Xxviii. Tapetes, Educação e Ovos

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XXVIII.

Tapetes, Educação e Ovos


Tantas coisas aconteceram no dia seguinte, que Anne desejou poder apenas
sentar-se em uma cadeira e refletir sobre elas. Ou encostar na parede e fazer a mesma
coisa. Ou talvez até calçar as botas, o casaco e o chapéu, e atravessar a neve funda até as
cinco bétulas e fazer suas reflexões lá fora.
Pensar em algumas das coisas que estavam acontecendo na casa de Thomas era
tão empolgante quanto seus pensamentos inventados. Mas não podia pensar agora,
havia coisas demais a serem feitas, para permitir-lhe o luxo de refletir. Bem, poderia
esperar até a tarde. Então, talvez a Mrs. Thomas estivesse cansada o suficiente para
desabar em sua cama depois de arrumar os três meninos mais velhos no quarto. Nesse
caso, Anne esquentava uma água em uma mamadeira, e colocava um pouco de açúcar.
Então dava para Noah e o colocava no velho berço – o mesmo berço que um dia a
abrigou com três meses de idade. Anne sabia que ele cairia imediatamente em um sono
profundo.
Noah tinha mais de um ano agora e conseguia andar e dizer algumas palavras.
Mas ele ainda amava sua mamadeira, e Anne contava com essa mamadeira para mantê-
lo feliz e quieto se ela tivesse algo especial e privado que quisesse fazer – como
conversar com Katie Maurice ou apenas sentar e sonhar em ser uma princesa em um
vestido, dançando com um príncipe em um colete vermelho com botões pretos e um
colar de renda no pescoço. Anne não tinha palavras suficientes para descrever essa cena,
nem sabia se estava vestindo a princesa e o príncipe com as roupas certas. Mas a menina
não precisava de palavras para construir seu casal de dançarinos, e não se importava
nem um pouco se eles estavam vestidos com as roupas que pessoas da nobreza
realmente usavam. Se a imagem em seu sonho era bonita, era só isso que importava.
Havia um pequeno cômodo ao lado da cozinha, que deveria ser uma despensa ou
depósito. Mas depois da primeira noite, quando os três meninos mais velhos
mantiveram Noah acordado metade da noite com suas conversas e jogos barulhentos, o
Mr. Thomas trouxe o berço de Noah para baixo e o colocou na pequena despensa. Havia
espaço para as roupas e as fraldas do bebê, e seus poucos brinquedos nas prateleiras,
mas ainda restava espaço nos armários para comida em caixas e sacos, e para as batatas
e vegetais como cenoura e nabo.
Anne colocou Noah no berço, com um abraço e um beijo no topo de sua
cabecinha.
— Obrigada por ser quem você é, Noah – sussurrou Anne. — Você é o melhor
de todos eles.
Então Anne correu para pegar a escova de vegetais, dois dos tapetes sujos e
rasgados, e suas roupas para o ar livre. Na neve profunda do quintal, Anne esfregou os
tapetes por uma hora inteira. Enquanto trabalhava neles, Anne conversava – com as
bétulas, com o misterioso espaço plano atrás das árvores, com o céu e suas rápidas
nuvens brancas, consigo mesma. Anne sentia-se perfeitamente à vontade e feliz
conversando consigo mesma, ou com as árvores e os campos. Desde a partida de Eliza,
ela não tinha ninguém com quem conversar, e às vezes sentia como se estivesse por
explodir – erupcionar, na verdade – se não falasse. Conversar com Katie Maurice era
melhor, mas no momento, tinha um trabalho a fazer que não poderia ser feito no
corredor do porão. Talvez pudesse falar com os tapetes hoje e exortasse-os a se
tornarem bonitos.
— Meus queridos tapetinhos – ela começou dizendo –, por favor, permita-me
deixá-los tão limpos, que de repente, imagens possam surgir através da sujeira. Ou
talvez apenas uma imagem. Isso seria o suficiente para me fazer feliz.
Anne esfregou neve nas fendas dos colchetes e espalhou-a sobre a superfície.
Em seguida, atacou os tapetes com a escova de vegetais. Anne esfregou ferozmente –
com toda a sua força depositada nos punhos delgados. E uma imagem, de fato, parecia
estar tentando aparecer. À medida que a imagem começou a aparecer, suas cores vagas
e indistintas começando a emergir da superfície cinza, as cerdas da escova tornaram-se
cada vez mais curtas, e muito, muito sujas. Mas Anne não prestou a menor atenção para
esse fato. A urgência de sua tarefa a consumia.
Além disso, Anne estava falando.
— Oh, que manhã! – exclamou Anne. — Penduramos as cortinas hoje, eu, de pé
em uma escada e a Mrs. Thomas me entregando as hastes com cortinas da nossa antiga
casa penduradas. As cortinas não couberam direito, e me fizeram lembrar da minha
camisola, que está muito curta, mas não tínhamos mais tecido para colocar na última
janela. Mas oh! Como fizeram diferença! A cozinha parecia aconchegante e iluminada
com seu tom amarelado, e a sala de visitas parecia-me quase uma sala de palácio, com
aquelas cortinas de flanela verde-claro com pequenas rosas por toda parte.
Então chegou um homem. Ele parecia ser muito importante. Era tão empertigado
e alto – como um policial ou um soldado, embora usasse roupas comuns. O tal homem
perguntou se havia alguém na casa com idade suficiente para frequentar a escola. Quase
caí da escada, pode imaginar, não é?! Então desci e fiquei perto do homem, para que ele
visse como eu era alta e talvez pensasse que eu tinha oito anos, e que seria
