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Uma vez que a luta foi sempre travada por territórios coloniais, e foi assim
levada para além-mar, o mercado mundial identificou-se, desde o início, com
guerra mundial. A corrida dos Estados nacionais europeus pela hegemonia
tinha de acabar por ficar indecisa, porque, a partir das condições iniciais,
nenhum deles dispunha de uma vantagem decisiva. Até ao final do século
XVIII, o papel de potência dominante mudou várias vezes, coincidindo com o
papel de pioneiro no processo do desenvolvimento capitalista.
A Grã-Bretanha conseguiu, durante grande parte do século XIX, assumir a
posição de potência mundial n.º 1, na medida em que, por marcar o compasso
da industrialização, dominou a transformação decisiva sobre cujo fundamento
começou a desenvolver-se o modo de produção capitalista. Mas a perseguição
da França e sobretudo da Alemanha no desenvolvimento industrial tornou este
avanço apenas tangencial no princípio do século XX e repôs mais uma vez o
equilíbrio político-militar das potências. Na época das duas guerras mundiais
industrializadas e da crise económica mundial do período entre elas e a elas
ligado, os Estados-nações capitalistas europeus predadores digladiaram-se e
saíram mortalmente esgotados do campo de batalha. O mercado mundial
entrou em colapso; o comércio mundial recuou para um nível só comparável ao
dos finais do século XIX. Surgiu com isso o perigo de se impedir a continuação
do desenvolvimento capitalista nos mercados internos das economias
nacionais e dos Estados fechados sobre si próprios.
Este colapso causado pela luta europeia pelo domínio capitalista mundial foi já
o prenúncio de um limite absoluto do moderno sistema produtor de
mercadorias. Mas foi apenas o prenúncio. Pois a onda de catástrofes socio-
económicas mundiais da primeira metade do século XX foi, em primeira linha,
político-militarmente induzida, ou seja, em formas marginais das relações
capitalistas, ao passo que o espaço de manobra económico do
desenvolvimento capitalista mundial estava ainda longe de ficar esgotado.
Naturalmente isso não podia reconhecer-se então, em cima dos
acontecimentos. Mas a partir da perspectiva actual pode dizer-se que a época
das guerras mundiais e da crise mundial a elas ligada foi a última catástrofe
resultante da implantação do modo de produção capitalista (ou seja, no interior
de um movimento económico largamente ascendente), mas não o seu limite
interno absoluto, que marcasse o fim do movimento económico ascendente.
Mas o mesmo processo que levou a luta europeia pela hegemonia capitalista
mundial a terminar num empate de sujeitos nacionais esgotados e
desmoralizados levou também o centro de poder capitalista Ocidental a sofrer
uma transformação decisiva e irreversível. Pois, paralelamente à emancipação
político-militar e à "modernização recuperadora" de todo o Leste e Sul, os EUA,
de forma não totalmente despercebida, mas de certa maneira nas costas das
potências capitalistas centrais europeias iniciais, tornaram-se a nova potência
mundial n.º 1.
Até mesmo a estrutura antagónica destas duas potências que, depois de 1945,
se expandiu conceptualmente como "conflito de sistemas" Tocqueville
apreendeu de forma aproximadamente correcta, em todo o caso formulada de
modo menos exagerado e sem as meias verdades dos protagonistas desse
antagonismo mais de um século depois. O mundo actual é tão incapaz como o
do tempo de Tocqueville de compreender o sistema de referência categorial
geral da moderna produção de mercadorias, como forma social historicamente
distinta (em vez de uma ontologia social a-histórica). O que já para Tocqueville
aparecia como antagonismo essencial são apenas os dois pólos da
socialização capitalista de mercado e Estado; ambos igualmente repressivos,
pois ao poder burocrático não se opõe simplesmente a "Liberdade", mas
apenas a chamada liberdade do mercado, tornada despotismo através do
imperativo da concorrência.
Esta derrota ocorreu também e não em menor medida do ponto de vista militar.
Nem do ponto de vista dos capitais, nem do ponto de vista científico e
tecnológico, a União Soviética podia aguentar a permanente corrida aos
armamentos. Assim como não foi possível ao contra-sistema de Capitalismo de
Estado fazer a transição para a terceira revolução industrial, a da micro-
electrónica, mantendo no seu conjunto as formas de reprodução social,
também o poderio militar soviético ficou cada vez mais para trás dos Estados
Unidos no que toca ao armamento electrónico através de sistemas de
armamentos high tech. Com isto, nos anos 80 o Capitalismo de Estado do
Leste fracassou economicamente no mercado mundial, com cujos critérios e
standards tinha de medir-se como sistema produtor de mercadorias, assim
como ficou militarmente moribundo. O colapso total foi a consequência lógica.
