brincavam os residentes,
um grande Kinder Ovo — chocolate em forma de ovo que contém um
brinquedinho de montar no seu interior. Como William Osler dizia, "a
medicina é a ciência da incerteza e a arte da probabilidade".
O fardo ao conduzir um caso que foge do arroz com feijão e vai se
complicando cada vez mais é terrível. Essa situação ocorre com frequência,
pois cada caso é um caso, o que dificulta a nossa vida, mas, ao mesmo
tempo, confere uma beleza inigualável à medicina.
Lembro-me dos arrepios que sentia quando era solicitado a avaliar
um caso de "dor abdominal atípica" na enfermaria da reumatologia. Parecia
estar tratando de um ser de outra galáxia. Talvez um homo reumatologensis
ou algo assim. Eram pacientes diferentes, pois envolviam uma mistura de
distúrbios relativamente incomuns acometendo portadores de doenças raras.
O resultado era sempre um caso esquisito e inédito.
Os corticoides são potentes anti-inflamatórios que podem melhorar
algumas doenças mesmo que desconheçamos a sua causa. Por isso
brincávamos: "É nessas horas que deixamos de prescrevê-los por via oral e
passamos a indicá-los por via das dúvidas...". Não haverá um caminho certo
e bem delimitado a seguir. Seremos guiados pela experiência, pelo bom
senso, pela comparação a problemas similares e corrigidos, diariamente, pela
evolução clínica do doente. Nessa condição, a arte impera e a nossa angústia
precisa ser controlada. Quando o desenrolar dos fatos não está a contento,
mesmo atuando com empatia, continuaremos ruminando sobre hipóteses
diagnósticas ou abordagens terapêuticas alternativas. Ficamos insones,
tensos e irritadiços. Para que você possa sentir um pouco do nosso drama,
gostaria de narrar alguns desses casos excepcionais.
Dona Ariana era colombiana e trabalhava no Brasil como professora
de física. Foi despedida e resolveu voltar ao seu país. Estava sem convênio
médico quando sofreu um acidente de carro no trajeto para o aeroporto e
precisou ser operada. Depois de dez dias, recebeu alta e por estar passando
muito mal, procurou pelos meus serviços com uma suspeita tomográfica de
possuir um segmento intestinal necrótico, por falta de sangue.
Eu a operei e quebrei a cara com uma peritonite encapsulante. Trata-
se de uma condição em que as alças intestinais ficam tão aderidas que é
praticamente impossível liberá-las sem furá-las. E foi exatamente o que
ocorreu, até que eu pudesse descartar a hipótese de infarto intestinal.
Costurei tudo, mas ela desenvolveu uma obstrução do intestino que não
melhorava nem com reza brava. Ficou internada por dois meses, tendo febre
e vomitando. Todas as tentativas de tratamento falhavam ou criavam
situações paralelas que pioravam outras partes do seu problema. Um
remédio ajudava na infecção, mas atacava os rins. O cateter a nutria, mas
piorava a febre. O soro a hidratava, mas encharcava os pulmões...
O sofrimento da paciente era incomensurável e não pretendo
compará-lo ao meu. Mas acredite, sofria a cada dia com as nossas
frustrações. Segunda a domingo, dias e noites, tudo sendo aventado e nada
funcionando semana após semana. Nas minhas costas estavam a
responsabilidade de tomar decisões sem o apoio da experiência de casos
anteriores (pois inexistiam naquela apresentação), o medo da paciente, o
estresse de seus conhecidos e, para piorar, o controle dos seus limitados
recursos financeiros. Eu sabia de quanto ela dispunha e tentava, a todo custo,
solicitar o mínimo necessário de exames e procedimentos, para evitar a sua
falência orgânica e financeira. Agora pare, decore o livro inteiro de cirurgia
e clínica médica e me diga o que fazer.
Todos os dias, quando chegava à minha casa, pensava no que poderia
estar indo errado. Discutia o caso com outros médicos. Estudava. Não podia
parar e continuava operando outros doentes, fazendo plantões e dando
atenção à minha família. Não é nada fácil. A única coisa que me contentava
era lembrar-me da máxima dos plantonistas: "Plantão pode ser terrível, mas
uma hora sempre finda!". Dito e feito.
Acabamos por descobrir que ela vinha sofrendo uma infecção
generalizada por fungos resistentes às medicações habituais. Ela não
precisou de uma nova cirurgia, mas ficou vários dias na UTI restabelecendo
as suas funções vitais. Graças a todo o nosso esforço e, principalmente, à sua
persistência e paciência, curou-se. Ela perdeu uns vinte quilos e eu, três. A
diferença é que ela estava infectada e em jejum, enquanto eu comia umas
vinte barras de chocolate para, todo santo dia, aliviar as minhas angústias.
Dona Ariana foi um caso único, mas existem outros ainda mais
inusitados. Um desses casos sem precedentes ocorreu com o seu Rui.
Verifiquei toda a literatura médica disponível e não havia nada igual!
Ele sofreu uma sequência de eventos que dificilmente será
reproduzida, assim como a sua consequência. Primeiro, ele foi vítima de um
tiro no peito que o atravessou da direita para a esquerda, com o projétil indo
se alojar no seu abdome. Segundo, de um médico que resolveu não operá-lo
naquela ocasião.
Fantasticamente sobreviveu, mas depois de dez anos desenvolveu
uma comunicação anormal entre o pulmão e o estômago. Ele aspirava para o
pulmão tudo o que comia e, se respirasse muito fundo, enchia o seu
estômago de ar e não parava de eliminar flatos. Era uma coisa tão estranha
que demoramos a pensar na hipótese que, antes dele, inexistia. Como o caso
era inédito, também o seria seu tratamento. Tínhamos dúvida se operaríamos
primeiro o tórax ou o abdome, os dois juntos, antes ou depois de nutri-lo, só
para citar algumas questões.
Como podem perceber, a falta de evidências científicas pode
complicar em muito as nossas vidas. Mas pode ser ainda pior quando há um
excesso de clarividências pseudocientíficas.
A medicina baseada em clarividências

"Eu não me sinto


obrigado a acreditar
que o mesmo Deus
que nos deu os
sentidos, a razão e o
intelecto quis que
abdicássemos de seu
uso."
GALILEU GALILEI

