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XXVI.

Partida e Chegada
O Mr. Thomas chegou em casa às onze horas do dia seguinte. Estava muito frio
no exterior, então todos esperaram na cozinha, até que ele colocasse os cavalos e a
carroça dentro do celeiro e limpasse o estábulo das vacas. Bert deu aos cavalos um
pouco de aveia e água, mas deixou a carroça presa aos dois animais. Ele faria outra
viagem para Marysville naquela mesma tarde, então queria tornar o trabalho o mais
simples possível. Ia levar dois dos filhos, a Mrs. Thomas e a vaca, bem como os
colchões e comida suficiente para se manterem até a viagem final.
Bert ia contar sobre a mudança de planos assim que se juntasse à família na
cozinha. Não era a maneira como haviam decidido fazer a mudança, mas eventualmente
lhe pareceu ser a melhor maneira. Seja qual fosse a forma, não seria simples. A vaca era
o principal problema, tudo girava em torno dela. O leite tinha que ser tirado duas vezes
por dia, e deveria haver alguém que soubesse como ordenhá-la.
Quando Bert entrou na varanda dos fundos e sacudiu o excesso de neve de suas
botas, um silêncio repentino caiu sobre a cozinha. Dava para ouvir a lenha estalando no
fogão da cozinha e os canos estourando no frio. Mas ninguém disse nada. Esperaram
enquanto ele tirava o gorro, o casaco e as botas pesadas. Finalmente, entrou na cozinha.
Mesmo depois de mais de vinte anos de um casamento difícil, a Mrs. Thomas percebeu
como ele era bonito, com os cabelos negros e grossos despenteados por causa do gorro e
as bochechas vermelhas por causa do frio e do vento.
— E então? – indagou a Mrs. Thomas.
— Está tudo bem – respondeu ele. — A casa, quero dizer. É grande o
suficiente... maior que esta. Tem três quartos: um para nós dois, e um grande para os
quatro meninos, com muito espaço para as quatro camas. E um pequeno sob o alpendre,
para a Anne.
Os olhos de Anne estavam grandes e vivos, cheios de entusiasmo e esperança.
Um quarto de verdade... totalmente dela. Não conseguiu esperar para perguntar:
— Meu quarto tem janela?
— Sim – respondeu o Mr. Thomas.
— Oh! – Anne exclamou, quase como se estivesse com dor. E novamente
exclamou: — Oh!
Em seguida, questionou:
— O que se pode ver pela janela?
O Mr. Thomas coçou a cabeça.
— Num sei – disse ele. — Árvores, talvez.
Então ele continuou falando.
— Há um grande fogão de cozinha – ele ainda não está montado, mas posso
fazer isso amanhã. Há alguns móveis que foram deixados pelos últimos moradores da
casa: três cadeiras, um sofá velho na sala – sim, há uma sala – e algumas almofadas
rasgadas. Alguns tapetes antigos rasgados – mas você provavelmente não vai querer
ficar com eles.
— Oh! – disse Anne sem querer. Ela sim queria um desses tapetes para o quarto.
— Algo mais?
Era a Mrs. Thomas falando.
— Tem alguns pratos, um vaso ou dois, em uma espécie de armário de
porcelana... e outros cacarecos.
Anne prendeu a respiração. Se eles não precisassem da casa de Katie Maurice
para guardar os pratos, poderiam deixá-la para trás, ou destruí-la.
— O que mais? – questionou Horace. Ele esperava que houvesse alguns
brinquedos.
— Uma carroça grande de criança, um velho urso de pelúcia, outros brinquedos,
quase todos quebrados, eu acho. Não consigo me lembrar. Dois berços pequenos... Uma
cômoda com gavetas.
Limpo? – perguntou a Mrs. Thomas. — O lugar está limpo?
