Você está na página 1de 245

SUMÁRIO

ANTERROSTO
FOLHA DE ROSTO
SUMÁRIO
PREFÁCIO
GENTE POBRE
A ANFITRIÃ
PRIMEIRA PARTE
SEGUNDA PARTE
PÁGINA DE DIREITOS AUTORAIS
PREF ÁC IO
OS PRIMEIROS PASSOS DE UM GÊNIO1

São Petersburgo, fins de maio de 1845. Nikolai Nekrássov, jovem poeta


interiorano q ue se mudou para a capital russa a fim de tentar a sorte em seu
meio artístico, faz uma visita inesperada a Vissarion Belínski, crítico
literário de renome e uma das figuras mais notáveis daq uele meio. Os
h omens se cumprimentam com um forte aperto de mão e um tapinh a no
ombro.
— Alguma obra sua? — pergunta Belínski, ao reparar num volumoso
manuscrito q ue o poeta troux e debaix o do braço.
— Não é minh a, não — responde Nekrássov —; é de um moço ali.
Gostaria q ue o senh or desse uma olh ada. É q ue ele tem um talento enorme:
a gente lê e tanto se emociona q ue acaba ch orando! É q ue… um novo
Gógol apareceu! 2
Um sorriso jocoso contrai os lábios de Belínski: essa conversa lh e é
familiar até a última vírgula, mas tamanh o ex agero req uer uma justificativa
das boas.
— Ih , meu caro, com você esses Gógols crescem q ue nem cogumelos,
h ein? — replica, com uma ironia mordaz . Fica h esitando por um minuto e,
sem q uerer magoar seu colega e parceiro nos jogos de baralh o, freq uentador
assíduo de sua casa, arremata: — Bem… deix e isso em cima da mesa.
Como se ch ama mesmo aq uele moço?
— Fiódor — diz Nekrássov, colocando o manuscrito no lugar indicado.
— Fiódor Dostoiévski.
— E o q ue ele faz ? — Belínski continua a falar por mera gentilez a,
h avendo uma multidão de moços a rondá-lo em busca de um conselh o
paternal ou, melh or ainda, uma resenh a encorajadora.
— Sei lá… — O poeta se despede dele ao alegar outro compromisso
inadiável. — Só o vi uma ou duas vez es. Parece q ue é um militar reformado
e traduz iu um livrinh o do francês.
— Ah é? … — Belínski se limita a dar um suspiro resignado,
pressentindo um maçante dever a cumprir.
Passam-se algumas h oras; na mesma noite, Nekrássov retorna ao
apartamento de Belínski situado na encruz ilh ada da avenida Nêvski e da
marginal do rio Fontanka. O crítico está emocionado: uma ansiedade
incomum se percebe em seus gestos, na maneira como anda, impaciente,
pelo q uarto. É óbvio q ue já leu ou, pelo menos, folh eou a obra desse tal de
Dostoiévski, e q ue ela lh e causou uma impressão profunda, se não
arrebatadora.
— Onde está ele, seu novo Gógol? — dirige-se logo a Nekrássov. —
Quero conh ecê-lo!
Seus olh os brilh am como os de um caçador de tesouros q ue acaba de
descobrir, sem ter esperado por isso, uma joia rara, uma pérola de valor
inestimável. A intuição lh e sugere q ue do casulo posto em sua frente pela
mão de Nekrássov vai eclodir… não uma borboleta medíocre nem uma
libélula “ bonitinh a, mas ordinária” , e, sim, um ser nunca visto na face da
Terra, dotado de uma mundivisão alternativa e destinado, portanto, a
escolh er rumos alternativos para sua arte. E essa intuição aguçada, sempre
às voltas com montes de manuscritos lidos, analisados e resenh ados, não
costuma errar!
Foi em agosto de 1844 q ue o subtenente engenh eiro Dostoiévski
solicitou sua reforma “ por motivos pessoais” . “ Estou farto do serviço
militar como de batatas” , comentou, nessa ocasião, numa das cartas
endereçadas ao seu irmão Mikh ail. Sonh ava em dedicar-se às belas-letras, e
sua primeira obra impressa, a tradução do romance E ug énie G randet de seu
escritor favorito Honoré de Balz ac, não demoraria a agradar aos leitores da
revista metropolitana “ Repertório e Panteão” . Encarregou-se também de
traduz ir, nesse meio-tempo, os romances M ath ilde, memórias de uma
jovem, de Eugène Sue, e A última Aldini, de George Sand, mas não era uma
carreira tradutória q ue pretendia abraçar: o q ue atraía Dostoiévski como um
ímã, o q ue faz ia seu sangue ferver e sua mente produz ir milh ares de ideias
ex traordinárias, eram os escritos autorais por vir, aq uela prose de ficção q ue
o tornaria, por ora em seus devaneios pueris, um literato famoso, talvez
adorado pelo público e, q uem sabe, rico. Em outubro de 1844, uma vez
promovido a tenente e, de pronto, reformado, arrancou o uniforme, com o
q ual não tinh a afinidade alguma, e mergulh ou de ponta-cabeça nas fainas
literárias. Dividindo com Dmítri Grigoróvitch , escritor iniciante e seu
condiscípulo na Escola de engenh aria militar, o aluguel de um peq ueno
apartamento na esq uina da rua Vladímirskaia e da viela Gráfski,3 levava
uma vida bem simples (segundo Grigoróvitch , ambos se alimentavam
direito tão só na primeira metade do mês e se contentavam, na segunda
metade, com pão e cevada) e trabalh ava sem trégua. “ Dostoiévski…
passava o dia inteiro e parte da noite sentado à sua escrivaninh a” , lembrar-
se-ia Grigoróvitch , mais tarde, desse período de sua mocidade. “ Não diz ia
seq uer uma palavra acerca daq uilo q ue estava escrevendo; respondia às
minh as indagações a contragosto, laconicamente, de sorte q ue, conh ecendo
sua índole arredia, parei de indagar. Apenas podia ver uma profusão de
folh as preench idas com aq uela caligrafia pela q ual Dostoiévski se
destacava: as letras se derramavam, sob a sua pena, como miçangas, como
se ele as desenh asse… Mal Dostoiévski parava de escrever, um livro surgia
de imediato em suas mãos… Empenh ando-se tanto em trabalh ar e teimando
em permanecer em casa, prejudicava demasiado sua saúde” . O livro q ue
Dostoiévski compunh a, sua primeira obra de ficção como tal, intitulava-se
G ente pobre e lh e absorvia todas as forças. “ … q uero redimir tudo com meu
romance. Talvez me enforq ue se este negócio meu não vingar” : constando
da sua carta ao irmão Mikh ail, datada de 24 de março de 1845, essa
declaração bombástica prova q ue o tomava mesmo a sério.
Pelo fim de maio, q uando o manuscrito já estava finaliz ado e repassado
a limpo, Dostoiévski mostrou-o, atormentado por dúvidas de noviço, a
Grigoróvitch e seu amigo Nekrássov para saber se tinh a a mínima ch ance
de ser publicado. J amais se esq ueceria desse episódio precedente à sua
estreia triunfal, relatando-o do modo seguinte: “ Na véspera ao anoitecer…
eles pegaram meu manuscrito e ficaram lendo com a intenção de avaliá-lo:
‘ Bastam dez páginas para a gente ver’ . Todavia, ao lerem dez páginas,
resolveram ler mais dez e depois, já sem parar, passaram a noite toda, até o
amanh ecer, lendo em voz alta e revez ando-se q uando um deles se sentia
cansado… Mal terminada a leitura (e foram sete folh as impressas! ),4
decidiram unanimemente ir falar comigo sem a menor demora: ‘ E daí, se
ele estiver dormindo? Vamos acordá-lo, q ue isso é acima do sono’ … ” .
Entusiasmados, com olh os ch eios de lágrimas, Grigoróvitch e Nekrássov
ex ortaram Dostoiévski a deix á-los remeter G ente pobre a Vissarion
Belínski, cuja opinião favorável poderia ser crucial para a eventual
publicação do romance, e o jovem autor, embora com certa h esitação,
aceitou a proposta. Seu encontro h istórico com o mentor espiritual da toda
uma geração de intelectuais russos ocorreu em princípios de junh o, numa
daq uelas fantásticas noites brancas q ue a inspiração dostoievskiana
insistiria em traz er à baila pelo resto de sua vida. Dostoiévski não poupou
epítetos para descrevê-lo, em 1877, num dos opúsculos do D iário do
escritor: 5 Belínski “ rompeu a falar com ardor, de olh os brilh antes: ‘ Mas
você mesmo entende’ , repetiu várias vez es, com suas ex clamações
h abituais, ‘ o q ue escreveu aí? (… ) Só com essa intuição sua, como artista, é
q ue conseguiu escrever isso, mas será q ue h avia compreendido, você
mesmo, toda aq uela verdade terrível q ue nos apontou? Não pode ser q ue
você, com seus vinte anos, já esteja compreendendo isso. (… ) Pois é uma
tragédia! Você tocou na essência do problema, apontou, de uma vez só, o
essencial. (… ) A verdade lh e foi revelada e anunciada, por ser artista, você
a recebeu como um dom; valoriz e seu dom e prossiga fiel a ele, então você
será um grande escritor! ’ (… ) Foi o momento mais deleitoso em toda a
minh a vida” . É fácil imaginar a alegria do estreante cujos sonh os mais
íntimos h averiam de se tornar uma realidade viva, palpável, maravilh osa!
“ Pux a vida… ” , era o único pensamento q ue se revolvia em sua cabeça após
o discurso acalorado de Belínski. “ Sou realmente tão grande assim? ” .
“ A primeira tentativa do romance social na Rússia” , conforme
sentenciou Belínski q ue não cessava de elogiá-lo, G ente pobre foi
publicado na “ Coletânea petersburguense” , lançada em 15 de janeiro de
1846, e teve um sucesso estrondoso. Vendo-se alçado, literalmente da noite
para o dia, a celebridade, Dostoiévski andava como q ue ébrio, prestes a
enlouq uecer de regoz ijo: os salões literários e as redações das revistas mais
conceituadas abriam-lh e suas portas, a crítica lh e prometia um futuro
deslumbrante, por pouco não o sufocava com seus louvores (“ Em novembro
e dez embro de 1845” , no diz er de Vladímir Máikov,6 “ todos os diletantes
literários apanh avam e jogavam um ao outro a praz erosa notícia do advento
de um novo talento descomunal. ‘ Não é pior do q ue Gógol’ , gritavam uns;
‘ é melh or do q ue Gógol’ , replicavam os outros; ‘ Gógol está morto’ ,
vociferavam os terceiros… ” , antes ainda de lê-lo), e os sacerdotes do
majestático santuário das letras, aq ueles escritores consagrados q ue lh e
pareciam, h avia pouco, tão inabordáveis, agora o tratavam de igual para
igual. Não sabia ainda q uantas viravoltas e provações lh e reservava a
perfídia do fado nem q ueria seq uer pensar nelas. Estava feliz , como só se
pode estar feliz aos vinte e tantos anos, e novas obras, nada inferiores a
G ente pobre, vinh am ganh ando corpo sob a sua pena fecunda…
Duas dessas obras, apresentadas a seguir, são bem diferentes entre si: a
primeira delas, o romance G ente pobre propriamente dito, conta sobre a
amiz ade um tanto estranh a, mas nem por isso menos comovente, de um
modesto funcionário público, já entrado nos anos, com uma moça novinh a,
q uase adolescente, mantendo eles uma correspondência intensa para trocar,
dia após dia, notícias ora tristes, ora animadoras, de sua vida
despretensiosa; o tema da segunda, A anf itriã, parcialmente inspirada pela
novela “ gótica” A terrí vel ving ança de Nikolai Gógol, é um amor
impossível, tão romântico q uanto dramático, capaz de levar q uem ch ega a
vivenciá-lo muito além daq uela banal realidade urbana em q ue se origina.
Há q uem tenda a subestimá-las, argumentando q ue são por demais
imperfeitas e não representam a grandez a dostoievskiana, q ue não passam
de composições escolares em comparação com análogas narrativas de
Gógol, q ue G ente pobre irrita com seu ex cesso de formas diminutivas
(mãez inh a, amiguinh a, q ueridinh a, etc.), usadas pelo autor sem q ualq uer
critério, enq uanto a atmosfera de suspense criada por ele n’ A anf itriã peca
por falta de originalidade, e nenh um desses argumentos é totalmente
injusto. De fato, por mais promissoras q ue sejam, tais obras de calouro nem
se comparam, do ponto de vista estético, às de um dos titãs da literatura
mundial, precursor respeitado e modelo seguido por Dostoiévski, mas, não
obstante, afloram nelas, indubitáveis e poderosos, diversos traços
característicos de sua escrita particular. Antes de tudo, desponta em suas
páginas, como um grandioso pano de fundo, a cidade de São Petersburgo,
os mesmos prédios cinz entos e becos escuros onde será ambientada boa
parte dos vindouros livros de Dostoiévski, desde a novela juvenil Noites
brancas até os romances maduros Humilh ados e of endidos, Crime e castig o
e O idiota. Por outro lado, algumas das mais relevantes q uestões de ordem
moral, social, filosófica ou religiosa pelas q uais o escritor se interessará
posteriormente, seja a condição do povo desvalido ou o papel da mulh er na
retrógrada sociedade russa, sejam aq ueles estados singulares, não raro
patológicos, em q ue amiúde se ach am seus personagens de alma virada às
avessas, também se vislumbram em G ente pobre e A anf itriã. Afinal, o
estilo típico de Dostoiévski — tenso, verboso, emaranh ado, como se ele
estivesse com pressa e tentasse ex primir muita coisa em pouco espaço —, é
intrínseco, por sua vez , a ambos os tex tos, cuja leitura atenta permite, desde
já, prever a evolução q ue o escritor começará, q uando moço, para se
metamorfosear, anos depois, naq uele monstre sacré7 q ue o mundo inteiro
conh ece h oje. De certa forma, são os alicerces q ue sustentarão, ao longo do
tempo, todo o edifício de sua criatividade, os primeiros passos de um gênio
pelo caminh o q ue o conduz irá ao reconh ecimento universal, às tão sonh adas
glória e idolatria…

Oleg Almeida

1 A parte h istórica deste ensaio foi elaborada com base nas fontes seguintes, indispensáveis para
bem entender a biografia criativa de Dostoiévski: Л еонид Г россм ан. Д ост оев ский. Москв а,
Молодая г в ардия, 1962; Вера Неч аев а. Ранний Д ост оев ский: 1821-1849. Москв а, Нау ка, 1979;
Николай Я ку ш ин. Ф . М. Д ост оев ский в ж изни и т в орч ест в е. Москв а, Ру сское слов о, 1998;
Ю рий Селезнёв . Д ост оев ский. Москв а, Молодая г в ардия, 2007; Серг ей Белов . Ф . М.
Д ост оев ский: Э нц иклоп едия. Москв а, П росв ещ ение, 2010, assim como nos materiais inclusos na
edição original das obras de Dostoiévski em 15 tomos (Л енинг рад/С-П ет ерб у рг , Нау ка, 1988-
1996).
2 Essa comparação com Nikolai Gógol (1809-1852), considerado o maior escritor russo da
época, devia ser muito lisonjeira para o novato Dostoiévski!
3 Viela do Conde (em russo).
4 Em conformidade com as normas editoriais da Rússia antiga e moderna, uma folh a impressa
de tex to prosaico compõe-se de 40 mil caracteres.
5 Ex tensa série de tex tos jornalísticos, editada por Dostoiévski em 1873, 1876-77 e 1880-81
com o propósito de “ … relatar todas as impressões realmente vividas… tudo o q ue [fosse] visto,
ouvido e lido” por ele.
6 Vladímir Nikoláievitch Máikov (1826-1885): jornalista e tradutor, editor de revistas infantis,
irmão do poeta Apollon Máikov.
7 Monstro sagrado (em francês: ex pressão de J ean Cocteau): nome metafórico dos artistas de
prestígio indiscutível, cultuados em q uaisq uer épocas e países.
GENT E POB RE
ROMANC E
Oh , mas aq ueles contadores de h istórias! Em vez de escrever algo útil, agradável, delicioso,
acabam desenterrando toda a verdade, nua e crua! … Eu cá os proibiria de escrever! Com q ue
isso se parece, h ein? A gente lê… fica pensando sem q uerer, e aí vem uma drogaz inh a q ualq uer
à cabeça: juro q ue os proibiria de escrever; proibiria mesmo, completamente.
Pr. V. F. Odóievski1

8 de abril.
Minh a inestimável Varvara Alex éievna!
Ontem estive feliz , sobremodo feliz , feliz até não poder mais! Você,
teimosinh a, deu ouvidos a mim, pelo menos uma vez na vida. Acordo ao
anoitecer, pelas oito h oras (você sabe, mãez inh a, q ue gosto de dormir umas
h orinh as após o ex pediente), tiro uma vela, preparo os papéis, aparo uma
pena e de repente, sem q uerer, fico erguendo os olh os, e eis q ue meu
coração, palavra de h onra, começa a pular! Pois você entendeu enfim o q ue
eu q ueria, o q ue q ueria este coraçãoz inh o meu! Percebi q ue o cantinh o de
sua cortina, aí na janela, estava dobrado e preso ao pote de seu não-me-
toq ues,2 do mesmo jeitinh o a q ue eu lh e aludira então, e logo me pareceu
q ue sua carinh a também surgia, assim de relance, perto dessa janela, q ue
você também olh ava para mim do seu q uartinh o, q ue você também pensava
em mim. E como fiq uei desgostoso, minh a q ueridinh a, por não conseguir
enx ergar direito essa sua carinh a bonita! J á h ouve um tempo em q ue a gente
também enx ergava bem, mãez inh a. A velh ice não é brincadeira,3 minh a
q uerida! Pois agora também, o tempo todo, minh a vista se turva: é só
trabalh ar um pouco à noite, escrevendo alguma coisa, e os olh os ficam
vermelh os pela manh ã, e as lágrimas correm tantas q ue até me envergonh o,
por vez es, na frente dos outros. Contudo, seu sorrisinh o passou a fulgir em
minh a imaginação, esse seu sorrisinh o tão bom, tão afável, meu anjo, e
senti, cá no meu coração, o mesmo q ue h avia sentido daq uela feita, q uando
beijara você, Várenka4 — será q ue se lembra disso, meu anjinh o? Será q ue
sabe, minh a q ueridinh a: até me pareceu q ue você me ameaçava daí com seu
dedinh o! Foi assim, brincalh ona? Descreva tudo isso sem falta, e com
detalh es, em sua carta.
E q ue tal essa nossa invençãoz inh a sobre a sua cortina, h ein, Várenka?
É bonitinh a, não é verdade? Quer esteja eu trabalh ando, q uer me deite para
dormir, q uer acorde, sei, desde logo, q ue você também pensa aí em mim,
q ue se lembra de mim e q ue está, você mesma, saudável e jovial. Se baix ar
a cortina, isso significa: “ Adeus, Makar Alex éievitch , é h ora de dormir! ” .
Se a subir, significa: “ Bom dia, Makar Alex éievitch ; como foi q ue dormiu? ”
ou então: “ Como está sua saúde, Makar Alex éievitch ? Quanto a mim, estou
saudável e bem-disposta graças ao Criador! ” . Está vendo, meu benz inh o,
q ue coisa esperta foi inventada? Não precisamos nem de cartas! Coisa
esperta, não é verdade? E q uem a inventou fui eu! Como é q ue me tenh o
saído, q uanto a essas coisas, h ein, Varvara Alex éievna?
Venh o comunicar-lh e, minh a mãez inh a Varvara Alex éievna, q ue dormi
muito bem esta noite, a despeito das previsões, o q ue me deix ou bem
satisfeito, embora nesses apartamentos novos, logo depois de se mudar, a
gente nunca durma direito: h á sempre uma coisa errada, sempre! Acordei
h oje assim, como um preclaro falcão, sentindo-me às mil maravilh as! Mas
q ue manh ã boa é h oje, mãez inh a! Abriram cá uma janela nossa: o solz inh o
brilh a, os passarinh os gorjeiam, o ar respira aromas primaveris, e a naturez a
toda se anima… pois bem, e todo o resto também esteve em ordem, de
modo primaveril. Até mesmo sonh ei um pouco h oje, mui agradavelmente, e
todos os sonh os meus foram sobre você, Várenka. Ch eguei a compará-la a
uma avez inh a do céu, criada para consolo da gente e adorno da naturez a. E
logo pensei, Várenka, q ue nós, as pessoas q ue vivem atarefadas e
agoniadas, também deveríamos invejar aq uela felicidade serena e inocente
das aves do céu… pois bem, e todo o resto do mesmo feitio, semelh ante
àq uilo, ou seja, fiq uei forjando eu cá, sem parar, tais comparações meio
remotas. Tenh o um livrinh o aq ui, Várenka, em q ue a mesma coisa, e da
mesma maneira circunstanciada, está descrita. Escrevo assim porq ue h á
sonh os diferentes, mãez inh a. Agora q ue estamos na primavera, os
pensamentos da gente vêm todos tão agradáveis, argutos e engenh osos, e
nossos sonh os são ternos — tudo cor-de-rosa. Foi por isso q ue escrevi todas
essas coisas; tirei-as todas, aliás, do tal livrinh o. Lá o autor revela o mesmo
desejo em versinh os e escreve: “ Por q ue não sou uma ave, uma ave de
rapina? ” , e assim por diante. Ainda h á várias outras ideias lá, mas q ue Deus
cuide delas! Mas aonde é q ue você foi esta manh ã, h ein, Varvara
Alex éievna? Nem me aprontava ainda para ir à repartição, mas você,
realmente como uma avez inh a primaveril, saiu voando do seu q uarto e
passou pelo pátio, tão alegrinh a assim. E como me alegrei ao olh ar para
você! Ah , Várenka, Várenka, não se entristeça! Não se repara o mal com
lágrimas:5 sei disso, minh a mãez inh a, sei disso por ex periência. Só q ue
agora você está tão tranq uila, e sua saúde também está melh orz inh a. Pois
bem, como anda sua Fedora? Ah , mas q ue mulh er bondosa ela é! Escreva-
me, Várenka, como vocês duas vivem aí agora e se estão contentes com
tudo. É q ue Fedora é um tanto rabugenta, mas não se apoq uente com isso,
Várenka! Que Deus fiq ue com ela! É tão bondosa.
J á lh e escrevi sobre a Th erez a daq ui: também é uma mulh er bondosa e
confiável. Mas como fiq uei preocupado com nossas cartas! Como é q ue
seriam mandadas? E foi então q ue nosso Senh or enviou, para nossa sorte, a
tal de Th erez a. É uma mulh er bondosa, dócil, calada. Mas nossa locadora é
simplesmente implacável. Desgasta-a toda com o trabalh o, como se fosse
um pano de prato.
Mas em q ue cortiço é q ue vim parar, Varvara Alex éievna! Mas q ue
apartamento é este! Antes vivia feito um ermitão, você mesma sabe: calmo
e q uieto; q uando uma mosca voava, lá em minh a casa, até se podia ouvi-la
voar. E aq ui só barulh o, grita, algaz arra! Mas você nem sabe ainda como
tudo se faz por aq ui. Imagine, digamos, um corredor comprido, totalmente
escuro e sujo. Do seu lado direito fica uma parede maciça; do lado esq uerdo
h á portas e mais portas, como se fosse uma h ospedaria, dispostas todas
numa fileira. Pois bem: alugam-se tais aposentos, e cada um tem um só
q uarto em q ue moram duas ou três pessoas. Não me pergunte se estão em
ordem: é uma arca de Noé! Parece, aliás, q ue são pessoas decentes, todas
tão instruídas e sábias. Há um servidor público (serve algures na área
literária), um h omem de muitas leituras: fala de Homero e do Brambeus6 e
de vários outros autores por lá, fala de tudo — q ue h omem inteligente!
Moram dois oficiais, q ue não faz em senão jogar baralh o. Mora um aspirante
da Marinh a; mora um professor inglês. Espere aí, mãez inh a, q ue vou
diverti-la: descrevê-los-ei, numa carta próx ima, satiricamente, ou seja, tais
como eles são, cada um por si, com todos os pormenores. Nossa locadora,
uma velh ota peq uenina e bem suja, anda, o dia todo, de pantufas e de
sch laf rock ,7 gritando, o dia todo, com Th erez a. Eu moro na coz inh a, ou
seria bem mais correto diz er assim: h á um q uarto, aq ui perto da coz inh a (e
nossa coz inh a, deveria notá-lo para você, é muito boa, limpa e clara), um
q uartinh o peq ueno, um canto modesto assim… ou então, seria melh or ainda
diz er q ue a coz inh a é grande, com três janelas, e q ue tenh o um tabiq ue ao
longo da parede transversal, como se fosse mais um q uarto, uma peça
complementar; é tudo espaçoso e confortável, com uma janela própria e
todo o mais — numa palavra, é tudo confortável. Pois bem: este é meu
cantinh o. Mas não fiq ue pensando aí, mãez inh a, q ue h aja outra coisa nisso,
ou algum sentido misterioso, pelo fato de ser uma coz inh a! Quer diz er,
moro, q uem sabe, neste mesmo q uartinh o detrás do tabiq ue, mas isso não
faz mal, pois vivo separado de todos e vivo assim, pouco a pouco, q uietinh o
e caladinh o. Botei, cá no meu q uarto, uma cama, uma mesa, uma cômoda,
um par de cadeiras; pendurei um ícone. É verdade q ue h á apartamentos
melh ores (talvez h aja muito melh ores), porém é o conforto q ue mais
importa: fiz tudo isso para meu conforto, e não fiq ue pensando aí q ue o
tenh a feito por outro motivo. Sua janela fica logo em frente, do outro lado
do pátio, e o pátio é tão estreitinh o q ue dá para ver você de passagem, e eu
me sinto então mais alegre, este pobre-diabo q ue sou, e gasto menos. Aq ui
conosco, o pior q uarto custa, com a comida, trinta e cinco rublos8 em papel-
moeda. Pesa muito no bolso! E meu aposento me custa sete rublos em
papel-moeda, mais cinco rublos de prata pela comida: são vinte e q uatro
rublos e meio ao todo, mas antes pagava ex atos trinta rublos e negava muita
coisa a mim mesmo, nem sempre tomava ch á, mas agora consigo
economiz ar para comprar ch á e açúcar. Sabe, minh a q uerida, é vergonh oso,
de certa forma, não tomar ch á: o povo daq ui é todo abastado, por isso a
gente se envergonh a. Pois então tomo ch á, Várenka, pelos outros, pelas
aparências, pelo bom-tom, mas, q uanto a mim, não me importo, q ue sou
despretensioso. Assim, conte você meu dinh eirinh o de bolso (a gente
precisa sempre de alguma coisa), talvez com um parz inh o de botas e
alguma roupinh a ali, e veja se sobrará muito. Este é todo o meu ordenado.
Mas não estou reclamando: estou contente. É o q ue me basta. J á faz alguns
anos q ue basta, e recebo também gratificações. Adeus, pois, meu anjinh o.
Comprei lá um par de potez inh os com não-me-toq ues e um geranioz inh o, e
não paguei caro. Talvez você goste de resedá também? Há também resedá,
sim, é só você escrever; e, sabe, escreva sobre tudo e tão minuciosamente
q uanto puder. Não pense, aliás, em coisas ruins nem duvide, mãez inh a, de
mim por ter alugado um q uarto destes. Não: foi o conforto q ue me impeliu,
foi tão só o conforto q ue me seduz iu. É q ue estou poupando dinh eiro,
mãez inh a, guardando, e tenh o, portanto, um dinh eirinh o aq ui comigo. Não
repare no q ue sou tão q uietinh o q ue até uma mosca me q uebraria, parece,
com sua asa. Não, mãez inh a, não sou nenh um moleirão, cá no íntimo, e
meu caráter conviria perfeitamente a um h omem de alma firme e serena.
Adeus, meu anjinh o! Gastei q uase duas folh as para lh e escrever, mas já faz
muito tempo q ue preciso ir à repartição. Beijo seus dedinh os, mãez inh a, e
me q uedo seu criado mais servil e seu amigo mais fiel
M ak ar D êvuch k in.9
P. S.: Só lh e peço uma coisa: responda-me, meu anjinh o, tão
minuciosamente q uanto puder. Envio-lh e com esta, Várenka, um
cartuch inh o de bombons: faça, pois, bom proveito em comê-los e, pelo
amor de Deus, não se preocupe nem se aborreça comigo. Adeus, pois,
mãez inh a.

8 de abril.
Prez ado senh or Makar Alex éievitch !
Será q ue sabe q ue terei, por fim, de brigar mesmo com o senh or? J uro-
lh e, meu bondoso Makar Alex éievitch , q ue me é até penoso aceitar suas
prendas. Sei o q ue elas lh e custam, q uantas provações o senh or passa ao
negar o mais necessário a si próprio. Quantas vez es já lh e disse q ue não
precisava de nada, absolutamente nada, q ue não estava em condição de lh e
retribuir nem seq uer aq ueles favores de q ue o senh or me tinh a cumulado até
agora? Por q ue precisaria desses potes? Com respeito aos não-me-toq ues,
tudo bem, mas de q ue serviria aq uele geranioz inh o? Basta a gente diz er
uma só palavrinh a imprudente, como, por ex emplo, sobre aq uele gerânio, e
o senh or logo o compra, mas ele custa caro, não custa? Como são lindas as
flores dele! Parecem cruz inh as purpúreas. Onde foi q ue o senh or conseguiu
um geranioz inh o tão bonitinh o assim? Coloq uei-o no peitoril da janela, bem
no meio, no lugar mais visível; vou colocar um banco no ch ão e botarei
mais flores naq uele banco: é só o senh or deix ar q ue eu mesma enriq ueça
um pouco! Fedora não para de se alegrar; é como se tivéssemos um paraíso
no q uarto, e está tudo tão limpo e claro! E para q ue me mandou esses
bombons? J uro q ue logo adivinh ei pela sua carta q ue algo não andava bem
por aí, com aq uele paraíso e aq uela primavera, os aromas voando e os
passarinh os gorjeando. O q ue é isso, pensei, será q ue não h á também versos
aí? É q ue, palavra de h onra, só faltam uns versos nessa sua carta, Makar
Alex éievitch ! E as sensações ternas, e os devaneios cor-de-rosa… h á de
tudo aí! Nem pensei, de resto, em minh a cortina: por certo, ela mesma se
prendeu lá, q uando eu mudava os potes de lugar — tome!
Ah , Makar Alex éievitch ! Diga o q ue disser, calcule como calcular seus
ganh os para me iludir, para mostrar q ue gasta tudo consigo mesmo, não vai
ocultar nem esconder nada de mim. É claro q ue o senh or se priva do
necessário por minh a causa. Por q ue é q ue teve, por ex emplo, a ideia de
alugar um apartamento desses? É q ue os outros moradores o inq uietam,
perturbam, e o senh or está apertado, desconfortável. Gosta de recolh imento,
mas q uantas coisas é q ue ficam à sua volta! E poderia viver bem melh or, a
julgar pelo seu ordenado. Fedora diz q ue antes o senh or vivia
incomparavelmente melh or do q ue h oje em dia. Mas será q ue passou a vida
inteira assim, solitário, com essas provações todas, sem alegria nem uma
palavra afável e amigável, alugando cantos na casa dos outros? Ah , meu
bom amigo, q ue pena é q ue sinto do senh or. Veja se poupa, ao menos, sua
saúde, Makar Alex éievitch ! O senh or diz q ue seus olh os estão
enfraq uecendo; não escreva, pois, mais à luz das velas: por q ue escreveria?
É provável q ue seus superiores já saibam sem tudo isso o q uanto o senh or
tem z elado pelo seu serviço.
Imploro-lh e outra vez q ue não gaste tanto dinh eiro comigo. Sei q ue
gosta de mim, só q ue não é nada rico, o senh or mesmo… Hoje eu também
acordei alegre. Estava tão bem: Fedora já trabalh ava h avia bastante tempo e
arranjara um trabalh o para mim. Fiq uei tão feliz ; fui apenas comprar seda e
logo me pus ao trabalh o. Passei a manh ã inteira com tanta levez a na alma,
com tanta alegria! E agora estou triste de novo, ch eia de pensamentos
torvos, e meu coração se cansou de doer.
Ah , mas o q ue se dará comigo, q ual será meu destino? É penoso ficar
nessa incertez a, sem ter futuro nenh um nem mesmo poder antever o q ue
será de mim. E até sinto medo de olh ar para trás. Há tanto pesar ali q ue meu
coração se rasga ao meio com uma só lembrança. Ch orarei pelo resto da
vida por causa daq uelas pessoas más q ue me destruíram!
Escurece. É h ora de trabalh ar. Queria escrever-lh e sobre muita coisa,
mas estou sem tempo, q ue meu trabalh o tem seu praz o. Preciso apressar-
me. É claro q ue as cartas são uma coisa boa: a gente não se entedia tanto
assim. E por q ue o senh or mesmo não vem nunca visitar a gente? Por q ue
será, Makar Alex éievitch ? É q ue agora está perto de nós e poderia arranjar,
vez por outra, um tempinh o livre. Venh a, por favor! Vi essa sua Th erez a.
Ela parece estar tão doente; senti pena dela e lh e dei vinte copeq ues. Ah ,
q uase me esq ueci! Escreva sem falta tudo, da maneira mais detalh ada
possível, sobre a sua vida. Quais são as pessoas q ue o rodeiam e se o senh or
se dá bem com elas. Quero muito saber disso tudo. Veja, pois, se me
escreve sem falta! E h oje dobrarei de propósito o canto da cortina. Vá
dormir mais cedo: ontem vi luz em seu q uarto até a meia-noite. Adeus, pois.
Hoje estou aflita e enfadada e triste! Deve ser um dia daq ueles! Adeus.
Sua
V arvara D obrossiólova.

8 de abril.
Prez ada senh orita Varvara Alex éievna!
Sim, mãez inh a, sim, minh a q uerida: deve ter sido um diaz inh o daq ueles
q ue me coube a mim, este pobre-diabo! Sim, mas você tem brincado
comigo, velh ote q ue sou, Varvara Alex éievna! A culpa é minh a, aliás, a
culpa é toda minh a! Quem é q ue se mete depois de velh o, com um só tufo
de cabelos, naq ueles amores e eq uívocos? … E mais lh e digo, mãez inh a: o
h omem é esq uisito de vez em q uando, bem esq uisito. De q ue é q ue fica
falando, meus santos, sobre o q ue proseia às vez es! E o q ue decorre, o q ue
se deduz disso, h ein? Não se deduz nadinh a de nada, mas decorre tamanh a
droga q ue Deus me proteja dela! Não me z ango, mãez inh a, mas apenas
tanto me aborreço ao recordar-me daq uilo tudo, fico ch ateado por lh e ter
escrito daq uele jeito rebuscado e tolo. Fui h oje à minh a repartição todo
ajanotado, feito um pavão, e meu coração fulgurava tanto! Houve uma
festa, sem mais nem menos, em minh a alma: estava todo alegre. Fiq uei
mex endo z elosamente com meus papéis, mas o q ue foi q ue resultou disso
mais tarde? Mais tarde, assim q ue olh ei ao redor, ficou tudo como antes,
cinz entinh o e escurinh o. As mesmas manch as de tinta, as mesmas mesas, os
mesmos papéis, e eu cá, o mesmo, continuando a ser ex atamente tal como
era… então por q ue precisara mesmo cavalgar o Pégaso? 10 E por q ue foi
q ue isso tudo aconteceu? Porq ue o solz inh o despontou e o céu az ulou um
pouco, foi por isso? E q ue aromas seriam aq ueles, h ein, já q ue em nosso
pátio, bem debaix o das nossas janelas, sói ocorrer um bocado de coisas
malch eirosas? Deve ter imaginado aq uilo tudo por mera tolice minh a. É q ue
acontece, de vez em q uando, q ue alguém se enreda assim em seus próprios
sentimentos e passa a diz er tais disparates. Não acontece, aliás, por nenh um
outro motivo senão porq ue seu coração é por demais ardoroso e tolo. Não
caminh ei, mas me arrastei até minh a casa, e tive, sem causa aparente, muita
dor de cabeça, e deve ter sido pela mesma raz ão. (Será q ue tomei friagem
nas costas? ) É q ue me alegrara com a primavera, imbecil rematado, e saíra
com meu capote fino. E você se enganou, minh a q uerida, no tocante aos
meus sentimentos! Viu a ex pansão deles pelo lado diametralmente oposto.
Era um afeto paterno q ue me animava, unicamente um puro afeto paterno,
Varvara Alex éievna, porq uanto ocupo o lugar de seu pai de sangue, devido
à sua orfandade amarga, e digo isto com toda a alma e o coração límpido,
como se fosse seu parente. Seja como for, sou um parente seu, embora
muito remoto, e, nem q ue seja, conforme aq uele ditado, a sétima água do
k issel,11 sou agora seu parente mais próx imo e seu protetor, pois lá onde
você tinh a o mais pleno direito de procurar amparo e proteção só ach ou
traição e mágoa. E, q uanto aos versinh os, dir-lh e-ei, mãez inh a, q ue me seria
indecoroso, velh o q ue sou, ex ercitar-me em compor versos. Os versos são
uma bobagem! Até os peq uenos são açoitados agora nas escolas por aq ueles
versinh os… é isso aí, minh a q uerida.
Por q ue é q ue me escreve, Varvara Alex éievna, sobre conforto, paz e
outras coisas afins? Não sou rabugento nem caprich oso, minh a mãez inh a, e
nunca vivi melh or do q ue vivo agora, então por q ue me tornaria enjoado
depois de velh o? Tenh o comida, roupas, calçados, e por q ue é q ue
inventaria mais alguma coisa? Não sou nenh um conde ali! Meu pai não
tinh a créditos de fidalguia e era, com toda a família sua, mais pobre q ue eu,
a julgar pelo q ue ganh ava. Não sou um mimalh o! Aliás, se disser a verdade
toda, estava tudo incomparavelmente melh or naq uele meu apartamento
antigo, e eu ficava lá mais à vontade, mãez inh a. É claro q ue meu aposento
de h oje também é bonz inh o e até mesmo, em certo sentido, mais jovial e, se
você q uiser, mais variegado; não digo, pois, nada contra ele, porém lamento
ainda a minh a residência antiga. Nós cá, pessoas velh as, isto é, idosas,
acostumamo-nos às coisas antigas como se fossem algo q uerido. Aq uele
apartamentinh o meu era, sabe, peq ueno assim; as paredes eram… nem
preciso falar a respeito! As paredes eram como q uaisq uer outras, e nem se
trata delas, mas são as recordações de todo o passado meu q ue me deix am
angustiado… Que coisa estranh a: pesam aq uelas recordações, mas são
como q ue agradáveis. Até o q ue era ruim e me provocava z anga por vez es,
até aq uilo se limpa, em minh as recordações, do q ue era ruim e ressurge em
minh a imaginação de modo apraz ível. Vivíamos q uietos, Várenka, eu e
minh a locadora velh inh a, já finada. É com uma sensação triste q ue me
recordo agora da minh a velh inh a também! Era uma boa mulh er e não
cobrava caro pelo apartamento. Estava faz endo, o tempo todo, cobertas de
vários retalh os, com aq uelas agulh as de tricô de um arch in12 cada uma; não
faz ia, aliás, outra coisa. Acendíamos juntos o fogo e trabalh ávamos, dessa
maneira, à mesma mesa. Ela tinh a uma neta, ch amada Mach a13 (lembro-me
dela, ainda criança); agora deve ser uma garota de uns trez e anos de idade.
Era tão danadinh a, tão alegre, e só faz ia a gente rir; era assim q ue vivíamos
nós três. Sentamo-nos às vez es, numa longa noite h ibernal, à mesa redonda,
tomamos nosso ch az inh o e depois nos pomos ao trabalh o. E a velh inh a fica,
para Mach a não se enfadar nem faz er travessuras, contando h istórias. E q ue
h istórias eram aq uelas! Não só uma criancinh a, mas até mesmo um h omem
sensato, inteligente, não pararia de escutá-las. Pois é! Eu mesmo acendo,
vez por outra, meu cach imbinh o e me q uedo lá escutando, tanto assim q ue
me esq ueço de trabalh ar. E a peq uena, nossa danadinh a, fica pensativa:
apoia sua boch ech inh a rosada numa mãoz inh a, abre sua boq uinh a tão
bonitinh a e, sendo uma h istória de assustar, aperta-se toda à velh inh a. E a
gente se apraz em olh ar para ela e não percebe q ue a vela está para se
apagar nem ouve, por vez es, a nevasca q ue se desenfreia lá fora. Vivíamos
bem então, Várenka, e vivemos assim, juntinh os, q uase vinte anos inteiros.
Mas estou falando demais! Talvez você não goste de uma matéria destas,
nem eu cá me lembro daq uilo com facilidade, sobretudo agora q ue anoitece.
Th erez a anda mex endo com alguma coisa; tenh o dor de cabeça, e as costas
também me doem um pouco, e meus pensamentos, tão esq uisitos assim,
estão como q ue doendo: estou triste h oje, Várenka! O q ue é q ue escreve aí,
minh a q uerida? Como é q ue vou visitá-la? O q ue as pessoas vão diz er, h ein,
minh a q ueridinh a? É q ue terei de atravessar o pátio: os nossos repararão
nisso, começarão a indagar-me, depois h averá boatos, lorotas, e o negócio
todo será entendido de modo errado. Não, meu anjinh o, é melh or q ue eu a
veja amanh ã, na h ora do ofício vespertino: assim será mais sensato e menos
nocivo para nós dois. E não se apoq uente comigo, mãez inh a, por lh e ter
escrito uma carta dessas: bem vejo, depois de relê-la, q ue está toda sem
nex o. Sou, Várenka, um h omem velh o e de pouca instrução: não estudei,
q uando moço, e agora nada me viria à mente se fosse estudar de novo.
Confesso, mãez inh a: não sou h ábil em descrever as coisas e sei, sem
indicações nem pilh érias de outrem, q ue, se acaso q uiser escrever algo
rebuscado, direi muitas bobagens. Hoje vi você perto da janela, vi-a abaix ar
a cortina. Adeus, adeus, q ue Deus a resguarde! Adeus, Varvara Alex éievna.
Seu amigo desinteressado
M ak ar D êvuch k in.
P. S.: Eu, minh a q uerida, não escrevo agora sátiras sobre ninguém.
Envelh eci demais, mãez inh a Varvara Alex éievna, para arreganh ar os dentes
à toa! Ririam, aliás, de mim também, segundo o ditado russo: q uem,
digamos, cavar um buraco para outrem… cairá, ele mesmo, naq uele buraco.

9 de abril.
Prez ado senh or Makar Alex éievitch !
Mas como não se envergonh a, meu amigo e benfeitor Makar
Alex éievitch , em ficar tão tristonh o e caprich oso? Será q ue se ofendeu? Ah ,
estou amiúde assim, imprudente, mas nem pensei q ue o senh or tomaria
minh as palavras por uma pilh éria mordaz . Tenh a a certez a de q ue nunca me
atreverei a brincar com sua idade e seu caráter. Pois tudo isso aconteceu
devido à minh a leviandade e, mais ainda, porq ue estou muito entediada, e o
q ue não se faz por tédio? Ach ava, q uanto a mim, q ue o senh or mesmo
estivesse brincando naq uela sua carta. Fiq uei muito triste ao ver q ue não
estava contente comigo. Não, meu bom amigo e benfeitor, estará errado se
suspeitar q ue eu seja insensível e ingrata. Sei estimar, cá no meu coração,
tudo o q ue o senh or tem feito por mim ao proteger-me da gente má, da sua
perseguição e do seu ódio. Eternamente rez arei a Deus pelo senh or, e, se
minh a rez a ch egar até Deus e for ouvida pelo céu, então o senh or estará
feliz .
Hoje me sinto bem indisposta. Ora estou com calor, ora com calafrios.
Fedora anda muito preocupada comigo. E o senh or não tem raz ão caso se
envergonh e em visitar-nos, Makar Alex éievitch . O q ue é q ue os outros têm
a ver com isso? O senh or nos conh ece, e ponto-final! … Adeus, Makar
Alex éievitch . Agora não tenh o mais o q ue escrever; de resto, nem posso:
estou indisposta mesmo. Peço-lh e mais uma vez q ue não se z angue comigo
e tenh a a certez a daq uele respeito de sempre e daq uele apego com os q uais
me sinto h onrada de permanecer sua criada mais submissa e fidelíssima
V arvara D obrossiólova.

1 2 de abril.
Prez ada senh orita Varvara Alex éievna!
Ah , minh a mãez inh a, o q ue você tem? É q ue me assusta assim todas as
vez es. Escrevo-lh e pedindo, em todas as cartas, q ue se cuide, q ue se
agasalh e, q ue não saia q uando o tempo estiver ruim, q ue faça tudo com
cautela, mas você, meu anjinh o, não me dá ouvidos. Ah , minh a q ueridinh a,
mas é como se fosse uma criança ali! Pois você é fraq uinh a como uma
palh inh a: sei disso. Mal um ventinh o assopra, e você fica doente. Deve,
pois, ser cautelosa, cuidar de si mesma, evitar perigos e não deix ar seus
amigos aflitos nem pesarosos.
Vem manifestando, mãez inh a, sua vontade de saber, por miúdo, desta
minh a vida e de tudo q uanto me circunda. Apresso-me, animado, a
satisfaz er essa sua vontade, minh a q uerida. Começarei abinício, mãez inh a:
assim h averá mais ordem. Em primeiro lugar, as escadas de nosso prédio,
aq uelas da entrada limpa, são bastante notáveis, sobretudo a principal:
limpa, clara, larga e ch eia de ferro-gusa e de mogno. Nem me pergunte, por
outro lado, pela dos fundos: toda em caracol, úmida, suja, de degraus
afundados, e suas paredes estão tão ensebadas q ue a mão gruda q uando a
gente se apoia nelas. Há baús, cadeiras e armários q uebrados em cada
patamar; os panos estão ali pendurados, e as janelas, sem vidros; h á tinotes
com várias imundices, com lama e lix o, cascas de ovos e bex igas de peix es;
o ch eiro é ruim… numa palavra, nada de bom.
J á descrevi para você a disposição dos cômodos: são confortáveis,
digam o q ue disserem, é verdade, mas estão assim, como q ue abafados, e
não porq ue fedem, porém, se é q ue posso usar esta ex pressão, seu ch eirinh o
é um tanto podre, digamos, fortemente adocicado. A primeira impressão é
desfavorável, mas isso não faz mal: basta você ficar uns dois minutos aq ui
conosco, e tudo passa, e nem se percebe como passa, já q ue você também
pega aq uele ch eirinh o, q ue lh e impregna as roupas e as mãos e tudo mesmo,
e assim é q ue se acostuma logo. Os passarinh os morrem aos magotes, aq ui
conosco. O aspirante da Marinh a compra já o q uinto: não sobrevivem, com
este ar nosso, e ponto-final. E nossa coz inh a é grande, espaçosa, clara. É
verdade q ue temos um pouco de fumaça pela manh ã, q uando fritam peix e
ou carne de vaca, e q ue ela fica molh ada por toda parte, mas, em
compensação, é um paraíso à noite. Sempre h á roupas de baix o, bem gastas,
dependuradas nas cordas em nossa coz inh a, e, como meu q uarto se encontra
por perto, ou seja, q uase rente à coz inh a, o ch eiro daq uelas roupas me
incomoda um pouco, mas isso não faz mal: a gente mora e se acostuma.
Desde a manh ãz inh a, Várenka, começa uma agitação por aq ui: as
pessoas se levantam, andam, faz em barulh o; são todas aq uelas pessoas q ue
se levantam por necessidade, para ir trabalh ar ou então mex er com suas
coisinh as, e eis q ue se põem todas a tomar ch á. Nossos samovares14
pertencem, em sua maioria, à locadora e são poucos, portanto ficamos, nós
todos, na fila, e q uem vier furá-la com sua ch aleira própria, aq uele não
demora a levar um sabão dos nossos. Eu também levei um, da primeira vez ,
mas… não tenh o, aliás, por q ue escrever a respeito! E foi daq uela feita q ue
conh eci todo mundo. Primeiro conh eci o aspirante da Marinh a, q ue é um
cara assim, sincero: contou para mim tudo sobre seu paiz inh o e sua
mãez inh a, sobre sua irmãz inh a q ue se casara com um assessor do juiz em
Tula15 e sobre a cidade de K ronstadt.16 Prometeu-me a sua proteção
permanente e logo me convidou a tomar ch á com ele. Fui encontrá-lo
naq uele mesmo q uarto onde os nossos costumam jogar baralh o. Ali me
serviram ch á e q uiseram q ue eu participasse sem falta, com eles, de um jogo
de az ar. Não sei se z ombavam de mim ou não, só q ue passaram a noite
inteira jogando e, q uando eu entrei, já estavam jogando. O giz , as cartas e
tanta fumaça pelo q uarto todo q ue os olh os lacrimejavam. Não joguei com
eles, e logo me fiz eram notar q ue eu falava sobre filosofia. Depois ninguém
mais falou comigo, o tempo todo, e eu mesmo fiq uei, seja dita a verdade,
contente com isso. Agora não vou mais visitá-los: h á tanto arroubo em seu
meio, arroubo puro! E aq uele servidor da área literária também faz reuniões
à noite. Mas, q uanto àq uele lá, está tudo bom, ou seja, h umilde, inocente e
delicado; tudo se faz de maneira fina.
Pois bem, Várenka, notarei também, de passagem, para você q ue nossa
locadora é uma mulh er repugnante e, além disso, uma verdadeira brux a.
Você viu Th erez a. Mas enfim, o q ue ela é na realidade, h ein? Toda magra
q ue nem um frango mofino e já depenado. Aliás, só h á dois criados aq ui:
Th erez a e Faldoni, o empregado da locadora. Não sei mesmo, talvez ele
tenh a outro nome q ualq uer, mas o fato é q ue atende também por aq uele —
todos o ch amam assim. É ruivo, parece um tch uk h ná17 q ualq uer, caolh o, de
nariz arrebitado, e muito grosseiro: briga, o tempo todo, com Th erez a; por
pouco não se atracam um com o outro. E, de modo geral, não é q ue minh a
vida aq ui seja tão boa assim… Não é q ue todos adormeçam juntos à noite e
se acalmem: isso não acontece nunca. Sempre h á gente por ali, jogando ou
então faz endo, por vez es, coisas tais q ue até me envergonh aria de contar.
Agora estou meio acostumado, mas, ainda assim, fico surpreso de ver
pessoas casadas se darem bem numa Sodoma dessas. Uma família inteira de
pobres q uaisq uer aluga um cômodo da nossa locadora, porém não ao lado
dos demais aposentos, mas do outro lado, num canto à parte. Que gente
calma! Ninguém nem ouve falar dela! Moram num q uartinh o só, atrás de
um tabiq ue. Ele é um servidor desempregado, ex pulso do seu serviço, h á
uns sete anos, por algum motivo. Seu sobrenome é Gorch kov; é grisalh o
assim, peq uenino, e usa tais roupas sebentas e gastas q ue até olh ar para ele
é doloroso — a vida dele é bem pior q ue a minh a! Tão miserável,
ach acadiço (encontramo-nos, vez por outra, no corredor); seus joelh os
tremem, suas mãos tremem, sua cabeça treme, talvez por causa de alguma
doença, sabe lá Deus; é tímido, tem medo de todos e anda assim, apartado:
eu também me acanh o, de vez em q uando, mas aq uele ali é pior ainda. Tem
lá sua esposa e três filh os. O mais velh o, um menino, é igualz inh o ao pai,
também é todo mofino. Sua esposa já foi outrora assaz bonita, dá para
perceber até h oje; usa, coitada, uns trapos tão miseráveis! Ouvi diz erem q ue
eles estavam devendo à locadora; ela os trata, aliás, sem muito carinh o.
Ouvi diz erem também q ue Gorch kov em pessoa tinh a alguns problemas,
pelos q uais h avia perdido seu emprego… seja um processo judicial ou não,
esteja ele sendo julgado ou, talvez , investigado de algum jeito, eu não
saberia como lh e contar direito. São pobres, Deus nosso Senh or, mas como
são pobres! O q uarto deles está sempre silencioso e calmo, como se não
morasse ninguém nele. Nem as crianças se deix am ouvir. E nunca acontece
de as crianças se esbaldarem ou brincarem apenas, e esse já é um indício
ruim. Certa noite, passei por acaso perto das portas daq uela família, e o
prédio ficou então, de certo modo inabitual, silencioso; ouvi, pois, uns
soluços lá dentro, depois um coch ich o, depois outros soluços, como se
alguém estivesse ch orando, e tão baix inh o, com tanta lamúria q ue meu
coração se partiu, e depois, pela noite afora, não parei mais de pensar
naq ueles coitados e pensei tanto neles q ue nem consegui dormir direitinh o.
Pois bem, adeus, minh a inestimável amiguinh a Várenka! Descrevi tudo
para você como pude. Passei h oje o dia todo pensando só em você. E meu
coração ficou todo doído, minh a q uerida, por sua causa. É q ue me consta,
meu benz inh o, q ue não tem salope18 q uente aí. Mas essas primaveras
petersburguenses, com ventos e aq uelas ch uvinh as mescladas com neve…
mas essa é minh a morte, Várenka! Tamanh a “ serenidade dos ares” ,19 q ue
Deus me resguarde dela! Não reclame destes escritos, meu benz inh o: não
tenh o estilo, Várenka, não tenh o estilo nenh um. Se tivesse algum, pelo
menos! Escrevo o q ue me vem à cabeça, só para diverti-la com algo. Se eu
tivesse estudado de q ualq uer jeito, aí sim, seria outra coisa, mas como foi
mesmo q ue estudei? Nem seq uer com trocados de cobre…
Seu fiel amigo de sempre
M ak ar D êvuch k in.

2 5 de abril.
Prez ado senh or Makar Alex éievitch !
Hoje encontrei minh a prima Sach a! 20 Que h orror: ela também vai
perecer, coitada! Ouvi também comentarem por aí q ue Anna Fiódorovna
não faz ia outra coisa senão indagar a meu respeito. Parece q ue nunca
deix ará de me perseguir. Está diz endo q ue q uer perdoar- me, esq uecer todo
o passado, e q ue me visitará sem falta pessoalmente. Diz q ue o senh or não é
nenh um parente meu, q ue ela é a minh a parenta mais próx ima, q ue o senh or
não tem nenh um direito de se intrometer em nossas relações familiares, e
q ue é vergonh oso e indecente eu viver de sua esmola, sustentada pelo
senh or… diz q ue eu me esq ueci do pão e do sal21 dela, q ue talvez me tenh a
livrado a mim, junto com minh a mãez inh a, de morrermos ambas de fome,
q ue nos deu de comer e de beber, gastando conosco seu dinh eiro por mais
de dois anos e meio, e q ue nos perdoou, além disso tudo, as nossas dívidas.
Não q uis poupar nem minh a mãez inh a! Pois se ela soubesse, coitada da
minh a mãe, o q ue eles fiz eram comigo! Deus está vendo! … Anna
Fiódorovna diz q ue foi por mera tolice q ue não consegui segurar a minh a
felicidade, q ue ela mesma me conduz iu até aq uela felicidade minh a, q ue
todo o resto não é sua culpa, e q ue eu cá não soube ou, talvez , nem q uis
defender a minh a h onra. Mas de q uem é a culpa disso, Deus grande? Ela diz
q ue o senh or Bý kov tem toda a raz ão, e q ue não dá para se casar com
q ualq uer uma q ue… não adianta escrever! É doloroso ouvir uma calúnia
dessas, Makar Alex éievitch ! Nem sei o q ue se dá comigo agora. Fico
tremendo, ch orando, soluçando; gastei duas h oras em escrever esta carta ao
senh or. Pensava q ue ela reconh ecesse, ao menos, sua culpa para comigo,
mas é assim q ue ela anda falando agora! Pelo amor de Deus, não se
preocupe, amigo meu, o único q ue deseja meu bem! Fedora ex agera
demais: não estou doente. Apenas me resfriei um pouco ontem, q uando fui
ao cemitério Vólkovo para encomendar o ofício das almas pela minh a
mãez inh a. Por q ue o senh or não foi comigo? É q ue lh e pedi tanto assim!
Ah , coitada, coitada da minh a mãez inh a, se tu te levantasses do teu caix ão,
se soubesses, se visses o q ue eles fiz eram comigo! …
V .D .

2 0 de maio.
Várenka, minh a q ueridinh a!
Envio-lh e algumas uvas, meu benz inh o: diz em q ue são boas para q uem
estiver convalescendo, e o doutor as recomenda para matar a sede,
unicamente assim, para matar a sede. Quis ontem rosinh as, mãez inh a, não
q uis? Agora envio, pois, algumas para você. Será q ue tem apetite, meu
benz inh o? Eis o q ue é o mais importante. Aliás, graças a Deus, tudo passou
e acabou, e estas desgraças nossas também estão todas para acabar.
Agradeçamos ao céu por isso! Quanto àq ueles livrinh os, ainda não consigo
arranjá-los nenh ures. Diz em q ue h á um bom livrinh o por aí, escrito com um
estilo bastante alto; diz em q ue é bom: ainda não o li, mas o elogiam muito
aq ui. Pedi-o para mim mesmo; prometeram q ue o trariam. Mas será q ue
você vai lê-lo? É bem caprich osa, q uanto a isso, é difícil agradá-la com esse
seu gosto, q ue a conh eço bem, minh a q ueridinh a. Deve precisar, por certo,
daq uela versificação toda, de suspiros e de amores… pois bem, arranjarei
uns poemas também, arranjarei tudo, q ue tenh o cá um caderninh o com
cópias.
Quanto a mim, estou bem. Não se preocupe comigo, mãez inh a, por
favor. E o q ue Fedora lh e tem falado a meu respeito, aq uilo tudo é uma
bobagem; diga, pois, a ela q ue mentiu, diga sem falta àq uela fofoq ueira! …
Não vendi meu novo uniforme, coisa nenh uma. E por q ue, julgue você
mesma aí, por q ue o teria vendido? Logo vou receber uma gratificação,
q uarenta rublos de prata pelo q ue diz em, então por q ue teria de vendê-lo?
Não se preocupe, mãez inh a: ela é cismada, aq uela Fedora, ela é cismada.
Viveremos bem, minh a q ueridinh a! Apenas veja se melh ora, meu anjinh o:
melh ore, pelo amor de Deus, não entristeça este velh o aq ui. Quem é q ue lh e
diz q ue emagreci, h ein? Calúnia, outra calúnia! Estou saudavelz inh o e
engordei tanto q ue ando de novo envergonh ado, mas estou farto e satisfeito
até diz er ch ega. Tomara apenas q ue você se recupere! Pois bem, adeus, meu
anjinh o: beijo todos os seus dedinh os e continuo sendo, para todo o sempre,
seu amigo fiel
M ak ar D êvuch k in.
P. S.: Ah , meu benz inh o, o q ue foi mesmo q ue começou a escrever outra
vez ? … Que fantasias são essas? Mas como é q ue iria visitá-la, mãez inh a,
com tanta freq uência? Pergunto-lh e como! Só se me aproveitasse da
escuridão noturna, mas q uase não h á mais noites agora22 — o tempo está
assim. Eu cá, minh a mãez inh a, anjinh o meu, q uase nunca me afastei de
você ao longo de toda a sua doença, enq uanto você estava inconsciente,
porém não sei nem eu mesmo como faz ia todas aq uelas coisas, e parei mais
tarde de ir à sua casa, visto q ue começaram a bisbilh otar, a interrogar. Aliás,
já foi sem isso q ue uma lorota q ualq uer surgiu por aí. Conto com Th erez a,
q ue não é falastrona, mas, ainda assim, julgue você mesma, mãez inh a, o
q ue acontecerá q uando se souber tudo a nosso respeito. O q ue vão pensar e
diz er então? Fortaleça, pois, seu coração, mãez inh a, e fiq ue esperando até
q ue se recupere, e depois a gente terá um rendez - vous23 em algum lugar,
fora de casa.
1 º de junh o.
Amabilíssimo Makar Alex éievitch !
Queria tanto agradá-lo de algum modo conveniente por todos aq ueles
cuidados e pelo desvelo q ue o senh or me tem dispensado, por todo o seu
amor por mim, q ue acabei decidindo vasculh ar, por enfado, a minh a
cômoda e ach ar um caderno meu q ue ora lh e repasso. Comecei a preench ê-
lo ainda na época feliz de minh a vida. O senh or me indagou várias vez es,
com curiosidade, sobre a minh a vida de antes, sobre minh a mãez inh a, sobre
Pokróvski, sobre minh a estada na casa de Anna Fiódorovna e, afinal, sobre
minh as desgraças recentes, e q uis ler, com tanta impaciência, este caderno
meu, no q ual eu tivera, só Deus sabe por q uê, a ideia de anotar alguns
momentos de minh a vida, q ue me disponh o a remetê-lo ao senh or e a
proporcionar-lh e, sem dúvida, muito praz er com isso. Quanto a mim
mesma, fiq uei, de alguma forma, entristecida ao reler aq uilo. Parece-me q ue
já estou com o dobro de idade, desde q ue escrevi a última linh a deste meu
diário. E tudo isso foi escrito em ocasiões diferentes. Adeus, Makar
Alex éievitch ! Estou muito enfadada agora, e a insônia me atenaz a volta e
meia. Que tediosa convalescença!
V .D .

I
Estava com apenas catorz e anos q uando meu paiz inh o morreu. A
infância foi a época mais feliz de minh a vida. Não começou por aq ui, mas
bem longe, no interior, nos confins do mundo. Meu paiz inh o administrava
uma enorme faz enda do príncipe P-i, na província de T. Morávamos numa
das aldeias pertencentes àq uele príncipe, e nossa vida era calma, pacata,
feliz … Eu era tão irreq uieta, q uando criança; não faz ia então outra coisa
senão correr pelos campos, pelos bosq ues, pelo jardim, e ninguém se
preocupava comigo. Meu paiz inh o estava sempre ocupado com os
negócios, minh a mãez inh a cuidava da nossa casa; não me ensinavam coisa
nenh uma, e eu vivia contente com isso. Às vez es, saía correndo de manh ã
cedo e ia até uma lagoa ou um bosq ue, via os camponeses juntarem o feno
ou ceifarem; não me importava nem com o sol a pino nem em correr para
bem longe da nossa aldeia, em arranh ar-me pelas moitas, em rasgar meu
vestido. Depois me ex probravam em casa, mas eu não me importava nem
com aq uilo.
E me parece a mim q ue seria tão feliz se tivesse de permanecer, nem
q ue fosse ao longo de toda a minh a vida, naq uela aldeia e de morar no
mesmo lugar. Não obstante, fui obrigada a deix ar, ainda criança, minh as
plagas natais. Tinh a apenas doz e anos q uando nos mudamos para
Petersburgo. Ah , com q uanto pesar é q ue relembro os preparativos tristes de
nossa viagem! Como ch orei ao despedir-me de tudo o q ue me era tão caro
assim! Lembro-me de ter saltado ao pescoço de meu paiz inh o, implorando,
aos prantos, q ue demorássemos ainda um pouco lá na aldeia. Meu paiz inh o
gritou comigo, minh a mãez inh a ficou ch orando e disse q ue era necessário,
q ue nossa situação ex igia a partida. O velh o príncipe P-i falecera, e seus
h erdeiros negavam o cargo ao meu paiz inh o. Ele tinh a algum dinh eiro
investido em Petersburgo, nas mãos de alguns particulares. Esperando
melh orar suas circunstâncias, ach ou imprescindível sua presença pessoal
naq uela cidade. Eu saberia disso tudo mais tarde, graças à minh a mãez inh a.
Viemos morar no Lado Petersburguense24 e ficamos lá, no mesmo lugar, até
a morte de meu paiz inh o. Como foi difícil acostumar-me à nova vida!
Ch egamos a Petersburgo no outono. Quando deix ávamos nossa aldeia, o dia
estava tão claro, cálido, luminoso; os trabalh os no campo vinh am
terminando, nas eiras já se amontoavam imensas medas de cereais e se
juntavam, gritando, bandos de pássaros; estava tudo tão claro, alegre, porém
aq ui, com nossa entrada na cidade, h avia ch uva e aq uela escarch a outonal,
toda podre, h avia mau tempo e lama, e uma multidão de pessoas novas,
desconh ecidas e tão inóspitas, descontentes e z angadas! Instalamo-nos bem
ou mal. Lembro como nos agitávamos em nossa casa, como andávamos
az afamados para nos acomodar naq uele lugar novo. Meu paiz inh o nem
aparecia em casa, minh a mãez inh a não tinh a seq uer um minuto de paz , e eu
mesma fiq uei totalmente esq uecida. Foi com tristez a q ue acordei de manh ã,
após a primeira noite passada em nossa morada nova. As janelas davam
para uma cerca amarela. Havia, o tempo todo, lama na rua. Os transeuntes
eram poucos e todos se agasalh avam tanto assim: estavam todos com tanto
frio.
E nossa casa estava, por dias inteiros, h orrivelmente enfadada e triste.
Quase não tính amos parentes nem conh ecidos próx imos. Meu paiz inh o
h avia brigado com Anna Fiódorovna (estava devendo algo a ela). Se as
pessoas vinh am amiúde à nossa casa, vinh am só a negócios. Discutiam de
prax e, faz iam barulh o, gritavam. Meu paiz inh o ficava, após cada visita, tão
carrancudo e irritado, passava h oras a fio andando de um canto para o outro,
todo sombrio, sem trocar uma só palavra com ninguém. Minh a mãez inh a
não se atrevia então nem a pux ar conversa com ele: calava-se o tempo todo.
E eu me sentava num cantinh o q ualq uer, com um livrinh o nas mãos, dócil e
caladinh a, e não ousava, às vez es, nem me mex er.
Três meses depois de ch egarmos a Petersburgo, fui matriculada num
colégio interno. E como me senti triste, logo de início, no meio de pessoas
estranh as! Era tudo tão seco, inóspito; as governantas eram tão gritalh onas,
as moças, tão galh ofeiras, e eu, tão tímida. E tudo se faz ia com rigor e
ex igência! Os h orários estabelecidos para tudo, a mesa comum, os
professores ch atos — tudo isso me afligiu, logo de início, e me torturou.
Nem conseguia dormir naq uele lugar. Fico, vez por outra, ch orando a noite
toda, e essa noite é longa, tediosa e fria. E, de vez em q uando, todas
recapitulam as aulas à noite ou faz em os deveres, e eu, com aq uelas
conversações ou aq ueles vocábulos,25 não ouso nem me mex er e penso sem
parar em nosso cantinh o caseiro, em meu paiz inh o, em minh a mãez inh a, em
minh a babá velh inh a, nos contos dela… ah , q ue tristez a é q ue sinto então!
Nem q ue seja a coisinh a mais fútil em nossa casa, lembro-me dela também
com deleite. Fico pensando, pensando: como estaria bem agora, se estivesse
em casa! Estaria sentada em nosso q uartinh o, junto do samovar, com os
meus, e ach aria tudo tão q uente, tão bom, tão familiar. Como abraçaria
agora, penso, minh a mãez inh a: forte, bem forte, com tanta ternura! Fico
pensando, pensando, e eis q ue começo a ch orar baix inh o, de tanta tristez a, e
abafo os prantos no peito, e aq ueles vocábulos não me vêm mais à mente.
E, sem aprender a lição do dia seguinte, sonh o, a noite inteira, com o
professor, com a M adame, com as moças, e passo a noite inteira a decorar
meus deveres em sonh o, e não sei patavina no dia seguinte. Então me põem
de joelh os e só deix am comer um prato. Andava então muito triste, amuada.
No começo todas as moças z ombavam de mim e me provocavam, sopravam
respostas erradas, q uando eu recitava a lição, e me beliscavam, q uando
íamos juntas, enfileiradas, almoçar ou tomar ch á, reclamavam de mim, sem
motivo algum, com a governanta. Mas q ue paraíso era q uando minh a babá
vinh a, por vez es, buscar-me sábado à noite! Assim abraçava, por vez es,
minh a velh inh a e me q uedava frenética de alegria. Ela me veste e me
agasalh a, nem consegue alcançar-me pelo caminh o, e eu vou papeando com
ela, papeando sem parar, contando. Volto para casa alegre, feliz , abraço os
meus bem forte, como após uma década de separação. Aí começam aq uelas
fofocas, conversas, h istórias; aí cumprimento todos, rio e gargalh o, corro e
pulo. Minh as conversas com o paiz inh o são sérias, sobre várias ciências,
sobre nossos professores, sobre a língua francesa, sobre a gramática de
Lh omond, e estamos todos tão alegres e tão contentes. Até agora me lembro
daq ueles momentos com alegria. Esforçava-me muito para estudar e
agradar ao meu paiz inh o. Percebia q ue ele gastava o último dinh eiro
comigo e pelejava, ele mesmo, só Deus sabe como. Ficava cada dia mais
sombrio, descontente e z angado; seu caráter se estragou por completo; seus
negócios não vingavam, suas dívidas não tinh am mais fim. Às vez es, minh a
mãez inh a tinh a medo até de ch orar, até mesmo de diz er uma palavrinh a e
deix ar meu paiz inh o z angado; ficou muito doente, cada vez mais magra, e
passou a tossir de maneira ruim. Volto, por vez es, do colégio, e todos os
rostos estão tristonh os: minh a mãez inh a ch ora às ocultas, meu paiz inh o
anda z angado. Começam aq ueles reproch es, aq uelas censuras. Meu
paiz inh o vem diz endo q ue eu não lh e dou nenh uma alegria, nenh uma
satisfação, q ue eles perdem, por minh a causa, o último dinh eiro, e eu nem
falo ainda francês — numa palavra, ele descontava todos os malogros e
todas as desgraças, tudo, mas tudo mesmo, em mim e em minh a mãez inh a.
Como é q ue podia afligir minh a pobre mãe? Meu coração se partia, às
vez es, só de olh ar para ela: as faces estavam cavadas, os olh os se
afundavam, e o rosto dela tinh a uma cor tísica. E eu mesma era q uem mais
apanh ava em casa. Sempre se começava por ninh arias, mas depois só Deus
sabe aonde tudo ch egava, e eu nem seq uer entendia, volta e meia, de q ue se
tratava. Mas q ue conversas eram aq uelas! … E a língua francesa, e q ue eu
era muito boba, e q ue a dona de nosso colégio era uma mulh er displicente e
tola e não cuidava de nossa moral, e q ue ele próprio, meu paiz inh o, não
conseguira ainda arranjar um emprego, e q ue a gramática de Lh omond era
ruim e a de Zapólski, bem melh or, e q ue eles h aviam desperdiçado um
dinh eirão comigo, e q ue eu era, pelo visto, insensível e como q ue de
pedra… numa palavra, eu me debatia, coitada, com todas as forças,
decorando tais conversações e vocábulos, e era culpada de tudo e
responsabiliz ada por tudo! E isso não ocorria porq ue meu paiz inh o não me
amava: pelo contrário, estava simplesmente apaix onado por mim e pela
mãez inh a. Mas, fosse como fosse, assim era o caráter dele.
E foram aq uelas angústias e mágoas, foram aq ueles malogros q ue
esgotaram meu pobre paiz inh o em ex tremo, tornando-se ele desconfiado e
bilioso; freq uentemente, estava à beira do desespero; passou a negligenciar
sua saúde, resfriou-se e, de repente, adoeceu; ficou sofrendo por pouco
tempo e teve uma morte tão rápida, tão fulminante q ue nós nos q uedamos
todas, por alguns dias, atordoadas com esse golpe. Minh a mãez inh a caiu
num torpor, tanto assim q ue eu ch eguei a temer pelo seu juíz o. Tão logo
meu paiz inh o morreu, os credores surgiram como q ue crescendo do solo,
afluíram em massa. Tudo q uanto nós tính amos foi entregue a eles. Nossa
casinh a no Lado Petersburguense, q ue meu paiz inh o comprara meio ano
depois da nossa mudança para Petersburgo, também foi vendida. Não sei
como se resolveu o restante, mas nós mesmas ficamos desabrigadas, sem
morada nem sustento. Minh a mãez inh a padecia de uma doença ex tenuante,
não conseguíamos alimentar-nos nem tính amos de q ue viver, e a perdição
esperava por nós. Eu acabava então de completar catorz e anos. E foi então
q ue nos visitou Anna Fiódorovna. Ela anda diz endo q ue é uma faz endeira
ali e uma parenta nossa. Minh a mãez inh a também diz ia q ue era uma parenta
da gente, só q ue muito distante. Enq uanto meu paiz inh o estava vivo, não
viera à nossa casa nenh uma vez . Apareceu, pois, com lágrimas nos olh os e
disse q ue se apiedava muito de nós, lamentou nossa perda e nossa situação
deplorável, acrescentou q ue a culpa era do meu paiz inh o mesmo, porq uanto
gastava além dos seus meios, ia longe demais e contava em ex cesso com
suas próprias forças. Manifestou a vontade de se aprox imar da gente,
propôs q ue relevássemos as contrariedades mútuas e, q uando minh a
mãez inh a lh e declarou q ue jamais sentira h ostilidade por ela, até ch orou um
pouco, levou minh a mãez inh a para uma igreja e encomendou o ofício das
almas pelo “ q ueridinh o” (assim se referiu ao meu pai). Feito isso,
reconciliou-se solenemente com minh a mãez inh a.
Após longas introduções e advertências, ao pintar em cores vivas nossa
situação deplorável, nossa orfandade, nosso desespero e nossa impotência,
Anna Fiódorovna convidou-nos, conforme ela mesma se ex pressou, a
abrigar-nos em sua casa. Minh a mãez inh a lh e agradeceu o convite, mas
demorou a tomar sua decisão; depois, como não tinh a mais nada a faz er
nem podia decidir de nenh um outro modo, acabou declarando a Anna
Fiódorovna q ue aceitávamos o convite dela com gratidão. Lembro-me,
como se fosse h oje, daq uela manh ã em q ue nos mudamos do Lado
Petersburguense para a ilh a Vassílievski.26 Era uma manh ã outonal, clara,
seca e gélida. Minh a mãez inh a ch orava; eu estava bem triste: meu peito se
rasgava, minh a alma se afligia com uma angústia inex primível, terrível…
Era um tempo difícil.