Contei alguns casos vividos na clínica privada que aguçaram a minha


curiosidade. Mas muito maior espanto me causava a "medicina alternativa".
Isso porque, no meio acadêmico, essas práticas quase inexistiam.
Lembro-me da época em que a minha panela de internato estava no
estágio de pediatria. Um dos meus colegas tinha acabado de relatar a
evolução clínica do seu pacientinho, de forma muito formal e acadêmica,
quando a professora perguntou quais medicamentos ele vinha recebendo.
Sua resposta foi mais ou menos assim:
— Cefalosporina, betabloqueador, dipirona e florais. A professora,
naquele ambiente formal e alopático, levou um tremendo susto:
— Florais? Quem prescreveu isso? Na verdade, era a mãe do
paciente que vinha dando o produto. Nenhum médico prescreveria florais
naquela enfermaria e todos deram risadas.
Esse breve relato serve para demonstrar como éramos instruídos a ser
quadradinhos e acadêmicos na faculdade. Se ainda existe muita controvérsia
a respeito da eficácia da homeopatia, imagine como encarávamos qualquer
coisa que fugisse do habitual.22 Porém, pude confirmar em algumas ocasiões
que boa parte dessas terapias, realmente, não passa de crendice ou
charlatanice.
Seu César desenvolveu várias bolsas — divertículos — na parede do
seu cólon que inflamaram algumas vezes. Como as suas crises de dor eram
frequentes, ele procurou um cirurgião. Este sugeriu ressecar o segmento
afetado, evitando, assim, futuras inflamações de gravidade imprevisível. Mas
no intuito de se esquivar de uma cirurgia convencional e suas possíveis
consequências, seu César optou por procurar um médium, a quem eu batizei,
aqui, de Doutor Wolfgang.
Sempre impressiona um nome germânico, principalmente no Brasil
(eu não me surpreenderia se na Alemanha o médium tivesse o nome de"Pajé
amazônico Arapuca Açu Babaquara" — Do Tupi armadilha, grande-tolo).
Ele me contou que, após explicar o seu problema, o "doutor" indicou
uma cirurgia espiritual. Esperava apenas uma massagem no local da dor ou
algo parecido, mas, para o seu espanto, o médium retirou uma parte de seu
intestino com as próprias mãos! E não foi necessária nenhuma incisão na
pele. Sem dor alguma, lá estavam as suas tripas doentes extirpadas,
escorrendo fezes e ainda sangrando.
Não é preciso dizer que isso o impressionou muito e, curiosamente,
suas crises cessaram por um bom tempo. Mas, como voltaram, ele procurou
novamente um médico que, desta vez, era eu.
Os seus exames do intestino eram muito antigos e resolvi repeti-los.
É evidente que sua doença ainda estava ali, igualzinha a antes. Enquanto eu
comparava os exames, surpreendi-me ao perceber que o paciente tinha
ficado admirado pelo fato de seu intestino ainda estar dentro da sua barriga,
tudo como era antes:
— Mas ele não retirou? O que ocorreu? Dizem que crença não se
discute ou que não é muito elegante que seja discutida. Não entrando no
mérito dessa questão, gostaria de convidá-lo a raciocinar um pouco.
Embora eu não acreditasse em cirurgia espiritual, sabia que ela
poderia trazer benefícios ao paciente principalmente em decorrência do
efeito placebo. Mas, tentando levar o procedimento a sério, como se,
realmente, o intestino fosse ressecado, comecei a filosofar sobre algumas
questões envolvidas no tratamento empregado.
Antigamente, quando ainda não existia anestesia, o cirurgião
precisava ser muito rápido. Atualmente, isso não é mais uma necessidade e
quanto mais apressado for o cirurgião, mais "bifadas" — quando cortamos
algo errado ou na dose errada — e sangramentos ocorrerão. Por isso, um
colega sempre me dizia: "Vamos devagar para acabar rápido!". Para que uma
cirurgia fique boa, não arrancamos nada. Devemos operar segundo os rigores
da técnica: dissecar os tecidos com delicadeza, imprimir o menor trauma
possível, realizar um bom controle de sangramentos e uma hermética sutura
dos órgãos.
Quando tudo isso é realizado, a peça cirúrgica sai do paciente com
todos os seus vasos amarrados e não vazando sangue ou fezes. Se o doutor
Wolfgang simplesmente arranca um naco de intestino, imagino que dentro
do abdome as tripas também fiquem sangrando e vazando. Ele deve ser, no
nosso linguajar, um "baita tigrão"!
Os divertículos mantiveram-se após a cirurgia espiritual. A ressecção
fora incompleta? Teria ele ressecado um segmento do lado errado?
Tendo retirado uma porção do intestino, ele deve ter costurado as
extremidades remanescentes. Será que nunca houve um vazamento da
sutura, nos casos de maior risco, quando, habitualmente, colocamos drenos?
Aliás, nunca vi um paciente sair com dreno de nenhuma cirurgia espiritual.
Dr. Wolfgang, segundo dizem, seria a reencarnação de um grande
cirurgião alemão. Isso quer dizer que ele já morreu; viveu no passado. E
deve ter sido há muito tempo, pois já se esqueceu do seu idioma (não
compreende palavras da sua lingua materna quando atende descendentes de
alemães no Brasil). Não acredito que ele tenha frequentado cursos de
atualização no Além. Assim, seria de se esperar um desconhecimento das
doenças mais recentes (como a Aids) e das técnicas cirúrgicas modernas.
Suas condutas seriam antigas e defasadas. Há poucos anos, por exemplo,
uma costura de intestino grosso sem a completa eliminação prévia do seu
conteúdo era totalmente proscrita. Mas também nunca vi uma colostomia
para evitar uma costura de risco ou orientações para um esvaziamento
intestinal antes de uma cirurgia espiritual.
De qualquer forma, esse Dr. Wolfgang devia ser muito bom mesmo.
Espero que opere com a destreza que possuía no auge da sua carreira
cirúrgica e não como nos seus últimos anos de vida, acometido por tremores
e vista cansada...
Eu poderia fazer essas e outras várias indagações sobre os seus
procedimentos. Mas penso que a questão fundamental é: vale a pena enganar
o paciente para se obter o efeito placebo?
Vários médicos agem dessa forma em casos de distúrbio
neurovegetativo (DNV), como já discorri. Entretanto, nenhum deles fala que
o paciente está curado ou que poderia jogar fora suas muletas, caso a doença
ainda continue presente. Nesses episódios, pessoas com doenças graves
poderiam perder as chances de ser tratadas com seriedade e, eventualmente,
curar-se, acreditando em um alívio temporário graças ao efeito placebo (caso
a doença não se cure sozinha).
Sem hipocrisia, é claro que a volta das dores não correspondia a uma
complicação da cirurgia espírita. O que ocorreu foi estudado anteriormente.
Se o paciente ficou impressionado com a cirurgia, ficaria mais
impressionado ainda em saber que o intestino extirpado não era humano!
Certa vez um cético se deu ao trabalho de ir a uma dessas sessões e
coletar as tripas e cálculos que eram extirpados pelo médium durante suas
manobras. Todo o material foi encaminhado para exame laboratorial. Não é
de se surpreender que os intestinos fossem provenientes de porco ou galinha
e os cálculos, de sal grosso ou de minerais inexistentes no corpo humano...
César não viu onde estavam as vísceras antes de elas serem retiradas,
e o médium certamente não lhe mostrou suas mãos vazias antes do
procedimento. Eu não me surpreenderia se em vez de uma tripa tivesse
retirado um coelho ou cartas de baralho. A diferença é que nesses casos não
haveria efeito placebo e a dor não teria melhorado.
A medicina tradicional não é uma panaceia e é compreensível que as
pessoas busquem outras opções para resolverem os seus males, pois quando
estão doentes e com problemas graves ficam especialmente susceptíveis a
tratamentos e terapeutas de todas as espécies. Os alternativos não são regidos
pelo juramento de Hipócrates e muito menos regulamentados por algum
órgão competente, como ocorre conosco. Voltam-se muito aos sintomas e
pouco às doenças, e para qualquer terapia deve existir ao menos uma
hipótese diagnóstica (caso contrário poderão estar tirando a dor de cabeça de
alguém que precisa, na verdade, extirpar um tumor cerebral). As suas
condutas são baseadas em dogmas e não em pesquisas. Para piorar,
encontraremos nesse segmento, com maior frequência do que no meio
médico, os charlatões mal-intencionados e os crédulos bem-intencionados,
embora incompetentes.
Quem os procura correrá riscos de se submeter a tratamentos
ineficazes nem por isso inócuos. Há possíveis malefícios, mesmo que
advindos da ausência de benefícios.
Diferentemente de outras profissões, o médico ao se graduar não
promete, ele jura. E um dos primeiros aforismos que aprende será: "Primo
non nocere" (em primeiro lugar, não lese); portanto, não posso me sentir
muito bem quando ouço alguém falar em tratamentos alternativos. Já vimos
besteiras terríveis demais e pretendo exemplificá-las.
Seu Woo, um senhor de 70 anos, era saudável até o momento em que
começou a sentir cólicas abdominais e parou de evacuar. Não conseguia
mais eliminar gases e seu abdome, em poucas horas, inchou como um balão.
Procurou um terapeuta que lhe aplicou várias ventosas no dorso. Como não
houve melhora, no outro dia iniciou um tratamento com chás de ervas
naturais (qual erva não é natural?), mas a distensão abdominal piorou. O
terapeuta insistiu no tratamento, mas ele não aguentou. Estava vomitando
fezes quando resolveu procurar o pronto-socorro. Ao examiná-lo, era óbvia a
necessidade de uma cirurgia de urgência.
Um pequenino tumor havia causado uma obstrução em seu intestino
grosso. Este foi se dilatando até que estourou, disseminando fezes por todos
os lados. Apesar da cirurgia, ele morreu pela infecção.
O terapeuta tratou sem sucesso dos sintomas e adiou o diagnóstico de
uma doença que seria operada e curada sem grandes dificuldades, desde que
pelo profissional adequado. A terapia "natural", que à primeira vista parecia
simpática e inocente, revelou seu potencial perigo ao postergar um
tratamento consagrado.
É comum flagramos pacientes associando o natural com saudável e
seguro.
Para começar, a barreira entre algo natural e artificial nem sempre é
nítida. Penicilina era fabricada por um fungo, assim como alguns fármacos
que diminuem o colesterol. A dipirona e a aspirina são originárias de
árvores, e criamos fibras de colágeno em laboratório. O que é artificial?
Além disso, nem tudo que é natural é seguro. Ingredientes
corriqueiros em nossa alimentação, como a noz-moscada e a mandioca,
podem matar. Não estou me referindo a uma "mandiocada" na cabeça, mas
sim a envenenamento! Aquele inócuo Ginkgo biloba que a sua vizinha
recomenda pode agravar de forma importante uma hemorragia. E quem
nunca ouviu a história da vovó que foi achada cantarolando e lavando o seu
televisor no tanque de lavar roupas, após tomar inadvertidamente um copo
de chá de cogumelos?
As pessoas precisam tomar cuidado com essa associação. Cocaína,
tabaco e fezes têm origem natural, mas, se ingeridos, fazem mal. E qual água
é mais saudável: a dos rios ou a engarrafada? De vez em quando é preciso
refletir.