— Não – respondeu o Mr. Thomas. — Uma das janelas está quebrada e os
animais entraram. Há excrementos de rato e esquilo por todos os lados, além de ninhos
de rato. Precisamos de um gato, ou talvez dois. Podemos mantê-los no celeiro à noite.
Um gato! Os olhos de Anne pareciam muito grandes para seu rosto miúdo.
Talvez dois. E um deles pode dormir no meu quarto, bem na minha cama. Seria melhor
que uma boneca.
— Agora ouça – disse o Mr. Thomas. — Temos que fazer desta forma e temos
que nos apressar. Vai escurecer antes que a gente se dê conta. A vaca tem que ir hoje, e
você, Joanna, e dois dos meninos. Tive que mudar de ideia sobre como vamos fazer
isso, não importa por quê, só tem que ser feito dessa maneira. É por causa da vaca.
Prepare-se rápido, Joanna, e dois meninos. E comida suficiente para dois dias. Voltarei
para pegar Anne e os menores amanhã. Precisamos sair em uma hora, pois preciso ligar
o cano ao fogão, antes do anoitecer. Vista-se com roupas bem aquecidas, pois está um
frio terrível lá fora, e é uma longa viagem. Enquanto você se arruma, arruma os meninos
e a comida, vou colocar alguns móveis e cobertores na carroça. Se a gente fizer tudo de
forma inteligente, podemos chegar lá antes que escureça completamente.
Ele parou de falar por um momento.
— E preciso de um pouco de comida na minha pança, antes de partirmos.
— Uma hora!
A Mrs. Thomas lançou os olhos para o céu. Era um dia inteiro a menos do que
ela esperava, mas disse a si mesma para não fazer alarde. Tudo isso já era difícil o
suficiente, sem agregar o temperamento irritante do Mr. Thomas. Bem, pelo menos ele
não estava bebendo. Joanna tinha ido até o galpão, enquanto Bert estava fora e
vasculhado tudo, mas não encontrara uma única garrafa de bebida. Mas ele poderia ter
levado consigo um pouco de rum. Joanna saiu para embalar roupas, encher caixas com
comida, recolher cobertores – tentando não pensar.
Anne colocou alguns pedaços de presunto frio nos pratos e preparou as batatas,
cortando-as em pequenos pedaços para que cozinhassem mais rápido. Então, cortou o
pão em grandes fatias. Ela podia não ser uma grande cozinheira ainda, mas se houvesse
coisas para ferver ou fatiar, conseguia preparar uma refeição para sete pessoas. E
sobraram duas tortas de seus visitantes.
Enquanto a Mrs. Thomas corria de um lado para outro, resmungando para si
mesma (“... Suéteres, meias, chapéus, camisolas, fronhas, travesseiros, pão, queijo,
sobras de presunto, batatas, cenouras, maçãs ...”), Anne continuou o seu trabalho.
Perguntou-se se ficaria com medo dentro de casa, sozinha com os dois meninos. E se
alguém batesse na porta? Devo deixá-los entrar? Ou fingir que saímos? Mas os
meninos podem chorar. E se eu vir um rosto na janela? Se isso acontecer, eu morrerei
– bem ali, do outro lado da janela. Vou ter que manter o fogo aceso no fogão, para que
não congelemos. E se eu adormecer e a casa pegar fogo? E se o Mr. Thomas sofrer um
acidente no caminho de volta e demorar dois dias para chegar aqui? O que vamos
comer? E a madeira está quase acabando. Como vamos nos manter aquecidos?
E então, de repente, o jantar estava pronto, e Horace e os irmãos, o Mr. e a Mrs.
Thomas estavam sentados para comer. Anne tomou alguns minutos para correr até o
corredor dos fundos, para falar com Katie Maurice.
— Escute, Katie Maurice – sussurrou. — Talvez você vá na carroça esta noite,
ou quem sabe, seja abandonada para sempre. Obrigada por ser minha amiga. Obrigada
por ouvir minhas histórias tão tristes. Obrigada por acreditar que meus sonhos se
tornarão realidade. Obrigada por ser minha única amiga verdadeira.