II
A princípio, antes de nos acostumarmos ao nosso domicílio novo,
ficamos nós duas, isto é, minh a mãez inh a e eu, como q ue assustadas,
angustiadas na casa de Anna Fiódorovna. Ela morava numa casa pró pria, na
Sex ta linh a. Havia ao todo, na casa dela, cinco cômodos limpos. Três deles
eram ocupados por Anna Fiódorovna e minh a prima Sach a, criada em sua
casa, uma menina órfã, sem pai nem mãe. Nós duas morávamos num q uarto
só, e finalmente, no último cômodo, ao lado do nosso, h ospedava-se um
pobre estudante, ch amado Pokróvski, locatário de Anna Fiódorovna. A vida
de Anna Fiódorovna era muito boa, mais rica do q ue se podia supor, porém
essa sua fortuna era misteriosa, assim como suas ocupações. Sempre se
agitava, andava sempre atarefada, saía, de carruagem e a pé, várias vez es ao
dia, porém eu mesma não conseguia, de jeito nenh um, adivinh ar o q ue ela
faz ia, de q ue nem por q ue estava cuidando. Suas relações eram amplas e
variadas. Recebia, às vez es, muitas visitas, e sabia lá Deus q ue gente era
aq uela q ue sempre vinh a a negócios, por um minutinh o. Minh a mãez inh a
sempre me levava para nosso q uarto, tão logo a campainh a passava a tocar.
Anna Fiódorovna se z angava muito com minh a mãez inh a, por causa disso,
e repetia sem parar q ue éramos orgulh osas demais, orgulh osas além dos
nossos meios, embora não tivéssemos nem seq uer de q ue nos orgulh ar, e
não se calava então por h oras a fio. Eu não compreendia, na época, essas
censuras por sermos orgulh osas; de igual modo, é só agora q ue venh o a
saber ou, pelo menos, a intuir por q ue minh a mãez inh a não se dispunh a a
morar na casa de Anna Fiódorovna. Uma mulh er maldosa era aq uela Anna
Fiódorovna: implicava conosco o tempo todo. Até h oje é um segredo para
mim: por q ue foi, notadamente, q ue ela nos convidou para sua casa?
Inicialmente nos tratava bastante bem; só depois é q ue revelou plenamente
a sua índole verdadeira, ao perceber q ue éramos totalmente indefesas e não
tính amos mais para onde ir. Mais tarde, ela se mostrou assaz carinh osa
comigo, até mesmo grosseiramente carinh osa assim, ch egando às
adulações, só q ue de início eu também aturei muita coisa, junto com minh a
mãez inh a. Ela nos censurava a cada minuto, insistia, o tempo todo, em
arrolar suas boas ações. Apresentava-nos às pessoas estranh as como suas
parentas pobres, uma viúva e uma órfã desprotegidas, q ue ela acolh era por
caridade, pelo amor cristão, em sua casa. Quando à mesa, acompanh ava
com os olh os cada pedaço q ue nós pegávamos e, q uando não estávamos
comendo, urdia outra h istória, como se tivéssemos nojo da sua comida,
digamos, “ q ueiram desculpar-me, q ue estou contente com o q ue tenh o:
ox alá vocês mesmas tenh am algo melh or” . Injuriava meu paiz inh o a cada
minuto, diz endo q ue q uisera ser melh or q ue os outros, mas se dera mal, q ue
deix ara a esposa e a filh a no olh o da rua, e q ue, não h ouvesse ainda uma
parenta benfaz eja, uma alma cristã ch eia de compaix ão, saberia lá Deus se
não teríamos, q uiçá, de apodrecer, famintas, ali na sarjeta. Quais coisas é
q ue não diz ia! Era mais asq ueroso q ue pesaroso ouvi-la. Minh a mãez inh a
ch orava a cada minuto; sua saúde ficava pior, dia após dia, ela definh ava a
olh os vistos; enq uanto isso, trabalh ávamos, nós duas, de sol a sol,
arranjando encomendas fora de casa e costurando, o q ue desagradava muito
a Anna Fiódorovna, a ponto de ela diz er, a cada minuto, q ue sua casa não
era nenh uma loja de modas. Entretanto, precisávamos de roupas,
precisávamos economiz ar para nossas despesas imprevistas, precisávamos
ter sem falta nosso dinh eiro próprio. Então economiz ávamos, por via das
dúvidas, esperando podermos, mais tarde, mudar de casa. Só q ue minh a
mãez inh a perdera o resto de sua saúde com aq uele trabalh o: ficava mais
fraca a cada dia. A doença corroía a olh os vistos, tal q ual um verme, a vida
dela, aprox imando-a do caix ão. Eu via tudo, sentia tudo, sofria com tudo,
pois tudo isso se dava em minh a frente!
Os dias iam passando, e cada dia novo se parecia com o precedente.
Vivíamos q uietas, como se nem estivéssemos numa cidade. Anna
Fiódorovna se abrandava aos poucos, à medida q ue se q uedava cada vez
mais consciente do seu poderio. De resto, ninguém nem pensava nunca em
contradiz ê-la. Um corredor separava o nosso q uarto dos seus aposentos, e
ao nosso lado, conforme já mencionei, morava Pokróvski. Ele ensinava
francês e alemão, assim como h istória, geografia e, no diz er de Anna
Fiódorovna, tudo q uanto fosse ciência, a Sach a e recebia em troca o q uarto
e a comida. Sach a era uma garota muito inteligente, embora agitada e
travessa; tinh a então uns trez e anos. Anna Fiódorovna notou para minh a
mãe q ue não faria mal se eu também voltasse a estudar, visto q ue não
concluíra o curso naq uele colégio. Minh a mãez inh a concordou, toda alegre,
e passei um ano inteiro sendo ensinada, junto com Sach a, por Pokróvski.
Esse Pokróvski era um jovem pobre, muito pobre; sua saúde não o
deix ava freq uentar constantemente as aulas, e apenas assim, por h ábito, é
q ue o ch amavam de estudante em nossa casa. Sua vida era h umilde, pacata,
silenciosa, de sorte q ue nem se podia, às vez es, ouvi-lo do nosso q uarto.
Tinh a uma aparência meio estranh a: andava tão tronch o, faz ia mesuras tão
desajeitadas, falava de modo tão esq uisito q ue eu não conseguia, bem no
começo, nem olh ar para ele sem riso. Sach a não parava de importuná-lo,
sobretudo q uando ele nos ensinava. E, além do mais, ele tinh a uma índole
irritadiça e se z angava o tempo todo, ficava fora de si por q ualq uer coisinh a,
gritava conosco, reclamava de nós e freq uentemente, sem terminar a aula, ia
z angado ao seu q uarto. E, q uando estava lá, passava dias inteiros com seus
livros. Tinh a muitos livros, e todos eram assim, caros e raros. Ensinava
também em outros lugares, recebia algum dinh eiro a mais, de maneira q ue,
tão logo ficava, por vez es, um tanto endinh eirado, ia comprar, sem demora,
mais livros.
Ao passar do tempo, conh eci-o melh or, mais de perto. Era um h omem
bondosíssimo e digníssimo, o melh or de todos os h omens q ue jamais
ch egara a encontrar. Minh a mãez inh a tinh a muito respeito por ele. E depois
ele se tornou, para mim também, o melh or dos amigos — além de minh a
mãez inh a, bem entendido.
De início eu mesma, uma moça tão grande assim, faz ia travessuras com
Sach a, e passávamos, vez por outra, h oras inteiras q uebrando nossas
cabeças para inventar um jeito de irritá-lo e de deix á-lo fora de si. Ele se
z angava de forma bem engraçada, e nós duas nos divertíamos à beça com
isso. (Fico envergonh ada apenas de me lembrar dessas coisas.) Certa vez ,
fiz emos algo q ue o irritou q uase até ch orar, e ouvi claramente aq uele moço
coch ich ar: “ Más meninas! ” . Fiq uei, de repente, confusa; senti vergonh a e
amargura e pena dele. Recordo-me de ter enrubescido toda e de lh e pedir,
q uase com lágrimas nos olh os, q ue se acalmasse, q ue não se ofendesse com
nossas brincadeiras estúpidas, mas ele fech ou o livro e foi, sem terminar a
aula, para seu q uarto. Passei o dia inteiro sofrendo de contrição. A própria
ideia de nós, duas crianças, termos feito aq uele h omem ch orar com nossas
crueldades era-me insuportável. Pois então nós contávamos mesmo com
esse seu ch oro. Pois então nós q ueríamos q ue ele ch orasse; conseguíramos,
pois, privá-lo das últimas sobras de paciência, lembráramo-lo, pois, à força,
aq uele pobre coitado, da sua sina atroz ! Passei toda a noite em claro de tão
desgostosa e triste e arrependida. Diz em q ue o arrependimento alivia a
alma… Pelo contrário! Não sei como o amor-próprio se misturou também
com minh a tristez a: eu não q ueria q ue ele me tomasse por uma criança. J á
tinh a então q uinz e anos.
Comecei, a partir daq uele dia, a torturar minh a imaginação, criando
milh ares de planos para faz er Pokróvski mudar, de uma vez por todas, a sua
opinião sobre mim. Só q ue ficava eu mesma, por vez es, tímida e acanh ada:
não conseguia, nessa situação minh a, tomar decisão alguma e me
contentava apenas com meus devaneios (sabia lá Deus q uais devaneios
eram aq ueles! ). Só deix ei de faz er travessuras com Sach a, e ele deix ou de se
z angar conosco, porém isso não bastava ao meu amor-próprio.
Agora direi algumas palavras acerca do mais esq uisito, mais singular e
mais lastimável de todos os h omens q ue jamais me acontecera encontrar.
Falo dele agora, neste ex ato trech o do meu diário, porq ue não lh e dava,
antes daq uela época, q uase nenh uma atenção e, de repente, tanto me
interessei por tudo o q ue concernia a Pokróvski!
De vez em q uando, aparecia em nossa casa um velh inh o peq ueno, meio
grisalh o, sujo e malvestido, desajeitado, canh estro — numa palavra,
estranh o no mais alto grau. Daria para pensar, com a primeira olh ada, q ue
andasse como q ue envergonh ado por alguma raz ão, como q ue acanh ado
consigo mesmo. Por isso é q ue se encolh ia todo volta e meia, por isso é q ue
se req uebrava e tinh a trejeitos e tiq ues tais q ue se podia, q uase com toda a
certez a, concluir q ue não estava certo da cabeça. Vem, um dia q ualq uer, à
nossa casa e fica parado no sêni,27 perto das portas envidraçadas, porém não
ousa entrar. Quem q uer q ue passe ao lado dele — eu mesma ou Sach a, ou
um dos criados a tratá-lo, pelo q ue lh e constava, com uma bondade maior
—, logo agita os braços e pede q ue se aprox ime, faz endo diversos gestos, e
só q uando alguém inclina a cabeça para ch amá-lo (um sinal convencional
de q ue não h á estranh os em casa e q ue ele pode entrar q uando desejar), só
então o velh o abre devagarinh o a porta… Sorria alegremente, esfregava as
mãos de tanto praz er e seguia direto, nas pontas dos pés, para o q uarto de
Pokróvski. Era seu pai.
Depois eu soube, de forma circunstanciada, toda a h istória daq uele
pobre velh o. Tinh a servido outrora em algum lugar e, desprovido de
q uaisq uer aptidões, ocupara o último, o mais insignificante dos cargos em
seu serviço. Quando morreu sua primeira esposa (a mãe do estudante
Pokróvski), teve a ideia de se casar pela segunda vez e desposou uma
burguesa. Com essa nova mulh er, sua casa ficou toda de cabeça para baix o:
ninguém podia seq uer aturá-la, mas ela mandava em todos. O estudante
Pokróvski era então um menino de uns dez anos de idade. A madrasta
passou a odiá-lo. Contudo, o destino favorecia aq uele peq ueno Pokróvski.
O faz endeiro Bý kov, q ue conh ecia o funcionário Pokróvski e fora antanh o
seu benfeitor, colocou o menino sob a sua tutela e matriculou-o numa
escola. Interessava-se por ele, de resto, por ter conh ecido sua finada mãe, a
q ual tinh a sido amparada por Anna Fiódorovna, ainda q uando mocinh a, e
acabara por se casar, graças a ela, com o funcionário Pokróvski. O senh or
Bý kov, amigo do peito de Anna Fiódorovna, entregara à noiva, movido pela
magnanimidade, um dote de cinco mil rublos. Não se sabe como aq uele
dinh eiro foi gasto. Assim me contou disso tudo Anna Fiódorovna em
pessoa; q uanto ao próprio estudante Pokróvski, ele nunca gostou de falar
sobre as circunstâncias de sua família. Diz em q ue sua mãe era muito bonita,
e ach o estranh o q ue ela se tenh a casado, tão desastradamente, com um
h omem tão pífio assim… Faleceu ainda bem nova, uns q uatro anos depois
de seu casamento.
O jovem Pokróvski passou daq uela escola para um ginásio e, mais
tarde, para a universidade. O senh or Bý kov, q ue vinh a amiúde a
Petersburgo, ainda o mantinh a sob a sua tutela. Devido à sua saúde
debilitada, Pokróvski não pôde mais estudar na universidade. O senh or
Bý kov apresentou-o a Anna Fiódorovna, recomendou-o pessoalmente, e foi
desse modo q ue o jovem Pokróvski ch egou a ganh ar seu pão, com a
condição de ensinar a Sach a tudo o q ue lh e fosse necessário.
Quanto ao velh o Pokróvski, entregava-se, abalado pela crueldade de sua
esposa, ao pior dos vícios e q uase sempre estava embriagado. Sua esposa
batia nele, fê-lo morar na coz inh a, como q ue ex ilado, e se esforçou tanto
q ue ele acabou por se acostumar às surras e aos maus-tratos, e não
reclamava mais. Era um h omem não muito velh o ainda, mas q uase perdera
a raz ão por causa de seus pendores ruins. O único indício de seus
sentimentos h umanos e nobres era seu amor irrestrito pelo filh o. Diz iam
q ue o jovem Pokróvski se parecia, como duas gotas d’ água, com sua finada
mãe. Foram, por acaso, as recordações de sua antiga mulh er bondosa q ue
provocaram aq uele infindo amor no coração do velh o perdido? Ele nem
seq uer conseguia falar de q ualq uer outra coisa, senão de seu filh o, e
constantemente, duas vez es por semana, vinh a visitá-lo. Não se atrevia a vir
mais vez es, porq uanto o jovem Pokróvski detestava as visitas paternas. O
primeiro e o mais importante de todos os seus defeitos era, sem dúvida,
aq uele seu desrespeito pelo pai. De resto, o velh o também vinh a a ser, vez
por outra, a criatura mais intragável do mundo. Primeiro, era por demais
curioso; segundo, atrapalh ava a cada minuto, com suas conversas e
indagações mais confusas e inúteis, os estudos do filh o; e, finalmente, não
raro aparecia ébrio. Pouco a pouco, o filh o desacostumava aq uele velh o dos
vícios, da sua curiosidade e da tagarelice ininterrupta, e acabou faz endo q ue
o pai lh e obedecesse em tudo, como a um oráculo, e nem ousasse abrir a
boca sem a permissão dele.
O coitado do velh o não se cansava de admirar seu Pêtenka28 (assim
ch amava o filh o) nem de se entusiasmar com ele. Quando vinh a visitá-lo,
q uase sempre tinh a um ar preocupado e tímido, provavelmente por não
saber como o filh o o receberia, costumava demorar muito a ousar entrar em
seu q uarto e, se eu lá estava por mero acaso, passava, às vez es, uns vinte
minutos a indagar-me… Pois então, como está o Pêtenka? Será q ue está
com saúde? Em q ue estado de espírito, notadamente, e se não está
porventura mex endo com algo importante? O q ue está faz endo, de fato?
Está escrevendo ou então se ocupa de algumas meditações lá? Quando eu o
animava e acalmava o suficiente, o velh o se atrevia enfim a entrar e, todo
silencioso, todo prudente, abria as portas, enfiava primeiro só a cabeça e,
vendo q ue seu filh o não estava z angado, mas lh e dirigia uma mesura,
passava devagarinh o para o q uarto, tirava seu capotez inh o e seu ch apéu, o
q ual sempre estava amassado, furado, de abas rotas, e pendurava aq uilo
tudo num ganch o, faz endo tudo calado, inaudivelmente; depois se sentava,
todo cauteloso, numa cadeira q ualq uer e não despregava mais os olh os do
filh o, e acompanh ava todos os movimentos dele, q uerendo adivinh ar o
estado de espírito do seu Pêtenka. Se o filh o estava um tanto desgostoso e o
velh o reparava nisso, logo se soerguia em seu assento e ex plicava q ue “ eu,
digamos assim, só vim, Pêtenka, por um minutinh o. É q ue estive andando
longe daq ui, mas passei por perto e vim para descansar” . Depois voltava a
pegar, calado e resignado, seu capotez inh o e seu ch apeuz inh o, reabria
devagarinh o a porta e ia embora, forçando-se a sorrir para reprimir a mágoa
acumulada em sua alma e não deix ar q ue seu filh o a visse.
Mas q uando o filh o o recebia bem, vez por outra, o velh o pai se
q uedava louco de alegria. O deleite transparecia em seu semblante, em seus
gestos e movimentos. Se o filh o se punh a a falar com ele, o velh o sempre se
soerguia em sua cadeira e respondia baix inh o, servil, q uase venerador, e
procurava sempre empregar as ex pressões mais seletas, ou seja, as mais
rebuscadas. Contudo, não tinh a o dom da palavra: ficava sempre confuso,
intimidado, de sorte q ue não sabia mais onde meteria as mãos, onde se
meteria todo, e coch ich ando consigo, por muito tempo ainda, sua resposta,
como se q uisesse emendá-la. E, se conseguia responder a contento,
endireitava-se, ajeitava seu colete, sua gravata ou sua casaca, tomando
então aq ueles ares de h onra e dignidade. E se animava, algumas vez es, a
ponto de pux ar sua coragem até se levantar, caladinh o, da sua cadeira,
ch egar perto da prateleira com livros, pegar um daq ueles livrinh os e até
mesmo ler, de pronto, alguma passagem, fosse q ual fosse o tal livro. Faz ia
aq uilo tudo com ares de falsa indiferença e sangue-frio simulado, como se a
q ualq uer momento pudesse remex er desse jeito os livros do filh o, como se
não se surpreendesse com o carinh o dele. Todavia, ch eguei a ver certa vez
como aq uele coitado se assustou q uando Pokróvski lh e pediu q ue não
tocasse nos livros. Atrapalh ou-se, ficou ansioso, pôs um livro de cabeça
para baix o, depois q uis corrigir-se, virou o livro e colocou-o de corte para
fora, sorrindo, enrubescendo e ignorando como pagaria pelo seu crime.
Pouco a pouco, Pokróvski desacostumava o velh o, com seus conselh os,
daq ueles pendores ruins e, assim q ue o via, umas três vez es a fio, em estado
sóbrio, dava-lh e, por ocasião da visita seguinte, um tch etvertatch ok ,29 um
poltí nnitch ek 30 ou até mais dinh eiro, q uando da despedida. Às vez es,
comprava-lh e um par de botas, uma gravata ou um colete. Então o velh o se
ex ibia, com sua roupinh a nova, q ue nem um galo. Passava, de vez em
q uando, pelo nosso q uarto. Traz ia pãez inh os de mel, aq ueles em forma de
galos, e maçãs para mim e para Sach a, e conversava conosco, o tempo todo,
sobre Pêtenka. Pedia-nos q ue estudássemos direito, obedecendo a Pêtenka,
diz ia q ue era um filh o bom, um filh o ex emplar e, ainda por cima, um filh o
instruído. Então nos piscava, por vez es, com seu olh inh o esq uerdo, tão
divertidamente, e faz ia caretas tão engraçadas q ue não conseguíamos mais
conter o riso e gargalh ávamos, ante aq uele velh o, de todo o coração. Minh a
mãez inh a gostava muito dele. Contudo, o velh o odiava Anna Fiódorovna,
embora ficasse em sua frente “ mais q uieto do q ue a água, mais baix o do q ue
a relva” .31 Pouco depois parei de estudar com Pokróvski. Ele me ach ava,
como dantes, uma criança, uma menina travessa, igual a Sach a. Isso me
causava muita dor, já q ue eu buscava, com todas as minh as forças, redimir
essa minh a conduta antiga. No entanto, ele nem reparava em mim. Isso me
irritava cada vez mais. Quase nunca falava com Pokróvski fora das aulas,
nem seq uer conseguia falar com ele. Ficava rubra, confusa, e depois
ch orava de desgosto num cantinh o q ualq uer.
Não sei como aq uilo tudo terminaria, porém h ouve uma circunstância
estranh a q ue propiciou a nossa aprox imação. Certa noite, q uando minh a
mãez inh a estava nos aposentos de Anna Fiódorovna, entrei de mansinh o no
q uarto de Pokróvski. Sabia q ue ele não estava presente e juro q ue ignoro
por q ue tive a veneta de entrar. Até então nem olh ara nenh uma vez para
dentro daq uele q uarto, embora já fiz esse mais de um ano q ue morávamos
um ao lado do outro. Meu coração batia tão forte, naq uela ocasião, tão forte
q ue parecia prestes a saltar do meu peito para fora. Olh ei ao redor com certa
curiosidade particular. O q uarto de Pokróvski tinh a uma mobília assaz
pobre e não estava bem arrumado. Cinco compridas prateleiras com livros
estavam pregadas na parede. Havia papéis espalh ados pela mesa e pelas
cadeiras. Livros e papéis! Veio-me um pensamento estranh o, e foi, ao
mesmo tempo, uma sensação desagradável, a de desgosto, q ue se apossou
de mim. Pareceu-me q ue não lh e bastavam nem minh a amiz ade nem meu
coração amoroso. Ele era instruído, eu era tola e não sabia de nada, não lia
nada, nenh um livro mesmo… Então olh ei, com inveja, para aq uelas
prateleiras compridas, repletas de livros. Fiq uei dominada pelo desgosto,
pela angústia, por uma espécie de raiva. Quis ler seus livros e logo resolvi
lê-los todos, até o último e o mais depressa possível. Não sei: talvez
estivesse pensando q ue, ao aprender tudo q uanto ele sabia, seria mais digna
de sua amiz ade. Corri até a prateleira mais próx ima; sem refletir nem me
deter, agarrei o primeiro tomo antigo, empoeirado, q ue vi e depois, corando,
empalidecendo, tremendo de emoção e de medo, levei o livro furtado para
nosso q uarto, decidida a lê-lo de noite, sob a lâmpada de cabeceira, q uando
minh a mãez inh a tivesse adormecido.
Mas como me aborreci q uando, uma vez no q uarto, abri apressadamente
aq uele livro e vi uma obra em latim, bem velh a, meio apodrecida e toda
roída pelos vermes. Retornei sem perder tempo. J á ia colocar o livro sobre a
prateleira, mas eis q ue se ouviu um barulh o, lá no corredor, e ressoaram os
passos de alguém, cada vez mais próx imos. Fiq uei apressada e ansiosa,
porém aq uele maldito livro estivera numa fileira tão cerrada q ue, mal eu o
retirara, todos os outros livros se afastaram naturalmente e se juntaram tanto
q ue agora não sobrava mais espaço para seu viz inh o de antes. Faltavam-me
forças para enfiar o livro de volta. Contudo, empurrei os livros tão forte
q uanto pude. Um prego enferrujado, em q ue se firmava a prateleira e q ue
parecia ter esperado de propósito por aq uele momento para se q uebrar,
q uebrou-se. A prateleira despencou de ponta para baix o. Os livros caíram
ruidosamente no ch ão. A porta se abriu, e Pokróvski entrou no q uarto.
É preciso notar q ue ele detestava ver alguém remex er em suas
propriedades. Ai de q uem tocasse em seus livros! J ulgue-se, pois, do pavor
q ue senti q uando aq ueles livros peq uenos e grandes, de todos os formatos,
tamanh os e volumes possíveis, desabaram voando da prateleira e foram
saltando embaix o da mesa e das cadeiras, pelo q uarto todo. Quis fugir, mas
já era tarde demais. “ Acabou-se, pensei, acabou-se! Estou perdida, estou
morta! Ando faz endo artes, esbaldando-me q ue nem uma criança de dez
anos: sou uma menina boba! Sou bobalh ona! ! ! ” Pokróvski ficou muito
z angado. “ Pois bem, só me faltava essa! ” , gritou. “ Será q ue não tem
vergonh a de brincar desse jeito? … Será q ue se aq uieta enfim, algum dia? ” .
E veio correndo, ele mesmo, para apanh ar os livros. Então me inclinei para
ajudá-lo. “ Não precisa, não precisa! ” , gritou ele. “ Faria bem melh or se não
se metesse onde não fosse ch amada! ” . De resto, suaviz ou-se um pouco com
meu movimento submisso e continuou falando em voz mais baix a, naq uele
recente tom didático, como se aproveitasse seu recente direito de meu
mentor: “ Pois enfim, q uando é q ue se aq uietará, q uando é q ue criará juíz o?
Olh e para si mesma: não é mais uma criança, não é mais uma garotinh a: já
tem q uinz e anos! ” . Então, q uerendo provavelmente verificar se eu já não
era mesmo uma garotinh a, olh ou para mim e ficou todo rubro. Não o
entendi: postada em sua frente, não desviava, atônita, os olh os dele.
Pokróvski se soergueu e se ach egou, com um ar confuso, a mim,
embaraçou-se muito, passou a falar e, pelo q ue me pareceu, a pedir
desculpas por algo, talvez por ter percebido apenas naq uele momento q ue
moça adulta eu era. Acabei entendendo. Não lembro mais o q ue se deu
comigo então: fiq uei confusa, perdida, ainda mais rubra q ue Pokróvski;
tapei o rosto com as mãos e saí correndo do q uarto.
Não sabia o q ue me restava faz er, onde me meteria de tanta vergonh a.
Só ele me ter flagrado em seu q uarto! Não consegui encará-lo por três dias
inteiros. Enrubescia até ch orar. Os pensamentos mais esq uisitos e ridículos
giravam em minh a cabeça. Um deles, o mais absurdo, era meu desejo de ir
ao seu q uarto, de me ex plicar com ele, de lh e confessar tudo, de lh e contar
sinceramente de tudo e de lh e assegurar q ue não tinh a agido como uma
garotinh a boba, mas com uma boa intenção. Por pouco não resolvi ir
mesmo até lá, mas, graças a Deus, faltou-me coragem. Imagino o q ue
acabaria faz endo! Até h oje me sinto envergonh ada ao lembrar-me daq uilo
tudo.
Dias depois, minh a mãez inh a teve, de repente, uma recaída perigosa. J á
faz ia dois dias q ue não se levantava mais da cama e, na terceira noite, ficou
delirando com febre. Eu não tinh a dormido na noite anterior, cuidando de
minh a mãez inh a: sentada perto da sua cama, dava-lh e água e, nas h oras
marcadas, alguns remédios. Fiq uei totalmente ex austa na segunda noite.
Sentia-me sonolenta, de vez em q uando, e tudo se esverdeava diante dos
meus olh os, e tinh a vertigens e estava para cair, a q ualq uer momento, de tão
fatigada, porém, acordada por aq ueles gemidos fracos de minh a mãe,
estremecia e despertava por um instante, e logo a sonolência me dominava
de novo. Estava sofrendo. Não sei nem consigo lembrar-me daq uilo, mas
foi um sonh o terrível, um espectro apavorador, q ue visitou minh a mente
transtornada naq uele momento angustiante de luta entre o sono e a lucidez .
Acordei h orroriz ada. O q uarto estava escuro, a lâmpada de cabeceira se
apagava, os feix es de luz ora inundavam, de súbito, o q uarto todo, ora
desliz avam, q uase invisíveis, pela parede, ora sumiam completamente. Por
alguma raz ão, senti medo: um pavor se apoderou de mim; minh a
imaginação estava perturbada com aq uele sonh o terrível, e uma angústia me
premia o coração… Saltei da cadeira e gritei, sem q uerer, com alguma
sensação aflitiva e por demais penosa. Nesse momento a porta se abriu: foi
Pokróvski q uem entrou em nosso q uarto.
Apenas me lembro de ter acordado nos braços dele. Sentou-me, z eloso,
numa poltrona, serviu-me um copo d’ água, cumulou-me de perguntas. Não
lembro mais o q ue lh e respondi. “ A senh orita está doente, a senh orita
mesma está muito doente” , disse ele, segurando a minh a mão. “ Está com
febre; está acabando consigo, já q ue não cuida de sua saúde. Acalme-se,
deite-se e durma. Vou acordá-la daq ui a duas h oras; veja se fica um pouco
mais calma… Deite-se, pois, vá! ” , prosseguiu, sem deix ar q ue eu lh e
dissesse uma só palavra contrária. A fadiga me tirara as últimas forças;
meus olh os se fech avam de tanta fraq uez a. Então me recostei na poltrona,
decidindo q ue dormiria apenas por meia h orinh a, e acabei dormindo até o
amanh ecer. Pokróvski me acordou tão somente q uando ch egou a h ora de
dar um remédio à minh a mãez inh a.
No dia seguinte, q uando eu descansei um pouco, de dia, e me preparei
para ficar novamente sentada naq uelas poltronas, à cabeceira de minh a mãe,
tomando a decisão firme de não adormecer outra vez , Pokróvski veio bater,
por volta das onz e h oras, à porta de nosso q uarto. Abri a porta. “ A senh orita
está enfadada de ficar soz inh a” , disse-me ele. “ Eis aq ui um livro, pegue-o:
de q ualq uer modo, não estará tão enfadada assim” . Peguei-o; não lembro
mais q ue livro era aq uele: é pouco provável q ue tenh a dado uma olh ada
nele, apesar de passar a noite inteira em claro. Uma estranh a emoção
interior não me deix ava dormir; incapaz de ficar no mesmo lugar, levantei-
me diversas vez es da minh a poltrona e me pus a andar pelo q uarto. Certa
satisfação interior se ex pandia através de todo o meu ser. Sentia-me tão
contente com a atenção de Pokróvski. Estava orgulh osa de sua preocupação
e seu desvelo para comigo. Passei a noite toda pensando e sonh ando.
Pokróvski não veio mais, e, sabendo q ue não viria, eu imaginava, desde
logo, a noite por vir.
Naq uela noite, q uando todos já se tinh am deitado em nossa casa,
Pokróvski abriu sua porta e começou a falar comigo, postado à soleira de
seu q uarto. Não me recordo agora de nenh uma palavra q ue nós trocamos
então, só lembro q ue estava tímida e confusa, q ue me aborrecia comigo
mesma e esperava, impaciente, pelo fim daq uela conversa, embora a
desejasse com todas as minh as forças, embora tivesse sonh ado com ela
durante o dia todo e inventado, eu mesma, as minh as perguntas e
respostas… Naq uela noite, pela primeira vez , travou-se a nossa amiz ade.
Ao longo de toda a doença de minh a mãez inh a, encontrávamo-nos cada
noite e passávamos várias h oras juntos. Venci, aos poucos, a timidez , se
bem q ue ainda tivesse, depois de cada conversa nossa, algum motivo para
me aborrecer comigo mesma. De resto, vinh a percebendo, com uma alegria
secreta e um praz er orgulh oso, q ue ele se esq uecia, por minh a causa, dos
seus livros insuportáveis. Certa feita, por brincadeira, referimo-nos
fortuitamente à sua q ueda da prateleira. Houve um momento estranh o,
ficando eu, de alguma forma, demasiado sincera e franca; foram um ardor e
uma ex altação esq uisita q ue me empolgaram, e eis q ue lh e confessei tudo,
diz endo q ue q ueria estudar, saber de alguma coisa, q ue me desgostava de
ser considerada uma garotinh a, uma criança… Repito q ue meu estado de
espírito era muito estranh o: meu coração se derretia, as lágrimas me
ench iam os olh os… e não escondi nada e lh e contei de tudo, de tudo
mesmo, de minh a afeição amigável por ele, de meu desejo de amá-lo, para
q ue nossos dois corações batessem juntinh os, de minh a vontade de
confortá-lo, de acalmá-lo. Ele me fitou de certo modo estranh o, com
embaraço e pasmo, mas não me disse nem uma palavra. Senti, de repente,
tamanh a dor, tamanh a tristez a. Pareceu-me q ue ele não me entendia, q ue
talvez estivesse rindo de mim. De improviso, rompi a ch orar como uma
menina, a soluçar, sem conseguir mais conter meus prantos, como se tivesse
algum fricote. Ele pegou minh as mãos e beijou-as e apertou-as ao peito,
ex ortando-me, consolando-me; ficou muito emocionado; não me recordo do
q ue me diz ia, só q ue eu mesma ch orava e ria e tornava a ch orar, enrubescia,
não podia diz er meia palavra de tão alegre. De resto, apesar dessa emoção
minh a, notei q ue Pokróvski permanecia, ainda assim, um tanto confuso e
como q ue constrangido. Pareceu-me q ue não se cansava de admirar meu
arroubo e minh a empolgação, essa amiz ade tão repentina e ardorosa,
apaix onada. Talvez tivesse ficado, de início, apenas curioso, mas
posteriormente sua indecisão se desvaneceu, e ele passou a aceitar, com o
mesmo sentimento direto e simples q ue eu, meu afeto por ele, minh as falas
afáveis, minh a atenção, e a retribuir tudo isso com igual atenção, tão
amistoso e carinh oso como se fosse meu amigo sincero ou meu irmão de
sangue. E meu coração ficou tão q uente, tão bem! … Não escondia mais
nem omitia nada, e ele via aq uilo tudo e se q uedava cada dia mais apegado
a mim.
E juro q ue não lembro mais sobre o q ue falávamos naq uelas h oras de
nossos encontros, dolorosas e doces ao mesmo tempo, em plena noite, à luz
trêmula da lamparina e q uase junto da cama de minh a pobre mãez inh a
enferma! … Sobre tudo o q ue nos vinh a à mente e nos emanava do coração,
pedindo q ue o disséssemos, e estávamos ambos q uase feliz es… Oh , era um
tempo triste e alegre de uma vez só, juntamente, e agora sinto tristez a e
alegria ao recordar-me dele. As recordações, sejam elas feliz es, sejam
pungentes, sempre faz em sofrer; é isso, pelo menos, q ue se dá comigo,
porém até esse sofrimento é deleitoso. E, q uando o coração sente peso e
dor, q uando fica angustiado e triste, essas recordações o refrescam e
vivificam então, iguais às gotas de orvalh o q ue refrescam e vivificam numa
tardez inh a úmida, ao cabo de um dia q uente, uma pobre flor murch a,
q ueimada pela canícula diurna.
Minh a mãez inh a estava convalescendo, mas eu continuava ainda a
passar as noites sentada ao lado de sua cama. Pokróvski me dava amiúde
livros, e eu lia, primeiro para não pegar no sono, depois com mais atenção,
depois avidamente, e eis q ue se abria para mim, de repente, muita coisa
nova, até então ignota, desconh ecida. E eram novas ideias e impressões q ue
afluíam juntas, como uma torrente caudalosa, ao meu coração. E q uanto
mais me emocionava, q uanto mais me confundia e me esforçava em
assimilar essas impressões novas, tanto mais elas me agradavam, tanto mais
me comoviam, deleitosas, a alma toda. Todas juntas, de supetão, elas se
espremeram em meu coração, não o deix ando mais descansar. Certo caos
estranh o passou a perturbar todo o meu ser. Mas tal violência espiritual não
podia nem tinh a forças para me transtornar totalmente. Eu era por demais
sonh adora, e foi isso q ue me salvou.
Quando terminou a doença de minh a mãe, nossos encontros noturnos e
nossas longas conversas cessaram; ainda conseguíamos, vez por outra,
trocar algumas palavras, freq uentemente ocas e insignificantes, porém eu
gostava de atribuir àq uilo tudo um significado à parte, um valor singular,
subentendido. Minh a vida estava plena; eu vivia feliz , calma e serenamente
feliz . Assim se passaram várias semanas…
Certa feita, o velh o Pokróvski veio à nossa casa. Passou muito tempo
proseando conosco, estava incomumente alegre, animado, prolix o; ria,
gracejava à sua maneira e acabou revelando o enigma de sua ex altação e
nos declarou q ue, precisamente dali a uma semana, seria o aniversário do
Pêtenka e q ue nessa ocasião ele viria sem falta visitar o filh o, q ue vestiria
um colete novo, e q ue sua esposa prometera comprar-lh e um par de botas
novas. Numa palavra, o velh o estava plenamente feliz e proseava sobre tudo
q uanto lh e viesse à mente.
O aniversário dele! Esse aniversário não me deix ava em paz nem de dia
nem de noite. Decidi q ue lembraria Pokróvski sem falta de minh a amiz ade e
q ue o presentearia com alguma coisa. Mas q ue coisa seria essa? Afinal,
inventei de presenteá-lo com alguns livros. Sabia q ue ele q ueria ter as obras
completas de Púch kin,32 em sua última edição, e resolvi comprar essas
obras. Tinh a uns trinta rublos de dinh eiro próprio, ganh o com meus
trabalh os manuais. Guardava aq uele dinh eiro para adq uirir um vestido
novo. Logo mandei nossa coz inh eira, a velh a Matriona, informar-se de
q uanto custava todo aq uele Púch kin. Que desgraça! O preço de todos os
onz e tomos, acrescido das despesas com o encapamento, era de, pelo
menos, uns sessenta rublos. Onde arranjaria tanto dinh eiro? Fiq uei
pensando, pensando, sem saber q ue decisão tomaria. Não q ueria pedir
dinh eiro à minh a mãez inh a. Decerto ela não deix aria de me ajudar, mas
então a casa toda ficaria sabendo de nosso presente, e, além do mais, o
presente como tal se transformaria numa recompensa, num pagamento a
Pokróvski por um ano inteiro de seu trabalh o. E eu q ueria presenteá-lo
soz inh a, sem ninguém saber disso. Quanto àq uele seu trabalh o para comigo,
q ueria ser, para todo o sempre, sua devedora sem recompensa alguma, salvo
se lh e pagasse com minh a amiz ade. Inventei, afinal, um meio de sair desse
impasse.
Sabia q ue os alfarrabistas do Pátio Gostínny 33 podiam, às vez es, vender
um livro pela metade do preço, contanto q ue se barganh asse com eles,
sendo o tal livro não raro pouco usado ou q uase novinh o em folh a. Decidi
q ue iria sem falta ao Pátio Gostínny . E foi isso q ue ocorreu: tivemos, logo
no dia seguinte, uma necessidade, tanto nós mesmas q uanto Anna
Fiódorovna. Minh a mãez inh a estava indisposta, Anna Fiódorovna estava,
bem oportunamente, com preguiça, de modo q ue todas as incumbências
couberam a mim, e fui lá com Matriona.
Por sorte, não demorei muito a encontrar as obras de Púch kin, e com
capas muito bonitas. Comecei a barganh ar. Primeiro me pediram um preço
mais alto q ue o das livrarias, mas depois (de resto, não sem esforço, indo eu
embora diversas vez es) levei o comerciante a reduz ir o preço e limitar suas
ex igências a apenas dez rublos de prata. Como me animei com aq uela
barganh a! … A coitada da Matriona não entendia o q ue se dava comigo nem
por q ue tivera a veneta de comprar tantos livros. Mas, q ue h orror! Todo o
meu cabedal era de trinta rublos em papel-moeda, mas o comerciante não
consentia, de jeito nenh um, em dar um desconto maior. Passei enfim a
implorar-lh e, fiq uei pedindo, pedindo, e acabei conseguindo. Ele deu um
desconto, mas apenas de dois rublos e meio, e jurou por Deus q ue só faz ia
uma concessão dessas por minh a causa, por ser uma mocinh a tão boa assim,
e q ue não cederia, nem a pau, a q ualq uer outra pessoa. Faltavam-me, pois,
dois rublos e meio! Eu estava prestes a ch orar de desgosto. Contudo, a
circunstância mais inesperada ajudou-me naq uele meu desastre.
Perto de mim, ao lado da outra mesa com livros, avistei o velh o
Pokróvski. Quatro ou cinco alfarrabistas se espremiam à sua volta, tirando-
o completamente do seu compasso e importunando-o sem parar. Cada q ual
lh e oferecia sua própria mercadoria, e tantas coisas lh e eram oferecidas, e
tantas coisas ele desejava comprar! O pobre velh o estava no meio deles,
como se fosse um palerma q ualq uer, e nem sabia o q ue escolh er do q ue lh e
propunh am. Aprox imei-me dele e perguntei o q ue estava faz endo ali. O
velh o se alegrou muito com minh a presença: gostava de mim
apaix onadamente, talvez não menos do q ue de seu Pêtenka. “ Estou
comprando livrinh os, Varvara Alex éievna” , respondeu-me, “ comprando
livrinh os para Pêtenka. Logo será o aniversário dele, e ele gosta de livros;
pois então, compro alguns para ele… ” . O velh o sempre se ex pressava de
modo engraçado e agora estava, ainda por cima, numa confusão
h orribilíssima. Fosse q ual fosse o preço pelo q ual perguntava, era de um
rublo de prata, de dois ou de três rublos; não perguntava mais pelos livros
grandes, mas apenas os mirava com inveja, remex ia em suas folh inh as com
os dedos, girava-os nas mãos e colocava-os de volta no mesmo lugar. “ Não,
não, este é caro demais” , diz ia a meia-voz , “ mas, q uem sabe, alguma coisa
daq ui” , e se punh a a revirar cadernos fininh os, cancioneiros e almanaq ues,
os q uais eram todos muito baratos. “ Mas por q ue o senh or compraria tudo
isso? ” , indaguei-lh e. “ São umas bobagens aí” . — “ Ah , não” , respondeu ele,
“ não, veja só q ue bons livrinh os estão aq ui, uns livrinh os muito, mas muito
bons! ” . E arrastou essas últimas palavras como q ue cantando, tão
lamentosamente q ue o ach ei prestes a ch orar de desgosto, porq ue os livros
bons eram caros, e pareceu-me q ue uma lagrimaz inh a estava para cair das
suas faces pálidas sobre seu nariz vermelh o. Então perguntei q uanto
dinh eiro ele tinh a. “ Aq ui está… ” : O coitadinh o tirou todo o seu dinh eiro
envolto num pedacinh o de papel de jornal, todo sebento. “ Aq ui estão um
poltí nnitch ek , duas g rivnas,34 uns vinte copeq ues de cobre” . Logo o arrastei
até meu alfarrabista. “ Eis onz e livros inteiros q ue custam apenas trinta e
dois rublos e meio; tenh o cá trinta rublos; junte então dois rublos e meio, e
a gente compra todos esses livros, e será um presente de nós dois.” O velh o
ficou louco de alegria, esparramou todo o seu dinh eiro, e o alfarrabista veio
carregá-lo com toda a nossa biblioteca comum. Aq uele meu velh inh o enfiou
os livros em todos os bolsos, segurou-os com ambas as mãos, colocou-os
debaix o dos braços e levou tudo para sua casa, prometendo q ue traria todos
os livros no dia seguinte, às escondidas, para meu q uarto.
No dia seguinte, o velh o veio visitar seu filh o, ficou sentado, como de
prax e, por uma h orinh a no q uarto dele, depois entrou em nosso q uarto e se
sentou perto de mim com um ar muito cômico de tão misterioso. Começou
por anunciar com um sorriso, esfregando as mãos como q uem tivesse o
orgulh oso praz er de guardar algum segredo, q ue todos os livros h aviam sido
traz idos de forma absolutamente discreta e deix ados na coz inh a, num
cantinh o ali, sob a vigilância de Matriona. Depois a conversa se referiu
naturalmente à festa esperada; em seguida, o velh o foi discorrendo sobre
como entregaríamos nosso presente, e, q uanto mais se aprofundava nesse
assunto, q uanto mais falava a respeito dele, tanto mais óbvio ficava para
mim q ue algo lh e pesava no íntimo, algo q ue não podia nem ousava, até
mesmo temia, diz er. Então aguardei, calada. Sua alegria oculta, seu praz er
oculto q ue eu lia antes tão facilmente em seus estranh os trejeitos, suas
caretas e piscadelas de seu olh o esq uerdo, não estavam mais lá. A cada
minuto, ele se tornava mais inq uieto e angustiado; por fim, não aguentou.
— Escute… — começou falando a meia-voz , com timidez — escute,
Varvara Alex éievna… Sabe de uma coisa, Varvara Alex éievna? … — O
velh o estava ex tremamente confuso. — Está vendo: q uando for o
aniversário dele, a senh orita levará dez livrinh os como um presente seu, ou
seja, o da senh orita, da sua parte; q uanto a mim, só levarei o décimo
primeiro, e também será um presente meu, ou seja, da minh a parte própria.
Pois então, está vendo: a senh orita terá um presente seu, e eu também terei
um presente meu, e ambos teremos algo a oferecer… — Então o velh o se
embaraçou e ficou calado. Olh ei para ele: tímido, esperava pela minh a
sentença. “ Mas por q ue não q uer, Zakh ar Petróvitch , q ue os ofereçamos
juntos? ” — “ Mas assim, Varvara Alex éievna, assim, pois… é q ue eu
mesmo, assim… ” . Numa palavra, o velh o se confundiu, enrubesceu,
enredou-se em sua frase e não pôde mais prosseguir.
— Está vendo — ex plicou-se, por fim —: eu, Varvara Alex éievna, estou
brincando por vez es… ou seja, q uero anunciar-lh e q ue q uase sempre estou
brincando, o tempo todo, e q ue sigo o q ue não presta… ou seja, sabe, faz
tanto frio, às vez es, lá fora, e também h á tantas contrariedades, às vez es, ou
então a gente fica triste, de vez em q uando, ou então acontece alguma coisa
ruim, e eu não me contenh o por vez es, e fico brincando e bebo, às vez es,
demais da conta. E isso desagrada muito a Petruch a. Está vendo, Varvara
Alex éievna: ele fica z angado e me censura e prega diversas morais para
mim. Pois agora eu gostaria de lh e provar, com este meu presente, q ue me
corrijo aos poucos e já começo a comportar-me bem. Que fiq uei juntando
dinh eiro para comprar um livrinh o, juntando por muito tempo, porq ue não
tenh o dinh eiro q uase nunca, a não ser q ue Petruch a me dê uns trocados de
vez em q uando. E ele sabe disso. Assim, pois, verá q ue bom uso eu tenh o
feito do meu dinh eiro e saberá q ue faço aq uilo tudo somente por ele.
Senti muita pena do velh o. Pensei rápido. Ele me encarava com
inq uietude. “ Mas escute, Zakh ar Petróvitch ” , disse-lh e eu, “ ofereça-os
todos a ele! ” — “ Como assim, todos? Quer diz er, todos os livrinh os? … ” —
“ Pois é, todos os livrinh os.” — “ Da minh a parte? ” — “ Da sua parte, sim.”
— “ Soz inh o? Quer diz er, em meu nome? ” — “ Pois é, em seu nome… ” .
Ex pliq uei tudo bem claro, em aparência, porém o velh o demorou muito a
compreender.
“ Pois bem” , diz ia ele, pensativo, “ pois sim, será muito bom! Seria bom
mesmo, mas a senh orita, Varvara Alex éievna, h ein? ” — “ E eu não darei
nenh um presente.” — “ Como? ” , ex clamou o velh o, q uase assustado. “ Pois
então a senh orita não oferecerá nada a Pêtenka, não q uer mesmo oferecer
nada a ele? ” . Assustou-se; parecia q ue naq uele momento estava pronto a
desistir da sua proposta para q ue eu também pudesse dar algum presente ao
seu filh o. Como aq uele velh o era bondoso! Assegurei-lh e q ue ficaria feliz
de oferecer alguma coisa, mas apenas não q ueria tirar o praz er dele próprio.
“ Se seu filh o ficar contente” , acrescentei, “ e o senh or também, eu cá ficarei
contente porq ue me sentirei em segredo, no meu coração, como se lh e
tivesse dado mesmo algum presente” . E o velh o se acalmou totalmente com
isso. Passou mais duas h oras em nosso q uarto, só q ue não conseguiu,
durante esse tempo todo, manter-se sentado: ficava em pé, agitava-se, faz ia
barulh o, brincava com Sach a, beijava-me à sorrelfa, beliscava minh a mão e
faz ia, às escondidas, caretas para Anna Fiódorovna. E ela acabou por
ex pulsá-lo da casa. Numa palavra, o velh o se empolgou tanto, de tão
arroubado, como nunca lh e tinh a ocorrido, talvez , empolgar-se em toda a
sua vida.
No dia solene, apareceu às onz e h oras em ponto, logo depois da missa
matinal, usando uma casaca satisfatoriamente remendada e, realmente, um
colete novo e um par de botas novas. Segurava uma pilh a de livros com
cada mão. Estávamos todos sentados então na sala de Anna Fiódorovna e
tomávamos café (era domingo). Parece q ue o velh o começou diz endo q ue
Púch kin fora um versificador assaz merecedor; a seguir, confuso e
atrapalh ado, passou de repente a diz er q ue a gente tinh a de se comportar
bem e q ue, se alguém não se comportava bem, estava, portanto, brincando,
q ue os pendores ruins levavam o h omem à perdição e à ex tinção; arrolou
mesmo vários ex emplos nefastos de intemperança e concluiu declarando
q ue se corrigira por completo, já h avia algum tempo, e se comportava agora
ex emplarmente bem. Que já percebia, desde antes, a justiça daq ueles
sermões de seu filh o, q ue sentia aq uilo tudo h avia tempos, q ue o guardava
no coração, mas agora já se continh a de fato. E, como prova, oferecia-lh e os
livros comprados com o dinh eiro amealh ado por muito tempo.
Eu não pude deix ar de ch orar nem de rir, enq uanto ouvia o pobre velh o:
sabia, pois, mentir q uando era preciso! Os livros foram levados para o
q uarto de Pokróvski e colocados numa das prateleiras. Pokróvski adivinh ou
logo a verdade. O velh o foi convidado para o almoço. Estávamos todos tão
feliz es naq uele dia! Após o almoço brincamos de prendas, jogamos baralh o;
Sach a se esbaldou, eu mesma não fiq uei para trás. Pokróvski me tratava
com gentilez a e procurava, o tempo todo, algum ensejo de conversar
comigo a sós, mas eu não lh e dava trela. Foi o melh or dia em q uatro anos
inteiros de minh a vida.
E agora começam as recordações tristes, penosas; começa a h istória dos
meus dias negros. Talvez seja por isso q ue minh a pena se torna mais
vagarosa e como q ue se recusa a escrever. Talvez seja por isso q ue fiq uei
rememorando, com tanto enlevo e tanto amor, todos os mínimos detalh es da
minh a vidinh a naq ueles meus dias feliz es. Eles foram tão breves, aq ueles
dias; foi uma desgraça, um pesaroso negrume, q ue os substituiu, e só Deus
sabe q uando isso vai acabar.
Minh as desventuras começaram com a doença e a morte de Pokróvski.
Ele adoeceu dois meses depois desses últimos eventos q ue acabo de
descrever. Não se cansava de buscar, naq ueles dois meses, por meios de
subsistência, já q ue ainda não tinh a até então nenh uma situação definida.
Igual a todos os tísicos, não desistia, até o último momento, da sua
esperança de ter uma vida bem longa. Estava para conseguir um cargo de
professor em algum lugar, porém sentia aversão àq uele ofício. E não podia
servir, devido à sua saúde fraca, numa repartição pública. Teria, ademais, de
esperar muito tempo até receber seu primeiro salário. Em resumo,
Pokróvski só via malogros por toda parte; seu caráter se estragava aos
poucos. Sua saúde ia de mal a pior, mas ele não reparava nisso. Ch egou o
outono. Todos os dias, ele saía, com seu leve capotez inh o, para ir cuidar dos
negócios, pedindo e implorando q ue lh e dessem um cargo q ualq uer, e isso o
atormentava no íntimo; molh ava os pés, ench arcava-se sob a ch uva e
acabou por cair de cama, e não se levantou nunca mais… Morreu em pleno
outono, em fins de outubro.
Eu mesma q uase não saía do seu q uarto ao longo da sua doença,
cuidando dele e atendendo-o. Passava amiúde noites inteiras em claro.
Raramente ele estava consciente; ficava volta e meia delirando, falava sabia
lá Deus de q uê: do seu cargo, dos seus livros, de mim, de seu pai… era bem
então q ue eu me inteirava de muitas circunstâncias antes ignoradas, das
q uais não faz ia seq uer a menor ideia. No começo de sua doença todos os
nossos me fitavam de certo modo estranh o; Anna Fiódorovna andava
abanando a cabeça. Contudo, olh ei bem nos olh os de todos, e eles deix aram
de me condenar pela minh a compaix ão por Pokróvski — pelo menos,
minh a mãe deix ou, sim.
Pokróvski me reconh ecia por vez es, mas era uma coisa rara. Permanecia
q uase sempre inconsciente. Passava, às vez es, noites inteiras falando com
alguém por muito, muito tempo, com palavras confusas e obscuras, e sua
voz rouca repercutia surdamente pelo seu q uarto apertado como um caix ão;
nesses momentos eu ficava com medo. Foi, sobretudo, na última noite q ue
ele se q uedou como q ue frenético; tomado de angústia, sofria
h orrivelmente; seus gemidos dilaceravam minh a alma. Todos estavam como
q ue assustados em nossa casa. Anna Fiódorovna rez ava sem parar, pedindo
q ue Deus o levasse logo. Ch amaram um médico. Ele disse q ue o doente
morreria sem falta ao amanh ecer.
O velh o Pokróvski passou a noite toda no corredor, junto à porta do
q uarto de seu filh o; puseram lá uma esteiraz inh a q ualq uer para ele se deitar.
Entrava no q uarto a cada minuto; até olh ar para ele era medonh o. Estava tão
arrasado pela sua desgraça q ue parecia completamente insensível e
irracional. Sua cabeça tremia de medo. Ele mesmo tremia, com o corpo
todo, e coch ich ava algo consigo, o tempo todo, raciocinando com seus
botões. Parecia-me q ue acabaria enlouq uecendo de tanto pesar.
Pouco antes do amanh ecer, cansado de sua dor espiritual, o velh o
adormeceu, q ue nem morto, naq uela esteiraz inh a. Por volta das oito h oras,
seu filh o estava morrendo; então acordei o pai. Pokróvski estava em plena
consciência e se despediu de nós todos. Coisa estranh a! Eu não conseguia
ch orar, embora minh a alma se espedaçasse toda. Mas o q ue mais me
consternou e torturou foram os derradeiros instantes dele. Pedia algo por
muito, muito tempo, com sua língua entorpecida, mas eu não podia
entender nenh uma palavra sua. Meu coração se partia de tanta dor! Por uma
h ora inteira, ele ficou inq uieto, angustiado com algo, esforçando-se para
faz er algum sinal com suas mãos esfriadas e depois tornando a pedir
lamentosamente, com sua voz rouca e surda, porém suas palavras não
passavam de alguns sons desconex os, e eu não entendia outra vez coisa
nenh uma. Levava todos os nossos até sua cama, dava-lh e de beber, mas ele
não faz ia senão balançar tristemente a cabeça. Acabei entendendo o q ue ele
q ueria. Pedia q ue subíssemos a cortina de sua janela e abríssemos os
contraventos. Decerto q ueria ver, pela última vez , o dia, o mundo de Deus,
o sol. Pux ei a cortina, mas o dia q ue começava era sombrio e tristonh o
como a pobre vida do moribundo em seu ocaso. O sol não brilh ava. As
nuvens toldavam o céu com um véu nevoento, e ele estava tão ch uvoso,
lúgubre e triste. Uma ch uva fina tamborilava nos vidros e banh ava-os com
jatos de água fria e suja; o dia estava baço, escuro. Os raios de uma luz
pálida mal se insinuavam no q uarto e competiam a custo com a luz trêmula
da lamparina acesa perante o ícone. O moribundo olh ou para mim com
tanta, tanta tristez a, e balançou a cabeça. Morreu um minuto depois.
Quem encomendou o enterro foi Anna Fiódorovna em pessoa.
Compraram um caix ão muito, muito simples, e contrataram um carro de
aluguel. Para cobrir as despesas, Anna Fiódorovna apreendeu todos os
livros e todos os pertences do finado. O velh o discutiu com ela, fez muito
barulh o, tomou-lh e tantos livros q uantos conseguiu tomar, atulh ou todos os
seus bolsos com eles, colocou alguns em seu ch apéu e onde mais pôde,
andou por três dias com eles e não os largou nem mesmo q uando teve de ir
à igreja. Passou todos aq ueles dias como q ue inconsciente ou aparvalh ado,
az afamando-se o tempo todo, com um estranh o desvelo, ao lado do caix ão,
ora ajeitando a coroaz inh a sobre o finado, ora acendendo e limpando as
velas. Percebia-se q ue seus pensamentos não se detinh am mesmo em nada.
Nem minh a mãez inh a nem Anna Fiódorovna foram presenciar o ofício dos
mortos na igreja. Minh a mãez inh a estava doente, e Anna Fiódorovna já se
dispunh a a ir lá, mas acabou brigando com o velh o Pokróvski e ficou em
casa. Fomos apenas nós dois, o velh o e eu. Foi certo medo, como q ue uma
antevisão do futuro, q ue se apossou de mim durante o ofício. Mal me
aguentei de pé, lá na igreja. Fech aram, afinal, o caix ão, pregaram-lh e a
tampa, colocaram-no sobre a carroça e levaram-no embora. Só o
acompanh ei até o fim da rua. Então o coch eiro fez o cavalo trotar. O velh o
corria atrás dele e ch orava em voz alta: seu ch oro vibrava e se interrompia
com a corrida. O coitado perdera seu ch apéu e não parara a fim de apanh á-
lo. A ch uva molh ava sua cabeça; o vento ficava mais forte; a escarch a lh e
cortava e picava o rosto. Parecia q ue o velh o nem se apercebia da
intempérie: corria, ch orando, ora de um lado da carroça, ora do outro. As
abas de sua vetusta sobrecasaca agitavam-se, tais e q uais duas asas, com o
vento. Os livros assomavam de todos os bolsos dele; um livro enorme
estava em suas mãos, e ele o segurava bem forte. Os transeuntes tiravam as
ch apk as35 e se benz iam. Havia q uem parasse e olh asse com pasmo para o
coitado do velh o. Os livros caíam, a cada minuto, dos seus bolsos na lama.
Então o detinh am e lh e mostravam o livro perdido; ele o apanh ava e voltava
a correr atrás do caix ão. Foi uma velh a mendiga q ue o seguiu, a partir da
esq uina daq uela rua, indo também acompanh ar o caix ão. Enfim a carroça
dobrou a esq uina e sumiu ante meus olh os. Fui para casa. Atirei-me,
terrivelmente aflita, sobre o peito de minh a mãez inh a. Estreitava-a nos
meus braços, com muita, muita força, beijava-a e ch orava a soluçar,
apertando-me timidamente a ela e como q ue procurando reter, naq uele
amplex o meu, a última amiga q ue tinh a, não deix ar q ue a morte a levasse…
No entanto, a morte já se postara sobre minh a pobre mãez inh a!

1 1 de junh o.
Como lh e fico grata, Makar Alex éievitch , pelo nosso passeio de ontem
até as ilh as! Como elas são boas, q ue ar fresco têm, q uanto verdor h á por lá!
Faz tanto tempo q ue não vejo mais esse verdor: parecia-me o tempo todo,
q uando estava doente, q ue h averia de morrer e morreria sem falta; julgue,
pois, o senh or mesmo do q ue eu devia ter percebido ontem, dos sentimentos
q ue devia ter tido! Não se z angue comigo porq ue estava ontem tão triste:
sentia-me muito bem, tão aliviada, só q ue sempre estou triste, por alguma
raz ão, em meus melh ores momentos. E, se fiq uei ch orando, foi uma
bobagem; nem eu mesma sei por q ue estou ch orando volta e meia. Minh as
sensações são dolorosas, irritadiças; minh as impressões são mórbidas.
Aq uele céu pálido, desanuviado, aq uele pôr do sol, aq uele silêncio do
anoitecer… não sei se foi tudo isso, mas estava disposta ontem, de alguma
forma, a receber todas as impressões penosa e dolorosamente, tanto assim
q ue meu coração transbordava e minh a alma pedia ch oro. Mas por q ue é
q ue escrevo tudo isso para o senh or? É difícil o coração lidar com isso; é
mais difícil ainda contar sobre isso depois. De resto, pode ser q ue o senh or
me entenda. Tristez a e riso! Mas, minh a palavra de h onra, como o senh or é
bondoso, Makar Alex éievitch ! Ontem olh ava nos meus olh os assim, para
ler neles o q ue eu estava sentindo, e admirava aq uele meu êx tase. Quer
fosse uma moitinh a, q uer uma alameda ou uma faix a d’ água, e o senh or já
estava lá: ficava diante de mim, aprumando-se, e não parava de olh ar para
mim, olh o no olh o, como se me mostrasse seus próprios domínios. Isso
prova q ue tem um bom coração, Makar Alex éievitch . É bem por isso q ue
gosto do senh or. Adeus, pois. Hoje estou doente de novo: molh ei ontem os
pés, portanto me resfriei. Fedora também está com algum ach aq ue, de sorte
q ue nós duas estamos agora adoentadas. Não se esq ueça de mim; venh a
visitar-me mais vez es.
Sua
V .D .

1 2 de junh o.
Minh a q ueridinh a Varvara Alex éievna!
Pois eu cá pensava, mãez inh a, q ue descreveria para mim tudo o q ue
h ouvera na véspera em verdadeiros versos, mas você só preench eu uma
folh inh a simples ao todo. Digo isto porq ue, mesmo escrevendo pouco nessa
folh inh a sua, você descreveu tudo de uma maneira ex traordinariamente boa
e doce. A naturez a, diversos q uadros campestres e todo o resto, sobre os
sentimentos — numa palavra, descreveu muito bem tudo isso. E, q uanto a
mim, não tenh o talento algum. Nem q ue sujasse dez folh as, não conseguiria
nada mesmo, nada descreveria. Aliás, já tentei. Escreve-me aí, minh a
q uerida, q ue sou um h omem bondoso e dócil, incapaz de prejudicar nenh um
próx imo meu e capaz de compreender a graça divina q ue se revela na
naturez a, além de me dirigir, por fim, vários elogios. É tudo verdade,
mãez inh a, é tudo uma verdade verdadeira: sou realmente tal como você está
diz endo e sei disso, porém, q uando se lê uma coisa igual à q ue você
escreve, o coração fica enternecido sem a gente q uerer, e depois vêm
ch egando várias reflex ões aflitivas. Escute-me, pois, mãez inh a, q ue lh e
contarei algo, minh a q uerida.
Começarei diz endo q ue tinh a apenas dez essete aninh os q uando
ingressei no serviço público, e já, já esta minh a carreira vai completar trinta
anos. Nada a comentar, pois: gastei bastantes uniformes em serviço; fiq uei
adulto, criei juíz o, vi muita gente; vivi… posso diz er q ue vivi um bocado
neste mundo, tanto assim q ue até q uiseram, certa feita, condecorar-me com
uma cruz . Talvez você nem acredite em mim, mas juro q ue não estou
mentindo. Pois bem, mãez inh a, h ouve pessoas más em meu caminh o! E
digo-lh e, minh a q uerida, q ue, sendo eu, talvez , um h omem bronco e tolo,
meu coração é o mesmo de q ualq uer um. Será q ue sabe, Várenka, o q ue me
fez aq uela gente má? Pois é vergonh oso diz er o q ue fez ; pergunte-me antes
por q ue fez aq uilo! Porq ue sou docilz inh o assim, porq ue sou mansinh o,
porq ue sou bonz inh o! Eles lá não gostaram de mim, então se puseram
contra mim. De início foi “ digamos, Makar Alex éievitch , q ue o senh or é
assim e assado” ; depois ch egou a ser “ nem perguntem, digamos, àq uele
Makar Alex éievitch ” . E, por conclusão, “ mas é claro q ue é Makar
Alex éievitch ! ” . Está vendo, mãez inh a, como ficou o negócio: recaiu tudo
sobre Makar Alex éievitch ; eles lá souberam apenas tornar esse tal de Makar
Alex éievitch proverbial em toda a repartição nossa. E não bastou ainda
terem feito de mim um provérbio e q uase um palavrão: passaram a mex er
com minh as botas, com meu uniforme, com meus cabelos, com minh a cara
— nada ao seu gosto, tudo a ser refeito! E tudo isso se repete, todo santo
dia, desde os tempos imemoráveis. J á me acostumei, porq ue me acostumo a
tudo, porq ue sou um h omem manso, porq ue sou um h omem peq ueno, mas,
no fim das contas, por q ue h á tudo isso? Que mal fiz a q uem? Será q ue
privei alguém da sua titulação? Será q ue denegri alguém perante os
superiores? Ex torq ui uma gratificação ex tra? Aprontei uma cabala q ualq uer,
afinal? Mas você pecaria, mãez inh a, só pensando naq uilo! Mas por q ue é
q ue eu precisaria daq uilo tudo? Veja apenas, minh a q uerida, se tenh o
capacidades suficientes para ser astuto e ambicioso! Então, Deus me
perdoe, por q ue estou sofrendo essas maz elas todas? É q ue você me ach a
um h omem decente e você é incomparavelmente melh or do q ue eles todos,
mãez inh a. Como seria, pois, a maior virtude civil? Deliberou agorinh a
Yevstáfi Ivânovitch , numa conversa particular, q ue a virtude civil mais
importante era sabermos ganh ar uns trocados. Disse aq uilo por brincadeira
(sei q ue por brincadeira), mas a moral da h istória é q ue a gente não tem de
onerar ninguém com sua pessoa, e eu cá não onero ninguém de fato! Tenh o
meu próprio pedaço de pão; é um pedaço simples, q ue seja dita a verdade, e
até mesmo duro às vez es, mas ele ex iste, ganh o com meu trabalh o e
consumido de maneira legítima e irreproch ável. Mas faz er o q uê? Eu
mesmo sei q ue não faço lá muita coisa, q uando copio a papelada, mas,
ainda assim, estou orgulh oso disso: estou trabalh ando, derramando este meu
suor. E o q ue é q ue h á, finalmente, em copiar a papelada? Seria um pecado
copiá-la, é isso? “ Ele, digamos assim, está copiando! ” . “ Aq uele servidor é
uma rataz ana copista! ” . E o q ue isso tem de desonesto, h ein? Minh a letra é
tão boa, nítida, agradável de ver, e Sua Ex celência fica contente, e copio os
papéis mais importantes para ele. Pois bem: não tenh o estilo e sei, eu
mesmo, q ue não o tenh o, maldito, e foi por isso q ue não me dei bem em
serviço e até mesmo para você, minh a q uerida, é q ue escrevo agora mui
simplesmente, sem adornos e como meu pensamento se faz em meu
coração… Sei disso tudo, porém, se todos se tornassem escritores, q uem é
q ue estaria copiando a papelada? Vou faz er-lh e uma pergunta, mãez inh a, e
peço q ue me responda. Estou consciente agora de q ue sou necessário,
indispensável, e q ue não adianta embromar a gente com aq uelas bobagens
ali. Que seja uma rataz ana, q uem sabe, se é q ue me pareço com uma! Só
q ue a tal rataz ana é necessária, só q ue a tal rataz ana tem sua serventia, só
q ue o pessoal se segura à tal rataz ana, só q ue a tal rataz ana ganh a suas
comendas — eis como é a tal rataz ana! Aliás, ch ega de falarmos nessa
matéria, minh a q uerida; nem pretendia, aliás, falar nisso, mas assim, fiq uei
um tanto empolgado. É agradável, de vez em q uando, faz ermos justiça a
nós mesmos. Adeus, minh a q uerida, minh a q ueridinh a, minh a boaz inh a
consoladora! Vou visitá-la, sem falta vou visitá-la em sua casa, minh a
yássotch k a! 36 Por ora, não fiq ue triste. Levarei um livrinh o para você.
Adeus, pois, Várenka!
Seu amigo do peito
M ak ar D êvuch k in.

2 0 de junh o.
Prez ado senh or Makar Alex éievitch !
Escrevo-lh e rápido, q ue estou apressada para terminar meu trabalh o a
tempo. Veja bem q ue negócio é este: dá para faz er uma compra boa. Fedora
diz q ue um conh ecido dela está vendendo um uniforme novinh o em folh a,
umas roupas de baix o, um colete e um casq uete, e q ue é tudo muito barato.
Por q ue o senh or não o compraria? É q ue não está tão pobre agora, está com
dinh eiro: o senh or mesmo diz q ue está. Deix e de ser sovina, por favor, q ue
tudo isso é necessário. Olh e para si mesmo, veja q uais roupas velh as está
usando. Está tudo remendado, uma vergonh a! E não tem aí roupas novas:
sei disso, embora me assegure q ue tem, sim. Só Deus sabe como o senh or
se desfez das suas roupas. Então me dê ouvidos a mim: compre-as, por
favor. Faça isso por mim: se gostar de mim, compre aq uelas roupas.
O senh or mandou para mim umas camisolas de presente, mas escute,
Makar Alex éievitch : h á de se arruinar desse jeito! Não é brincadeira gastar
tanto assim comigo, é um h orror de dinh eiro! Ah , mas como o senh or gosta
de esbanjar! Eu não preciso de nada: aq uilo tudo era totalmente
dispensável. Bem sei e tenh o certez a de q ue o senh or me ama; juro q ue não
tem de me lembrar disso com seus presentes, q ue me é penoso aceitá-los,
pois sei q uanto eles lh e custam. Ch ega, de uma vez por todas, está ouvindo?
Peço-lh e, imploro-lh e. O senh or me pede, Makar Alex éievitch , q ue lh e
envie a continuação do meu diário, deseja q ue eu o termine. Não sei como o
escrevi nem o q ue está escrito lá! Só q ue não teria forças para falar agora do
meu passado; não q uero nem pensar nele e sinto medo dessas recordações.
E o mais difícil seria falar de minh a pobre mãez inh a, q ue abandonou a
coitada da sua filh a para aq ueles monstros a devorarem. Meu coração se
banh a em sangue com uma só lembrança daq uilo. Ainda está tudo tão
recente; ainda não tive tempo para me recobrar nem, muito menos, para me
acalmar, embora aq uilo tudo tivesse acontecido h á mais de um ano. É q ue o
senh or sabe de tudo.
J á lh e falei das ideias h odiernas de Anna Fiódorovna: ela vem acusando
a mim mesma de ingratidão e rejeita q ualq uer acusação de ter sido cúmplice
do senh or Bý kov! Convida-me para sua casa, diz q ue estou vivendo de
esmola, q ue enveredei por um caminh o ruim. Diz q ue, se eu voltar para sua
casa, vai encarregar-se de resolver todo o problema com o senh or Bý kov e
de obrigá-lo a redimir toda a culpa para comigo. Diz q ue o senh or Bý kov
q uer prover-me de dote. Que Deus os julgue a ambos! Estou bem aq ui,
perto do senh or, com minh a bondosa Fedora q ue me recorda, com aq uele
seu afeto por mim, a minh a babá finada. E, posto q ue o senh or seja um
contraparente meu, defende-me com seu nome. Quanto a eles, não os
conh eço; vou esq uecê-los, se conseguir. O q ue é q ue mais q uerem de mim?
Fedora diz q ue é tudo lorota, q ue eles me deix arão finalmente em paz . Deus
o q ueira!
V .D .