Amanda era um nenê lindo, simpático e sorridente que começou a ser


acompanhado por um pediatra "não muito ortodoxo".
Um pouco alternativo demais, parece ter permitido que a mãe fizesse
algum tipo de tratamento natural que substituiria o uso das vacinas. Esse
tratamento deve "funcionar", afinal, a maioria das pessoas não desenvolverá
tétano, difteria ou hepatite B. Mas, nesse caso, para o azar de todos, e
principalmente da criança (que como a mãe, ainda não possuía o
discernimento para definir se deveria ou não ser vacinada), ela desenvolveu
uma meningite, para a qual existe, e é recomendável, a imunização.
A menina sobreviveu, mas ficou surda e sequelada para sempre,
assim como a coitada da mãe. Espero que o seu pediatra também sinta o
peso das anomalias cujo aparecimento facilitou, pois isso não ocorreu apenas
em uma ocasião e parece continuar acontecendo graças a um modismo
pouco sustentado em se evitar a vacinação infantil.
Ouvi argumentos de pessoas que não estariam vacinando os seus
filhos "porque as vacinas teriam efeitos colaterais", "deixariam de estimular
naturalmente o sistema imunológico", seriam "desnecessárias" ou "trocariam
doenças agudas por crônicas"!
Certamente existem os efeitos colaterais, mas são muito bem
estudados para que seus malefícios sejam suplantados pelos benefícios.
Prefiro que meu filho tenha dois dias de febre após uma vacina de meningite
(evidenciando o seu estímulo ao sistema imunológico) do que sequelas dessa
doença para o restante da vida (se sobreviver).
O organismo humano não tem como distinguir se o estímulo é
natural ou induzido. A prova disso é que, uma vez imunizado, ele atacará,
inclusive, o germe natural para o qual a vacina foi concebida... Os que
desejam tudo de natural para os seus filhos deveriam reavaliar seus
conceitos, pois acredito que habitem em casas com energia elétrica,
saneamento básico e desfrutem de tudo o que é industrializado.
Imunizações podem ser "desnecessárias" em um ambiente onde todos
os outros são vacinados, mas, certamente, fizeram muita falta em várias
epidemias não muito distantes.
A maior prova de que funcionam está exatamente no último e mais
estranho argumento: a troca de doenças agudas por crônicas. Em primeiro
lugar, as doenças crônicas não possuem vacina, caso contrário seriam
evitadas. Em segundo, quem adquiria tétano ou varíola não desenvolvia
osteoporose ou Alzheimer simplesmente por que morria antes!
Como médico e humanista, não posso deixar de me aborrecer com a
divulgação de algo sabidamente danoso à sociedade, como se fosse uma
grande descoberta ou revelação. Se essa corrente acredita que as crianças
não devam ser vacinadas, então cabe a ela provar cientificamente a sua
teoria antes de aplicá-la. Essa é a diferença entre crença e ciência.
Muito comumente ouvimos alguns pacientes dizendo que não
querem ser cobaias dos médicos ou que estes são muito céticos. Pois bem, o
bom profissional deve ser cético justamente para que seus pacientes não
sejam cobaias! Quando indicamos determinado tratamento, muitos se
esquecem do imenso número de conhecimentos e estudos que o
antecederam.
Para aplicarmos qualquer terapia, o primeiro passo consiste em
conhecer o funcionamento normal de determinado órgão ou sistema
(fisiologia), para depois entender o mecanismo de determinada doença que o
acomete (fisiopatologia). Conhecendo esses dados, podemos procurar o
tratamento por meio do raciocínio lógico: "Se determinado fator causa falta
de ar por inchaço dos brônquios, qual substância diminuiria esse edema?".
Apesar disso, devo admitir que muitas descobertas surgiram com
uma ajudinha do acaso. Ao investigar uma droga antidepressiva, por
exemplo, constatou-se que boa parte dos seus usuários deixava de fumar.
Hoje, a droga tem mais indicação contra o tabagismo do que contra a
depressão.
Ainda nessa linha, descobriu-se outra das mais lucrativas drogas. O
Viagra estava sendo criado para ser um anti-hipertensivo. Durante o seu
desenvolvimento, constataram que os pacientes estavam muito mais
satisfeitos com o seu efeito colateral do que com a queda em seus níveis de
pressão arterial. Com isso, a indicação passou a ser empregada em casos de
impotência sexual, enquanto, ao menos na bula do medicamento, hipotensão
virou efeito colateral!
Exemplos não faltam. Porém, independentemente do acaso ou do
raciocínio, o importante é que depois, em ambos os casos, tudo será testado
em pesquisa científica. Esta se inicia em tubos de ensaio, passa para animais
de experimentação e, só então, chega ao homem.
A medicina procura abandonar cada vez mais o empirismo individual
e se basear em evidências. Estas são graduadas em vários níveis de solidez,
de acordo com a sua fonte. Indicar algum tratamento porque funcionou na
avó do vizinho, por exemplo, é uma evidência de solidez maria-mole.
Sabemos que as melhores possíveis são as oriundas de diferentes trabalhos
multicêntricos, randomizados e duplo-cegos. Calma, não pule a página. Vale
a pena entender como se faz uma pesquisa séria!
Estudos multicêntricos são dirigidos por grupos distintos, o que
diminui a chance de manipulação dos resultados, além de incluir um número
maior de pacientes. Muitas vezes os grupos são rivais e têm pontos de vista
diferentes. Cada um tentará provar, dentro dos limites da ética, que está certo
no que pressupõe. Assim, essa competição acaba sendo muito saudável, pois
no final das contas o que se cria é uma parceria. É esta união de várias
entidades diferentes que apontará para o que é, ou não, verdade, ainda que
transitória, pois sabemos da volubilidade delas. Sempre deixaremos espaços
para dúvidas, questionamentos e novas teorias, coisa que a medicina
alternativa, com os seus dogmas, repudia.
Em relação ao número de indivíduos testados, sabemos que quan—
to maior mais representativo será. Precisamos observar o mesmo fenômeno
algumas vezes para aceitá-lo, diferentemente dos crédulos que, com um
único resultado, criam verdades imutáveis.
Para analisar um tratamento, precisamos avaliar os seus resultados e
compará-los aos de um grupo controle que utilizou outra medicação. Esse
grupo precisa ser compatível. Não dá para comparar os resultados de um
remédio para crescimento aplicado em crianças na caatinga brasileira com
outro administrado a meninos noruegueses. Visando à homogeneidade, a
seleção dos pacientes de cada ramo deve ser aleatória, randomizada.
Para que o pesquisador possa analisar os dados com maior
idoneidade, nem ele nem os pacientes devem saber se estão utilizando a
substância A ou B. Isso somente deverá ser revelado ao final do estudo.
Dessa forma, a análise será duplo-cega.23
Além disso, os estudos devem ser preferencialmente prospectivos e,
para finalizar, nem teriam começado sem passar antes pelo crivo de uma
comissão de ética.
Pelo fato de os cosméticos não serem considerados medicamentos,
no Brasil, as suas pesquisas podem ser bem menos rígidas. Assim, a sua
esposa pode estar gastando um dinheirão num creme antirrugas testado e
aprovado, e que não funciona! Mas você ainda acredita que a beleza da
modelo na propaganda é mérito do produto? Se assim fosse, o fabricante
imediatamente divulgaria os seus benefícios adicionais: o creme também
deixa as íris azuis, emagrece, elimina celulite e turbina as mamas!
Agora me diga: quantos trabalhos multicêntricos, randomizados,
duplo-cegos e prospectivos aquele moço da TV realizou ou estudou, antes de
falar sobre os fantásticos resultados da sua nova invenção para o tratamento
da calvície?
Mesmo assim, você achou o tratamento muito interessante e vai
realizá-lo. Parabéns, você será mais uma cobaia e, talvez, mais um trouxa!
Pode ser que neste instante você esteja olhando para este livro meio
de lado, ao recordar de como funcionou aquele chá de ervas naturais em seu
caso: "Esse doutor é bitolado. Claro que a medicina alternativa funciona!".
Não estou dizendo que não funciona! Não é possível nem
aconselhável colocar tudo o que se chama de medicina alternativa no mesmo
balaio. Mas o que realmente é eficaz e comprovado por pesquisas sérias
deixa de ser alternativo e passa a ser tradicional, como ocorreu com a
acupuntura. A medicina tem todo o interesse do mundo em englobar
diferentes formas de tratamento, desde que realmente efetivos. Muitos
métodos ainda não foram estudados e, provavelmente, terão sua validade
comprovada no futuro. Mas enquanto isso ainda não ocorre, não irei arriscá-
los em meus pacientes. E quanto ao fato de a mandinga ter funcionado em
seu caso, gostaria de alertá-lo sobre alguns aspectos.
Em primeiro lugar, você pode ter se auto enganado, achando que
melhorou, para não se sentir tapeado. Essa reação é muito comum e os
psiquiatras a chamam de negação, um poderoso mecanismo de defesa do
ego.
Certa vez, minha esposa se surpreendeu com o fato de a minha barra
de chocolate ainda existir, enquanto a dela já tinha sido devorada havia dias.
Expliquei que eu estava comendo um pedacinho por vez, quando ela
exclamou: "Detesto gente comedida!" Na verdade, ela detestava a própria
incapacidade de ser comedida e, lançando mão de outro mecanismo de
defesa do ego (a projeção), para não se frustrar, projetou sua frustração em
mim.
Em segundo lugar, muitas doenças são autolimitadas. Um resfriado,
por exemplo, melhora após alguns dias com ou sem remédios. Suponhamos
que você estivesse resfriado e tivesse tomado dipirona na terça-feira, sem
melhora. Trocou então por paracetamol na quarta e, cansado de sofrer,
mesmo se arriscando a ser preso pelo Ibama, arranjou um jabuti e o deixou
embaixo da sua cama na quinta-feira, quando melhorou! Será essa simpatia
poderosa ou o resfriado que se curaria de qualquer forma?
Vejo a segunda hipótese como bem mais plausível, embora a
primeira seja muito mais charmosa e aventada. O ser humano tem a
interessante capacidade de associar fatos e uma surpreendente incapacidade