É verdade que, até certo ponto, já a Alemanha Nazi foi vencida, em grande
parte, devido à impressionante superioridade aérea dos aliados desde 1944 e à
chuva de bombardeamentos aéreos (destruição das indústrias de guerra e das
linhas de abastecimentos, etc.), embora esse não tenha sido o único factor a
decidir a guerra. Além disso, as esquadrilhas tinham de manter-se
esforçadamente no raio das bases. Se até meados do século XX a travessia do
Atlântico era ainda uma aventura, hoje a força aérea americana pode atingir
qualquer lugar do mundo a partir do seu território num tempo sem paralelo. Por
outro lado, a observação por satélite dirigida por meio da micro-electrónica
possibilita o exercício de um controlo permanente a partir do espaço, com uma
capacidade de resolução muito precisa, de todos os movimentos e operações à
superfície da terra em todo o globo como nunca tinha sido possível. Em ligação
com a dimensão continental do seu território, com a força dos seus capitais e
com o avanço da sua tecnologia de comunicações, o sistema de armamento
high tech dos EUA, sem concorrente e em permanente desenvolvimento, criou
um novo tipo qualitativo de hegemonia global no mundo dos estados
capitalistas.
Por outro lado, os EUA, enquanto Estado nacional limitado que são, e apesar
do seu estatuto de superpotência, não podem agir directamente como Estado
mundial, que estaria em situação de regular o sistema mundial – que se
transforma em transnacional - da economia de crise capitalista, como até aqui
os Estados nacionais regularam as suas economias nacionais. Assim, a última
potência mundial vê-se arrastada pelos imperativos e formas de evolução de
um processo de crise mundial que há muito não é controlável por meios
políticos, e contra o qual o seu invencível exército high tech apenas pode reagir
externamente e, em última análise, de forma inadequada.
Que os EUA apenas são a potência dominante de um sistema mundial sem
saída, em si mesmo doente e envenenado, demonstra-se pelo estado em que
se encontra a sua própria economia interna, sob a condução do Estado. No
interior dos EUA a riqueza monetária encontra-se não só polarizada ao
máximo, no contexto do mundo ocidental, como o seu brilho assenta
essencialmente em fancaria económica. Pois os EUA são hoje, contrariamente
à posição de partida confortável e sem concorrência que tinham no final da
segunda guerra mundial, o país do mundo com o maior endividamento, quer
interno, quer externo. A sua absoluta superioridade concentrou-se unicamente
no seu poderio militar.
Este perigo abrange, e não em último lugar, o próprio aparelho militar high tech,
que devora permanentemente somas astronómicas e por isso depende da
seiva do capital financeiro transnacional. Trata-se de uma forma desviada de
financiamento, que devia assentar num poderio económico nacional efectivo e
autónomo, que os EUA perderam há muito. O poderio militar, na sua forma até
certo ponto "natural", não tem, por si mesmo, capacidade de sobrevivência,
pois também ele, como tudo o mais no mundo capitalista, tem de passar pelo
"buraco da agulha" da financiabilidade.
É por isso que já não pode haver guerras mundiais do tipo das guerras da
primeira metade do século XX, surgidas do facto de existirem várias potências
da mesma grandeza a disputarem a hegemonia no quadro de um sistema
policêntrico. Já a estrutura bipolar da guerra-fria bloqueou a possibilidade deste
choque através do "equilíbrio do terror" atómico. A União Soviética não pôde
ser derrotada numa guerra mundial, mas foi anulada pela concorrência
económica e degradada militarmente.
Que esta posição não era simplesmente motivada por rivalidades ideológicas,
decorre da estratégia político-económica e das manobras políticas dos Nazis.
Werner Daitz, um dos dirigentes económicos superiores do Partido Nacional
Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP), formulou a tendência
autárcica do nacional-imperialismo expressamente contra "o pensamento
judaico-materialista dos economistas liberais", cujo "pensamento de dinheiro
contrário ao Povo" conduziu a economia alemã para a "economia mundial", ou
seja, para "o comércio livre e a divisão internacional do trabalho", em seu
prejuízo na guerra mundial e na crise económica mundial. Daitz coloca o
programa autárcico dos Nazis de um império nacional autónomo contra aquela
orientação económica liberal para o mercado mundial: "a descoberta de novos
espaços livres e o seu povoamento (colonização)... apenas pode significar um
fortalecimento do crescimento e da força vital da economia pátria se não ficar
de fora da sua disciplina e do seu poder... cada Povo deve disciplinar a sua
liderança económica de forma a que as últimas reservas em alimentos e
matérias primas estejam sempre dentro dos seus muros" (Daitz 1938 I, 64 e
segs.).
É neste sentido autárcico que ele define também o "grande espaço económico"
europeu a formar pelo Reich Nazi sob controlo alemão: "a Europa continental
só pode afirmar-se entre as outras partes do mundo como unidade económica
e cultural se em caso de necessidade puder viver dos recursos dos seus povos
e do seu território. Por isso, a Europa continental tem de ser uma unidade
política de Gibraltar aos Urais e do Cabo Norte até à ilha de Chipre. Só neste
espaço é que existem todas as capacidades em produtos agrícolas e riquezas
minerais que permitem aos povos deste espaço, mediante cooperação, e com
a ajuda de uma tecnologia avançada, viver dos seus próprios recursos" (Daitz
1938 II, 45 e segs.).
Neste plano, já não era decisiva uma visão orientada para um "grande
território" imperial e de uma "economia nacional de grande território"
correspondente, mas a garantia global do modo de produção capitalista como
tal. Os EUA tornaram-se assim em pura "potência protectora" do capital,
apenas sendo aceite a sua forma ocidental privada e concorrencial e sendo as
variantes de capitalismo de Estado do Leste e do Sul consideradas como
princípio inimigo perturbador.