2 1 de junh o.
Minh a q ueridinh a, minh a mãez inh a!
Quero escrever, sim, mas não sei nem por onde começar. Como isso é
estranh o, mãez inh a, a gente viver agora dessa maneira. Digo isto porq ue
ainda nunca passei meus dias com tamanh a alegria. Como se nosso Senh or
me abençoasse com uma casinh a e uma família! Minh a criança, minh a
boaz inh a! O q ue é q ue está diz endo aí sobre aq uelas q uatro camisolinh as
q ue lh e enviei? É q ue você precisava delas, foi Fedora q uem me contou.
Mas para mim, mãez inh a, é uma felicidade especial agradá-la, é meu
praz er; deix e-me faz er isso, mãez inh a, não me importune nem me
contradiga. Nada disso se fez nunca comigo, mãez inh a. Agora vivo no
grande mundo. Primeiro, vivo em dobro, porq ue você também vive bem
perto de mim e para meu reconforto; segundo, um dos inq uilinos, meu
viz inh o Rataz iáiev (aq uele mesmo servidor q ue faz saraus de escritores),
acaba de me convidar a tomar ch á com ele. Haverá um sarau h oje, vamos
ter uma leitura literária. Eis como estamos agora, mãez inh a, eis como
estamos! Adeus, pois. É q ue escrevi tudo isso assim, sem nenh um objetivo
patente, tão só para informá-la sobre o meu bem-estar. Você mandou, meu
benz inh o, Th erez a diz er q ue estava aí precisando de sedaz inh a colorida para
seus bordados; vou comprá-la, mãez inh a, vou comprar essa sedaz inh a
também. Amanh ã mesmo terei o deleite de agradá-la completamente. J á sei
onde a comprarei. E agora me q uedo seu sincero amigo
M ak ar D êvuch k in.

2 2 de junh o.
Prez ada senh orita Varvara Alex éievna!
Aviso-a, minh a q uerida, de q ue ocorreu em nosso apartamento um
acidente muito lamentável, deveras e realmente digno de ser lamentado!
Hoje, pelas cinco h oras da manh ã, faleceu uma criança no q uarto de
Gorch kov. Apenas não sei de q uê: parece q ue estava com escarlatina ou
sabe lá Deus q ue outra moléstia! Fui ver esses Gorch kov. Mas em q ue
pobrez a é q ue eles vivem, mãez inh a! E em q ue desordem! Aliás, não é de
admirar: a família toda mora num q uarto só, dividido, por mera decência,
com alguns biomboz inh os. E um caix ão peq uenino já está lá, um caix ão
simplesinh o, porém assaz bonitinh o: compraram-no pronto, q ue o menino
só tinh a uns nove anos e prometia, pelo q ue diz em, muito. E como faz pena
olh ar para eles, Várenka! A mãe não está ch orando, mas anda tão aflita,
coitada. Quem sabe mesmo: talvez estejam aliviados, q ue um dos seus
filh os já se foi; restam-lh es, entretanto, mais dois, um recém-nascido e uma
menina peq uena, de uns seis anos e pouco. A q uem agradaria, feitas as
contas, ver uma criança sofrer, sendo, ainda por cima, seu filh o de sangue, e
não poder ajudá-la de modo algum? O pai está lá sentado, com sua velh a
casaca sebenta, numa cadeira toda q uebrada. Escorrem-lh e umas lágrimas,
só q ue talvez nem esteja ch orando de tanta tristez a, mas assim, por h ábito,
seus olh os remelam. Está tão esq uisito assim! Fica vermelh o, q uando falam
com ele, e se confunde e não sabe o q ue responder. A menina peq uena, a
filh a dele, está em pé, encostada no caix ão, e parece tão triste, coitadinh a,
tão pensativa! E como não gosto eu, minh a mãez inh a Várenka, q ue uma
criança fiq ue pensativa: é desagradável olh ar para ela! Uma boneca
q ualq uer, feita de trapos, está largada no ch ão, perto dela, mas a menina não
brinca, só leva um dedinh o aos lábios e fica ali, sem se mex er. A locadora
lh e deu um bombonz inh o; ela o pegou, mas não o comeu. Como isso é
triste, Várenka, h ein?
M ak ar D êvuch k in.

2 5 de junh o.
Caríssimo Makar Alex éievitch ! Envio-lh e seu livrinh o de volta. Que
livrinh o mais imprestável é esse, não se pode nem tocar nele! Onde foi q ue
o senh or conseguiu uma joia dessas? Sem brincadeiras, Makar
Alex éievitch : será q ue gosta de tais livrinh os? É q ue me prometeram a mim,
dia desses, q ue arranjariam alguma coisa para eu ler. Se q uiser, vou
emprestar aq uele livro ao senh or também. E agora, até a vista. J uro q ue não
tenh o mais tempo para escrever.
V .D .

2 6 de junh o.
Querida Várenka! É q ue realmente não li o tal livro, mãez inh a. Na
verdade, li um pouco, sim, e percebi q ue era uma besteira, escrita assim, só
para a gente rir, só para divertir as pessoas; então pensei q ue devia ser
mesmo engraçado, q ue talvez Várenka também viesse a gostar dele; aí o
peguei e mandei para você.
Só q ue nosso Rataz iáiev vem prometendo q ue me emprestará algo
literário, de verdade, para ler; então, mãez inh a, é q ue lerá uns livrinh os
também. Pois Rataz iáiev é entendido, é um sabich ão, e está escrevendo, ele
mesmo, uh , como está escrevendo! Uma pena tão desenvolta e um estilo
assim, estupendo, ou seja, em cada palavra, aliás, em cada palavra mais
tosca e mais ordinária e mais vil, até mesmo naq uela q ue eu cá diria, por
vez es, a Faldoni ou a Th erez a, até mesmo nela se vê seu estilo. Freq uento
também os saraus dele. Fumamos ali tabaco, e ele lê para nós, por umas
cinco h oras seguidas, e nós o escutamos. Não é uma literatura, mas uma
delícia! Que graça, q ue flores, simplesmente tais flores q ue cada página
daria um ramalh ete inteiro! E ele é tão amável, bondoso e carinh oso. Pois
q uem sou eu perante ele, o q ue sou? Nada. Ele é um h omem conceituado, e
eu sou o q uê? Nem seq uer ex isto, mas até mesmo a mim ele trata com
benevolência. Tenh o copiado umas coisinh as para ele. Contudo, não pense
aí, Várenka, q ue h á uma artimanh a q ualq uer nisso, q ue ele me trata com
benevolência justamente por isso, porq ue estou copiando. Não acredite em
boatos, mãez inh a, não acredite naq ueles boatos abjetos! Não, é por mim
mesmo, por minh a boa vontade e para lh e agradar a ele q ue faço isto, e, se
ele me trata com benevolência, faz aq uilo para me agradar a mim. É q ue
compreendo, mãez inh a, a delicadez a daq uela sua ação. Ele é um h omem
bondoso, muito bondoso, e um escritor ex traordinário.
E a literatura, Várenka, é uma coisa boa, muito boa: foi isso q ue eu
soube, anteontem, no meio deles. Uma coisa profunda! Que fortalece o
coração h umano, q ue ensina a gente e… ainda h á muita coisa escrita, sobre
aq uilo tudo, num livrinh o deles. E muito bem escrita! A literatura é um
q uadro, ou seja, de certo modo, é um q uadro e um espelh o, a ex pressão de
uma paix ão e uma crítica tão sutil, uma lição edificante e um documento.
Foi tudo isso q ue eles me inculcaram. E digo-lh e francamente, mãez inh a,
q ue fico ali sentado, no meio deles, escuto (e talvez esteja fumando, igual a
eles, um cach imbo), mas, tão logo se põem a competir entre si, a discutir
sobre várias matérias, então simplesmente me rendo; então, mãez inh a, nós
dois teríamos de nos render sem mais nem menos. Então me mostro um
palerma apalermado e tenh o vergonh a de mim mesmo, de sorte q ue fico
buscando, noite adentro, meia palavrinh a a inserir naq uela matéria geral,
mas é justamente aq uela meia palavrinh a q ue não vem, como q ue de
propósito! Então me apiedo, Várenka, de mim mesmo, lamento não ser nem
assim nem assado, como naq uele provérbio: cresceu bastante, mas não foi
adiante. O q ue é, pois, q ue faço agora nas h oras vagas? Durmo, como um
bobão rematado. Senão, poderia faz er, em vez deste sono inútil, alguma
coisa agradável, digamos, sentar-me à mesa e escrever um bocado. Útil para
mim e bom para os outros. Mas enfim, mãez inh a, veja só q uanto eles lá
cobram, q ue Deus lh es perdoe a todos! Eis, por ex emplo, Rataz iáiev:
q uanto é q ue está cobrando? O q ue lh e custa escrever uma folh a, h ein? J á
h ouve dias em q ue escreveu cinco folh as e anda diz endo q ue cobra até
trez entos rublos por uma só. Se for uma anedotaz inh a q ualq uer ou, q uem
sabe, alguma curiosidade, então venh a cá e lh e pague, q ueira ou não,
q uinh entos rublos, nem q ue se arrebente todo; senão, a gente embolsa, dia
sim dia não, até mil rublos de uma vez ! Que tal, Varvara Alex éievna? Não
adianta falar! Tem lá um caderninh o de versos, e aq ueles versinh os são
todos tão curtos assim, e ele pede, mãez inh a, sete mil por ele, pede sete mil
rublos, pense aí! Mas seria um bem imóvel, uma casa de alvenaria! Diz q ue
lh e propõem cinco mil, mas ele não aceita. Eu cá lh e ex plico, digo: aceite,
meu caro, aq ueles cinco mil deles e cuspa para eles todos, q ue cinco mil são
uma dinh eirama! Não, responde ele, eles me pagarão sete mil, aq ueles
patifes. Como é espertinh o, palavra de h onra!
Pois bem, mãez inh a, por falarmos nisso, vou copiar um trech inh o de
“ Paix ões italianas” para você, h ein? Este é o nome de uma das obras dele.
Leia, pois, Várenka, e julgue você mesma.
“ … Vladímir estremeceu, e as paix ões borbulh aram, enraivecidas, em
seu âmago, e seu sangue ficou fervendo…
— Condessa — ex clamou ele —, condessa! Será q ue sabe como esta
paix ão é h orrível, como esta loucura é infinita? Não, meus devaneios não
me ludibriaram! Eu amo, amo ex tático, furioso e louco! Nem todo o sangue
de seu marido apagará o arroubo frenético, borbulh ante de minh a alma! Os
empecilh os ínfimos não deterão este fogo infernal, capaz de espedaçar tudo,
q ue vem sulcando meu peito ex tenuado. Oh , Zinaída, Zinaída! …
— Vladímir! … — sussurrou a condessa, enlouq uecida, inclinando-se
sobre o ombro dele…
— Zinaída! — bradou Smêlski, ex tasiado. E um suspiro se evaporou do
seu peito. E um incêndio irrompeu, em flamas vivas, sobre o altar do amor e
sulcou os peitos daq ueles mártires infeliz es.
— Vladímir! … — sussurrava a condessa, arrebatada. Seu peito se
erguia, suas faces enrubesciam, seus olh os fulgiam…
E aq uele matrimônio novo e tétrico foi consumado!
Meia h ora depois o velh o conde entrou na alcova de sua esposa.
— Pois bem, minh a alma, será q ue mando botar um samovarz inh o para
nosso q uerido h óspede? — disse, alisando a face dela.”
É isso aí, mãez inh a, e lh e pergunto, depois disso, o q ue está ach ando.
Na verdade, é um tanto frívolo, não h á discussão, mas é bom. O q ue é bom
é bom mesmo! E agora permita q ue copie mais um trech inh o, da novela
“ Yermak e Zuleica” , para você.
Imagine aí, mãez inh a, q ue o cossaco Yermak, aq uele selvagem e terrível
conq uistador da Sibéria, está apaix onado por Zuleica, a filh a do cz ar
siberiano K utch um, q ue aprisionou. Data o evento da época de Ivan, o
Terrível, como você está vendo. Eis aq ui a conversa de Yermak com
Zuleica:
“ — Tu me amas, Zuleica! Oh , repete isso, repete! …
— Eu te amo, Yermak — sussurrou Zuleica.
— Agradeço-lh es, céu e terra: estou feliz ! … Deram-me tudo, tudo o
q ue almejava, desde a mocidade, este meu espírito perturbado. Pois foi a
isso q ue me conduz iste, minh a estrela guia; pois foi para isso q ue me
troux este até aq ui, para além do Cinturão de pedra! Hei de mostrar minh a
Zuleica ao mundo inteiro, e as pessoas, aq ueles monstros raivosos, não se
atreverão a acusar-me! Oh , se elas compreendessem esses sofrimentos
ocultos de sua alma terna, se fossem capaz es de vislumbrar todo um poema
numa só lagrimaz inh a de minh a Zuleica! Oh , deix a q ue eu apague, com
beijos, essa lagrimaz inh a, deix a q ue a beba, essa lagrimaz inh a celeste…
minh a divina!
— Yermak — disse Zuleica —, o mundo é maldoso, as pessoas são
injustas! Elas nos perseguirão, elas nos condenarão, meu q uerido Yermak!
O q ue fará esta pobre moça, crescida no meio das neves natais da Sibéria,
na iurta37 de seu pai, nesse teu mundo frio e gelado, desalmado e
presunçoso? As pessoas não me entenderão, meu q uerido, meu bem-amado!
— Então meu sabre de cossaco erguer-se-á sobre elas e silvará! —
ex clamou Yermak, cujos olh os vagavam selvagemente.”
Pois como fica Yermak, h ein, Várenka, q uando vem a saber q ue sua
Zuleica está degolada? Aproveitando-se da escuridão noturna, o ancião
cego K utch um se insinuou, na ausência de Yermak, na tenda dele e degolou
sua filh a por desejar atingir Yermak, q ue o privara do cetro e da coroa, com
um golpe mortal.
“ — Gosto de arrastar o ferro por esta pedra! — bradou Yermak, num
encarniçamento selvagem, a afiar seu facão de aço de Damasco sobre a
pedra do x amã. — Preciso do sangue deles, daq uele sangue! Hei de serrá-
los, serrá-los, serrá-los! ! ! ”
E, depois disso tudo, Yermak, q ue não consegue sobreviver a sua
Zuleica, atira-se no Irty ch ,38 e tudo se acaba nisso.
E aq ui, por ex emplo, está um trech inh o minúsculo de feitio
h umorístico-descritivo, escrito com o propósito de faz er a gente rir: “ Será
q ue vocês conh ecem Ivan Prokófievitch J eltopuz ? 39 Pois sim, aq uele
mesmo q ue mordeu a perna de Prokófi Ivânovitch . Ivan Prokófievitch é um
h omem de índole dura, porém dotado, em compensação, de raras virtudes,
enq uanto Prokófi Ivânovitch , pelo contrário, gosta demais de rábano com
mel. Ainda q uando Pelaguéia Antônovna o conh ecia… Mas vocês
conh ecem Pelaguéia Antônovna? Pois sim, aq uela mesma q ue sempre põe a
saia às avessas.”
Mas a gente morre de rir, Várenka, simplesmente morre! Estávamos
rolando de tanto riso, ao passo q ue ele nos lia aq uilo. Como ele é, q ue Deus
lh e perdoe mesmo! Aliás, mãez inh a, se bem q ue aq uilo seja um tanto
rebuscado e por demais frívolo, é algo inocente, ainda assim, sem o menor
livre-pensamento nem sombra de ideias liberais. É preciso notar, mãez inh a,
q ue a conduta de Rataz iáiev é ex emplar, sendo ele, portanto, um escritor
ex celente, ao contrário dos outros escritores. Pois enfim, na verdade,
também me vem à cabeça, de vez em q uando, uma ideia… e se eu mesmo
escrevesse alguma coisa, o q ue seria então? Digamos q ue, por ex emplo,
seria lançado de repente, sem causa aparente, um livrinh o intitulado
“ Poesias de Makar Dêvuch kin” . O q ue é q ue você diria nesse caso, meu
anjinh o? O q ue imaginaria e pensaria então? Só q ue lh e direi por minh a
parte, mãez inh a, q ue, tão logo um livrinh o meu fosse lançado, eu não
ousaria mais, decididamente, aparecer na Nêvski.40 Pois o q ue seria de mim
se q ualq uer um pudesse diz er q ue lá vem passando o autor literário e vate
Dêvuch kin, q ue é, digamos, aq uele mesmo Dêvuch kin? O q ue eu faria
então, por ex emplo, com estas minh as botas? Notarei de passagem,
mãez inh a, q ue minh as botas estão q uase sempre remendadas, e q ue as solas
se desprendem às vez es, seja dita a verdade, de modo bastante indecente. O
q ue, pois, seria de mim se todos ficassem sabendo q ue as botas do literato
Dêvuch kin estão todas remendadas? Se alguma condessa ou duq uesa
ficasse sabendo disso, o q ue ela diria, aq uela beldade, h ein? Não repararia,
talvez , já q ue, a meu ver, as condessas não se interessam por botas e, ainda
por cima, pelas de um funcionário público (pois h á botas e botas… ), mas
então lh e contariam sobre tudo, meus próprios companh eiros me
entregariam. E Rataz iáiev seria o primeiro a entregar-me, q ue vai à casa da
condessa V. e diz q ue a visita, todas as vez es, sem a mínima cerimônia. Diz
q ue é assim, uma beldade literária; diz q ue é uma dama daq uelas. Mas esse
Rataz iáiev é um porre!
Aliás, ch ega de falar sobre a tal matéria, já q ue escrevo isto assim, meu
anjinh o, por brincadeira, para diverti-la um pouco. Adeus, minh a
q ueridinh a! Rabisq uei um bocado para você, mas o fiz , na verdade, porq ue
meu estado de espírito tem sido h oje o mais alegre possível. Almoçamos
h oje, todos juntos, na casa de Rataz iáiev, e eles (são brincalh ões,
mãez inh a! ) tomaram um romanei41 tal q ue… mas não vale a pena escrever
sobre aq uilo! Veja apenas, Várenka, se não inventa aí nada a meu respeito.
Ando faz endo isto assim, de mentira. Vou mandar uns livrinh os para você,
sem falta… Circula por aq ui, de mão em mão, uma obra de Paul de K ock,42
só q ue não vai recebê-la, mãez inh a, de jeito nenh um… Nem pensar: Paul de
K ock não serve para você. Diz -se acerca dele, mãez inh a, q ue deix a todos os
críticos petersburguenses nobremente indignados. Envio-lh e um
cartuch inh o de bombons, q ue comprei especialmente para você. Coma-os,
meu benz inh o, e lembre-se de mim com cada bombom comido. Mas veja se
não fica roendo aq uele rebuçado, mas apenas o ch upa de leve, senão seus
dentinh os vão doer. Talvez goste de frutas confeitadas também? Escreva
para mim. Adeus, pois, adeus. Cristo a proteja, minh a q ueridinh a! E me
q uedarei, para sempre, seu amigo mais fiel
M ak ar D êvuch k in.

2 7 de junh o.
Prez ado senh or Makar Alex éievitch !
Fedora diz q ue, se eu q uiser, certas pessoas compartirão, e com praz er,
desta situação minh a e conseguirão para mim um emprego muito bom, o de
governanta, numa casa. O q ue ach a, amigo meu: vou lá ou não vou? É claro
q ue então não serei mais um fardo para o senh or, e parece, ademais, q ue o
trabalh o é bem pago, mas, por outro lado, fico temendo um pouco ir
trabalh ar numa casa desconh ecida. É uma família de faz endeiros. Se
começarem a indagar sobre mim, a faz er perguntas, a bisbilh otar, o q ue lh es
direi então? Além do mais, sou tão retraída, tão arredia, e gosto de morar
por muito tempo num canto familiar. Vive-se melh or lá onde a gente
costuma viver: nem q ue se viva a custo, mas se sente melh or. E, além disso,
terei de me mudar, e só Deus sabe q ue emprego será aq uele: talvez me
façam apenas cuidar das crianças. E aq uelas pessoas são tais q ue trocam já
a terceira governanta em dois anos. Aconselh e-me, pois, Makar
Alex éievitch , pelo amor de Deus: vou lá ou não vou? E por q ue o senh or
mesmo não vem nunca à nossa casa, mas se mostra apenas de longe, de vez
em q uando? É q uase só aos domingos, na h ora da missa matinal, q ue a
gente se vê. Como o senh or é arisco! Igualz inh o a mim. E sou q uase uma
parenta sua. Não me ama, Makar Alex éievitch , e fico, por vez es, muito
triste, q uando soz inh a. Fico sentada aq ui, vez por outra, sobretudo ao cair
do crepúsculo, totalmente só. Fedora vai para algum lugar. E cá fico
sentada, pensando, pensando, rememorando todo o passado, seja ele feliz ,
seja triste, e tudo me passa diante dos olh os, assim de relance, como se
saísse de uma neblina. E aparecem os rostos familiares (passo então a vê-los
como se estivessem mesmo em minh a frente), e q uem vejo mais vez es é
minh a mãez inh a… E q ue sonh os é q ue tenh o! Sinto q ue minh a saúde está
debilitada; estou tão fraca; h oje também, q uando me levantava da cama pela
manh ã, passei mal; além do mais, estou com uma tosse tão ruim assim!
Sinto, pois, sei q ue morrerei logo. Quem vai enterrar-me? Quem irá atrás do
meu caix ão? Quem terá pena de mim? … E talvez me cumpra morrer
algures, numa casa alh eia, num canto q ue não é meu! … Meu Deus, como a
vida é triste, Makar Alex éievitch ! E por q ue não para, amigo meu, de me
alimentar com esses bombons? J uro q ue não sei onde o senh or arruma tanto
dinh eiro! Ah , meu amigo, guarde esse dinh eiro, pelo amor de Deus, guarde-
o. Fedora está vendendo um tapete q ue eu bordei: oferecem cinq uenta
rublos em papel-moeda por ele. Isso é muito bom: pensei q ue dariam
menos. Vou passar três rublos para Fedora e costurar um vestidinh o para
mim, assim, simplesinh o, mas bem q uente. E farei um colete para o senh or:
vou faz ê-lo eu mesma e escolh erei um tecido bom.
Fedora conseguiu um livrinh o para mim, “ Contos de Bêlkin” , q ue lh e
envio se acaso o senh or q uiser lê-lo. Só não o suje, por favor, nem o retenh a
por muito tempo, q ue o livro não é nosso: é uma obra de Púch kin. Líamos
esses contos h avia dois anos, minh a mãez inh a e eu, e agora me entristeci
tanto ao relê-los. Se o senh or tiver alguns livros, mande-os para mim,
contanto q ue não os tenh a recebido de Rataz iáiev. Ele daria, por certo, uma
das suas obras, se é q ue já publicou alguma. Como é q ue o senh or pode
gostar daq uelas obras dele, Makar Alex éievitch ? Tantas bobagens… Adeus,
pois, q ue fiq uei proseando demais! Quando estou triste, aí me disponh o a
prosear, seja q ual for o assunto. É um remédio: logo me sinto aliviada,
sobretudo depois de diz er tudo o q ue me pesa no coração. Adeus, adeus,
meu amigo!
Sua
V .D .

2 8 de junh o.
Mãez inh a Varvara Alex éievna!
Ch ega de ficar triste! Como é q ue não se envergonh a com isso? Ch ega,
meu anjinh o, ch ega: como é q ue tais ideias lh e vêm à cabeça? Você não está
doente, meu benz inh o, não está nem um pouco doente, mas florescendo,
juro q ue está florescendo; um pouq uinh o pálida, mas, ainda assim,
florescendo. E q uais são esses sonh os e essas visões q ue tem? Ch ega, minh a
q ueridinh a, mas q ue vergonh a! Cuspa para seus sonh os, sim, apenas cuspa
para eles. Por q ue é q ue eu mesmo durmo bem? Por q ue nada se dá
comigo? Pois olh e para mim, mãez inh a! Estou vivendo a meu bel-praz er,
durmo bem, ando saudavelz inh o, como um valentão daq ueles, e dá gosto
olh ar para mim. Ch ega, ch ega, meu benz inh o, q ue é vergonh oso mesmo.
Aprume-se. É q ue conh eço, mãez inh a, essa sua cabecinh a: mal vem alguma
ideia, e você já se põe a sonh ar, a lamentar q ualq uer coisa. Não se entristeça
mais, meu benz inh o, faça isso por mim. Ir trabalh ar fora? J amais! Não, não
e não! E por q ue será q ue essas ideias lh e vêm, o q ue a domina? E, ainda
por cima, mudar-se daq ui? Mas não, mãez inh a, não vou permitir e me
armarei de todas as forças contra tal intenção. Venderei minh a casaca velh a
e andarei pelas ruas só de camisa, mas você não vai precisar, aq ui conosco,
de nada. Não, Várenka, não, q ue a conh eço muito bem! É uma divagação,
uma divagação pura! E o q ue é certo é q ue a culpa disso tudo é de Fedora:
pelo visto, é uma baba43 tola e foi ela q uem fez você pensar desse jeito.
Pois não acredite nela, mãez inh a! Decerto ainda não sabe de tudo, meu
benz inh o, sabe? … É uma baba estúpida, rabugenta, briguenta; foi ela, aliás,
q uem despach ou seu finado marido desta para a melh or. Quem sabe se você
não a irritou de alguma maneira aí? Não, não, mãez inh a, de jeito nenh um! E
como eu mesmo ficarei nesse caso, o q ue me restará faz er, h ein? Não,
Várenka, meu benz inh o, tire isso da sua cabecinh a, tire. O q ue é q ue lh e
falta aq ui conosco? A gente se alegra, o tempo todo, com você, você gosta
da gente… continue, pois, vivendo aí q uietinh a: costure ou leia, ou melh or,
nem costure mais, contanto q ue continue conosco. Senão, julgue você
mesma: com q ue isso se pareceria então? … Vou arranjar alguns livrinh os
para você, e depois, q uem sabe, vamos de novo dar uma volta por aí. Mas
ch ega, mãez inh a, ch ega mesmo: crie juíz o e não divague por causa daq uelas
ninh arias todas! Vou visitá-la num futuro bem próx imo, mas veja se aceita
em troca uma declaração minh a, direta e franca: faz mal, meu benz inh o, faz
muito mal! É claro q ue sou um h omem bronco e sei, eu mesmo, q ue sou
bronco, q ue estudei com trocados de cobre, mas não venh o nem aludindo
àq uilo, e não se trata de mim, coisa nenh uma, porém, q ueira você ou não,
vou defender Rataz iáiev. Ele é meu amigo, portanto vou defendê-lo. Ele
escreve bem, muito, muito e, outra vez , muito bem mesmo. Não concordo,
pois, com você, nem seq uer posso concordar. O estilo dele é florido, nítido,
com várias figuras e diversas ideias — muito bom! Talvez o tenh a lido sem
sentimento, Várenka, ou então estivesse maldisposta na h ora de lê-lo,
z angada com Fedora por alguma raz ão ou logo depois de acontecer algo
desagradável aí. Não, leia aq uilo de um jeito melh orz inh o, com sentimento,
q uando estiver contente e alegre, e num estado de espírito praz enteiro, por
ex emplo, q uando estiver com um bombonz inh o na boca: leia-o desse jeito,
está bem? Não estou discutindo (q uem discutiria? ): h á escritores melh ores
q ue Rataz iáiev, alguns bem melh ores mesmo, mas eles lá são bons e
Rataz iáiev é bom também, eles escrevem bem e ele escreve bem. Ele fica
no seu canto, escreve assim, pouco a pouco, e faz muito bem em escrever
pouco a pouco. Adeus, pois, mãez inh a; não posso mais escrever, q ue tenh o
uma coisa a faz er e estou com pressa. Veja, pois, mãez inh a, minh a
yássotch k a adorável, veja se fica calma, e q ue Deus permaneça com você.
Quanto a mim, continuo sendo seu fiel amigo
M ak ar D êvuch k in.
P. S.: Grato pelo livrinh o, minh a q uerida: vamos ler Púch kin também; e
h oje mesmo, de tardez inh a, vou visitá-la sem falta.

1 º de julh o.
Meu caro Makar Alex éievitch !
Não, meu amigo, não: não tenh o como viver aq ui. Pensei direitinh o e
ach ei q ue faria muito mal em recusar um emprego tão proveitoso. Ali terei,
pelo menos, um pedaço de pão na certa; h ei de me esforçar e vou merecer o
carinh o daq uelas pessoas estranh as, até mesmo tentarei, se preciso for,
mudar de índole. Decerto é penoso e doloroso viver em meio a estranh os,
buscando pela complacência de outrem, escondendo-me e forçando a mim
mesma, porém Deus me ajudará. Não posso ficar, pela vida afora, tão
arredia assim. J á se deram tais coisas comigo antes. Lembro como ia,
q uando peq uena ainda, para aq uele colégio. Passo um domingo inteiro
brincando em casa, pulando, de maneira q ue minh a mãez inh a até me
censura às vez es, e está tudo bem, e meu coração se apraz , e minh a alma
está luminosa. Mas então vem a noite, e eis q ue uma tristez a mortal se
apossa de mim, pois tenh o de voltar para o colégio às nove h oras, e tudo me
é alh eio por lá, frio e severo, e as governantas andam tão z angadas às
segundas-feiras, e minh a alma fica doendo tanto, às vez es, q ue q uero
ch orar; vou até um cantinh o e ch oro soz inh a ali, escondendo as lágrimas
para ninguém comentar q ue sou preguiçosa, porém não ch oro, daq uela feita,
por ter de estudar, não. Pois então? Acostumei-me àq uilo e depois, q uando
deix ava o colégio, também ch orava ao despedir-me das minh as amigas. De
resto, não faço bem em viver onerando vocês dois. Essa ideia me faz sofrer.
Digo-lh e isto francamente, porq ue me h abituei a tratá-lo com franq uez a.
Será q ue não vejo Fedora se levantar, todo santo dia, de manh ãz inh a e
começar a lavar aq uelas roupas e trabalh ar até altas h oras da noite? E os
ossos velh os gostam de repouso, não gostam? Será q ue não vejo o senh or se
arruinar por minh a causa, botar seu último copeq ue sobre a aresta e gastá-lo
depois comigo? Mas não é com sua fortuna, meu amigo, q ue se faz em tais
coisas! Escreve q ue vai vender seus últimos pertences para não me deix ar
desamparada. Acredito nisso, amigo meu, acredito em seu bom coração,
mas o senh or fala assim agora. Agora tem um dinh eiro inesperado, recebeu
uma gratificação, mas o q ue é q ue será depois, depois? O senh or mesmo
sabe q ue estou sempre adoentada; não posso trabalh ar como vocês
trabalh am: teria um praz er, cá na alma, em trabalh ar assim, só q ue nem
seq uer o trabalh o aparece todos os dias. O q ue me resta faz er? Lacerar-me
com tanta aflição, olh ando para vocês dois, meus q ueridos? Como é q ue eu
poderia ser, pelo menos, um pouq uinh o útil para vocês? E por q ue o senh or
precisa tanto de mim, meu amigo? O q ue é q ue lh e fiz de bom? Apenas me
apeguei ao senh or com a alma toda; amo o senh or de verdade, amo mesmo,
com todo o meu coração, porém — q uão amargo é meu destino! — sei
apenas amar e posso amar apenas, mas não lh e faz er o bem nem lh e pagar
pelas suas boas ações. Não me retenh a, pois, mais: reflita e me diga sua
última opinião. Fico na ex pectativa, amando:
V .D .

1 º de julh o.
Divagação, Várenka, divagação; simplesmente uma divagação! É só a
gente deix á-la por algum tempo, e eis q ue já pensa tanto, mas tanto, com
essa cabecinh a sua! Nem isto é assim nem aq uilo é assado! Pois estou
vendo agora q ue é tudo uma divagação. O q ue é q ue lh e falta, mãez inh a,
aq ui conosco, diga apenas isso! A gente ama você, você ama a gente,
estamos todos contentes e feliz es — o q ue é q ue mais q uer? E o q ue é q ue
vai faz er lá, na casa daq uela família estranh a? É q ue não sabe ainda, por
certo, o q ue é um estranh o? … Não, digne-se a interrogar a mim, e lh e direi
o q ue é um estranh o. Conh eço-o, mãez inh a, bem o conh eço: já tive de
comer o pão dele. É malvado, Várenka, é malvado; é tão malvado q ue esse
seu coraçãoz inh o não bastará, tanto ele vai torturá-lo com seus reproch es e
suas censuras e seus olh ares maus. E aq ui conosco você está bem, tão
q uentinh a como se estivesse aconch egada num ninh oz inh o da gente. E nos
deix aria ambos como q ue sem cabeça. O q ue vamos faz er sem você; o q ue
eu mesmo, este velh o aq ui, farei então? É de você q ue não precisamos? É
você q ue não vem a ser útil? Como assim, “ útil” ? Não, julgue você mesma,
mãez inh a, como não seria útil para a gente! Você me é muito útil, Várenka!
Ex erce sobre mim uma influência tão benéfica… É q ue estou pensando em
você agora e fico alegre… Escrevo-lh e, vez por outra, uma carta, relatando
nela todos os meus sentimentos, e recebo de você uma resposta minuciosa.
Comprei umas roupinh as para você, arrumei um ch apeuz inh o; se h ouver, de
vez em q uando, alguma incumbência sua, venh o cumpri-la também, essa
incumbência… Não, mas como você não seria útil? E o q ue vou faz er
soz inh o, depois de velh o, para q ue vou prestar, h ein? Talvez nem tenh a
pensado nisso, Várenka; pois trate de pensar justamente nisso: para q ue,
digamos, ele vai prestar sem mim? Acostumei-me a você, minh a q uerida. E
o q ue vou faz er agora? Irei caminh ando até o Neva e darei cabo de tudo. E
juro q ue sim, farei isso mesmo, Várenka, pois não terei mais nada a faz er
sem você! Ah , meu benz inh o, Várenka! Quer, pelo visto, q ue um carro de
aluguel me leve para o Vólkovo, q ue uma velh a mendiga q ualq uer
acompanh e soz inh a, por lá, meu caix ão, q ue me cubram ali de areia e vão
embora e me deix em ali soz inh o. Pecado, mas q ue pecado, mãez inh a! J uro
q ue é pecado, juro por Deus q ue é pecado! Devolvo-lh e seu livrinh o, minh a
amiguinh a Várenka, e, se acaso me perguntar, minh a amiguinh a, pela
opinião q ue tenh o acerca desse seu livrinh o, direi q ue ainda não me
ocorreu, em toda a minh a vida, ler tais livrinh os maravilh osos. Agora me
pergunto, mãez inh a, como vivi até h oje, tão ignorante assim, q ue Deus me
perdoe! O q ue fiz ? De q uais florestas saí? É q ue não sei coisa nenh uma,
mãez inh a, coisa nenh uma; não sei nadinh a de nada! Digo-lh e mui
simplesmente, Várenka: sou um h omem bronco; li pouco até agora, li muito
pouco, não li q uase nada. Li “ O q uadro do h omem” ,44 uma obra inteligente;
li “ O menino a tocar várias coisinh as com seus sininh os” 45 e “ Os grous de
Íbico” 46 — apenas isso, e nunca mais li coisa nenh uma. Pois li agorinh a
“ Ch efe da estação de posta” , aí no seu livro, e lh e digo, mãez inh a, q ue às
vez es a gente vive e nem sabe q ue h á um livrinh o desses por perto, no q ual
a vida da gente é narrada assim, por miúdo, como dois mais dois. E mesmo
aq uilo q ue a gente nem imaginava antes fica bem aí, tão logo se ch ega a ler
tal livrinh o, e se recorda, aos poucos, por si só, e se ach a, e se adivinh a. E,
afinal de contas, eis por q ue ainda gostei do seu livro: h á obras tais q ue a
gente as lê, sejam q uais forem, e q uase se arrebenta, às vez es, de tanto
esforço, mas elas são tão intrincadas q ue não dá simplesmente para
entendê-las. Eu, por ex emplo, sou obtuso, obtuso por naturez a, e não
consigo, portanto, ler obras por demais importantes, mas, q uando leio esse
livrinh o, é como se o tivesse escrito eu mesmo, como se fosse, digamos
assim, meu próprio coração, seja ele q ual for, q ue tirei e virei às avessas, na
frente do público, e descrevi-o todo assim, por miúdo — é isso aí! Aliás, é
uma coisinh a simples, meu Deus! Ora, mas é verdade: juro q ue eu mesmo
teria escrito daq uela maneira, por q ue não teria? É q ue estou sentindo a
mesma coisa, ex atamente a mesma q ue está no livro, e já fiq uei vez por
outra, eu também, nas mesmas situações q ue, digamos assim, o tal de
Samson Vý rin, aq uele coitado. E q uantos são aq ueles Samsons Vý rins, os
mesmos pobres-diabos q ueridos, q ue andam por entre nós? E como tudo é
descrito, tão h abilmente! Quase rompi a ch orar, mãez inh a, q uando li q ue ele
bebera tanto, o pecador, q ue perdera a memória, q ue estava amargurado e
dormia, o dia inteiro, debaix o de um tulup47 daq uela pele de carneiro,
afogando seu pesar no ponch ez inh o e pranteando mui lastimosamente,
enx ugando os olh os com sua aba suja ao lembrar-se da sua ovelh inh a
perdida, da sua filh a Duniach a! Não, mas como aq uilo é natural! Leia aí,
h ein: como é natural! Como é vívido! Eu mesmo tenh o visto aq uilo; aq uilo
tudo fica morando ao meu lado, por ex emplo, Th erez a ou — nem é preciso
ir muito longe! — por ex emplo, este nosso pobre servidor q ue talvez seja o
mesmo Samson Vý rin, apenas tem outro sobrenome, Gorch kov. É q ue o
negócio é geral, mãez inh a, e o mesmo pode acontecer tanto a você q uanto a
mim. E o conde, q ue mora na Nêvski ou na avenida marginal, será o
mesmo, apenas vai parecer diferente, já q ue lá, no meio deles, tudo se faz
de maneira particular, no mais alto estilo, mas ele também será o mesmo,
pois tudo pode acontecer, e a mim também pode acontecer essa mesma
coisa. É isso aí, mãez inh a, e você q uer ainda ficar longe de mim, só q ue
bem pode ser, Várenka, q ue um pecado venh a então tomar conta de mim.
Assim pode destruir, minh a q uerida, a si mesma e a mim também. Ah ,
minh a yássotch k a, tire, pelo amor de Deus, todas essas ideias folgadas da
sua cabecinh a e não me atormente à toa. Como é q ue poderia, meu
passarinh o fraq uinh o, implume, como poderia sustentar a si mesma,
impedir sua própria perdição, defender-se dos malfeitores? Ch ega, Várenka,
aprume-se: não escute aq ueles conselh os tolos nem aq uelas calúnias, mas
leia de novo seu livrinh o e leia com atenção, q ue isso lh e será útil.
Falei do “ Ch efe da estação de posta” com Rataz iáiev. Ele me disse q ue
era tudo uma velh aria e q ue agora só h avia livrinh os com desenh os e várias
descrições; na verdade, nem entendi direitinh o o q ue me dissera. Concluiu
diz endo q ue Púch kin era bom, q ue glorificara a santa Rússia, e ainda me
falou muito dele. Sim, muito bem, Várenka, muito bem; leia, pois, esse
livrinh o mais uma vez , com atenção, siga meus conselh os e torne este velh o
feliz com sua obediência. Então nosso Senh or vai recompensá-la, minh a
q uerida, vai recompensá-la sem falta.
Seu amigo sincero
M ak ar D êvuch k in.

6 de julh o.
Prez ado senh or Makar Alex éievitch !
Fedora me troux e h oje q uinz e rublos de prata. Como ficou feliz ,
coitada, q uando lh e dei três rublos inteiros! Escrevo-lh e às pressas. Agora
estou talh ando um colete para o senh or, e o tecido é uma graça, amarelinh o
com umas florz inh as. Envio-lh e um livro: h á várias novelas nele, já li
algumas; leia também uma delas, intitulada “ O capote” .48 O senh or me
convida a irmos juntos ao teatro, mas não será isso caro demais? Só se
ficarmos, talvez , na torrinh a… J á faz muito, muito tempo q ue não vou ao
teatro e, na verdade, nem lembro mais q uando fui lá. Todavia, fico de novo
com medo de essa invenção lh e custar muito caro. Fedora não faz outra
coisa senão abanar a cabeça. Diz q ue o senh or passou a gastar muito além
dos seus meios; de resto, eu mesma percebo isso, bem vejo q uanto tem
esbanjado apenas comigo! Cuidado, amigo meu, para não ocorrer algum
mal. Fedora me tem falado, além do mais, sobre alguns boatos ali, disse q ue
o senh or teria discutido, parece, com sua locadora por não pagar o aluguel,
e temo muito pelo senh or. Adeus, pois, q ue estou com pressa. Tenh o uma
tarefaz inh a, a de trocar as fitas de um ch apeuz inh o.
V .D .
P. S.: Sabe, se a gente for ao teatro, usarei meu ch apeuz inh o novinh o e
botarei uma mantilh a preta por cima dos ombros. Será q ue vão cair bem?

7 de julh o.
Prez ada senh orita Varvara Alex éievna!
… Continuo, pois, falando daq uele assunto de ontem. Sim, mãez inh a, a
gente também teve outrora umas divagações. Endoidei por aq uela atriz inh a,
fiq uei destrambelh ado, mas ainda não faria mal, só q ue o mais esq uisito era
q ue q uase não a tinh a visto, indo ao teatro uma vez só, e, ainda assim,
endoidei. Moravam então ao meu lado, logo atrás da parede, uns cinco caras
alegres e ch eios de fogo. Aprox imei-me deles, mesmo sem q uerer, embora
sempre me mantivesse nos limites da decência. Mas, a fim de não ficar para
trás, aprovava-os, eu mesmo, em tudo. Foram eles q ue me contaram montes
de coisas sobre aq uela atriz inh a lá! Toda noite, assim q ue começava o
espetáculo, a turminh a toda (nunca tinh a, aliás, um tostão furado para o
necessário), toda aq uela turminh a ia ao teatro, direto à torrinh a, e ali ficava
batendo palmas, aclamando a tal atriz inh a, e se q uedava simplesmente
frenética! E depois eles nem me deix avam dormir, conversando, a noite
inteira, sobre ela, e cada um a ch amava de sua Glach a, e estavam todos
apaix onados somente por ela, e tinh am o mesmo canário no coração.
Atiçaram a mim também, indefeso; é q ue era ainda novinh o àq uela altura.
Nem sei como fui parar no teatro com eles, lá na torrinh a, no q uarto piso.
Quanto a assistir, via apenas a bordinh a do pano, mas, em compensação,
ouvia tudo. É verdade q ue aq uela atriz inh a tinh a uma voz boaz inh a, sonora
como a de um roux inol e melosa! Aplaudimos até as mãos nos doerem,
gritamos à beça — numa palavra, q uase vieram pegar a gente e levaram um
de nós, na verdade, para fora. Voltei para casa como q ue desvairado; só
tinh a um rublo no bolso e me restavam ainda uns dez dias inteiros até
receber o salário. E o q ue você ach a, mãez inh a? No dia seguinte, antes de ir
à minh a repartição, dei um pulinh o na loja de um perfumista francês,
comprei um perfume q ualq uer e um sabonete aromático com todo o meu
cabedal… nem eu mesmo sei por q ue comprei então aq uilo tudo. Não
almocei em casa, mas fiq uei andando, o tempo todo, sob as janelas dela. A
atriz inh a morava na Nêvski, no terceiro andar. Voltei para casa, descansei
por uma h orinh a e fui outra vez à Nêvski, só para passar sob as janelas dela.
Fiq uei andando dessa maneira por um mês e meio, arrastando a asa para ela,
contratando os coch eiros mais atrevidos a cada minuto e circulando volta e
meia diante da sua casa; acabei esgotado, endividado e depois não a amava
mais, enfadado q ue estava! É isso, pois, q ue uma atriz inh a está em condição
de faz er com um h omem decente, mãez inh a! Aliás, eu era novinh o então,
bem novinh o! …
M .D .

8 de julh o.
Minh a cara senh orita Varvara Alex éievna!
Apresso-me a devolver seu livrinh o, recebido no dia 6 deste mês, e, ao
mesmo tempo, a ex plicar-me com você nesta carta minh a. É ruim,
mãez inh a, é ruim q ue me tenh a levado a tais ex tremos. Permita aí,
mãez inh a: q uaisq uer estados e destinos h umanos são definidos pelo
Supremo. A este cabe andar com dragonas49 de general, e àq uele, ser
servidor de nona classe;50 Fulano tem de mandar, e Beltrano, de obedecer
com resignação e medo. Isso é calculado de acordo com as capacidades de
cada pessoa: uma é capaz de faz er tal coisa, a outra, de faz er outra coisa, e
essas capacidades são determinadas por Deus como tal. J á faz cerca de
trinta anos q ue estou no serviço público: sirvo de modo irreproch ável,
minh a conduta tem sido sóbria, e nunca me viram participar de nenh uma
arruaça. Como cidadão, considero-me, com minh a própria consciência,
possuidor de alguns defeitos e, ao mesmo tempo, de algumas virtudes. Sou
respeitado pela ch efia, e até mesmo Sua Ex celência anda contente comigo:
ainda q ue não me tenh a demonstrado, até agora, nenh um sinal especial de
sua benevolência, sei, sim, q ue anda contente. Vivi até meus cabelos
embranq uecerem, mas não conh eço nenh um grande pecado meu. É claro:
q uem não teria uns pecadinh os miúdos? Todos são pecadores, e até mesmo
você, mãez inh a, é uma pecadora! Contudo, jamais cometi grandes desliz es
nem ousadias, indo assim, de encontro às portarias, ou perturbando a ordem
pública: jamais fui visto faz endo tais coisas, não h ouve nada disso, e até
q ueriam condecorar-me com uma cruz inh a — é isso aí! Na verdade, você
deveria saber disso tudo, mãez inh a, e o escritor também deveria saber: visto
q ue se incumbiu dessas descrições, deveria, sim, saber de tudo. Não
esperava por isso, mãez inh a; não, Várenka! Ex atamente da sua parte é q ue
não esperava por nada disso.
Como? Mas não dá mais, depois disso, para viver sossegado em meu
cantinh o, seja ele q ual for, viver sem turvar as águas, conforme aq uele
provérbio, sem bulir com ninguém, temendo a Deus e conh ecendo a mim
mesmo, sem q ue os outros venh am bulir comigo, sem q ue se insinuem
também em minh a toca para me espionar: como, digamos, é q ue você vive
aí, em sua casa; se tem, por ex emplo, um bom colete e as roupas de baix o
q ue lh e cumpre ter; se tem umas botas, e q uais são as solas delas; o q ue
anda comendo, bebendo e copiando aí? … E o q ue h á de ruim, mãez inh a, se
acaso eu mesmo, digamos, passo nas pontas dos pés, às vez es, por onde a
calçada for meio precária e resguardo as minh as botas? Para q ue escrever
sobre um estranh o q ue está na penúria, de vez em q uando, q ue nem toma
ch á? Como se todos devessem, assim sem falta, tomar esse ch á! Será q ue
olh o para a boca de q ualq uer um, q uerendo saber q ue pedaço ele está
mastigando lá? Quem foi, pois, q ue ofendi desse jeito? Não, mãez inh a, por
q ue ofenderia os outros, desde q ue eles não bulam comigo? Pois então,
Varvara Alex éievna, eis aq ui um ex emplo para você, eis o q ue isso
significa: a gente serve, serve com z elo e dedicação, assim mesmo, e a
própria ch efia respeita a gente (seja lá como for, mas respeita, sim! ), e eis
q ue alguém apronta, nas barbas da gente e sem nenh uma causa aparente,
um pasq uim sem tirar nem pôr. É verdade, por certo, q ue mando faz er eu
também, vez por outra, uma roupa nova, e fico tão alegre q ue não durmo
mais de tanta alegria, e calço então, por ex emplo, minh as botas novas com
tanto goz o; é verdade q ue já senti isso, pois dá gosto ver esta minh a perna
com uma bota fina, ajanotada — isso foi descrito com precisão! Mas, ainda
assim, fico deveras espantado de Fiódor Fiódorovitch ter deix ado passar um
livrinh o desses, sem lh e dar especial atenção nem defender nossa gente. É
verdade q ue ainda é um dignitário jovem e gosta de gritar amiúde, mas por
q ue é q ue não gritaria mesmo? Por q ue não repreenderia os nossos, se fosse
preciso repreendê-los? Mas suponh amos assim, por ex emplo, q ue lh es passe
um pito por conveniência: então q ue grite com eles por conveniência, para
ensinar as coisas, para meter um medinh o ali, porq ue… fiq ue isso entre nós,
Várenka… porq ue os nossos não faz em coisa nenh uma sem aq uele
medinh o, mas cada um busca apenas constar algures nos q uadros — estou
servindo, digamos, em tal ou tal repartição — e, q uanto ao serviço, passa
longe dele, assim de ladinh o. E, como ex istem vários cargos e cada cargo
demanda um pito peculiar, q ue esteja à altura dele, é natural q ue o próprio
tom de cada pito se torne, por esse motivo, bem diferente: isso faz parte da
nossa ordem das coisas! É q ue o mundo inteiro se embasa nisso, mãez inh a,
agindo nós todos por conveniência, uns na frente dos outros, e passando
cada um de nós seu pito no outro. O mundo não teria resistido sem tal
precaução, nem h averia ordem nenh uma. Fico, portanto, deveras espantado
de Fiódor Fiódorovitch ter deix ado passar um ultraje desses, sem lh e dar
especial atenção.
Por q ue escrever uma coisa dessas? Para q ue ela serve? Será q ue um
dos leitores encomendará, por causa dela, um capote para mim, h ein? Será
q ue me comprará um par de botas novas? Não, Várenka, apenas lerá aq uilo
e ainda ex igirá uma continuação. A gente se esconde, por vez es, não para
de se esconder e oculta o q ue lh e estiver faltando, não raro teme botar o
nariz para fora, metê-lo onde q uer q ue seja, porq ue vive com medo de má
fama, pois dá para faz er um pasq uim de tudo q uanto h ouver neste mundo, e
eis q ue toda a vida pública e íntima da gente já anda pela literatura afora, e
já está tudo impresso, lido, escarnecido e comentado! Mas então nem se
poderá mais aparecer na rua, e tudo isso fica provado pelo autor, tanto assim
q ue agora nossa gente já é reconh ecida apenas pelo seu andar. Ainda não
faria mal se ele se corrigisse, de algum jeito, pelo fim da h istória, se
abrandasse alguma passagem, se colocasse, por ex emplo, depois daq uele
trech o em q ue jogavam papeiz inh os sobre a cabeça do servidor: ainda
assim, digamos, apesar disso tudo, ele era virtuoso, um bom cidadão, e não
merecia tal tratamento dos seus colegas, mas obedecia aos superiores
(poder-se-ia inserir algum ex emplo ali), não desejava o mal de ninguém,
acreditava em Deus e faleceu (já q ue o autor q uer tanto q ue ele faleça)
pranteado. E o melh or seria não o deix ar falecer, aq uele coitado, mas faz er
q ue seu capote fosse encontrado, q ue o tal general, ao inteirar-se mais
detalh adamente das suas virtudes, acabasse pedindo q ue o transferissem
para seu gabinete, promovendo-o a uma classe mais alta e dando-lh e um
bom ordenado, e assim se veria bem como a h istória terminaria: o mal seria
punido, a virtude ficaria triunfando, e os colegas dele, todos os demais
servidores, não lograriam nenh um êx ito. Eu, por ex emplo, faria isso
mesmo, mas, daq uela maneira, o q ue o autor escreveu de incomum, o q ue
fez de bom? Assim, um ex emplo fútil da nossa reles vida cotidiana. E como
foi q ue você resolveu, minh a q uerida, mandar um livrinh o desses para
mim? Pois é um livrinh o mal-intencionado, Várenka; é simplesmente
inverossímil, porq ue nem seq uer pode acontecer q ue h aja um servidor
daq ueles. Pois temos de reclamar depois disso, Várenka, reclamar
formalmente.
Seu fidelíssimo servo
M ak ar D êvuch k in.

2 7 de julh o.
Prez ado senh or Makar Alex éievitch !
Os últimos acontecimentos e suas cartas deix aram-me assustada,
abalada e atônita, e os relatos de Fedora ex plicaram-me tudo. Mas por q ue é
q ue ficou tão desesperado, Makar Alex éievitch , por q ue caiu de repente
nesse abismo em q ue caiu? Suas ex plicações não me satisfiz eram nem um
pouco. O senh or mesmo veja se eu tive raz ão insistindo em aceitar aq uele
emprego proveitoso q ue me era oferecido. Além do mais, esta minh a
aventura mais recente amedronta-me de verdade. O senh or diz q ue foi seu
amor por mim q ue o fez esconder-se de mim. J á então percebi q ue lh e devia
muita coisa, q uando o senh or me assegurava q ue só gastava comigo o
dinh eiro q ue lh e sobrava, o q ual estava guardado, pelo q ue me diz ia, numa
casa de penh ores, por via das dúvidas. Agora q ue estou ciente de o senh or
não ter tido dinh eiro algum, q ue soube por acaso da minh a situação
calamitosa e, sensibiliz ado com ela, decidiu antecipar seu salário e gastá-lo
comigo, e até mesmo vendeu suas roupas q uando fiq uei doente, agora a
descoberta disso tudo coloca-me numa situação tão aflitiva q ue não sei até
h oje como receber tudo isso nem o q ue pensar a respeito. Ah , Makar
Alex éievitch , o senh or devia ter parado após seus primeiros favores,
impostos pela compaix ão e pelo seu amor parental, e não esbanjar seu
dinh eiro posteriormente com tantas coisas supérfluas. O senh or traiu nossa
amiz ade, Makar Alex éievitch , porq ue não foi sincero comigo, e, agora q ue
vejo seu último dinh eiro ter sido gasto com minh as toaletes, com os
bombons, com os passeios, o teatro e os livros, agora estou pagando caro
por isso tudo, pagando a lamentar esta minh a leviandade imperdoável (pois
aceitei tudo, sem me importar com o senh or), e tudo q uanto o senh or fez
para me agradar está transformado agora em meu pesar e só me deix a um
lamento inútil. Apercebi-me da sua angústia, nesses últimos tempos, e,
muito embora eu mesma esperasse, angustiada, por algo, nem seq uer me
passava pela cabeça o q ue acabou ocorrendo. Como? O senh or pode mesmo
ficar tão desanimado assim, Makar Alex éievitch ? O q ue, pois, é q ue vão
pensar agora, o q ue agora dirão do senh or todos aq ueles q ue o conh ecem?
O senh or, q ue todos, inclusive eu mesma, respeitavam pela bondade de sua
alma, pela modéstia e pela sensatez , o senh or acabou caindo agora, de
supetão, num vício tão asq ueroso q ue nunca fora visto, ao q ue parece,
praticar antes. O q ue se deu comigo q uando Fedora me contou q ue o senh or
tinh a sido encontrado no meio da rua, embriagado, e levado até seu
apartamento pela polícia! Fiq uei petrificada de tão perplex a, ainda q ue
esperasse por algo ex traordinário, pois o senh or andava sumido h avia
q uatro dias. Será q ue pensou, Makar Alex éievitch , no q ue diriam seus
superiores ao saberem a verdadeira causa de sua ausência? O senh or diz q ue
todos o escarnecem, q ue todos ficaram cientes de nosso relacionamento e
q ue seus viz inh os mencionam a mim também em suas pilh érias. Não dê
atenção àq uilo, Makar Alex éievitch , e, pelo amor de Deus, acalme-se.
Ainda me deix a assustada aq uela sua h istória com os oficiais, da q ual tinh a
ouvido alguns boatos obscuros. Ex pliq ue-me, pois, o q ue significa aq uilo
tudo. O senh or escreve q ue receava contar para mim, q ue receava perder,
com sua confissão, a minh a amiz ade, q ue estava desesperado sem saber
como me ajudaria em minh a doença, q ue vendeu tudo para me amparar e
não deix ar q ue me levassem para o h ospital, q ue contraiu tantas dívidas
q uantas pôde contrair e q ue todo dia tem contrariedades com sua locadora,
porém, escondendo tudo isso de mim, o senh or fez a pior das escolh as. É
q ue agora estou ciente de tudo. O senh or se envergonh ava em faz er-me
reconh ecer q ue era eu a raz ão de sua situação desastrosa, só q ue agora me
causa o dobro de dor com essa sua conduta. Tudo isso me abalou, Makar
Alex éievitch . Ah , meu amigo, a desgraça é uma doença contagiosa! Os
desgraçados e míseros devem ficar longe uns dos outros para não se
contaminarem ainda mais. Eu lh e troux e tais sofrimentos q ue o senh or não
tinh a aturado antes, nessa sua vida h umilde e recatada. Tudo isso me aflige
e me mata.
Escreva-me agora tudo com sinceridade, contando o q ue se deu com o
senh or e como se atreveu a uma ação dessas. Tranq uiliz e-me, se puder. Não
é o amor-próprio q ue me faz agora escrever sobre a minh a tranq uilidade,
mas, sim, minh a amiz ade e meu amor pelo senh or, q ue nada vai apagar
neste meu coração. Adeus. Espero pela sua resposta com impaciência. O
senh or tem pensado mal de mim, Makar Alex éievitch !
Amando-o de todo o coração,
V arvara D obrossiólova.

2 8 de julh o.
Minh a inestimável Varvara Alex éievna!
Pois bem, agora q ue está tudo acabado e voltando, pouco a pouco, ao
seu estado anterior, digo-lh e o seguinte, mãez inh a: fica preocupada com o
q ue vão pensar de mim, portanto me apresso a declarar, Varvara
Alex éievna, q ue minh a dignidade me é mais preciosa do q ue tudo. Por essa
raz ão, comunicando-lh e as minh as desgraças e todos aq ueles distúrbios,
informo-lh e q ue nenh um dos meus superiores sabe ainda de nada, nem
seq uer virá a saber, de sorte q ue eles todos continuarão nutrindo respeito
por mim como dantes. Só tenh o medo de uma coisa: tenh o medo de fofocas.
A locadora anda gritando, aq ui em casa, mas agora q ue já lh e paguei,
mediante esses seus dez rublos, parte da dívida, não faz outra coisa senão
resmungar, nada mais. Quanto aos outros, tampouco; contanto q ue a gente
não lh e peça dinh eiro emprestado, estão todos q uietos. Assim, em
conclusão de minh as ex plicações, dir-lh e-ei, mãez inh a, q ue considero seu
respeito por mim a coisa mais importante do mundo e q ue agora me consolo
com isso em meio aos meus distúrbios temporários. Graças a Deus, o
primeiro golpe e as primeiras reviravoltas já passaram, e você aceitou
aq uilo de modo a não me tomar por um amigo pérfido e egoísta por tê-la
retido e iludido sem ter forças para me separar de você, q ue tenh o amado
como um anjinh o meu. Agora me dedico z elosamente ao meu serviço,
passando a ex ercer minh as funções a contento. Yevstáfi Ivânovitch não me
disse seq uer uma palavra, q uando passei ontem ao lado dele. Não lh e
oculto, mãez inh a, q ue minh as dívidas estão para me matar, assim como o
mau estado de meu guarda-roupa, mas isso tampouco faz mal, e não se
desespere com isso, mãez inh a, q ue lh e imploro. Você me manda mais um
poltí nnitch ek , Várenka, e esse poltí nnitch ek me arrebenta o coração. Agora
é isso, pois, é bem isso agora? Ou seja, não sou eu, velh o imbecil, q uem
ajuda esse meu anjinh o, mas é você, minh a orfãz inh a coitada, q uem me
ajuda a mim! Fedora fez bem em arranjar um dinh eirinh o. Não tenh o, por
ora, nenh uma esperança de receber dinh eiro algum, mãez inh a, e, se acaso
ressurgir uma esperança q ualq uer, vou escrever-lh e sobre tudo, logo e por
miúdo. Mas são as fofocas, são as fofocas q ue mais me deix am preocupado.
Adeus, meu anjinh o. Beijo sua mãoz inh a e lh e imploro q ue melh ore. Se não
lh e escrevo com maiores detalh es, é q ue me apresso a ir à minh a repartição,
q uerendo redimir, com meu z elo e minh a dedicação, todas as minh as
culpas, q uanto às omissões em serviço, e adiando o resto da narração sobre
todos os acidentes, bem como sobre a aventura com aq ueles oficiais, para a
tarde.
Respeitando-a e amando-a de todo o coração,
M ak ar D êvuch k in.

2 8 de julh o.
Eh , Várenka, Várenka! É justamente agora q ue o pecado está do seu
lado e ficará pesando em sua consciência. É q ue você me tirou, com essa
sua cartinh a, do meu derradeiro compasso e me deix ou estupefato, e só
mesmo agora q ue penetrei, nas h oras vagas, no interior do meu coração,
percebi q ue eu estava com a raz ão, q ue tinh a toda a raz ão. Não estou
falando da minh a crápula (deix emos para lá, mãez inh a, deix emos para lá! ),
mas antes de amá-la e de não me ser nada insensato amá-la, nada insensato.
Você não sabe nada, mãez inh a, mas se apenas soubesse o porq uê disso tudo,
por q ue me cumpre amá-la, diria então outra coisa. Anda diz endo todas
essas coisas raz oáveis assim, por diz er, mas estou seguro de q ue tem outra
coisa no coração.
Minh a mãez inh a, não sei nem lembro direito, eu mesmo, tudo o q ue
aconteceu com aq ueles oficiais. Preciso notar para você, meu anjinh o, q ue
permaneci até então muitíssimo confuso. Imagine, pois: faz ia um mês
inteiro q ue eu pendia, por assim diz er, num fioz inh o só. Minh a situação
estava calamitosa mesmo. E me escondia de você, e me escondia em casa,
porém minh a locadora fez muito barulh o, ainda assim, e muita algaz arra.
Por mim, não faria mal se aq uela baba imprestável estivesse gritando, mas,
em primeiro lugar, é uma vergonh a, e, em segundo lugar, ela ficou sabendo,
só Deus sabe como, deste nosso relacionamento e andou gritando coisas tais
acerca dele, pela casa toda, q ue entorpeci e tapei os ouvidos. Mas o
problema é q ue os outros não taparam os ouvidos, mas, pelo contrário,
abriram-nos bem abertos. Até agora não sei, mãez inh a, onde me meter…
E eis q ue tudo isso, meu anjinh o, todo esse aflux o de várias calamidades
veio acabar comigo de vez . Ouvi, de repente, Fedora diz er umas coisas
estranh as de q ue teria surgido um req uerente indigno em sua casa, ch egando
a ofender você com uma proposta indigna, e q ue a ofendera de verdade,
profundamente, e fico julgando disso por mim, mãez inh a, porq ue também
me q uedei profundamente ofendido. E foi então, meu anjinh o, q ue endoidei,
e foi então q ue me perdi e pereci em definitivo. Eu, minh a amiga Várenka,
saí correndo, tomado de uma raiva inaudita, q uerendo ir até ele, o pecador;
nem sabia direito o q ue q ueria faz er, porq ue não q uero q ue você, meu
anjinh o, seja magoada! Pois bem: fiq uei triste, e estava ch ovendo, naq uele
momento, e h avia tamanh a lama e uma angústia terrificante! … J á q ueria
voltar para casa… E foi então q ue decaí, mãez inh a. Encontrei o Yemêlia,
q uer diz er, Yemelian Ilitch : ele é servidor, ou melh or, já foi servidor e agora
não é mais, q ue o desligaram da nossa repartição. Nem sei direito o q ue
anda faz endo lá nem como está sofrendo… Fomos, pois, juntos e depois…
Mas não vale a pena, Várenka: será q ue se alegraria lendo sobre as
desgraças de seu amigo, sobre seus infortúnios e a h istória das tentações
q ue ele foi aturando? No terceiro dia, ao anoitecer, foi Yemêlia q uem me
atiçou, e fui atrás dele, daq uele oficial ali. Pedi o endereço ao nosso z elador.
Pois eu cá, mãez inh a, por falarmos nisso oportunamente, já estava de olh o
naq uele valentão e andava a observá-lo ainda q uando ele se h ospedava em
nosso prédio. Agora é q ue percebo ter perpetrado uma indecência, por estar
num transtorno daq ueles, q uando lh e anunciaram a minh a ch egada. E na
verdade, Várenka, não me lembro de nada; apenas me lembro de h aver
muitos oficiais na casa dele, ou talvez eu visse tudo dobrado então, só Deus
sabe. Tampouco me lembro do q ue lh e disse, apenas sei q ue disse muita
coisa naq uela minh a nobre indignação. E foi então, pois, q ue me enx otaram
de lá, foi então q ue me jogaram escada abaix o, ou seja, não é q ue me
tenh am jogado mesmo, mas apenas me empurraram assim. Você já sabe,
Várenka, como voltei para casa: pois bem, é tudo. É claro q ue me rebaix ei e
q ue meu brio ficou maculado, só q ue nenh uma pessoa estranh a sabe disso,
ninguém sabe além de você, e nesse caso é como se não tivesse acontecido
coisa nenh uma. Talvez seja assim mesmo, Várenka: o q ue você ach a? A
única coisa q ue sei ao certo é q ue, no ano passado, foi nosso Aksênti
Óssipovitch q uem atentou da mesma maneira contra a personalidade de
Piotr Petróvitch , mas fez isso em segredo, às escondidas. Ch amou-o para a
guarita, e eu vi aq uilo tudo por uma frestinh a; e foi de um jeito certo q ue ele
o tratou lá, mas de um jeito nobre, e ninguém viu aq uilo além de mim, e,
q uanto a mim, não fiz nada, ou seja, q uero diz er q ue não declarei nada a
ninguém. E, depois disso, Piotr Petróvitch e Aksênti Óssipovitch não
fiz eram mais nada. E sabe: nem Piotr Petróvitch , por mais ambicioso q ue
seja, disse nada a ninguém, de sorte q ue ambos se cumprimentam agora
com mesuras e apertos de mão. Não estou discutindo, Várenka, nem ouso
discutir com você: decaí muito, e a coisa mais h orrível é q ue acabei
decaindo em minh a própria opinião, mas esse deve ter sido meu destino,
essa deve ter sido minh a sina, e você mesma sabe q ue não se foge do seu
destino. Esta é, pois, a ex plicação detalh ada das minh as desgraças e
calamidades, Várenka; isto é tudo e, mesmo q ue você não o lesse, não viria
a ser diferente. Estou um tanto indisposto, minh a mãez inh a, e perdi toda a
frivolidade dos meus sentimentos. Destarte, testemunh ando-lh e agora meu
apego, amor e respeito, continuo sendo, minh a prez ada senh orita Varvara
Alex éievna,
Seu fidelíssimo servo
M ak ar D êvuch k in.

2 9 de julh o.
Prez ado senh or Makar Alex éievitch !
Li ambas as cartas suas e só dei um ai! Escute, amigo meu: ou o senh or
está escondendo alguma coisa de mim e só escreveu sobre certa parte de
todas as suas contrariedades, ou então… juro q ue suas cartas, Makar
Alex éievitch , ainda revelam uma espécie de desarranjo… Venh a à minh a
casa, pelo amor de Deus, venh a h oje; de resto, escute: venh a logo para
almoçar conosco, sabe? Nem sei como o senh or está vivendo aí e como se
entendeu com essa sua locadora. Não escreve nada sobre todas essas coisas,
como se as omitisse de propósito. Até a vista, pois, meu amigo: venh a sem
falta h oje, e faria melh or ainda se viesse sempre almoçar conosco. Fedora
coz inh a muito bem. Adeus.
Sua
V arvara D obrossiólova.

1 º de ag osto.
Mãez inh a Varvara Alex éievna!
Está contente, mãez inh a, porq ue Deus lh e mandou o ensejo de retribuir,
por sua vez , o bem com o bem e de me agradecer a mim. Acredito nisso,
Várenka, e acredito nessa bondade de seu coraçãoz inh o angelical, e não falo
assim para ex probrá-la: apenas não me censure diz endo, como da outra
feita, q ue me teria embromado depois de velh o. Houve, pois, tal pecado
(faz er o q uê? ), se q uiser mesmo q ue h aja algum pecado no meio, apenas me
custa demais ouvir essas coisas todas de você, minh a amiguinh a! Não se
z angue comigo por falar assim, q ue está tudo doendo, mãez inh a, cá no meu
peito. A gente pobre é birrenta, e foi a própria naturez a q ue a fez desse
modo. J á vinh a sentindo isso antes e agora o sinto mais ainda. Ela, q uer
diz er, uma pessoa pobre, ela é ex igente: vê o mundo de Deus sob outro
ângulo e olh a para cada passante de esguelh a e corre um olh ar constrangido
ao seu redor e presta atenção em cada palavra dita — será q ue se fala dela
por lá? Será q ue se pergunta ali por q ue ela é tão feiosa, o q ue estaria
sentindo de fato e como ficaria se vista, por ex emplo, deste lado ou daq uele
lado? E cada q ual sabe, Várenka, q ue uma pessoa pobre é pior do q ue um
trapinh o e nem poderia goz ar de nenh um respeito por parte de ninguém,
escrevam o q ue escreverem sobre ela! Escrevam eles o q ue escreverem,
aq ueles escribas lá, será tudo, nessa pessoa pobre, como sempre foi. Mas
por q ue será tudo como antes? Porq ue tudo, na opinião deles, deve ser às
avessas numa pessoa pobre, porq ue ela nem deve ter nada íntimo, nenh uma
dignidade especial, de jeito nenh um! Foi Yemêlia q uem disse agorinh a q ue
tinh am feito uma vaq uinh a para ele em algum lugar, e q ue ele fora, de certa
forma, submetido a um ex ame oficial em troca de cada g rivna. Pensavam
todos q ue lh e davam as suas g rivnas de graça, mas não: estavam pagando
porq ue lh es mostravam uma pessoa pobre. Agora, mãez inh a, até as boas
ações são feitas de certa maneira estranh a… ou talvez sempre tenh am sido
feitas dessa maneira, q uem é q ue sabe? Ou eles não sabem faz ê-las, ou são
peritos demais: é uma das duas. Talvez você nem soubesse disso, pois então
fiq ue sabendo! Até q ue não nos metemos em outros assuntos, mas, q uanto a
este, somos versados! Mas por q ue uma pessoa pobre sabe disso tudo e
pensa desse jeitinh o? Por q ue, h ein? Por ex periência! Por saber, digamos,
q ue h á um senh or daq ueles ao seu lado, o q ual se dirige a algum restaurante
ali e diz consigo mesmo: o q ue será q ue um tal servidor sem eira nem beira
vai comer h oje? Eu cá vou comer um sauté papillote,51 e ele, q uem sabe,
comerá uma k ach a52 sem manteiga. E, nem q ue eu coma mesmo uma k ach a
sem manteiga, o q ue ele tem a ver com isso? Há tais pessoas, Várenka, h á
q uem só ande pensando nisso. Andam, pois, eles lá, aq ueles pasq uineiros
indecentes, e observam se a gente pisa com o pé todo numa pedra ou tão
somente com a pontinh a do pé, e anotam q ue tal servidor de nona classe,
alocado em tal repartição pública, tem dedos nus saindo da bota e cotovelos
rasgados, e depois ficam descrevendo isso tudo em suas obras e publicando
uma droga dessas… E, nem q ue meus cotovelos estejam mesmo rasgados, o
q ue alguém tem a ver com isso? Pois se você me relevar, Várenka, uma
palavra grosseira, dir-lh e-ei q ue uma pessoa pobre se envergonh a, q uanto a
essa matéria, do mesmo jeito q ue você tem aí, para citar um ex emplo, essa
sua vergonh a de moça. É q ue você não iria — veja se me desculpa por tal
palavrinh a grosseira — despir-se na frente de todo mundo, e é desse mesmo
jeito q ue uma pessoa pobre não gosta de ter seu cubículo espionado para
alguém ver como são, digamos, as relações conjugais dela… é isso aí. E
nem tinh a mesmo, Várenka, de me magoar junto com meus desafetos a
atentarem à h onra e à dignidade de um h omem h onesto!
Fiq uei h oje, aliás, na repartição feito um ursinh o q ualq uer, feito um
pardal depenado, de sorte q ue por pouco não me abrasei de tanta vergonh a.
Senti, pois, uma vergonh az inh a, Várenka! É q ue a gente se intimida
naturalmente q uando os cotovelos nus se veem através da roupa e os
botõez inh os balançam sobre os fioz inh os. E minh as roupas estavam todas,
como q ue de propósito, em tamanh a desordem! Qualq uer um se
desanimaria sem q uerer. Nem lh e conto… Foi Stepan K árlovitch em pessoa
q uem começou a falar comigo h oje sobre os negócios: falou, falou e depois,
como q ue por acaso, adicionou: “ Eh , meu q uerido Makar Alex éievitch , mas
o senh or… ” e não terminou de diz er o q ue estava pensando, só q ue eu
mesmo adivinh ei tudo e fiq uei tão vermelh o q ue até esta minh a careca se
ruboriz ou. Aq uilo não faria mal, no fundo, mas faz , ainda assim, q ue a
gente se inq uiete e traz pensamentos penosos. Será q ue eles souberam de
alguma coisa? Não, Deus me livre, como é q ue saberiam? Suspeito, aliás,
confesso q ue suspeito muito de um h omenz inh o. É q ue tais facínoras não se
importam mesmo: entregarão, sim, e nem cobrarão um tostão para entregar
toda a vida privada da gente, q ue não têm ali nada de sagrado.
Agora sei de q uem é esse truq ue: é truq ue de Rataz iáiev. Ele conh ece
alguém em nossa repartição e deve ter transmitido a ele assim, no meio de
uma conversa, a h istória toda com seus acréscimos, ou talvez tenh a contado
daq uilo em sua própria repartição, e depois o rumor se espalh ou pela nossa
também. E, q uanto ao nosso apartamento, todos já sabem de tudo, até o
último inq uilino, e apontam essa janela de você com o dedo: sei, na certa,
q ue a apontam, sim. E ontem, q uando fui almoçar com você, eles todos se
meteram para fora das suas janelas, e a locadora disse q ue se envolvera um
diabo com um neném e depois ch amou você também de um nome
indecente. Todavia, isso não é nada em comparação à abjeta intenção de
Rataz iáiev, àq uela de nos inserir, você e eu mesmo, em sua literatura e de
nos descrever numa sátira arguta: foi ele próprio q uem falou nisso, e foram
umas pessoas boas do nosso meio q ue me transmitiram aq uilo. Não consigo
mais nem pensar noutra coisa, mãez inh a, e não sei q ue decisão tomar. Não
dá para esconder o pecado: deix amos nós dois, meu anjinh o, nosso Senh or
irado! E você q ueria, mãez inh a, mandar para mim algum livro, assim por
enfado. Deix e, pois, esse livro de lado, mãez inh a! O q ue seria tal livro?
Uma h istorinh a da caroch inh a! O romance é uma bobagem escrita por mera
bobagem, só para a gente ociosa ler: acredite em mim, mãez inh a, acredite
em minh a ex periência de tantos anos. E nem q ue eles lh e ench am a cabeça
com o tal de Sh akespeare, diz endo q ue ex iste o tal de Sh akespeare naq uela
literatura deles, Sh akespeare também é uma bobagem, e tudo aq uilo não
passa de uma bobagem, e foi tudo feito apenas como pasq uim!
Seu
M ak ar D êvuch k in.