de perceber que apenas agrega os que lhe convém. Se eu fosse místico,
apostaria que a melhora adveio não da presença do réptil, mas da passagem
de Marte pela casa de Júpiter...
Em terceiro lugar, apesar de raras, as regressões espontâneas podem
ocorrer até em doenças incuráveis, ainda sem uma explicação científica
individual muito convincente. Achei muito interessante uma colocação de
Carl Sagan, quando discorria sobre os milagres ocorridos em Fátima.24
Quando estes acontecem, a própria Igreja de encarrega de estudá-los e, por
que não, divulgá-los. Considerando o número de visitantes a Fátima com
determinada doença e o número de curas espontâneas relatadas naqueles
casos, ele constata estatisticamente ser mais fácil ter uma regressão da
moléstia em casa que no local sagrado. Então, contraindica a ida à Europa
com esse objetivo...
Em quarto lugar ficam os acontecimentos isolados. As fontes de
evidências que consideramos mais frágeis são os relatos de caso. O que
ocorreu em um único paciente, por mais interessante que seja, não pode ser
tomado como regra geral. Na maioria das vezes, funciona apenas como
curiosidade ou lembrete sobre determinado aspecto. Isso vale, por exemplo,
para o seu vizinho que, realmente, curou-se de uma úlcera bebendo,
diariamente, a água quente do chuveiro...
Em quinto lugar e mais importante, existe o efeito placebo. Este
atrapalha ainda mais a interpretação dos fatos pelos leigos.
Se quisermos testar determinado remédio estimulador da memória, o
ideal seria selecionar dois grandes grupos aleatórios e submetê-los a provas
específicas. Testes similares seriam então reaplicados após a ingestão da
droga a ser testada. Entretanto, uma metade receberia a substância a ser
estudada e a outra tomaria comprimidos sem poder terapêutico, por exemplo,
de farinha (seria o placebo). As pílulas deveriam possuir a mesma aparência.
Tanto os médicos quanto os pacientes não poderiam saber distingui-las. Sabe
o porquê disso? Porque mesmo com o placebo existirá uma resposta
positiva!
O remédio será considerado eficaz somente se sua atividade for
estatisticamente superior à do placebo. Nessa pesquisa, a memória
provavelmente melhoraria com o uso de qualquer um dos dois. Resta saber
qual deles seria o melhor.
Compreenda a importância deste último parágrafo. Quando o
paciente acredita que o seu tratamento é eficaz, a resposta costuma ser maior.
Caso ele confie em seu médico, a melhora pode beirar os 30% ou até 40%
apenas com farinha!
Quanto mais convincente for o doutor ou o charlatão, mais
impressionantes poderão ser os seus resultados. Isso explica as "melhores
previsões" desvendadas por uma vidente envolta por todo um ambiente
misterioso, quando comparadas às de uma máquina eletrônica do shopping
com um desenho de faraó. É mais provável que a dança do pajé melhore a
dor de cabeça do índio do que a do cara pálida. O inverso também pode ser
verdadeiro, mesmo que com um comprimido de algum conhecido
analgésico.
O placebo reflete o poder de nossa própria mente e nunca deve ser
subestimado. Quando alguém percebe alivio de determinada doença (em
geral psicossomática) com algum tratamento esquisito, provavelmente o
mérito caberá a si próprio (graças à sugestão do terapeuta) e não às
emanações transcendentais do amuleto mágico, da energia cósmica liberada
pela lama sulfurosa do Tibete ou às areias de algum rio sagrado. Mas nem
todos concordam comigo. Muitos desses terapeutas têm como objetivo, na
verdade, o compartilhamento de determinada crença.
São pessoas que adoram falar e não conseguem ouvir. Tentam
convencer-nos por meio de argumentos "lógicos". Entretanto, a sua lógica
costuma ser ligeiramente distorcida, pois quando realmente aplicada
desbanca seus próprios argumentos. Adoram divulgar dados científicos
favoráveis às suas crenças, mas quando isso não ocorre argumentam que
seus métodos não podem ser aferidos cientificamente.
Tendo em vista esse estranho funcionamento mental, fico um pouco
menos espantado com a quantidade de bobagens pseudocientíficas que vejo
em tudo quanto é coisa.
Você já ouviu falar da água magnetizada? Pois bem, valendo-se do
seu senso comum, raciocine se não seria muito mais lucrativo para os
hospitais investir no monopólio dos bebedouros de água magnetizada (que
curariam desde depressão até tuberculose) do que em médicos ou em
aparelhos caríssimos de diagnóstico. Para que indicar medicamentos e sofrer
com os seus efeitos colaterais quando a água magnetizada cura tudo? Para
que pagar um médico se, ao passar mal, você poderia tomar alguns goles
dessa aguinha e ficar saudável? Qual o sentido em discriminar diagnósticos
se ela resolve qualquer coisa? Por que a medicina reluta em usar algo tão
maravilhoso?
Falando em coisas fantásticas, relembrei-me da historinha do
zoológico de Havana.
As placas orientavam: "Por favor, não alimente os animais" Com a
dissolução da União Soviética, as ajudas externas minguaram e veio a crise.
As placas precisaram ser alteradas para: "Por favor, não coma a comida dos
animais" Com o agravamento da economia houve uma nova correção: "Por
favor, não coma os animais!"
Esta fábula não teria existido com a ajuda de algumas belas moças
que vi na televisão. Elas diziam se alimentar apenas da luz solar. A medicina
também precisaria aprender tal método! Para viver do sol, elas teriam de
realizar a fotossíntese como as plantas. Talvez eu acreditasse nessa história
se alguma delas tivesse a mesma tez de cor verde do incrível Hulk. Mas, na
verdade, o que mais me intrigou nessas moças foi o egoísmo. Eu as enxergo
como verdadeiras assassinas! Cadê a sua responsabilidade social? Se se
nutrem apenas de luz, por que não ensinam aquelas crianças desnutridas da
África a fazer fotossíntese? Não perceberam como poderiam ser úteis ao
governo inserindo suas maravilhosas técnicas no programa"Fome Zero"?
Enquanto houver quem acredite, alguns continuarão a inventar
técnicas e tratamentos esdrúxulos, que, na maioria das vezes, serão
ineficazes (eficácia igual à do placebo). Mas, mesmo que ineficientes, boa
parte desses tratamentos é charmosa e convidativa. Um banho de pétalas
vermelhas no ofurô, por exemplo, pode não curar o câncer, mas deve ser
uma delícia! Porém, que tal um tratamento com irrigações intestinais?
Humm!
As lavagens intestinais existem há muito tempo e ainda possuem suas
indicações. Nelas, introduz-se uma sonda pelo anus, através da qual se injeta
água ou outras medicações visando ao amolecimento do bolo fecal e à sua
eliminação. Mas alguém resolveu ressuscitar a ideia de sua vovó, que
acreditava ser necessário o uso de laxantes para nos livrar das impurezas.
O anúncio falava sobre "limpeza de detritos acumulados por anos"
(ou seria pelo ânus?)," limpeza de toxinas" e até "alívio de enxaqueca"!
"Métodos já consagrados nos Estados Unidos"... Afinal, algo que é
consagrado na América deve ser muito bom para a saúde; talvez como bacon
no café da manhã! Mas irrigação intestinal a esmo não é consagrada nos
Estados Unidos.
Detritos acumulados por anos! Até parece que alguém realizou um
teste do carbono 14!
Como pode haver detritos acumulados há anos, se o revestimento
celular do intestino se renova constante e completamente em menos de dez
dias? Se mesmo assim algo se acumula, como DDT ou metais pesados, será
que os removeremos com uma mangueirinha e água morna?
As pessoas têm muito medo das toxinas e, por isso, todo mundo
adora citá-las em anúncios sobre terapias. A boa notícia é que, para nos
livrarmos delas, fomos presenteados pela seleção natural com alguns
mecanismos depuradores. Ninguém nasce com um kit de lavagem intestinal
acoplado na placenta ou gêmeo siamês de uma enfermeira especialista em
hemodiálise. Fazemos cocô sozinhos e nascemos com rins, fígado e uma
série de mecanismos antioxidantes que se os terapeutas conhecessem
ficariam maravilhados (aliás, sempre que você ouvir alguém falando em
toxinas, sugiro que pergunte: "Quais, especificamente?". Nunca saberão
responder. Dirão apenas: "Toxinas, ué...".)
A expressão "enfezado" também denota alguém cheio de fezes. Se
você já passou por essa situação após ficar vários dias sem evacuar, poderá
se sentir distendido, empanturrado, mal-humorado e até com dor de cabeça.
Talvez o seu tratamento seja uma lavagem intestinal. Mas ficar fazendo
lavagens rotineiramente e sem uma indicação precisa não tem o menor
cabimento. E o pior, tem seus riscos! Não sei quem o dono da clínica
contratará para fazer seus enemas. Mas gostaria de lembrar que, mesmo no
hospital, onde os enfermeiros adquirem enorme experiência com tal
procedimento, vi casos de perfuração intestinal pela sonda da lavagem.
Esse anúncio era tão pitoresco, que me lembrou a história do homem
que ficou rico vendendo maçãs de Chernobyl.
No início acharam que ele estava louco ao exaltar a origem de suas
frutas. Afinal, quem soubesse que sua fazenda era em Chernobyl jamais
compraria as suas maçãs! Certo?
Surpreendentemente, o homem vendeu mais que todos os outros
lavradores juntos e ficou milionário! O segredo do seu sucesso é que todo
mundo comprava caixas e mais caixas para presentear entes não muito
queridos. Havia encomendas para chefes, políticos, ex-mulheres... Talvez o
indivíduo que inventou a terapia das lavagens intestinais também fique rico
de forma similar. Você não se dá bem com a sua sogra? Que tal presenteá-la
com uma tarde inteira naquela clínica, submetendo-se a lavagens intestinais
intensivas? Não seria interessante que ela se livrasse de suas toxinas
regularmente?
Caro leitor, existe uma regra universal em ciência: a explicação mais
simples deve ser a mais correta. Quando ouvir alguém falar sobre um novo
tratamento qualquer, utilize o senso comum, raciocine um pouquinho e
busque sempre a explicação mais singela. E não se esqueça: alegações
excepcionais demandam provas excepcionais!

