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XVIII.

Coração partido
E o que Anne estava fazendo enquanto tudo aquilo estava acontecendo
— enquanto toda aquela conversa ocorria? Ela estava escondida, escutando.
E assim que ouviu Eliza contar à mã e, “mas ele quer somente a mim, nã o
quer que eu leve a Anne,” a menina sentiu como se fosse esculpida em um de
bloco de gelo. Sentiu rígida e dura, muito fria. Anne soube — simplesmente
soube, sem precisar de muito esforço, que isso era o fim de tudo. Todas as
coisas adorá veis que vivenciou com Eliza — os abraços, as caminhadas no
bosque e sobre as planícies, as flores que encontravam, colhiam e
acomodavam no vasinho que Joanna guardava na cristaleira de portas de
vidro — todos aqueles momentos chegariam ao fim. E tudo o que Anne tinha
sonhado — a toalha de mesa bordada, os arbustos lilá s (talvez um arbusto
pú rpura), o gatinho, a boneca de cílios pintados — tudo havia se desfeito —
sonhos tã o rasos, tã o vazios quanto uma névoa ofuscante.

Em seguida, quando Eliza se dirigiu ao celeiro para conversar com o


pai, Anne escapou da casa, posicionando-se pró xima ao chã o, em um lugar
em que as tá buas estavam soltas, e por ali ela conseguia ouvir o que era
falado. Já tinha ficado ali ouvindo antes. Uma vez, o Mr. Thomas estivera
trovejando na casa principal, gritando com todos para que parassem de
fazer barulho. Em seguida ele bateu na Mrs. Thomas, quando ela disse que
ele era o mais barulhento de todos, e jogou os livros de Trudy na parede, um
apó s o outro, berrando: “Ah, entã o você pensa que é muito mais esperta do
que o resto de nó s!” e logo saiu pela porta, se afastando para dentro do
celeiro, batendo a porta atrá s de si. Anne havia assistido tudo isso de um
cantinho da sala, encolhendo-se tanto quanto podia. Os três meninos
choravam, gritavam e Trudy soluçava alto enquanto recolhia, um por um, os
livros da escola. Anne esgueirou-se pela porta de trá s, de modo que pudesse
escapar de todo aquele sofrimento.

Entã o, repentinamente Anne ouviu sons estranhos vindo do celeiro —


bem alto, semelhante a gemidos. Ela se deslocou para a lateral do celeiro,
onde faltava uma tá bua, agachou-se no gramado e prestou atençã o. Ela
também observava, pois alguém havia chutado a tá bua solta — Horace,
provavelmente — e agora era possível ver o interior do celeiro. Para o
assombro de Anne, o que viu foi o Mr. Thomas golpeando um dos bancos de
ordenha com os punhos — repetidamente, chorando. O Mr. Thomas estava
realmente chorando.

Volta e meia, ele parava de bater no banquinho, e encostava a lateral do


rosto na grande barriga da vaca, dizendo “Ohhh! Ohhh!” em um terrível
gemido.
Anne tinha quatro anos de idade naquele tempo. Jamais conseguiu
expressar em palavras o que sentiu ou pensou ao presenciar essa cena. Mas
ao menos entendia que ele estava sofrendo. De uma forma ou de outra fazer
as coisas ruins que fazia o machucava. Esse era um conceito muito
complicado para que conseguisse descomplicar, mas Anne arquivou tudo em
sua cabecinha, para pensar sobre isso mais tarde. Entretanto, a menina
compreendeu uma coisa: seus sentimentos a respeito do Mr. Thomas haviam
mudado. Por que razã o, ou de que maneira, Anne nã o tinha certeza, mas
dentro de si, ela afugentou a ideia de odiá -lo. Algo estava diferente.

Neste dia terrível, quando descobriu que Roger se casaria com Eliza
somente se a deixasse para trá s, Anne ouviu e viu toda a conversa entre Eliza
e seu pai. Isso nã o alterou a intensidade da dor de Anne, nã o contribuiu, nem
mesmo um pouco, para derreter o gelo que sentia haver tomado conta de
seu ser. Mas ao ouvir a conversa, Anne teve duas revelaçõ es: ela tinha
alguém a quem recorrer, se as coisas ficassem insustentá veis. Anne sabia
que, se o Mr. Thomas estivesse bêbado, ele provavelmente seria incapaz de
ajudá -la de alguma maneira. Contudo, a menina nã o precisaria temer ser
ferida por ele. A outra revelaçã o era que o Mr. Thomas gostava dela... Anne
nã o estava acostumada que alguém gostasse dela.

Era possível que a Mrs. Thomas gostasse dela — talvez um pouco. Mas
Joanna jamais mencionou algo a esse respeito, e raramente se portava como
se gostasse. Trudy e Margaret quase sempre agiam como se Anne nã o
estivesse ali, e nunca haviam demonstrado a ela qualquer afeiçã o. Horace,
Harry e Edward batiam nela quando sentiam vontade, e a Mrs. Thomas
aparentemente estava muito ocupada para perceber ou se importar.

Mas Eliza a amava, e isso fazia todo o resto ser suportá vel. Na verdade,
a despeito de toda miséria e violência que a circundava, Anne tinha sido uma
pessoa alegre e animada, enquanto Eliza estava por perto para protegê-la.
Ela apreciava a chegada da primavera, o sol em sua pele no verã o, os dentes-
de-leã o e os ranú nculos, que cresciam livres nos campos, as amigá veis e
gentis vacas mais velhas, os ventos tempestuosos no fim do outono, as
intensas nevascas no inverno, as milhõ es de formas estreladas dos flocos de
neve, e as imagens nos livros antigos de Eliza, de pá ssaros, animais e moças
em seus vestidos elegantes. Havia tanto para desfrutar e amar quando
estava com Eliza — ou mesmo em raras ocasiõ es, quando estava sozinha,
pois Eliza sempre estava lá para recebê-la de volta.

Mas agora tudo havia mudado. Era o fim da vida como Anne a
conhecera, e de algum modo intuitivo, a menina tinha consciência disso. Mas
seu conhecimento intuitivo nã o a levou a lugar nenhum. Tudo o que havia lá
era o pesado bloco de gelo. Na semana seguinte, Anne iria só ao bosque
vizinho, gritaria e choraria tã o alto, e por tanto tempo, que afugentaria os
pá ssaros, e a relva em seus pés se moveria como o sopro do vento. Porém,
naquele dia, quando a notícia sobre a partida de Eliza ainda era uma
novidade, Anne sentia-se como alguém que de repente ficou cego. Nada mais
possuía cores ou formas, e Anne nã o sabia para onde estava indo ou como
chegar lá .

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