Mas ouça de novo, Katie Maurice. Há muitos ratos e esquilos na nova casa.
Vamos ter que ter um gato... Talvez dois. Você já ouviu algo mais maravilhoso? Talvez
um deles – o meu favorito, talvez um cinza – possa dormir na minha cama. Ele vai se
aconchegar bem perto de mim e eu vou abraçá-lo com meu braço livre para que ele se
sinta quentinho e amado. E eu vou me sentir quente e amada também... Em meu próprio
quarto... com janela. Você tem que vir, Katie Maurice, para que eu possa lhe contar
sobre meu quarto e segurar os gatos, para que você os veja.
Anne podia ouvir a Mrs. Thomas chamando-a para voltar para a cozinha. Eles
haviam terminado a refeição e já carregavam caixas, travesseiros e colchões para a
carroça.
— Anne – disse, quando a menina voltou –, vá até a cristaleira, e tire os pratos
de dentro dela. Envolva-os entre essas duas folhas e coloque-os cuidadosamente nesta
caixa. Acho que teremos espaço para colocar o armário no vagão esta noite, então se
apresse e tire esses pratos dali. E com cuidado, viu. Não quero nenhum deles quebrado.
Por um momento, Anne ficou parada na frente da Mrs. Thomas boquiaberta, um
olhar de admiração e felicidade iluminando seu rostinho magro.
— Oh, obrigada! Obrigada! – exclamou Anne, enquanto corria para arrumar os
pratos.
Quando Bert veio buscar outra carga, a Mrs. Thomas balançou a cabeça e disse:
— Essa Anne é a criança mais estranha que já conheci em minha vida. Acabei
de dar a ela um grande trabalho a fazer e ela me agradeceu!
Por fim, a carroça partiu com os dois cavalos e quatro pessoas, uma cristaleira,
muitas caixas e uma vaca. Todos eles desapareceram atrás de um bosque de abetos,
numa curva da estrada e sumiram.
Em vez de deixar sua imaginação correr solta, Anne a reprimiu. Concentrou-se
com firmeza para não pensar. Trancou a porta e começou a trabalhar. O sol ainda
brilhava nos campos nevados do lado de fora da casa e Anne sentia-se totalmente segura
enquanto ainda estava claro. A menina esquentou água e lavou os pratos, colocou um
pouco de lenha nova no fogo e, enquanto o alimentava, o fogo respondeu com um estalo
amigável. Anne aprontou os dois meninos pequenos para dormir, mas os deixou ficar
acordados até mais tarde do que o habitual, para que lhe fizessem companhia na casa.
Saiu para o corredor dos fundos e olhou para o lugar vazio, onde Katie Maurice morava.
— Obrigada – disse em voz alta para o teto.
À medida que escurecia, Anne evitou olhar para fora da janela e expulsou da
mente a ideia de rostos a encarando. Inventou duas histórias compridas, sobre uma
princesa em um vestido azul-centáurea, um belo príncipe e um par de cavalos brancos,
com sinos amarrados nas caudas. Anne colocou Harry sentado num banquinho ao lado
do fogão quente e Noah em seu antigo berço. Então, lhes contou duas histórias à luz da
lamparina da cozinha. Antes de ficar escurecer completamente, Anne subiu até o andar
de cima, e arrastou os dois colchões finos da cama de Harry e também da sua, e fez mais
duas viagens escada acima para trazer uma montanha de cobertores. Quando a escuridão
realmente chegou, Anne estava cansada demais para ter medo. Deixando a lamparina
acesa, os três adormeceram no chão da cozinha, ao lado do aquecedor fogão a lenha,
que continuou a fazer ruídos amigáveis ao longo da noite. De vez em quando, Anne
colocava lenha fresca no fogão, mas conseguia adormecer imediatamente. Sua
imaginação estava tranquila, e ela também.

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