22LINDE, K; Joins, W Are the clinical effects of homoeopathy placebo


effects? The Lancet 2007;366:2081-2.

23Parecebobagem? Então leia a pesquisa publicada em The Lancet.


2006;367:449-450 por Lain Chalmers e Robert Matthews: What are the
implications of optimism bias in clinical research?

24SAGAN, C. O mundo assombrado pelos demônios. São Paulo: Companhia


das Letras, 2002.
A medicina virou um negócio da China!

"... O fato mais


espantoso acerca de
2002 é que os lucros
dos dez laboratórios
farmacêuticos na
Fortune 500 (US$
35,9 bilhões) foram
superiores aos lucros
somados de todas as
outras 490 empresas
(US$ 33,7 bilhões)...
"25
MARCIA ANGELL

Se boa parte da "medicina" alternativa é estatisticamente ineficaz,


por que ainda existe e é tão procurada?
Trabalhei alguns anos no pronto-socorro com um cardiologista
extremamente competente, mas dotado de um péssimo humor. Reclamava de
tudo a toda hora, fazendo jus ao seu apelido de garoto-enxaqueca. Apesar
disso, atendia os pacientes com atenção e carinho, o que só era possível
graças aos seus corriqueiros desabafos com os colegas: "É o décimo maluco
de hoje! Ainda não vi um doente de verdade! O único jeito de diminuir a
procura por esse pronto-socorro é pedir à prefeitura que acrescente
antidepressivos à água encanada! No SUS, atendo doentes; aqui, faço
teatrinho! Precisamos criar a ONG "Abrace um paciente com fibromialgia'!".
Eu simplesmente sorria e continuava trabalhando, mas, às vezes, os
seus desafogos despertavam a minha curiosidade:
— Deus do céu, precisamos de um biotério! — Biotério no pronto
atendimento — fiquei intrigado —, pra quê? — Sabe quando você atende
uma paciente de 50 anos cheia de dores esquisitas e "insuportáveis", com
vários exames absolutamente normais, tomando medicamentos sem alívio
dos sintomas, em pleno domingo e acompanhada pelo pai mal-humorado? É
a síndrome da mulher mal-amada.
— Acho que desta vez você está exagerando. De qualquer forma,
onde entra o biotério?
— Não adianta dar remédios para suprir carência afetiva. Ao liberá-
la do pronto-socorro não deveríamos fornecer uma receita e, sim, um tíquete:
"vale um porquinho-da-índia".
Fiquei imaginando as pacientes saindo do PS com uma interrogação
na face e carregando um saquinho com um porquinho-da-índia, peixinhos
dourados ou algo parecido...
Além de se valer desses descarregos para, segundo ele mesmo, não
"surtar", sonhava ansiosamente com o seu último plantão. Quando não
precisasse mais do seu salário para sobreviver, abandonaria o emprego de PS
e faria do último plantão "o dia da verdade". Nesse dia fatídico, nada de
mentir, atenuar, confortar ou minimizar. Falaria apenas as verdades: "Seu
diagnóstico é hipocondria. É um caso típico de falta de bom senso! A
senhora está gorda porque come demais. Isto são horas de vir ao pronto-
socorro por causa de um resfriado? Você procurou o médico por causa disso?
Teria sido melhor procurar a sua avó...".
Por sorte, o colega foi despedido antes que o dia da verdade se
concretizasse e algum paciente viesse a formular a perigosíssima questão:
— Doutor, o que o senhor acha? Lembrei-me dessa história não pelas
maluquices do colega e, sim, pelo desconforto que lhe trazia o atendimento
de pacientes com queixas emocionais e psicossomáticas. Para quem trabalha
numa unidade coronariana, acompanha traçados eletrocardiográficos e
pessoas conectadas a respiradores devido a doenças graves e agudas, atender
a queixas psicossomáticas crônicas pode parecer uma bobagem. Mas não é.
Elas representam boa parte do nosso atendimento, comprovando que
as pessoas são seres humanos e, não, um conjunto de órgãos, como a
medicina tende cada vez mais a enxergá-las. Se os médicos tratam somente
de órgãos acometidos em vez de indivíduos adoentados, é natural que estes
procurem alguém que faça o contrário. Este alguém, hoje, acaba sendo um
terapeuta alternativo...
Porém, existem outros motivos que também deixam a desejar na
medicina atual. Embora dentro do lícito, a medicina virou uma espécie de
comércio, desvirtuando ainda mais o relacionamento do médico com os seus
pacientes. O cuidar virou simplesmente tratar. E da forma que um terceiro
estipulará, para que seus lucros sejam viabilizados. Apesar de ainda ser a
peça central, o paciente virou uma espécie de instrumento para se alcançar o
lucro.
Propagandistas de laboratórios farmacêuticos também frequentavam
a minha clínica. São profissionais cujo óbvio objetivo reside na divulgação
dos produtos de sua empresa. A sua sobrevivência depende da venda destes
por meio da prescrição dos médicos. Essa relação médico-propagandista
costuma ser saudável, com eles mostrando as vantagens de seus produtos de
um lado e nós tentando ajudar nossos pacientes com a administração destes
por outro. Entretanto, como em tudo, existem os extremos.
De repente, entrou um propagandista no meu consultório e disse: —
Doutor, muito prazer. O senhor é o médico na cidade que mais prescreveu
nosso medicamento. Por isso, gostaríamos de presenteá-lo com este
videocassete!
Eu havia prescrito a medicação porque era a que usávamos na
faculdade e não vi, inicialmente, muitos problemas em ter ganho um brinde
do fabricante. Nem sabia que isso poderia ocorrer e, realmente, existia
indicação médica quando receitei o seu produto. Mas fico muito apreensivo
quando percebo relações um pouco mais mercantilistas. Nestas, o médico
pode abusar do seu receituário prescrevendo medicações desnecessárias em
troca de vantagens.
Existe um trabalho em Minnesota, Estados Unidos, que estudou as
prescrições de drogas antipsicóticas a crianças durante o período de 2000 a
2005.26 Coisa séria! Nesse período, o valor dos pagamentos das indústrias
farmacêuticas responsáveis por tais medicações a médicos que atuavam em
palestras e outras atividades didáticas aumentou seis vezes. Mau negócio?
Não. A venda desses medicamentos cresceu nove vezes no mesmo período!
É claro que as crianças não ficaram nove vezes mais doentes. São dados para
se refletir.
O comércio muitas vezes fomenta algumas doenças transformando-
as em verdadeiros modismos, o que, infelizmente, pode ser alcançado até
mediante a manipulação de resultados em pesquisas científicas.
Chegou a ser moda, por exemplo, o Helicobacter pylori (Hp). Essa
bactéria foi descoberta por Waçery Jaworski, na Cracóvia, em 1899. Naquela
época, ninguém devia dar muita bola para a Polônia, porque foi somente em
1981 que Robin Warren e Barry Marshall começaram a estudá-lo. De lá para
cá, os conhecimentos aumentaram em progressão geométrica. Conseguiram
relacionar a sua presença com o desenvolvimento de úlceras pépticas e até
câncer gástrico. Fantástico, realmente digno de um prêmio Nobel!
Porém, ao perceber que em alguns locais a prevalência da infecção
pela bactéria beirava os 40%, os laboratórios farmacêuticos começaram a
salivar. Se 40% da população mundial convive com o Hp e se cada
tratamento custar cinquenta dólares, bastará convencer o mundo a erradicá-
lo (o que, independentemente dos nossos esforços, nunca ocorrerá), para
ganharmos 132 bilhões de verdinhas (6,6 bilhões de habitantes x 40% da
população X preço atual aproximado do tratamento)!
Mas até onde sabemos, nem todas as pessoas infectadas (ou seria
melhor dizer, pessoas que coexistem com a bactéria?) se beneficiarão com o
tratamento. Claro que não é essa a ideia divulgada aos médicos e leigos
pelos laboratórios. Passam uma impressão de que, ao detectar uma bactéria,
precisaremos eliminá-la a qualquer custo, como se não convivêssemos com
milhares delas em nossa boca, na pele ou nos intestinos. Ocorre que, se o
médico decidir não tratar o Hp (ainda há controvérsias quanto à indicação de
sua erradicação em casos de simples dor de estômago, por exemplo), gastará
mais tempo explicando ao paciente o porquê de não fazê-lo, do que, caso
fosse necessário, dar explicações sobre o seu complicado esquema de
erradicação.27
— Mas, doutor, eu tenho uma bactéria no meu estômago que vai
virar câncer!
E por acaso 40% da população morre de câncer de estômago?
Existem estudos mostrando que a bactéria poderia aumentar um pouco essas
chances, principalmente em famílias em que a incidência de tumores é alta.
Mas álcool não dá cirrose? Poluição não aumenta doenças respiratórias? Sol
não dá câncer de pele?
Os consensos médicos restringem as indicações do tratamento para a
bactéria, mas a indústria farmacêutica não poderia ficar para trás e começou
a procurar outros motivos que também nos levassem a combatê-la. Há pouco
tempo ouvi mais dois, que exemplificam a sua brilhante criatividade:
urticária crônica e mau hálito!
Estupendo! A maior causa de alergia na pele é medicamentosa. Entre
os desencadeantes, no topo da lista, estão analgésicos e antibióticos.
Tentaremos controlá-la com amoxacilina e claritromicina, os antibióticos
principais contra o Hp?
E quanto ao mau hálito? Sabemos, há muito tempo, que 90% de suas
causas são orais. Mas é uma ótima estratégia dos laboratórios. Afinal, basta
realizar o teste descrito por um famoso pensador e o mundo inteiro precisará
de tratamento!
Estique a sua língua para fora o máximo que conseguir e lamba o
antebraço. Abane para secar e cheire. Gostou? Este é o odor da sua boca.
Para que escovar os dentes? Mate o Hp! Não quero tirar o crédito da
bactéria em algumas patologias nem minimizar o valor dos seus estudos,
mas creio que muita importância descabida lhe tem sido atribuída com
objetivos, talvez, escusos. Se tudo é verdade ou não, o tempo dirá.
Não sou socialista nem simpatizante dos movimentos que derrubam
plantações de eucalipto alegando que este não é comestível, mas ficaria
muito decepcionado se realmente me provassem que os laboratórios buscam
o lucro de forma tão voraz e inconsequente como alguns temem. Porém, não
descartaria essas hipóteses, principalmente após me lembrar de uma das
histórias que vivi no início da videolaparoscopia.
Naquela ocasião, ainda sofríamos com uma série de obstáculos
técnicos. Na cirurgia de apendicite, por exemplo, a maior dificuldade residia
no ponto que aplicávamos no intestino. Suávamos para dar aquele mísero
laçinho, até que um especialista em nós, escoteiro, marinheiro ou quem sabe
carrasco, resolveu nosso problema. Inventou uma haste de plástico que
possibilitava a introdução, no abdome, de um pequeno nó da forca pré-
confeccionado para amarrar o intestino. Assim, dispensávamos o sofrido
ponto com uma gambiarra extremamente simples e eficaz. A invenção era
tão útil que os kits com o nó foram muito vendidos pelas indústrias do ramo.
Mas, após alguns anos, sumiram do mercado. Curiosamente, isso ocorreu na
mesma época em que surgiram os grampeadores laparoscópicos para
apêndice, que custam, no mínimo, 100 vezes mais caro e são fabricados
pelas mesmas companhias...
Estas, algumas vezes, dão a entender que há muito mais interesse em
pesquisar um remédio para tratar a impotência sexual do que para tratar a
malária (uma doença de país pobre). Ou para medicar doenças crônicas (de
uso contínuo e prolongado) em vez das agudas, ou, ainda, que promovam o
alivio temporário dos sintomas em vez de a cura definitiva da doença.
Mais contundentes ainda são os dizeres de Dra. Marcia Angell,
exeditora-chefe do New England Journal of Medicine: "Foram-se os tempos
em que os laboratórios farmacêuticos anunciavam medicamentos para tratar
doenças. Agora frequentemente é o inverso. Eles anunciam doenças para
encaixar seus medicamentos". Talvez ela esteja sendo muito dura, mas
realmente vale a pena discutir algumas de suas ideias.
Cada vez que puxam mais para baixo os valores de normalidade da
glicemia, pressão arterial e colesterol, mais "doentes" são incluídos na lista
de usuários dos remédios, a ponto de nos questionarmos: "Existe alguma
mulher com mais de 50 anos sem um grau leve de osteoporose? (e que,
portanto, não faz uso de algum fármaco?)".
Novas síndromes surgem a toda hora e, apesar de algumas vezes
discutíveis, são extremamente prevalentes, com um tratamento muito bem
estabelecido: doença do refluxo, síndrome do intestino irritável, pré-
hipertensão, disforia pré-menstrual, joelhos inquietos, disfunção erétil,
transtorno da ansiedade social, da ansiedade generalizada... Não é estranho?
Evidentemente, existe doença do refluxo gastroesofágico, mas o que
vem muitas vezes acontecendo é que alguém com uma queimação
esporádica passa a ser rotulado como um portador dessa síndrome! Se
outrora o seu tratamento seria orientação dietética e um antiácido eventual,
passa a ser, no mínimo, seis semanas de bloqueadores de bombas de prótons
em dose plena, endoscopia, pHmetria esofágica... Se um homem "falhar"
uma só vez, será encaixado no grupo de disfunção erétil leve e assim por
diante.
Como disse Maureen Dowd, do The New York Times, "Quanto mais
ansiosos os laboratórios ficam em relação aos seus lucros, mais
generalizados tornam-se os transtornos de ansiedade generalizada".
Mas espere aí! Não há um trabalho científico multicêntrico e blá-blá-
blá orientando o que seria verdade e o que seria mentira para que os médicos
possam se orientar?
Sim, mas não podemos nos esquecer de que quem os escreve e
pesquisa também é humano. Existem os honestos e os desonestos, os
cuidadosos e os relapsos. Podem existir interesses pessoais envolvidos em
determinados resultados, inclusive se o patrocinador da pesquisa for algum
laboratório gastando milhões no seu desenvolvimento. Por isso, devemos
sempre analisar vários estudos e suas fontes. Há inúmeros trabalhos
científicos sobre qualquer assunto que você quiser imaginar, chegando a
resultados díspares. Poderia citar vários deles com conclusões contraditórias
e suspeitas, mas para melhor exemplificar essa afirmativa talvez seja
interessante citar o trabalho que discorre sobre "A inabalável descoberta de
que a nicotina não vicia!". Será que o fato de todos os autores trabalharem
para empresas de cigarro teve alguma influência?
Como se não bastassem todos esses fatores atrapalhando o nosso
exercício, existe uma outra profissão que é indispensável para o bom
andamento da medicina comercial e que algumas vezes nos deixa loucos: o
auditor de convênio.
Para que um plano de saúde funcione adequadamente, entre outros
profissionais burocratas, ele contará com a ajuda de médicos auditores. Estes
funcionam como uma espécie de ponte entre os administradores e
prestadores, controlando quais procedimentos devem ser realizados, ou não,
tendo como base a literatura médica e as regras da empresa para a qual
trabalham. Afinal, a vida não tem preço, mas tem custos que precisam ser
administrados. Nessa função, o ideal seria que os auditores fossem dotados
de amplos conhecimentos médicos e uma incrível ética. Porém, plagiando
um jornalista, um médico do interior já dizia: "Justiça, auditoria médica e
salsicha é bom não ver como se faz". Espero, sinceramente, que esteja
enganado.
O auditor pode negar a autorização de determinado exame para o
qual o convênio ofereça cobertura, desde que acredite não existir indicação
médica para tal. Aqui começa o problema. Qualquer auditoria não deve ser
tecnicamente fácil nem agradável. O auditor vive de um emprego em que, de
um lado, prestadores brigam por coisas caras e, do outro, sua chefia luta por
contenção dos custos. Ele só conseguirá ajudar na redução destes negando
ou glosando os pedidos dos médicos, sejam eles corretos, sejam abusivos.
Isso é ainda mais difícil na medicina, na qual vários limites são imprecisos.
Conheço excelentes auditores e sei que eles sofrem muito com três tipos de
prestadores: os incompetentes, os perdulários e os desonestos.
Puxando a brasa para os auditores, compreendemos a necessidade da
sua existência e as dificuldades que enfrentam. Sem o seu controle, médicos
incompetentes seguem caminhos diagnósticos ainda mais caros e tortuosos,
sem falar em tratamentos ineficientes. Os perdulários, por sua vez, muitas
vezes abusam da tecnologia, realizando cirurgias com o emprego de novos
aparelhos que, naqueles casos, poderiam ser completamente dispensáveis.
Utilizar grampeadores laparoscópicos e bisturis ultrassônicos em uma
cirurgia de apendicite não complicada, por exemplo, na maioria das vezes
multiplica o seu custo sem aumentar a sua segurança ou eficácia. Outros
pedem tantos exames de sangue que correm o risco de serem acusados de
vampirismo.
Algumas vezes os próprios conveniados parecem abdicar do bom
senso e precisam ser controlados, como um jovem que solicitou ao seu plano
de saúde uma ambulância para levá-lo a um pronto-socorro, pois estava
gripado e o seu carro não poderia ser utilizado naquele dia devido ao rodízio
veicular...
Mas os piores problemas são decorrentes de prestadores desonestos.
Há muitos anos, dois colegas foram chamados para auditar os procedimentos
cirúrgicos de um hospital. Chamou-lhes a atenção um dado esquisito: a
biópsia dos apêndices extirpados era normal em 70% dos casos.
Como já disse, apesar de toda a competência técnica e
disponibilidade de exames modernos, sempre há casos em que a dúvida
persiste e acabam sendo operados "desnecessariamente". Entretanto, a
literatura médica tolera que apenas 10% dos casos sejam "brancos" (quando
foi retirado o apêndice, mas não havia apendicite, e, sim, outra doença que a
simulava). Estaria havendo influência de honorários na indicação de
cirurgias?
Para resolver o mistério, os colegas decidiram que só pagariam aos
cirurgiões pelos casos em que o exame de anatomia patológica confirmasse
o diagnóstico de apendicite. Parece incrível, mas o índice de cirurgias
brancas, em um mês, caiu de 70% para 15%...

