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INÍCIO  OPINIÃO

OPINIÃO
A Rússia não é imperialista?
A guerra da Ucrânia abriu uma discussão na esquerda brasileira sobre o lugar da Rússia no
mundo
Valerio Arcary
Brasil de Fato | São Paulo (SP) | 12 de Abril de 2023 às 13:24

A Rússia é um imperialismo excluído do centro de poder mundial - PAVEL BYRKIN / SPUTNIK / AFP

Ao falar da política colonial da época do imperialismo capitalista, é necessário notar que o


capital financeiro e a correspondente política internacional, que se traduz na luta das
grandes potências pela partilha econômica e política do mundo, originam abundantes
formas transitórias de dependência estatal. Para esta época são típicos não só os dois grupos
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fundamentais de países – os que possuem colônias e as colônias -, mas também as formas
variadas de países dependentes que, de um ponto de vista formal, político, gozam de
independência, mas que na realidade se encontram envolvidos nas malhas da dependência
financeira e diplomática. Uma destas formas, a semicolônia, indicamo-la já anteriormente.
Modelo de outra forma é, por exemplo, a Argentina[1].

Vladimir Ilitch Ulianov, Lênin.

A guerra da Ucrânia abriu uma discussão na esquerda brasileira sobre o lugar da Rússia
no mundo. Na América Latina a supremacia dos EUA como principal potência
imperialista alimenta uma ilusão de ótica. Prevalece até, talvez, a percepção de que a
Rússia seria um país dependente. Trata-se de um grave erro. A Rússia é um Estado
imperialista, ainda que subalterno.

Quais são os critérios que permitem qualificar um país como imperialista? Qual deve
ser a régua para medir o lugar que cada Estado ocupa no sistema internacional? Na
tradição marxista a discussão esteve concentrada na necessidade de responder às
mudanças que ocorreram nas vésperas da Primeira Guerra Mundial e que permitiram
compreendê-la.

Em 1902 foi publicado o livro do inglês Hobson, O imperialismo, muito bem recebido
por Kautsky, o principal líder teórico do SPD alemão, mais influente partido da
Segunda Internacional e, em 1910, o de Hilferding, O capital financeiro, que obteve
grande repercussão. Rosa Luxemburgo e Bukhárin foram, também, pioneiros na
elaboração, mas foi o livro de Lenin "O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo"
que alcançou maior repercussão.

:: Autoridades russas afirmam que atentado em São Petersburgo foi planejado por
Kiev ::

Lenin destacou cinco novos fatores no metabolismo do capital que explicavam uma
mudança de fase ou período na natureza do capitalismo: (a) concentração de capital e
formação de monopólios; (b) fusão do capital industrial e bancário originando o capital
financeiro; (c) papel da exportação de capitais na conquista e preservação de posições
de domínio; (d) formação de corporações multinacionais que dividem entre si o
mercado mundial; (e) partilha do mundo entre os Estados imperialistas.[2]

A Rússia dos Czares era um dos maiores impérios do mundo até o triunfo da revolução
de outubro em 1917. Ocupava um lugar especial no sistema europeu de Estados porque
era um país gigante, onde uma maioria de 90% dos 150 milhões de habitantes era
camponesa, mas possuía o quinto maior parque industrial do mundo no início do
século XX. Detinha domínio colonial sobre dezenas de nações não russas que foram
oprimidas durante séculos. A URSS foi a primeira República socialista da história.

Mas a Rússia é hoje um país capitalista. Evidentemente, não tem sentido qualquer
discussão sobre a restauração capitalista, iniciada sob o governo Gorbatchev, concluída,
rapidamente, sob Yeltsin e consolidada pelos governos de Putin. Nos anos noventa,
durante dez anos, a Rússia viveu uma terrível regressão histórica, mergulhou no
abismo da decadência econômica-social, empobreceu de forma vertiginosa.

:: Biden pede que Rússia liberte jornalista dos EUA preso por 'espionagem' ::

Um critério lúcido para ordenar debates entre marxistas é reconhecer que existem
discussões que a história resolveu, e outras que permanecem inconclusas. A história já
confirmou que a ex-União Soviética não estava em transição ao socialismo.

Fosse qual fosse a natureza das relações sociais daquele modo de produção pós-
capitalista, uma controvérsia teórica que foi, em seu tempo decisiva – Estado socialista
ou operário ainda, mas, burocraticamente, degenerado, Estado burocrático, uma
variante de capitalismo de Estado, ou outras – não restam dúvidas que a
União Soviética não estava construindo uma sociedade mais igualitária. A transição
tinha sido bloqueada.