2 de ag osto.
Prez ado senh or Makar Alex éievitch !
Não se preocupe com nada: tudo se arranjará, se Deus nosso Senh or o
q uiser. Fedora conseguiu um montão de encomendas, para si mesma e para
mim, e nos pusemos a trabalh ar com enlevo: q uem sabe se não
consertaremos tudo! Ela supõe q ue todas as minh as últimas contrariedades
tenh am a ver com Anna Fiódorovna, só q ue agora não me importo mais
com aq uilo. Hoje estou alegre de certo modo ex traordinário. O senh or q uer
pedir um empréstimo? Deus o guarde e livre disso! Depois os males não
terão mais fim, q uando o senh or tiver de devolvê-lo. É melh or q ue fiq ue
ainda mais próx imo de nós, q ue venh a mais freq uentemente à nossa casa e
não dê atenção à sua locadora. Quanto aos demais inimigos e desafetos
seus, tenh o certez a de q ue se aflige com dúvidas vãs, Makar Alex éievitch !
Veja bem: já lh e disse da última vez q ue seu estilo estava demasiado
irregular. Pois bem: adeus, até a vista. Espero q ue venh a sem falta para me
visitar.
Sua
V .D .

3 de ag osto.
Meu anjinh o Varvara Alex éievna!
Apresso-me a comunicar, minh a vidinh a q uerida, q ue me surgiram
algumas esperanças. Mas espere aí, minh a filh inh a: está escrevendo,
anjinh o, q ue não me cabe pedir empréstimos? Mas não seria possível viver
sem eles, minh a q ueridinh a, porq uanto eu mesmo ficaria pior, e você
também poderia ter, por acaso, algum problema, q ue anda fraq uinh a; por
isso, pois, é q ue lh e escrevo q ue preciso sem falta pedir dinh eiro
emprestado. E, assim sendo, continuo…
Notarei para você, Varvara Alex éievna, q ue fico sentado, aq ui na
repartição, junto de Yemelian Ivânovitch . Mas não é aq uele Yemelian q ue
você conh ece. Este é um servidor de nona classe, igual a mim, e somos
praticamente, em toda a repartição nossa, os dois funcionários mais antigos
e arraigados. Ele possui uma alma bondosa, desinteresseira, porém é tão
taciturno e sempre se porta como um verdadeiro urso. Por outro lado, é
laborioso, e sua pena tem uma letra puramente inglesa, e não escreve, para
diz er a verdade toda, pior do q ue eu: é um h omem decente! Nunca tivemos
tanta amiz ade assim, mas apenas diz íamos, por costume, “ adeus” e “ bom-
dia” um ao outro, e, precisando eu, às vez es, de um canivete, pedia-lh e um:
empreste, digamos, seu canivete, Yemelian Ivânovitch ; numa palavra, só
h avia entre nós o q ue era ex igido pela boa convivência. Pois ele me diz
h oje: por q ue é q ue, Makar Alex éievitch , o senh or está tão pensativo?
Percebi q ue o h omem desejava meu bem; pois então me abri com ele:
digamos, assim e assado, Yemelian Ivânovitch … ou seja, não lh e contei de
tudo, e Deus me livre de contar algum dia, q ue não terei seq uer a coragem
de contar daq uilo, mas apenas compartilh ei umas coisas com ele: digamos,
estou em apuros e assim por diante. “ Mas o senh or deveria, meu q uerido” ,
disse Yemelian Ivânovitch , “ pedir um empréstimo, até mesmo a Piotr
Petróvitch , q ue está emprestando a juros; eu já pedi um empréstimo, e os
juros q ue ele cobra são raz oáveis, nem tão onerosos assim” . E este meu
coraçãoz inh o, Várenka, deu um pulo. Fiq uei pensando, pensando q ue talvez
Deus viesse soprar ao tal benfeitor Piotr Petróvitch a ideia de me conceder
mesmo um empréstimo. Então calculei, aq ui comigo, q ue pagaria à minh a
locadora e ajudaria você também e consertaria, eu mesmo, todas as minh as
coisas, q ue a vergonh a tem sido grande demais: dá medo até de ficar
sentado em meu lugar, além de nossos h umoristas estarem rindo de mim,
q ue Deus os julgue! E Sua Ex celência em pessoa vem passando, às vez es,
perto da minh a mesa, e Deus me guarde de ele lançar um olh ar para mim e
reparar na indecência das minh as roupas! É q ue o principal, para ele, é ser
limpo e asseado. Talvez não diga nada, q uem sabe, mas eu cá vou morrer de
vergonh a — eis o q ue vai ocorrer. Em conseq uência disso, juntando as
forças e escondendo a minh a vergonh a num bolso furado, fui procurar por
Piotr Petróvitch , ch eio de esperança e mais morto q ue vivo de tantas
ex pectativas, tudo junto. Pois bem, Várenka, foi numa bobagem q ue aq uilo
tudo redundou! Ele estava ocupado com alguma coisa, falando com
Fedossei Ivânovitch . Ach eguei-me a ele de lado e pux ei-lh e a manga: Piotr
Petróvitch , h ein, Piotr Petróvitch ? Ele se virou, e eu fui falando: assim e
assado, digamos, uns trinta rublos, etc. Primeiro ele nem me entendeu e
depois, q uando lh e ex pliq uei tudo, ficou rindo, mais nada, e se calou a
seguir. Então lh e perguntei pelo mesmo. E ele me respondeu: será q ue tem
um penh or aí? Estava absorto, aliás, em sua papelada, escrevendo sem olh ar
para mim. Fiq uei um pouco tímido. Não, disse, Piotr Petróvitch , não tenh o
nenh um penh or, e lh e ex pliq uei q ue logo, assim q ue recebesse meu
ordenado, ia devolver aq uele dinh eiro, e q ue o devolveria, digamos assim,
sem falta, como se fosse o primeiro dos meus deveres. Então alguém
ch amou por ele; fiq uei esperando; ele voltou e começou a aparar sua pena,
como se nem me visse. E eu insisti ainda em meu assunto: será q ue não
poderia mesmo, Piotr Petróvitch , dar um jeitinh o? E ele continuou calado,
como se não me ouvisse; e eu fiq uei lá postado e acabei pensando: “ E se
tentasse pela última vez ? ” , e lh e pux ei a manga. E ele não disse seq uer uma
palavra: terminou de aparar sua pena e se pôs a escrever, e eu me afastei
dele. Está vendo, mãez inh a: talvez eles todos sejam pessoas decentes, só
q ue são orgulh osos, bem orgulh osos — não fico nem perto deles! Nós dois
não estamos nem perto deles, Várenka! Foi por essa raz ão q ue lh e escrevi
tudo isso. E Yemelian Ivânovitch também ficou rindo e abanou a cabeça,
porém me reconfortou amistosamente. Yemelian Ivânovitch é um h omem
decente. Prometeu q ue me indicaria a um h omem; aq uele h omem, Várenka,
mora no Vý borgski53 e também empresta dinh eiro a juros; é um servidor de
décima q uarta classe, ao q ue parece. Yemelian Ivânovitch diz q ue aq uele ali
me emprestará com certez a: irei atrás dele amanh ã, meu anjinh o, q ue tal? O
q ue ach a? É q ue fará muito mal ficar sem empréstimo, não é? Por pouco a
locadora não me enx ota do apartamento e nem consente em servir-me o
almoço. E minh as botas estão muito ruins, mãez inh a, e nem botõez inh os eu
tenh o… e não são poucas as coisas q ue não tenh o ainda! E se algum dos
superiores reparar em semelh ante indecência, h ein? Que desgraça, Várenka,
q ue desgraça: é simplesmente uma desgraça!
M ak ar D êvuch k in.

4 de ag osto.
Querido Makar Alex éievitch !
Pelo amor de Deus, Makar Alex éievitch , veja se pede emprestado, o
mais rápido possível, q ualq uer dinh eiro q ue puder: não lh e pediria, por nada
neste mundo, ajuda nas atuais circunstâncias, mas se o senh or soubesse
como está a minh a situação! Não podemos mais, de maneira alguma,
permanecer neste apartamento. Tive problemas h orribilíssimos, e se o
senh or soubesse como estou agora abalada e transtornada! Imagine, amigo
meu: h oje, pela manh ã, entra em nossa casa um h omem desconh ecido, já
idoso, q uase um ancião, com ordens no peito. Fiq uei perplex a, sem entender
de q ue ele precisava em nossa casa. Fedora h avia ido, nesse meio-tempo, a
uma lojinh a. Ele começou a indagar-me, como eu vivia e o q ue faz ia, e, sem
esperar pela minh a resposta, declarou q ue era o tio daq uele oficial, q ue
estava muito z angado com o sobrinh o por causa de sua má conduta e por
nos ter denegrido perante o prédio inteiro; disse q ue aq uele sobrinh o era um
meninão, uma cabeça de vento, e q ue ele mesmo estava pronto a garantir-
me a sua proteção; sugeriu q ue eu não desse ouvidos aos rapaz es,
acrescentou q ue tinh a pena de mim, como se fosse meu pai, q ue nutria
sentimentos paternos por mim e se dispunh a a prestar-me todo tipo de
ajuda. Eu enrubescia toda, não sabia nem o q ue pensar, mas tampouco me
apressava a agradecer. E ele me segurou forçadamente a mão, alisou minh a
boch ech a, disse q ue era muito bonitinh a e q ue ele estava ex tremamente
contente de eu ter covinh as nas faces (sabe lá Deus o q ue mais disse! ) e,
finalmente, q uis beijar-me alegando q ue já era velh o (estava tão
asq ueroso! ). Foi então q ue Fedora entrou. Ele se confundiu um pouco e
tornou a diz er q ue sentia respeito por mim, devido à minh a modéstia e à
minh a boa educação, e q ueria muito q ue não me esq uivasse dele. Depois
ch amou Fedora à parte e q uis, sob algum pretex to estranh o, dar algum
dinh eiro a ela. É claro q ue Fedora não o aceitou. Por fim, ele se aprontou
para ir embora, repetiu, mais uma vez , todas as suas asseverações, disse q ue
me visitaria de novo e me traria um par de brincos (parece q ue estava, ele
mesmo, bastante confuso); sugeriu q ue eu mudasse de apartamento e me
indicou uma ex celente morada, na q ual estava de olh o e q ue não me
custaria nada; disse q ue gostava muito de mim por ser uma moça h onesta e
sensata, aconselh ou-me a desconfiar dos jovens devassos e declarou, afinal,
q ue conh ecia Anna Fiódorovna, a q ual o teria incumbido de me diz er q ue
ela própria me visitaria também. Então compreendi tudo. Nem sei o q ue se
deu comigo, foi pela primeira vez na vida q ue fiq uei numa situação dessas;
perdi a compostura e deix ei o velh o todo envergonh ado. Fedora me ajudou
e q uase o enx otou do apartamento. Concluímos q ue aq uilo tudo era obra de
Anna Fiódorovna; senão, como ele teria ficado sabendo de nós?
Agora me dirijo ao senh or, Makar Alex éievitch , e rogo q ue me ajude.
Não me abandone, pelo amor de Deus, numa situação dessas! Peça um
empréstimo, por favor, arranje, pelo menos, algum dinh eiro, q ue não temos
com q ue mudar de apartamento nem podemos mais morar nele, de jeito
nenh um, e Fedora também sugere q ue façamos isso. Precisamos, no
mínimo, de uns vinte e cinco rublos; vou devolver-lh e esse dinh eiro; vou
ganh á-lo; Fedora conseguirá, dia desses, ainda mais encomendas para mim,
de modo q ue, se o senh or ficar h esitando por causa dos juros altos, não
repare neles e aceite todas as condições. Devolverei tudo ao senh or, mas
apenas, pelo amor de Deus, não me negue a sua ajuda. Muito me custa
incomodá-lo, agora q ue está em tais circunstâncias, mas é tão só no senh or
q ue deposito todas as minh as esperanças! Adeus, Makar Alex éievitch :
pense em mim, e q ue Deus lh e dê bom êx ito!
V .D .

4 de ag osto.
Varvara Alex éievna, minh a q ueridinh a!
Pois são todos aq ueles golpes inesperados q ue me abalam! Pois são tais
calamidades h orríveis q ue trucidam este meu espírito! Não basta ainda q ue
essa ch usma de lambe-botas diversos e velh otes nojentos q ueira arrastar
você, meu anjinh o, para o leito de perversão, mas, além disso tudo, eles
q uerem acabar, esses lambe-botas, comigo também. E acabarão mesmo
comigo: faço meu juramento de q ue acabarão, sim! Até h oje em dia estou
disposto antes a morrer q ue a deix ar de ajudá-la. Se não a ajudar, será
minh a morte, Várenka, será minh a morte pura e verdadeira, porém, se a
ajudar, você partirá voando, q ual um passarinh o a sair do seu ninh o, q ue
elas, essas corujas e outras aves feroz es, pretendem matar a bicadas. É isso
aí q ue me atormenta, mãez inh a. E você mesma, Várenka, como você
mesma é cruel! Como é q ue faz isso? Eles a torturam, eles a magoam, e
você, meu passarinh o, está sofrendo e, ainda por cima, fica aflita por ter de
me incomodar a mim, e também me promete pagar a dívida com o dinh eiro
ganh o, ou seja, para diz er a verdade, promete q ue se matará de trabalh ar,
com essa sua saúde fraq uinh a, para me socorrer a tempo. Mas pense apenas,
Várenka, no q ue vem diz endo! Por q ue é q ue teria de costurar, por q ue
trabalh aria atenaz ando sua pobre cabecinh a com tais afaz eres, estragando
seus olh inh os bonitos e destruindo a sua saúde? Ah , Várenka, Várenka: está
vendo, minh a q ueridinh a, q ue não presto eu para nada, e sei, eu mesmo, q ue
não presto para nada, mas farei q ue fiq ue prestando, sim! Hei de superar
tudo, vou arranjar umas tarefas ex tras, copiar diversos papéis para vários
literatos, irei atrás deles, irei por mim mesmo e farei q ue me contratem, pois
eles lá, mãez inh a, buscam por bons copistas, bem sei q ue buscam e não
deix arei q ue você se ex tenue, não permitirei q ue cumpra um intento tão
pernicioso assim. Pois eu, meu anjinh o, pedirei sem falta um empréstimo e
prefiro morrer a deix ar de pedi-lo. E você me escreve também, minh a
q ueridinh a, q ue não tenh o de temer os juros altos, e não os temerei mesmo,
mãez inh a, não os temerei, nada temerei de agora em diante. Pedirei,
mãez inh a, q uarenta rublos em papel-moeda; não seria muito, Várenka, o
q ue ach a? Será q ue se pode confiar q uarenta rublos a mim assim, com a
primeira palavra dita? Ou seja, q uero perguntar se você me considera capaz
de impor, à primeira vista, confiança e segurança. Será q ue se pode julgar
de mim, pela fisionomia e à primeira vista, de modo favorável? Lembre aí,
meu anjinh o, se sou capaz de me impor! O q ue é q ue está ach ando você
mesma? É q ue sinto um medo assim, mórbido, e digo em plena consciência
q ue é mórbido, sabe? Desses q uarenta rublos, reservo vinte e cinco para
você, Várenka; pagarei dois rublos à locadora e vou destinar o resto às
minh as despesas próprias. Está vendo q ue me cumpriria dar mais dinh eiro à
locadora, e seria até necessário, mas veja se pondera o negócio todo,
mãez inh a, e calcula todas as minh as necessidades, então vai perceber q ue
não poderei dar nenh um dinh eiro a mais; por conseguinte, não tenh o mais
de falar nisso nem seq uer de mencioná-lo. Com um rublo de prata,
comprarei um par de botas: nem sei se serei capaz de ir amanh ã à repartição
com minh as botas antigas. Precisaria ainda de um lencinh o para meu
pescoço, q ue o antigo já vai completar um ano dentro em pouco, mas, como
você prometeu talh ar para mim, do seu avental velh inh o, não apenas um
lenço, mas também um peitilh o, não vou mais nem pensar nesse lenço. Pois
então, já temos as botas e o lenço aq ui. Agora vêm os botõez inh os, minh a
amiguinh a! É q ue vai concordar, minh a peq uerruch a, q ue não posso andar
sem botõez inh os, mas foi q uase metade deles q ue caiu de um lado! Fico
tremendo ao pensar q ue Sua Ex celência pode reparar em tal desordem e
diz er… e diz er uma coisa tal! Nem ouvirei, mãez inh a, o q ue ele me dirá,
pois morrerei, morrerei logo, no mesmo lugar: morrerei assim, mui
simplesmente, de tanta vergonh a, só de pensar naq uilo! Oh , mãez inh a! E
ainda me sobrará, satisfeitas todas as necessidades, uma nota de três rublos,
e com ela vou custear minh a vida e comprar meia libraz inh a de fumo, q ue
não sei, meu anjinh o, viver sem fumo, e já vai para nove dias q ue não
abocanh o mais um cach imbo. J á o teria comprado, seja dita a verdade, sem
diz er nada a você, mas estou com vergonh a. É q ue você fica aí em apuros,
privada dos últimos meios seus, e eu cá me deleito com vários praz eres, e
digo-lh e isto tudo justamente para q ue os remorsos não me aflijam.
Confesso-lh e francamente, Várenka, q ue estou agora numa situação deveras
calamitosa, ou seja, nunca se deu ainda comigo, decididamente, nada de
parecido. A locadora me desprez a, ninguém me respeita de modo algum;
vivo numa penúria terribilíssima, endividado; q uanto à minh a repartição,
onde nem antes tive nenh uma máslenitsa54 ao lado dos meus confrades
servidores, agora, mãez inh a, não tenh o nem de falar nela. Escondo, faço
q uestão de esconder tudo de todos e me escondo também, eu mesmo, e só
passo assim, às escondidinh as, q uando venh o à minh a repartição, e me
afasto de todos. Só para lh e confessar é q ue me basta ainda minh a força
espiritual… E se ele me recusar o empréstimo, h ein? Mas não, é melh or,
Várenka, nem pensar nisso, matando de antemão, com tais pensamentos,
esta minh a alma. Escrevo-lh e isto justamente para preveni-la, para você
mesma não pensar nisso nem se afligir com esse pensamento maligno. Ah ,
meu Deus, o q ue se daria então com você? É verdade q ue não deix aria
então seu apartamento, e eu permaneceria ao seu lado… mas não, nesse
caso eu não voltaria mais, simplesmente desapareceria, sumiria algures. J á
escrevi demais aq ui, mas preciso ainda faz er a barba para ficar mais bem-
apessoado, pois q uem for bem-apessoado sempre se dá melh or. Pois bem,
q ueira Deus! Agora rez ar, e vou lá!
M . D êvuch k in.
5 de ag osto.
Caríssimo Makar Alex éievitch !
Tomara q ue ao menos o senh or não se desespere! J á bastam essas
desgraças para a gente. Envio-lh e trinta copeq ues de prata: não posso enviar
mais dinh eiro, de jeito nenh um. Compre aí o q ue mais lh e for necessário
para sobreviver bem ou mal, pelo menos, até amanh ã. Quase não sobra mais
nada, aq ui conosco também, e nem sei o q ue será amanh ã. Que coisa triste,
Makar Alex éievitch ! De resto, não se entristeça: se não deu certo, faz er o
q uê? Fedora diz q ue não faz mal ainda, q ue podemos ficar neste
apartamento por ora, q ue, mesmo se nos mudássemos, nosso ganh o não
seria tão grande assim, e q ue, se eles q uiserem, vão encontrar a gente em
q ualq uer lugar. Só q ue, ainda assim, não é bom agora continuarmos por
aq ui. Se eu não estivesse tão triste, escreveria alguma coisa para o senh or.
Mas q ue caráter estranh o é q ue tem, Makar Alex éievitch ! Toma
demasiadamente tudo a peito, portanto sempre será um h omem muitíssimo
infeliz . Leio todas as suas cartas com atenção e vejo q ue se preocupa e se
aflige tanto comigo, em cada carta sua, como jamais se preocupou consigo
mesmo. Todos dirão, com certez a, q ue seu coração é bondoso, mas eu cá
direi q ue é bondoso demais. Dou-lh e, pois, um conselh o amigável, Makar
Alex éievitch . Agradeço ao senh or, muito lh e agradeço tudo o q ue fez por
mim e sinto isso tudo com muita força; julgue, pois, q uanto me custa ver
q ue mesmo agora, depois de todas as suas angústias das q uais fui uma causa
fortuita, q ue mesmo agora só vive o q ue estou vivendo: minh as alegrias,
meus pesares, meu coração! Quem tomar tanto a peito tudo o q ue h ouver de
alh eio, q uem se compadecer tanto de tudo, terá por q ue ser, palavra de
h onra, muitíssimo infeliz .Hoje, q uando veio à minh a casa após o
ex pediente, fiq uei assustada ao vê-lo. Estava tão pálido, amedrontado,
desesperado: estava desfigurado, e tudo porq ue temia contar para mim
sobre seu malogro, temia deix ar-me entristecida e assustada, mas, q uando
me viu q uase risonh a, q uase se sentiu aliviado. Makar Alex éievitch ! Não se
aflija nem se desespere, seja mais sensato: é o q ue lh e peço, é o q ue lh e
imploro. Ainda vai ver q ue tudo ficará bem, q ue tudo mudará para melh or,
senão lh e será tão penoso viver, sempre angustiado e doente por causa dos
pesares de outrem. Adeus, meu amigo: imploro q ue não se preocupe demais
comigo.
V .D .

5 de ag osto.
Minh a q ueridinh a Várenka!
Pois bem, meu anjinh o, pois bem! Você decidiu q ue, embora não tenh a
eu conseguido aq uele dinh eiro, não faz ia ainda mal. Pois bem: estou
tranq uilo, estou feliz por você. Até mesmo contente porq ue não me
abandona, velh o q ue sou, e continuará morando nesse apartamento. E, se
disser tudo mesmo, meu coração se ench eu todo de alegria q uando a vi
escrever tão bem sobre mim, nessa sua cartinh a, e elogiar estes meus
sentimentos de modo devido. Não digo isto por orgulh o, mas por ver como
você me ama, já q ue se preocupa tanto com meu coração. Pois bem, não
adianta agora falarmos do meu coração! O coração é um caso à parte, mas
você manda aí, mãez inh a, q ue eu não seja pusilânime. Sim, meu anjinh o,
talvez diga eu mesmo q ue ela é dispensável, a tal da pusilanimidade, mas,
ainda assim, julgue você, minh a mãez inh a, com q uais botas irei amanh ã à
minh a repartição! É isso aí, mãez inh a, e um pensamento desses pode acabar
com uma pessoa, pode destruí-la completamente. E o principal, minh a
q uerida, é q ue não fico angustiado comigo nem sofro por mim mesmo: não
me importaria andar, com um frio de rach ar, sem capote nem botas,
aguentaria e suportaria q ualq uer coisa, e nada se faria comigo, porq uanto
sou um h omem simples, peq ueno, mas o q ue diriam os outros? O q ue
diriam meus inimigos, todas aq uelas más línguas, se eu andasse assim, sem
capote? É q ue a gente usa o capote pelos outros e calça as botas, q uiçá, por
eles também. E nesse caso, mãez inh a, meu benz inh o q uerido, as botas me
são necessárias para sustentar minh a h onra e minh a boa reputação, pois, se
usasse tais botas furadas, pereceriam ambas: acredite em mim, mãez inh a,
acredite em minh a ex periência de muitos anos, e veja se me escuta a mim,
este velh o q ue conh ece o mundo e as pessoas, e não alguns escribas e pinta-
monos por aí.
Ainda não lh e contei, aliás, por miúdo, mãez inh a, como tudo isso, no
fundo, acontecera h oje nem o q ue eu tivera de aturar. E aturei tanta coisa, e
carreguei tanto peso moral numa manh ã só q ue alguém não o carregaria
nem durante um ano inteiro. Aconteceu o seguinte: fui lá, em primeiro
lugar, bem cedinh o, para encontrá-lo ali e não ch egar depois atrasado à
minh a repartição. E h oje ch ovia tanto, h avia tamanh a lama! E eu me
envolvia, minh a yássotch k a, em meu capote e caminh ava pensando, o
tempo todo: “ Senh or, perdoai-me, digamos, todas as minh as pech as e
mandai para mim a realiz ação dos desejos” . Passei perto da igreja de –sk,
fiz o sinal da cruz , confessei todos os meus pecados e recordei q ue era
indecoroso eu barganh ar assim com Deus nosso Senh or. Mergulh ei então
em meu âmago e não q uis mais olh ar para nada, caminh ando dessa maneira,
sem ver o caminh o. As ruas estavam vaz ias, e q uem aparecia pelo caminh o
estava atarefado, assoberbado, e não seria de admirar: q uem é q ue passearia
tão cedo e com um tempo daq ueles? Uma artel55 de operários imundos
deparou-se comigo; como eles me empurraram, aq ueles boçais! Fiq uei
intimidado, depois apavorado, e não q ueria mais, para diz er a verdade, nem
pensar em dinh eiro, ocorresse o q ue ocorresse! E foi perto da ponte
Voskressênski q ue uma das minh as solas se desprendeu, de sorte q ue nem
sei, eu mesmo, como continuei andando. E foi então q ue nosso copista
Yermoláiev topou comigo e ficou lá plantado, todo esticado, e me seguiu
com os olh os, como se me pedisse alguns trocados para comprar vodca: eh ,
maninh o, pensei eu, mas q ue vodca, q ue vodca é q ue poderia ser essa? Parei
por um tempo, h orrivelmente cansado, e descansei um pouco; depois me
arrastei adiante. Olh ava de propósito ao redor, buscando a q ue grudaria
meus pensamentos para me distrair e me animar, mas não: nenh um
pensamento é q ue consegui grudar em coisa alguma e, ainda por cima,
fiq uei tão sujo q ue acabei por me envergonh ar comigo mesmo. Avistei
finalmente, de longe, uma casa de madeira, amarela, com um mez anino tipo
belvedere — pois é, pensei, é aq uilo ali, foi assim q ue Yemelian Ivânovitch
disse! —, e era a casa de Márkov. (É ele próprio, mãez inh a, aq uele Márkov
q ue empresta dinh eiro a juros.) Não me lembrava mais nem de mim
mesmo, naq uele momento, e, apesar de saber q ue era a casa de Márkov,
perguntei a um vigia, ainda assim, de q uem, digamos, era aq uela casa,
maninh o. E o vigia é tão grosseiro q ue até fala de má vontade, como se
estivesse z angado com alguém, e coa palavras por entre os dentes: pois é,
diz , é a casa de Márkov. Todos os vigias são tão insensíveis, aliás, mas o
q ue tenh o a ver com aq uele vigia ali? E toda a impressão minh a já vinh a
sendo ruim e desagradável, e se juntavam, numa palavra, todas as pontas:
dá para deduz ir de q ualq uer coisa algo semelh ante à situação da gente, e
sempre acontece uma coisa dessas. Passei, pois, três vez es pela rua, na
frente daq uela casa, e, q uanto mais andava, tanto pior me sentia: não,
pensei, ele não vai emprestar para mim, faça eu o q ue fiz er! Sou um h omem
desconh ecido, e meu negócio é melindroso, e minh a cara não é nada
simpática: pois bem, pensei, seja como o destino resolver, contanto q ue não
me arrependa apenas mais tarde (e não me comerão, afinal, por tentar! ) e…
abri devagarinh o a portinh ola. E eis q ue me sobreveio outra desgraça:
correu ao meu encontro um cach orrinh o, um vira-lata assim, sarnento e
bobo, e ficou latindo q uase até sair daq uela sua pele. E são justamente tais
casos miúdos e vis q ue enraivecem sempre um h omem, mãez inh a, q ue o
deix am ch eio de timidez e arrasam toda a firmez a q ue tiver ponderado de
antemão, de sorte q ue entrei naq uela casa mais morto q ue vivo, entrei e,
para mal dos pecados, ainda não vi direito o q ue estava embaix o, naq uela
escuridão, à soleira: pisei lá e tropecei numa baba q ualq uer, e ela estava
vertendo leite do balde para umas jarras e acabou derramando o leite todo.
Guinch ou, pois, e taramelou aq uela baba estúpida — onde é q ue se mete,
digamos, meu q ueridinh o, o q ue está q uerendo? — e foi ch oramingando
acerca da coisa ruim. Eu, mãez inh a, anoto isso porq ue sempre me ocorrem
tais coisas nos negócios dessa espécie: parece q ue esta é minh a sina, a de
tropeçar sempre em q ualq uer coisa ali. Então, com aq uele barulh o, uma
velh a brux a tch uk h onk a, a dona da casa, botou a cabeça para fora, e
perguntei logo a ela: é aq ui, digamos, q ue mora Márkov? Não, ela disse;
ficou parada, ex aminou-me de todos os lados. “ O q ue q uer dele? ” Ex pliq uei
para ela: assim, digamos, e assado, Yemelian Ivânovitch e todo o resto;
tenh o, digo, um negocinh o a tratar com ele. A velh a ch amou pela filh a; veio
também sua filh a, uma moça já adulta, descalça: “ Ch ama teu pai… ele está
lá em cima, com os inq uilinos, digne-se a entrar” . Entrei. Um q uarto
decente, umas pinturaz inh as estão penduradas nas paredes, retratos de
alguns generais, h á um sofá, uma mesa redonda, h á resedá e não-me-
toq ues… fiq uei pensando, pensei se não me cabia dar logo o fora, antes q ue
piorasse, se devia partir ou ficar, e já q ueria (juro-lh e, mãez inh a) fugir.
Melh or seria, pensei, q ue retornasse no dia seguinte: o tempo estaria
melh or, e eu mesmo me recomporia, e h oje… o leite está derramado e os
generais olh am para mim tão z angados… E já estava perto da porta, mas
então ele entrou, um sujeitinh o q ualq uer, de cabelos meio grisalh os e
olh inh os um tanto safados, vestindo um roupão ensebado, cingido com uma
corda. Indagou por q ue e como; eu respondi: assim, digamos, e assado,
Yemelian Ivânovitch … uns q uarenta rublos, disse, pois o negócio… e nem
terminei de falar. Vi, pelos olh os dele, q ue o negócio estava perdido. “ Não,
disse ele, é q ue não tenh o dinh eiro, coisa nenh uma. Será q ue o senh or tem
algum penh or aí? ” . Comecei a ex plicar q ue não tinh a penh or, não, mas q ue
Yemelian Ivânovitch … e ex pliq uei, numa palavra, o q ue me era preciso.
Não, disse ele ao ouvir tudo, q ue Yemelian Ivânovitch , q ue nada: não tenh o
dinh eiro e acabou-se! Pois é, pensei, é isso aí, já sabia disso, estava já
pressentindo, mas simplesmente, Várenka, seria melh or q ue o ch ão se
abrisse embaix o de mim: senti tanto frio, e meus pés ficaram gelados, e um
calafrio me passou pelas costas. Olh o, pois, para ele, e ele olh a para mim e
só por pouco não diz : digamos, vá indo, maninh o, q ue não tem nada a faz er
aq ui, de modo q ue, se o mesmo me ocorresse em outro caso q ualq uer, eu
me envergonh aria para valer. Mas por q ue, meu senh or, por q ue precisa de
dinh eiro? (Foi isso, sim, q ue ele me perguntou, mãez inh a! ). J á abria a boca,
apenas para não ficar lá parado, mas ele nem me escutou: não, disse, não
tenh o dinh eiro, senão lh e emprestaria com todo o praz er. E como esmiucei
o assunto na frente dele, como o esmiucei, diz endo q ue era só um
pouq uinh o, q ue lh e devolveria tudo no praz o certo e mesmo antes do praz o,
q ue podia cobrar os juros q ue lh e aprouvessem, mas eu devolveria tudo,
ainda assim, e jurei por Deus. Lembrei-me de você, mãez inh a, naq uele
momento, de todas as suas desgraças e necessidades, e do seu poltí nnitch ek
também; não, disse ele, sejam q uais forem os juros, mas um penh or cairia
melh or! É q ue não tenh o dinh eiro, disse, juro por Deus q ue não tenh o,
senão lh e emprestaria com gosto: ainda jurou por Deus, aq uele ladrão!
Então, minh a q uerida, nem lembro mais como saí de lá, como atravessei
o Vý borgski, como acertei a ponte Voskressênski; fiq uei h orrivelmente
cansado, congelado, tiritando de frio, e foi apenas às dez h oras q ue ch eguei
à minh a repartição. Queria já limpar minh as roupas daq uela lama, porém
Sneguiriov, o vigilante, disse q ue não podia, q ue estragaria a escova, e a
escova, meu senh orz inh o, disse ainda, era um bem público. É assim q ue se
fala agora, mãez inh a; agora sou, para aq ueles senh ores, q uase pior do q ue o
trapinh o com q ue se limpam os pés. O q ue é, pois, q ue me mata, Várenka?
Não é o dinh eiro q ue me mata, mas todas aq uelas angústias cotidianas,
todos aq ueles coch ich os, sorrisinh os e ch istez inh os. E Sua Ex celência pode
também, ocasionalmente, pensar algo a meu respeito: oh , mãez inh a, mas já
se foi a minh a época de ouro! Hoje reli todas as suas cartas: q ue tristez a,
mãez inh a! Adeus, q uerida, q ue nosso Senh or a resguarde!
M . D êvuch k in.
P. S.: Mas q ue desgraça, Várenka, h ein? Queria descrever tudo de
mistura com alguma brincadeirinh a, porém dá para ver q ue nenh uma
brincadeirinh a vem a calh ar. Queria só agradar a você. Mas vou visitá-la,
mãez inh a, vou visitá-la sem falta, amanh ã mesmo.

1 1 de ag osto.
Varvara Alex éievna, minh a q ueridinh a, mãez inh a! Estou perdido;
estamos perdidos, nós dois juntos, irremediavelmente perdidos. Minh a
reputação, minh a dignidade: está tudo perdido! É meu fim, mãez inh a, e seu
fim também, seu fim irremediável junto comigo! E fui eu, fui eu q uem a
levou à perdição! Eis q ue me vejo enx otado, mãez inh a, desprez ado,
escarnecido, e a locadora anda simplesmente a x ingar-me: gritou h oje
comigo, gritou muito, passou um sabão em mim, um sabão daq ueles, e me
pôs abaix o de q ualq uer lasca de madeira. E de noite, no q uarto de
Rataz iáiev, um deles começou a ler, em voz alta, o rascunh o de uma das
minh as cartas a você e deix ou-o cair, como q ue por acaso, do bolso. Mas
q ue galh ofa é q ue eles fiz eram, minh a mãez inh a! Comentaram lá sobre nós,
comentaram e gargalh aram, gargalh aram, aq ueles traidores! Entrei no
q uarto e acusei Rataz iáiev de perfídia: disse-lh e q ue era um traidor! E
Rataz iáiev me respondeu q ue eu mesmo era um traidor, q ue mex ia ali com
diversas conq uêtes,56 diz endo q ue me escondia deles e era um Lovelace,57 e
agora todos me ch amam de Lovelace e não tenh o mais outro nome! Está
ouvindo, meu anjinh o, está ouvindo? Agora eles sabem de tudo, estão
cientes de tudo e sabem de você também, minh a q uerida, e de tudo mesmo,
de tudo q uanto você tem tido. E não só isso! Faldoni também está do lado
deles: mandei h oje q ue fosse a uma salsich aria, assim, para traz er umas
coisas de lá, só q ue ele não foi e ponto-final, disse q ue tinh a algo a faz er.
“ Mas é sua obrigação, não é? ” , digo eu. “ Obrigação, coisa nenh uma” , diz
ele: “ como o senh or não paga à minh a patroa, tampouco lh e fico devendo” .
Não aguentei, pois, a ofensa dele, daq uele mujiq ue58 bronco, e disse q ue era
tolo, e ele me respondeu: “ Do tolo é q ue ouvi” . Pensei q ue ele me tinh a dito
uma grosseria dessas por estar bêbado e retorq ui: você está bêbado, seu
mujiq ue assim e assado, e ele rebateu: “ E foi o senh or, por acaso, q uem me
embebedou? Será q ue tem aí, o senh or mesmo, com q ue cortar a ressaca?
Não anda lá pedindo, por Cristo, uma g rivnaz inh a q ualq uer a uma
daq uelas? ” e acrescentou ainda: “ Eh , mas q ue coisa, e ainda é dos
senh ores! ” . Eis, mãez inh a, até onde as coisas foram! É vergonh oso viver
desse jeito, Várenka, como se eu fosse algum maluco, pior do q ue um
vagabundo sem passaporte. Minh as desgraças! Estou perdido, simplesmente
perdido; perdido irremediavelmente.
M .D .

1 3 de ag osto.
Caríssimo Makar Alex éievitch ! Só h á infortúnios e mais infortúnios,
aq ui conosco, e nem mesmo sei mais o q ue faz er! O q ue será do senh or
agora, e não pode contar muito comigo: q ueimei h oje meu braço esq uerdo
com o ferro de passar, deix ei-o cair por acaso e me mach uq uei e me
q ueimei, tudo junto. Não posso mais trabalh ar, e já vai para três dias q ue
Fedora está doente. A inq uietude me atenaz a. Envio trinta copeq ues de
prata ao senh or: é q uase o último dinh eiro q ue temos, mas, seja Deus
testemunh a, tanto me apeteceria socorrê-lo agora em suas necessidades.
Estou desgostosa até ch orar! Adeus, meu amigo! O senh or me consolaria
muito se viesse h oje à nossa casa.
V .D .

1 4 de ag osto.
Makar Alex éievitch ! Mas o q ue é q ue o senh or tem? Decerto não teme a
Deus, é isso? Acabará simplesmente por me enlouq uecer. Será q ue não tem
vergonh a? Está acabando consigo: pense só em sua reputação! É um
h omem h onesto, nobre e digno, e se todos ficarem sabendo do senh or? Terá
então de morrer, simplesmente, de tanto vex ame! Será q ue não tem pena
desses seus cabelos brancos? Será q ue não teme mesmo a Deus? Fedora
disse q ue agora não ia mais ajudar o senh or, nem eu cá lh e darei mais
dinh eiro algum. Aonde foi q ue me levou, Makar Alex éievitch ? Está
ach ando, por certo, q ue não me importo com essa sua conduta ruim, mas
não sabe ainda o q ue tenh o aturado por sua causa! Não posso mais nem
passar pela nossa escada: todos olh am para mim e me apontam com o dedo
e diz em coisas h orríveis; diz em às claras, sim, q ue me juntei a um beberrão.
Como me é ouvir essas coisas? Quando o traz em para cá, todos os
inq uilinos o apontam com desprez o: eis ali, diz em, troux eram aq uele
servidor. E não suporto mais tanta vergonh a por sua causa. J uro-lh e q ue me
mudarei daq ui. Vou trabalh ar em algum lugar, como camareira ou lavadeira,
mas não ficarei mais aq ui. J á lh e escrevi pedindo q ue passasse pela minh a
casa, mas o senh or não passou. Pelo visto, minh as lágrimas e meus pedidos
não são nada para o senh or, Makar Alex éievitch ! E onde foi q ue conseguiu
dinh eiro? Cuide-se, pelo Criador! Senão vai perecer, perecer por nada! E
q uanta vergonh a, e q uanto vex ame! Sua locadora nem q uis deix á-lo entrar
ontem, e o senh or pernoitou no sêni: eu sei de tudo. Se o senh or soubesse
como fiq uei consternada ao saber disso tudo! Venh a cá, pois, q ue ficará
alegre conosco: vamos ler juntos, vamos lembrar o passado. Fedora vai
contar sobre as suas peregrinações de devota. Por mim, meu q ueridinh o:
não se destrua nem me destrua a mim! É q ue só vivo pelo senh or; pelo
senh or é q ue permaneço ao seu lado. E agora faz uma coisa dessas! Seja,
pois, um h omem nobre, firme em meio às provações, e lembre-se de a
pobrez a não ser um pecado.59 E por q ue se desespera tanto assim? É tudo
passageiro! Tudo se consertará, se Deus q uiser, apenas se segure por ora.
Envio-lh e duas g rivnas; compre tabaco ou tudo q uanto lh e apetecer, mas
apenas, pelo amor de Deus, não as gaste com coisas ruins. E venh a à casa
da gente, venh a sem falta. Talvez se sinta envergonh ado como dantes, mas
não se envergonh e, q ue essa é uma vergonh a falsa. Tomara apenas q ue o
senh or traga um arrependimento sincero. Confie em Deus: Ele mudará tudo
para melh or.
V .D .

1 9 de ag osto.
Varvara Alex éievna, mãez inh a!
Estou com vergonh a, minh a yássotch k a Varvara Alex éievna, com muita
vergonh a. Mas, aliás, o q ue h á de especial nisso, mãez inh a? Por q ue eu não
alegraria mesmo este meu coração? Nem penso então nestas minh as solas,
q ue a sola é uma bobagem e sempre será uma simples sola vil e suja. E
minh as botas também são uma bobagem! Até os sábios gregos andavam
sem botas, então por q ue nossa laia se importaria aq ui com uma matéria tão
indigna? Por q ue me magoariam, por q ue me desprez ariam nesse caso,
h ein? Eh , mãez inh a, mãez inh a, ach ou o q ue escrever! E diga a Fedora q ue é
uma baba briguenta, irreq uieta, desenfreada e, ainda por cima, boba,
inex primivelmente boba! No q ue diz respeito aos meus cabelos brancos,
nisso também você está enganada, minh a q uerida, porq ue não sou, nem de
longe, tão velh o q uanto está ach ando aí. Yemêlia lh e manda uma mesura.
Você escreve q ue se afligia, q ue estava ch orando, e eu cá lh e escrevo q ue
também me afligi e ch orei. Em conclusão, desejo-lh e toda a saúde e
prosperidade possível e, q uanto a mim, também estou saudável e próspero,
q uedando-me, meu anjinh o, seu amigo
M ak ar D êvuch k in.
2 1 de ag osto.
Prez ada senh orita e q uerida amiga Varvara Alex éievna!
Sinto q ue estou culpado, sinto q ue faltei com você, e não h á, a meu ver,
nenh um proveito, mãez inh a, em sentir tudo isso, diga você aí o q ue disser.
Ainda antes do meu desliz e é q ue sentia isso tudo, e eis q ue me desanimei e
me desanimei consciente da minh a culpa. Não sou maldoso nem cruel,
minh a mãez inh a, e para dilacerar esse seu coraçãoz inh o, minh a pombinh a, é
preciso ser, sem mais nem menos, um tigre sedento de sangue, e eu cá tenh o
um coração de ovelh a e não tenh o, conforme você também sabe, nenh um
impulso para ser sanguinário; por conseguinte, anjinh o meu, a culpa desse
meu desliz e não é totalmente minh a, tampouco do meu coração nem dos
meus pensamentos, e nem sei, na verdade, de q ue essa culpa seria. É um
assunto assim, obscuro, mãez inh a! Você me enviou trinta copeq ues de prata
e depois mais duas g rivnas, e meu coração ficou doendo q uando vi esse seu
dinh eirinh o de órfã. Queimou, você mesma, o bracinh o e vai passar fome
daq ui a pouco, mas escreve aí para eu comprar tabaco. Como é q ue me
portaria num caso desses, h ein? Começaria assim, sem remorso algum, tal e
q ual um ladrão, a roubá-la, minh a orfãz inh a? Foi então, mãez inh a, q ue me
desanimei, ou seja, logo de início, sentindo involuntariamente q ue não
prestava para nada e era eu mesmo, talvez , só um pouco melh or do q ue
minh a sola, julguei indecente tomar-me por algo significativo, mas, pelo
contrário, passei a considerar-me algo indecente e, em certo grau,
inconveniente. E q uando perdi respeito por mim mesmo e me dediq uei à
negação das minh as boas q ualidades e da minh a dignidade também,
então… q ue se perca tudo de vez , q ue venh a a ruína! Foi assim q ue o
destino predeterminou, e a culpa disso não é minh a. Primeiro saí para me
refrescar um pouq uinh o. E uma coisa veio pux ando a outra: e a naturez a
estava tão ch orosa assim, e o tempo estava frio, e ch ovia, e, por acaso,
Yemêlia também passava por lá. Ele, Várenka, já empenh ara tudo o q ue
tinh a, tudo o q ue era dele já fora àq uele mesmo lugar, e, q uando o
encontrei, já faz ia dois dias inteiros q ue nem um grãoz inh o de dormideira60
passava pela sua boca, de sorte q ue já q ueria empenh ar o q ue nem poderia,
de jeito nenh um, servir de penh or, porq ue tais penh ores nem ex istem na
face da Terra. Então, Várenka, é q ue lh e cedi antes por compaix ão pela
h umanidade q ue por meu gosto próprio. E foi assim q ue aconteceu tal
pecado, mãez inh a! Como nós dois ch oramos juntos! Lembramo-nos de
você. Ele é bondosíssimo, é um h omem muito bondoso e bastante sensível.
Eu mesmo, mãez inh a, estou sentindo isso tudo, e é bem por isso q ue tais
coisas se dão comigo volta e meia, pois sinto profundamente isso tudo. Bem
sei o q ue lh e devo, minh a q ueridinh a! Quando a conh eci, melh or conh eci,
em primeiro lugar, a mim mesmo e passei a amá-la, e antes de conh ecê-la,
meu anjinh o, estava só e como q ue dormia em vez de viver neste mundo.
Eles lá, malfeitores, andavam diz endo q ue até minh a fisionomia era
indecente e tinh am asco de mim, e eu mesmo ch eguei a ter asco de mim;
diz iam q ue era obtuso, e eu pensava mesmo q ue era obtuso, mas, q uando
você apareceu diante de mim, iluminou toda a minh a vida obscura, tanto
assim q ue meu coração e minh a alma ficaram iluminados, e adq uiri paz de
alma e soube q ue não era pior q ue os outros, q ue apenas não tinh a nada a
brilh ar nem lustre algum nem alto estilo, mas era, ainda assim, um h omem,
um h omem em meu coração e nos meus pensamentos. No entanto, agora
q ue me sinto perseguido pelo destino e me dedico, h umilh ado por ele, à
negação de minh a própria dignidade, agora me desanimei, sim, consternado
com minh as desgraças. E, como agora você sabe de tudo, mãez inh a,
imploro-lh e, com lágrimas, q ue não se interesse mais por essa matéria, pois
meu coração está para se dilacerar, e fico amargurado, angustiado.
Atesto-lh e, mãez inh a, meu respeito e continuo sendo seu fiel
M ak ar D êvuch k in.

3 de setembro.
Não terminei de escrever minh a carta anterior, Makar Alex éievitch ,
porq ue me era penoso escrevê-la. De vez em q uando, h á tais momentos de
minh a vida em q ue estou feliz de ficar soz inh a, triste e angustiada nesta
solidão q ue não compartilh o com outrem, e tais momentos vêm surgindo
cada vez mais freq uentes. Em minh as recordações h á algo tão inex plicável
para mim, algo q ue me atrai de modo tão inconsciente e tão forte, q ue passo
diversas h oras insensível a tudo q uanto me rodeia e me esq ueço de tudo, de
todo o presente. E não h á impressão nesta minh a vida de h oje, q uer seja
agradável, q uer seja penosa e triste, q ue não me recorde algo semelh ante em
meu passado, sendo, na maioria das vez es, minh a infância, minh a infância
de ouro! Contudo, sempre me sinto angustiada após tais momentos. Fico, de
certa forma, enfraq uecida, meus devaneios me deix am ex austa, e minh a
saúde se torna, já sem isso, cada vez pior.
Mas h oje foi esta manh ã fresca, clara, fulgente, uma das manh ãs q ue
são poucas aq ui no outono, q ue me vivificou, e passei-a com alegria. J á
estamos, pois, no outono! Como eu gostava daq uele outono no campo!
Ainda era uma criança, mas já então sentia muita coisa. Gostava do
entardecer outonal mais do q ue do amanh ecer. Lembro-me do lago q ue
ficava a dois passos da nossa casa, ao pé de uma colina. Aq uele lago — é
como se o visse agora —, aq uele lago era tão largo, claro e límpido, feito o
cristal! Às vez es, q uando o entardecer vem sereno, o lago permanece
calmo; nada se move nas árvores q ue crescem em sua margem, e sua água
está imóvel como um espelh o. Está fresco, ou melh or, faz frio! O orvalh o
cai sobre a relva, nas isbás61 da margem acendem-se umas luz inh as, o
rebanh o é conduz ido de volta; então saio de casa, às escondidas, para ir ver
meu lago e fico, às vez es, olh ando por muito tempo. Os pescadores
q ueimam um feix e q ualq uer de ch amiço, lá rente às águas, e a luz se espraia
longe, bem longe, por essas águas. O céu está tão frio, az ul e todo
recamado, pelas bordas, de faix as vermelh as, ígneas, e aq uelas faix as
empalidecem cada vez mais; a lua nasce; o ar está tão sonoro q ue dá para
ouvir tudo, q uer esvoace um passarinh o afugentado, q uer os juncos ressoem
sob um ventinh o bem leve, q uer um peix e agite a água com um barulh inh o.
E um vapor branco se ergue, tênue e transparente, sobre as águas az uis. Está
tudo escuro ao longe, como se submergisse numa neblina, porém está tudo
tão nítido, cá por perto, como q ue esculpido por um cinz el: uma barca, a
margem, as ilh as; um tonel largado, esq uecido rente à margem, fica
oscilando devagarinh o sobre a água, um ramo de salgueiro, com suas folh as
amareladas, enreda-se nos juncos; uma gaivota adeja, atrasada, ora
mergulh ando nas águas frias, ora alçando voo e sumindo naq uela neblina. E
fico olh ando, escutando por muito tempo, e me sinto maravilh osamente
bem! E era então apenas uma menina, uma criança! …
Gostava tanto do outono, daq uele outono tardio q uando os cereais já
estão colh idos, q uando todos os trabalh os estão terminados, q uando já se
faz em serões nas isbás e todo mundo espera pelo inverno. Então tudo se
torna mais sombrio, o céu escurece, anuviado, as folh as amarelas se
espalh am, como veredas, pelas ourelas da floresta desnuda, e a floresta
az uleia, negreja, sobretudo ao anoitecer, q uando desce uma neblina úmida e
as árvores transparecem naq uela neblina como alguns gigantes, como
fantasmas feios e pavorosos. Atraso-me, vez por outra, após um passeio,
fico atrás dos outros, caminh o soz inh a, com pressa, e estou com pavor! E
tremo, eu mesma, como uma folh a e penso q ue já, já algum ser medonh o
assomará daq uele oco de árvore; e, nesse meio-tempo, o vento passa
voando pela floresta, com aq uele barulh o, rugido e uivo tão lamentoso, e
arranca toda uma nuvem de folh as dos galh os secos, girando-as pelos ares,
e eis q ue um bando de aves voa, comprido e largo, tão barulh ento, em seu
encalço com um estridente grito selvagem, de sorte q ue o céu fica preto,
inteiramente coberto por elas. E fico assustada e como q ue ch ego a ouvir
uma voz , como se alguém estivesse lá coch ich ando: “ Corre, corre, criança,
não te atrases; logo será medonh o aq ui; vai, corre, criança! ” , e um pavor me
perpassa o coração, e corro, corro tanto q ue acabo perdendo o fôlego. E
venh o correndo, arfante, para casa; e minh a casa está barulh enta, alegre, e
todas nós, as crianças, recebemos algum trabalh o, ervilh as ou grãos de
dormideira a descascar. A lenh a úmida estala no forno; minh a mãez inh a
observa, alegre, nosso alegre trabalh o; a velh a babá Uliana nos conta sobre
os tempos idos ou umas h istórias terríveis sobre os feiticeiros e mortos-
vivos. E nós, as crianças, ficamos ali, apertando-nos uma à outra, mas todas
com um sorriso nos lábios. E nos calamos de supetão, todas juntas… escuta
aí, um ruído, como se alguém estivesse batendo! Mas nada disso: é a roda
de fiar da velh a Frólovna q ue está z umbindo, e q uantas risadas se ouvem
então! E depois, já de noite, não dormimos de tanto medo ou temos sonh os
tão h orrorosos assim. Acordo, por vez es, e não me atrevo nem a mex er-me
e tremo, até o amanh ecer, debaix o da minh a coberta. E me levanto pela
manh ã, fresca como uma florz inh a. Olh o pela janela: o frio congelou o
campo inteiro; aq uela fina geada outonal pende nos galh os desnudos; o lago
se cobriu de um gelo tão fino q uanto uma folh a, e um vapor branco se ergue
sobre o lago; alegres, as aves estão gritando. O sol brilh a, com seus raios
vivos em círculo, e aq ueles raios q uebram o gelo fino q ue nem vidro. O dia
está claro e luminoso, risonh o! O fogo estala outra vez no forno, e nos
sentamos todos junto do samovar, e eis q ue olh a pelas janelas, de vez em
q uando, o Polkan, nosso cach orro preto q ue passou muito frio à noite e
agita amigavelmente seu rabo. Um mujiq uez inh o passa perto das nossas
janelas, com seu cavalinh o ligeiro, indo cortar lenh a ali na floresta. Estão
todos tão contentes e tão feliz es! … Ah , mas minh a infância foi mesmo de
ouro! …
E eis q ue agora fiq uei ch orando como uma criança, de tão empolgada
com minh as recordações. Tão vivamente, mas tão vivamente é q ue me
lembrei de tudo, e todo o passado meu reapareceu tão nítido em minh a
frente, e meu presente é tão embaçado e tão escuro! … Como isso vai
acabar, como vai acabar isso tudo? Tenh o cá uma convicção, uma certez a
de q ue morrerei este outono, sabe? Estou muito, muito doente. Penso
amiúde q ue morrerei, mas não q uero, ainda assim, morrer desse jeito e ficar
jaz endo nesta terra. Talvez acabe caindo de cama como então, na primavera,
e ainda nem tive tempo para me recobrar. Agora também me sinto muito
aflita. Fedora está h oje o dia inteiro fora, e cá estou eu, soz inh a. E tenh o
medo, já faz algum tempo, de ficar soz inh a, pois me parece volta e meia
q ue mais alguém está comigo no q uarto, q ue alguém fala comigo, sobretudo
q uando fico cismando em alguma coisa e, de repente, acordo da minh a
cisma, de sorte q ue sinto medo. Foi por isso q ue lh e escrevi uma carta tão
longa assim: q uando estou escrevendo, aq uilo passa. Adeus; termino a carta
porq ue não tenh o mais nem papel nem tempo. Daq uele dinh eiro q ue ganh ei
com meus vestidos e o ch apeuz inh o, só me resta um rublo de prata. O
senh or deu dois rublos de prata à sua locadora; isso é muito bom, q ue agora
ela se calará por um tempo.
Veja se arruma, de algum modo, as suas roupas. Adeus; estou tão
cansada; não entendo por q ue enfraq ueço tanto, mas a menor tarefa me
cansa. E, se h ouver um trabalh o q ualq uer, como é q ue vou trabalh ar? É isso
q ue me mata.
V .D .

5 de setembro.
Minh a q ueridinh a Várenka!
Ex perimentei h oje, meu anjinh o, muitas impressões. Em primeiro lugar,
minh a cabeça ficou doendo o dia todo. Para me refrescar de alguma forma,
saí para dar uma volta ao longo do Fontanka.62 A tarde estava tão escura,
tão úmida. O crepúsculo cai já pelas seis h oras, como agora mesmo! Não
ch ovia, mas h avia uma neblina nada pior do q ue uma ch uva das boas. As
nuvens andavam pelo céu em faix as compridas e largas. Havia todo um
mundaréu na avenida marginal, e era, como q ue de propósito, aq uele povo
de rostos tão h orrorosos, q ue deix am a gente entristecida: mujiq ues
embriagados, babas tch uk h onk as com seus nariz es arrebitados, de botas e
sem ch apéus, operários das artels, coch eiros e nossa laia também, indo com
alguma necessidade; garotos, um aprendiz de serralh eiro vestindo um
roupão listrado, macilento, ach acadiço, de cara banh ada em fumaça de óleo
e com um cadeado na mão; um soldado reformado, de uma braça63 de altura
— eis como era o público. Decerto era uma h ora tal q ue nem podia h aver
outro público. E o Fontanka é um canal navegável! Tamanh a profusão de
barcas q ue nem dá para entender onde aq uilo tudo poderia caber. As babas
estão sentadas nas pontes com seus pães de mel ensopados e suas maçãs
podres, e são todas tão sujas e molh adas. É tedioso passear pelo Fontanka!
Um granito molh ado sob os pés e aq ueles prédios altos, pretos, fuliginosos
dos lados, e a mesma neblina debaix o dos pés e acima da cabeça. Que tarde
triste e escura foi h oje!
Quando dobrei a esq uina da rua Gorókh ovaia, já h avia escurecido
completamente e se começava a acender o gás. Faz ia já um tempinh o q ue
eu não passava pela Gorókh ovaia: não dava certo ir até lá. Uma rua agitada!
Que lojas, q ue armaz éns ricos, e tudo é fulgurante e reluz ente: tecidos e
flores nos mostruários e diversos ch apeuz inh os com fitas. A gente ach a q ue
tudo isso foi espalh ado assim, para enfeitar, mas não, nada disso, pois h á
q uem o compre e presenteie sua esposa com isso tudo. Uma rua opulenta!
Muitos padeiros alemães moram na Gorókh ovaia: também deve ser um
povo assaz abastado. E q uantas carruagens passam a cada minuto, e como é
q ue a calçada suporta aq uilo tudo? Os coch es são tão esplêndidos, e seus
vidros são como espelh os, e h á veludo e seda lá dentro, e os lacaios da
fidalguia portam dragonas e uma espada. Olh ei para dentro de todos aq ueles
coch es e vi lá damas com trajes tão lux uosos, talvez umas princesas e
condessas. Decerto era uma h ora tal q ue todo mundo se apressava a ir aos
bailes e às reuniões. É interessante ver uma princesa e, de modo geral, uma
dama ilustre de perto; é muito bom, com certez a; eu nunca vi nenh uma, a
menos q ue a tivesse visto como na ocasião, olh ando para dentro de um
coch e. Então me lembrei de você. Ah , minh a q uerida, minh a q ueridinh a!
Logo q ue me lembro de você agora, meu coração fica todo agoniado! Por
q ue, Várenka, é q ue está tão infeliz ? Anjinh o meu, mas em q ue você seria
pior do q ue eles todos? É bondosa, é linda, é instruída; por q ue é q ue tem
tido, pois, essa sina tão má? Por q ue acontece volta e meia q ue uma pessoa
boa se veja arrasada, enq uanto a tal da felicidade até se impõe, por si
mesma, a outra pessoa? Sei, mãez inh a, sei q ue não é bom pensar desse
jeito, q ue é um livre-pensamento, mas, para ser sincero, para diz er a
verdade toda, por q ue o destino corveja, feito uma gralh a, q ue tal pessoa
será feliz , q uando ela está ainda na barriga de sua mãe, enq uanto outra
pessoa entra no mundo de Deus ao sair de um orfanato? E acontece ainda
q ue a felicidade cabe freq uentemente a um Ivânuch ka, o bobinh o,64 da vida.
Digamos, tu, Ivânuch ka, o bobinh o, fica ali revirando os sacos de teu avô,
bebendo, comendo e te alegrando à beça, e tu, assim e assado, fica apenas
lambendo os beiços, q ue és assim mesmo, maninh o, q ue só prestas para
isso! É um pecado, mãez inh a, é um pecado pensar desse jeito, mas o pecado
é q ue se insinua assim, sem a gente q uerer, na alma da gente. Pois você
também andaria, minh a q uerida yássotch k a, num coch e daq ueles. Os
generais estariam captando seu olh ar benévolo, e não apenas esta nossa laia,
e você não usaria esse seu vestidinh o precário de lona, mas seda e ouro. E
não estaria magrinh a e mofininh a como agora, mas tal e q ual uma figurinh a
de açúcar, fresq uinh a, corada e roliçaz inh a. E eu cá então ficaria feliz tão
somente de vê-la da rua ao menos, pelas janelas bem iluminadas, de ver
apenas uma sombra sua, e só de pensar q ue vive lá feliz e alegre, meu
passarinh o bonito, é q ue me alegraria também. E como está agora? Como se
não bastasse aq ueles vilões terem-na arruinado, q ualq uer drogaz inh a ali, um
z abuldyg a65 q ualq uer a magoa. Só de andar de casaca q ue nem um pavão,
só de mirá-la através daq uele seu lornh ão66 de ouro, é q ue já se perdoa tudo
àq uele sem-vergonh a, e já se tem de ouvir sua fala asq uerosa com
indulgência! Ch ega, meus q ueridinh os, será q ue é isso mesmo? E por q ue
será tudo isso? Porq ue você é uma órfã, porq ue é indefesa, porq ue não tem
um amigo forte q ue lh e dê um arrimo conveniente. E q ual é aq uele h omem,
q uais são aq uelas pessoas lá q ue ofendem uma órfã com toda a facilidade?
Mas é uma droga; não são pessoas e, sim, uma droga mesmo, apenas
constam ali, cadastradas, porém não ex istem de fato, e tenh o certez a disso.
Eis como são aq uelas pessoas! Pois a meu ver, minh a q uerida, o tocador de
realejo q ue encontrei h oje na Gorókh ovaia antes imporia respeito por sua
pessoa q ue aq uela gentinh a ali. Posto q ue ande, o dia inteiro, angustiado, à
espera de um tostão imprestável, largado, para matar a fome, é seu próprio
senh or e alimenta a si mesmo. Não q uer pedir esmola, mas anda
trabalh ando para o praz er das pessoas, feito uma máq uina à q ual deram
corda: faço o q ue posso, digamos, para agradar a vocês. É um mendigo
apenas, um mendicante, q ue seja dita a verdade, um simples mendigo, mas,
em compensação, um mendigo nobre: está cansado, com frio, porém não
para de trabalh ar; embora à sua maneira, mas trabalh a ainda assim. E
muitas são as pessoas h onestas, mãez inh a, q ue ganh am pouco, naq uela
medida em q ue seu trabalh o tiver serventia, porém não se curvam ante
ninguém, não pedem pão a ninguém. E eu cá sou como aq uele tocador de
realejo, ou seja, não sou nada igual a ele, mas, à minh a maneira própria,
naq uele sentido nobre, fidalgo, trabalh o assim como ele, na medida das
minh as forças, e faço o q ue posso, digamos. E não teria utilidade maior, eu
mesmo, porém um “ não” não se julga.67
Passei a falar daq uele tocador de realejo, mãez inh a, porq ue me
aconteceu h oje sentir minh a pobrez a em dobro. É q ue me detive a fim de
olh ar para aq uele tocador lá. E pensamentos tais se insinuavam em minh a
cabeça q ue me detive para me distrair. Fico, pois, lá parado, e os coch eiros
também ficam parados lá, e uma rapariga q ualq uer e uma menina peq uena,
assim, toda sujinh a. O tocador estava defronte às janelas de alguém. Avisto
lá um menino, um pingo de gente, de uns dez anos: seria até bonitinh o, mas
aparenta estar doente, tão mofininh o, só de camisa e mais alguma roupinh a
q ualq uer, praticamente descalço… está ouvindo a música, boq uiaberto
(idade infantil! ), olh ando para aq uelas bonecas q ue dançam no mostruário
de um alemão, e tem, ele mesmo, as mãos e os pés congelados, e fica
tremendo e mordiscando a pontinh a de sua manga. Noto então q ue segura
um papelz inh o. Um senh or veio passando e jogou uma moedinh a miúda
para o tocador, e ela caiu direto naq uela caix inh a cercada onde é
representado um francês a dançar com damas. E o menino estremeceu, tão
logo tiniu a moeda, olh ou timidamente à sua volta e acabou pensando, por
certo, ter sido eu q uem dera aq uele dinh eiro. Então acorreu a mim, e suas
mãoz inh as tremiam, e sua voz inh a tremia, e me estendeu o tal papelz inh o e
disse q ue era um bilh ete! Abri aq uele bilh ete; pois bem, é tudo já
conh ecido: digamos, meus benfeitores, a mãe das crianças está morrendo, e
seus três filh os estão famintos; ajudem-nos, pois, agora, e eu, q uando
estiver morta, não me esq uecerei de vocês, meus benfeitores, no outro
mundo, já q ue não deix am agora a minh a prole desamparada. Pois bem:
está tudo claro, está tudo simples, mas o q ue lh es daria a eles? Não dei,
pois, nada àq uele menino. Mas q uanta pena é q ue senti! Um menino tão
pobrez inh o, az ulado de frio, talvez esfomeado, talvez não esteja
mentindo… juro q ue não está, pois conh eço aq uele negócio todo. Mas o
q ue é ruim é q ue as mães desnaturadas não cuidam dos filh os, mas os
mandam, seminus e com tais bilh etes, enfrentar um frio desses. Talvez seja
uma baba estúpida e não tenh a caráter; não h á, talvez , q uem a ampare, e ela
fica ali sentada, encolh endo as pernas, e está, q uem sabe, doente de fato. E
deveria, pois, recorrer a q uem de direito, mas, aliás, talvez seja mui
simplesmente uma trapaceira e mande, de caso pensado, aq uela criança
faminta e enfermiça ludibriar o povo, até ela mesma adoecer. E o q ue é q ue
o coitado do menino vai aprender com aq ueles bilh etes, h ein? Apenas seu
coração endurecerá mais ainda, andando ele, correndo e mendigando. As
pessoas andam por lá, mas estão sem tempo. Seus corações são de pedra;
suas palavras são cruéis: “ Fora! Vai indo! Não brinq ues! ” É isso q ue ele
ouve de todos, e endurece o coração da criança, e treme em vão, com aq uele
frio, o coitadinh o do menino intimidado, como um passarinh o q ue caiu do
seu ninh oz inh o q uebrado. Gelam-lh e as mãos e os pés, falta-lh e fôlego. A
gente olh a, e ele já está tossindo, e nem se precisa esperar por muito tempo,
q ue a doença já vem rastejando, feito uma víbora demoníaca, invadir-lh e o
peito, e, logo a seguir, a morte já está ao seu lado, ali num canto fétido, sem
ninguém cuidar dele nem o ajudar, e essa é toda a sua vida! Eis como ela é,
vez por outra, a vida da gente! Oh , Várenka, como é doloroso ouvir “ por
Cristo” e seguir adiante e não dar nada e lh e diz er: “ Deus dará” . Ainda se
pode suportar, às vez es, aq uele “ por Cristo” . (Até os “ por Cristo” podem ser
diferentes, mãez inh a! ) Às vez es, é longo e arrastado, já costumeiro,
decorado, pura e simplesmente mendicante, e não é tão doloroso assim
deix armos de dar esmola a q uem o pronunciar, porq uanto é um mendigo
antigo, de longa data, um mendigo por ofício: está acostumado, pensamos,
vai superar e sabe como superará. Só q ue h á um “ por Cristo” inabitual,
brutal, pavoroso, como aq uele de h oje, q uando peguei o bilh ete daq uele
menino: h avia lá mais um sujeito, postado junto de uma cerca, q ue não
pedia, aliás, a todos, e ele me disse a mim: “ Dá aí um vintém, senh orz inh o,
por Cristo! ” , e disse com uma voz tão entrecortada e grossa q ue estremeci,
tomado de uma sensação medonh a, e não lh e dei seq uer um vintém, q ue não
tinh a dinh eiro nenh um. E q uem for rico não gosta, ademais, q ue os pobres
reclamem, em voz alta, de seu destino cruel: estão incomodando a gente,
digamos, são importunos! Aliás, a pobrez a é sempre importuna: será q ue
estorvam o sono aq ueles gemidos de fome?
Teria de lh e confessar, minh a q uerida, q ue me pus a descrever tudo isso
para você, em parte, no intuito de aliviar este meu coração, mas,
principalmente, para lh e apresentar uma amostra do bom estilo de minh as
obras. É q ue você mesma, mãez inh a, h á de reconh ecer certamente q ue meu
estilo está em formação nesses últimos tempos. Mas agora uma tristez a tal
se apoderou de mim q ue comecei a simpatiz ar, até o fundo da alma, com
minh as próprias ideias e, apesar de saber, cá no íntimo, q ue tal simpatia não
muda as coisas, mãez inh a, consigo de certa forma, ainda assim, faz er justiça
a mim mesmo. Pois é verdade, minh a q uerida, q ue amiúde a gente se
destrói sem motivo algum, ach ando q ue não vale nem um tostão furado, e
se classifica abaix o de uma lasca de madeira q ualq uer. E, comparativamente
falando, talvez isso ocorra porq ue estou intimidado e posto contra a parede,
eu mesmo, igual, por ex emplo, àq uele coitado do garotinh o q ue me pedia
esmola. Agora lh e falarei de modo aprox imado, mãez inh a, alegoricamente;
veja, pois, se me escuta: acontece, minh a q uerida, q ue de manh ã cedo,
q uando vou apressado à minh a repartição, demoro olh ando para a cidade, a
q ual está acordando, ficando em pé, soltando fumaça, fervendo,
estrondeando, e eis q ue me q uedo, por vez es, tão rebaix ado perante tal
espetáculo q ue me arrasto então, como q uem tenh a levado um piparote em
seu nariz curioso, mais q uieto do q ue a água, mais baix o do q ue a relva, e
sigo meu caminh o como q uem tenh a aberto mão! E agora observe bem o
q ue se faz naq ueles grandes prédios de alvenaria, pretos, fuliginosos,
pondere aq uilo e conclua depois, você mesma, se seria justo a gente se
classificar de maneira inútil e se colocar num embaraço inconveniente. Note
aí, Várenka, q ue não estou falando no sentido literal, mas assim,
alegoricamente. Vejamos, pois, o q ue h á nesses prédios. Há neles, num
canto esfumaçado, num cubículo úmido considerado um apartamento por
mera necessidade, um artesão q ue acaba de acordar; e suponh amos q ue
tenh a sonh ado a noite toda, enq uanto dormia, com aq uelas botas q ue
estragara na véspera, sem q uerer, como se justamente com uma droga
daq uelas um h omem tivesse de estar sonh ando! Só q ue ele é um artesão, um
sapateiro, e é perdoável q ue pense, o tempo todo, naq uela única profissão
sua. Tem lá uns filh os q ue estão piando e uma esposa faminta, e não são
apenas os sapateiros, minh a q uerida, q ue acordam, por vez es, dessa
maneira. Ainda não faria mal nem valeria a pena escrever sobre aq uilo, mas
eis q ue surge a circunstância seguinte, mãez inh a: lá mesmo, no mesmo
prédio, um piso acima ou abaix o, foi um h omem riq uíssimo q ue sonh ou à
noite, q uem sabe, em seus aposentos dourados com as mesmas botas, ou
seja, sonh ou com umas botas de outro tipo e de feitio diferente, mas foram
as botas mesmo, pois acontece, mãez inh a, neste ex ato sentido q ue venh o
subentendendo aq ui, q ue nós todos somos, minh a q uerida, um pouco
sapateiros. Nem isso faria mal, porém o q ue é ruim é q ue não h á ninguém
ao lado daq uele h omem riq uíssimo, não h á q uem sopre ao seu ouvido q ue
“ ch ega, digamos, de pensares naq uilo, de pensares tão só em ti mesmo, de
viveres tão só para ti; não és, digamos, nenh um sapateiro, teus filh os estão
com saúde e tua esposa não pede comida; olh a, pois, ao redor e vê se não h á
uma matéria mais nobre, para q ue te ocupes dela, do q ue essas tuas botas! ” .
Eis o q ue eu q uis diz er-lh e alegoricamente, Várenka. Talvez seja uma ideia
por demais livre, minh a q uerida, mas essa ideia me surge de vez em
q uando, vem por momentos e jorra então do meu coração, mesmo sem q ue
eu o q ueira, com tais palavras acaloradas. Portanto, nem me cabia diz er, só
por me assustar com ruídos e trovoadas, q ue não valia eu nem um tostão
furado! Em conclusão, mãez inh a, direi q ue talvez você ach e q ue eu lh e
conte calúnias, ou tudo isso seja assim, uma melancolia q ue se apossa de
mim, ou então eu tenh a copiado isso de algum livrinh o. Não, mãez inh a,
dissuada-se, q ue não é nada disso: detesto as calúnias, nenh uma melancolia
se apossou de mim, e não copiei patavina de livro algum — é isso aí!
Voltei para casa, num triste estado de espírito, sentei-me à mesa,
esq uentei minh a ch aleira e já me aprontava para sorver um copinh o ou dois
de ch az inh o. De súbito, vejo Gorch kov, nosso pobre inq uilino, entrar no
meu q uarto. Eu tinh a notado, ainda pela manh ã, q ue ele se esgueirava de
algum jeito, o tempo todo, junto dos moradores e já q ueria acercar-se de
mim também. E digo-lh e de passagem, mãez inh a, q ue a vidinh a dele é bem
pior q ue a minh a. Nem se compara: a esposa, os filh os! Destarte, se eu fosse
Gorch kov, nem sei o q ue teria feito no lugar dele! Pois então: entra meu
Gorch kov, faz uma mesura, e uma lagrimaz inh a remela, como de prax e, em
seus cílios; arrasta os pés, mas não consegue diz er uma só palavra. Fiz q ue
ele se sentasse numa cadeira, q uebrada, q ue seja dita a verdade, mas não
h avia outras cadeiras. Ofereci-lh e ch az inh o. Ele pediu desculpas, pediu-me
desculpas por muito tempo, mas, finalmente, pegou o copo. Queria já tomar
ch á sem açúcar e começou a pedir outra vez desculpas, q uando lh e
assegurei q ue tinh a, sim, de pegar um pouco de açúcar, e discutiu
longamente, negando-se, e colocou afinal o menor dos torrões em seu copo
e passou a asseverar q ue o ch á estava doce até diz er ch ega. Eh , mas a
q uanta h umilh ação é q ue a pobrez a leva as pessoas! “ Pois bem, q ueridinh o,
o q ue h á? ” , perguntei-lh e. “ Assim e assado, digamos, meu benfeitor Makar
Alex éievitch , veja se me revela a graça divina e presta ajuda a esta família
infeliz : meus filh os e minh a esposa não têm nada para comer, e eu, o pai de
família, como me sinto, h ein? ” . J á me dispunh a a responder, mas ele me
interrompeu: “ Tenh o, digamos, medo de todos aí, Makar Alex éievitch , ou
seja, não é q ue os tema, mas sinto vergonh a, sabe? É q ue são todos altivos e
presunçosos. Nem o incomodaria, meu q uerido e meu benfeitor, disse-me
ele, sabendo q ue o senh or também teve umas contrariedades aí, sabendo
q ue nem seq uer poderia dar muito dinh eiro, mas veja se me empresta, pelo
menos, alguma coisa; ousei, disse ainda, pedir-lh e ajuda por conh ecer seu
bom coração, por saber q ue o senh or mesmo já ficou em apuros, q ue agora
também está passando umas provações, e q ue seu coração, portanto, sente
compaix ão” . E concluiu diz endo: perdoe minh a ousadia e minh a
indecência, Makar Alex éievitch . Então lh e respondo q ue ficaria feliz , com
toda a minh a alma, de ajudá-lo, porém não tenh o coisa nenh uma,
absolutamente nada. “ Meu q ueridinh o Makar Alex éievitch ” , diz -me ele,
“ nem lh e peço muita coisa, mas, assim e assado (então ficou todo
vermelh o), minh a esposa, diz , e meus filh os estão com fome… nem q ue
seja uma g rivnaz inh a q ualq uer” . E foi meu próprio coração q ue ficou
doendo. Eta, pensei, mas como ele me deix ou para trás! E só me restavam
vinte copeq ues, mas eu contava com eles, q uerendo gastá-los, no dia
seguinte, com minh as necessidades ex tremas. “ Não, q ueridinh o, não posso,
assim e assado” , digo-lh e. “ Makar Alex éievitch , meu q uerido, seja como
for, diz -me ele, apenas dez copeq uez inh os” . Tirei, pois, vinte copeq ues da
minh a gaveta e passei-os a ele, mãez inh a: foi uma boa ação, não foi? Eh ,
q ue miséria! Fico, pois, conversando com ele: como foi, q ueridinh o,
pergunto, q ue o senh or ch egou a tanta penúria e ainda aluga, com tantas
necessidades, um q uarto por cinco rublos de prata? E ele me ex plica q ue o
alugou h á meio ano, pagando três meses adiantados, só q ue depois as
circunstâncias ficaram tais q ue não pôde mais, coitado, nem ir nem voltar.
Esperava q ue seu processo tivesse terminado até aq uele momento. E seu
processo é desagradável. Ele é responsabiliz ado, Várenka, por alguma
raz ão, pela justiça, está vendo? Pleiteia com um comerciante ali, q ue
fraudou o fisco com uma empreitada; a fraude ficou descoberta, o
comerciante foi processado e acabou envolvendo Gorch kov também, já q ue
este estava casualmente por perto, naq ueles seus negócios criminosos. Mas,
seja dita a verdade, Gorch kov é culpado apenas de falta de z elo e de
prudência, por ter perdido de vista, imperdoavelmente, o interesse público.
J á faz vários anos q ue dura aq uele processo, e os obstáculos mais variados
surgem, o tempo todo, contra Gorch kov. “ Quanto à desonra q ue me é
imputada” , diz -me Gorch kov, “ não sou culpado dela, nem um pouco
culpado: não tenh o culpa da fraude nem da roubalh eira” . Aq uele pleito
deix ou-o um tanto manch ado: foi ex onerado do cargo e, mesmo q ue não
seja provada a sua culpa capital, não consegue até agora, antes de ser
totalmente absolvido, receber certa q uantia bem considerável, q ue lh e é
devida, daq uele comerciante, disputando-a nos tribunais. Eu cá acredito
nele, mas a justiça não acredita, diga o q ue disser, e seu processo tem tantos
anz óis e nós q ue não dá para desenredá-lo nem em cem anos. Mal o
desenredam um pouco, aí vem o tal comerciante jogando mais um anz ol e
mais um. Cordialmente me compadeço daq uele Gorch kov, minh a q uerida, e
tenh o dó dele. Um h omem sem cargo; não tem emprego algum por não ser
confiável; tudo q uanto guardavam já foi comido; o processo está enredado,
mas é preciso viver, não obstante; e foi nesse meio-tempo, sem mais nem
menos e fora de propósito, q ue nasceu um neném, daí umas novas despesas;
seu filh o adoeceu, mais despesas; seu filh o morreu, mais despesas; sua
esposa está doente; ele mesmo padece de uma doença já arraigada… numa
palavra, tem sofrido o h omem, e ponh a-se sofrimento nisso. Aliás, diz q ue
espera, um dia desses, pela resolução favorável de seu problema e q ue
agora não h á mais nenh uma dúvida a respeito disso. Tenh o pena dele,
mãez inh a, sim, tenh o pena e muita pena! Então o tratei com carinh o. É um
h omem perdido, está em maus lençóis e busca por q uem o proteja; foi isso
q ue me levou a tratá-lo carinh osamente. Adeus, pois, mãez inh a, q ue Cristo
esteja ao seu lado, e fiq ue você com saúde. Minh a q ueridinh a! Tão logo me
lembro de você, é como se aplicasse um remédio à minh a alma enferma, e,
posto q ue eu sofra por sua causa, até sofrer por você é fácil.
Seu verdadeiro amigo
M ak ar D êvuch k in.