Apesar desse tipo de fraude, as contravenções mais frequentes são as


tentativas de turbinar o contracheque. Já que os convênios pagam pouco, por
que cobrar apenas pela retirada da vesícula, quando posso fingir que costurei
o intestino e desfiz algumas aderências?
"Ao colocar tudo na ponta do lápis, essas práticas fraudulentas
consomem de 5% a 6% da receita das operadoras de planos de saúde."28 Mas
há o lado dos servidores, do qual faço parte. Também existem os auditores
antiéticos, ignorantes em medicina, que recusam exames necessários,
empacam procedimentos apenas para desestimular a sua solicitação, glosam
tratamentos sem uma justificativa admissível e que são regularmente
espetados através do meu boneco vodu.
Algumas vezes agem de forma tão estranha que, para esse
comportamento, só restariam como justificativas a sua incompetência ou a
desonestidade.
Nesses casos específicos, sinto na pele a desconfortável sensação de
ser fraudado em muito mais que em míseros 5% ou 6%. Não dá para saber
quem é o ovo e quem é a galinha, mas certamente existe uma relação de
causa e efeito entre os auditores e os servidores mentirosos, criando uma
politica de total desconfiança que acaba por prejudicar, infelizmente, as
pessoas honestas. Nessa qualidade, fico doido quando solicito e realizo
exatamente os procedimentos que descrevo, mas os convênios os glosam
supondo que não existiram ou, talvez, que não vou perceber a glosa.
Decretam um calote e ainda me chamam de mentiroso!
É na hora da contabilidade que percebo as, quem sabe, traquinagens
e preciso de remédios para dor de cabeça. Frequentemente detecto glosas
completamente sem sentido, como procedimento não autorizado (a
autorização foi grampeada à guia), sem senha (anexada à guia),
especialização não cadastrada...
Veja que absurdo. Sou credenciado em vários convênios como
cirurgião geral. Certa vez operei, de emergência, uma senhora baleada no
baixo ventre. O projétil perfurou o seu ovário direito, bexiga e veia iliaca.
Todas as lesões foram corrigidas e ela sobreviveu. Apesar da minuciosa
descrição de cirurgia anexada ao pedido de autorização do procedimento,
não me pagaram nada. Por quê? Porque para a auditora, na qualidade de
cirurgião geral, não poderia ter operado aqueles órgãos. Deviam ter sido
abordados por um ginecologista, um urologista e um cirurgião vascular...
Espero que essa senhora auditora nunca seja baleada. E, se assim for,
que possa solicitar ao meliante quais órgãos perfurar de acordo com a
cobertura do seu plano, pois não existe sequer um hospital privado com
todos esses especialistas de corpo presente. Mesmo que, optando por fugir
da vingança dos prestadores do seu plano de saúde, procure um complexo
hospitalar universitário com todos esses especialistas, será operada por um
cirurgião geral.
Mas fique tranquila, pois, se eu for o escolhido, a atenderei de forma
completamente diferente da que a senhora transparece. Para começar, não
me esquivarei da responsabilidade dizendo que é contra as regras do pronto-
socorro deixá-la conversar com o médico para tirar as suas dúvidas nem a
deixarei ouvindo a "musiquinha do gás" por vinte minutos antes de qualquer
atendimento. Não verificarei se o seu plano é o Great Platinium Universal ou
o Hiper Higienic Paper, pois, a meu ver, isso não muda a conduta operatória.
Acalme-se. Não tentarei convencê-la de que não se trata de uma urgência e
jamais me omitiria de suturar todas as suas perfurações intestinais só porque
o convênio pagará apenas uma. Relaxe. Não solicitarei um extenso relatório
justificando cada analgésico que precisar, adiando assim a sua
administração, enquanto estiver com dor. Impedirei qualquer exame que os
seus auditores solicitarem apenas com o objetivo, antiético, de comprovar se
costurei ou não as suas tripas. E não se preocupe, pois, depois que tiver alta,
curada dos seus males físicos, mesmo que não me pague, poderei ajudá-la a
frequentar algum curso médico que melhore a sua formação e abra as portas
para exercer o que já havia esquecido: a essência de ser médico.
Gostaria de pedir desculpas à maioria dos auditores, honestos e
competentes, mas parece que alguns dos seus colegas fizeram aquele curso
do terceiro ano junto às enfermeiras: como perturbar médicos.
25ANGEL, M. A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos. Rio de
Janeiro: Record, 2007.