A história confirmou, também, que uma parcela majoritária da casta burocrática


dirigente, embora se autodeclarando marxista para dissimular seu projeto diante de
setores de massas, era restauracionista. Não é razoável continuar polemizando, trinta e
cinco anos depois se a maioria dos quadros dirigentes do ex-PC da URSS era ou
não restauracionista, pela simples evidência de que, não só a URSS deixou de existir –
por iniciativa de uma parcela dos seus líderes - como a
restauração capitalista já se completou.

Mas, nos últimos vinte anos, a economia se recuperou, o que explica os mandatos
ininterruptos de Putin. Na primeira década do século cresceu a uma média anual acima
de 7% ao ano, duplicando o PIB. A Rússia é uma das dez maiores economias em PPC
(Paridade Poder Compra), tem 150 milhões de habitantes e é, em território, o maior
país do mundo, estimando-se que detém 30% dos recursos naturais do planeta.
Estende sua influência desde a Bielorrússia, na Europa Oriental, até à Ásia
Central: Cazaquistão, Turcomenistão, Tadjiquistão, Quirguízia, Uzbequistão. A Rússia
possui o maior arsenal de armas nucleares e é um dos três maiores produtores de
petróleo e gás. Possui um complexo industrial-militar de alta tecnologia, como jatos de
combate de quinta geração, submarinos nucleares, e mísseis balísticos de curto e longo
alcance, que só é comparável ao norte-americano. O mercado interno de
consumidores de bens duráveis é de dezenas de milhões. A presença de grandes
empresas estatais, como a Gasprom, uma das maiores do mundo de gás e petróleo não
anula que seja capitalista.

:: Ordem de prisão contra Putin dificulta paz na Ucrânia e reforça laço entre Rússia e
China ::
Se usarmos a fórmula de Lenin parece evidente que a Rússia é, também, um país
imperialista, ainda que subalterno. A presença de monopólios, a liderança do capital
financeiro, o papel da exportação de capitais, a competição por espaço de suas
corporações no mercado mundial, e a disputa de áreas de influência estão todos
presentes. Grandes empresas russas como a MMC Norilsk Nickel PJSC e Lukoil PJSC
lançaram IPO’s em mercados financeiros como Nova York, Londres e Frankfurt e
arrecadaram, ao longo de mais de muitos anos, dezenas de bilhões de dólares, até
serem atingidas pelas sanções impostas após o início da guerra na Ucrânia.

No entanto, seria obtuso e anacrônico não compreender que é necessário atualizar a


análise de Lenin. A definição de critérios parece ser uma boa discussão preliminar. O
lugar de cada país periférico no sistema internacional de Estados dependeu de, pelo
menos, quatro variáveis estratégicas:

(a) sua inserção histórica na etapa anterior. Ou seja, a posição que ocupou em um
sistema extremamente hierarquizado e rígido: afinal nos últimos cento e cinquenta
anos somente um país, o Japão, foi incorporado na Troika, o centro do sistema liderado
pelos EUA, associado à Grã-Bretanha, e União Europeia, e todos os países coloniais e
semicoloniais que ascenderam em sua inserção, como Cuba e China, só o fizeram
depois de revoluções que permitiram conquistar maior independência. A URSS era a
segunda potência mundial. A restauração capitalista fragilizou a posição da Rússia, mas
ela não foi recolonizada, não perdeu sua independência política.

:: Rússia e China testam 'parceria sem limites' em visita de Xi Jinping a Moscou ::

(b) a dimensão de sua economia. Ou seja, os estoques de capital acumulado, a


capacidade de ter soberania monetária, os recursos naturais – como o território, as
reservas de terras, os recursos minerais, a autossuficiência energética, alimentar, etc. –
e humanos – entre estes, sua força demográfica e o estágio cultural da nação – assim
como a dinâmica de desenvolvimento da indústria, ou seja, sua posição na divisão
internacional do trabalho e no mercado mundial. A Rússia é uma das dez maiores
economias do mundo, tem reservas extraordinárias de matérias-primas, e é uma das
três nações que forma mais especialistas de altíssima escolaridade.