absolutamente necessário que eu fosse para a escola. Ouvi essas palavras dele. A Mrs.
Thomas disse que logo eu ia completar seis anos, e ele disse que estava surpreso por eu
não ser mais velha, e eu sorri, e fiz uma espécie de reverência, como Eliza me ensinou
que se fazia, se uma rainha entrasse em seu quarto, para que o homem achasse que eu
era uma boa menina, e não apenas uma magrelinha ruiva com muitas sardas.
Então, este homem importante disse que não era ‘absolutamente necessário’ eu
ir para a escola quando completasse seis anos, e meu coração desabou, como uma pedra
pesada. Mas ele disse que a escola era pequena, não tinha muitos alunos e que a
professora era jovem e vivaz (outra palavra nova e bonita, que não tenho certeza do
significado), e tinha esperança que ela pudesse achar mais alunos para ensinar. Então, se
eu quisesse ir, e se a Mrs. Thomas achasse que eu podia andar um quilômetro e meio
pela floresta para chegar até a escola, eu deveria ir! Eu ia ficar feliz em caminhar um
quilômetro e meio pela floresta, até mesmo em meio a uma tempestade de neve, para
chegar à escola, então mordi meu lábio com tanta força que até sangrou um pouco,
enquanto esperava a resposta da Mrs. Thomas.
Ela demorou muito para responder, mas finalmente disse: ‘Acho que ela pode ir
se quiser, contanto que não precise de roupas elegantes – ou qualquer coisa especial que
custe dinheiro. Meu marido acabou de perder um bom emprego, e a nova ocupação não
paga muito dinheiro. Não há espaço aqui para galinhas, e temos três animais e cinco
crianças para alimentar, além dele e eu. Eu certamente detesto a ideia de perder a ajuda
da menina, mas ela pode trabalhar mais para mim nos fins de semana.
O homem olhou ao redor enquanto falava e eu percebi que ele estava
carrancudo. Talvez não gostasse da maneira como os três meninos mais velhos corriam
atrás um dos outros gritavam, enquanto os adultos conversavam. Noah começou a
chorar, então o peguei e o segurei no colo enquanto dava a ele a mamadeira. Achei
melhor tentar manter tudo quieto, já que o homem não gostava de barulho.
Então ele disse: ‘É nosso dever garantir que a população de Nova Scotia seja
composta de pessoas educadas. Então, se não for absolutamente necessário que essa
criança fique em casa, seria favorável que ela começasse a escola no dia quinze de
março. Vou deixar para ela as duas primeiras cartilhas Royal Readers, para que ela vá se
familiarizando com as ilustrações, ainda que não seja capaz de ler. Dessa maneira, a
menina não ficará tão tímida e assustada quando começar a escola.
‘Não espero ter medo quando for para a escola’, eu disse, levantando-me tão
rapidamente para pegar os livros, que quase deixei Noah cair. ‘Posso ficar um pouco
tímida no início, mas quando alguém quer tanto uma coisa, quanto eu quero a escola, a
gente não tem tempo de ficar tímido.’
O homem disse: ‘Bom! Então está tudo acertado. Vou dizer à professora para
esperá-la. O nome dela é Miss Henderson.’
Então, virando-se para a Mrs. Thomas, perguntou: ‘Qual é o nome da menina,
Mrs. Thomas?’
Eu respondi por ela: ‘Meu nome é Anne Shirley. Anne, com E. Eu não sou filha
de verdade da Mrs. Thomas. Sou uma órfã, e meus falecidos pais eram professores’.
Pensei que se ele soubesse que minha mãe e meu pai eram professores, seria menos
provável que mudasse de ideia. Mas não mudou, apenas me entregou os dois livros e
também me deu um grande sorriso.
Então ele se virou para a Mrs. Thomas novamente e disse: ‘Desejo-lhe um bom
dia, Mrs. Thomas. Alguém lhe dará instruções sobre como chegar à escola e a que horas
Anne deve estar lá. Talvez a senhora queira acompanhá-la no primeiro dia.
Eu apenas olhei para ele com muita firmeza e disse: ‘Isso não será
absolutamente necessário. De verdade, não será necessário. Estou acostumada a fazer as
coisas sozinha.’ Eu não queria os meninos me arrastando, gritando e estragando o dia
mais lindo da minha vida. O homem parecia querer sorrir, mas sabia que não deveria.
‘Posso imaginar’, disse ele, e então virou-se para a porta. 'Mrs. Thomas, há um
homem que vende ovos, a cerca de um quilômetro daqui, na outra direção, e ele faz um
bom preço. A senhora pode pedir a seu marido para pegar uma dúzia ou mais, se estiver
cavalgando naquela direção.'
Então ele foi embora.
Anne parou de falar naquele ponto. A imagem de uma casinha rosa e uma árvore
emergiu da superfície do tapete adornado. Ela saltou, bateu palmas e, de fato, dançou
em volta do tapete.
— Um é o suficiente – ela disse alegremente. — Além disso, estou cansada de
tanto esfregar.
Assim que a imagem ficou clara, Anne pendurou o pequeno tapete sobre o
corrimão da varanda para secar e se abraçou, com a alegria dos acontecimentos do dia.
Mas seu deleite durou pouco. A Mrs. Thomas apareceu na porta dos fundos – mais
furiosa do que Anne jamais a tinha visto.
— Sua garota má, terrível! – ela estava gritando. — Olha só o que você fez com
a minha escova de vegetais! Esfregou as cerdas até virassem nada, e está tudo sujo
demais para usar novamente. Entre aqui e comece a trabalhar para pagar seu sustento.
Eu deveria ter dado você para a Mrs. Gleeson, quando tive a chance!
Anne não tinha ideia do que isso queria dizer, e jamais iria descobrir.

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