26"LinkBetween Industry Payments and Use ofAntipsychotics in Children


Probed". Physician's First Watch May 11, 2007.

27DANESH, J.; LAWRENCE, M.; MURPHY, M.; ROBERTS, S.;


COLLINS, R. Systematic review of the epidemiological evidence on
helicobacter pylori infection and nonulcer or uninvestigated dyspepsia.
Arch Intern Med 2000;160:1192-8. LAHEIJ, R. J. E; VAN RossIM, L. G.
M.;VERBEEK,A. L. M.; JANSEN, J. B. M. J. Helicobacter pylori
infection treatment of nonulcer dyspepsia: an analysis of meta-analyses. J
Clin Gastroenterol 2003;36:315-20. MALFERTHEINER, P.;
MEGRAUD, E; O'MoRAIn, C.; BAZZOLI, E; EL-OmAR, E.;
GRAHAM, D.; HUNT, R.; ROKKAS,T.;VAKIL, N.; KUIPERS, E. J. The
European Helicobacter Study Group. Current concepts in the management
of Helicobacter pylori infection: the Maastricht" III Consensus Report.
Gut 2007; 56: 772-781. (Mesmo os consensos estão cada vez mais
liberais; o mais recente é o de Maastricht III. O quanto a indústria
farmacêutica estaria atrás disso, só no futuro saberemos.)

28Co1uÉA, Lúcia Helena; GONÇALVES, Roberta. "Saúde privada na UTI".


Decision Report 13/10/2006.
7 — EPÍLOGO

O ensino

"Na vida, o que


aprendemos mesmo é
a sempre fazer
maiores perguntas."
GUIMARÃES Rosa

Surgiu um concurso público para assistente do pronto-socorro de


cirurgia em um hospital universitário. Prestei e passei, expondo-me, mais
uma vez, a novos desafios.
Apesar de plenamente satisfeito com as minhas atividades privadas, a
saudade do ambiente acadêmico nunca me abandonou. Jamais desejei ser
professor titular ou ostentar vários títulos acadêmicos, mas é muito
empolgante dar aulas e ensinar os residentes. Eles estudam intensamente
nessa fase, estando muitas vezes mais atualizados em alguns tópicos do que
nós, seus professores. Acabam nos trazendo novidades e desafios, mas não
possuem experiência. Esta última nós tentamos transmitir. Com isso, a toda
hora somos testados por eles e por nós mesmos.
A versatilidade dos pacientes atendidos em hospitais universitários é
enorme, o que nos empolga a estudar, continuamente, para tentar solucionar
nossas novas dúvidas. Há um exercício constante de raciocínio, ótimo para
desenferrujar o nosso cérebro e controlar a humildade. A complexidade dos
casos pode ser tão grande que aprendemos a enxergá-los por diferentes
ângulos, uma vez que vários especialistas acabam sendo acionados para
ajudar no mesmo problema. Além disso, tratar de casos muito difíceis nos
traz um curioso efeito colateral. Ao atendermos na clínica privada uma
perfuração do esôfago (o que já é raro e gravíssimo), não ficaremos
intimidados com a gravidade do diagnóstico. Pelo contrário, ficaremos
aliviados pelo fato de não estar ocorrendo numa paciente com várias outras
doenças associadas, entupida de milhares de medicamentos e associada a
uma extensa queimadura de terceiro grau...
Os pacientes mais complexos que já atendi foram no pronto-socorro
universitário. Nunca me esqueci de um paciente que trazia em um resumo de
alta as siglas das suas doenças. Eram nada menos que 18 CIDs!
CID é o nome da classificação internacional das doenças. Cada
doença possui um código diferente. O seu objetivo seria a padronização de
siglas para facilitar a comunicação dentro do meio médico. É utilizada em
atestados, guias para convênios e seguros, controle de doenças e infecções
hospitalares, entre outros fins. Apesar de útil, às vezes me parece meio
estranha. Por exemplo: K-81— Colecistite aguda, R-46.1 — Aparência
pessoal bizarra, 7-59.8 — Problemas com credores, X-35.3 — Vítima de
erupção vulcânica durante a prática de atletismo, V-61 — Ocupante de
veículo pesado traumatizado em colisão com veículo a pedal...
O movimento cirúrgico é muito grande e também aprendi a gerenciar
as salas de operação que, ao contrário dos pacientes, eram limitadas. Todas
as clínicas cirúrgicas precisam utilizá-las para cuidar dos seus doentes,
incluindo cirurgia geral, aparelho digestivo, tórax, cabeça e pescoço,
urologia, vascular, ginecologia, plástica, transplante, entre outras.

Disponibilizarei a sala existente para um trauma craniencefálico, uma


apendicite perfurada ou um cálculo renal obstrutivo num paciente com rim
único? Levarei para cirurgia a criança com bom prognóstico ou o velhinho
quase morrendo?
Quem deve ser abordado antes: um paciente que complicará em
poucas horas caso não venha a ser operado ou um indivíduo em morte
encefálica, que dentro de poucas horas não poderá mais doar os seus órgãos
e deixará de beneficiar vários doentes?
Também tive de aprimorar a arte da coexistência com os colegas.
Médicos, enfermeiras e funcionários de todos os tipos: mandões, apressados,
preguiçosos, irresponsáveis, incompetentes... Apesar de toda a hierarquia, às
vezes não era fácil até com os residentes. Eu também fora contaminado pelo
furor operandi. Agora, porém, estava do outro lado, trabalhando no que
gostava, mas também precisava sobreviver. Entendia melhor aquela
antipática frase de boa-noite que alguns assistentes nos diziam ao ir se deitar:
"Qualquer coisa me chame, mas não me chame para qualquer coisa!".
Precisávamos operar as urgências, mas também tínhamos de nos
poupar para o dia seguinte.
Acredito que tenha conseguido conciliar as duas coisas para não
prejudicar ninguém. Trabalhar dessa forma deixa o ambiente bastante
agradável. Existindo o respeito e a organização, todos se ajudam e dois mais
dois viram cinco.
Entretanto, o PS está muito distante do que acreditamos ser um mar
de rosas; nem todos agem dessa forma salutar.
Os interesses e as necessidades dos médicos da linha de frente podem
ser diametralmente opostos aos dos especialistas requisitados para realizar
uma ou outra intervenção em nossos pacientes. Quantas vezes esses colegas,
distantes da realidade vivida por nós e pelos doentes da emergência, se
negam a fazer um procedimento simplesmente por não o considerarem o
ideal para aquela doença, quando naquelas situações o ideal simplesmente
inexiste! Por outro lado, muitas vezes os residentes solicitam exames e
intervenções dispensáveis.
Quando não houver diálogo, presenciaremos especialistas chamando
os residentes de ignorantes e residentes desqualificando os especialistas,
dizendo que não são médicos nem se lembram do que é um paciente, ou que
tudo o que sabem é passar roto rooter (apelido para qualquer aparelho que o
médico introduza no paciente para algum fim terapêutico).
Esses atritos, na maioria das vezes desprovidos de vilões e de
mocinhos, me ensinaram a ouvir os dois lados antes de tomar uma posição,
melhorando um pouco as minhas precárias qualidades diplomáticas. Por
sorte, tudo costuma acabar em pizza.
Literalmente, pois o tipo de comida mais solicitada nos plantões é a
pizza. Depois de comer, todo mundo fica bonzinho. É uma ótima sugestão
para o leitor empreendedor: abrir uma pizzaria perto de um hospital e batizar
os sabores com os apelidos dos chefes da instituição.
Mais uma vez senti a responsabilidade aumentar; é muito mais difícil
prestar contas pelo atendimento dos outros que pelo nosso. É evidente que os
aprendizes serão mais susceptíveis a complicações ou erros e precisamos
estar ali para evitá-los ou corrigi-los, mas nem sempre isso será possível. O
lado bom dessa peculiaridade é que fui forçado a aprender não só a tratar de
determinadas lesões, mas, também, as iatrogenias decorrentes dos seus
tratamentos. O lado ruim era ter que me responsabilizar pelos problemas
criados por alunos desinteressados, "quebra-mão" — irresponsável, não
cumpre com seus horários, falta no plantão, chega atrasado — ou
acometidos pela síndrome de professor titular.
Este último é o mais perigoso, pois "já sabe de tudo". O residente que
assume desconhecer determinada conduta perguntará a alguém mais
graduado sobre sua dúvida. O que não percebe sua ignorância somente será
curado dessa síndrome à custa de seus resultados negativos, pois adotará
condutas incorretas sem ao menos se questionar sobre o cabimento destas.
Para citar um exemplo bem leve dos possíveis efeitos dessa
síndrome, recordo o que ocorreu quando um professor, orientando o seu
aluno, pediu que aplicasse uma ampola de vitamina B12 no paciente. O
aluno solicitou a medicação à enfermeira, porém, como estava em falta, ela
perguntou se havia algo que pudesse substituí-la. Sua brilhante resposta foi:
"Troque então por duas ampolas de B6...". Como se duas vezes piridoxina
(B6) fosse igual a uma vez cianocobalamina (B12)!
Outro, um pouco pior, se deu na ortopedia. Certa paciente sofreu uma
fratura no pescoço. O residente, ao diagnosticar a sua lesão, indicou a
aplicação de um halo para tração craniana. Raspou os cabelos da moça,
executou todo o preparo apropriado para esse procedimento e foi mostrar o
caso para o seu chefe, a fim de indicar a cirurgia. Entretanto, este último, ao
olhar as radiografias, declarou que o melhor tratamento seria o uso de um
simples colar, específico para a imobilização do pescoço. A paciente recebeu
alta com o colar, desnecessariamente careca, e revoltada...
O que mais admiro no meio universitário não é a produção científica,
não é estar na vanguarda ou promover atividades didáticas ou, ainda, ajudar
cabeções de Olinda a se transformarem em Barishnikovs, e sim o fato de
que, no final das contas, quanto mais ensinamos, mais aprendemos. Em
Medicina, esse aprendizado nunca possuirá limites.
Porém, não podia deixar de me perguntar: "Estou ensinando algo em
extinção?".
O fim do homo cirurgicus