9 de setembro.
Mãez inh a Varvara Alex éievna!
Escrevo-lh e fora de mim. Estou todo perturbado com um acidente
h orrível. Minh a cabeça não para de girar. Sinto q ue tudo está rodopiando ao
meu redor. Ah , minh a q uerida, o q ue lh e contarei agora! A gente nem
seq uer o pressentia. Aliás, não, não creio q ue eu não o tenh a pressentido:
pressenti tudo isso, sim. Meu coração percebia tudo isso de antemão! E
mesmo sonh ei, dia destes, com algo parecido.
Eis o q ue ocorreu! Vou contar-lh e sem estilo q ualq uer, mas assim, como
nosso Senh or ordenar q ue isso seja contado. Fui h oje à minh a repartição.
Uma vez lá, fiq uei sentado, escrevendo. E você precisa saber, mãez inh a,
q ue ontem escrevia também. Pois então, ontem se ach ega a mim Timofei
Ivânovitch e se digna a mandar pessoalmente: aq ui está, digamos, um papel
necessário e urgente. Copie-o, diz para mim, Makar Alex éievitch , com a
maior limpez a possível, rápida e minuciosamente, q ue h oje mesmo será
assinado. E tenh o de notar para você, meu anjinh o, q ue ontem eu estava tão
abalado q ue nem me apetecia olh ar para q ualq uer coisa: foram tanta tristez a
e tamanh a angústia q ue me atacaram! Meu coração estava frio, minh a alma
estava escura, e q uem não saía da minh a memória era você, minh a pobre
yássotch k a. E eis q ue me pus a copiar; copiei tudo limpo, muito bem, só
q ue não sei como lh e diria mais precisamente, se o próprio tinh oso me
confundira ou se aq uilo fora determinado por alguns destinos secretos ou,
simplesmente, porq ue h avia de ser assim… mas acabei omitindo uma linh a
inteira, e o sentido ficou sabe lá Deus q ual, ou melh or, não h ouve nenh um
sentido. E se atrasaram ontem com aq uele papel, de sorte q ue Sua
Ex celência foi assiná-lo apenas h oje. E eis q ue ch ego h oje, como se de nada
se tratasse, à minh a repartição, na h ora h abitual, e me instalo pertinh o de
Yemelian Ivânovitch . Cumpre-me notar para você, q uerida, q ue tenh o
ficado, nesses últimos tempos, duas vez es mais pudico do q ue antes e
sentido o dobro de vergonh a. Ultimamente, nem tenh o olh ado para
ninguém. Mal estala a cadeira de alguém lá, e já fico mais morto q ue vivo.
E h oje, do mesmo jeito, fiq uei todo murch o, q uietinh o, tal e q ual um ouriço,
de modo q ue Yefim Akímovitch (um sujeito tão implicante q ue ainda não
h ouve, antes dele, q uem lh e igualasse no mundo) disse para todos ouvirem:
por q ue é q ue o senh or fica aí sentado, Makar Alex éievitch , q ue nem u-u-
uh ? E fez então uma careta tal q ue todos os q ue estavam ao lado dele e ao
meu lado caíram na gargalh ada e gargalh aram, bem entendido, por minh a
causa. E foram, e foram rindo! Até encolh i as orelh as, cerrei os olh os e
fiq uei lá sentado, sem me mover. Este é meu costume, assim me deix am em
paz mais depressa. E, de repente, ouço um barulh o, um rebuliço, um
atropelo; ouço alguém ch amar por mim (será q ue meus ouvidos estão
enganados? ), ch amar, sim, ex igindo q ue venh a Dêvuch kin. E meu coração
tremeu todo no peito e nem sei de q ue tive medo, sei apenas q ue me
assustei tanto como não me acontecera ainda nenh uma vez nesta vida.
Fiq uei grudado na minh a cadeira, como se de nada se tratasse, como se não
ch amassem por mim. Só q ue então se puseram a ch amar novamente, cada
vez mais perto. Eis q ue já gritam ao meu ouvido: ch amem, digamos,
Dêvuch kin, Dêvuch kin; onde está Dêvuch kin? Ergui os olh os: q uem está
em minh a frente é Yevstáfi Ivânovitch , diz endo: “ Makar Alex éievitch , vá
logo até Sua Ex celência! É q ue aprontou uma com aq uele papel! ” . Só disse
aq uilo, mas não é verdade, mãez inh a, q ue já foi dito o bastante? Então me
q uedei semimorto, todo gelado, perdi os sentidos… e fui lá, simplesmente
mais morto q ue vivo, fui ver Sua Ex celência. Conduz em-me, pois, através
de um cômodo, do outro cômodo, do terceiro cômodo; entro no gabinete e
me posto na frente dele! Não posso relatar-lh e positivamente o q ue estava
pensando então. Mas vejo Sua Ex celência em pé, rodeado por todos eles.
Parece q ue nem me curvei, q ue me esq ueci de faz er uma mesura. Estava tão
intimidado q ue meus lábios tremiam e minh as pernas também. E h avia por
q uê, mãez inh a! Em primeiro lugar, estava com vergonh a: olh ei para a
direita e me vi num espelh o, e h avia por q ue a gente enlouq ueceria diante
de uma visão daq uelas. Em segundo lugar, sempre me portei como se nem
ex istisse neste mundo. Destarte, é pouco provável q ue Sua Ex celência
estivesse ciente da minh a ex istência. Talvez tivesse ouvido diz erem a meu
respeito assim, de passagem, q ue h avia um tal de Dêvuch kin em sua
repartição, mas nunca estabelecera comigo nenh uma relação mais próx ima
do q ue essa.
E começou a falar com ira: “ Mas o q ue fez aí, meu senh or? Por q ue está
olh ando? Um papel importante, tem de ser feito logo, e o senh or o estraga!
Como foi q ue fez isso? ” . Então Sua Ex celência se dirigiu a Yevstáfi
Ivânovitch . E ouvi apenas os sons de suas palavras ch egar até mim: “ Falta
de z elo, falta de bom senso! O senh or me causa problemas! ” . Abri, pois, a
boca com algum propósito. Queria já pedir desculpas, só q ue não consegui;
q uanto a fugir, nem ousava pensar naq uilo, e eis q ue… eis q ue aconteceu
uma coisa tal, mãez inh a, uma coisa tal q ue até mesmo agora mal seguro a
pena, de tão envergonh ado assim. Um botãoz inh o meu (q ue o diabo o
carregue! ), um botãoz inh o q ue estava suspenso num fioz inh o, desprendeu-
se de súbito, ricoch etou, foi pulando (decerto eu roçara nele assim, sem
q uerer) e tilintando, rodou, maldito, diretamente, direto mesmo, até os pés
de Sua Ex celência, e tudo isso em meio ao silêncio geral! Foi essa toda a
minh a justificativa, toda a minh a desculpa, toda a minh a resposta, tudo
q uanto me dispusesse a diz er a Sua Ex celência! As conseq uências foram
h orríveis! Sua Ex celência prestou logo atenção neste meu vulto e neste meu
traje. Lembrei-me do q ue tinh a visto no espelh o e corri para apanh ar o
botãoz inh o. Deu uma louca em mim! Curvo-me, pois, q uerendo pegar o tal
botãoz inh o, e ele fica rodando, girando, e não consigo apanh á-lo… e me
destaq uei, numa palavra, em matéria de destrez a também. Sinto então q ue
as últimas forças me abandonam, q ue tudo, tudo mesmo já está perdido!
Toda a reputação está perdida, o h omem todo está perdido! E, sem motivo
algum, são Th erez a e Faldoni q ue falam em ambos os ouvidos meus, e
batem um papo daq ueles. Por fim, apanh ei o botãoz inh o e me soergui e me
empertiguei, e até q ue devia, sendo tão imbecil mesmo, ter ficado assim, em
posição de sentido, com as mãos esticadas ao longo das cox as! Mas não:
comecei a ajustar o botãoz inh o àq ueles fios rotos, como se fosse aderir a
eles, e a sorrir, ainda por cima, e a sorrir. Primeiro Sua Ex celência me deu
as costas, depois voltou a olh ar para mim, e eis q ue o ouço diz er a Yevstáfi
Ivânovitch : “ Como assim? … Veja só o estado dele! … Como ele está! … Por
q ue está assim? ” . Ah , minh a q uerida, mas aq uela pergunta: por q ue está
assim? Porq ue se destacou, eis por q ue está! E ouço Yevstáfi Ivânovitch
responder: “ Não foi visto, digamos, em nenh uma situação q ue o
desabonasse; tem a conduta ex emplar e o salário suficiente, conforme o
ordenado… ” . — “ Pois então veja se o alivia de alguma maneira” , diz Sua
Ex celência. “ Dê um adiantamento a ele… ” . — “ Mas ele já recebeu, diz em
aí q ue já recebeu um adiantamento por tanto e tanto tempo! As
circunstâncias dele são essas, por certo, mas sua conduta é ex emplar, e
nunca foi visto, jamais foi visto” . E eu, meu anjinh o, estava todo
q ueimando, q ueimando num fogo infernal! Estava morrendo! “ Pois bem” ,
diz Sua Ex celência, em voz alta, “ q ue recopie o mais depressa possível.
Venh a cá, Dêvuch kin, e recopie tudo sem aq uele erro, e vejam se
escutam… ” . Então Sua Ex celência se voltou para os outros, distribuiu
diversas ordens, e foram todos embora. Mal eles foram embora, Sua
Ex celência tira apressadamente seu k ní jnik 68 e, dele, uma nota de cem
rublos. “ Aq ui está” , diz : “ é o q ue posso, pense o senh or como q uiser… ” e
enfia tal nota em minh a mão. Estremeci, meu anjinh o, e toda a minh a alma
ficou transtornada; nem sei o q ue se deu comigo, só q ue q ueria já agarrar a
mãoz inh a de Sua Ex celência. E ele enrubesceu tanto assim, minh a
q ueridinh a — pois sim, agora não me afasto da verdade nem por um
fioz inh o de cabelo, minh a q uerida! —, pegou minh a mão indigna e sacudiu-
a, simplesmente a pegou e sacudiu, como se eu fosse seu par, como se fosse
eu um general como ele próprio. “ Vá indo, disse, é o q ue posso… Não faça
mais erros, e rach e-se o pecado ao meio” .
E agora, mãez inh a, eis o q ue decidi faz er: peço-lh e, e a Fedora também,
e, se tivesse filh os, mandaria q ue eles também rez assem a Deus, ou seja,
q ue não rez assem pelo seu pai de sangue, mas todos os dias, eternamente,
por Sua Ex celência! E mais lh e direi, mãez inh a, e digo isto solenemente —
veja se me escuta direito, mãez inh a! —: juro q ue, fosse q ual fosse o pesar
de minh a alma a matar-me nos dias cruéis de nossa desgraça, olh ando eu
para você, para seus infortúnios, e para mim mesmo, para minh a
h umilh ação e minh a incapacidade, e apesar disso tudo, juro-lh e q ue não
prez o tanto aq ueles cem rublos q uanto o fato de Sua Ex celência se dignar
assim, em pessoa, a apertar esta mão indigna a mim, a um feix e de palh a, a
um beberrão q ualq uer! Com isso é q ue me devolveu a mim mesmo.
Ressuscitou meu espírito com essa ação, tornou minh a vida mais doce para
todo o sempre, e estou firmemente convicto de q ue, por mais pecaminoso
q ue seja eu perante o Supremo, a oração pela felicidade e pelo bem-estar de
Sua Ex celência ch egará ao trono dEle! …
Mãez inh a! Agora estou num h orrível transtorno espiritual,
h orrivelmente ansioso! Meu coração bate tanto q ue q uer saltar-me do peito.
E fico, eu mesmo, como q ue todo debilitado. Envio-lh e q uarenta e cinco
rublos em papel-moeda, dou vinte rublos à minh a locadora e deix o trinta e
cinco rublos comigo: vou consertar minh as roupas com vinte rublos e
guardar q uinz e rublos para minh a vidinh a. Pois só agora é q ue todas essas
impressões matinais perturbaram toda a minh a essência. Deitar-me-ei por
um tempo. Estou tranq uilo, aliás, muito tranq uilo. Apenas minh a alma dói
um pouco, e dá para sentir como ela estremece, cá no fundo, treme e se
remex e. Vou visitá-la, mas agora estou simplesmente ébrio com todas essas
sensações… Deus vê tudo, minh a mãez inh a, minh a q ueridinh a inestimável!
Seu amigo decente
M ak ar D êvuch k in.

1 0 de setembro.
Meu caro Makar Alex éievitch !
Estou inefavelmente feliz com sua felicidade e sei estimar as virtudes de
seu superior, meu amigo. Pois então, agora é q ue vai descansar das suas
provações! Apenas, pelo amor de Deus, não gaste outra vez seu dinh eiro em
vão. Viva de mansinh o, o mais h umildemente q ue puder, e comece, a partir
deste mesmo dia de h oje, a guardar sempre alguma coisa, para q ue as
desgraças não o apanh em mais desprevenido. E não se preocupe, pelo amor
de Deus, conosco. Viveremos de algum jeito, Fedora e eu. Por q ue nos
mandou tanto dinh eiro, Makar Alex éievitch ? Nem precisamos de tanto.
Estamos contentes com o q ue temos. É verdade q ue logo precisaremos de
dinh eiro para trocar de apartamento, mas Fedora espera cobrar de alguém
uma dívida antiga e já vencida. Deix o, enfim, vinte rublos comigo, para as
necessidades ex tremas. E lh e mando o resto de volta. Conserve, por favor,
esse dinh eiro, Makar Alex éievitch ! Adeus. Viva agora em paz , tenh a saúde
e esteja alegre. Escreveria mais para o senh or, porém me sinto muito
cansada e ontem passei o dia inteiro de cama. Fez bem em prometer q ue me
visitaria. Visite-me, por favor, Makar Alex éievitch !
V .D .

1 1 de setembro.
Minh a q uerida Varvara Alex éievna!
Imploro-lh e, minh a q uerida, q ue não se afaste de mim agora, agora q ue
estou plenamente feliz e contente com tudo. Minh a q ueridinh a! Não dê
ouvidos a Fedora, e vou faz er tudo o q ue você desejar: vou comportar-me
bem, por mero respeito por Sua Ex celência é q ue me comportarei de modo
certo e correto, e voltaremos a escrever cartas feliz es um ao outro, a confiar
um ao outro nossos pensamentos, nossas alegrias, nossas angústias, se
h ouver algumas; viveremos juntos, concordes e feliz es. Vamos mex er com
literatura… Anjinh o meu! Tudo mudou neste meu destino, e mudou tudo
para melh or. A locadora ficou mais tratável, Th erez a, mais inteligente, e até
mesmo Faldoni se tornou, de algum jeito, mais h ábil. Eu fiz as paz es com
Rataz iáiev. De tão alegre, fui eu mesmo à casa dele. É um bom sujeito,
mãez inh a, palavra de h onra, e tudo q uanto foi dito de mau a respeito dele
foi uma bobagem pura. Acabo de descobrir q ue aq uilo tudo foi uma calúnia
abjeta. Ele nem pensou em descrever a gente, e foi ele próprio q uem me
disse isso. Leu uma nova obra para mim. E, se acaso me ch amou então de
Lovelace, não foi nenh um palavrão, nada disso, nenh uma palavra
indecente: foi dessa maneira q ue ele me ex plicou. Aq uilo foi traduz ido,
tintim por tintim, de uma língua estrangeira e significa “ um rapaz ex pedito”
e, se o disséssemos de forma mais bonita, mais literária, significaria “ um
rapaz q ue mete direito” , assim, e não q ualq uer coisa ali. Foi uma
brincadeira inocente, anjinh o meu. E eu cá, bronco q ue sou, fiq uei sentido
de tão imbecil. Só q ue agora lh e pedi desculpas… E q ue tempo maravilh oso
é q ue faz h oje, Várenka, mas q ue tempo bom! É verdade q ue h ouve um
pouco de geada pela manh ã, como se estivesse caindo através de uma
peneira. Mas não faz mal! O ar ficou, em compensação, um pouq uinh o mais
fresco. Fui comprar minh as botas e comprei um par admirável. Dei uma
volta pela Nêvski. Li “ A abelh inh a” .69 Sim! Quase me esq ueci de lh e contar
sobre o principal. É o seguinte:
Fiq uei conversando, esta manh ã, com Yemelian Ivânovitch e Aksênti
Mikh áilovitch sobre Sua Ex celência. Sim, Várenka, não fui tão somente eu
mesmo q ue ele tratou com tanta benevolência. Não só a mim é q ue cumulou
de favores, e todo mundo conh ece a bondade de seu coração. Em muitos
lugares é q ue o h omenageiam com louvores e vertem lágrimas de gratidão
por ele. Estava criando uma órfã ali. Dignou-se, pois, a ampará-la, faz endo
q ue se casasse com um h omem conh ecido, um servidor q ue cumpria as
incumbências especiais de Sua Ex celência em pessoa. Colocou o filh o de
uma viúva numa repartição q ualq uer e fez muitas outras boas ações. E eu
cá, mãez inh a, logo resolvi q ue devia também contribuir e contei a todos, em
voz alta, sobre o q ue Sua Ex celência fiz era: contei tudo a eles, sem
esconder nada. Só minh a vergonh a é q ue escondi no bolso. Que vergonh a,
mas q ue melindre é q ue poderia h aver numa situação dessas? Contei em
voz alta, q ue sejam glorificados os feitos de Sua Ex celência! Falei com
entusiasmo, falei com ardor, sem enrubescer, mas, pelo contrário, todo
orgulh oso de estar contando, por sorte, uma coisa assim. Contei de tudo (foi
tão só você, mãez inh a, q ue deix ei, por sensatez , fora do meu relato): de
minh a locadora e de Faldoni e de Rataz iáiev e das minh as botas e de
Márkov — contei de tudo. Houve q uem risse e, seja dita a verdade, todos
estavam rindo. Só q ue era apenas em minh a figura q ue deviam ter ach ado
algo ridículo ou então riam das minh as botas, notadamente destas minh as
botas. E não poderiam ter feito aq uilo com alguma intenção má. É assim, a
juventude, ou então eles mesmos são gente rica, mas não poderiam, de jeito
nenh um, ter z ombado do meu discurso com uma intenção má e perversa.
Ou seja, q uanto a diz erem algo a respeito de Sua Ex celência, não poderiam
mesmo ter feito aq uilo. Não é verdade, Várenka?
Eu não consigo, de certa forma, recobrar-me até agora, mãez inh a. Todos
esses incidentes deix aram-me tão confuso! Você tem lenh a? Veja se não se
resfria, Várenka, q ue é bem rápido q ue a gente se resfria. Oh , minh a
mãez inh a, você me mata com esses seus pensamentos tristes. E como rez o a
Deus, como ando rez ando por você, mãez inh a! Será q ue tem, por ex emplo,
umas meiaz inh as de lã ou assim, algumas roupinh as mais q uentes? Veja aí,
minh a q ueridinh a! Se precisar de q ualq uer coisa q ue seja, não deix e este
velh o, pelo Criador, ressentido. Venh a logo tratar comigo. Agora os maus
tempos já estão no passado. E, q uanto a mim, não se preocupe. Está tudo
tão luminoso, tão bom, pela frente!
Mas foi um tempo tristonh o, Várenka! Mas tanto faz , já passou! Os
anos se passarão, então lamentaremos até mesmo aq ueles idos. Lembro-me
dos meus anos verdes. Que tempos! Não tinh a, por vez es, nem seq uer um
copeq ue. Estava com frio, com fome, mas vivia alegremente e ponto-final.
Dou uma voltinh a, de manh ã, pela Nêvski, encontro uma carinh a bonitinh a
e fico feliz pelo resto do dia. Bons tempos, sim, h ouve bons tempos,
mãez inh a! Vive-se bem neste mundo, Várenka! Sobretudo em Petersburgo.
Ontem me arrependi, com lágrimas nos olh os, perante Deus nosso Senh or,
pedindo q ue me perdoasse todos os meus pecados daq uela época triste:
reclamações, ideias liberais, crápula e paix ão. E me lembrei de você,
enternecido, nessa oração. Foi só você, meu anjinh o, q uem me fortaleceu,
foi só você q uem me consolou e me ajudou com seus conselh os bons e
edificantes. Nunca me esq uecerei disso, mãez inh a! Hoje beijei todos os
seus bilh etinh os, um por um, minh a q ueridinh a! Adeus, pois, mãez inh a!
Diz em q ue se vendem roupas aq ui por perto. Vou, então, procurar algumas.
Adeus, meu anjinh o. Adeus.
Seu cordialmente devotado
M ak ar D êvuch k in.

1 5 de setembro.
Prez ado senh or Makar Alex éievitch !
Estou tomada de uma emoção forte. Escute, pois, o q ue se deu conosco.
Pressinto algo fatal. J ulgue o senh or mesmo, meu inestimável amigo: o
senh or Bý kov está em Petersburgo. Foi Fedora q uem o encontrou. Ele vinh a
passando, mandou parar o drójk i,70 aprox imou-se, ele mesmo, de Fedora e
começou a perguntar onde ela morava. De início, ela não respondeu. Depois
ele disse, com um sorrisinh o, q ue sabia q uem morava com ela. (Decerto
fora Anna Fiódorovna q ue lh e contara de tudo). Então Fedora não aguentou
e começou a ex probrá-lo ali mesmo, no meio da rua, a censurá-lo diz endo
q ue era um h omem imoral e causara todas as minh as desgraças. Ele
respondeu q ue, q uando não se tinh a nem um vintém, estava-se infeliz
mesmo. Fedora lh e disse q ue eu conseguiria viver do meu trabalh o, q ue
poderia casar-me ou então arranjar um emprego fora, e q ue agora minh a
felicidade estava perdida para sempre, q ue eu estava, além disso tudo,
doente e morreria em breve. Pois ele redarguiu diz endo q ue eu era ainda
nova demais, q ue minh a cabeça ainda estava amalucada e q ue nossas
virtudes também se tinh am embaçado (são as palavras dele). Pensávamos,
Fedora e eu, q ue ele desconh ecesse o nosso endereço, e de repente ontem,
mal eu saí para ir faz er compras no Pátio Gostínny , entrou no q uarto da
gente: parece q ue não q ueria encontrar-me em casa. Passou muito tempo
interrogando Fedora acerca da nossa vidinh a, ex aminou tudo em nosso
q uarto; viu também meu trabalh o e, afinal, perguntou: “ Mas q uem é aq uele
servidor q ue conh ece vocês? ” . Era então q ue o senh or estava passando
através do pátio, e Fedora apontou para o senh or; ele olh ou e sorriu; Fedora
lh e suplicou q ue fosse embora, disse q ue eu já estava adoentada por causa
de tantas mágoas e q ue me seria muito desagradável vê-lo em nossa casa.
Ele se manteve calado; disse q ue viera assim, por falta de q uefaz eres, e
q ueria já dar a Fedora vinte e cinco rublos, mas ela, bem entendido, não os
aceitou. O q ue será q ue isso significa? Por q ue foi q ue ele veio à casa da
gente? Não consigo entender como sabe tudo a nosso respeito! E me perco
em minh as conjeturas. Fedora diz q ue Aksínia, sua cunh ada q ue vem à
nossa casa, conh ece a lavadeira Nastácia, e q ue o primo de Nastácia
trabalh a como z elador no departamento onde serve aq uele conh ecido do
sobrinh o de Anna Fiódorovna, e será q ue não foi assim porventura q ue uma
fofoca q ualq uer ficou rastejando? De resto, bem pode ser q ue Fedora esteja
enganada; não sabemos, pois, nem o q ue pensar. Será q ue ele vai vir de
novo? Fico apavorada só de pensar nisso! Quando Fedora contou aq uilo
tudo ontem, fiq uei tão assustada q ue por pouco não desmaiei de susto. De
q ue é q ue eles precisam mais? Não q uero agora nem saber deles! O q ue têm
a ver comigo, esta coitada aq ui? Ah , como estou receosa agora, pensando
q ue já, já Bý kov entrará em meu q uarto. O q ue será de mim? O q ue é q ue o
destino me reserva ainda? Por Cristo, venh a visitar-me agora mesmo,
Makar Alex éievitch ! Venh a, pelo amor de Deus, venh a.
V .D .

1 8 de setembro.
Mãez inh a Varvara Alex éievna!
Houve neste dia, em nosso apartamento, um acontecimento
ex tremamente lamentável, q ue não se ex plicaria com nada e pelo q ual
ninguém esperara. Nosso pobre Gorch kov (tenh o de notá-lo para você,
mãez inh a) ficou totalmente absolvido. A decisão tinh a sido tomada já h avia
tempos, mas h oje ele foi ouvir o veredicto definitivo. Seu pleito teve um
desfech o bem favorável. Fosse q ual fosse a culpa dele, aq uela de falta de
z elo e de prudência, acabou sendo completamente perdoada. Decidiram
cobrar daq uele comerciante, em benefício de Gorch kov, uma q uantia
considerável, de sorte q ue ele melh orasse muito de vida e sua h onra se
livrasse daq uele labéu e tudo mesmo se tornasse melh or: numa palavra,
aconteceu q ue seu desejo teve a mais plena satisfação. Hoje ele voltou para
casa às três h oras. Estava todo alterado, branco q ue nem um pano, e seus
lábios tremiam, mas ele sorria, ainda assim, e veio abraçar a mulh er e os
filh os. E fomos nós, todos juntos, felicitá-lo. Ele se q uedou bastante
sensibiliz ado com o q ue fiz éramos, curvando-se para todos os lados e
apertando, diversas vez es, a mão de cada um de nós. Até me pareceu q ue
h avia crescido, q ue se endireitara e q ue não tinh a mais uma só lagrimaz inh a
nos olh os. Estava tão emocionado, coitado! Não conseguia manter-se, nem
por dois minutos, no mesmo lugar; pegava tudo q uanto tivesse ao alcance
da mão, depois o largava de novo, sorria o tempo todo, faz ia mesuras,
sentava-se, levantava-se, sentava-se outra vez , diz ia sabe lá Deus o q uê,
diz ia: “ Honra minh a, minh a h onra, meu nome h onesto, meus filh os! ” e
como diz ia aq uilo, ch egando até mesmo a ch orar. A maioria de nós também
derramou umas lágrimas. Rataz iáiev q uis, pelo visto, animá-lo e disse: “ O
q ue é a h onra, meu q ueridinh o, q uando não se tem o q ue comer? É o
dinh eiro, meu q ueridinh o, q ue é o principal, é por isso q ue deve agradecer a
Deus! ” , e logo lh e deu um tapinh a no ombro. Pareceu-me q ue Gorch kov
ficara sentido, ou seja, não q ue tivesse manifestado um descontentamento
q ualq uer, mas apenas olh ara para Rataz iáiev de certo modo estranh o e tirara
a mão dele do seu ombro. E antes não teria feito nada disso, mãez inh a!
Aliás, h á índoles diferentes. Eu, por ex emplo, não me mostraria orgulh oso,
se acaso tivesse uma alegria dessas; é q ue a gente, minh a q uerida, faz uma
mesura a mais, vez por outra, e até se presta à h umilh ação tão somente por
um acesso daq uela bondade espiritual e por ter um coração demasiado
suave… porém não se trata, aliás, de mim! “ Sim, disse ele, o dinh eiro
também é bom; graças a Deus, graças a Deus! ” e depois ficou repetindo, ao
longo de todo aq uele tempo q ue passamos com ele: “ Graças a Deus, graças
a Deus! … ” . Sua esposa encomendou um almoço mais delicado e mais
copioso. Foi nossa locadora em pessoa q uem coz inh ou para eles. É q ue
nossa locadora é uma mulh er bondosa, em parte. E Gorch kov nem
conseguiu ficar q uieto até o almoço. Foi entrando nos q uartos de todos,
q uer ch amassem por ele, q uer não ch amassem. Entra assim, sorri, senta-se
numa cadeira por um tempinh o, diz alguma coisa, ou então não diz nada, e
vai embora. Até mesmo pegou o baralh o no q uarto de nosso aspirante da
Marinh a, e eis q ue o fiz eram jogar com três outros h omens. Ele jogou,
jogou um bocado, confundiu-se estupidamente no jogo, fez umas três ou
q uatro cartadas e parou de jogar. “ Não, disse, é q ue eu assim… apenas
assim, disse” e saiu desse q uarto. Encontrou-me no corredor, segurou-me
ambas as mãos, olh ou bem nestes meus olh os, mas de maneira algo
estranh a, apertou minh a mão e se afastou de mim, sorrindo o tempo todo,
mas com um sorriso penoso, bem esq uisito, igual a um morto. Sua mulh er
ch orava de alegria; estava tudo tão alegre no q uarto deles, como se fosse
uma festa. Almoçaram depressa. E eis q ue ele diz à sua esposa, após o
almoço: “ Escute aí, meu benz inh o, e se eu me deitar um pouco? ” , e foi
assim para a cama. Ch amou pela sua filh a, pôs a mão na cabecinh a dela e
alisou a cabecinh a daq uela criança por muito, mas muito tempo. Depois se
voltou novamente para sua mulh er: “ E Pêtenka, h ein? Nosso Pêtia, disse,
Pêtenka? … ” . Sua mulh er se benz eu e lh e responde q ue ele já faleceu. “ Sim,
sim, sei, sei de tudo: agora Pêtenka está no reino de Deus” . Sua esposa
percebe, pois, q ue ele não está bem, q ue o acontecido o deix ou totalmente
abalado, e diz a ele: “ Você faria bem, meu q uerido, se dormisse” . —“ Sim,
está bem, agora eu… só um pouq uinh o” . Então lh e virou as costas, ficou
deitado por algum tempo, depois se virou de novo, q uerendo diz er alguma
coisa. Sua esposa não ouviu direito, perguntou: “ O q uê, meu amigo? ” . Mas
ele não respondeu. Ela esperou um pouco, pensou q ue o marido adormecera
e saiu por uma h orinh a, indo ver a locadora. Voltou uma h ora depois e viu
q ue o marido não acordara ainda, q ue estava deitado sem se mover. Ela
pensou q ue estivesse dormindo, então se sentou e começou a faz er algo lá.
Agora conta q ue trabalh ou por meia h ora e mergulh ou tanto em sua
meditação q ue nem seq uer se recorda mais em q ue estava pensando, diz
apenas q ue se esq ueceu do marido. Subitamente, foi acordada por uma
sensação angustiante e se surpreendeu, antes de tudo, com aq uele silêncio
sepulcral em seu q uarto. Olh ou para a cama e viu o marido deitado na
mesma posição. Então se acercou dele, tirou a coberta e viu q ue já estava
todo frioz inh o: morreu, mãez inh a, morreu esse nosso Gorch kov, morreu de
repente, como se um raio o tivesse matado! E por q ue foi q ue morreu… só
Deus sabe disso. E isso me perturbou tanto, Várenka, q ue até agora não
consigo recuperar-me. Nem posso acreditar q ue um h omem possa ter
morrido assim tão simplesmente. E q ue coitado, q ue pobre-diabo é q ue foi
esse Gorch kov! Ah , q ue destino, mas q ue destino foi esse! Sua esposa está
ch orando, toda assustada. A menina se recolh eu num canto q ualq uer. Há
tanto corre-corre, ali no q uarto, vão faz er uma perícia médica… nem posso
diz er-lh e com toda a certez a. Mas q uanta pena é q ue estou sentindo,
tamanh a pena! É triste a gente pensar q ue não sabe mesmo q ue dia nem a
q ue h ora… É q ue morremos assim, por nada…
Seu
M ak ar D êvuch k in.
1 9 de setembro.
Prez ada senh orita Varvara Alex éievna!
Apresso-me a avisá-la, minh a amiga, de q ue Rataz iáiev arranjou para
mim um emprego com um escritor. Alguém veio à sua casa e lh e troux e um
manuscrito tão volumoso q ue, graças a Deus, terei muito trabalh o. Só q ue a
letra é tão ilegível q ue nem sei como procederia àq uilo, porém o autor ex ige
q ue eu o copie logo. E o q ue ele escreve é assim, como se a gente não
entendesse coisa nenh uma… Combinamos, pois, q ue me pagaria q uarenta
copeq ues por folh a. Escrevo-lh e tudo isso, minh a q uerida, porq ue terei
agora um dinh eiro a mais. Pois bem, e agora adeus, mãez inh a. Logo me
ponh o a trabalh ar.
Seu fiel amigo
M ak ar D êvuch k in.

2 3 de setembro.
Meu caro amigo Makar Alex éievitch !
J á vai para três dias, amigo meu, q ue não lh e escrevo nada, mas tive cá
muitas, muitas preocupações e fiq uei muito angustiada.
Foi anteontem q ue Bý kov veio à nossa casa. Eu estava soz inh a, Fedora
tinh a ido a algum lugar. Abri a porta e fiq uei tão assustada, q uando o vi, q ue
não tive mais nem como me mover. Senti q ue empalidecera. Ele entrou,
segundo seu h ábito, com altas risadas, pegou uma cadeira e se sentou.
Passei muito tempo sem me recompor e me sentei, afinal, num canto para
trabalh ar. Logo ele parou de rir. Parece q ue se surpreendeu com minh a
aparência. Tenh o emagrecido tanto, nestes últimos tempos; minh as faces e
meus olh os ficaram cavados; estava pálida como um lenço… de fato, seria
difícil alguém q ue me conh ecera h avia um ano reconh ecer-me agora. Ele
me fitou longa e atentamente; por fim, alegrou-se de novo. Disse uma coisa
daq uelas; não lembro o q ue lh e respondi, mas ele tornou a rir. Passou uma
h ora inteira sentado em meu q uarto; falou comigo por muito tempo e me
indagou sobre várias coisas. Finalmente, antes de se despedir, segurou-me a
mão e disse (escrevo todas as palavras dele para o senh or): “ Varvara
Alex éievna! Entre nós seja dito q ue Anna Fiódorovna, sua parenta e minh a
conh ecida bem próx ima e amiguinh a, é uma mulh er vilíssima” . (Então a
ch amou ainda de um nome indecente.) “ Foi ela q uem tirou sua priminh a
também do bom caminh o e levou você mesma à perdição. Eu também, por
minh a parte, fui o vilão dessa h istória, só q ue não adianta falar, q ue as
coisas da vida são essas” . Então rompeu a gargalh ar com a força toda.
Depois comentou q ue não era nada eloq uente e q ue o principal, aq uilo q ue
lh e cumpria ex plicar, mandando os deveres da nobrez a q ue não se calasse a
respeito, já fora declarado, e q ue ele passaria agora, em breves termos, a
contar o resto. Então me anunciou q ue me pedia em casamento, q ue
considerava como seu dever restituir minh a h onra, q ue era rico, q ue me
levaria, depois do casamento, para sua faz enda, lá nas estepes, q ue q ueria
caçar lebres por lá, mas q ue nunca retornaria a Petersburgo, porq uanto a
vida petersburguense era um nojo, q ue tinh a em Petersburgo, conforme ele
mesmo se ex pressou, um sobrinh o imprestável, tendo ele jurado q ue o
deserdaria, e q ue era por esse ex ato motivo, ou seja, desejando ter h erdeiros
legítimos, q ue me pedia em casamento e q ue era essa a raz ão principal de
seu pedido. Notou, a seguir, q ue minh a vida era bastante pobre, q ue não era
de admirar eu ter ficado doente, morando numa ch oupana dessas, e me
predisse uma morte iminente se eu continuasse vivendo assim tão só por um
mês, e acrescentou q ue os apartamentos eram nojentos em Petersburgo e
acabou perguntando se eu não precisava de alguma coisa.
Fiq uei tão estupefata com sua proposta q ue me pus a ch orar, nem sei por
q ual dos motivos. Ele tomou meu ch oro por um agradecimento e me disse
q ue sempre tivera a certez a de eu ser uma moça bondosa, sensível e
instruída, mas q ue não se atrevera, de resto, à tal medida sem antes se
informar, nos mínimos detalh es, sobre a minh a conduta atual. Então me
indagou acerca do senh or, disse ter ouvido falarem de tudo e saber q ue o
senh or era um h omem de regras nobres, q ue ele não q ueria, por sua parte,
ficar devendo ao senh or, e perguntou se q uinh entos rublos lh e bastariam por
tudo q uanto fiz era por mim. Quando lh e ex pliq uei q ue não se pagava com
dinh eiro algum o q ue o senh or fiz era por mim, ele me disse q ue era tudo
uma bobagem, tudo por causa dos romances, q ue eu era ainda jovem e lia
poemas, q ue os romances corrompiam as moças, q ue os livros não faz iam
outra coisa senão estragar a moral, e q ue ele mesmo detestava q uaisq uer
livros; depois me aconselh ou a viver até a idade dele e só então julgar a
respeito das pessoas: “ Então” , acrescentou, “ é q ue vai conh ecê-las” . Disse,
em seguida, para eu refletir direitinh o em suas propostas, q ue lh e seria
muito desagradável se eu desse um passo tão importante sem antes ter
refletido, acrescentou q ue a imponderação e a empolgação destruíam a
juventude inex periente, mas q ue ele almejava pela resposta favorável da
minh a parte e q ue, caso contrário, teria finalmente de se casar com uma
comerciante em Moscou por ter jurado, no diz er dele próprio, deserdar
aq uele canalh a do seu sobrinh o. Deix ou à força, em cima de meu bastidor,
q uinh entos rublos, diz endo q ue eram para comprar bombons; disse q ue em
sua faz enda eu engordaria feito uma panq ueca, q ue rolaria, na casa dele,
como um q ueijo pela manteiga,71 q ue ora tinh a montes de afaz eres, q ue
passara o dia todo mex endo com seus negócios e q ue dera agorinh a um pulo
em minh a casa tão só de passagem. Depois foi embora. Fiq uei pensando,
pensei em muitas coisas, sofri a pensar, meu amigo, e afinal tomei a minh a
decisão. Vou casar-me com ele, amigo meu, q ue tenh o de aceitar essa sua
proposta. Se alguém pudesse livrar-me da minh a desonra, restituir meu
nome h onesto, afastar de mim a pobrez a, as provações e desgraças por vir,
seria unicamente ele. O q ue mais eu esperaria do meu futuro, o q ue mais
pediria ao meu destino? Fedora diz q ue não se deve perder a felicidade
própria e q uestiona o q ue se ch amaria, nesse caso, de felicidade. Eu, pelo
menos, não encontro outro caminh o para mim, meu amigo inestimável. O
q ue tenh o a faz er? J á estraguei, trabalh ando, toda a saúde minh a; nem posso
trabalh ar, ademais, o tempo todo. Procurar um emprego fora? Então vou
definh ar de tanta tristez a e, além disso, não vou agradar a ninguém. Sou
doentia por naturez a e sempre serei, portanto, um fardo nas costas de
outrem. É claro q ue nem agora vou ao paraíso, mas o q ue me resta faz er,
meu amigo, o q ue me resta faz er? Que escolh a é q ue tenh o?
Não lh e pedi conselh os. Quis refletir soz inh a. A decisão q ue o senh or
acaba de ler é inalterável, e vou anunciá-la de imediato a Bý kov q ue já me
apressa a tomar uma decisão definitiva. Ele disse q ue seus negócios não
estavam esperando, q ue lh e cumpria partir e não se podia adiar tudo por
conta de tais ninh arias. Sabe lá Deus se serei feliz , ficando meu destino em
Seu sacrossanto e misterioso poder, mas estou decidida. Diz em q ue Bý kov
é um h omem bondoso; ele h á de me respeitar, e pode ser q ue eu também
venh a a respeitá-lo. O q ue mais esperaria do nosso matrimônio?
Comunico-lh e tudo, Makar Alex éievitch . Tenh o certez a de q ue
compreenderá toda a minh a angústia. Não me distraia da minh a intenção.
Seus esforços serão inúteis. Pondere, em seu próprio coração, tudo q uanto
me obrigou a agir assim. De início, fiq uei muito inq uieta, mas agora estou
mais calma. Não sei o q ue h á pela frente. Mas, h aja lá o q ue h ouver, q ue
venh a o q ue Deus mandar! …
Veio Bý kov, e deix o minh a carta inacabada. Queria ainda diz er muita
coisa ao senh or. Bý kov já está aq ui!
V .D .

2 3 de setembro.
Mãez inh a Varvara Alex éievna!
Eu me apresso, mãez inh a, a responder-lh e; eu me apresso, mãez inh a, a
declarar-lh e q ue estou surpreso. Tudo isso é assim, meio errado… Ontem
enterramos Gorch kov. Sim, é isso, Várenka, é bem isso: Bý kov agiu
nobremente, mas veja apenas, minh a q uerida, se você não consente rápido
demais. É claro q ue tudo se faz por vontade de Deus, é assim mesmo e h á
de ser assim infalivelmente, ou seja, deve sem falta h aver a vontade de
Deus nisso, e a providência do Criador celestial é, por certo, tão boa q uanto
misteriosa, e os destinos da gente também, os destinos também. E Fedora
simpatiz a com você, igualmente. É claro q ue ficará agora feliz , mãez inh a,
q ue viverá abastada, minh a pombinh a, minh a yássotch k a, minh a adorável,
anjinh o meu… mas apenas é rápido demais, Várenka, está vendo? … Sim,
os negócios… o senh or Bý kov tem uns negócios ali… mas é claro: q uem
não teria negócios, e ele também pode ter alguns, por acaso… pois eu o vi,
q uando ele saía da sua casa. Um h omem vistoso, vistoso, sim, e até mesmo
um h omem vistoso demais. Só q ue isso tudo é assim, meio errado, e não se
trata ex atamente de ele ser um h omem vistoso, e eu cá também estou agora
um tanto fora de mim. Como é q ue vamos agora escrever essas nossas
cartas um para o outro, h ein? Eu cá, como eu cá ficarei soz inh o? Pois eu,
meu anjinh o, pondero tudo, pondero tudo, conforme você me escreveu aí,
pondero tudo isso em meu coração, todas essas causas. J á terminava de
copiar a vigésima folh a, e eis q ue se deram, nesse meio-tempo, tais
acontecimentos! É q ue está partindo, mãez inh a, e precisa faz er ainda
diversas compras, comprar vários sapatinh os aí, um vestidinh o, e h á, como
q ue de propósito, uma loja q ue conh eço na Gorókh ovaia: ainda lembra
como eu a descrevia amiúde para você? Mas não! Como assim, mãez inh a, o
q ue está faz endo? É q ue não pode partir agora, é absolutamente impossível,
de jeito nenh um! É q ue precisa faz er compras grandes e arranjar uma
carruagem. E, além do mais, o tempo está ruim agora: veja só aq uela ch uva
torrencial, uma ch uva tão… tão molh ada, e ainda… ainda vai sentir frio,
meu anjinh o, esse coraçãoz inh o seu estará com frio! É q ue você tem medo
daq uele h omem estranh o, mas, ainda assim, parte com ele. E eu cá, com
q uem é q ue ficarei aq ui soz inh o? Fedora diz lá q ue uma grande felicidade
espera por você… mas é uma baba desenfreada e q uer acabar comigo. Será
q ue vai assistir à missa vespertina h oje, mãez inh a? Iria eu também, para vê-
la. É verdade, mãez inh a, é pura verdade q ue é uma moça instruída, virtuosa
e sensível, mas é melh or q ue ele se case com a tal da comerciante! O q ue
está ach ando, mãez inh a? É melh or q ue se case com a comerciante, sim! Vou
dar um pulinh o em sua casa, minh a Várenka, tão logo escurecer, e ficar por
uma h orinh a. É q ue escurece agora cedo, então darei um pulinh o aí. Irei
h oje, mãez inh a, sem falta, por uma h orinh a. Agora você está à espera de
Bý kov, e, q uando ele for embora, então… Espere aí, mãez inh a, q ue darei
um pulinh o, sim…
M ak ar D êvuch k in.

2 7 de setembro.
Amigo meu, Makar Alex éievitch !
O senh or Bý kov disse q ue me cumpria sem falta ter o pano h olandês
para faz er três dúz ias de camisas. É preciso, pois, encontrarmos, o mais
depressa possível, umas costureiras de roupa branca para confeccionar duas
dúz ias, e o tempo está muito curto. O senh or Bý kov anda z angado, diz q ue
esses trapos dão uma trabalh eira imensa. Nosso casamento será daq ui a
cinco dias, e partiremos logo no dia seguinte. O senh or Bý kov está
apressado, diz q ue não temos tamanh o tempo a perder com essas bobagens.
Estou ex austa de tantos afaz eres e mal me aguento de pé. Há um montão de
coisas a faz er, mas juro q ue seria melh or se não h ouvesse coisa nenh uma. E,
mais ainda, as blondes72 e outras rendas estão em falta, portanto, temos de
comprar algumas, diz endo o senh or Bý kov q ue não q uer q ue sua esposa se
vista como uma coz inh eira, e q ue me cumpre sem falta “ secar o nariz 73 a
todas as faz endeiras” . É assim q ue ele mesmo fala. Pois bem, Makar
Alex éievitch : dirija-se, por favor, à loja da Madame Ch iffon,74 na
Gorókh ovaia, e peça, primeiro, q ue mande umas costureiras de roupa
branca para nossa casa e, segundo, q ue trate de vir ela também. Hoje estou
doente. Faz tanto frio em nosso apartamento novo, e a desordem está
tremenda. A titia do senh or Bý kov mal consegue respirar de tão velh a.
Receio q ue acabe falecendo antes de nossa partida, mas o senh or Bý kov diz
q ue não faz mal, q ue ela se recomporá. Há uma tremenda desordem em
nossa casa. O senh or Bý kov não mora conosco, de sorte q ue os criados
fogem todos, sabe lá Deus para onde. Por vez es, é Fedora q uem nos atende
soz inh a, pois o camareiro do senh or Bý kov, q ue está z elando por tudo, anda
ninguém sabe por onde h á q uase três dias. O senh or Bý kov vem toda
manh ã, fica z angado e ontem espancou um servente do prédio, o q ue lh e
valeu uns problemas com a polícia… Não tinh a, eu mesma, nem com q uem
lh e enviar esta carta. Envio-a pelo correio urbano. Sim! Quase me esq ueci
do mais importante. Diga à Madame Ch iffon para trocar sem falta as
blondes, de acordo com a amostra de ontem, e vir pessoalmente e me
mostrar as q ue ela tiver escolh ido. E diga ainda q ue mudei de ideia q uanto
ao canez ou,75 já q ue teria de bordá-lo com um croch et.76 E outra coisa: q ue
as letras dos monogramas sejam bordadas, naq ueles lenços, com o
tambour77 — o senh or está ouvindo? —, com o tambour e não com o ponto
ch eio. Pois veja se não esq uece: com o tambour! E mais uma coisa da q ual
já me esq uecia! Diga a ela, pelo amor de Deus, para bordar aq uelas
folh inh as do mantelete em alto estilo, com franjas de cordonnet,78 e para
depois revestir a gola de rendas ou de f albalas79 largos. Transmita-lh e isso,
Makar Alex éievitch , por favor.
Sua
V .D .
P. S.: Estou tão envergonh ada de tanto atenaz ar o senh or com estas
incumbências minh as. Anteontem também passou a manh ã inteira correndo.
Mas faz er o q uê? Não h á ordem nenh uma em nossa casa, e eu mesma estou
indisposta. Não se apoq uente, pois, comigo, Makar Alex éievitch ! Quanta
angústia! Ah , mas o q ue será, meu amigo, meu caro, meu generoso Makar
Alex éievitch ? Tenh o medo até de olh ar para meu futuro. Pressinto algo, o
tempo todo, e vivo como numa fumaça.
P. P. S.: Pelo amor de Deus, meu amigo, veja se não esq uece nada
daq uilo q ue acabei de lh e diz er! Receio, o tempo todo, q ue o senh or acabe
errando de algum jeito. Lembre-se, pois: com o tambour e não com o ponto
ch eio.
V .D .

2 7 de setembro.
Prez ada senh orita Varvara Alex éievna!
Cumpri todas as suas incumbências com bastante z elo. A Madame
Ch iffon diz q ue ela mesma já pensava em bordar com o tambour, sendo
aq uilo, talvez , mais conveniente… não sei, q ue não entendi direito. E outra
coisa: você escreveu aí sobre os f albalas, e ela falou também desses
f albalas. Só q ue, mãez inh a, já esq ueci o q ue ela me disse sobre os f albalas.
Apenas me lembro de ela ter dito muita coisa: uma baba tão ruim assim! O
q ue seria? Pois bem, ela mesma lh e contará de tudo. E eu, minh a mãez inh a,
fiq uei todo ex tenuado. Nem fui h oje à minh a repartição. Mas você, minh a
q uerida, fica desesperada à toa. Estou pronto, para sua tranq uilidade, a
correr por todas as lojas q ue h ouver. Está escrevendo q ue tem medo de
olh ar para seu futuro. Só q ue h oje mesmo, lá pelas sete h oras, ficará
sabendo de tudo. A Madame Ch iffon irá pessoalmente à sua casa. Não se
desespere, pois: tenh a esperança, mãez inh a; q uem sabe se tudo não mudará
finalmente para melh or, h ein? Pois é aq uilo ali, aq ueles f al- ba- las
malditos… eh , mas aq ueles f albalas, pux a vida! Até q ue eu daria, meu
anjinh o, um pulinh o em sua casa, daria, sim, daria sem falta; até mesmo me
acerq uei, umas duas vez es, desse portão de seu prédio, mas… É q ue o tal de
Bý kov, ou seja, q uero diz er q ue o senh or Bý kov anda z angado, o tempo
todo, pois então é aq uilo ali… Mas não adianta falar!
M ak ar D êvuch k in.

2 8 de setembro.
Prez ado senh or Makar Alex éievitch !
Corra logo, pelo amor de Deus, à joalh eria. Diga ao ourives q ue não
precisa faz er aq ueles brincos com pérolas e esmeraldas. O senh or Bý kov
diz q ue é lux o demais, q ue o preço morde. Anda z angado; diz q ue, já sem
aq uilo, seu bolso está ficando vaz io e q ue a gente rouba dele, e ontem disse
q ue, se soubesse de antemão dessas despesas todas, nem se envolveria
comigo. Diz q ue, tão logo nos casarmos, vamos depressa embora, q ue não
h averá convidados e q ue não me cabe nem pensar em saracotear e dançar,
pois as festas estão ainda bem longe. É desse jeito q ue fala! Mas, seja Deus
testemunh a, será q ue preciso daq uilo tudo? Foi o senh or Bý kov mesmo
q uem o encomendou, não foi? Não ouso nem lh e responder nada a ele, q ue
é tão irascível. O q ue é q ue será de mim?
V .D .

2 8 de setembro.
Minh a q ueridinh a Varvara Alex éievna!
Por mim… ou seja, é o ourives q uem fala… por mim, tudo bem, só q ue
eu q ueria antes diz er q ue eu mesmo estava doente e não podia nem me
levantar da cama. Agora q ue veio esse momento de az áfama necessária,
agora mesmo é q ue os resfriados me atacaram, q ue o tinh oso os leve!
Também lh e participo q ue, para completar estas minh as desgraças, Sua
Ex celência também se dignou a ser rigoroso, z angando-se e gritando muito
com Yemelian Ivânovitch , tanto assim q ue acabou, coitadinh o, ficando
cansado. E eis q ue lh e participo tudo isso. Gostaria de lh e escrever mais
alguma coisinh a, porém temo q ue lh e dê trabalh o. É q ue sou, mãez inh a, um
h omem tolo, simplório, escrevo tudo q uanto me passa pela cabeça, e pode
ser q ue você, de alguma maneira, esteja aq uilo ali… Mas não adianta falar!
Seu
M ak ar D êvuch k in.

2 9 de setembro.
Varvara Alex éievna, minh a q uerida!
Hoje vi Fedora, minh a q ueridinh a. Ela diz q ue você se casará amanh ã,
q ue irá embora depois de amanh ã e q ue o senh or Bý kov já está arranjando
os cavalos. Quanto a Sua Ex celência, já informei você a respeito, mãez inh a.
E outra coisa: ch eguei a conferir as contas daq uela loja na Gorókh ovaia;
está tudo certo, mas é caro demais. Mas por q ue será q ue o senh or Bý kov se
z anga com você? Pois bem: seja feliz , mãez inh a! Estou feliz ; estarei feliz ,
sim, contanto q ue você esteja feliz . Até iria à igreja, mãez inh a, porém não
posso, q ue meus lombos estão doendo. E lh e falo ainda sobre as cartas:
q uem é q ue vai agora ajudar a gente a trocá-las, mãez inh a? Sim! Mas você
cumulou Fedora de favores, minh a q uerida, não é? Pois fez uma boa ação,
minh a amiga, fez muito bem. Uma boa ação! É q ue nosso Senh or vai
abençoá-la por cada uma das suas boas ações. As boas ações não ficam sem
recompensa, e a virtude sempre será coroada com os louros da justiça
divina, mais cedo ou mais tarde. Mãez inh a! Gostaria de lh e escrever muita
coisa ainda, escreveria para você toda h ora, todo minuto, escreveria, sim!
Ainda ficou comigo um livrinh o seu, os “ Contos de Bêlkin” , e não o tome
de mim, mãez inh a, mas me presenteie com ele, minh a q ueridinh a, sabe?
Não é q ue me apeteça tanto lê-lo. Mas você mesma sabe, mãez inh a, q ue o
inverno está ch egando: as noites serão longas, e vou ficar triste e q uerer ler
alguma coisa. Pois eu, mãez inh a, deix arei meu apartamento e me mudarei
para seu apartamento antigo, q ue vou alugar de Fedora. Agora não
abandonarei mais essa mulh er h onesta por nada no mundo, q ue é, ainda por
cima, tão laboriosa assim. Ontem ex aminei minuciosamente aq uele seu
apartamento esvaz iado. E seu bastidorz inh o está como antes, com sua
costura em cima, ali no canto, intacto. Ex aminei, pois, a sua costura. Havia
lá também uns retalh oz inh os diversos. E você tinh a começado a enrolar
seus fioz inh os numa cartinh a minh a. Encontrei uma folh inh a de papel em
cima de sua mesinh a, e naq uele papelz inh o estava escrito: “ Prez ado senh or
Makar Alex éievitch , estou com pressa… ” e nada mais. Decerto alguém a
interrompeu no momento mais interessante. E sua caminh a está no canto,
atrás dos biomboz inh os… Minh a q ueridinh a! ! ! Pois bem: adeus, adeus, e
veja se me responde de alguma maneira, o mais depressa possível, a esta
cartinh a, pelo amor de Deus.
M ak ar D êvuch k in.

3 0 de setembro.
Meu inestimável amigo Makar Alex éievitch !
Está tudo feito! Minh a sorte está lançada; não sei q ual é, mas me
submeto à vontade de nosso Senh or. Partimos amanh ã. Despeço-me do
senh or pela última vez , meu inestimável, amigo meu, meu benfeitor, meu
q uerido! Não se entristeça por minh a causa, viva feliz , lembre-se de mim, e
venh a a bênção de Deus envolvê-lo! Eu me lembrarei do senh or com
freq uência, em meus pensamentos e minh as rez as. Eis q ue este tempo
ch egou ao fim! Serão poucas as recordações agradáveis de meu passado q ue
levarei para minh a vida nova, mas tanto mais valiosa h á de ser minh a
lembrança do senh or e tanto mais precioso o senh or mesmo será ao meu
coração. É meu único amigo; o senh or foi o único q ue me amou por aq ui. É
q ue eu via tudo, é q ue eu sabia como o senh or me amava! Ficava feliz
apenas com um sorriso meu, com uma só linh a de minh a carta. Agora terá
de se desacostumar de mim! Como é q ue vai ficar aí soz inh o? Com q uem é
q ue ficará, meu bondoso, inestimável e único amigo? Deix o o livrinh o, o
bastidor e a carta iniciada com o senh or: q uando olh ar para aq uelas linh as
q ue comecei a escrever, continue lendo, em sua mente, tudo q uanto q uiser
ouvir ou ler da minh a parte, tudo q uanto eu lh e escreveria… E seriam
muitas aq uelas coisas q ue lh e escreveria agora! Lembre-se da sua pobre
Várenka q ue o amou tanto assim. Todas as suas cartas ficaram com Fedora,
na gaveta superior de sua cômoda. Escreve aí q ue está doente, mas o senh or
Bý kov não me deix a ir h oje a lugar algum. Vou escrever-lh e, amigo meu,
prometo, mas só Deus sabe o q ue pode acontecer. Despeçamo-nos, pois,
agora e para sempre, amigo meu, meu q uerido, meu q ueridinh o… sim, para
sempre! Oh , como o abraçaria agora! Adeus, meu amigo, adeus, adeus.
Viva feliz ; tenh a saúde. Eternamente rez arei pelo senh or. Oh ! Como estou
triste, como toda a minh a alma fica apertada. O senh or Bý kov ch ama por
mim. Sua eternamente amorosa
V .
P. S.: Minh a alma está tão ch eia agora, tão ch eia de lágrimas…
Os prantos me sufocam e me laceram. Adeus.
Meu Deus, q ue tristez a!
Lembre-se da sua pobre Várenka, lembre-se!

