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Vou contar-vos uma história…

Quando eu era pequena, muito mais pequena de tamanho e um pouco mais pequena
de ideias, ainda que de juízo talvez fosse igual ao que sou agora, calhou de haver um
Verão em que, quase todos os dias da semana, a minha avó me ia deixar durante algum
tempo – uma hora ou duas, não me lembro bem – na biblioteca municipal da vila. A
biblioteca era pequena, como pequena era eu, e a senhora a fazer de bibliotecária vinha
de empréstimo da portaria da Câmara Municipal que ficava perto, porque tudo ficava
perto na vila, que era pequena como a biblioteca, que era pequena como eu.
Devo confessar que, naquela época, a versão mais pequena de mim encontrava maior
prazer em saltar muros e subir árvores do que nessa tão monótona actividade da leitura.
Gostava de livros, mas gostava muito mais de não estar sossegada. Na altura pensei que
a minha avó, por ter muito desgosto de não saber ler, queria por força que eu lesse livros
que chegassem para mim e para ela. Evidentemente, estava enganada. Era verdade que
a minha avó queria que eu lesse muito, o que eu não sabia, e que só vim a descobrir mais
tarde, é que no início desse Verão, a minha tia-avó mais velha ficou muito doente, e que
todas as tardes, durante as horas da biblioteca, a minha avó ia cuidar da irmã.
E assim, o que começou como um meio de poupar uma anciã muito doente ao
desassossego de uma criança, e de poupar uma criança ao definhar de uma anciã, acabou
por transformar a minha relação com os livros.
A senhora a fazer de bibliotecária – tenho pena de já não me lembrar do nome dela
–, era uma mulher doce, tinha uma voz muito calma e um cabelo nem curto nem
comprido, com umas ondas teimosas que ela trazia sempre prezas numa travessa de
metal antigo. A senhora a fazer de bibliotecária, dizia eu, não tinha nenhuma competência
específica no âmbito do tratamento dos livros, como não tinha nenhuma competência
específica no âmbito do tratamento das crianças. Ela sabia abrir a porta e sabia ler.
E, todos os dias, abria a porta e, depois, as janelas para entrar bem a luz. Repunha
alguns livros nas estantes, compunha e actualizava os jornais, que pareciam sempre os
mesmos. Punha cadeiras e cadeirões nos lugares certos e vinha para o ‘cantinho infantil’
receber a meia dúzia de meninos e meninas que lhe ficavam entregues durante uma parte
da tarde.
Dava umas arrumadelas mas nunca deixava os livros e os jogos demasiado
alinhados. Talvez achasse que não valia o esforço ou pensasse que podíamos perder a
vontade de lhes mexer. Deixava tudo limpo, mas numa espécie de desarrumo bonito, um
desmazelo composto que nos era bastante confortável. A certa altura que ela lá
encontrava, pegava num livro e, sem nenhum aparato ou chamada de atenção, sentava-
se numa cadeira mais arredada no ‘nosso’ cantinho e começava a ler. Nenhum de nós era
obrigado a vir e quem quisesse continuar a brincar era livre de o fazer. O que acontecia
era que, como ela lia em voz alta sem, contudo, falar alto, os que a queriam ouvir faziam
naturalmente silêncio e, obrigavam os outros a fazer também.
Nesse Verão a senhora a fazer de bibliotecária contou-nos todas ‘As aventuras de
Tom Sawyer’, as ‘Memórias de um Burro’, a viagem maravilhosa d’‘O Cavaleiro da
Dinamarca’ e, está bom de ver, as peripécias que viveu a pequena ‘Alice no País das
Maravilhas’.
As maravilhas que se operaram em mim começavam logo na circunstância de eu
conseguir estar parada, no mesmo lugar, e atenta a uma coisa só durante uma hora
inteirinha. E não me aborrecia nunca, nem mesmo quando era preciso ler outra vez o
capítulo do dia anterior, porque alguém tinha faltado e não podíamos deixar
companheiros perdidos nas histórias.
Mais maravilhas chegavam com a minha incapacidade de deixar as histórias para
trás. E vinha para casa a perguntar à minha avó que espécie de parentesco era esse do
‘escravo’ que estavam sempre a chamar ao Jim, e como era possível que o pequeno Huck
Finn vivesse sozinho, que me parecia uma coisa muito triste, ainda que tivesse uma casa
em cima de uma árvore, que me parecia uma coisa para lá de espectacular. E olhava muito
à minha volta e em todas as travessas e quelhas via uma entrada para a toca do Coelho
Branco, dodós e flamingos em todas as capoeiras, ovos emproados e falantes em todos os
muros, lagartas sábias em todas as couves. Comecei a imaginar a Rainha de Copas com
o rosto da minha catequista, que era uma pessoa que me assustava muitíssimo, e perdi
imenso tempo a conversar longamente com o burro velhinho da senhora Emília – uma
vizinha próxima que ainda era prima de alguém. Contei-lhe detalhadamente todas as
partes da minha jovem vida que tinha a certeza de serem dignas de orgulho, alimentando
secretamente a esperança de que ele – o burro velhinho – me guardasse muitas páginas
das suas memórias. Sei hoje que, tal como a Rainha de Copas, a minha catequisa não era
tão assustadora como fazia parecer, e que afinal o burro, talvez por ser velhinho de mais,
nunca chegou a escrever as suas memórias e, muito menos, as minhas.
Do Cavaleiro da Dinamarca guardei durante muitos anos, mais do que o enredo da
história, o encantamento das palavras. A senhora a fazer de bibliotecária, acredito agora,
gostava mais daquele do que de qualquer outro livro e, por isso, ainda o lia com mais
doçura do que aos outros. E talvez a ternura que hoje eu própria tenho pela autora e
pelas palavras de Sophia, tenha nascido, pelo menos em parte, das tardes daquele Verão
em que a tia Maria morreu.

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