(c) a capacidade de cada Estado em manter a sua independência e o controle de suas


áreas de influência. Ou seja, sua força militar de dissuasão, que depende não só do
domínio da técnica militar ou da qualidade das suas Forças Armadas, mas do maior ou
menor grau de coesão social da sociedade, portanto, da capacidade política do Estado
de convencer a maioria do povo, se for incontornável, da necessidade da guerra. A
Rússia permanece uma das maiores potências militares do mundo. Invadiu a Georgia
em 2007, interviu na guerra civil da Síria para proteger o governo de Assad, enviou
tropas para o Turcomenistão, Cazaquistão e Bielorrússia e preservou governos aliados,
anexou a Crimeia e declarou guerra à Ucrânia.

(d) as alianças de longa duração dos Estados uns com os outros, que se concretizam
em Tratados e Acordos de colaboração, e a relação de forças que resultam dos blocos
formais e informais de que fazem parte, ou seja, sua rede de coalizão. A Rússia tem
uma aliança estratégia com a China, que é hoje, incomparavelmente, a segunda
potência mundial.

Estes são os quatro critérios: história, economia, política e relações internacionais. O


lugar de cada Estado no sistema internacional depende, portanto, de sua inserção no
mercado mundial, ou seja, de seu lugar na divisão internacional do trabalho. Mas,
embora seja fundamental, a economia não é a única variável que deve ser considerada.
Porque as mudanças de lugar dos países no mercado mundial foram, historicamente,
muito mais dinâmicas que a sua localização no sistema de Estados. A economia, ao
contrário da aparência do fenômeno, é mais plástica e flexível à mudança do que a
política, porque a inércia prevalece com mais força nas relações de poder. A Rússia tem
muito poder.

A imensa maioria dos duzentos Estados que estão presentes na ONU são ex-colônias, e
permaneceram dependentes, mas os graus de sua vulnerabilidade externa são variados.
Embora todas as nações semicoloniais estejam na periferia, as diferenças entre elas não
são irrelevantes. Existem variados tipos de semicolônias. E nem todos os Estados na
periferia são semicolônias. Não há plena correspondência entre a presença no mercado
mundial e o lugar no sistema de Estados. Há mediações, graduações, variações. Alguns
países são, economicamente, atrasados e dependentes, mas não estão, politicamente,
subordinados à ordem imperialista. Como exemplificou Lenin, considerando a situação
da Argentina há cem anos atrás. 3 Hoje, a Venezuela e Irã, por exemplo, são Estados
independentes.

O mais importante é sublinhar que o sistema de Estados demonstrou imensa rigidez


histórica. Isso não impediu que ocorressem alterações quantitativas no lugar respectivo
de alguns Estados. Mas realça que as qualitativas são raras. Nenhum Estado conquistou
independência política nos últimos cento e cinquenta anos sem guerra ou revolução.
Não obstante, a independência política por si só não emancipa um Estado da condição
periférica no mercado mundial. Os dois processos têm relativa autonomia.
Paradoxalmente, a Rússia, embora seja do ponto de vista econômico semiperiférica, é
um Estado imperialista. Subalterno, mas imperialista.
Reconhecer o lugar imperialista da Rússia, e constatar que foi Moscou que precipitou a
guerra na Ucrânia, não legitima apoio político-militar a Kiev. Porque é evidente que
financiando o governo Zelensky em uma guerra por procuração está a OTAN e
Washington. Mas desautoriza a ideia de que se trata de uma guerra defensiva da Rússia
contra os EUA. Trata-se uma guerra inter-imperialista. Os imperialismos dominantes
são os que, sob liderança de Washington, dirigem a OTAN. A Rússia é um imperialismo
excluído do centro de poder mundial. Mas, assim como a Alemanha nas guerras
mundiais do século XX, não merece apoio da esquerda mundial.

* Valerio Arcary é professor titular no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), militante da
Resistência/PSol, e autor de O Martelo da história, entre outros livros.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha


editorial do jornal Brasil de Fato.

Referências:

[1] LENIN, Vladimir Ilitch Ulianov. Imperialismo, estágio supremo do capitalismo,


cap.VI sobre países dependentes.

[2] Segundo Lenin: Os cinco traços fundamentais: 1) a concentração da produção e do


capital levada a um grau tão elevado de desenvolvimento que criou os monopólios, os
quais desempenham um papel decisivo na vida econômica; 2) a fusão do capital
bancário com o capital industrial e a criação, baseada nesse "capital financeiro" da
oligarquia financeira; 3) a exportação de capitais, diferentemente da exportação de
mercadorias, adquire uma importância particularmente grande; 4) a formação de
associações internacionais monopolistas de capitalistas, que partilham o mundo entre
si, e 5) o termo da partilha territorial do mundo entre as potências capitalistas mais
importantes.

Edição: Vivian Virissimo

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