Mãez inh a, Várenka, minh a q ueridinh a, minh a inestimável! Eis q ue a


levam embora, eis q ue você se vai! Mas seria melh or agora q ue
arrancassem o coração do meu peito em vez de me privar de você! O q ue
está faz endo? Está ch orando, mas, ainda assim, vai embora? ! Acabo de
receber essa sua cartinh a, toda salpicada de lágrimas. É q ue você não q uer
ir; é q ue a levam à força; é q ue você tem pena de mim; é q ue você me ama!
Mas como assim, com q uem vai ficar agora? Ali seu coraçãoz inh o ficará
triste, enojado, gelado. As saudades o sugarão todo, a tristez a vai rasgá-lo
ao meio. Você morrerá ali, vão colocá-la na terra úmida e não h averá
ninguém q ue a pranteie ali. E o senh or Bý kov não fará outra coisa senão
caçar aq uelas lebres dele… Ah , mãez inh a, mãez inh a! O q ue é q ue decidiu
faz er, como é q ue pôde resolver q ue faria uma coisa dessas? O q ue fez , o
q ue fez , o q ue foi q ue você fez consigo? É q ue a levarão ali para o caix ão, é
q ue a farão morrer, meu anjinh o, ali. É q ue você, mãez inh a, é tão fraq uinh a
como uma pena! E onde é q ue eu mesmo estive? Por q ue estava apenas
olh ando, imbecil q ue eu sou? Via, pois, q ue a criança andava divagando,
q ue simplesmente a cabecinh a dessa criança estava dodói! Era tudo tão
simples, mas não: sou um imbecil mesmo, não penso em nada, não vejo
nada, como se estivesse com a raz ão, como se o assunto não fosse
comigo… e ainda fui correndo comprar esses f albalas! Não, mas me
levantarei, Várenka; talvez convalesça até amanh ã, então me levantarei,
sim! … Vou atirar-me, mãez inh a, embaix o das rodas, mas não a deix arei ir
embora! Mas, pux a vida, o q ue é isso, no fim das contas? Com q ue direito é
q ue tudo isso se faz ? Partirei com você; correrei atrás da sua carruagem, se
não me levar consigo, e vou correr com todas as minh as forças, até q ue
minh a alma me abandone. Será q ue sabe apenas, mãez inh a, o q ue h á ali,
para onde é q ue está indo? Talvez não saiba disso, então me pergunte a
mim! Ali é uma estepe, minh a q uerida, uma estepe nua, uma estepe… nua
q ue nem esta palma da minh a mão! Ali anda uma baba insensível, e um
mujiq ue anda ali, bronco e bêbado. Ali as folh as já caíram todas das
árvores, ali está ch ovendo, ali faz frio, mas é bem ali q ue você vai! Pois é, o
senh or Bý kov tem ali uma ocupação: vai mex er com aq uelas lebres; e você
mesma, h ein? Quer ser uma faz endeira da vida, mãez inh a? Mas, meu
q uerubinz inh o! Olh e só para si mesma: será q ue se parece com uma
faz endeira? … Como é q ue poderia ser isso, Várenka? E para q uem é q ue
vou escrever minh as cartas, mãez inh a? Pois sim, só leve isso em
consideração, mãez inh a: para q uem, digamos, é q ue ele vai escrever aq uelas
cartas? A q uem é q ue vou ch amar de mãez inh a, a q uem é q ue vou ch amar
desse nome tão gentil? Onde é q ue vou encontrá-la depois, meu anjinh o?
Vou morrer, Várenka, h ei de morrer, q ue meu coração não suportará
tamanh a desgraça! Amava-a como o mundo de Deus, como uma filh a de
sangue; amava tudo em você, mãez inh a, minh a q uerida, e só vivia, eu
mesmo, para você! Trabalh ava, copiava aq ueles papéis, caminh ava,
passeava e colocava as minh as observações no papel, em forma daq uelas
cartas amistosas, só porq ue você, mãez inh a, morava aí de frente para mim,
bem pertinh o. Talvez você nem soubesse disso, mas tudo isso era
justamente assim! Pois escute, mãez inh a, e julgue aí, minh a q ueridinh a
mimosa: como é q ue pode ser q ue você abandone a gente? É q ue não pode
ir embora, minh a q uerida, pois isso é impossível; é q ue, decididamente, não
h á nenh uma possibilidade de você partir! É q ue está ch ovendo, e você é
fraq uinh a, você se resfriará. Sua carruagem ficará molh ada, ficará molh ada
sem falta. Mal sairá da cidade, ficará q uebrada, h averá de se q uebrar de
propósito. É q ue as carruagens são feitas de modo precário, aq ui em
Petersburgo! Conh eço, aliás, todos os carpinteiros q ue as faz em: eles só
q uerem fabricar um brinq uedinh o q ualq uer, só para mostrar o serviço, mas
não as constroem sólidas, juro q ue não as constroem sólidas! Eu, mãez inh a,
tombarei de joelh os diante do senh or Bý kov; vou provar a ele, vou provar
tudo! E você, mãez inh a, também lh e prove e prove com argumentos! Diga
q ue vai ficar e q ue não pode ir embora! … Ah , mas por q ue ele não se casou
em Moscou com aq uela comerciante? Tomara q ue se tenh a casado ali com
ela! Ela combinaria melh or com ele, combinaria bem melh or, sim, e sei cá
por q ue motivo! E eu teria você aq ui, ao meu lado. Mas o q ue tem a ver
com ele, mãez inh a, com aq uele Bý kov? Por q ue é q ue se tornou, de repente,
tão caro assim a você? Talvez seja porq ue ele só anda comprando os
f albalas para a gente, talvez seja apenas por isso? Mas o q ue têm esses
f albalas, para q ue eles servem? Mas são uma bobagem, mãez inh a! Trata-se
da vida h umana aq ui, e, q uanto aos f albalas, são apenas um pano,
mãez inh a; são apenas, mãez inh a, um retalh o q ualq uer. Mas eu mesmo, tão
logo receber este meu ordenado, comprarei montes de falbalas para você,
comprarei, sim, mãez inh a, até conh eço uma lojinh a por lá; deix e apenas q ue
me paguem o tal ordenado, meu q uerubinz inh o Várenka! Ah , Deus meu
Senh or! Pois você parte mesmo, com o senh or Bý kov, para aq uela estepe,
parte e não volta mais? Ah , mãez inh a! … Não, mas você ainda me
escreverá, ainda me escreverá mais uma cartinh a sobre todas aq uelas coisas
e, q uando tiver partido, escreverá para mim dali também. Senão, meu anjo
celeste, será a última carta, só q ue não pode ser, de jeito nenh um, q ue esta
seja a última carta. Como é q ue seria mesmo, assim tão de repente, a última
carta? Mas não, vou escrever, e você também escreva para mim… É q ue até
meu estilo está agora para se formar… Ah , minh a q uerida, mas o q ue tem
este meu estilo? Nem seq uer sei agora o q ue estou escrevendo, realmente
não sei, nada sei nem releio o escrito, nem corrijo o estilo, mas escrevo
assim, só por escrever mesmo, só para lh e escrever o mais q ue puder…
Minh a q ueridinh a, minh a q uerida, minh a mãez inh a!
1 Príncipe Vladímir Fiódorovitch Odóievski (1804-1869): escritor russo de vertente romântica,
autor de obras góticas e fantásticas.
2 Planta de origem asiática, com flores bonitas e de várias cores, cujo nome científico é
Impatiens balsamina.
3 Provérbio russo.
4 Forma diminutiva e carinh osa do nome russo Varvara (Bárbara).
5 Ditado russo.
6 Pseudônimo do escritor russo-polonês J óz ef J ulian Sękowski (1800-1858), autor de folh etins
muito populares na época descrita.
7 Uma ampla vestimenta usada em casa (em alemão).
8 Moeda russa eq uivalente a cem copeq ues, sendo q ue um rublo em papel-moeda valia, na
década de 1830, 27 copeq ues de prata.
9 O sobrenome do protagonista é derivado da palavra russa девушка (moça), com alusão à sua
índole pacata e ingênua.
10 Cavalo alado (na mitologia grega), símbolo da inspiração poética.
11 Espécie de x arope feito de morango, framboesa ou semelh antes bagas e servido como
sobremesa (em russo).
12 Antiga medida de comprimento russa, eq uivalente a 71 cm.
13 Forma diminutiva e carinh osa do nome Maria.
14 Espécie de ch aleira aq uecida por um tubo central com brasas e munida de uma torneira na
parte inferior.
15 Cidade localiz ada na parte europeia da Rússia, a sul de Moscou.
16 Cidade próx ima de São Petersburgo, situada na ilh a de K ótlin onde fica a principal base da
Marinh a russa no mar Báltico.
17 Apelido pejorativo de finlandeses e estonianos radicados em São Petersburgo.
18 Espécie de largo manto feminino (corruptela do arcaico termo francês).
19 Cita-se ironicamente um trech o da liturgia ortodox a em h omenagem a São J oão Crisóstomo.
20 Forma diminutiva e carinh osa do nome russo Alex andra.
21 Símbolos tradicionais da h ospitalidade eslava.
22 Trata-se das ch amadas “ noites brancas” em São Petersburgo, as q uais ocorrem de maio a
julh o. Durante esse período, o sol não se põe, e as noites permanecem claras (veja Noites brancas e O
eterno marido, de Dostoiévski).
23 Encontro (em francês).
24 Bairro h istórico de São Petersburgo composto de várias ilh as.
25 Matérias escolares q ue consistiam em decorar diálogos em francês (“ conversações” ) ou
palavras soltas (“ vocábulos” ).
26 Bairro h istórico de São Petersburgo cujas ruas são tradicionalmente ch amadas de “ linh as” .
27 Antessala (em russo).
28 Forma diminutiva e carinh osa do nome russo Piotr.
29 Nome coloq uial e diminutivo de uma moeda de 25 copeq ues (em russo).
30 Nome coloq uial e diminutivo de uma moeda de 50 copeq ues (em russo).
31 Locução idiomática russa, q ue traduz uma atitude muito cautelosa, se não pusilânime.
32 Alex andr Serguéievitch Púch kin (1799-1837): o maior poeta russo de todos os tempos,
apelidado pelos contemporâneos de “ o sol da poesia russa” , e um dos autores preferidos de
Dostoiévski.
33 Imenso conjunto de lojas e armaz éns situado no centro h istórico de São Petersburgo.
34 Moeda russa eq uivalente a 10 copeq ues.
35 Ch apéus de peles usados no inverno.
36 Meu benz inh o (arcaísmo russo).
37 Tenda dos nômades da Ásia Central.
38 Grande rio na parte asiática da Rússia.
39 Alguém q ue tem a barriga amarela (em russo).
40 A avenida Nêvski é uma das principais vias públicas da parte h istórica de São Petersburgo.
41 Vinh o suave de uva (arcaísmo russo).
42 Ch arles-Paul de K ock (1793-1871): escritor francês cujas obras recreativas tiveram um
notável sucesso no século XIX.
43 Termo pejorativo q ue designa uma mulh er de origem pobre (em russo).
44 Livro do filósofo russo Alex andr Gálitch (1783-1848), em q ue ele resume a sua visão da
psicologia h umana.
45 Alusão ao romance sentimental O peq ueno sineiro, do escritor francês François Guillaume
Ducray -Duminil (1761-1819).
46 Balada de Friedrich Sch iller (1759-1805) traduz ida para o russo por Vassíli J ukóvski (1783-
1852).
47 Sobretudo de peles (em russo).
48 Famoso conto de Nikolai Gógol (1809-1852) (Veja Contos russos, Tomo I [tradução e notas
por Oleg Almeida]. Martin Claret, São Paulo, 2014, pp. 149-198).
49 Palas ornadas de franjas de ouro q ue os militares usavam em cada ombro.
50 Os servidores civis e militares do Império Russo dividiam-se em 14 classes consecutivas,
sendo a 1ª (ch anceler, marech al de ex ército ou almirante) a mais alta.
51 Salteado no papel untado de óleo ou manteiga (corruptela ridícula de dois termos franceses).
52 Espécie de mingau de trigo-sarraceno, muito popular na Rússia antiga e moderna.
53 O ch amado Lado Vý borgski: um dos bairros h istóricos de São Petersburgo onde moravam,
na época, os operários e peq uenos servidores públicos.
54 Festa de origem pagã q ue precede a Quaresma, análogo eslavo do Carnaval brasileiro.
55 Grupo, muitas vez es informal, de operários q ue têm a mesma profissão.
56 Conq uistas (em francês).
57 Personagem do romance Clarissa ou A História de uma jovem Lady, de Samuel Rich ardson
(1689-1761), cujo nome passou a designar h omens inescrupulosos em suas relações íntimas,
sedutores tão cínicos q uanto irresistíveis.
58 Apelido coloq uial e, não raro, pejorativo do camponês russo.
59 Alusão ao provérbio russo: “ A pobrez a não é pecado” .
60 Um grão de dormideira (papoula) significa, em russo, uma q uantidade ínfima de comida.
61 Casas de madeira (em russo).
62 Um dos numerosos rios e riach os q ue atravessam a cidade de São Petersburgo.
63 Cerca de 2 metros e 20 centímetros.
64 Personagem típico do folclore russo, um h omem de origem h umilde, pouco inteligente, mas
favorecido pela sorte.
65 Um dos sinônimos coloq uiais da palavra “ bêbado” (em russo).
66 Par de lentes munido de um cabo longo e usado, na época descrita, como óculos.
67 Provérbio russo.
68 Carteira (arcaísmo russo).
69 “ A abelh a do Norte” : jornal literário de orientação conservadora, editado em São Petersburgo
de 1825 a 1864.
70 Leve carruagem de q uatro rodas.
71 A locução idiomática “ rolar como o q ueijo pela manteiga” (кататься, как сыр в масле)
significa aprox imadamente “ levar uma vida agradável, alegre e opulenta” .
72 Rendas brancas (em francês).
73 Locução idiomática russa (утереть нос) q ue significa aprox imadamente “ botar/meter/pôr
alguém no ch inelo” .
74 Literalmente “ trapo” (em francês).
75 Corpete sem mangas (em francês).
76 Agulh a de croch ê (em francês).
77 Bastidor (tambour à broder em francês).
78 Cordão usado como enfeite (em francês).
79 Faix as de tecido pregueado, babados (em francês).
A ANF IT RIÃ
NOV EL A
PRIMEIRA PART E
I
Ordý nov resolveu finalmente mudar de apartamento. A dona da
h abitação q ue ele alugava, viúva idosa e paupérrima de um servidor
público, deix ou Petersburgo por algumas circunstâncias imprevistas e partiu
para o interior, onde viviam seus parentes, sem ter esperado pelo primeiro
dia do mês em q ue venceria o contrato de aluguel. Ao passo q ue o tal
contrato ch egava ao fim, o jovem pensava com lástima nesse seu canto já
antigo e aborrecia-se com a necessidade de abandoná-lo: era pobre, e o
apartamento custava caro. Logo no dia seguinte à partida de sua locadora,
ele pegou seu casq uete e foi perambulando pelas ruelas petersburguenses,
ex aminando todos os anúncios pregados aos portões dos prédios e
escolh endo um edifício q ue fosse mais enegrecido, mais povoado e mais
capital, onde lh e seria o mais cômodo possível encontrar, no apartamento
de alguns moradores pobres, um canto de q ue precisava.
J á estava procurando h avia bastante tempo, com muito z elo, porém
foram umas impressões novas, q uase desconh ecidas, q ue não demoraram a
dominá-lo. Primeiro distraído e negligente, depois atento e, afinal, ch eio de
curiosidade, ele passou a olh ar à sua volta. A multidão e a az áfama urbana,
o barulh o, a movimentação, a novidade dos objetos e da situação toda —
toda essa mesq uinh ez , todas essas miudez as cotidianas de q ue se fartou, h á
tamanh o tempo, um petersburguês ex pedito e atarefado, o q ual se esforça
pela vida afora, nem q ue seja em vão, para conseguir meios de apaz iguar-
se, de aq uietar-se e de acalmar-se em algum ninh o q uente, obtido com
trabalh o, suor e de várias outras maneiras, toda essa prosa vulgar e todo
esse tédio acabaram por despertar nele, pelo contrário, uma sensação
serenamente alegre e luminosa. Suas faces pálidas começaram a cobrir-se
de um leve rubor, seus olh os ficaram brilh ando, como se ex pressassem uma
nova esperança, e eis q ue ele se pôs a tragar avidamente o ar fresco e
gélido. Sentiu uma levez a ex traordinária.
Levava, desde sempre, uma vida pacata e totalmente solitária. Cerca de
três anos antes, ao receber seu grau científico e alcançar uma relativa
liberdade, foi tratar com um velh inh o q ue só conh ecia, até então, por ouvir
falarem dele e passou muito tempo esperando até um mordomo
uniformiz ado consentir em anunciá-lo pela segunda vez . Depois entrou
numa sala de teto alto, escura e vaz ia, ex tremamente enfadonh a, como
ainda sói ocorrer naq uelas antigas casas senh oris q ue subsistem desde a
época das famílias tradicionais, e viu lá um velh inh o recoberto de ordens e
adornado de cãs, amigo e colega de seu pai: era o tutor de Ordý nov. O
velh inh o lh e entregou uma pitadinh a de dinh eiro. A q uantia se revelou
ínfima: era o q ue sobrara da h erança de seu bisavô, leiloada por dívidas.
Indiferente, Ordý nov tomou posse dessa q uantia, despediu-se do seu tutor
para sempre e foi embora. A tarde outonal estava fria e lúgubre; o jovem
estava meditativo, e era certa tristez a inconsciente q ue lh e partia o coração.
Havia fogo em seus olh os; febril, ele sentia calores e calafrios alternados.
Calculou, pelo caminh o, q ue poderia viver, com seus meios próprios, em
torno de dois ou três anos e até mesmo, se meio esfomeado, uns q uatro
anos. Escurecia e ch uviscava. Ele barganh ou o primeiro canto q ue
encontrara e, uma h ora depois, mudou-se para lá. Viveu como q uem se
tivesse trancado num monastério, como q uem renegasse o mundo inteiro.
Em dois anos, asselvajou-se por completo.
Asselvajou-se sem se dar conta disso: por ora, nem lh e passava pela
cabeça a ex istência de outra vida, daq uela vida ruidosa, estrondosa,
constantemente agitada, q ue nunca cessa de mudar, nem de ch amar por nós,
e sempre vem a ser, mais cedo ou mais tarde, inevitável. É verdade q ue não
podia ter deix ado de ouvir falarem dela, porém não a conh ecia nem a
procurara jamais. Vivia, desde criança, de modo ex cepcional, e agora essa
sua ex cepcionalidade estava bem definida. Era devorado pela paix ão mais
profunda e mais insaciável, capaz de ex aurir toda uma vida h umana sem
conceder a tais criaturas como Ordý nov seq uer um palmo em nenh uma
esfera de atividades distintas, práticas e vitais. Aq uela paix ão era a ciência.
Ela consumia, por ora, a sua juventude, envenenava, com um veneno lento
e delicioso, a paz noturna, tirava-lh e tanto a comida saudável como o ar
fresco, q ue nunca estava presente em seu canto abafado, mas, goz ando de
sua paix ão, Ordý nov não q ueria nem reparar nisso. Era novo e, por
enq uanto, não reclamava nada maior. A paix ão transformou-o num recém-
nascido para a vida ex terna, tornou-o inapto, para todo o sempre, a
afugentar q ualq uer gente boa caso lh e fosse, algum dia, necessário
demarcar um cantinh o próprio em seu meio. Há pessoas h ábeis, para as
q uais a ciência é um cabedal nas mãos; q uanto a Ordý nov, sua paix ão era
uma arma apontada para ele mesmo.
Havia nele antes uma propensão inconsciente q ue uma motivação
logicamente nítida para estudar e saber, assim como em todas as outras
atividades, inclusive as mais insignificantes, q ue o atraíam até então. Ainda
criança, era tido como um esq uisitão e não se parecia com seus
companh eiros. Não ch egara a conh ecer seus pais; era tratado pelos
companh eiros, em raz ão de sua índole estranh a e arredia, de forma grosseira
e desumana, tornando-se, portanto, realmente arredio e sombrio; foi
assumindo, pouco a pouco, a sua ex cepcionalidade. Contudo, seus estudos
recolh idos jamais tinh am sido, nem mesmo agora eram, ordenados nem
sistemáticos: só h avia agora um primeiro arroubo, um primeiro ardor, uma
primeira ex altação artística. Ele mesmo vinh a criando seu próprio sistema,
o q ual se desenvolvia por anos, e a imagem de uma ideia, ainda obscura e
imprecisa, mas, em certo sentido, milagrosamente agradável, vinh a
surgindo, aos poucos, em sua alma, adq uirindo já uma forma nova,
iluminada, e essa forma pedia q ue a deix asse sair da sua alma e acabava por
torturá-la; ainda timidamente, ele sentia a originalidade, a verdade e a
independência de sua ideia, e suas forças já se voltavam para a criação q ue
tomava corpo e se fortalecia. Entretanto, o momento da encarnação e da
criação estava ainda bem longe, talvez longe demais, ou era, q uem sabe,
inatingível!
Agora ele estava andando pelas ruas como um alienado, como um
eremita q ue tivesse passado, subitamente, do seu mudo deserto para uma
cidade ruidosa e estrondosa. Tudo lh e parecia novo e esq uisito. Mas ele era
tão alh eio àq uele mundo a fervilh ar e estrondear ao seu redor q ue nem
seq uer pensava em surpreender-se com sua estranh a sensação. Aparentava
nem reparar em seu estado selvagem; pelo contrário, despontou nele uma
sensação feliz , uma espécie de embriaguez , como naq uele faminto a q uem
dessem, após um jejum prolongado, de beber e de comer. Decerto era
estranh o q ue uma novidade tão ínfima de sua situação q uanto uma mudança
de domicílio pudesse obnubilar e perturbar um h abitante de Petersburgo,
nem q ue fosse Ordý nov, mas por outro lado, q ue seja dita a verdade, ainda
não lh e acontecera antes, q uase nenh uma vez , sair a neg ócios.
Ele gostava cada vez mais de andar pelas ruas. Mirava tudo como um
f laneur.1 Mas mesmo agora, fiel ao seu h umor costumeiro, estava lendo o
q uadro q ue se abria, vivaz , em sua frente, como leria as entrelinh as de um
livro. Tudo o deix ava atônito; sem perder uma única impressão, ele corria
um olh ar pensativo pelos rostos dos transeuntes, ex aminava a fisionomia de
tudo q uanto o rodeasse, escutava amorosamente as falas populares, como se
verificasse, por meio daq uilo tudo, as conclusões nascidas no silêncio das
suas noites solitárias. Amiúde ficava estarrecido com alguma minúcia,
sugerindo-lh e ela alguma ideia, e se sentia, pela primeira vez na vida,
desgostoso por se ter sepultado assim em sua cela. Agora tudo se faz ia mais
depressa; seu pulso estava forte e veloz , sua mente, oprimida pela solidão,
refinada e sublimada apenas pelas suas atividades intensas e ch eias de
ex altação, funcionava rápida, calma e corajosamente. Ademais, ele q ueria,
de certo modo inconsciente, ach ar um meio de inserir-se também nessa vida
q ue lh e era alh eia, antes conh ecida ou, melh or dito, tão só corretamente
intuída pelo seu instinto artístico. Seu coração passou a vibrar,
involuntariamente saudoso do amor e da compaix ão. Ele ex aminava, com
mais atenção, as pessoas q ue passavam por perto, mas eram pessoas
estranh as, preocupadas e pensativas… E, pouco a pouco, a distração de
Ordý nov foi diminuindo, q uisesse ele ou não; a realidade já o subjugava,
faz ia-o sentir um medo involuntário das atenções de outrem. Ele começou a
cansar-se daq uele aflux o de novas impressões q ue antes desconh ecia, igual
a um enfermo q ue se levanta feliz , pela primeira vez , do leito de sua
enfermidade e cai em seguida, ex tenuado pela luz , pelo brilh o, pelo
turbilh ão da vida, pelo barulh o e pela variedade da multidão a voar ao seu
lado, estonteado e transtornado com o movimento dela. Sentiu-se
angustiado e triste. Quedou-se temendo por toda a sua vida, por todas as
suas atividades e até mesmo pelo seu porvir. Uma nova ideia destruiu a sua
paz . De súbito, veio-lh e à cabeça q ue passara a vida toda em solidão, q ue
ninguém o amara nem ele próprio conseguira amar a q uem q uer q ue fosse.
Alguns dos transeuntes, com q uem h avia travado uma conversa casual no
início de seu passeio, vinh am a encará-lo com grosseria e estranh amento.
Ele percebia q ue o tomavam por um maluco ou um esq uisitão
originalíssimo, o q ue era, aliás, plenamente justo. Lembrou q ue todos
ficavam sempre como q ue embaraçados em sua presença, q ue todos o
evitavam, ainda na infância, por causa do seu caráter teimosamente
meditativo, q ue sua empatia se revelava com dificuldade, reprimida e
imperceptível para os outros, sem nunca transparecer nela, presente em seu
âmago, nenh uma eq uidade moral, o q ue o afligia ainda em criança, q uando
ele não se assemelh ava, de modo algum, às outras crianças da mesma idade.
Agora estava lembrando e compreendendo q ue sempre, em q ualq uer
momento, todos o abandonavam e se esq uivavam dele.
Sem reparar nisso, caminh ou até um dos bairros de Petersburgo
distantes do centro urbano. Ao almoçar, de q ualq uer jeito, numa taberna
solitária, voltou a perambular. Percorreu outra vez muitas ruas e praças,
além das q uais se estendiam as cercas compridas, amarelas e acinz entadas,
vinh am surgindo alguns casebres em plena ruína no lugar das casas ricas e,
ao mesmo tempo, alguns edifícios colossais, ocupados por fábricas, feios,
enegrecidos, vermelh os, com altos fumeiros. Não h avia ninguém por lá,
estava tudo ermo e parecia, de certa forma, sombrio e h ostil: era, pelo
menos, o q ue ach ava Ordý nov. J á entardecera. Por uma ruela comprida, ele
ch egou ao terreno onde ficava a igreja paroq uial.
Distraído, entrou nela. A missa acabava de terminar; a igreja estava
q uase totalmente vaz ia, apenas duas mulh eres velh as se ajoelh avam ainda à
entrada. O sacerdote, um velh inh o grisalh o, apagava as velas. Os raios do
sol poente fluíam, como uma larga torrente, por cima, através da janela
estreita da cúpula, e derramavam todo um mar de brilh o sobre uma das alas,
porém fulgiam cada vez menos, e, q uanto mais negrejava a escuridão q ue se
adensava sob as abóbadas do templo, tanto mais rutilavam, aq ui e acolá, os
ícones banh ados de ouro, alumiados com o clarão trêmulo das lamparinas e
velas. Num acesso de profunda angústia e de certa sensação reprimida,
Ordý nov se encostou na parede, no canto mais escuro da igreja, e se
absorveu por um instante. Voltou a si q uando os passos cadenciados de dois
paroq uianos a entrarem ressoaram, surdos, sob as abóbadas do templo. Ele
ergueu os olh os, e uma curiosidade inex primível dominou-o ao olh ar para
ambos os visitantes. Eram um h omem velh o e uma jovem mulh er. O velh o
era alto, ainda ereto e enérgico, mas magro e morbidamente pálido. Quem o
visse poderia tomá-lo por um negociante vindo de alguma parte longínq ua.
Trajava um comprido cafetã2 negro, forrado de peles e usado, pelo visto,
nos dias festivos, todo desabotoado. Via-se, embaix o daq uele cafetã,
alguma outra veste russa, munida de abas compridas e bem abotoada de
baix o a cima. Seu pescoço nu estava envolto, descuidosamente, num lenço
escarlate; ele segurava uma ch apk a de peles. Sua barba comprida, fina,
meio embranq uecida, caía-lh e sobre o peito, e um olh ar ch eio de fogo,
febrilmente inflamado, soberbo e longo cintilava debaix o das suas
sobrancelh as h irsutas e tenebrosas. A mulh er tinh a uns vinte anos e era
maravilh osamente bela. Vestia uma peliçaz inh a rica, az ul, forrada de peles,
e sua cabeça estava coberta por um lenço de cetim branco atado rente ao
q ueix o. Ela vinh a de olh os baix os, e uma imponência pensativa, dispersa
por sobre todo o seu vulto, manifestava-se brusca e tristemente no delicioso
contorno das suas feições, ternas e dóceis como as de uma criança. Havia
algo estranh o naq uele casal inopinado. O velh o se deteve no meio da igreja
e se curvou para todos os q uatro lados, posto q ue a igreja estivesse
totalmente vaz ia, e sua companh eira fez o mesmo. Depois ele pegou sua
mão e conduz iu-a até o grande ícone local da Madre de Deus, em nome da
q ual fora construída aq uela igreja, q ue resplandecia, junto do altar, com o
brilh o deslumbrante das luz es refletidas na riz a3 a flamejar com seu ouro e
suas pedras preciosas. O sacerdote, o último a permanecer na igreja, saudou
o velh o com uma respeitosa mesura, e este também inclinou a cabeça. A
mulh er veio prosternar-se diante do ícone. O velh o segurou a ponta do véu
q ue pendia ao pé do ícone e cobriu a cabeça dela. Um surdo soluço se ouviu
na igreja.
Comovido com a solenidade de toda aq uela cena, Ordý nov esperava,
impaciente, pelo seu desfech o. Uns dois minutos depois, a mulh er ergueu a
cabeça, e a luz viva de uma das lamparinas tornou a iluminar seu rosto
encantador. Ordý nov estremeceu e deu um passo para a frente. Ela já tinh a
estendido a mão ao velh o, e eis q ue ambos foram saindo, silenciosos, da
igreja. As lágrimas ferviam nos olh os az ul-escuros dela, emoldurados pelos
cílios compridos q ue brilh avam sobre a brancura láctea de seu rosto, e
rolavam pelas suas faces empalidecidas. Um sorriso transparecia em seus
lábios, porém os vestígios de um medo infantil e um pavor misterioso
percebiam-se em seu semblante. Tímida, ela se apertava ao velh o, e dava
para ver q ue estava toda trêmula de emoção.
Perturbado, atenaz ado por uma sensação ignota, deliciosa e obstinada,
Ordý nov foi rapidamente atrás deles e cruz ou seu caminh o no adro. O velh o
encarou-o h ostil e severamente; ela também o mirou de relance, mas sem
curiosidade e toda distraída, como se outro pensamento longínq uo a
absorvesse. Ordý nov seguiu no encalço deles, sem compreender, ele
mesmo, esse seu impulso. J á escurecera completamente; ele caminh ava à
distância. O velh o e a jovem mulh er enveredaram por uma rua grande e
larga, suja e repleta de toda espécie de operários fabris, armaz éns de farinh a
e pousadas, a q ual levava diretamente até a fronteira da cidade, e dobraram
a esq uina de uma viela estreita e comprida, com cercas compridas de ambos
os lados, q ue terminava no imenso muro enegrecido de um prédio de
alvenaria, de q uatro andares, cujo portão dava logo para outra rua, também
grande e repleta de gente. Eles já se aprox imavam do prédio, mas, de
repente, o velh o se virou e olh ou, com impaciência, para Ordý nov. O jovem
parou como q ue pregado ao ch ão, julgando, ele mesmo, estranh a essa sua
empolgação. O velh o se virou de novo, como se q uisesse certificar-se de
sua ameaça ter surtido efeito, e depois ambos, ele e a jovem mulh er,
entraram, por um portão estreito, no pátio daq uele prédio. Ordý nov voltou
para trás.
Estava de péssimo h umor, desgostoso consigo mesmo por entender q ue
desperdiçara um dia inteiro, q ue se cansara em vão e q ue, além do mais,
acabara cometendo uma tolice ao atribuir o sentido de toda uma aventura a
um incidente mais do q ue ordinário.
Por mais q ue se tivesse aborrecido, pela manh ã, consigo mesmo por
causa de sua índole arredia, h avia algo, em seus instintos, q ue o faz ia evitar
tudo q uanto pudesse distraí-lo, comovê-lo e abalá-lo em seu ex terno, e não
interno, mundo artístico. Agora pensava naq uele seu canto sossegado com
tristez a e certo arrependimento; em seguida, foi assaltado pela angústia e
ficou preocupado com sua situação ainda não resolvida e os afaz eres por
vir, e, ao mesmo tempo, desgostoso por uma ninh aria daq uelas ser capaz de
absorvê-lo. Por fim, cansado e incapaz de ligar duas ideias uma à outra,
arrastou-se, já em plena noite, até seu apartamento e se surpreendeu,
estupefato, ao passar perto do prédio onde morava sem ter reparado nele.
Perplex o, abanando a cabeça com sua distração, acabou por atribuí-la ao
seu cansaço, subiu a escada e entrou finalmente em seu q uarto situado no
sótão. Lá acendeu uma vela, e a imagem daq uela mulh er ch orosa veio, um
minuto depois, perturbar a sua imaginação. E foi tão ardente, tão forte essa
impressão sua, e seu coração reproduz iu tão amorosamente aq ueles serenos
e dóceis traços do rosto comovido por um enternecimento misterioso e
atemoriz ado, molh ado pelas lágrimas ex táticas ou provocadas por uma
contrição infantil, q ue sua vista se turvou e como q ue uma ch ama lh e
percorreu todos os membros. Contudo, a visão durou pouco. O enlevo ficou
substituído por uma reflex ão, depois veio um desgosto, depois uma ira
impotente; sem se despir, ele se enrolou em sua coberta e se atirou sobre a
sua cama dura…
Na manh ã seguinte, Ordý nov acordou bastante tarde, num estado de
espírito irritado, tímido e aflito, aprontou-se às pressas, q uase se forçando a
pensar em suas tarefas urgentes, e tomou uma direção oposta à de seu
percurso da véspera; encontrou, afinal, uma svetiolk a4 a alugar na casa de
um pobre alemão ch amado Spies, q ue morava com sua filh a Tinch en. Ao
receber um sinal, Spies tirou logo o anúncio pregado ao portão para atrair
os locatários, elogiou Ordý nov por seu amor pelas ciências e prometeu q ue
ele mesmo estudaria z elosamente com ele. Ordý nov disse q ue se mudaria
ao entardecer. J á ia voltar para casa, porém mudou de ideia e se dirigiu para
outro lado; sentiu-se novamente animado e sorriu, no íntimo, à sua
curiosidade. Estava tão impaciente q ue o caminh o lh e pareceu demasiado
longo; enfim ch egou à igreja q ue visitara na noite passada. Celebrava-se a
missa matutina. Ele escolh eu um lugar de onde pudesse ver q uase todos os
q ue rez avam, mas os q ue viera procurar não estavam lá. Após uma longa
espera, saiu enrubescendo. Teimando em reprimir um sentimento
involuntário em seu âmago, forçava-se, pertinaz , a alterar o rumo de seus
pensamentos. Pensando em coisas rotineiras, cotidianas, lembrou q ue era a
h ora do almoço e, percebendo q ue realmente estava com fome, entrou
naq uela mesma taberna onde almoçara na véspera. Nem lembraria mais
tarde como saiu de lá. Longa e maq uinalmente perambulou pelas ruas, pelas
vielas ch eias de gente ou desertas, e acabou indo até um ermo, onde não
h avia mais cidade e se estendia um campo amarelado; voltou a si q uando
um silêncio sepulcral o atordoou com uma impressão nova, q ue não tivera
h avia tempos. Era um dia seco e frio, nada raro nesse outubro
petersburguense. Uma isbá ficava perto dali, com duas medas de feno ao
lado; um cavalinh o de costelas protuberantes, cabeça baix a e lábio pendente
estava parado, sem arreios, junto de uma taratáik a5 de duas rodas,
parecendo cismar em alguma coisa. Próx imo de uma roda q uebrada, um cão
de guarda roía, rosnando, um osso, e um menino de três anos, só de
blusinh a, coçava sua cabeça loura, descabelada, mirando com pasmo aq uele
citadino solitário q ue acabava de vir. Estendiam-se, detrás da isbá, campos e
h ortas. As florestas negrejavam à margem dos céus az uis, e as nuvens
carregadas de neve vinh am, turvas, do lado oposto, como q ue faz endo um
bando de aves de arribação avançar sem gritarem, uma por uma, através do
céu. Estava tudo silencioso e, de certo modo, solenemente triste, permeado
de certa espera oculta, entorpecida… Ordý nov foi caminh ando, mais e mais
longe, porém aq uele deserto apenas o afligia. Então voltou para trás, para a
cidade em q ue se ouviu repentinamente o ruído surdo, espesso, dos sinos a
ch amarem para a missa vespertina, redobrou o passo e, algum tempo
depois, entrou de novo no templo q ue lh e era tão familiar desde a véspera.
Sua desconh ecida já estava lá.
Estava ajoelh ada rente à entrada, no meio da multidão a rez ar. Passando
a custo por entre mendigos, velh as esfarrapadas, doentes e aleijados q ue
aguardavam pela esmola, formando uma massa cerrada às portas da igreja,
Ordý nov se ajoelh ou ao lado da desconh ecida. Suas roupas roçavam nas
dela, e ele ouvia a respiração entrecortada da moça cujos lábios
sussurravam uma oração ardorosa. As feições dela estavam marcadas, como
dantes, pelo sentimento de sua infinda devoção, e as lágrimas rolavam outra
vez e secavam em suas faces cálidas, como se lavassem algum crime
terrível. Aq uele lugar onde estavam ambos permanecia totalmente escuro,
de sorte q ue apenas de vez em q uando a flâmula da lamparina, agitada pelo
vento q ue irrompia através do vidro aberto de uma estreita janela,
iluminava, com um brilh o trêmulo, o rosto dela, cada traço do q ual ficava
gravado na memória do jovem, turvava-lh e a vista e lacerava seu coração
com uma dor vaga, mas insuportável. No entanto, um goz o frenético era
contido nesse seu sofrimento. Por fim, ele não conseguiu mais suportá-lo:
num instante, todo o seu peito tremeu e ficou dolorido com um impulso
desconh ecido e deleitoso, e ele rompeu a ch orar, deix ando sua cabeça
inflamada cair no tablado frio da igreja. Não ouvia nem sentia mais nada,
além dessa dor em seu coração q ue entorpecia num doce sofrimento.
Quer o jovem devesse aq uela ex trema impressionabilidade, aq uela
nudez do sentimento desprotegido, à sua solidão, q uer se tivesse preparado
no silêncio angustiante, sufocante e desesperante de suas longas noites
insones, em meio aos impulsos inconscientes e ansiosos abalos espirituais,
essa impetuosidade de seu coração, prestes a ex plodir afinal ou a encontrar
um desafogo q ualq uer, mas h avia de ser assim mesmo, como se
subitamente, num dia tórrido e abafadiço, o céu todo enegrecesse e uma
tempestade viesse derramar a ch uva e a flama sobre a terra sedenta,
deix ando pérolas de ch uva penderem em ramos verdes, amassando o
relvado e o campo, grudando as ternas corolas das flores ao solo, para
depois, com os primeiros raios de sol, tudo ressuscitar e se reerguer e se
precipitar ao encontro dele, mandando-lh e solenemente seu opulento e
deleitoso incenso a subir até o céu, alegrando-se e regoz ijando-se com a
renovação de sua vida… Contudo, Ordý nov nem poderia pensar agora no
q ue se dava com ele, q uase inconsciente como estava…
Mal percebeu q ue a missa já terminara e voltou a si q uando penava em
abrir caminh o, atrás de sua desconh ecida, naq uela multidão espremida à
saída. Captava, vez por outra, o olh ar dela, pasmado e ch eio de luz . Retida,
a cada minuto, pelas pessoas q ue estavam saindo, a moça se virava amiúde
para ele; obviamente, ficava cada vez mais espantada, e eis q ue se
ruboriz ou toda, de supetão, como se um clarão a iluminasse. Nesse
momento apareceu de repente, no meio da multidão, o velh o da véspera,
q ue pegou a mão dela. Ordý nov tornou a lobrigar seu olh ar bilioso e jocoso,
e uma estranh a ira premeu-lh e, de ch ofre, o coração. Acabou por perdê-los
de vista na escuridão; então fez um esforço antinatural, atirando-se para a
frente e saindo da igreja. Todavia, o ar fresco do anoitecer não podia mais
refrescá-lo: a respiração se estreitou e se comprimiu em seu peito, e seu
coração passou a bater devagar e bem forte, como se visasse furar-lh e o
peito. Afinal, ele percebeu q ue realmente perdera os desconh ecidos de
vista: não estavam mais na rua nem na viela. Ainda assim, na cabeça de
Ordý nov, já surgira uma ideia, já se compusera um daq ueles planos biz arros
e resolutos q ue, apesar de serem sempre insensatos, q uase sempre dão certo
e se realiz am em semelh antes casos: no dia seguinte, às oito h oras da
manh ã, ele se acercou do prédio pelo lado da viela e adentrou seu pátio
traseiro, ex íguo e sujo, ou melh or, imundo, uma espécie de monturo daq uele
prédio. O z elador, q ue faz ia algo no pátio, deteve-se apoiando o q ueix o no
cabo de sua pá, ex aminou Ordý nov dos pés à cabeça e perguntou de q ue ele
estava precisando.
Esse z elador era um rapaz novo, de uns vinte e cinco anos de idade,
com uma cara por demais envelh ecida, todo peq ueno e enrugado, da laia
dos tártaros.
— Procuro um apartamento — respondeu Ordý nov, impaciente.
— Qual deles? — indagou o z elador, com um sorrisinh o. Encarava
Ordý nov como q uem estivesse a par de todo o seu negócio.
— Um q uarto para alugar — respondeu Ordý nov.
— Naq uele pátio não h á — disse o z elador, num tom enigmático.
— E por aq ui?
— Nem por aq ui… — Dito isso, o z elador empunh ou novamente a pá.
— Talvez alguém concorde — replicou Ordý nov, dando uma g rivna ao
z elador.
O tártaro olh ou para Ordý nov, pegou a g rivna, depois tornou a
empunh ar sua pá e, após uma breve pausa, declarou q ue “ não h avia
apartamento, não” . Entretanto, o jovem não o escutava mais, enveredando
pelas tábuas podres e desengonçadas, postas através de um ch arco, em
direção à única porta da casinh a dos fundos, toda preta e suja, ou melh or,
imunda, q ue parecia afogada naq uele ch arco. Em seu térreo morava um
pobre fabricante de caix ões. Ao passar perto de sua engenh osa oficina,
Ordý nov subiu uma escada em caracol, escorregadia e meio q uebrada, q ue
levava ao andar de cima, apalpou, nas trevas, uma grossa porta canh estra,
revestida de esteiras esfrangalh adas, encontrou a fech adura e soabriu a
porta. Não se enganara: o velh o q ue já conh ecia estava postado em sua
frente e olh ava para ele atentamente, com um pasmo ex tremo.
— O q ue você q uer? — inq uiriu, de modo entrecortado e q uase
coch ich ando.
— Tem um q uarto? … — perguntou Ordý nov, q uase se esq uecendo de
tudo o q ue q ueria diz er. Viu, por cima do ombro daq uele velh o, sua
desconh ecida.
Calado, o velh o se pôs a fech ar a porta, empurrando Ordý nov com ela.
— Temos um q uarto — soou, de repente, a voz carinh osa da jovem
mulh er.
O velh o liberou a entrada.
— Preciso de um canto — disse Ordý nov, entrando apressadamente no
q uarto e dirigindo-se àq uela beldade.
Contudo, parou atônito, como q ue pregado ao ch ão, q uando olh ou para
seus futuros locadores: uma cena muda, estarrecedora, acontecera diante
dos seus olh os. O velh o ficara mortalmente pálido, como se estivesse
prestes a desmaiar. Fix ava naq uela mulh er um olh ar de ch umbo, imóvel e
penetrante. De início, ela também empalidecera, mas depois o sangue afluiu
todo ao seu rosto, e seus olh os fulgiram de certo modo estranh o. Conduz iu
Ordý nov para outro cubículo.
O apartamento todo só tinh a um cômodo assaz espaçoso, dividido em
três partes por dois tabiq ues; entrava-se, logo do sêni, numa antessala
estreitinh a e escura, e mais uma porta, q ue ficava defronte, levava para o
outro lado do tabiq ue, decerto para o q uarto dos donos. Do lado direito,
através da antessala, passava-se para o q uarto q ue se alugava. Era
estreitinh o, todo apertado, como q ue espremido pelo tabiq ue contra duas
janelas baix inh as. Estava tudo abarrotado e atulh ado de objetos necessários
em q ualq uer moradia; o apartamento era pobre e apertado, mas, na medida
do possível, limpo. A mobília se compunh a de uma simples mesa branca,
duas cadeiras simples e um z alávok 6 rente a ambas as paredes. Um grande
ícone antigo, com uma coroaz inh a dourada, estava num canto, encimando
uma prateleira, e uma lamparina ardia na frente dele. No q uarto por alugar
e, parcialmente, na antessala ficava um forno russo, enorme e desajeitado.
Estava claro q ue três pessoas não podiam morar num apartamento desses.
Eles começaram a negociar, mas sem nex o, mal entendendo um ao
outro. A dois passos da moça, Ordý nov ouvia seu coração bater, percebia
q ue ela tremia toda de emoção e, q uem sabe, de medo. Finalmente se
entenderam, bem ou mal. O jovem declarou q ue logo se mudaria e olh ou
para o anfitrião. Ainda pálido, o velh o se mantinh a às portas; porém, um
sorriso se insinuava, manso e até mesmo meditativo, nos lábios dele. Ao
deparar o olh ar de Ordý nov, tornou a franz ir o sobrolh o.
— Tem passaporte? — perguntou de súbito, com uma voz alta e
entrecortada, abrindo-lh e a porta do sêni.
— Sim! — respondeu Ordý nov, um pouco perplex o.
— Quem é você?
— Vassíli Ordý nov, fidalgo; não sirvo; vivo por conta própria —
respondeu o jovem, imitando o tom do velh o.
— Eu também — disse o velh o. — Sou Iliá Múrin, burguês… J á ch ega
para você? Vá indo…
Uma h ora depois Ordý nov já estava em seu novo apartamento,
surpreendendo-se ele próprio e deix ando surpreso o alemão q ue já
começava a suspeitar, com sua submissa Tinch en, q ue o locatário
inesperado o tivesse enganado. Quanto a Ordý nov, nem ele mesmo entendia
como aq uilo tudo se fiz era; aliás, não q ueria seq uer entendê-lo…

II
Seu coração batia tanto q ue tudo se esverdeava aos seus olh os e sua
cabeça girava. Maq uinalmente, ele começou a dispor seus escassos
pertences naq uele novo apartamento, desatou a troux a com vários bens
necessários, destrancou o baú com livros e se pôs a colocá-los em cima da
mesa, porém, pouco depois, todo esse trabalh o caiu-lh e das mãos. A cada
minuto fulgia, diante dos seus olh os, a imagem daq uela mulh er cujo
encontro h avia comovido e abalado toda a sua ex istência, q ue ench ia seu
coração de tanto enlevo irrefreável, convulso; tamanh a fora a felicidade q ue
afluíra, de uma vez só, à sua vida tacanh a q ue seus pensamentos se
obscureciam e seu espírito entorpecia angustiado e perturbado. Ele foi
mostrar seu passaporte ao dono da casa, na esperança de revê-la. Contudo,
Múrin só entreabriu a porta, pegou o papel, disse-lh e: “ Está bem, viva em
paz ” e voltou a trancar-se em seu q uarto. Uma sensação desagradável
apoderou-se de Ordý nov. Sentiu, sem saber por q ue, despraz er em olh ar
para aq uele velh o. Havia algo desdenh oso e iracundo no olh ar dele. Mas
essa impressão desagradável se dissipou logo. J á ia para três dias q ue
Ordý nov vivia num verdadeiro redemoinh o, se comparado com o antigo
sossego de sua vida, porém não conseguia e até mesmo temia raciocinar.
Tudo se confundira e se misturara em sua ex istência; ele sentia, no íntimo,
q ue toda a sua vida estava como q ue rach ada ao meio; dominado por um só
anelo, por uma só esperança, não se importava com outras ideias.
Perplex o, retornou ao seu q uarto. Lá, perto do forno em q ue se faz ia
comida, az afamava-se uma velh inh a de costas curvas, tão suja e maltrapilh a
q ue até olh ar para ela seria uma lástima. Parecia muito z angada e, de vez
em q uando, resmungava alguma coisa, mascando com os lábios, consigo
mesma. Era a criada dos donos da casa. Ordý nov tentou pux ar conversa
com ela, mas a velh inh a permaneceu calada, decerto por z anga. Ch egou,
afinal, a h ora do almoço; a velh a tirou do forno ch tch i,7 pastéis e carne de
vaca, levando-os para o q uarto dos donos. Serviu o mesmo a Ordý nov.
Após o almoço, fez -se um silêncio sepulcral no apartamento.
Com um livro nas mãos, Ordý nov ficou folh eando as páginas por muito
tempo, buscando pelo sentido daq uilo q ue já tinh a lido diversas vez es.
Impaciente, jogou o livro de lado e tentou novamente arrumar seus
pertences; acabou pegando o casq uete, pondo o capote e saindo portas
afora. Enq uanto avançava a esmo, sem enx ergar o caminh o, esforçava-se,
na medida do possível, para se concentrar espiritualmente, juntar as ideias
despedaçadas e ponderar, pelo menos um pouco, a sua situação. Contudo,
esses esforços o faz iam apenas sofrer, transformavam-se numa tortura. Os
calafrios e calores se alternavam a dominá-lo, e de repente seu coração
passava a bater, vez por outra, tão forte q ue ele tinh a de se encostar num
muro q ualq uer. “ Não, é melh or morrer” pensava, “ é melh or morrer” ,
coch ich ava com seus lábios inflamados, trêmulos, pensando pouco naq uilo
q ue estava diz endo. Andou por muito tempo; sentindo, afinal, q ue estava
molh ado até os ossos e percebendo, pela primeira vez , q ue ch ovia a
cântaros, voltou para casa. Avistou o z elador ao lado do prédio. Ach ou q ue
o tártaro o tivesse fitado, atento e curioso, por algum tempo e depois, ao
notar q ue Ordý nov o vira, fosse tomando seu próprio rumo.
— Boa tarde — disse Ordý nov, ao alcançá-lo. — Qual é seu nome?
— Meu nome é z elador — respondeu ele, arreganh ando os dentes.
— E faz muito tempo q ue é z elador aí?
— Faz , sim.
— E meu locador é burguês?
— É, sim, já q ue ele falou.
— E o q ue está faz endo?
— Está doente: vive lá, rez a a Deus… é isso.
— E aq uela é a mulh er dele?
— Que mulh er?
— Aq uela q ue vive com ele?
— É, sim, já q ue ele falou. Adeus, meu senh or.
O tártaro tocou em sua ch apk a e entrou em sua guarita.
Ordý nov foi ao seu q uarto. Mascando com os lábios e resmungando
algo consigo mesma, a velh a lh e abriu a porta, tornou a aferrolh á-la e subiu
em cima do forno, onde terminava de viver sua vida. J á estava escurecendo.
Ordý nov foi buscar fogo e percebeu q ue a porta dos donos estava trancada.
Ch amou pela velh a, a q ual o mirava com atenção, soerguendo-se sobre o
cotovelo em cima do forno e aparentando pensar no q ue ele teria a ver com
a tranca dos donos, e a velh a lh e jogou, calada, uma caix eta de fósforos. Ele
retornou ao seu q uarto e se pôs de novo, pela centésima vez , a mex er com
seus pertences e livros. Mas pouco a pouco, perplex o por não entender o
q ue se dava com ele, veio sentar-se no banco, e pareceu-lh e q ue tinh a
adormecido. Voltava a si, vez por outra, e adivinh ava q ue não era um sono,
mas um torpor mórbido q ue o angustiava. Ouviu a porta estalar, ao abrir-se,
e adivinh ou q ue eram os donos q ue regressavam após a missa vespertina.
Então lh e veio à cabeça q ue precisava ir vê-los por algum motivo.
Soergueu-se e ach ou q ue já estivesse indo ao q uarto deles, mas tropeçou e
tombou sobre uma pilh a de lenh a q ue a velh a h avia largado no meio do
cômodo. Então se q uedou totalmente inconsciente e, reabrindo os olh os ao
cabo de muito e muito tempo, notou com espanto q ue estava deitado no
mesmo banco, vestido como estava, e q ue se inclinava sobre ele, com um
terno desvelo, o rosto de uma mulh er, maravilh osamente belo e como q ue
todo umedecido por lágrimas mansas, maternais. Sentiu alguém colocar um
travesseiro debaix o da sua cabeça, cobri-lo com algo q uente, pousar uma
mão carinh osa em sua testa em brasa. Quis agradecer, q uis segurar essa
mão, levá-la aos seus lábios crestados, molh á-la com lágrimas e beijá-la,
beijá-la por toda uma eternidade. Quis diz er muita coisa, porém não sabia,
nem ele mesmo, o q ue seria; q uis morrer nesse ex ato momento. Contudo,
suas mãos não se moviam, como se fossem de ch umbo; como q ue
emudecido, ele ouvia apenas o sangue fluir voando por todas as suas veias,
como se o soerguesse em sua cama. Alguém lh e deu água… Por fim, ele
desmaiou.
Acordou de manh ã, pelas oito h oras. O sol derramava um feix e de raios
dourados através das janelas verdes, mofadas, de seu q uarto; uma sensação
praz enteira afagava todos os membros do enfermo. Tranq uilo e calado, ele
estava infinitamente feliz . Parecia-lh e q ue alguém estava agora à sua
cabeceira. Acordou procurando, com z elo, aq uele ser invisível ao seu redor:
q ueria tanto abraçar aq uele amigo seu e diz er, pela primeira vez na vida:
“ Salve, bom dia para ti, meu q uerido” .
— Mas h á q uanto tempo é q ue estás dormindo! — disse uma terna voz
feminina. Ordý nov virou a cabeça, e eis q ue se inclinou sobre ele, com um
sorriso afável e luminoso como o sol, o semblante daq uela beldade de sua
anfitriã.
— Mas q uanto tempo é q ue estiveste doente — diz ia ela. — J á ch ega,
levanta-te: por q ue te reprimes? A liberdade é mais gostosa do q ue o pão, é
mais linda do q ue o sol. Levanta-te, meu pombinh o, levanta-te.
Ordý nov pegou sua mão e apertou-a com força. Parecia-lh e q ue estava
ainda sonh ando.
— Espera, q ue preparei ch á para ti. Queres ch á? Vê se q ueres, pois te
sentirás logo melh or. Eu mesma já fiq uei doente e sei como é.
— Dá-me de beber, sim — disse Ordý nov, com uma voz débil, e
levantou-se. Estava ainda bem fraco. Um calafrio lh e percorreu o dorso;
todos os seus membros doíam, como se estivessem q uebrados. Mas seu
coração estava sereno, e os raios de sol pareciam aq uecê-lo com uma
alegria solene e luminosa. Ele sentia q ue uma vida nova, forte, invisível
acabava de começar. Teve uma leve tontura.
— É q ue te ch amas Vassíli? — perguntou ela. — Ou me enganei ou
parece q ue ontem o dono te ch amou desse nome.
— Vassíli, sim. E q ual é teu nome? — disse Ordý nov, aprox imando-se
dela e mal se mantendo em pé. Oscilou. E ela lh e segurou as mãos, arrimou-
o e ficou rindo.
— Meu nome é K aterina — disse, fitando-o com seus olh os az uis,
grandes e claros. Ambos se seguravam pelas mãos.
— Queres diz er-me alguma coisa? — acabou perguntando.
— Não sei — respondeu Ordý nov. Sua vista estava turva.
— Estás vendo como tu és? Ch ega, meu pombo, ch ega: não te aflijas,
não fiq ues triste; senta-te cá à mesa, ao sol, e fica q uietinh o, não venh as
atrás de mim — acrescentou, vendo q ue o jovem se movera como q ue para
retê-la. — J á, já estou de volta: terás muito tempo para me olh ar… — Um
minuto depois, troux e seu ch á, colocou-o em cima da mesa e se sentou
defronte ao jovem.
— Toma aí, bebe à farta — disse. — Será q ue tua cabeça está doendo?
— Agora não dói mais, não — disse ele. — Não sei, talvez esteja
doendo, sim… mas não q uero… já ch ega, ch ega! … Nem sei o q ue tenh o —
diz ia, ofegante, ao ach ar enfim a mão dela —: fica aq ui, não me deix es só e
me dá, me dá outra vez a mão… Meus olh os se turvam: olh o para ti como
para o sol — arrematou, como se arrancasse essas palavras do coração,
entorpecendo de êx tase ao pronunciá-las. Eram os soluços q ue lh e premiam
a garganta.
— Coitado! É q ue não viveste, por certo, com uma boa pessoa. Estás só,
soz inh o… Será q ue não tens família?
— Não tenh o ninguém, estou só… não faz mal, q ue seja! Agora me
sinto melh or… estou bem agora! — diz ia Ordý nov, como q ue delirante. O
q uarto parecia andar à sua volta.
— Nem eu mesma vi gente por muitos anos. Olh as para mim de um
jeito… — disse ela, após um minuto de silêncio.
— Pois bem… como?
— Como se meus olh os te aq uecessem! Sabes, q uando se está amando
alguém… É q ue te recebi, desde as primeiras palavras, no meu coração. Se
ficares doente, vou cuidar de ti outra vez . Mas não fiq ues doente, não.
Quando te levantares, vamos viver como irmãos. Queres? É difícil arranjar
uma irmã, q uando não se tem uma pela graça de Deus.
— Quem és? De onde vieste? — indagou Ordý nov, com uma voz fraca.
— Não sou daq ui… por q uê? Sabes como se conta: viviam doz e irmãos
numa floresta escura, e foi uma moça bonita q ue se perdeu naq uela floresta.
Entrou na casa deles e arrumou tudo lá, deix ou seu amor espalh ado por toda
parte. Vieram os irmãos e souberam q ue uma irmãz inh a passara o dia
inteiro em sua casa. Puseram-se a ch amar pela moça, e ela apareceu. Então
a ch amaram todos de sua irmã e lh e deram a liberdade toda, e ela ficou
igual aos irmãos. Será q ue conh eces essa h istória?
— Conh eço — sussurrou Ordý nov.
— É bom viver. Será q ue gostas de viver neste mundo?
— Sim, sim, viver muito, viver um século — respondeu Ordý nov.
— Não sei — disse K aterina, pensativa —; eu cá desejaria também a
morte. É bom amar a vida, amar as pessoas boas, porém… Mas olh a só:
ficaste de novo branco como farinh a!
— Sim, a cabeça está girando…
— Espera, q ue te trarei minh as roupas de cama e meu travesseiro, mais
um, e deix arei tudo aí. Quando pegares no sono, sonh arás comigo, e tua
doença irá embora. Nossa velh a também está doente…
Ainda estava falando, ao passo q ue já começava a preparar-lh e a cama,
e, vez por outra, olh ava sorrindo, por cima do ombro, para Ordý nov.
— Quantos livros é q ue tens! — disse, empurrando o baú.
Ach egou-se a ele, abarcou-o com o braço direito, conduz iu-o até a
cama, deitou-o e cobriu-o com a coberta.
— Diz em q ue os livros estragam o h omem — diz ia a balançar,
pensativa, a cabeça. — Gostas de ler esses livros?
— Sim — respondeu Ordý nov, sem saber se estava sonh ando ou não, e
apertou a mão de K aterina com mais força para se convencer de q ue não
sonh ava.
— Meu senh or tem muitos livros, e vês mesmo q uais são? Ele diz q ue
são divinais. E lê, o tempo todo, aq ueles livros para mim. Depois te
mostrarei alguns, e tu me contarás mais tarde daq uilo q ue ele está lendo,
certo?
— Contarei — sussurrou Ordý nov, sem despregar os olh os dela.
— Gostas de rez ar? — perguntou ela, após um minuto de silêncio. —
Sabes de uma coisa? Estou com medo, com medo…
Não terminou de falar, como se estivesse refletindo em algo. Ordý nov
levou, afinal, a mão dela aos seus lábios.
— Por q ue me beijas a mão? (E as faces dela enrubesceram de leve.)
Toma, pois, beija — continuou, rindo e lh e estendendo ambas as mãos;
livrou, a seguir, uma delas e apertou-a à testa q uente do jovem, depois
começou a desemaranh ar e a alisar seus cabelos. Ficava cada vez mais
rubra; por fim, sentou-se no ch ão, rente à cama do jovem, e apertou sua face
à dele, de sorte q ue seu alento lh e aflorava, tépido, úmido, o rosto… De
ch ofre, Ordý nov sentiu suas lágrimas q uentes jorrarem dos olh os, caindo,
como ch umbo derretido, nas faces dele. Cada vez mais fraco, não conseguia
mais nem mover o braço. Ouviram-se, nesse meio-tempo, umas batidas à
porta, e eis q ue estalou a tranca. Ordý nov pôde ouvir ainda o velh o, seu
locador, passar pelo tabiq ue. Depois ouviu K aterina se soerguer, sem pressa
nem pejo, pegar aq ueles seus livros e benz ê-lo antes de sair; fech ou, pois,
os olh os. De súbito, um beijo longo, apaix onado, ardeu em seus lábios
inflamados, como se alguém o esfaq ueasse no coração. Ele deu um grito
fraq uinh o e desmaiou…
Depois uma vida estranh a começou para ele.
Às vez es, num dos momentos de vaga consciência, surgia em sua mente
a ideia de q ue estava fadado a viver num sonh o longo, interminável, ch eio
de estranh as angústias estéreis, de lutas e sofrimentos. Apavorado, ele
tentava rebelar-se contra o fatalismo fatídico q ue o atormentava, e uma
força desconh ecida voltava a atingi-lo, naq ueles momentos da luta mais
encarniçada e desesperada, e ele intuía e percebia bem claramente q ue
voltava a perder os sentidos, q ue se reabria em sua frente uma escuridão
sem fundo, intransponível, e q ue ele se atirava lá com um berro de angústia
e desespero. Às vez es, surgiam alguns instantes daq uela felicidade
insuportável e destrutiva q uando a vitalidade se fortalece, espasmódica, em
toda a essência h umana, q uando o passado clareia, q uando o momento
presente ressoa, tão luminoso, com júbilo e regoz ijo, q uando se sonh a, de
olh os abertos, com o futuro ignoto; q uando uma esperança inex primível
recai, como um orvalh o vivificante, sobre a alma; q uando se q uer gritar de
arroubo, q uando se sente a impotência da carne perante tamanh o peso das
impressões e a ruptura completa do fio ex istencial, e q uando se felicita, ao
mesmo tempo, a vida inteira pela renovação e pela ressurreição. Às vez es,
entorpecia de novo, e então tudo q uanto lh e ocorrera naq ueles últimos dias
tornava a repetir-se, a ressurgir em sua mente como um enx ame turvo e
agitado, porém essa visão se apresentava ao jovem de certo modo estranh o,
misterioso. Às vez es, o enfermo se esq uecia do q ue se dava com ele e se
pasmava de não estar mais em seu apartamento antigo, com sua locadora de
antes. Não entendia por q ue a velh inh a não se ach egava, como sempre faz ia
naq uela h ora tardia, crepuscular, da vela prestes a apagar-se, a q ual
alumiava, de vez em q uando, todo o canto escuro do q uarto com um clarão
fraco, brux uleante, nem aq uecia por h ábito, a esperar até q ue o fogo se
apagasse mesmo, as mãos ossudas e trêmulas sobre o fogo q ue se ex tinguia,
sempre taramelando e coch ich ando consigo mesma, olh ando por vez es,
atônita, para ele, seu morador esq uisito q ue considerava insano por causa
das suas longas vigílias com livros. Outras vez es, lembrava q ue se mudara
para outro apartamento, porém não sabia como fiz era aq uilo, o q ue se dera
com ele nem por q ue tivera de se mudar, embora seu espírito entorpecesse
todo com um impulso ininterrupto, irrefreável… Mas o q ue o ch amava e
para onde, o q ue o atormentava e q uem acendera aq uela ch ama insuportável
q ue o sufocava, q ue lh e devorava o sangue todo — tampouco sabia nem se
recordava daq uilo. Pegava amiúde, avidamente, uma sombra com ambas as
mãos, ouvia amiúde o farfalh ar dos passos ligeiros ao lado de sua cama,
além do sussurro das falas meigas e carinh osas, doces como uma música;
um alento úmido, ansioso, desliz ava pelo seu rosto, e o amor sacudia todo o
seu ser; umas lágrimas q uentes q ueimavam as faces inflamadas do jovem, e
de repente um beijo lh e penetrava, longo e terno, os lábios, e então sua vida
se consumia num sofrimento inex tinguível, e parecia q ue toda a ex istência,
o mundo todo parava, morria, ao seu redor, por séculos inteiros, e q ue uma
noite longa, milenar, vinh a estender-se por sobre todas as coisas…
Ou então como q ue regressavam os anos tenros, transcorridos em paz ,
de sua primeira infância, com aq uela serena alegria, com aq uela felicidade
inapagável, com aq uele primeiro e delicioso pasmo ante a vida, com
aq ueles enx ames de espíritos benfaz ejos q ue irrompiam voando de baix o de
cada flor q ue ele colh ia, brincavam com ele num viçoso prado verde, em
face de uma casinh a circundada de acácias, e lh e sorriam daq uele infindo
lago de cristal em cuja margem ele passava h oras inteiras sentado, ouvindo
uma onda bater na outra, e rodeavam-no a farfalh ar com as asas e vinh am
recobrir, amorosamente, seu berçoz inh o de sonh os irisados, ch eios de luz ,
q uando sua mãe se inclinava sobre ele, benz ia-o e beijava-o e cantava
baix inh o uma canção de ninar para embalá-lo naq uelas noites longas e
plácidas. Mas, de improviso, começou a aparecer um ente q ue o afligia com
um pavor nada infantil, q ue infundia o primeiro e demorado veneno de
pesares e lágrimas em sua vida, e ele sentia vagamente q ue um velh o
desconh ecido detinh a todos os seus anos futuros em seu poder e, trêmulo
como estava, não conseguia mais desviar os olh os daq uele velh o. E o velh o
maldoso o seguia por toda parte. Ora surgia, com falsas mesuras, de trás de
cada moita no bosq ue, ria e reptava-o, e se transformava em cada boneco
daq uele menino, faz endo caretas e gargalh ando em suas mãos como um
gnomo ruim e malvado, ora atiçava q ualq uer um dos seus desumanos
colegas de escola contra ele ou então se sentava, junto com aq uelas
crianças, num banco escolar e, faz endo caretas, surgia de trás de cada letra
de sua gramática. Depois, q uando o menino dormia, o velh o maldoso vinh a
sentar-se à sua cabeceira… Afugentou os enx ames de espíritos benfaz ejos,
cujas asas de ouro e de safira farfalh avam ao redor de seu berço, afastou
dele, para todo o sempre, sua pobre mãe e passou a coch ich ar-lh e, noites
adentro, um conto de fadas longo e assombroso, o q ual, ininteligível para o
coração do peq ueno, atormentava-o, ainda assim, e perturbava-o com
h orrores e paix ões nada infantis. Todavia, o velh o maldoso não atentava
para seus prantos nem rogos e continuava a falar com ele até q ue ficasse
entorpecido e perdesse os sentidos. Depois o menino acordava já sendo
h omem, tendo anos inteiros esvoaçado, invisíveis e inaudíveis, sobre ele.
De ch ofre, conscientiz ava-se da sua situação atual; de ch ofre, vinh a a
entender q ue estava soz inh o, alh eio ao mundo inteiro, soz inh o num canto
q ue não era dele, cercado por pessoas misteriosas, suspeitas, pelos inimigos
q ue se reuniam, o tempo todo, e coch ich avam nos cantos de seu q uarto
escuro, e acenavam para aq uela velh a agach ada rente ao fogo, aq uecendo as
mãos senis, murch as, e apontando-lh es o jovem. Quedava-se inq uieto,
angustiado; q ueria saber, o tempo todo, q uais eram aq uelas pessoas, por q ue
estavam ali, por q ue ele mesmo estava naq uele q uarto, e adivinh ava q ue
entrara por acaso num tenebroso antro de malfeitores, q ue fora atraído por
algo poderoso, mas desconh ecido, sem ter percebido antes q uais eram os
h abitantes daq uele antro e a q uem, notadamente, ele pertencia. Uma
suspeição começava a afligi-lo, e de repente, em meio às trevas noturnas,
ressurgia aq uele coch ich o, aq uele longo conto de fadas, e q uem se punh a a
contá-lo baix inh o, q uase inaudivelmente, como se falasse consigo mesma,
era uma velh a a balançar, pesarosa, sua cabeça branca diante do fogo q ue se
apagava. Mas eis q ue o pavor voltava a apoderar-se dele: o conto de fadas
se encarnava, em sua frente, em rostos e vultos. Ele via tudo, a começar
pelos seus indistintos sonh os infantis, todos os seus pensamentos e
devaneios, tudo q uanto vivenciara em sua vida, tudo q uanto lera em seus
livros, tudo q uanto já esq uecera h avia tempos, tudo mesmo se animar e se
aglomerar e se encarnar e se erguer em sua frente, formando imagens e
figuras descomunais, movendo-se e pululando ao seu redor; via jardins se
estenderem, maravilh osos e suntuosos, em sua frente, cidades inteiras se
construírem e se destruírem diante dos seus olh os, cemitérios inteiros
mandarem embora os defuntos q ue reviviam, tribos inteiras e povos
ch egarem, nascerem e definh arem a olh os vistos, e cada ideia sua se realiz ar
finalmente, agora, nas prox imidades daq uele leito de sua doença, e cada seu
sonh o etéreo se tornar real, q uase no mesmo instante de sua aparição; e ele
deix ava enfim esses sonh os etéreos para trás e vinh a a abranger, com seu
pensamento, mundos inteiros e criações inteiras, e flutuava, igual a um grão
de poeira, através de todo aq uele universo estranh o, sem fim nem saída, e
toda aq uela vida passava a oprimi-lo, a persegui-lo com sua independência
rebelde, a acossá-lo com sua ironia eterna e infinita; e ele sentia q ue estava
morrendo, q ue se desmembrava, virando cinz a e pó, sem ressurreição, para
os séculos dos séculos; e ele q ueria escapar, mas não h avia, em todo o
universo, um canto seq uer q ue pudesse abrigá-lo. Por fim, num acesso de
desespero, ele juntou todas as suas forças, deu um grito e acordou…
Quando acordou, banh ava-se todo num suor frio, gelado. Um silêncio
sepulcral envolvia-o, e a noite estava profunda ao seu redor. Mas ainda lh e
parecia q ue aq uele seu assombroso conto de fadas continuava algures, q ue
uma voz rouca recomeçava mesmo aq uela longa narração sobre algo q ue
lh e era, talvez , familiar. Ouvia alguém falar sobre as florestas escuras, sobre
os salteadores ousados, sobre algum valentão corajoso, q uase sobre Stenka
Ráz in8 em pessoa, sobre os alegres burlak s9 ébrios, sobre alguma donz ela
bonita e sobre a “ mamãe” Volga.10 Seria um conto de fadas, ou então ele
ouvia aq uilo de fato? Passou uma h ora inteira deitado, de olh os abertos,
sem mover um só membro, tomado de um torpor aflitivo. Afinal se
soergueu cautelosamente e sentiu, todo alegre, q ue sua força não se ex aurira
durante aq uela doença cruel. Seu delí rio h avia passado; era a realidade q ue
começ ava. Ele percebeu q ue ainda estava com as mesmas roupas q ue usava
q uando de sua conversa com K aterina, e q ue não se passara, por
conseguinte, muito tempo desde aq uela manh ã em q ue ela saíra do seu
q uarto. E foi uma flama intrépida q ue lh e percorreu as veias. Encontrou
maq uinalmente, às apalpadelas, um grande prego cravado, por alguma
raz ão, na parte superior do tabiq ue, junto do q ual lh e tinh am improvisado a
cama, agarrou-se a ele e, pendurando-se nele com o corpo todo, alcançou,
bem ou mal, uma fresta q ue deix ava uma luz mal perceptível entrar em seu
q uarto. Aplicou o olh o àq uele orifício e ficou olh ando, q uase sufocado pela
emoção.
Uma cama estava no canto do cubículo de seu locador, e h avia, defronte
àq uela cama, uma mesa coberta por um tapete, abarrotada de grandes livros
encapados, de feitio antigo, semelh antes aos escritos sagrados. Em outro
canto ficava um ícone, tão antigo q uanto o de seu q uarto, e uma lamparina
ardia diante daq uele ícone. O velh o Múrin estava deitado na cama, enfermo,
ex tenuado pelo sofrimento e pálido como um pano, envolto num cobertor
de peles. Um livro aberto estava no colo dele. Deitada num banco rente à
sua cama, K aterina abraçava o peito do velh o e punh a a cabeça sobre seu
ombro. Fitava-o com um olh ar atento, pasmado como o de uma criança, e
parecia escutar inerte e esperançosa, com uma curiosidade inesgotável, o
q ue lh e contava Múrin. Elevava-se, vez por outra, a voz do narrador, e uma
inspiração se refletia em seu rosto pálido, e ele franz ia o sobrolh o, e seus
olh os passavam a brilh ar, e K aterina parecia empalidecer de medo e
emoção. Então algo semelh ante a um sorriso surgia no rosto do velh o, e
K aterina se punh a a rir baix inh o. De vez em q uando, as lágrimas cintilavam
nos olh os dela; então o velh o lh e alisava carinh osamente a cabeça, como se
fosse uma criança mesmo, e ela o estreitava ainda mais forte com aq uele
seu braço desnudo, fúlgido como a neve, e se apertava, mais amorosa ainda,
ao peito dele.
Por momentos, Ordý nov pensava q ue tudo isso fosse ainda um sonh o e
até mesmo tinh a a certez a disso, porém o sangue lh e afluía à cabeça, e as
veias pulsavam tensas, se não doloridas, em suas têmporas. Ele soltou o
prego, levantou-se da cama e, cambaleando, esgueirando-se como um
sonâmbulo, sem entender, ele mesmo, aq uele impulso q ue se acendera,
igual a todo um incêndio, em seu sangue, ach egou-se às portas do q uarto
viz inh o e empurrou-as com força; enferrujada, a tranca se partiu de uma vez
só, e eis q ue ele se postou, com estalo e estrondo, no meio do q uarto de seu
locador. Viu K aterina se soerguer e estremecer toda; viu os olh os do velh o
fulgirem, irados, debaix o das sobrancelh as q ue se cerraram forçosamente e
uma fúria repentina lh e deformar o semblante todo. Viu o velh o buscar às
pressas, sem despregar os olh os dele, sua espingarda, q ue pendia na parede,
com a mão corrediça; viu, a seguir, refulgir a boca da espingarda apontada,
com a mão indecisa, tremente de raiva, direto para o peito dele… Ouviu-se
um tiro; ouviu-se, em seguida, um grito medonh o, q uase inumano, e foi
uma cena h orrível q ue aterrou Ordý nov q uando se dissipou a fumaça.
Tremendo com o corpo todo, ele se inclinou sobre o velh o. Múrin jaz ia no
ch ão, retorcido por convulsões, e seu rosto estava desfigurado pelo suplício,
e uma espuma transparecia em seus lábios entortados. Ordý nov adivinh ou
q ue o infeliz fora acometido por um crudelíssimo ataq ue de mal de terra.11
Veio correndo acudi-lo com K aterina…