"Nosso dever como médicos


não é curar, mas sim tratar das
pessoas."
PATCH ADAMS

A evolução é implacável. Há 65 milhões de anos, os dinossauros


desapareceram do planeta e agora, dois milênios após Cristo, o "homo
sapiens cirurgicus" está se extinguindo...
Certa vez, li o ensaio de um experiente cirurgião discorrendo sobre a
extinção da nossa classe. Embalado no título do livro de Thorwald Jurgen,
ele discutia melancolicamente sobre o fim do século dos cirurgiões.29
Uma enorme fatia do bolo de doenças que necessitavam de
tratamento cirúrgico foi engolida por outras modalidades de tratamento,
seguindo a tendência irreversível do progresso tecnológico. Um cálculo renal
que antigamente levaria à sala de cirurgia, hoje pode ser quebrado com
ondas de choque. As biópsias cirúrgicas foram trocadas por punções com
agulha fina, inclusive em órgãos internos como o pulmão e o fígado. O
sangramento de uma grande lesão do fígado muitas vezes poderá ser
estancado por cateterismo vascular, mesma modalidade que permite a
angioplastia e inserção de stents evitando grande parte das cirurgias de ponte
de safena. Uma úlcera do estômago que sangrar poderá ser cauterizada por
endoscopia. Aliás, graças aos medicamentos atuais, quase não existem mais
úlceras que necessitem de cirurgia. Um linfoma gástrico, cujo tratamento era
eminentemente cirúrgico, poderá ser curado com quimioterapia. Os tumores
de colo uterino desaparecerão com a vacinação para o vírus HPV. Nos casos
remanescentes, a radioterapia poderá dar conta do recado. A colonoscopia
retira os pólipos colônicos que um dia transformar-se-iam em tumores do
intestino. Há pomadas para câncer de pele e, até, para fimose!
Imagine o que acontecerá quando as células-tronco substituírem os
transplantes, a terapia genética prevenir e remediar doenças hereditárias!
Apesar de a cirurgia também ter evoluído muito, acredito que nossa
atuação será cada vez mais restrita. E, como se não bastasse, o remanescente
cirúrgico poderá ser operado por robôs que, assim como as larvas de mosca,
serão mais precisos do que nós.
Depois disso fica fácil entender a charge em que se vê um cirurgião
sentado ao lado de uma Van com os dizeres: "Faço de tudo: cirurgia geral,
jardinagem, limpeza...".
Como se não bastasse o desaparecimento gradual do cirurgião,
percebo insistir num caminho em que a densidade de seus andarilhos
diminui a cada dia. Não por culpa ou mérito deles individualmente; é a atual
tendência mundial abrangendo quase todos os setores.
A arte está perdendo terreno para a tecnologia. Há uma tentativa,
impossível, em transformar a nossa ciência inexata em exata. Em razão de
uma intolerância crescente, estamos deixando de ser humanos e virando
robozinhos. Teoricamente, muito teoricamente, desapareceriam os erros, mas
também se extinguiriam o humanismo e a própria humanidade.
Não se confia mais em palavra, apenas em consentimento por escrito.
O "marketing de empurra" é mais importante do que o conhecimento. A
casca, do que o conteúdo. Deixamos de cuidar de pacientes e passamos a
atender clientes. Pode ser uma palavra mais bonitinha, tipo colaborador em
vez de funcionário, mas perde o sentido da coisa. Cliente está mais para
negócio, enquanto paciente, para diligência. Cliente deve ser atendido, mas
não precisa ser tratado, diferentemente de paciente, termo que deriva
justamente de pathos, patologia, doença.
Cada vez mais tentaremos curar sem cuidar. Imagine que num dos
maiores encontros internacionais de cirurgia no mundo (American College
os Surgeons), em 2007, um dos temas mais discutidos foi o atendimento
virtual, em que, por correio eletrônico, o médico receberia as queixas e os
exames dos pacientes para "tratá-los" a distância.
Não sou anglo-saxão, mas percebo o quanto eles se surpreendem ao
serem tratados por médicos brasileiros. O contraste não se dá pela
capacidade científica propriamente dita, mas pelo carinho, atenção e
acolhimento que esbanjamos e, a meu ver, fazem parte da nossa técnica. Se
eu estivesse doente, também preferiria ser tratado por um doutor amigo do
que por um "matemático" frio. Essa antiga postura do médico não pode
acabar, mas é cada vez mais rara.
O médico está virando um técnico prestador de serviços. Um
funcionário associado, assalariado. Os protocolos, que muitas vezes são
extremamente úteis, estão deixando o raciocínio médico cada vez mais
míope. O aluno não demorará muito para perceber que os algoritmos, com
setinhas indicando quadradinhos de sim ou não, na maioria das vezes são
incompletos. Nessa hora terá dificuldade de pensar e definir o caminho a
seguir, procurando pelas opções "mais ou menos", "duvidoso", "mal-estar" e
"não consigo explicar direito".
Os exames muito sofisticados estão nos tornando preguiçosos.
Quantas vezes auscultamos o tórax do doente apenas após visualizarmos a
sua pneumonia na tomografia? Estamos nos deixando ir pela contramão!
Será que essas e outras tendências correspondem aos melhores caminhos?
Por ora, o encanto que a medicina me propicia ainda não desapareceu
e, apesar de todas as frustrações que vivo na rotina de meu trabalho, ainda
acredito estar realizando uma das mais empolgantes e bonitas profissões. A
medicina é linda e talvez as suas maiores belezas estejam exatamente na sua
imperfeição, nos seus mistérios e na nossa eterna busca para solucioná-los.
Que as lagartixas, agora sem cauda, e sua arte, vivam para sempre!
29THORWALD, J. O século dos cirurgiões. São Paulo: Hemus, 2002.
Table of Contents
Capa
Contracapa
Orelhas
Rosto
Créditos
Epígrafe
Dedicatórias
Sumário
Prefácio
Desculpas
Introdução fundamental
1 - O INÍCIO
A pré-história
O trote
O curso básico
Fugindo do curricular
Como examinar um paciente
Anamnese? O que é isso?
Treinando os cinco sentidos
Os exames complementares
A linguagem médica
2 - O INTERNATO
Preparo emocional
A prática
Como não fazer um parto
A hierarquia
A supervisão
Postura de médico
A empatia e o escudo protetor
O jogo de cintura
3 - A RESIDÊNCIA BÁSICA
A inspiração e a seleção
Serei um boneco-cabeção de Olinda?
O hipotálamo maluco e a cueca molhada
Furor operandi
Anestesia e anestesistas
"As" xerifes
4 - A RESIDÊNCIA AVANÇADA (3º, 4º E 5º ANOS)
O dia do raio e algumas superstições
Exemplos não faltariam
Cuidando de um médico doente, sendo um doente médico
Pronto-socorro
Cliente habitual: o motobói
Cliente habitual: o bêbado
Cliente habitual: o bandido
Cliente habitual: a histérica — DNV
Pequeno manual de situações inusitadas
5 — O DESMAME DO HOSPITAL
O peso da profissão
A vitrine da loja
Atestados
VIP
Caindo no mercado de trabalho e se espatifando...
Complicações
Erros
Algumas consequências negativas...
...e algumas consequências positivas
6 — ENCARANDO A REALIDADE
Novas faculdades...
...novas dificuldades
O consultório particular
Um mar de dúvidas
A medicina baseada em clarividências
A medicina virou um negócio da China!
7 — EPÍLOGO
O ensino
O fim do honro cirurgicus

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