III
Passaram a noite toda alarmados. No dia seguinte Ordý nov saiu de
manh ã cedo, apesar de sua fraq uez a e da febre q ue ainda não o deix ava em
paz . Tornou a encontrar o z elador no pátio. Dessa vez , o tártaro soergueu
seu boné ao vê-lo ainda de longe e olh ou para ele com curiosidade. Depois,
como q uem se recobrasse, empunh ou sua vassoura, mirando de esguelh a
Ordý nov q ue se acercava devagar dele.
— Não ouviu nada à noite, h ein? — perguntou Ordý nov.
— Ouvi, sim.
— Quem é aq uele h omem? Quem é ele?
— Quem alugou tem q ue saber, e a gente tá de lado.
— Será q ue me diz afinal? — gritou Ordý nov fora de si, tomado de
certa irritação mórbida.
— Mas o q ue é q ue a gente fez ? A culpa é do senh or: foi o senh or q uem
assustou os moradores, não foi? Aq uele dos caix ões mora embaix o: é surdo,
mas ouviu tudo, e a baba dele é surda, mas ouviu também. E lá no outro
pátio, se bem q ue fiq ue longe daq ui, também ouviram… é isso. Vou falar
com o delegado.
— Eu também vou lá — respondeu Ordý nov, indo em direção ao
portão.
— Como q uiser: q uem alugou, pois… Senh or, h ein, senh orz inh o,
espere!
Ordý nov se voltou para ele; por cortesia, o z elador tocou em sua
ch apk a.
— Pois não?
— Se for lá, eu vou falar com o dono.
— E daí?
— É melh or q ue se mude logo.
— Mas você é tolo — disse Ordý nov, indo outra vez embora.
— Senh or, h ein, senh orz inh o, espere! — O z elador tocou novamente
em sua ch apk a e arreganh ou os dentes.
— Escute aí, senh orz inh o: segure seu coração. Por q ue enx ota um pobre
coitado? Enx otar um pobre é um pecado. Deus não permite, ouviu?
— Pois escute você também: pegue isto, venh a. Então, q uem é ele?
— Quem é?
— Sim.
— Vou falar até sem dinh eiro.
O z elador empunh ou a vassoura, agitou-a uma ou duas vez es, depois
parou de varrer e olh ou, atento e imponente, para Ordý nov.
— É um bom senh orz inh o. E, se não q uiser morar com um h omem
bom, faça como q uiser: é assim q ue lh e falo.
Então o tártaro encarou-o de modo ainda mais ex pressivo e, como se
estivesse z angado, voltou a pegar em sua vassoura. Faz endo enfim de conta
q ue terminara algum trabalh o, aprox imou-se de Ordý nov, todo misterioso, e
proferiu com um gesto muito sugestivo:
— Ele é assim, ó.
— “ Assim” como?
— Não tem miolo.
— O q uê?
— Foi voando. Voando foi, sim! — repetiu o z elador, num tom mais
misterioso ainda. — É doente. J á tinh a uma barca grande, e mais uma, e
mais outra também, q ue andavam lá pelo Volga (e eu mesmo sou lá do
Volga); e tinh a uma fábrica, q ue q ueimou depois, e ficou sem cabeça.
— Ele é insano?
— Nem… nem! — respondeu, pausadamente, o tártaro. — É bem sano.
É um h omem sábio. E sabe de tudo, e leu muitos livros, e lia e lia, lia
demais e falava verdade aos outros. Assim, q uando vem alguém: dois
rublos, três rublos, q uarenta rublos e, q uem não q uiser, faça como q uiser;
olh a para um livrinh o, vê umas coisas e fala a verdade toda. E o dinh eiro tá
logo na mesa, tá logo; e, sem dinh eiro, de jeito nenh um!
Então o tártaro, q ue esq uadrinh ava, entusiástico em ex cesso, os
interesses de Múrin, ficou mesmo rindo de alegria.
— Pois ele faz ia feitiços ou lia a sorte para alguém?
— Hum… — mugiu o z elador, inclinando rapidamente a cabeça. — Ele
falava verdade. E vive rez ando a Deus, rez ando muito. Mas é assim, tem lá
uns ch iliq ues.
E o tártaro repetiu aq uele seu gesto sugestivo.
Nesse momento alguém ch amou pelo z elador, ali no outro pátio, e logo
em seguida apareceu um h omenz inh o grisalh o, de dorso curvado, q ue
trajava um tulup. Vinh a gemendo e tropeçando, olh ava para o solo e
coch ich ava consigo mesmo. Podia-se supor q ue tivesse enlouq uecido de tão
velh o.
— Os donos, os donos! — sussurrou o z elador, ansioso; saudou
Ordý nov com uma mesura apressada e, arrancando a ch apk a, correu ao
encontro daq uele velh inh o cujo rosto parecia, de certo modo, familiar a
Ordý nov (tê-lo-ia encontrado, pelo menos, em algum lugar e h avia bem
pouco tempo). Ao entender, todavia, q ue isso não tinh a nada de incomum,
ele foi saindo do pátio. Tomara o z elador por um velh aco e um descarado de
primeira ordem. “ Como q ue barganh ou comigo, o vagabundo! ” pensava.
“ Só Deus sabe o q ue está h avendo! ” . Foi já na rua q ue pronunciou essa
última frase.
Pouco a pouco, viu-se assediado por outros pensamentos. Essa
impressão era desagradável: o dia estava cinz ento e frio, a neve caía
voluteando. O jovem sentia um calafrio q ue tornava a sacudi-lo; sentia
também o solo como q ue oscilante debaix o dos pés. E foi uma voz familiar,
um tenor desagradavelmente adocicado e tilintante, q ue lh e deu de repente
bons-dias.
— Yaroslav Ilitch ! — disse Ordý nov.
Estava postado em sua frente um h omem enérgico, não muito alto, de
boch ech as vermelh as e olh inh os cinz a, como q ue oleosos, q ue aparentava
ter em torno de trinta anos, sorria de leve e usava… o q ue sempre usa um
Yaroslav Ilitch desses, e lh e estendia a mão de maneira agradabilíssima.
Ordý nov o conh ecera h avia ex atamente um ano, por mero acaso, q uase no
meio da rua. O q ue contribuíra àq uela aprox imação demasiado fácil teria
sido, além do acaso, uma capacidade ex traordinária de Yaroslav Ilitch , a de
encontrar, em q ualq uer lugar, as pessoas q ue fossem boas e nobres,
instruídas, antes de tudo, e dignas, no mínimo graças ao seu talento e à
belez a de suas atitudes, de pertencerem à alta sociedade. Ainda q ue
Yaroslav Ilitch possuísse aq uele tenor ex cessivamente adocicado, a
tonalidade de sua voz , mesmo q uando ele falava com seus amigos mais
sinceros, deix ava transparecer algo muito claro, potente e imperioso, q ue
não admitia nenh uma protelação e talvez resultasse de um costume.
— De q ue maneira? — ex clamou Yaroslav Ilitch , ex primindo a alegria
mais franca e arroubada possível.
— Eu moro aq ui.
— Há muito tempo? — continuou Yaroslav Ilitch , elevando cada vez
mais o tom. — Nem sabia disso! Pois sou seu viz inh o! Agora sirvo na
delegacia daq ui. Faz um mês q ue voltei da província de Riaz an.12 E apanh ei
você, meu amigo antigo e nobríssimo! — Yaroslav Ilitch deu uma risada
muito benevolente.
— Serguéiev! — gritou, inspirado. — Espere por mim aí, com Tarássov,
e não remex am nos sacos sem mim. E veja se aperta o z elador de Olsúfiev:
diga para vir logo ao escritório. Estarei lá dentro de uma h ora…
Repassando a alguém, apressadamente, tal ordem, Yaroslav Ilitch ,
delicado q ue era, segurou Ordý nov pelo braço e conduz iu-o para a taberna
mais próx ima.
— Não me acalmarei sem antes trocarmos, após uma separação tão
longa assim, duas palavras a sós. Pois bem: o q ue anda faz endo? —
acrescentou, q uase venerador, abaix ando misteriosamente a voz . — Sempre
estudando as ciências?
— Sim, como antes — respondeu Ordý nov q ue tivera, de supetão, uma
ideia lúcida.
— Isso é nobre, Vassíli Mikh áilovitch , isso é nobre! — E Yaroslav Ilitch
apertou fortemente a mão de Ordý nov. — Será o adorno de nossa
sociedade. Que o Senh or lh e conceda um rumo feliz nessa sua área… Meu
Deus! Como estou contente de encontrá- lo! Quantas vez es é q ue me
lembrei de você, q uantas vez es é q ue disse: onde está esse nosso bondoso,
magnânimo, espirituoso Vassíli Mikh áilovitch ?
Eles ocuparam um cômodo privativo. Yaroslav Ilitch encomendou uns
petiscos, mandou servirem vodca e, ch eio de emoção, olh ou para Ordý nov.
— Li muito em sua ausência — começou a falar, com uma voz tímida e
um tanto insinuante. — Li todo Púch kin…
Ordý nov o encarava com distração.
— É assombrosa a imagem da paix ão h umana. Mas, antes do mais,
permita-me q ue lh e seja grato. Você fez tanto por mim, com aq uela nobre
imposição de um modo de pensar justo…
— Misericórdia!
— Não, veja se me permite. Sempre gosto de faz er justiça e me orgulh o
de q ue, pelo menos, este meu sentimento não se tenh a calado ainda.
— Espere… mas o senh or é injusto consigo mesmo, e juro q ue eu…
— Sim, sou plenamente justo — replicou, com um ardor ex traordinário,
Yaroslav Ilitch . — O q ue sou eu em comparação com você? Não é verdade?
— Ah , meu Deus!
— Pois sim…
Seguiu-se uma pausa.
— Atento aos seus conselh os, rompi muitas relações baix as e suaviz ei,
em parte, a brutalidade dos meus costumes — voltou a falar Yaroslav Ilitch ,
com aq uela voz algo tímida e insinuante. — Nas h oras livres do meu
serviço, fico principalmente em casa; de noite, leio algum livro útil e… só
tenh o uma vontade, Vassíli Mikh áilovitch , a de ser útil eu mesmo, na
medida das minh as forças, à pátria…
— Sempre o considerei um h omem nobilíssimo, Yaroslav Ilitch .
— E você sempre traz esse bálsamo… meu jovem nobre…
E Yaroslav Ilitch apertou, entusiástico, a mão de Ordý nov.
— Não bebe? — notou, ao apaz iguar um pouco a sua emoção.
— Não posso: estou doente.
— Doente? Sim, está mesmo! Há muito tempo e como, de q ue maneira
é q ue se dignou a adoecer? Se você desejar, falarei… mas q ue médico o
atende? Falarei agora, se desejar, com nosso médico particular. Eu mesmo,
pessoalmente, irei correndo falar com ele. É um h omem h abilíssimo!
Yaroslav Ilitch já estava pegando o ch apéu.
— Muito lh e agradeço. É q ue não me trato nem gosto de médicos…
— Como assim? Será q ue se pode? Mas é um h omem h abilíssimo,
instruidíssimo — prosseguiu Yaroslav Ilitch , implorando. — Agorinh a…
permita q ue lh e conte daq uilo, meu caro Vassíli Mikh áilovitch … vem
agorinh a um serralh eiro pobre: “ Assim e assado, diz , perfurei minh a mão
com meu instrumento: será q ue me cura? ” . E nosso Semion Pafnútitch ,
vendo q ue o infeliz está prestes a ter o fogo de Santo Antônio,13 tomou a
decisão de amputar o membro infectado. E fez aq uilo em minh a presença.
Mas o fez de um jeito tão nob… q uer diz er, tão ex celente q ue lh e confesso:
não fosse a compaix ão pela h umanidade q ue sofre, seria até mesmo
agradável ter visto aq uilo assim, por mera curiosidade. Mas onde e como é
q ue se dignou a adoecer?
— Mudando de apartamento… Acabei de me levantar.
— Só q ue ainda está muito indisposto e não devia ter saído. Quer diz er
q ue não mora mais onde morava antes? Mas o q ue foi q ue o incitou a mudar
de apartamento?
— É q ue minh a locadora partiu de Petersburgo.
— Domna Sávvich na? Será q ue partiu? … Eis uma velh inh a bondosa e
realmente nobre! Sabe de uma coisa? Eu sentia um respeito q uase filial por
ela. Algo sublime, algo da época dos bisavós é q ue transluz ia naq uela vida
q uase acabada, e a gente como q ue vislumbrava, ao olh ar para ela, uma
encarnação de nossa profunda e majestosa antiguidadez inh a… ou seja,
deduz -se disso… algo assim, tão poético, sabe? … — finaliz ou Yaroslav
Ilitch , totalmente intimidado e rubro até as orelh as.
— Sim, era uma mulh er bondosa.
— Mas permita saber onde você se digna a morar agora.
— Cá perto, no prédio de K och márov.14 — Pois eu o conh eço. Um
ancião majestoso! E ouso diz er q ue sou um amigo q uase sincero dele. Que
nobre velh ice!
Os lábios de Yaroslav Ilitch estavam q uase tremendo de alegria
enternecida. Pediu outro cálice de vodca e um cach imbo.
— Aluga direto do dono?
— Não, de um inq uilino.
— Quem é? Pode ser q ue eu o conh eça também.
— É Múrin, um burguês; um velh o alto…
— Múrin, Múrin… Sim, espere aí: é aq uele q ue mora junto do pátio
traseiro, em cima de um fabricante de caix ões?
— Sim, sim, bem junto do pátio traseiro.
— Hum… e você mora tranq uilo?
— Mas só acabei de me mudar.
— Hum… q ueria apenas diz er, h um… de resto, será q ue você percebeu,
por acaso, algo peculiar?
— J uro q ue…
— Ou seja, tenh o certez a de q ue estará bem na casa dele, contanto q ue
fiq ue satisfeito com a morada… e nem por isso, aliás, é q ue estou falando,
tenh o de avisá-lo, porém, conh ecendo a índole q ue você tem… O q ue está
ach ando daq uele velh o burguês?
— Parece q ue é um h omem completamente doente.
— Sim, ele anda sofrendo muito… Mas você não percebeu nada de
especial? Ch egou a falar com ele?
— Bem pouco: ele é tão arredio e bilioso…
— Hum… — Yaroslav Ilitch ficou pensativo.
— Coitado! — disse, após uma pausa.
— Ele?
— Sim, é um coitado e, ao mesmo tempo, um h omem incrivelmente
estranh o e interessante. De resto, se ele não o incomodar… Desculpe por ter
atentado numa coisa dessas, mas fiq uei curioso…
— E juro q ue ex citou minh a curiosidade também… Gostaria muito de
saber q uem é aq uele h omem. Ademais, moro com ele…
— Veja bem: diz em q ue aq uele h omem foi muito rico outrora. Era um
negociante, como você já ouviu, por certo, contarem. Em raz ão de várias
circunstâncias infeliz es, ficou pobre: algumas das suas barcas foram
afundadas, com sua carga, por uma tempestade. A fábrica dele, confiada,
pelo q ue parece, à gestão de um parente próx imo e q uerido, também levou
um fim trágico: acabou q ueimando inteira, e o tal parente também pereceu
nas ch amas daq uele incêndio. Concorde você q ue foi uma perda terrível!
Então Múrin imergiu, pelo q ue se conta, numa melancolia deplorável;
passou-se a temer pelo seu juíz o, e realmente, numa das brigas com outro
negociante, também proprietário de barcos q ue transitavam pelo Volga, ele
se revelou subitamente sob um ângulo tão esq uisito e inesperado q ue tudo
q uanto ocorreu foi atribuído, sem mais nem menos, a uma profunda
insanidade, e eu mesmo me disponh o a acreditar nisso. Ouvi contarem
muita coisa sobre algumas das suas esq uisitices, e afinal, de repente, surgiu
uma circunstância muito estranh a e, por assim diz er, fatídica, q ue não se
pode ex plicar de nenh um outro modo senão com a influência h ostil do
destino irado.
— Qual foi? — indagou Ordý nov.
— Diz em q ue, num acesso mórbido de loucura, ele atentou contra a
vida de um jovem comerciante de q uem antes gostava sobremaneira. Ficou
tão transtornado, ao acordar daq uele acesso, q ue esteve para tirar sua
própria vida: é assim, pelo menos, q ue se tem contado. Não sei ao certo o
q ue aconteceu a seguir, porém é notório q ue ele passou alguns anos sob
penitência… Mas o q ue você tem, Vassíli Mikh áilovitch : será q ue minh a
narração simples o cansa?
— Oh , não, pelo amor de Deus… O senh or diz q ue ele foi condenado à
penitência; porém, ele não está só.
— Não sei. Diz em q ue estava só, sim. Pelo menos, nenh uma outra
pessoa ficou envolvida naq uela h istória. Aliás, não ouvi contarem do q ue
h ouve mais tarde; apenas sei q ue…
— O q uê?
— Apenas sei q ue… ou seja, não tinh a em mente nada de especial a
acrescentar… q uero diz er apenas q ue, se você ach ar nele algo
ex traordinário, algo q ue vá além do nível h abitual das coisas, nada disso
vem ocorrendo por outro motivo senão em conseq uência daq uelas
desgraças q ue desabaram sobre ele uma por uma…
— Sim, ele é tão crente, um beatão.
— Não creio, Vassíli Mikh áilovitch … ele sofreu tanto e, pelo q ue me
parece, tem um coração puro.
— Só q ue agora ele não está louco: está saudável.
— Oh , mas não está louco mesmo, e posso garantir isso para você,
posso jurar-lh e q ue está em plena posse de todas as faculdades mentais.
Apenas é, como você acertou em notar de passagem, por demais esq uisito e
crente. É um h omem bem raz oável. Fala com desenvoltura, animada e mui
astuciosamente. Ainda se vê o rastro de um passado tempestuoso no rosto
dele. É um h omem interessante, de muitas leituras.
— Parece q ue só anda lendo os livros sagrados.
— Sim, é um místico.
— Como?
— Um místico. Mas eu lh e digo isto em segredo. Ainda lh e direi,
também em segredo, q ue ele ficou, por algum tempo, sob uma vigilância
reforçada. Aq uele h omem ex ercia uma influência terrível sobre q uem se
aprox imasse dele.
— Qual era?
— Você não vai acreditar… Veja bem: então ele não morava ainda neste
bairro, e Alex andr Ignátitch , cidadão h onorífico, h omem imponente e
respeitado por todos, visitava-o, por curiosidade, com algum tenente ali.
Vêm, pois, à casa dele, são recebidos, e eis q ue o h omem estranh o começa a
ex aminar suas caras. Costumava ex aminar as caras q uando se dispunh a a
ser útil; caso contrário, mandava as visitas embora e até mesmo o faz ia,
pelo q ue se diz , sem cortesia nenh uma. E lh es pergunta: o q ue desejam,
meus senh ores? Assim e assado, responde Alex andr Ignátitch , esse seu dom
pode diz er-lh e isso, mesmo sem nós falarmos. Pois tenh a a bondade, diz ele,
de ir comigo ao outro q uarto; então indicou justamente aq uele dos dois q ue
precisava de seus serviços. Alex andr Ignátitch não contava do q ue lh e
sobreviera depois, mas, q uando saiu daq uela casa, estava branco q ue nem
um lenço. A mesma coisa aconteceu com uma dama ilustre da alta
sociedade: ela também saiu daq uela casa branca q ue nem um lenço, toda
ch orosa e abismada com seu vaticínio e sua eloq uência.
— É estranh o. Mas agora ele não mex e mais com isso?
— É rigorosamente proibido. Houve uns ex emplos biz arros. Um jovem
alferes de cavalaria, orgulh o e esperança da alta sociedade, sorriu ao olh ar
para ele. “ Por q ue estás rindo? ” disse o velh o, z angado. “ Daq ui a três dias
tu mesmo não passarás disto! ” , e cruz ou os braços, aludindo, com esse
gesto, a um cadáver.
— E depois?
— Não ouso acreditar, mas diz em q ue a profecia se realiz ou. Ele tem
um dom, Vassíli Mikh áilovitch … Você se dignou a sorrir, ouvindo minh a
narração simplória. Sei q ue me ultrapassa, e muito, em matéria de instrução,
porém acredito nele: não é nenh um ch arlatão. Até Púch kin em pessoa ch ega
a mencionar algo semelh ante em suas obras.15
— Hum. Não q uero contradiz ê-lo. O senh or parece ter dito q ue ele não
vivia só.
— Não sei… parece q ue sua filh a mora com ele.
— Sua filh a?
— Sim, ou, parece, sua esposa; sei q ue uma mulh er está morando com
ele. J á a vi de relance, mas não prestei atenção.
— Hum. É estranh o…
O jovem se q uedou pensativo, Yaroslav Ilitch mergulh ou numa
contemplação enternecida. Estava sensibiliz ado, tanto por ver seu amigo de
longa data q uanto por ter contado satisfatoriamente uma coisa
interessantíssima. Sentado ali, não desviava os olh os de Vassíli
Mikh áilovitch e sugava o cach imbo; de ch ofre, levantou-se depressa e ficou
agitado.
— Uma h ora inteira se passou, e já me esq ueci! Querido Vassíli
Mikh áilovitch , volto a agradecer ao destino este nosso encontro, mas está
na h ora de ir. Será q ue você me permite visitá-lo em sua morada de sábio?
— Faça o favor, q ue ficarei muito feliz com sua visita. Vou visitá-lo
também, q uando tiver um tempinh o.
— Devo confiar nessa notícia agradável? Ficarei grato, inefavelmente
grato! Nem vai acreditar em como você me deix ou jubiloso!
Eles saíram da taberna. Serguéiev já vinh a voando ao seu encontro,
relatando, bem rápido, a Yaroslav Ilitch q ue W ilm Yemeliánovitch se
dignava a passar por lá. E, de fato, surgiu ao longe uma parelh a de
cavalinh os baios, ch eios de fogo, atrelados a um drójk i veloz . Notava-se,
sobretudo, um vistoso cavalo lateral. Yaroslav Ilitch apertou, com a força de
um torno, a mão do melh or dos seus amigos, tocou no ch apéu e foi
correndo saudar aq uele drójk i q ue vinh a a toda brida. Virou-se umas duas
vez es, enq uanto corria, e fez uma mesura para se despedir de Ordý nov.
Ordý nov sentia tamanh o cansaço, tamanh a fadiga em todos os seus
membros, q ue mal arrastava os pés. Custou a voltar para casa. Uma vez ao
portão, deparou-se outra vez com o z elador q ue observara z elosamente toda
a sua despedida de Yaroslav Ilitch e lh e dirigira, ainda de longe, um gesto
convidativo. Não obstante, o jovem passou ao seu lado. Às portas do
apartamento topou com um h omenz inh o grisalh o q ue saía, de olh os baix os,
do q uarto de Múrin.
— Perdoai, ó Senh or, meus pecados! — sussurrou o h omenz inh o,
saltando para o lado com a elasticidade de uma rolh a de ch ampanh e.
— Não o mach uq uei por acaso?
— Não… e h umildemente lh e agradeço a atenção. Oh , Deus meu
Senh or!
E aq uele h omenz inh o manso foi descendo prudentemente a escada,
gemendo, soltando ais e murmurando algo edificante consigo mesmo. Era o
dono do prédio, q ue assustara tanto o z elador. Foi só então q ue Ordý nov se
recordou de tê-lo visto, pela primeira vez , ali mesmo, no q uarto de Múrin,
q uando se mudava para esse apartamento.
Sentia-se irritado e perturbado; sabia q ue suas fantasia e
impressionabilidade estavam tensas em ex tremo e decidiu não confiar em si
mesmo. Imergiu, aos poucos, numa espécie de torpor. Uma sensação
penosa, angustiante, ficou pesando em seu peito. Seu coração doía, como se
estivesse todo ulcerado, e sua alma estava toda repleta de prantos abafados,
mas inesgotáveis.
Ele se deitou novamente naq uela cama q ue ela lh e preparara e tornou a
escutar. Ouvia duas respirações: uma custosa, doentia, entrecortada; a outra,
calma, mas irregular e como q ue ansiosa também, como se aq uele coração
vibrasse com o mesmo impulso, com a mesma paix ão. Ouvia, de vez em
q uando, o ruge-ruge de seu vestido, o leve farfalh o de seus passos macios e
silenciosos, e até mesmo esse barulh o de seu pé repercutia, com uma dor
surda, mas cruelmente deliciosa, no coração dele. Pareceu-lh e, por fim, q ue
ouvia soluços, depois um suspiro rebelde e, afinal, sua prece q ue se repetia.
Sabia q ue ela estava ajoelh ada perante o ícone, retorcendo os braços num
desespero frenético! … Quem seria ela? Por q uem estaria rez ando? Que
paix ão insolúvel pungia seu coração? Por q ue ele doía tanto assim, por q ue
se angustiava tanto e se desfaz ia em ch oros tão ardentes e desesperados? …
Ele se pôs a relembrar as palavras de K aterina. Tudo q uanto ela lh e
dissera soava ainda, q ual uma música, nos ouvidos do jovem, e seu coração
respondia amorosamente, com uma batida surda, mas dolorosa, a cada
lembrança, a cada palavra dela, reiterada com devoção… Por um instante,
surgiu-lh e a ideia de estar sonh ando com tudo isso. No mesmo instante,
porém, seu ser se ex auriu todo numa angústia entorpecente, tão logo a
impressão daq uele q uente alento, daq uelas falas, daq uele beijo dela aflorou
de novo, como q ue ferreteada em sua imaginação. Ele fech ou os olh os e
adormeceu. Um relógio tocou algures; entardecia, o crepúsculo vinh a
caindo.
De súbito, pareceu-lh e q ue ela se inclinara outra vez sobre ele, q ue o
encarava com aq ueles seus olh os claros, maravilh osos, umedecidos pelas
lágrimas cintilantes de sua alegria serena e luminosa, pacatos e reluz entes
como a infinita cúpula turq uesa do céu ao tórrido meio-dia. E seu semblante
irradiava tanta serenidade solene, e seu sorriso fulgia com tanta promessa
de infinda beatitude, e foi com tanta simpatia, com tanta empolgação
infantil, q ue ela pousou a cabeça no ombro do jovem q ue um gemido feliz
lh e escapou do peito ex tenuado. Ela q ueria diz er-lh e alguma coisa e, com
ternura, ela lh e segredava algo. E, outra vez , uma música de partir o coração
vinh a pungindo os ouvidos do jovem. Avidamente, ele sorvia o ar aq uecido,
eletriz ado com seu alento tão próx imo. Estendeu as mãos, ch eio de
angústia; suspirou, reabriu os olh os… Ela estava em sua frente, inclinando-
se sobre seu rosto, toda pálida, como q ue assustada, e toda ch orosa, toda
trêmula de emoção. Diz ia-lh e algo, rogava-lh e algo, juntando e retorcendo
os braços seminus. E ele a estreitava em seu amplex o, e ela tremia toda
sobre seu peito…

1 Flanador (em francês), alguém q ue anda sem rumo nem objetivo, só por andar.
2 Vestimenta tradicional russa, de origem oriental: espécie de comprido sobretudo masculino.
3 Adorno metálico de ícones (em russo).
4 Quartinh o claro, situado no piso superior de um sobrado, também denominado svetlitsa
(arcaísmo russo).
5 Ch arrete (arcaísmo russo).
6 Caix a comprida e provida de tampa, usada como banco ou cama (arcaísmo russo).
7 Sopa tradicional russa, feita de repolh o, batata, cenoura e outros legumes.
8 Stepan Timoféievitch Ráz in, vulgo “ Stenka” (1630-1671): líder de uma imensa rebelião
popular contra o governo cz arista da Rússia, apresentado pelo folclore russo como análogo de Robin
Hood e outros “ bandidos nobres” .
9 Operários q ue pux avam embarcações, mediante um cabo ch amado “ sirga” , caminh ando pela
margem do rio.
10 O nome do rio Volga é feminino em russo.
11 Denominação arcaica e coloq uial da epilepsia, doença evocada por Dostoiévski, q ue também
padecia dela, em várias obras literárias.
12 Cidade localiz ada na parte europeia da Rússia, a sudeste de Moscou.
13 Denominação arcaica e coloq uial da inflamação gangrenosa.
14 Esse sobrenome é derivado da palavra russa кошмар (pesadelo).
15 Os elementos “ góticos” estão presentes em várias obras literárias de Púch kin (veja, por
ex emplo, os contos O tiro e A dama de espadas).
SEGUNDA PART E
I
— O q ue h á? O q ue tens? — diz ia Ordý nov, já totalmente consciente,
mas ainda a estreitá-la em seus amplex os fortes e ardorosos. — O q ue tens,
K aterina, o q ue tens, meu amor?
Ela soluçava à socapa, abaix ando os olh os e escondendo seu rosto em
brasa no peito dele. Passou muito tempo ainda sem poder falar, toda
trêmula, como se estivesse assustada.
— Não sei, não sei — balbuciou afinal, com uma voz q uase inaudível,
sufocando-se e mal articulando as suas palavras —; nem lembro mais como
entrei no teu q uarto… — Então se apertou a ele mais forte ainda, com um
ímpeto ainda maior, e ficou beijando, tomada de um sentimento irrefreável,
convulso, o ombro, os braços, o peito do jovem; por fim, como q ue
desesperada, tapou-se com as mãos, caiu de joelh os e escondeu a cabeça
entre os joelh os dele. E q uando, numa angústia inex primível, Ordý nov a
soergueu com impaciência e fez q ue se sentasse ao seu lado, o rosto dela
ardia com toda uma ch ama de pejo, os olh os ch oravam pedindo clemência,
e aq uele sorriso forçado q ue transparecia nos lábios mal se esforçava para
reprimir a força irresistível da nova sensação. Agora ela parecia de novo
assustada com algo e repelia o jovem com a mão, desconfiada q ue estava, e
q uase não olh ava mais para ele e respondia às suas perguntas aceleradas de
cabeça baix a, com um coch ich o medroso.
— Talvez tenh as tido um pesadelo — diz ia Ordý nov —, talvez tenh as
sonh ado com alguma coisa… não foi? Talvez ele te tenh a assustado… Mas
ele delira, está desmaiado… Talvez tenh a dito algo q ue não eras tu q uem
devia ouvir? … Ouviste alguma coisa, não foi?
— Não estava dormindo, não — respondeu K aterina, esforçando-se
para conter sua emoção. — O sono nem tomava conta de mim. E le estava
calado, o tempo todo, e só uma vez me ch amou. Eu me aprox imava dele,
ch amava por ele, falava com ele; fiq uei com medo; ele não acordava nem
me ouvia. Ele está muito doente, q ue nosso Senh or lh e conceda a Sua
ajuda! Então foi uma agonia q ue veio ao meu coração, uma agonia amarga!
E eu rez ava, rez ava o tempo todo, e foi aq uilo q ue tomou conta de mim.
— Ch ega, K aterina, ch ega, minh a vida, ch ega! É q ue levaste um susto
ontem…
— Não levei nenh um susto ontem, não! …
— Mas isso te acontece às vez es?
— Sim, acontece… — E ela ficou toda trêmula e, assustada, tornou a
apertar-se a ele, como uma criança. — Estás vendo — disse, parando de
soluçar —: não foi à toa q ue vim ao teu q uarto, não foi à toa, pois me sentia
agoniada, q uando soz inh a — repetiu, apertando-lh e as mãos com gratidão.
— Mas ch ega mesmo, ch ega de verteres essas lágrimas pela desgraça
alh eia! Guarda-as para um dia negro, q uando tu mesmo, soz inh o, ficares
agoniado e ninguém estiver contigo! … Escuta: tiveste já uma namorada?
— Não… antes de ti, não conh eci nenh uma…
— Antes de mim… então me ch amas de namorada?
De súbito, olh ou para ele, como q ue espantada, q uis diz er algo, mas se
calou a seguir e abaix ou a cabeça. Pouco a pouco, todo o seu rosto ficou
ardendo de novo, com uma vermelh idão repentina, e mais vivamente,
através das lágrimas esq uecidas q ue não lh e h aviam secado ainda nos cílios,
fulgiram seus olh os, e deu para ver q ue alguma pergunta se revolvia em
seus lábios. Olh ou para ele umas duas vez es, com certa malícia pudica, e
abaix ou novamente, de súbito, a cabeça.
— Não serei tua primeira namorada, não… — disse ela. — Não, não —
repetiu, balançando de leve a cabeça, meditativa, enq uanto um sorriso
furtivo lh e ressurgia, de manso, no rosto. — Não… — disse enfim, com
uma risada. — Não sou eu, meu q uerido, q ue vou ser tua namoradinh a.
Então o mirou de relance, mas tanta tristez a se refletiu, de improviso, no
rosto dela, tanto pesar inconsolável marcou todas as suas feições de uma
vez , tão inesperado foi o desespero q ue ferveu por dentro, no fundo de seu
coração, q ue uma sensação incompreensível e mórbida, a de compaix ão por
aq uele infortúnio desconh ecido, deix ou Ordý nov sem fôlego, e ele passou a
mirá-la com um sofrimento inex primível.
— Escuta o q ue te direi — diz ia ela, com uma voz a pungir-lh e o
coração, apertando as mãos do jovem e se esforçando para conter os
prantos. — Escuta-me bem; escuta, minh a alegria! Amansa teu coração e
não me ames como estás amando agora. E ficarás aliviado, e teu coração
ficará mais leve e alegre, e tu te preservarás de um inimigo atroz e terás
uma irmãz inh a amada. Ainda virei ao teu q uarto, se desejares, e vou afagar-
te e não me envergonh arei de te ter conh ecido. É q ue já passei contigo dois
dias, enq uanto estavas deitado aí, com tua doença maligna! Conh ece a
irmãz inh a! Não foi à toa q ue nos irmanamos, não foi à toa q ue roguei por ti,
pranteando, à Madre de Deus, e não terás outra igual a mim. Nem q ue
percorras o mundo inteiro, nem q ue conh eças tudo q uanto h ouver sob o céu,
não encontrarás outra namorada igual a mim, se é q ue teu coração busca por
uma. Vou amar-te com fogo, como te amei agorinh a, e te amarei porq ue
tens essa alma pura e límpida, q ue se enx erga toda, porq ue, tão logo olh ei
para ti pela primeira vez , soube na h ora q ue eras um h óspede desta minh a
casa, um h óspede cobiçado, e não vinh as pedindo à toa q ue a gente te
acolh esse; h ei de te amar porq ue, q uando estás olh ando, teus olh os amam e
contam sobre o teu coração, e q uando diz em q ualq uer coisa aí, eu fico
sabendo na h ora de tudo o q ue tens aí dentro, e eis q ue já q uero entregar-te
a vida inteira, em troca do teu amor, e toda a vontade minh a, pois é doce ser
até mesmo uma escrava daq uele de q uem a gente encontra o coração… só
q ue minh a vida não me pertence, mas, sim, a outrem, e minh a vontade está
amarrada! Então me aceita por irmãz inh a e sê, tu mesmo, meu irmão, e me
acolh e em teu coração q uando uma agonia, uma doença braba, voltar a
atacar-te; faz apenas, tu mesmo, q ue eu não sinta vergonh a em vir ao teu
q uarto e passar, cá contigo, uma longa noite como agora. Será q ue me deste
ouvidos? Será q ue me abriste esse teu coração? Será q ue abrangeste, com
tua raz ão, o q ue eu te disse? … — Ela q uis diz er mais alguma coisa, olh ou
para o jovem, pôs-lh e a mão no ombro e se apertou finalmente, ex tenuada,
ao peito dele. E sua voz se ex tinguiu num soluço espasmódico, passional, e
seu peito se soergueu com força, e seu semblante ficou ardente como uma
aurora ao pôr do sol.
— Minh a vida! — sussurrou Ordý nov, cuja vista se turvara, cuja
respiração se prendera. — Minh a alegria! — diz ia sem se dar conta das suas
palavras nem as relembrar mais, sem entender a si mesmo, temendo destruir
o encanto com um só assopro, destruir tudo q uanto se dera com ele, o q ue
tomava antes por uma visão q ue pela realidade, assim é q ue tudo se
obnubilava em sua frente! — Não sei, não te entendo, não me lembro mais
do q ue acabas de me diz er: minh a raz ão se embaça, meu coração dói no
peito, minh a senh ora! … — Então sua voz se interrompeu de novo por
emoção. E K aterina se apertava a ele cada vez mais forte e se tornava cada
vez mais ardente, fogosa. Ele se soergueu em seu assento e, sem se conter
mais, alq uebrado, ex aurido pelo seu êx tase, caiu de joelh os. E, afinal, os
soluços jorraram, convulsos e dolorosos, do seu peito, e sua voz , q ue
brotava diretamente do coração, passou a vibrar, como uma corda, de toda a
plenitude daq ueles ignotos arroubo e goz o.
— Quem és, minh a q uerida, q uem és e de onde vieste, minh a
q ueridinh a? — diz ia, esforçando-se para reprimir seus soluços. — Qual é o
céu de onde vieste voando ao meu firmamento? Como se fosse um sonh o ao
meu redor: nem consigo acreditar q ue ex istes. Não me censures… deix a
q ue eu fale, deix a q ue eu te diga tudo, mas tudo mesmo! … Faz muito
tempo q ue q uero falar… Quem és, minh a alegria, q uem és? … Como foi
q ue encontraste este meu coração? Conta-me se faz muito tempo q ue és
minh a irmãz inh a… Conta-me tudo sobre ti: onde estiveste até agora… diz
como se ch amava aq uele lugar onde moravas, do q ue lá gostavas de início,
o q ue te alegrava, o q ue te deix ava triste… Será q ue o ar estava q uente por
lá, será q ue o céu lá estava limpo? … Quais eram teus próx imos, q uem te
amava antes de mim, q uem foi o primeiro q ue tua alma ficou pedindo
ali? … Será q ue tiveste a mãe de sangue, será q ue foi ela q uem te acarinh ou
em criança, ou então olh as também para a vida passada igual a mim,
solitária? Diz -me se sempre foste como és agora. Com q ue estavas
sonh ando, o q ue antevias em teu futuro, o q ue se realiz ou, o q ue não se
realiz ou para ti: conta-me tudo… Quem foi o primeiro q ue fez teu
coraçãoz inh o de moça doer, em troca de q ue acabaste por entregá-lo? Diz o
q ue eu poderia dar-te em troca dele, o q ue te daria para q ue fosses
minh a? … Diz -me, amada, minh a luz , minh a irmãz inh a, diz -me como
conseguiria teu coração…
Então sua voz se ex auriu outra vez , e ele deix ou a cabeça pender.
Contudo, mal reergueu os olh os, foi um pavor mudo q ue o congelou por
inteiro e pôs seus cabelos em pé.
K aterina estava sentada lá, branca q ue nem um pano. Seu olh ar se
cravava, imóvel, no ar, seus lábios estavam az uis, como os de uma morta, e
um sofrimento mudo, pungente, turvava seus olh os. Ela se soergueu
devagar, deu dois passos e, com um grito estridente, tombou diante do
ícone… As palavras entrecortadas, sem nex o, jorravam do seu peito. Ela
desmaiou. Todo perturbado de pavor, Ordý nov levantou-a e carregou-a até
sua cama; ficou postado sobre ela, sem se lembrar de si mesmo. Um minuto
depois, ela reabriu os olh os e se soergueu na cama, olh ou ao redor e lh e
segurou a mão. Pux ou-o para junto de si, tentou coch ich ar algo com seus
lábios ainda lívidos, mas sua voz ainda a traía. Acabou vertendo uma
torrente de lágrimas, e aq uelas gotas ardentes q ueimaram a mão esfriada de
Ordý nov.
— Estou mal, estou mal agora, e minh a última h ora está ch egando! —
disse, por fim, tomada de uma angústia inconsolável.
Queria diz er mais alguma coisa, porém sua língua enrijecida não
conseguia pronunciar uma só palavra. Desesperada, fitava Ordý nov q ue não
a compreendia. Ele se inclinou mais sobre ela, forçando o ouvido… Enfim
a ouviu coch ich ar nitidamente:
— Estou estragada: estragaram-me, acabaram comigo!
Erguendo a cabeça, Ordý nov a mirou com um espanto selvagem. Uma
ideia feiosa surgiu de relance em sua mente. K aterina reparou naq uele
espasmo mórbido q ue lh e contraíra o rosto.
— Estragaram, sim! — prosseguiu. — Foi um h omem mau q ue me
estragou: foi ele q ue acabou comigo! … Vendi minh a alma a ele… Por q ue,
mas por q ue mencionaste minh a mãe de sangue, por q ue tiveste de me
torturar? Que Deus, sim, q ue Deus te julgue agora! …
Um minuto depois, q uedou-se ch orando baix inh o; o coração de
Ordý nov vibrava e doía, mortalmente aflito.
— Ele diz — sussurrava ela, com uma voz contida, misteriosa — q ue,
q uando estiver morto, virá buscar minh a alma pecadora… Sou dele, vendi
minh a alma a ele… Ele me atormentava, ele me lia aq ueles seus livros…
Toma aí, vê seu livro! Aq ui está seu livro. Ele diz q ue cometi um pecado
mortal… Olh a, olh a…
E lh e mostrava um livro, sem Ordý nov ter percebido de onde ele
surgira. Pegou-o maq uinalmente, todo escrito a mão como aq ueles antigos
livros dos rask ólnik s1 q ue lh e ocorrera ver antes. Mas agora não estava em
condição de ver algo diferente, tampouco de concentrar sua atenção nele. O
livro caiu-lh e das mãos. Silencioso, ele abraçava K aterina, tentando faz ê-la
voltar a si.
— Ch ega, ch ega! — diz ia. — Alguém te assustou, mas estou contigo:
descansa aq ui comigo, minh a q uerida, meu amor, minh a luz !
— Não sabes de nada, de nada! — diz ia ela, apertando com força as
suas mãos. — Estou sempre assim! … Estou sempre com medo… Ch ega,
ch ega de me torturares! …
— Então vou até ele — começou, um minuto depois, retomando fôlego.
— Às vez es, ele me embrux a apenas com suas falas; às vez es, pega um dos
seus livros, o maior de todos, e fica lendo sobre mim. E só lê coisas
medonh as, severas assim! Não sei o q ue é, nem entendo cada uma daq uelas
palavras, mas ch ego a sentir medo e, q uando fico escutando a voz dele, é
como se não fosse ele q uem fala, mas outro h omem, maldoso, q ue não se
abranda com nada, com nenh uma súplica, e meu coração fica penando,
penando mesmo, como se q ueimasse todo… E fico então mais aflita do q ue
q uando começa aq uela minh a agonia!
— Não vás, pois, até ele! Por q ue vais vê-lo? — diz ia Ordý nov, q uase
sem se dar conta das suas palavras.
— Por q ue vim ao teu q uarto? Tampouco sei disso, nem q ue tu me
perguntes… Pois ele me diz amiúde: rez a aí, rez a! Acordo, às vez es, no
meio da noite escura e fico rez ando por muito tempo, por h oras a fio; o
sono me vence freq uentemente, mas é o medo q ue sempre me desperta, e
me parece então, o tempo todo, q ue uma tempestade está começando à
minh a volta, q ue já, já estarei em apuros, q ue a gente má vai torturar-me até
a morte, dilacerar-me, e q ue nem os santos me salvarão, por mais q ue lh es
implore, daq uela desgraça h orrível. E eis q ue minh a alma se rasga toda,
como se todo o meu corpo se desmembrasse de tanto ch oro… Volto então a
rez ar e rez o, e rez o até q ue a Soberana olh e para mim, daq uele ícone, mais
amorosa. Então me levanto e vou dormir e durmo q ue nem morta; às vez es,
fico dormindo até no ch ão, ajoelh ada perante o ícone. Mas então acontece
q ue ele acorda e ch ama por mim, e eis q ue me afaga e me acaricia e me
consola, e eis q ue me sinto um pouco melh or e não tenh o mais medo ao
lado dele, seja q ual for a desgraça q ue venh a. Ele é poderoso! Sua palavra é
grande!
— Mas q ual é essa tua desgraça, q ual é? … — E Ordý nov torcia os
braços, desesperado.
K aterina ficou terrivelmente pálida. Mirava-o como q uem estivesse
condenado à morte e não esperasse mais ser poupado.
— Qual é? … Sou uma filh a amaldiçoada, sou uma facínora: foi minh a
mãe q uem me amaldiçoou! Levei minh a mãe de sangue à morte! …
Calado, Ordý nov abraçou-a. Trêmula, K aterina se apertou a ele. O
jovem sentia um tremor convulsivo percorrer todo o corpo dela, e lh e
parecia q ue a alma se despedia daq uele corpo.
— Lacrei-a na terra úmida — diz ia ela, toda inq uieta com suas
lembranças perturbadoras, com as visões de seu passado irrecuperável —:
já faz ia tempo q ue eu q ueria falar disso, mas ele me proibia com rogos,
censuras e ditos irados, e, vez por outra, faz ia ele mesmo q ue a agonia me
atacasse, como se fosse meu inimigo e desafeto. Mas aq uilo me vem, como
agorinh a à noite, vem sempre à mente… Escuta, escuta! Isso aconteceu h á
muito e muito tempo, nem lembro mais q uando, porém continua diante de
mim, como se datasse de ontem, como se fosse um sonh o da véspera q ue
me sugava o coração noite adentro. É a tal agonia q ue duplica o tempo.
Senta-te aq ui, senta-te ao meu lado, q ue te contarei toda a minh a desgraça, e
q ue me arrebente, maldita q ue sou, a praga materna… Entrego esta minh a
vida a ti…
Ordý nov q ueria faz ê-la parar, mas ela juntou as mãos, pedindo-lh e
atenção por amor, e depois, ainda mais ansiosa, voltou a falar. Sua narração
era desconex a, toda uma tempestade espiritual se ouvia em suas palavras,
porém Ordý nov compreendia tudo, porq uanto a vida dela se tornara a dele,
a desgraça dela, a dele, e porq ue seu inimigo já estava real em sua frente,
encarnando-se e crescendo, em sua frente, com cada palavra dela, e parecia
oprimir, com uma força inesgotável, o coração do jovem e caçoar da sua
revolta. Seu sangue se agitava e lh e inundava o coração e lh e baralh ava as
ideias. O velh o maldoso daq uele seu sonh o (Ordý nov acreditava nisso)
estava, real, em sua frente.
— Era uma noite igual a esta — começou a falar K aterina —, só q ue
mais torva, e o vento uivava em nossa floresta como nunca antes me
ocorrera ouvi-lo uivar… ou, q uiçá, foi naq uela noite q ue começou a
perdição minh a! Um carvalh o ficou q uebrado, junto da nossa janela, e foi
um velh o mendigo de cabeça branca q uem veio à nossa casa, e ele disse q ue
se lembrava daq uele carvalh o ainda desde criança, e q ue era então tal e q ual
como no dia em q ue o vento ch egara a vencê-lo… Naq uela mesma noite —
lembro-me de tudo, como se fosse h oje! — as barcas de meu pai foram
q uebradas, ali no rio, pelo temporal, e ele, apesar do ach aq ue q ue o
importunava, foi àq uele lugar tão logo os pescadores vieram correndo à
nossa fábrica. Nós ficamos soz inh as, minh a mãez inh a e eu: enq uanto eu
coch ilava, ela estava triste, por algum motivo, ch orando amargamente…
aliás, eu sabia por q uê! Minh a mãe acabava de adoecer, estava pálida e me
diz ia volta e meia para lh e preparar um sudário… E, de repente, ouviram-
se, à meia-noite, umas pancadas ao nosso portão, e me levantei num pulo, e
o sangue me inundou o coração; minh a mãez inh a soltou um grito… nem
olh ei para ela, ch eia de medo, mas peguei uma lanterna e fui, eu mesma,
destrancar o portão… Era ele! Apavorei-me, pois sempre ficava com medo,
q uando ele ch egava, e era assim desde a minh a primeira infância, desde q ue
minh a memória h avia nascido. Ele não tinh a ainda, na época, esses cabelos
brancos; sua barba era negra q ue nem pich e, seus olh os fulgiam como
carvão em brasa, e não olh ara nenh uma vez , até então, para mim com
carinh o. Ele perguntou se “ minh a mãe estava em casa” . Fech ei a portinh ola
e disse q ue “ meu pai não estava” . Ele respondeu: “ Sei… ” e, de repente,
olh ou para mim, olh ou de um jeito… era a primeira vez q ue me encarava
assim. Fui indo, e ele se deteve ali. “ Por q ue não vem? ” — “ Estou
pensando” . J á subíamos à svetiolk a. “ Por q ue me disseste q ue teu pai não
estava q uando te perguntei se tua mãe estava em casa? ” . Não respondi…
Minh a mãez inh a ficou semimorta de medo, correu ao encontro dele… e ele
olh ou assim, de relance, eu mesma vi tudo. Estava molh ado da cabeça aos
pés, tremendo de frio: o temporal o tinh a seguido por vinte verstas, e de
onde ele vinh a e aonde ia, nem minh a mãez inh a nem eu nunca soubéramos
disso; aliás, nem seq uer o víamos h avia nove semanas… J ogou sua ch apk a,
tirou as luvas… nem rez ou aos ícones nem saudou as donas da casa… foi
sentar-se perto do fogo…
K aterina passou a mão pelo rosto, como se algo a afligisse e oprimisse,
mas, um minuto depois, reergueu a cabeça e recomeçou:
— Ficou conversando com minh a mãe em tártaro. Minh a mãe sabia
falar essa língua, mas eu não entendia nem uma palavra. Outras vez es,
q uando ele ch egava, mandavam-me embora, mas daq uela vez minh a mãe
não ousou diz er meia palavra à sua filh a de sangue. Era o tinh oso q ue
comprava minh a alma, e eu me gabava ainda, comigo mesma, a olh ar para
minh a mãez inh a. Percebi q ue se olh ava para mim, q ue se falava de mim; ela
se pôs a ch orar; vi-o pegar numa faca, e não era a primeira vez nos últimos
tempos q ue empunh ava a faca em minh a presença, q uando falava com
minh a mãe. Então me levantei e me agarrei ao cinturão dele, q uerendo
tomar-lh e à força aq uela faca imunda. Ele rangeu os dentes, deu um grito e
q uis bater em mim: acertou no peito, mas não me repeliu. Pensei q ue
morreria na h ora; meus olh os se turvaram, caí no ch ão, mas não gritei. Vi, o
q uanto minh as forças deix avam q ue visse, como ele tirou o cinturão,
arregaçou a manga naq uele braço com q ue me esmurrara, tirou a faca e
depois a passou para mim: “ Toma aí, vê se o cortas fora, se o castigas por
tanta mágoa q ue te causou, e eu, orgulh oso, h ei de me curvar por isso, até o
ch ão, diante de ti” . Pus a faca de lado: o sangue começava a estrangular-me;
nem olh ei para ele, mas lembro como sorri sem descerrar os lábios e olh ei
bem nos olh os tristes de minh a mãez inh a, olh ei ameaçadora, enq uanto um
riso despudorado não deix ava meus lábios e minh a mãe lá estava sentada,
pálida, morta…
Ordý nov escutava, com uma atenção tensa, aq uele relato sem nex o,
mas, pouco a pouco, a ansiedade dela apaz iguou-se após o primeiro
rompante, e sua fala se q uedou mais tranq uila; as recordações envolviam
completamente a pobre mulh er, cuja angústia se derramava por todo o seu
mar infinito.
— Ele pegou a ch apk a sem se despedir. Fui de novo, com a lanterna,
acompanh á-lo em vez de minh a mãez inh a, q ue estava doente, mas q ueria,
ainda assim, ir com ele. Fomos juntos até o portão: calada, abri-lh e a
portinh ola e enx otei os cach orros. E vejo: ele tira a ch apk a e me saúda com
uma mesura. E vejo: põe a mão embaix o da roupa, bem no peito, tira uma
caix eta vermelh a de marroq uim e lh e pux a o fech o; e vejo q ue são g rãos
burmí tsk is2 lá, para mim. “ Tenh o, diz ele, uma beldade, ali no subúrbio;
seria um presente meu para ela, mas não lh e entreguei isto: pega-o, linda
moça, enfeita a tua lindez a; toma-o, nem q ue depois lh e pises em cima” .
Peguei o presente, só q ue não q uis pisar em cima, senão muita h onra lh e
caberia a ele, porém o peguei, escarninh a, sem diz er uma só palavra. Voltei
e botei-o sobre a mesa, diante de minh a mãe: foi por isso q ue o peguei.
Minh a mãez inh a ficou calada por um minuto, toda branca q ue nem um
lenço, como se receasse falar comigo. “ O q ue é isso, K átia? ” . Então
respondi: “ Foi para ti, mãez inh a, q ue o negociante troux e isso, nem sei o
q ue é” . Vejo, pois, q ue as lágrimas lh e brotaram, q ue seu alento ficou
penoso. “ Não é para mim, K átia; não é para mim, filh a malvada, não é para
mim” . Lembro com q uanta amargura me disse aq uilo, como se sua alma se
debulh asse toda em lágrimas. Ergui os olh os, q uis atirar-me aos seus pés,
mas foi de repente q ue o maldito me sugeriu: “ Pois bem: se não for para ti,
deve ser para meu paiz inh o; vou entregá-lo a ele, assim q ue voltar, e direi:
passaram uns comerciantes, deix aram uma mercadoria… ” . Como ela
ch orou então, minh a mãez inh a… “ Eu mesma direi q ue comerciantes foram
aq ueles e q ue mercadoria eles vieram buscar… Pois lh e direi, sim, de q uem
és a filh a, tu, desavergonh ada! Quanto a ti, não és mais minh a filh a agora,
és uma víbora venenosa! És minh a prole maldita! ” . Fiq uei calada, e nem as
lágrimas me caíam… ah , como se tudo estivesse morto dentro de mim! …
Fui à minh a svetlitsa e passei lá escutando, a noitinh a inteira, o temporal e
juntando, a escutá-lo, as minh as ideias.
Passaram-se, enq uanto isso, cinco dias. E eis q ue vem ao anoitecer,
cinco dias depois, meu paiz inh o, sombrio e z angado, só q ue adoecido pelo
caminh o. Vejo q ue seu braço está enfaix ado; adivinh ei q ue seu inimigo lh e
tinh a cruz ado o caminh o, e seu inimigo já o cansara então e fiz era q ue
ficasse doente. Sabia também q uem era aq uele seu inimigo, sabia de tudo.
Ele não trocou, pois, uma só palavra com a mãez inh a nem perguntou por
mim, mas ch amou todos os seus h omens, mandou q ue parassem a fábrica e
resguardassem a casa do mau-olh ado. E senti naq uela h ora, com meu
coração, q ue nossa casa não estava mais bem. Ficamos, pois, no aguardo, e
passa mais uma noite, também ventosa, tempestuosa, e eis q ue uma agonia
me entra na alma. Abro então a janela: meu rosto arde, meus olh os ch oram,
meu coração irreq uieto está q ueimando; estou eu mesma como q ue
abrasada: q uero fugir da minh a svetlitsa, fugir para longe, até os confins do
mundo, onde o relâmpago e a tempestade nascem. E este meu peito de
moça fica todo agitado, e de repente… já era tarde, e eu estava como q ue
coch ilando, ou então foi uma neblina q ue me envolveu a alma, q ue me
confundiu a mente, mas, de repente, ouço alguém bater à janela: “ Abre! ” . E
vejo um h omem subir, por uma corda, até a janela. Reconh eci logo aq uele
meu visitante, abri a janela e deix ei q ue entrasse em minh a svetlitsa
solitária. E aq uele foi ele! Não tirou sua ch apk a, mas se sentou num banco,
ofegante, mal conseguindo respirar, como se tivesse sido caçado. Então me
postei num canto e sei eu mesma q ue fiq uei toda pálida. “ Teu pai está em
casa? ” — “ Está.” — “ E tua mãe? ” — “ Minh a mãe também.” — “ Pois fica
calada agora, ouves? ” — “ Ouço, sim.” — “ O q ue ouves? ” — “ Alguém
assobiar sob a janela! ” — “ Queres agora, linda moça, tirar a cabeça do
inimigo, ch amar teu paiz inh o q uerido e acabar com minh a alma, h ein? Não
vou desobedecer à tua vontade de moça: aq ui está a corda, vê se me
amarras, caso mande teu coração q ue te vingues da minh a ofensa.” Fiq uei
calada. “ Pois bem, fala aí, minh a alegria! ” — “ De q ue está precisando? ” —
“ Preciso dar cabo do meu inimigo e me despedir, são e salvo, da minh a
amada antiga e me curvar, com a alma toda, diante da nova amada minh a,
uma linda moça igual a ti… ” . Comecei a rir e nem sei, eu mesma, como as
falas dele h aviam entrado, impuras, em meu coração. “ Deix a-me, pois,
linda moça, ir passear lá embaix o, pôr este meu coração à prova, levar uma
mesura para os donos da casa.” Fiq uei toda trêmula: meus dentes batiam
uns contra os outros, e meu coração estava como um ferrete em brasa. Fui
então e abri a porta para ele; deix ei-o entrar na casa da gente, apenas lh e
disse, com muito esforço, q uando estava já à soleira: “ Pegue aí, tome esses
seus grãos de volta e nunca me ofereça mais coisa nenh uma” , jogando
aq uela caix eta nas costas dele.
Então K aterina se interrompeu para retomar fôlego: ora tremia, como
uma folh a ao vento, e empalidecia, ora o sangue lh e afluía à cabeça, e,
agora q ue estava calada, suas faces ardiam, seus olh os brilh avam através
das lágrimas, e uma respiração penosa, entrecortada, agitava seu peito. De
ch ofre, ficou pálida outra vez , e sua voz fraq uejou, vibrando inq uieta e
triste.
— Então me q uedei soz inh a, e foi como se uma tempestade me
estreitasse de todos os lados. Ouvi, de repente, um grito; ouvi nossa gente
correr, através do pátio, até a fábrica; ouvi diz erem: “ A fábrica pegou fogo” .
Então me q uietei, e eis q ue todos saíram correndo da nossa casa; ficamos
apenas minh a mãez inh a e eu. Sabia q ue ela se despedia da sua vida,
prostrada, já ia para três dias, no leito de morte, sabia disso eu, filh a
maldita! … Ouvi, de repente, um grito debaix o da minh a svetlitsa, fraq uinh o
como se uma criança tivesse gritado ao assustar-se sonh ando, e depois ficou
tudo silencioso. Soprei a vela; estava gelada e me tapava com as mãos e
tinh a medo até de olh ar. Ouço gritarem por perto, de supetão, ouço os
h omens voltarem correndo da fábrica. Então me debrucei na janela: vejo
traz erem meu paiz inh o, já morto, e ouço falarem entre si: “ Deu um passo
em falso, caiu da escada numa caldeira incandescente; por certo, foi o
tinh oso q uem o empurrou” . Tombei sobre a cama; fiq uei esperando, sem me
mex er nem saber pelo q ue ou por q uem esperava, apenas estava toda
agoniada àq uela h ora. Não lembro por q uanto tempo assim esperei, só
lembro q ue comecei, de repente, a tremer toda, q ue minh a cabeça ficou
pesada, q ue a fumaça me mach ucou os olh os, e me alegrei por minh a morte
já estar próx ima! Senti, de repente, alguém me pux ar pelos ombros. Olh ei, o
q uanto pudesse olh ar: era ele, todo ch amuscado, e seu cafetã, q uente ao
tato, estava fumegando.
“ Vim buscar-te, linda moça; leva-me, pois, embora dessa desgraça,
assim como antes me troux este até ela, q ue acabei perdendo minh a alma por
ti. Não vou redimir esta noite maldita com orações! A menos q ue fiq uemos
orando juntos! ” Estava rindo, h omem maldoso! “ Mostra-me, disse, como
passar sem topar com ninguém! ” Segurei-lh e a mão e fui conduz i-lo.
Passamos pelo corredor (as ch aves estavam comigo), abri a porta de uma
despensa e lh e apontei a janela. E nossa janela dava para o jardim. Ele me
pegou e me abraçou com seus braços potentes, e pulou comigo daq uela
janela. E fomos correndo, de mãos dadas, e corremos por muito tempo. E
vimos uma floresta cerrada, escura. Ele ficou escutando: “ Correm atrás de
nós, K átia! Correm atrás de nós, linda moça, mas não será nesta h ora q ue
perderemos as nossas vidas! Beija-me, linda moça, para o amor e para a
felicidade eterna! ” — “ Mas por q ue suas mãos estão ensanguentadas? ” —
“ Ensanguentadas, minh a q uerida? É q ue degolei aq ueles cach orros de
vocês, pois latiam demais com esta visita noturna. Vamos! ” . E fomos
correndo de novo, e vimos o cavalo de meu paiz inh o no meio daq uela
vereda: devia ter rompido a rédea e escapado da cavalariça, q ue não q ueria,
por certo, morrer q ueimado! “ Monta, K átia, comigo! Foi nosso Deus q uem
nos deu ajuda! ” Fiq uei calada. “ Será q ue não q ueres? Não sou nenh um
pagão lá nem impuro: faço o sinal da cruz , se q uiseres” , e logo fez o sinal
da cruz . Eu montei e me apertei a ele e me esq ueci de tudo, lá no peito dele,
como se um sono me dominasse, e vi, q uando acordei, q ue estávamos junto
de um rio largo, bem largo. Ele apeou e me tirou do cavalo e foi adentrando
um juncal: era ali q ue escondia uma barca. Estávamos já entrando nela.
“ Adeus, pois, bom cavalo: vai procurar por um dono novo, q ue os antigos te
abandonam todos! ” Corri até o cavalo de meu paiz inh o e abracei-o com
força, para nos despedirmos. Depois nos sentamos, ele pegou os remos, e
eis q ue não vimos mais, num instante, as margens do rio. E, q uando não
víamos mais as margens, vi-o largar os remos e olh ar, pela água afora, ao
nosso redor.
“ Salve” , disse ele, “ paiz inh o,3 rioz inh o tempestuoso, q ue dás de beber à
gente de Deus, q ue me alimentas! Diz se guardaste meus bens, q uando eu
não estava aq ui, se minh as mercadorias estão intactas! ” . Eu estava calada,
de olh os baix os, olh ando para meu peito, e meu rosto ardia, como q ue em
brasa, de tanta vergonh a. E ele disse: “ Nem q ue levasses tudo, desenfreado,
insaciável, contanto q ue me prometesses guardar minh a pérola mui preciosa
e cuidar dela! Deix a, pois, só uma palavrinh a cair, linda moça, vem fulgurar
como o sol no meio da tempestade, dispersa, com tua luz , essa noite
escura! ” . Diz ia aq uilo, só q ue estava sorrindo; ardia seu coração por mim,
só q ue eu não q ueria, envergonh ada, aturar aq uele seu sorrisinh o; q uis diz er
algo, só q ue me calei, tímida. “ Pois bem: assim seja! ” , respondeu ele ao
meu pensamento medroso e disse, como q ue desgostoso, como se sentisse,
ele também, um desgosto. “ Parece q ue nada se toma à força. Pois bem: q ue
Deus esteja contigo, minh a pombinh a soberba, minh a linda moça! É forte,
pelo q ue vejo, teu ódio por mim, ou esses teus belos olh os não gostam tanto
da minh a cara” . Escutei-o e fiq uei com rancor, um rancor amoroso, e
amansei este meu coração e lh e disse: “ Se gosto de ti ou não gosto, não sou
eu, por certo, q uem sabe disso, mas, com certez a, outra moça q ualq uer,
insensata e sem-vergonh a, q ue veio a infamar, numa noite escura, a sua
svetlitsa, vendeu sua alma por um pecado mortal e não segurou seu coração
louco; q uem sabe disso são, com certez a, minh as lágrimas amargas, além
daq uele q ue se gaba, feito um ladrão, da desgraça dos outros, q ue z omba do
coração de moça! ” . Disse aq uilo e não aguentei mais e fiq uei ch orando…
Ele se calou por um tempo, depois olh ou para mim de tal jeito q ue tremi
toda, como uma folh a ao vento. “ Escuta, pois” , disse-me, “ linda moça” , e
seus olh os brilh avam estranh amente: “ não te direi uma coisa à toa, mas te
farei uma grande promessa; serei teu senh or na medida justa em q ue me
deres felicidade e, se não me amares mais algum dia, não digas nada, não
gastes tuas palavras em vão, não te esforces, mas move apenas essa tua
sobrancelh a de z ibelina, faz correr esse teu olh o negro, mex e tão só esse teu
mindinh o, e logo te devolverei teu amor, junto com tua liberdade de ouro;
fica apenas aq ui, minh a linda tão orgulh osa, insuportável, o termo de minh a
vida! ” . E foi então q ue sorriu minh a carne toda às suas palavras.
Nesse momento, uma profunda emoção interrompeu o relato de
K aterina; ela retomou fôlego, sorriu à sua ideia nova e já q ueria continuar,
porém seu olh ar fulgente encontrou, de súbito, o olh ar inflamado de
Ordý nov, o q ual se cravava nela. E K aterina estremeceu, q uis diz er algo,
mas eis q ue o sangue lh e afluiu ao rosto… Ela se cobriu com as mãos e caiu
de bruços, como q ue inconsciente, de rosto contra os travesseiros. E tudo se
perturbou no âmago de Ordý nov! Era uma sensação dolorosa, uma
ansiedade vaga, mas insuportável, q ue se espalh ava, como um veneno, por
todas as suas veias, crescendo com cada palavra dita por K aterina; era um
impulso desesperado, uma paix ão ávida, impossível de sustentar, q ue se
apossava de seus pensamentos e confundia seus sentimentos. Ao mesmo
tempo, uma tristez a penosa, infinda, premia-lh e cada vez mais o coração.
Por momentos, ele q ueria gritar para q ue K aterina se calasse, q ueria atirar-
se aos pés dela, q ueria implorar ch orando q ue ela lh e devolvesse aq ueles
seus sofrimentos amorosos de antes, aq uele seu ímpeto recente, vago e
puro, sentindo pena das suas lágrimas q ue já h aviam secado todas. E seu
coração doía, banh ando-se morbidamente em sangue, porém não dava mais
lágrimas à sua alma pungida. Ele não entendera o q ue K aterina lh e tinh a
contado, e seu amor se apavorara com o sentimento a transtornar essa pobre
mulh er. Amaldiçoou sua paix ão naq uele momento: ela o sufocava, deix ava-
o angustiado, e ele percebia q ue o ch umbo derretido fluía, em vez do
sangue, em suas veias.
— Ah , minh a desgraça não está naq uilo — disse K aterina, soerguendo,
de súbito, a cabeça — q ue te contei agorinh a; não está naq uilo minh a
desgraça — continuou, com uma voz q ue passou a tinir, como cobre, de um
sentimento novo, inopinado, enq uanto sua alma se lacerava toda com
prantos ocultos, inúteis —; não é aq uilo q ue me aflige, q ue me dói, q ue me
preocupa! O q ue tenh o a ver com minh a mãez inh a de sangue, embora não
volte a ter, neste mundo todo, nenh uma outra, o q uê? O q ue tenh o a ver com
a praga q ue ela me rogou em sua última h ora sofrida? O q ue tenh o a ver
com a vida de ouro q ue vivi antes, com minh a svetlitsa q uentinh a, com
minh a liberdade de moça? O q ue tenh o a ver com o q ue me vendi ao
tinh oso, entreguei minh a alma ao facínora, aceitei um pecado eterno em
troca da minh a felicidade? Ah , mas não está naq uilo minh a desgraça,
embora seja enorme a perdição minh a naq uilo também! Mas o q ue me
aflige, o q ue me rasga o coração, é q ue sou a escrava dele, tão infamada,
mas gosto da minh a infâmia e da minh a vergonh a, desavergonh ada q ue sou,
q ue gosta este meu coração cobiçoso até mesmo de relembrar a desgraça,
como se fosse uma alegria, uma felicidade; o q ue me aflige é q ue não h á
força nele, nem ira por causa das minh as mágoas! …
A respiração se prendeu no peito da pobre mulh er, e um soluço
convulso, h istérico, interrompeu suas falas. Um alento cálido, entrecortado,
q ueimava-lh e os lábios, seu peito se erguia e se abaix ava com força, seus
olh os fulgiam de uma indignação incompreensível. Contudo, tamanh o
encanto dourou-lh e o rosto naq uele momento, tamanh o aflux o apaix onado
de emoções, tamanh a belez a insuportável e inaudível fez vibrar cada linh a,
cada músculo seu, q ue se apagou de pronto a ideia torva e se calou a tristez a
pura no peito de Ordý nov. Seu coração anelava por se apertar ao dela, por
se esq uecer, passional, lá dentro, enlouq uecido de emoção, por bater o
mesmo compasso, como se fosse a mesma tempestade, o mesmo ímpeto
daq uela paix ão ignota, e parar de bater, q uem sabe, mas junto com ele.
K aterina avistou o olh ar turvo de Ordý nov e sorriu de maneira q ue uma
torrente dobrada de fogo regou-lh e o coração. Ele estava q uase fora de si.
— Tem piedade de mim, poupa-me! — sussurrava-lh e, contendo sua
voz trêmula, inclinando-se sobre ela, apoiando uma das mãos no ombro de
K aterina e, próx imo, tão próx imo q ue as duas respirações se fundiam numa
só, olh ando nos olh os dela. — Tu me destruíste! Nem conh eço tua
desgraça, mas minh a alma ficou confusa… O q ue tenh o a ver com aq uilo
q ue teu coração pranteia? Diz o q ue q ueres… farei. Vem comigo, vem, não
me mates, não me mortifiq ues! …
K aterina fitava-o sem se mover; as lágrimas tinh am secado em suas
faces em brasa. Quis interrompê-lo, pegou-lh e a mão, q uis diz er algo, ela
mesma, porém não ach ou, pelo visto, palavras certas. Foi um sorriso algo
estranh o q ue surgiu lentamente em seus lábios, como se uma risada se
insinuasse através desse sorriso.
— Não foi tudo, por certo, q ue te contei — disse, afinal, com uma voz
entrecortada. — Contarei mais ainda, mas será q ue me escutarás, coração
ardoroso, será q ue me escutarás, h ein? Escuta, pois, tua irmãz inh a! É q ue
conh eceste pouco, por certo, daq uela terrível desgraça dela! Até q ue q ueria
contar de como tinh a vivido um ano com ele, só q ue não vou contar disso,
não… Mas se passou esse ano, e ele foi rio abaix o, com seus companh eiros,
e me q uedei esperando por ele junto do cais, na casa da dita mãez inh a dele.
Espero um mês, espero dois meses, e eis q ue me encontro, naq uele
subúrbio, com um jovem comerciante: olh ei para ele e me recordei do meu
passado de ouro. “ Irmãz inh a q uerida! ” , diz ele, depois de trocar duas
palavras comigo. “ Sou Alioch a, teu prometido antigo: foram os nossos
velh os q ue nos noivaram com a palavra dada; já te esq ueceste de mim, mas
vê se te lembras, q ue sou do teu povoado… ” — “ E como se fala de mim
nesse povoado da gente? ” — “ Pois anda diz endo a língua h umana q ue te
tornaste uma safada, perdeste a h onra de moça e te juntaste a um ladrão e
facínora” , diz -me Alioch a, rindo. — “ E o q ue foi q ue tu mesmo disseste de
mim? ” — “ Queria diz er muita coisa, q uando estava ch egando” , e seu
coração se confundiu todo; “ q ueria diz er muito mesmo, só q ue agora minh a
alma entorpeceu, assim q ue te vi: tu me destruíste! ” , diz . “ Compra, pois,
esta minh a alma também, toma-a para ti, nem q ue fiq ues z ombando do meu
coração e do meu amor, linda moça. Agora sou orfãoz inh o, meu próprio
senh or, e minh a alma é minh a, não é de outrem, pois não a vendi a ninguém
como outra q ualq uer q ue apagou tudo da sua memória, e não estou
vendendo meu coração, mas o dou de graça, só q ue, parece, não vai ser
logo! ” . Fiq uei rindo, mas não foi uma vez , nem duas vez es, q ue ele me
disse aq uilo: morou no sítio por um mês inteiro, largou suas mercadorias,
deix ou seus h omens partirem e ficou lá soz inh o. E me apiedei das suas
lágrimas de órfão e lh e disse, certa manh ã: “ Espera por mim, Alioch a,
q uando anoitecer, lá abaix o do cais: iremos juntos até onde tu moras, q ue já
estou farta desta minh a vida ch eia de mágoas! ” . Ch egou, pois, a noite; atei
uma troux a, e minh a alma doía e se revolvia em mim. E vi, de repente,
entrar meu senh or por q uem nem esperava. “ Salve! Vamos logo: h averá
uma tempestade, ali no rio, e o tempo urge” . Fui atrás dele: ch egamos à
margem do rio e teríamos de navegar por muito tempo, até q ue nos
encontrássemos com os nossos, e vimos então uma barca e um remador
conh ecido, sentado nela, q ue parecia esperar por alguém. “ Salve, Alioch a,
q ue Deus te acuda! Pois então, será q ue te atrasaste vindo ao cais, será q ue
corres atrás dos teus barcos? Leva-nos, gente boa, a mim com minh a
q ueridinh a, para aq uele lugar onde estão os nossos: deix ei minh a barca
partir, e não dá para ir nadando” . — “ Venh a cá” , disse Alioch a, e minh a
alma ficou, assim q ue ouvi a voz dele, toda dolorida. “ Venh a com sua
q ueridinh a: o vento é para todos, e h averá, no meu têrem,4 um lugar para
vocês também” . Entramos naq uela barca; a noite estava escura, as estrelas
se tinh am escondido; o vento ficou uivando, as ondas cresceram, e já
estávamos a uma versta da margem. E nos calávamos, todos os três. “ Um
temporal” , diz meu senh or. “ E não acabará bem esse temporal! Ainda nunca
vi no rio, desde q ue nasci, um temporal como o q ue já vai começar! Nossa
barca está ch eia demais, não aguentará três pessoas! ” — “ Não aguentará,
não” , responde Alioch a; “ q uer diz er, um de nós está sobrando” ; diz isso, e
sua voz treme como uma corda. — “ Pois então, Alioch a: eu te conh eci em
criança ainda e me irmanei com teu paiz inh o de sangue, juntando a gente o
pão e o sal; diz -me, Alioch a, se ch egarás à margem sem esta barca ou
perecerás por nada e perderás tua alma? ” — “ Não ch egarei! Mas você
mesmo, h ein, gente boa, se acaso acontecer q ue também beba dessa água,
q uem sabe, será q ue lá vai ch egar, você mesmo, ou não? ” — “ Não vou, não,
e será o fim desta minh a alminh a, q ue o rio tempestuoso não me carregará!
Pois ouve agora tu, K aterínuch ka, minh a pérola preciosa! Lembro-me de
uma noite igual a esta, só q ue então as ondas não borbulh avam, mas as
estrelas resplandeciam e a lua brilh ava… Quero, pois, perguntar assim, sem
malícia, se não te esq ueceste dela.” — “ Ainda me lembro, sim” , digo eu…
— “ E, como te lembras dela, tampouco te esq ueceste daq uele acordo,
q uando um valentão ensinava uma linda moça a roubar sua liberdade de
volta do tal mal-amado, h ein? ” — “ Não me esq ueci nem daq uilo” , digo,
enq uanto estou mais morta q ue viva. — “ Pois não te esq ueceste, h ein? Mas
será, agora q ue nossa barca está ch eia demais, q ue ch egou a h ora de alguém
lá? Diz , minh a q uerida, diz , minh a pombinh a; arrulh a aí para a gente, como
faz em os pombos, tua palavra terna… ” .
— Não disse então minh a palavra! — sussurrou K aterina, pálida… Não
terminou de falar.
— K aterina! — ouviu-se, sobre eles, uma voz surda e rouca.
Ordý nov estremeceu. Era Múrin q ue estava às portas. Mal coberto pelo
seu cobertor de peles, pálido como a morte, fitava-os com um olh ar q uase
ensandecido. Cada vez mais pálida, K aterina também o fitava imóvel, como
q ue enfeitiçada.
— Vem a mim, K aterina! — sussurrou o enfermo, com uma voz q ue
mal se ouvia, e saiu do q uarto. K aterina permanecia imóvel, mirando o ar,
como se o velh o estivesse ainda postado em sua frente. Mas, de improviso,
o sangue lh e abrasou, num instante, as faces pálidas, e ela se levantou
devagar da cama. Ordý nov se recordou do seu primeiro encontro.
— Pois então… até amanh ã, minh as lágrimas! — disse ela, com um
sorriso algo estranh o. — Até amanh ã! Vê se lembras onde parei de contar:
“ Escolh e entre os dois, linda moça: a q uem amas e a q uem não amas! ” . Será
q ue te lembrarás disso, será q ue vais esperar por uma noitinh a? — repetiu,
colocando as mãos nos ombros do jovem e olh ando para ele com ternura.
— Não vás, K aterina, não acabes contigo! Ele é louco! — sussurrava
Ordý nov, temendo por ela.
— K aterina! — ouviu-se a voz detrás do tabiq ue.
— Pois bem: será q ue ele me degola? — respondeu K aterina, rindo. —
Boa noite para ti, meu coração adorável, meu pombo fogoso, meu
irmãoz inh o de sangue! — diz ia ela, apertando carinh osamente a cabeça do
jovem ao seu peito. E foi de repente q ue as lágrimas lh e molh aram o rosto.
— São as últimas lágrimas. Dorme, pois, com tua tristez a, meu
amiguinh o, e amanh ã acordarás alegre… — E ela o beijou com paix ão.
— K aterina! K aterina! — sussurrava Ordý nov, caindo de joelh os em
sua frente e tentando detê-la. — K aterina!
Ela se virou, inclinou, sorrindo para ele, a cabeça e saiu do q uarto.
Ordý nov ouviu-a entrar no de Múrin; prendeu a respiração, escutando,
porém não ouviu nem um som a mais. O velh o estava calado ou, talvez ,
inconsciente de novo… J á q ueria ir, atrás dela, àq uele q uarto, mas sentiu
fraq uejarem as pernas… Sentou-se, desalentado, na cama…

II
Demorou muito a entender a q ue h oras acordara. Amanh ecesse ou
anoitecesse, o q uarto estava ainda escuro. Ele não conseguia definir o
tempo q ue permanecera dormindo, porém sentia q ue aq uele seu sono fora
um sono mórbido. Ao recompor-se, passou a mão pelo rosto, como se
tirasse de si o sono e as visões noturnas. Mas, uma vez q ue q uis pisar no
ch ão, percebeu q ue todo o seu corpo parecia alq uebrado e q ue seus
membros ex tenuados se recusavam a obedecer-lh e. Sua cabeça doía,
estonteada, e seu corpo ora tremelicava, ora ardia todo. Com a consciência
retornou a memória, e seu coração latejou q uando, num só instante, ele
reviveu toda a noite passada em suas lembranças. Passou a bater forte em
resposta aos seus pensamentos, tão calorosas e frescas eram as sensações
dele, como se não fossem essas longas h oras, uma noite inteira, q ue o
separavam da partida de K aterina, mas apenas um minutinh o. Ele sentia q ue
as lágrimas não tinh am ainda secado em seus olh os… ou então eram outras
lágrimas, novas e frescas, q ue jorravam, q ual uma fonte, da sua alma em
brasa? E, coisa singular: seus sofrimentos lh e eram mesmo deleitosos,
embora ele sentisse em seu âmago, com toda a essência sua, q ue não
aguentaria mais tanta violência. Houve um momento em q ue q uase intuiu a
ch egada da morte e ficou pronto a recebê-la como uma visita apraz ível:
suas impressões se entesaram tanto, sua paix ão tornou a ferver, q uando ele
acordou, com um ímpeto tão poderoso, e tanto enlevo lh e dominou a alma
q ue sua vida acelerada com tal atividade intensa pareceu prestes a
interromper-se, a destruir-se, a reduz ir-se instantaneamente a cinz as, a
apagar-se para todo o sempre. Quase no mesmo momento, como q ue em
resposta à sua angústia, em resposta ao seu coração latejante, soou uma voz
conh ecida (igual àq uela música interior, tão familiar à alma da gente na
h ora em q ue ela se alegra com sua vida, na h ora de nossa serena felicidade),
a voz sonora e prateada de K aterina. Perto, bem perto dele, q uase à sua
cabeceira, é q ue se entoou uma canção, de início baix a e melancólica…
Aq uela voz ora se elevava, ora enfraq uecia, entorpecia convulsa, como se
estivesse cantando para si mesma e ternamente acariciasse seu próprio
sofrimento rebelde, o de um desejo insaciável, mas reprimido, escondido
por desespero no coração saudoso, ora voltava a ex pandir-se como um
trinado de roux inol e, toda trêmula, ardente de uma paix ão já irreprimível,
derramava-se como todo um mar de goz os, um mar de sons potentes,
infindos como o primeiro instante da beatitude amorosa. Ordý nov discernia
também as palavras, q ue eram simples e cordiais, compostas, h avia tempos,
por um sentimento aberto e calmo, puro e claro para si mesmo. Contudo,
ele se esq uecia dessas palavras e acabava ouvindo apenas os sons. Através
do feitio simples e ingênuo daq uela canção, refulgiam-lh e outras palavras,
repercutindo com todo o arroubo q ue ench ia seu próprio peito, refletindo os
meandros mais íntimos de sua paix ão, q ue ele próprio ainda desconh ecia,
ressoando em seus ouvidos, com toda a clarez a de sua plena consciência,
para lh e falar dela. E ele ouvia ora o derradeiro gemido de seu coração a
desfalecer tomado de uma paix ão desesperadora, ora o júbilo de sua
vontade e de seu espírito a arrojar-se rompendo suas correntes, iluminado e
livre, naq uele mar infinito de amores libertos, ora a primeira jura de sua
amante, q ue vinh a com aq uele primeiro rubor de pejo balsâmico, com
aq uelas súplicas lacrimosas, com aq uele sussurro misterioso e tímido, ora o
desejo de uma bacante, tão orgulh oso de sua força e feliz com ela, sem véu
nem mistério, q ue lh e movia em círculos, com um riso fulgurante, os olh os
ébrios…
Ordý nov não aguentou até o fim da canção e se levantou da cama. A
canção se interrompeu no mesmo instante.
— A boa-manh ã5 e o bom-dia já se passaram, meu bem-amado! —
ouviu-se a voz de K aterina. — Boa tarde para ti! Levanta-te, vem até nós,
acorda para a luz da alegria: a gente espera por ti, meu senh or e eu mesma,
só gente boa e submissa à tua vontade. Apaga, pois, teu rancor com amor,
se é q ue teu coração dói ainda com a ofensa. Diz uma palavra boa! …
Ordý nov já h avia saído do seu q uarto, com o primeiro ch amado dela, e
q uase não entendeu q ue entrava no dos anfitriões. A porta se abriu em sua
frente, e eis q ue o saudou, fúlgido como o sol, o sorriso dourado de sua bela
anfitriã. Não via mais nem ouvia ninguém, nesse momento, além dela. E,
num instante, toda a sua vida e toda a sua alegria fundiram-se, em seu
coração, numa só imagem, na luminosa imagem de sua K aterina.
— Duas auroras se foram — disse ela, ao estender-lh e ambas as mãos
—, desde q ue nos despedimos; a segunda se ex tingue agora: olh a pela
janela. Iguais às duas auroras da alma de uma linda moça — continuou
K aterina, rindo —: uma delas é a q ue lh e carmina o rosto com o primeiro
pudor, q uando se revela, pela primeira vez , o coração solitário da moça em
seu peito, e a outra vem q uando a linda moça se esq uece do seu primeiro
pudor, e fica ardendo q ue nem uma ch ama, e preme o peito da moça, e faz o
sangue rubro subir ao seu rosto… Entra, mas entra na casa da gente, jovem
valente! Por q ue estás parado aí, na soleira? Honra a ti e amor, e uma
mesura do dono!
Com um riso sonoro q ual uma música, ela pegou a mão de Ordý nov e
conduz iu-o para o q uarto. E uma timidez entrou-lh e no coração. Toda a
flama, todo o incêndio a arder em seu peito, como q ue se consumiram e se
apagaram, num só instante e por um só instante; confuso, ele abaix ou os
olh os, temendo encará-la. Sentiu q ue era tão milagrosamente bela q ue seu
coração não suportaria o olh ar tórrido dela. Ainda nunca vira sua K aterina
assim. O riso e a alegria fulgiam, pela primeira vez , em seu rosto, faz endo
as lágrimas tristes secarem naq ueles seus cílios negros. A mão do jovem
tremia na mão dela. E, caso o jovem erguesse os olh os, veria K aterina fix ar,
com um sorriso triunfante, seus olh os claros no rosto dele, obscurecido pelo
embaraço e pela paix ão.
— Levanta-te, velh o, anda! — disse ela, por fim, como se acabasse, ela
mesma, de se recobrar. — Diz uma palavra amável à nossa visita. Quem
nos visita é como um irmão de sangue! Levanta-te, pois, velh ote arisco e
orgulh oso; levanta-te, cumprimenta a visita, segura-lh e as mãos brancas, faz
q ue se sente à mesa!
Ordý nov ergueu os olh os e como q ue se recompôs nesse mesmo
instante. Só então é q ue acabou pensando em Múrin. Os olh os do velh o, q ue
pareciam prestes a apagar-se numa ânsia de moribundo, fitavam-no
imóveis, e foi com uma dor na alma q ue ele se recordou daq uele olh ar a
fulgir, pela última vez , debaix o das sobrancelh as negras, h irsutas, cerradas,
como agora, pela angústia e pelo furor. Ficou levemente tonto. Olh ou ao
redor e só então se deu conta de tudo, clara e nitidamente. Múrin
permanecia deitado em sua cama, porém estava q uase vestido, como se já
tivesse ficado em pé e saído naq uela manh ã. Seu pescoço estava envolto,
como dantes, num lenço vermelh o, ele h avia calçado os sapatos; pelo visto,
a doença já terminara, apenas seu rosto estava ainda h orrivelmente pálido,
amarelo. Postada rente à cama, K aterina apoiava uma das mãos na mesa e
olh ava, com atenção, para ambos os h omens. No entanto, um sorriso afável
não se ausentava do seu semblante. Parecia q ue tudo se faz ia por sua
vontade.
— Sim! É você — disse Múrin, soerguendo-se e sentando-se na cama.
— Você é meu inq uilino. Tenh o culpa perante você, meu senh or, pois o
deix ei ofendido, peq uei sem intenção nenh uma, q uando brinq uei agorinh a
com minh a espingarda. Quem é q ue sabia q ue essa moléstia negra lh e
sobrevinh a também? Pois a mim sobrevém, às vez es — acrescentou, com
uma voz rouq uenh a e doentia, franz indo o sobrolh o e desviando
involuntariamente os olh os de Ordý nov. — Quando o mal vem, não bate ao
portão, mas rasteja feito um ladrão! Foi por pouco, aliás, q ue não lh e cravei,
a ela também, uma faca no peito… — arrematou, inclinando a cabeça para
o lado de K aterina. — Estou doente, tenh o ataq ues… pois bem, já basta
para você! Venh a sentar-se, será um conviva nosso!
Ordý nov continuava ainda a fitá-lo.
— Sente-se, venh a, sente-se! — gritou o velh o, impaciente. — Sente-se,
já q ue isso agrada tanto a ela! Eta, mas irmanaram, seus irmãoz inh os da
mesma barriga! J untaram-se como amantes!
Ordý nov se sentou.
— Vê como é sua irmãz inh a? — prosseguiu o velh o, rindo e ex ibindo
dois renq ues de dentes brancos e todos intactos. — Divirtam-se, meus
q ueridos! É boa sua irmãz inh a, meu senh or, h ein? Diga aí, responda! Veja
só como as faces dela estão ardendo, feito uma ch ama. Dê uma olh ada,
pois, venh a h onrar a beldade para o mundo inteiro ver! Mostre q ue seu
coraçãoz inh o sofre por ela!
Franz indo o sobrolh o, Ordý nov encarou o velh o com ira. Ele
estremeceu com esse olh ar. E foi uma raiva cega q ue ferveu no peito de
Ordý nov. Ch egou a sentir, com certo instinto animal, q ue seu inimigo
mortal estava por perto. Mas não entendeu, ele mesmo, o q ue se dava com
ele: sua raz ão se negava a servi-lo.
— Não olh es! — ouviu-se uma voz atrás dele. Ordý nov se virou.
— Não olh es, digo-te, mas não olh es se o demônio te instiga: vê se te
compadeces da tua amada — diz ia K aterina, rindo, e lh e tapou, de repente,
os olh os por trás com a mão; retirou, logo a seguir, as mãos e se tapou, ela
mesma, por sua vez . Mas o rubor de seu rosto aparentava passar através dos
seus dedos. Ela afastou as mãos e, toda vermelh a q ue nem fogo, tentou
enfrentar, serena e firme, o riso e os olh ares curiosos dos h omens. Contudo,
ambos a miravam calados: Ordý nov com certo espanto amoroso, como se
fosse a primeira vez q ue uma belez a tão aterradora assim lh e pungia o
coração; o velh o, atenta e friamente. Nada se ex primia em seu rosto pálido,
apenas seus lábios az ulavam de leve e tremiam.
K aterina se ach egou à mesa, já sem rir mais, e se pôs a retirar os livros,
a papelada, o tinteiro, tudo q uanto estava em cima da mesa, colocando
aq uilo tudo sobre o peitoril da janela. Respirava depressa, de modo
entrecortado, e, vez por outra, sorvia avidamente o ar, como se seu coração
estivesse apertado. Pesado, como uma onda costeira, abaix ava-se e voltava
a erguer-se o peito roliço dela. Olh ava para o ch ão, e seus cílios negros,
az evich ados, brilh avam, como agulh as agudas, sobre as suas faces
embranq uecidas…
— Cz ar-moça! 6 — disse o velh o.
— Minh a senh ora! — sussurrou Ordý nov, estremecendo com o corpo
todo. Recobrou-se ao sentir o olh ar do velh o, q ue se fix ava nele:
instantâneo como um relâmpago, fulgurou esse olh ar cúpido, ch eio de fúria
e de desprez o frio. Ordý nov tentou soerguer-se em seu assento, porém uma
força invisível parecia acorrentar-lh e as pernas. Sentou-se de novo.
Apertava, de vez em q uando, a própria mão, como se não confiasse mais na
realidade. Parecia-lh e q ue um pesadelo o sufocava, q ue ainda jaz ia sobre
seus olh os um sonh o sofrido, mórbido. Mas, coisa estranh a! Ele não q ueria
acordar…
K aterina tirou o velh o tapete da mesa, depois abriu um baú, tirou dele
uma toalh a preciosa, toda bordada de sedas lustrosas e ouro, e veio cobrir a
mesa com ela; tirou, em seguida, do armário um postavetz 7 antigo, da época
dos bisavós, todo de prata, colocou-o no meio da mesa e separou três taças
argênteas: para o dono da casa, para a visita e para si mesma; fix ou, afinal,
um olh ar imponente, q uase meditativo, no velh o e no conviva.
— Quem de nós gosta, pois, e q uem não gosta de q uem? — disse. — Se
alguém não gostar de alguém, é q ue eu gosto dele e h ei de beber minh a taça
com esse alguém. E gosto de q ualq uer um de vocês: q ualq uer um de vocês é
meu bem-amado. Vamos brindar, pois, todos juntos, para q ue h aja amor e
concórdia!
— Vamos brindar e, naq uele vinh o, a cisma negra afogar! — disse o
velh o, com uma voz alterada. — Serve aí, K aterina!
— E tu mandas servir? — perguntou K aterina, olh ando para Ordý nov.
Calado, Ordý nov lh e ach egou sua taça.
— Esperem! Quem tiver alguma cisma ou dúvida, q ue se resolva
conforme a sua vontade! — disse o velh o, erguendo a taça.
Todos brindaram e beberam.
— E agora vamos beber juntos, meu velh o! — disse K aterina,
dirigindo-se ao anfitrião. — Vamos beber, se teu coração tem carinh o por
mim; vamos brindar à felicidade passada, curvemo-nos ante os anos
vividos, agradeçamos, com este coração nosso e o amor todo, por aq uela
felicidade! Manda servir, pois, se teu coração está q uente por mim!
— Forte está esse teu vinh oz inh o, minh a pombinh a, mas molh as nele, tu
mesma, apenas teus labioz inh os! — disse o velh o, rindo e ach egando outra
vez a taça.
— Eu tomarei um golinh o, e tu beberás a taça inteira! … Para q ue viver,
meu velh o, só arrastando uma cisma penosa atrás da gente? O coração não
faz q ue doer com a cisma penosa! O mal traz a cisma, a cisma ch ama o mal,
e q uem for feliz não cisma em nada! Bebe, meu velh o! Afoga essa cisma
tua!
— Muitos pesares é q ue juntaste, por certo, já q ue te pões assim contra
eles! Queres, por certo, dar cabo deles de uma vez só, minh a pombinh a
branca. Bebo contigo, K átia! E você, meu senh or, se me deix ar perguntar:
tem algum pesar ou não tem?
— O q ue tenh o é meu: aq ui está comigo — sussurrou Ordý nov, sem
despregar os olh os de K aterina.
— Ouviste, meu velh o? Nem eu cá soube, por muito tempo, nem me
lembrei de mim mesma, só q ue ch egou a h ora de saber tudo, de relembrar
tudo, e revivi o passado inteiro com esta minh a alma insaciável.
— Sim, é amargo mesmo cismares apenas em teu passado — disse o
velh o, pensativo. — O q ue se foi é como um vinh o bebido! Qual é a
felicidade do nosso passado? Gastaste o cafetã, joga-o fora.
— E vê se arranjas um novo! — replicou K aterina, com um riso
forçado, enq uanto duas grossas lágrimas lh e pendiam, como dois
diamantes, sobre os cílios brilh osos. — Pois não se vive, por certo, a vida
toda num só minuto, e o coração de moça é forte demais para se correr atrás
dele a vida toda! Será q ue entendeste, meu velh o? Vê só: sepultei uma
lagrimaz inh a em tua taça!
— Mas com q uanta felicidade é q ue compraste esse teu pesar? —
indagou Ordý nov, e sua voz vibrou de emoção.
— Tem aí, meu senh or, muita coisa sua a vender, com certez a! —
retorq uiu o velh o. — Por q ue é q ue se mete, se não foi ch amado? — E deu
uma gargalh ada biliosa, mas inaudível, fitando Ordý nov com insolência.
— Tudo q uanto vendi foi meu — respondeu K aterina, cuja voz parecia
aborrecida ou magoada. — Um ach a muito; o outro, pouco. Um q uer dar
tudo, mas nada tem a tomar; o outro nada promete, mas o coração dócil vai
atrás dele! E não censures o h omem — acrescentou, olh ando tristemente
para Ordý nov —: um h omem é assim, o outro não é, mas é como se a gente
soubesse por q ue a alma se apega a um deles! Ench e, pois, essa taça,
velh ote! Bebe à felicidade da tua filh a amada, da tua escrava calada,
submissa, como já era daq uela primeira vez , q uando te conh eceu. Levanta a
taça!
— Que assim seja! Ench e também a tua — disse o velh o, pegando a
taça.
— Espera, meu velh o! Não bebas ainda, mas deix a antes diz er uma
palavrinh a! …
Apoiando-se na mesa com ambas as mãos, K aterina cravava seus olh os
fúlgidos, penetrantes e passionais bem nos olh os do velh o. E uma estranh a
firmez a transparecia, cintilante, em seus olh os. Entretanto, seus
movimentos eram todos inq uietos, seus gestos, entrecortados, repentinos e
rápidos. Ela parecia toda inflamada, e isso se tornava biz arro de ver. Mas
sua belez a aparentava crescer com a emoção e a inspiração dela. Dos seus
lábios entreabertos pelo sorriso, q ue revelavam dois renq ues de dentes
brancos, iguais como pérolas, saía jorrando um alento impetuoso a dilatar
um pouco as suas narinas. Seu peito se agitava; três vez es enrolada sobre a
nuca, sua trança lh e recaía de leve, descuidadamente, sobre a orelh a
esq uerda e lh e cobria parte da face em brasa. O suor lh e brotava, suave, nas
têmporas.
— Lê minh a sorte, velh ote! Lê, meu q uerido, lê antes de afogares a
mente no vinh o: aq ui está a palma da minh a mão branca! Não era à toa q ue
nossa gente te ch amava de brux o, era? É q ue estudaste com aq ueles livros e
conh eces toda a ciência negra! Pois olh a, meu velh o, e conta para mim toda
a minh a sina de lamentar, mas vê se não mentes! Diz aí, como tu sabes
diz er, se será feliz tua filh a, ou se tu não lh e perdoarás a ela e rogarás, antes
q ue ela se mande, tão só uma praga maldosa? Diz se meu canto ficará
q uente, lá onde me instalarei, ou então passarei minh a vida toda, como um
passarinh o q ue voa de lá para cá, a buscar pelo meu lugar, orfãz inh a q ue
sou, no meio da gente boa? Diz q uem é meu inimigo, q uem me prepara um
amor, q uem está urdindo um mal para mim! Diz se meu coração jovem,
fogoso, terá de viver soz inh o, a vida toda, e de parar antes da h ora, ou
ach ará ele seu par e se q uedará batendo, com alegria, ao mesmo
compasso… até q ue um novo mal venh a! Adivinh a de q uebra, velh ote, em
q ue céu az ul e além de q ue mares e matas vive meu falcão lindo, onde está
e se busca, com sua vista aguda, uma falcoa, e se espera apaix onado por ela,
e se vai amá-la de coração, e se deix ará logo de amá-la, e se me enganará
ou não! E finalmente, já q ue uma coisa pux a a outra, diz , meu velh o, por
último se teremos ainda muito tempo a passar juntos, lendo aq ueles teus
livros negros neste canto mofado, e q uando eu poderei, velh ote, saudar-te
com uma mesura profunda e me despedir de ti, sem amargor nem rancor,
agradecendo teu pão e teu sal, q ue me deste de beber, de comer, e contaste
as tuas h istórias! … Mas vê se me diz es toda a verdade, se não me enganas:
defende-te, pois ch egou a h ora!
Sua inspiração ficou aumentando cada vez mais, até a última palavra, e,
de repente, sua voz se interrompeu de tanta emoção, como se um turbilh ão
estivesse envolvendo seu coração. Seus olh os fulgiam, seu lábio superior
tremia de leve. Ouvia-se uma ironia maldosa q ue serpenteava e se escondia
em cada palavra dela, conq uanto uma espécie de ch oro soasse tinindo em
suas risadas. Inclinando-se sobre a mesa, em direção ao velh o, ela insistia
em olh ar, com uma atenção cobiçosa, nos olh os embaciados dele. Ordý nov
ouviu seu coração bater de improviso, tão logo ela terminou de falar; deu
um grito de êx tase, ao olh ar de relance para ela, e por pouco não se levantou
do banco. Mas rápido, se não fulminante, o olh ar do velh o tornou a
acorrentá-lo ao seu assento. Uma estranh a mistura de desprez o e de
escárnio, de uma ansiedade impaciente, importuna, e, ao mesmo tempo, de
uma curiosidade malvada e maliciosa luz ia naq uele olh ar rápido, se não
fulminante, q ue todas as vez es faz ia Ordý nov estremecer, além de ench er,
todas as vez es, seu coração de bílis, de desgosto e de uma fúria impotente.
Pensativo, com certa curiosidade tristonh a, o velh o fitava sua K aterina.
Seu coração estava ferido: aq uelas palavras h aviam sido ditas. Mas nem
seq uer uma das sobrancelh as se moveu em seu rosto! Apenas sorriu,
q uando ela terminou de falar.
— Mas q uanta coisa é q ue q uiseste saber de uma vez , meu passarinh o já
emplumado, minh a avez inh a desperta! Ench e, pois, rapidinh o a minh a taça
profunda: brindemos primeiro à paz e à boa vontade, senão o olh ar de
alguém ali, um olh ar torvo, impuro, pode estragar este meu voto. O
demônio é forte, e o pecado não está tão longe assim!
Ergueu sua taça e bebeu. Quanto mais vinh o tomava, tanto mais pálido
se q uedava. Seus olh os estavam vermelh os como carvão em brasa.
Percebia-se q ue o brilh o febricitante deles e a repentina lividez cadavérica
de seu rosto prenunciavam um novo acesso de sua doença, q ue viria em
breve. Quanto ao vinh o, era tão forte q ue os olh os de Ordý nov se turvavam
cada vez mais após uma só taça despejada. Febrilmente inflamado, seu
sangue não podia mais aguentar, inundando seu coração, confundindo e
perturbando sua mente. Ele ficava cada vez mais inq uieto. Ench eu a taça,
tomou mais um gole sem saber, ele mesmo, o q ue estava faz endo nem como
lidaria com sua emoção cada vez maior, e eis q ue o sangue passou a circular
mais depressa ainda em suas veias. Como q uem delirasse, mal conseguia
observar, posto q ue concentrasse toda a atenção sua, o q ue ocorria entre
aq ueles seus anfitriões esq uisitos.
O velh o bateu com a taça de prata, q ue retiniu alto, na mesa.
— Serve aí, K aterina! — ex clamou. — Serve mais, filh a malvada, serve
até eu cair! Deita o velh o no caix ão, e bastará para ele! Assim mesmo: serve
mais para mim, serve mais, minh a beldade! Vamos beber juntos! Por q ue é
q ue bebeste pouco? Será q ue não vi? …
K aterina lh e respondeu algo, mas Ordý nov não ouviu o q ue fora
ex atamente: o velh o não a deix ou terminar; segurou-lh e a mão, como se não
conseguisse mais reprimir tudo q uanto se espremia em seu peito. Seu rosto
estava pálido; seus olh os ora se turvavam, ora rutilavam como um fogo
vivo; seus lábios embranq uecidos tremiam, e foi com uma voz áspera,
desvairada, a q ual deix ava transparecer, por momentos, certo arroubo
estranh o, q ue o velh o lh e disse:
— Dá tua mãoz inh a, minh a beldade! Deix a lê-la, deix a diz er a verdade
toda. Sou mesmo um brux o; por certo, não te enganaste aí, K aterina! Por
certo, não mentiu esse teu coraçãoz inh o de ouro, diz endo q ue só eu mesmo
podia enfeitiçá-lo e não lh e ocultaria a verdade, tão simples, ingênuo como
ele é! Mas tu não soubeste uma só coisa: não sou eu, este brux o, q uem vai
ensinar-te a sabedoria! É q ue a vontade não falta à mocinh a, ao invés da
raz ão, e ela fareja a verdade toda, como se não soubesse de nada, como se
nada imaginasse! Pois essa cabeça dela é uma serpente astuta, posto q ue seu
coração se banh e em lágrimas! Pois ela ach ará o caminh o, passará
rastejando por entre os males, conservará tal vontade astuta! Onde puder,
conseguirá muita coisa com sua sabedoria e, onde sua sabedoria vier a
falh ar, usará de sua belez a para turvar a mente, de seu olh o negro para
inebriá-la, pois a belez a arrebenta a força: nem q ue seja de ferro, o coração
se rach a afinal ao meio! Serás tu aí q ue terás pesares e cismas? Sim, é
pesado o pesar h umano! Só q ue não h á males para um coração fraco! O mal
se envolve com o coração forte, faz endo, às escondidas, q ue ch ore sangue e
não deseje passar aq uele vex ame gostoso diante da gente boa; q uanto ao teu
mal, mocinh a, é como uma pegada na areia: a ch uva o apagará, o sol o
secará, o vento raivoso o levará embora ou varrerá até q ue desapareça! E
mais te direi e mais da tal brux aria farei: serás a escrava daq uele q ue te
amar, atarás, tu mesma, a tua liberdade para entregá-la como penh or e não a
resgatarás nunca mais; não saberás deix ar de amá-lo na h ora certa, mas
botarás só um grão, e ele, teu assassino, acabará colh endo uma espiga
inteira! Minh a menina doce, minh a cabecinh a de ouro, tu sepultaste uma
lagrimaz inh a tua, como uma pérola, nesta minh a taça, só q ue não
aguentaste ao sepultá-la e, logo depois, derramaste mais uma centena de
lágrimas e deix aste q ue se perdesse tua palavrinh a bonita e ainda te gabaste
dessa tua cabecinh a astuta! Só q ue por ela, pela tua lagrimaz inh a, por essa
gotinh a d’ orvalh o celeste, não terás de ficar aflita nem cismada! Vais
recuperá-la com juros, essa tua pérola, a tal da lagrimaz inh a, numa noite
longa, numa noite penosa, q uando vierem um pesarz inh o maligno e uma
cisminh a impura para te roer toda: então cairá nesse teu coração fogoso, em
troca daq uela mesma lagrimaz inh a, outra lágrima de alguém ali, uma
lágrima de sangue e não só q uente, mas igual ao ch umbo derretido, e
q ueimará esse teu peito branco até sangrar, e tu te revirarás em tua caminh a,
vertendo teu sangue rubro, até a manh ã, aq uela manh ã sombria e triste q ue
vem nos dias ch uvosos, e não poderás sarar tua feridinh a recente até a
manh ã seguinte! Pois serve mais, K aterina, serve, minh a pombinh a, serve-
me vinh o por este conselh o sábio, e, q uanto ao mais, não adianta, por certo,
a gente gastar palavras em vão…
Sua voz fraq uejou e passou a tremer: um soluço parecia prestes a jorrar
do seu peito… O velh o ench eu sua taça de vinh o e sofregamente a
despejou, depois voltou a bater com ela na mesa. Seu olh ar turvo inflamou-
se mais uma vez .
— Ah , vive como viveres! — ex clamou ele. — O q ue passou já caiu
dos ombros! Serve-me, serve mais, traz -me a taça pesada para cortar esta
cabecinh a valente fora, para minh a alma gelar inteira! Deita-me então, para
eu dormir uma noite longa, sem amanh ecer, e para minh a memória ir toda
embora. Quanto se bebeu, tanto se viveu! Ficou parada, por certo, a
mercadoria daq uele negociante, ficou demorando demais, já q ue a entregou
de graça. E se não a tivesse vendido aq uele negociante, por sua livre
vontade, abaix o do preço, então se derramaria o sangue do inimigo, bem
como o sangue inocente, e o tal comprador pagaria, em acréscimo, com sua
alminh a perdida! Serve, pois, serve-me mais, K aterina! …
Contudo, sua mão q ue segurava a taça parecia inerte e não se movia; o
velh o respirava a custo, penosamente, e sua cabeça se inclinava sem q ue ele
q uisesse. Cravou, pela última vez , seu olh ar baço em Ordý nov, mas esse
olh ar também se apagou afinal, e suas pálpebras caíram como se fossem de
ch umbo. Uma lividez cadavérica espalh ou-se pelo seu rosto… Seus lábios
se mex eram por mais algum tempo, tremelicando e como q ue se esforçando
para diz er algo mais, e, de repente, uma lágrima grossa, ardente, ficou
suspensa nos cílios, depois se rompeu e rolou devagar pela face pálida…
Ordý nov não tinh a mais forças para suportar aq uilo. Soergueu-se e,
cambaleando, deu um passo para a frente e se ach egou a K aterina e lh e
agarrou a mão, porém ela nem seq uer o mirou, como se não tivesse
reparado nele, como se não o reconh ecesse…
Ela também aparentava perder os sentidos, como se um só pensamento,
uma só ideia petrificada a absorvesse toda. Apertou-se ao peito do velh o
adormecido, cingiu-lh e o pescoço com seu braço branco e, tão atenta q ue
parecia aferrada a ele, passou a fitá-lo com um olh ar inflamado, ch eio de
fogo. Não sentira, q uiçá, Ordý nov lh e segurar a mão. Virou, por fim, a
cabeça e fix ou nele um olh ar longo e penetrante. Acabou, pelo visto, por
compreendê-lo, e um sorriso estupefato, penoso, custou a surgir, como se a
fiz esse sofrer, em seus lábios…
— Vai embora, vai — coch ich ou ela —: estás bêbado, és maldoso! Não
és meu conviva! … — Então se voltou novamente para o velh o, aferrando-
se outra vez a ele com seus olh os.
Parecia espiar cada sopro dele e proteger-lh e o sono com seu olh ar.
Parecia temer respirar, ela mesma, contendo seu coração q ue se desenfreara.
E tanta admiração frenética emanava do seu coração q ue um desespero,
uma raiva e um inesgotável rancor dominaram juntos o espírito de
Ordý nov…
— K aterina! K aterina! — ch amou ele, apertando-lh e a mão com a força
de um torno.
Uma sensação dolorosa passou pelo rosto dela; ao reerguer a cabeça,
olh ou para ele com tanto escárnio, com tanto desdém insolente, q ue
Ordý nov mal se manteve em pé. Depois apontou para o velh o q ue dormia e,
como se todo o escárnio daq uele seu inimigo tivesse passado para os olh os
dela, voltou a mirá-lo com um olh ar pungente e congelante.
— Será q ue vai degolar, h ein? — disse Ordý nov, ensandecido de raiva.
Como q ue seu demônio lh e sussurrou, bem ao ouvido, q ue ele a
compreendera… E todo o seu coração ficou rindo com aq uela ideia
petrificada de K aterina…
— Pois te comprarei, minh a belez ura, desse teu negociante, se é q ue
precisas de minh a alma! Não vai degolar, com certez a, não vai! …
Aq uele riso congelado q ue mortificava todo o ser de Ordý nov não
deix ava mais o semblante de K aterina. Inesgotável, seu escárnio lh e
espedaçava o coração. Esq uecido, q uase inconsciente de si mesmo, ele se
apoiou na parede com uma das mãos e tirou de um prego a faca antiga e
cara do velh o. Uma espécie de pasmo refletiu-se no rosto de K aterina,
porém foram, ao mesmo tempo, sua z anga e seu desprez o q ue se
ex pressaram, pela primeira vez , em seus olh os com tanta força. Ordý nov se
sentia mal só de olh ar para ela… Como se alguém lh e empurrasse a mão
perdida para incitá-lo a cometer uma loucura, desembainh ou a faca…
Imóvel, como se não estivesse mais respirando, K aterina o observava…
Ele olh ou para o velh o…
E pareceu-lh e, naq uele momento, q ue um dos seus olh os se abria bem
devagar e ria a fitá-lo. Ambos os olh ares se entrecruz aram. Por alguns
minutos, Ordý nov olh ou para ele sem se mover… De súbito, pareceu-lh e
q ue todo o semblante do velh o ficara rindo, q ue um gargalh ar diabólico,
capaz de matar, congelante, repercutira enfim pelo q uarto. Uma ideia torva
e h orrorosa insinuou-se, como uma serpente, em sua cabeça. Ele
estremeceu; caindo das suas mãos, a faca tiniu pelo ch ão. K aterina soltou
um grito, como se acordasse de uma síncope, de um pesadelo, de uma visão
penosa, imóvel… Pálido, o velh o se levantou devagar da cama e, z angado
como estava, empurrou a faca, com o pé, para o canto do q uarto. K aterina
estava lá, pálida, semimorta, imóvel; seus olh os se fech avam; uma dor
surda, mas insuportável, surgiu espasmodicamente em seu rosto; ela se
tapou com as mãos e, com um grito a dilacerar a alma, tombou, q uase sem
respirar, aos pés do velh o…
— Alioch a! Alioch a! — foi esse o grito q ue jorrou do seu peito
apertado…
O velh o a abarcou com seus braços fortes e q uase a espremeu contra seu
peito. Mas, q uando ela escondeu a cabeça junto ao coração dele, cada
traçoz inh o daq uele semblante do velh o ficou rindo com um riso tão
desnudado e descarado q ue um pavor se apoderou de toda a essência de
Ordý nov. Um logro, um cálculo, uma tirania fria e ciumenta, um terror
imposto ao pobre coração partido — foi isso q ue ele percebeu naq uele
gargalh ar descarado q ue não se escondia mais…

III
Quando Ordý nov, pálido e aflito, ainda não recuperado do seu
transtorno da véspera, abriu no dia seguinte, por volta das oito h oras da
manh ã, a porta do escritório de Yaroslav Ilitch (vindo visitá-lo, de resto,
sem saber por q uê), recuou de tão espantado e ficou à soleira, como q ue
pregado ao ch ão, por ver Múrin lá dentro. O velh o estava ainda mais pálido
do q ue Ordý nov e parecia mal se aguentar de pé por causa da sua doença,
mas, apesar disso, não q ueria sentar-se, fossem q uais fossem os convites
q ue lh e faz ia, plenamente feliz com tal visita, Yaroslav Ilitch . Ele também
deu um grito ao avistar Ordý nov, porém, q uase no mesmo momento, sua
alegria se esvaiu, e uma espécie de embaraço veio, de súbito, apanh á-lo
totalmente desprevenido, q uando estava no meio do caminh o entre a mesa e
a cadeira viz inh a. Era óbvio q ue ele não sabia o q ue diz er, nem o q ue faz er,
e estava bem consciente de toda a indecência de q uem deix asse, num
momento tão complicado assim, um visitante de lado, soz inh o como viera,
e ficasse sugando seu tch ubutch ok ,8 enq uanto o sugava mesmo (tanto se
confundira), com todas as forças e até q uase com certa inspiração. Ordý nov
entrou, afinal, porta adentro. Correu os olh os por Múrin. Algo semelh ante
àq uele malvado sorriso da véspera, q ue até agora deix ava Ordý nov trêmulo
e indignado, desliz ou pelo rosto do velh o. Aliás, toda a sua h ostilidade
sumiu e se apagou em seguida, tomando seu rosto a ex pressão mais
inabordável e arisca possível. Cumprimentou seu inq uilino com uma
mesura profundíssima… Toda essa cena reanimou finalmente a consciência
de Ordý nov. Olh ou atentamente para Yaroslav Ilitch , q uerendo abranger o
estado das coisas. Yaroslav Ilitch se q uedou h esitante e gaguejante.
— Entre, pois, entre — acabou diz endo —; entre, preciosíssimo Vassíli
Mikh áilovitch , agracie a gente com sua visita e aponh a seu timbre… em
todos esses objetos banais… — proferiu Yaroslav Ilitch , apontando para um
dos cantos de seu escritório, enrubescendo q ual uma rosa felpuda,
confundindo-se e enredando-se, irritado porq ue sua frase nobilíssima se
atolara e se arrebentara em vão, e arrastou ruidosamente uma cadeira para o
meio do cômodo.
— Será q ue não o atrapalh o, Yaroslav Ilitch ? Eu q ueria… por dois
minutos.
— Misericórdia! Seria possível q ue você me atrapalh asse… h ein,
Vassíli Mikh áilovitch ? Mas… aceita um ch az inh o? Ei, servidor! … Tenh o
certez a de q ue o senh or tampouco recusa uma ch avenaz inh a a mais!
Múrin inclinou a cabeça, dando assim a entender q ue certamente não a
recusaria.
Yaroslav Ilitch gritou com o servidor q ue entrara e ex igiu, com o maior
rigor possível, mais três copos de ch á, sentando-se a seguir junto de
Ordý nov. Passou algum tempo girando a cabeça como um gatinh o de gesso,
ora para a direita, ora para a esq uerda, ora de Múrin para Ordý nov, ora de
Ordý nov para Múrin. Sua situação era bastante desagradável. Apetecia-lh e,
obviamente, diz er uma coisa bem melindrosa, na visão dele, ao menos para
uma das partes. Contudo, apesar de todos os esforços q ue faz ia,
decididamente não conseguia diz er uma só palavra… Ordý nov também
parecia perplex o. Houve um momento em q ue ambos se puseram
repentinamente a falar juntos… O taciturno Múrin, q ue os observava com
curiosidade, abriu devagar a boca e ex ibiu todos os dentes até o último…
— Vim declarar ao senh or — começou, de ch ofre, Ordý nov — q ue,
devido à circunstância mais desagradável, estou obrigado a deix ar o
apartamento, e…
— Imagine, pois, q ue caso estranh o! — interrompeu-o, de supetão,
Yaroslav Ilitch . — Confesso q ue fiq uei simplesmente estarrecido q uando
esse ancião respeitável me declarou, esta manh ã, a decisão de você. Mas…
— Foi ele q uem lh e declarou? — perguntou, com espanto, Ordý nov,
olh ando para Múrin.
Múrin alisou sua barba e riu, tapando-se com a manga.
— Sim! — replicou Yaroslav Ilitch . — Aliás, posso ainda estar
enganado. Mas digo abertamente q ue para você… posso jurar-lh e pela
minh a h onra q ue não h ouve, nas falas desse ancião respeitável, nem sombra
de ofensa para você! …
Então Yaroslav Ilitch se ruboriz ou e se esforçou para reprimir sua
emoção. Como q uem se tivesse fartado, por fim, desse embaraço do
anfitrião e do visitante, Múrin deu um passo para a frente.
— Pois digo a Vossa Ex celência — começou, ao saudar Ordý nov com
uma mesura cortês — q ue ousei importunar um pouq uinh o Sua Ex celência
por causa do senh or… É q ue acontece, meu senh or — Vossa Ex celência
sabe disso —, q ue a gente, q uer diz er, minh a patroa e eu, estaríamos feliz es,
de alma e boa vontade, e não nos atreveríamos a diz er uma palavrinh a
seq uer… mas é q ue minh a vida é tal q ue… o senh or mesmo sabe e está
vendo como ela é! É q ue Deus nos mantém vivos apenas, juro por minh a
h onra, portanto agradecemos orando a santa vontade dEle, senão, o senh or
mesmo está vendo, teria eu de uivar simplesmente, não teria? — Dito isso,
Múrin tornou a enx ugar a barba com sua manga.
Ordý nov estava q uase passando mal.
— Sim, sim, eu mesmo lh e falei sobre ele: está doente, ou seja, é um
malh eur… 9 ou seja, q ueria ex pressar-me em francês, mas, veja se me
desculpa, não sou tão fluente em francês, ou seja…
— Sim…
— Sim, ou seja…
Tanto Ordý nov q uanto Yaroslav Ilitch fiz eram meias mesuras algo
enviesadas, dirigindo-se um ao outro das suas respectivas cadeiras, e
dissimularam a perplex idade, q ue h avia surgido, com risadinh as
justificativas. Enérgico como era, Yaroslav Ilitch se recompôs logo em
seguida.
— Ch eguei, aliás, a interrogar minuciosamente esse h omem h onesto —
recomeçou —, e ele me disse q ue a doença daq uela mulh er…
Então, melindroso como era, Yaroslav Ilitch dirigiu, q uerendo
provavelmente ocultar uma leve perplex idade q ue voltara a surgir em seu
rosto, um rápido olh ar interrogativo para Múrin.
— Sim, a de sua locadora…
Delicado como era, Yaroslav Ilitch não ficou insistindo.
— De sua locadora, ou seja, de sua ex -locadora… juro q ue eu, de certa
maneira… pois sim! É uma mulh er doente, está vendo? Ele diz q ue ela
atrapalh a você… em seus estudos; aliás, ele próprio… mas você escondeu
de mim uma circunstância importante, Vassíli Mikh áilovitch !
— Qual é?
— A da espingarda — q uase sussurrou, com a voz mais condescendente
possível, Yaroslav Ilitch , e foi uma milionésima de censura q ue tilintou
suavemente em seu tenor amigável. — Mas — acrescentou, às pressas —
eu sei de tudo, ele me contou de tudo, e você agiu mui nobremente ao
perdoar-lh e aq uela culpa involuntária perante você. J uro q ue vi lágrimas
nos olh os dele!
Yaroslav Ilitch se ruboriz ou de novo; seus olh os fulgiram, e ele se
revirou, emocionado, em sua cadeira.
— Eu, q uer diz er, nós, meu senh or, já estamos orando tanto, digamos
assim, a Deus por Vossa Ex celência, minh a patroa e eu mesmo — começou
Múrin, dirigindo-se a Ordý nov, enq uanto Yaroslav Ilitch reprimia sua
emoção costumeira, e olh ando atentamente para ele —, mas o senh or
mesmo sabe q ue é uma baba doente, estúpida, e, q uanto a mim, as pernas
mal me aguentam…
— Mas estou pronto — disse Ordý nov, tomado de impaciência —:
ch ega, por favor, q ue estou pronto agora mesmo! …
— Não, meu senh or, mas estamos, q uer diz er, muito contentes com sua
gentilez a (Múrin fez uma mesura profundíssima). Mas não lh e falo disso,
meu senh or; q ueria diz er uma palavrinh a apenas: é q ue ela é, meu senh or,
q uase uma parenta minh a, q uer diz er, uma parenta distante — a sétima
água, digamos assim… q uer diz er, não se enoje o senh or com a palavra da
gente, q ue somos broncos —, e está desse jeito desde criança! A cabecinh a
doente, amalucada; cresceu na floresta, q ue nem uma mujik a, no meio de
todos aq ueles burlak s e fabricantes; então foi a casa q ue pegou fogo, e a
mãe daq uela ali, meu senh or, morreu q ueimada, e o pai se asselvajou,
q ueimou sua alma… mas sabe lá Deus o q ue ela lh e contará sobre aq uilo
tudo… Não me meto naq uilo, não, só q ue foi o conselh o ci-rúr-gi-co q ue a
ex aminou em Moscou… q uer diz er, meu senh or, desvairou-se
completamente, assim ó! Só a mim é q ue ela tem e vive comigo. Vivemos,
oramos a Deus, contamos com a força suprema, e não a contradigo, a ela,
em nada…
Ordý nov mudou de cor. Yaroslav Ilitch olh ava ora para um deles, ora
para o outro.
— Mas não lh e falo disso, meu senh or… não! — corrigiu-se Múrin,
abanando imponentemente a cabeça. — Pois ela é, digamos assim, um
vento, um vendaval, e a cabeça dela é tão amorosa, desenfreada assim, q ue
só se metam um amiguinh o q uerido — se for perdoável falar desse jeito —
e um namoradinh o q ualq uer naq uele seu coração: é essa a sandice dela.
Tento, pois, acalmá-la com minh as h istórias, e como, q uer diz er, tento! É
q ue vi, meu senh or, como ela… pois veja o senh or se me perdoa esta minh a
palavra boba — prosseguiu Múrin, curvando-se e enx ugando a barba com
sua manga —, digamos assim, transava com o senh or, já q ue o senh or, q uer
diz er, Vossa Magnificência, desejou, digamos assim, faz er com ela o q ue
tange aos amores…
Yaroslav Ilitch ficou todo rubro e olh ou para Múrin com censura.
Ordý nov mal se manteve sentado em sua cadeira.
— Não… q uer diz er, meu senh or, não lh e falo disso… eu, meu senh or,
sou um mujiq ue simples, q ue seja feita sua vontade… é claro q ue somos
broncos, nós cá, meu senh or, seus criados — adicionou Múrin, com uma
mesura profunda —, mas como é q ue vamos orar a Deus, minh a mulh er e
eu, por Vossa Graça! … Tanto faz para nós. Reclamar lá, a gente nunca
reclama, contanto q ue tenh a comida e saúde, mas eu cá, meu senh or, o q ue
teria eu a faz er, h ein, botar a corda neste meu pescoço? O senh or mesmo
sabe q ue é coisa do dia a dia, mas veja se tem piedade da gente; senão, o
q ue é q ue será de nós, meu senh or, se ficar ainda um amante no meio? …
Perdoe-me esta palavra ch ula, meu senh or… sou um mujiq ue, e o senh or é
da fidalguia… só q ue o senh or, q uer diz er, Vossa Magnificência, é um
h omem jovem, vistoso, fogoso, e ela… pois o senh or mesmo sabe q ue é
uma criança peq uena, bobinh a, e q ue o pecado não demora muito com ela!
É uma baba robusta, corada, gostosa, e eu, velh o q ue sou, enfraq ueço cada
vez mais. Pois bem: foi, por certo, um demo q ue confundiu Vossa Graça, e
eu cá só tento acalmá-la com minh as h istórias, juro q ue tento. E como nós
oraríamos a Deus por Vossa Graça, minh a mulh er e eu! Mas oraríamos,
q uer diz er, de verdade! E o q ue é q ue Vossa Magnificência pode q uerer com
ela: nem q ue seja gostosa, é uma mujik a, ainda assim, uma baba imunda,
uma ponióvnitsa10 tosca, igual a mim, este mujiq ue daq ui! Não é ao senh or,
meu fidalgo q uerido, q ue cabe, digamos assim, mex er com aq uelas mujik as!
Mas como nós oraríamos a Deus por Vossa Graça, ela e eu, oraríamos de
verdade, ó! …
E Múrin fez uma mesura ainda mais profunda e se q uedou, por muito
tempo, sem desencurvar o dorso, enx ugando ininterruptamente a barba com
sua manga. Yaroslav Ilitch não sabia mais onde estava.
— Sim, esse bom h omem — notou, num embaraço completo — contou
sobre alguns problemas q ue h ouve entre os senh ores, mas nem me atrevo a
acreditar nisso, Vassíli Mikh áilovitch … Ouvi diz erem q ue você estava
doente ainda — replicou depressa, fix ando em Ordý nov, com uma
perplex idade inesgotável, seus olh os lacrimejantes de emoção.
— Sim… Quanto lh e devo? — perguntou, rapidamente, Ordý nov a
Múrin.
— Mas o q ue é isso, meu senh orz inh o? Ch ega aí, q ue não somos
aq ueles q ue venderam Cristo.11 Por q ue nos ofende, meu senh orz inh o?
Deveria envergonh ar-se, pois nós cá, minh a mulh er e eu, nunca o
ofendemos. Misericórdia!
— Todavia, é meio estranh o, amigo meu: é q ue ele alugou um q uarto do
senh or, certo? Porventura não está percebendo q ue ch ega a ofendê-lo com
sua recusa? — intrometeu-se Yaroslav Ilitch , considerando como seu dever
revelar a Múrin toda a estranh ez a e todo o melindre de sua ação.
— Misericórdia, meu senh orz inh o! O q ue é q ue o senh or tem?
Misericórdia! Como foi, pois, q ue desagradamos a Vossa Senh oria? Tantos
esforços é q ue fiz emos, q uase estouramos estas barrigas
nossas,misericórdia! J á basta, meu senh or; basta, meu q ueridinh o, q ue
Cristo lh e conceda a graça! Seríamos nós uns pagãos daq ueles? Nem q ue
morasse conosco, nem q ue se regalasse com nossa comida de mujiq ues para
o bem de sua saúde, nem q ue ficasse ali deitado, o tempo todo, não lh e
diríamos nada, nem… nenh uma palavra é q ue diríamos, só q ue foi o tinh oso
q uem confundiu a gente, pois sou doente, eu mesmo, e minh a patroa está
doente também, faz er o q uê? Não h averia q uem lh e servisse, mas nós
ficaríamos tão contentes, contentes do fundo de nossa alma, em atendê-lo!
E como vamos orar a Deus, minh a patroa e eu, por Vossa Graça, q uer diz er,
orar de verdade, ó!
Múrin se curvou de novo. Uma lágrima aflorou nos olh os ex tasiados de
Yaroslav Ilitch . Ch eio de entusiasmo, ele olh ou para Ordý nov.
— Diga aí… mas q ue traço nobre! Que santa h ospitalidade é q ue tem
agraciado esse povo russo!
Ordý nov lançou um olh ar selvagem para Yaroslav Ilitch . Quase se
apavorou… e passou a ex aminá-lo da cabeça aos pés.
— É verdade, meu senh or: veneramos notadamente a h ospitalidade,
q uer diz er, veneramos de verdade, meu senh or! — replicou Múrin, cobrindo
a barba com toda a sua manga. — J uro q ue estive pensando agorinh a: e se o
senh or ficasse ainda conosco… e se ficasse, pelo amor de Deus? —
continuou, ach egando-se a Ordý nov. — Mas eu, meu senh or, não me
importo: um dia a mais, um dia a menos, juro q ue não diria coisa nenh uma.
Só q ue o pecado me confundiu demasiado, q ue minh a patroa não está com
saúde! Ah , não fosse minh a patroa! Se morasse lá eu, digamos assim,
soz inh o, como é q ue agradaria então a Vossa Graça e como cuidaria então
do senh or, q uer diz er, cuidaria de verdade, ó! A q uem é q ue poderíamos
agradar, se não fosse a Vossa Graça? Até curaria o senh or, juro q ue o
curaria, pois conh eço um meio ali… J uro, meu senh or, e lh e dou minh a
grande palavra: e se ficasse, pelo amor de Deus, mais um pouco
conosco? …
— Não h averia mesmo um meio daq ueles? — comentou Yaroslav Ilitch
e… não terminou a frase.
Fora à toa q ue Ordý nov acabara de ex aminá-lo, com um espanto
selvagem, dos pés à cabeça. Decerto era um h omem h onestíssimo e
nobilíssimo, mas agora já entendia tudo e, seja dita a verdade, estava numa
situação assaz complicada! Queria faz er o q ue se ch ama de ex plodir de riso!
Se estivesse a sós com Ordý nov, seu amigo do peito, Yaroslav Ilitch não
teria, sem dúvida, aguentado e se entregaria a um ímpeto desmesurado de
alegria. Em todo caso, fá-lo-ia com bastante decência, apertaria com
emoção, depois de rir, a mão de Ordý nov, assegurar-lh e-ia sincera e
justamente q ue ora sentia o dobro de respeito por ele, q ue o desculpava de
q ualq uer maneira… e q ue, afinal de contas, nem atentaria para sua
juventude. Mas agora, com sua delicadez a notória, estava na situação mais
melindrosa possível e q uase não sabia onde se esconderia…
— Meios, q uer diz er, remédios! — rebateu Múrin, cujo rosto se movera
todo com aq uela ex clamação despropositada de Yaroslav Ilitch . — Eu, meu
senh or, pela minh a estupidez de mujiq ue, diria o seguinte — continuou,
dando mais um passo para a frente —: o senh or leu demasiado esses seus
livrinh os; diria q ue se tornou sábio em demasia, e eis q ue, como se diz em
russo entre nós, os mujiq ues, sua mente se enrolou de repente…
— Ch ega! — interrompeu-o, severamente, Yaroslav Ilitch .
— Vou indo — disse Ordýnov. — Agradeço-lh e, Yaroslav Ilitch ; irei,
sim, irei vê-lo sem falta — respondia às delicadez as redobradas de Yaroslav
Ilitch , q ue não estava mais em condição de retê-lo. — Adeus, adeus…
— Adeus a Vossa Ex celência; adeus, meu senh or, não se esq ueça de
nós, pecadores, venh a visitar a gente.
Ordý nov não ouvia mais nada: saíra como um lunático.
Não conseguia mais aguentar; estava como q ue morto; sua consciência
entorpecia. O jovem sentia, no íntimo, q ue sua doença o sufocava, mas era
um frio desespero q ue reinava em sua alma, e ele percebia apenas uma dor
surda pungir, afligir e sugar-lh e o peito. Quis morrer naq uele momento.
Suas pernas fraq uejaram, e ele se sentou junto de uma cerca, sem mais
prestar atenção naq uelas pessoas q ue passavam por perto, nem na multidão
q ue começava a reunir-se ao seu lado, nem nas ch amadas e indagações dos
curiosos q ue o rodeavam. De súbito, a voz de Múrin soou, uma de muitas
voz es, sobre ele. Ordý nov ergueu a cabeça. De fato, o velh o estava postado
em sua frente; pálido, o rosto dele estava imponente e pensativo. J á era um
outro h omem, bem diferente daq uele q ue o escarnecera tão cruelmente no
escritório de Yaroslav Ilitch . Ordý nov se soergueu; Múrin lh e segurou a
mão e conduz iu-o para fora da multidão…
— Ainda tem de levar suas tralh as — disse, olh ando de esguelh a para
Ordý nov. — Não se entristeça, meu senh orz inh o! — ex clamou Múrin. —
Você é novo, por q ue se entristeceria?
Ordý nov não respondeu.
— Está sentido, meu senh orz inh o? Ficou, por certo, z angado em
demasia… só q ue não tem por q uê. Cada q ual cuida do q ue for seu; cada
q ual guarda seus bens.
— Não o conh eço — disse Ordý nov. — Não q uero saber desses seus
mistérios. Mas ela, ela! … — balbuciou, e as lágrimas lh e jorraram profusas,
torrenciais, dos olh os. O vento vinh a arrancá-las, uma por uma, das suas
faces… Ordý nov as enx ugava com a mão. Seu gesto, seu olh ar, os
movimentos involuntários de seus lábios trêmulos, az ulados — tudo
prenunciava uma loucura.
— J á lh e ex pliq uei — disse Múrin, cerrando as sobrancelh as —: ela é
doida! Por q ue e como endoideceu… será q ue precisa saber disso? Só q ue
para mim, seja ela q ual for, é bem-amada! Amo-a mais do q ue minh a vida e
não a darei a ninguém. Entende agora?
Uma flama instantânea fulgiu nos olh os de Ordý nov.
— Mas por q ue eu… por q ue estou como se tivesse perdido a vida
inteira? Por q ue está doendo meu coração? Por q ue conh eci K aterina?
— Por q uê? — Múrin sorriu e ficou pensativo. — Por q uê… nem eu
mesmo sei por q uê — concluiu, afinal. — A índole de uma mulh er não é o
abismo do mar: até q ue dá para conh ecê-la, mas é astuta, teimosa, vivaz !
Vem cá, digamos, tira e bota! Talvez q uisesse mesmo, meu senh orz inh o, ir
embora da minh a casa com você — prosseguiu, meditativo. — Ficou
enjoada com este velh o, viveu com ele tudo o q ue se podia viver! Gostou de
você, por certo, e muito, logo de início! E, assim sendo, q uer fosse você
mesmo, q uer fosse outro… É q ue não a contradigo em nada: nem q ue
desejasse beber leite de pássaro,12 conseguiria aq uele leite de pássaro para
ela; faria, eu mesmo, tal pássaro, se não ex istisse ainda! Ela é vaidosa!
Corre atrás da liberdade, só q ue não sabe, ela mesma, o q ue seu coração
caprich oso q uer. Pois acontece q ue é melh or viver com o velh o! Eh , meu
senh or, mas é novo demais! Seu coração está q uente ainda, como aq uele de
uma moçoila abandonada q ue enx uga as lágrimas com a manga! Pois fiq ue
sabendo, meu senh orz inh o: q uem for fraco não aguenta soz inh o! Nem q ue
você lh e dê tudo a ele, mas vem, ele mesmo, devolver tudo; nem q ue lh e dê
metade do reino terreno em possessão… tente aí, pois, e o q ue ach a q ue ele
fará? Logo se esconderá nesse seu sapato, tanto se rebaix ará num instante.
Dê-lh e a liberdade, àq uele q ue é fraco, e ele vai amarrá-la e lh e trará essa
liberdade de volta. Ao coração bobo nem a vontade é útil! Não se pode
viver com uma índole dessas! Só lh e digo tudo isso assim… q ue você é
novinh o em demasia. O q ue é para mim? Esteve aq ui, foi embora: q uer seja
você, q uer seja outro, não faz diferença. Eu já sabia, desde o começo, q ue
seria aq uilo mesmo. Só q ue não dá para contradiz er; não se diga nem uma
palavra contrária, se é q ue se q uer preservar a felicidade. É q ue sabe, meu
senh orz inh o — Múrin continuava a filosofar —: só se fala dessa maneira, e
várias coisas podem acontecer. Fulano agarra a faca, q uando z angado, ou
então parte assim, desarmado, com as mãos nuas, para cima de você, parte
feito um carneiro, e rasga a goela do inimigo com os dentes. E se lh e
enfiarem aq uela faca nas mãos, se seu inimigo vier e abrir o peito largo na
frente dele, q uem sabe se ele não dá para trás!
Eles entraram no pátio. Avistando Múrin ainda de longe, o tártaro tirou
sua ch apk a na frente dele e ficou olh ando, atenta e maliciosamente, para
Ordý nov.
— E tua mãe está em casa? — gritou-lh e Múrin.
— Está.
— Diz aí para o ajudarem a carregar suas tralh as! E vai tu também,
mex e-te!
Subiram a escada. A velh a criada de Múrin, a q ual era de fato, pelo q ue
se revelava, a mãe do z elador, ocupava-se dos pertences do ex -inq uilino e,
resmungando, atava-os numa só troux a grande.
— Espere, q ue lh e trago mais uma coisa sua: ficou lá…
Múrin entrou em seu q uarto. Voltou um minuto depois, entregando a
Ordý nov uma rica almofada, toda bordada de seda por cima do h arus,13
aq uela mesma q ue K aterina lh e colocara q uando ele tinh a adoecido.
— É ela q uem lh e manda isto — disse Múrin. — E agora vá indo, sem
amargor nem rancor, e veja se não fica z anz ando por aí — acrescentou a
meia-voz , num tom paternal —, senão se dará mal.
Percebia-se q ue ele não q ueria magoar seu inq uilino. Mas, q uando
correu seu último olh ar por ele, um acesso de fúria inex aurível
transpareceu, involuntário, mas veemente, em seu rosto. Quase com asco,
fech ou a porta atrás de Ordý nov.
Ao cabo de duas h oras, Ordý nov já se mudara para a casa do alemão
Spies. Tinch en soltou um ai ao olh ar para ele. Logo lh e perguntou pela
saúde e, uma vez ciente de q ue se tratava, dispôs-se imediatamente a cuidar
do jovem. O velh o alemão mostrou, ch eio de si, ao seu inq uilino q ue
acabava de q uerer ir ao portão e colar outra vez o anúncio, porq uanto,
ex atamente naq uele dia, fora gasto o último copeq ue do q ue ele pagara
adiantado, sendo-lh e descontado cada dia de aluguel. Ao mesmo tempo, o
velh o não se esq ueceu de elogiar precavidamente a pontualidade e a
h onestidade alemãs. No mesmo dia, Ordý nov adoeceu e só conseguiu
levantar-se da cama três meses depois.
Convalesceu aos poucos e começou a sair. Sua vida na casa daq uele
alemão era monótona, sossegada. O alemão não era genioso; a bonitinh a
Tinch en, sem se abordar a moral dela, era tudo q uanto se desejasse, porém a
vida parecia ter perdido, para sempre, a sua cor para Ordý nov! Ele se tornou
cismado, irritadiço; sua impressionabilidade acabou tomando um rumo
doentio, e ele foi desenvolvendo, de modo imperceptível, uma h ipocondria
biliosa e rígida. Vez por outra, não abria mais seus livros durante semanas
inteiras. O porvir estava trancado para ele, seu dinh eiro se esgotava pouco a
pouco, e ele já desistira de antemão: nem pensava mais em seu futuro. Às
vez es, sua antiga paix ão pela ciência, seu antigo ardor, as imagens antigas
q ue ele mesmo criara vinh am do passado e ressurgiam, vívidos, em sua
frente, porém não surtiam outro efeito senão o de oprimir, de sufocar a sua
energia. Suas ideias não se transformavam em ações. Sua consciência ficou
parada. Parecia q ue todas aq uelas imagens se agigantavam propositalmente
na imaginação do jovem para z ombarem da impotência dele, seu criador. E
ele ch egava a comparar-se involuntariamente, em seus momentos tristes,
com aq uele jactancioso aluno do feiticeiro q ue furtara a palavra de seu
mestre e mandara uma vassoura traz er água, acabando por se afogar nela ao
esq uecer como se diz ia: “ J á basta” .14 Uma ideia íntegra, original e
independente viria, talvez , a realiz ar-se nele. Talvez ele fosse predestinado a
ser um artista da ciência. Pelo menos, ele próprio acreditara nisso antes.
Uma fé sincera é, por si só, uma garantia do futuro. Mas agora ele próprio
ria, por momentos, dessa sua convicção cega e… não ia para a frente.
Meio ano antes disso, ele tinh a concebido, elaborado e rabiscado no
papel um h armonioso esboço de uma obra na q ual alicerçava (jovem q ue
era), em seus momentos não criativos, as esperanças mais concretas. Tal
obra se referia à h istória da Igreja, e eis q ue as convicções mais francas e
ardorosas h aviam surgido sob a sua pena. Agora relia esse plano, refaz ia-o,
ponderava-o, lia, buscava e acabou rejeitando sua ideia sem nada construir
nas ruínas dela. Mas algo semelh ante ao misticismo, à predefinição, ao
mistério começou a infiltrar-se em sua alma. O infeliz se apercebia dos seus
sofrimentos e pedia cura a Deus. A criada do alemão, uma russa velh a e
devota, compraz ia-se em contar como rez ava aq uele inq uilino q uietinh o e
de q ue maneira passava h oras inteiras deitado, como se estivesse morto,
sobre o tablado do templo…
Ele não diz ia meia palavra a ninguém sobre o q ue lh e ocorrera. Mas vez
por outra, sobretudo ao cair do crepúsculo, naq uela h ora em q ue o ruído dos
sinos vinh a lembrá-lo do momento em q ue, pela primeira vez , todo o seu
peito ficara vibrando, doendo com uma sensação antes desconh ecida,
q uando ele se ajoelh ara ao lado dela, no templo de Deus, esq uecido de tudo,
e só ouvia bater o coração tímido dela, q uando regara, com lágrimas de
êx tase e alegria, aq uela esperança nova e luminosa q ue surgira
momentaneamente em sua vida solitária, então toda uma tempestade se
desencadeava em sua alma ulcerada para sempre. Então seu espírito se
abalava, e o sofrimento de amor tornava a arder, q ual uma ch ama
abrasadora, em seu peito. Então seu coração doía, triste e apaix onado, e
parecia q ue seu amor aumentava com sua tristez a. Não raro, esq uecido de si
mesmo e de toda a sua vida cotidiana, esq uecido de tudo no mundo, ele
passava h oras inteiras sentado no mesmo lugar, solitário e pesaroso,
balançava a cabeça com desespero e, deix ando caírem lágrimas silenciosas,
coch ich ava consigo: “ K aterina! Minh a pombinh a adorável, minh a
irmãz inh a solitária! … ” .
Um pensamento h orroroso passou a atormentá-lo cada vez mais.
Perseguia-o, cada vez mais forte, e se encarnava em sua frente, todos os
dias, numa probabilidade, numa realidade. Parecia-lh e… e ele ch egou
finalmente a acreditar nisso tudo… parecia-lh e q ue o juíz o de K aterina
estava intacto, mas q ue Múrin tinh a raz ão, de seu modo próprio, em ch amá-
la de coração fraco. Parecia-lh e q ue algum mistério a ligava àq uele ancião,
mas q ue K aterina, sem se ter dado conta do crime, ficara, como uma
pombinh a pura, sob o domínio dele. Quem eram os dois? Ele não sabia
disso. Mas não cessava de intuir uma tirania profunda, irremediável, a
dominar uma pobre criatura indefesa, e o coração se confundia e se ench ia
de indignação impotente em seu peito. Parecia-lh e q ue, diante dos olh os
atemoriz ados daq uela alma a recuperar, de súbito, a visão, era perfidamente
ex ibida sua própria q ueda, q ue aq uele pobre coração f raco era perfidamente
torturado, interpretando-se a verdade, em sua frente, a torto e a direito,
mantendo-se adrede, onde fosse preciso, a sua cegueira, q ue os pendores
inex perientes daq uele coração impetuoso, transtornado, eram
astuciosamente favorecidos, e q ue, pouco a pouco, eram cortadas as asas
daq uela alma livre, desinibida, mas incapaz , no fim das contas, nem de se
rebelar nem de se atirar livremente na verdadeira vida…
Aos poucos, Ordý nov ficou ainda mais arredio do q ue antes, e aq ueles
seus alemães, a q uem se deve faz er justiça, não lh e criaram nenh um
obstáculo nisso. Gostava de perambular amiúde pelas ruas, por muito tempo
e sem objetivo. Escolh ia, sobretudo, as h oras crepusculares e, como local do
passeio, alguns lugares ermos, longínq uos e raramente freq uentados pelo
povo. Numa tarde primaveril, ch uvosa e insalubre, deparou-se, num beco
daq ueles, com Yaroslav Ilitch .
Yaroslav Ilitch emagrecera perceptivelmente, seus olh os agradáveis
estavam embaciados, e ele mesmo parecia completamente decepcionado.
Todo apressado, corria atrás de algum negócio inadiável, estava molh ado e
sujo, e um respingo de ch uva não se ausentava mais, de certo modo q uase
fantástico, do seu nariz assaz decoroso, mas ora az ulado, no decorrer
daq uela tarde inteira. Ademais, ele deix ara crescerem as costeletas.15 Tais
costeletas, além do fato de Yaroslav Ilitch olh ar para ele como q uem
evitasse o encontro com seu conh ecido de longa data, deix aram Ordý nov
q uase abalado… e, coisa estranh a, até lh e pungiram, de certa maneira, e lh e
magoaram o coração, q ue até então não precisava de compaix ão alh eia.
Enfim, agradava-lh e mais o h omem antigo, simples, bondoso, ingênuo e —
ousamos falar, afinal, às claras — um pouq uinh o tolo, mas sem pretensão
de se decepcionar nem de ficar mais inteligente. Pois é desagradável um
h omem tolo, de q uem a gente gostava antes, q uiçá, justamente em raz ão de
sua tolice, ficar de improviso mais intelig ente; pois sim, é decididamente
desagradável! Aliás, a desconfiança com a q ual ele olh ava para Ordý nov
não demorou a suaviz ar-se. Não obstante toda a decepção sua, nem por
sombra desistira da sua índole antiga, q ue a gente leva, como se sabe, até
para o túmulo, e começou, como outrora, a sondar com deleite a alma do
amigo Ordý nov. Antes de tudo, notou q ue estava muito atarefado, depois
disse q ue eles não se viam h avia tempos, porém, repentinamente, sua
conversa tomou de novo uma direção algo estranh a. Yaroslav Ilitch se pôs a
falar sobre as mentiras h umanas em geral, sobre a fragilidade dos bens deste
mundo, sobre a vanidade terrena; não deix ou de comentar, de passagem e
até mesmo de forma mais do q ue indiferente, acerca de Púch kin,
mencionou, com certo cinismo, as ch amadas boas relações e concluiu
aludindo, inclusive, à falsidade e à perfídia de q uem se ch amasse de amigo
na sociedade, posto q ue a verdadeira amiz ade jamais tivesse ex istido na
face da Terra. Numa palavra, Yaroslav Ilitch ficara, sim, mais inteligente.
Ordý nov não o contradiz ia em nada, mas sentia uma tristez a inenarrável,
pungente, como se tivesse enterrado seu melh or amigo!
— Ah ! Imagine só, q ue q uase me esq ueci de lh e contar — disse, de
ch ofre, Yaroslav Ilitch , como se tivesse rememorado algo muito interessante
—: temos uma notícia! Vou contar-lh e em segredo. Lembra-se daq uele
prédio onde você morava?
Ordý nov estremeceu e ficou pálido.
— Imagine, pois, q ue encontraram naq uele prédio, h á pouco, toda uma
q uadrilh a de ladrões, ou seja, meu prez ado senh or, uma ch usma, um covil:
contrabandistas, trapaceiros de toda espécie, q uem é q ue sabe! J á
prenderam alguns, ainda correm atrás dos outros: as ordens rigorosíssimas
foram dadas. E pode imaginar: lembra-se do dono daq uele prédio — um
h omem devoto, respeitável, nobre em aparência? …
— Pois é…
— J ulgue-se, depois disso, a respeito de toda a h umanidade! Era ele o
ch efe de toda a q uadrilh a, o cabecilh a! Não seria um absurdo?
Yaroslav Ilitch falava com inspiração e acabou condenando, por causa
de um h omem só, a h umanidade toda, porq ue um Yaroslav Ilitch desses
nem seq uer pode agir de outro jeito: isso faz parte do seu caráter.
— E aq ueles ali? E Múrin? — perguntou Ordý nov, coch ich ando.
— Ah , Múrin, Múrin! Não, aq uele é um ancião respeitável, nobre. Mas
espere: você lança uma luz nova sobre…
— O q uê? Ele também andava com a q uadrilh a?
O coração de Ordý nov estava prestes a furar-lh e o peito de tanta
impaciência.
— De resto, por q ue diz isso? — acrescentou Yaroslav Ilitch , cravando
seus olh os vidrados em Ordý nov (indício de q ue estava refletindo). —
Múrin não pode ter andado com eles. Ex atamente três semanas antes, ele
partiu, com sua mulh er, para lá, para a terrinh a dele… Quem me contou foi
o z elador… aq uele tartaroz inh o, lembra?

1 Membros de uma das seitas religiosas perseguidas pelo governo da Rússia cz arista.
2 Denominação arcaica de pérolas grandes e belas (em russo).
3 No original “ mãez inh a” , sendo o substantivo “ rio” feminino em russo.
4 Antiga casa em forma de uma torre cônica (em russo).
5 Saudação “ boa manh ã” é comum no meio russófono.
6 A moça mais linda (arcaísmo russo).
7 Bandeja com uma jarra e várias taças, destinada a servir bebidas (arcaísmo russo).
8 Peq ueno cach imbo (arcaísmo russo).
9 Desgraça (em francês); “ doença” seria une maladie.
10 Mulh er q ue usava uma poniova (saia de lã, com uma barra ornamentada, q ue vestiam as
camponesas casadas) e, assim sendo, pertencia às baix as camadas da sociedade.
11 Alusão ofensiva aos judeus e a q uem não era cristão ortodox o em geral.
12 Sinônimo de algo impossível, irrealiz ável.
13 Tecido de algodão de baix a q ualidade, resistente, mas duro e áspero (em polonês).
14 Alusão à balada Aluno do f eiticeiro, de J oh ann W olfgang von Goeth e (1749-1832), q ue
remonta ao diálogo satírico Amante das mentiras, de Luciano de Samósata (século II d.C.).
15 Isso significa q ue Yaroslav Ilitch não estava mais no serviço público, cujos funcionários
eram proibidos, na época de Nikolai I, de usarem costeletas e barbas.
© Copyrig h t desta tradução: Editora Martin Claret Ltda., 2021.
Título original: Бедные люди; Хозяйка

Direção
MARTIN CLARET

Produção editorial
CAROLINA MARANI LIMA / MAYARA ZUCHELI

Diagramação
GIOVANA QUADROTTI

Capa e projeto gráfico


MARCELA ASSEF

Tradução
OLEG ALMEIDA

Revisão
ALEXANDER BARUTTI SIQUEIRA

A ORTOGRAFIA DESTE LIVRO SEGUE O NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO DA LÍNGUA


PORTUGUESA.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Dostoiévski, Fiódor, 1821-1881.


Gente pobre, A anfitriã [livro eletrônico]/ Fiódor Dostoiévski; tradução e notas Oleg Almeida. — São
Paulo: Martin Claret, 2021.

Título original: Бедные люди; Хозяйка


ISBN: 978-65-5910-065-1

1. Ficção russa I. Almeida, Oleg. II. Título.

21-66819 CDD-891.7

Índices para catálogo sistemático:


1. Ficção: Literatura russa 891.7
Cibele Maria Dias – Bibliotecária – CRB-8/9427

EDITORA MARTIN CLARET LTDA.


Rua Alegrete, 62 — Bairro Sumaré — CEP: 01254-010 — São Paulo — SP
Tel.: (11) 3672-8144 — www.martinclaret.com.br

Você também pode gostar