O novo papel de potência mundial dos EUA podia portanto ser assumido com
um empenhamento quase religioso: a superpotência ocidental transmuta-se em
propagandista global e até em missionário do modo de produção e do modo de
vida capitalista concorrencial, incluindo dos seus componenes culturais
("American way of life"). Neste sentido, o Presidente Truman, logo em 1947,
pôs de lado a doutrina Monroe, limitada à perspectiva nacional imperialista, e,
com a "doutrina Truman", prometeu a ajuda dos EUA aos "Povos Livres
ameaçados na sua Liberdade", o que implicava o intervencionismo num meta-
plano do sistema mundial, para além do simples interesse nacional
expansionista.
Truman não operou num espaço ideologicamente vazio. Ele apenas prosseguiu
o espírito da ideologia da "comunidade dos Povos", enraizada no antigo
idealismo americano originalmente anti-intervencionista, tal como formulada
pelo Presidente americano Woodrow Wilson (1856-1924) no seu programa de
catorze pontos de 1918, antecipação da posterior liderança doutrinal
americana.
Deste modo, por um lado a NATO comprova ser de facto uma estrutura
supranacional de uma pretensão de controlo capitalista global, face a um
mundo tomado de assalto por uma globalização economico-industrial e uma
simultânea desagregação de crise. Por outro lado, ela nem sequer pode ser
imaginada sem o aparelho de administração de violência de alta tecnologia dos
EUA, que continua centrado em e controlado por um estado-nação, e cuja falta
de paralelo mantém de pé a hegemonia dos EUA no seio da obra de arte
integral do imperialismo mundial. Numa ordem bárbara, em última instância,
quem manda acaba sempre por ser aquele que for capaz de brandir a moca
maior. E, no âmbito dos critérios capitalistas e da tecnologia capitalista, a
Europa nunca mais poderá ter a maior moca.
Tal não significa que não existam quaisquer tentativas europeias de se perfilar
face à última potência mundial que são os EUA, embora, em caso de dúvida,
estas partam mais da França do que da Alemanha. Mas estas atitudes não
passam de disputas de competências e de guerras de capelas no seio da
ordem estabelecida do "imperialismo global ideal", sujeito a uma hegemonia
dos EUA que está acima de qualquer dúvida, não configurando a afirmação de
uma pretensão imperial autónoma. Também cada vez mais voltam à liça as
contradições económicas e sobretudo comerciais entre a UE e os EUA, mas
sem que alguma vez seja seriamente posto em causa o tecto global comum da
pax americana.
A NATO, tal como os EUA, não constitui um "estado mundial" que possa tomar
conta das velhas funções do estado-nação a um nível superior, supranacional.
Ela não é mais que o "capitalista global ideal" (alargado), ou seja, uma pura
instância de violência e de pressão política, e não a instância de uma regulação
mais abrangente. Assim sendo, a NATO não pode resolver a contradição do
capitalismo de crise global, podendo apenas, na sua própria estrutura
contraditória como organismo supranacional sob a hegemonia do estado-nação
da "última potência mundial", exprimi-la em mostras periódicas de violência.
Tal como em Lenine, também em Kautsky o tema não é a crise (na altura
"impensável") e a crítica das formas sociais que transcendiam os limites entre
as classes, mas a "vontade de classe" apenas sociologicamente fundamentada
e que se manifesta de forma política no sentido da "exploração", por um lado, e
da respectiva superação, por outro. Contrariamente a Lenine, porém, ele não
desenvolve esta análise abusivamente simplificada no terreiro dos factos
históricos efectivos, ou seja, da real concorrência entre potências expansivas
imperialistas nacionais, mas como uma fantasmagoria vergonhosamente
oportunista. Não resta dúvida de que é necessário um misto de ilusionismo e
auto-engano para se postular, mesmo no meio do trovejar dos canhões que
anunciava o início da guerra mundial industrial, uma aliança pacífica do
imperialismo global ou do ultra-imperialismo para uma "exploração do mundo"
comum para o tempo depois da guerra mundial, como se a realidade desta
última nem sequer existisse ou já tivesse passado à história (uma atitude até
hoje típica do raciocínio democrático reformista a propósito de questões
"perigosas").
Mas o que faz crer que no século XXI não venhamos a assistir a uma reedição
das anteriores lutas de influência territorial imperialistas nacionais pela
hegemonia mundial não são apenas os factos económicos e político-militares
no contexto da pax americana e da globalização. Também o desenvolvimento
cultural e ideológico não comporta os mínimos sinais de que as velhas
potências da época das guerras mundiais em breve venham a aprestar-se a
iniciarem o terceiro round e que a NATO poderia ter sido apenas uma
manifestação transitória circunscrita à época da guerra fria.
Isso não quer dizer de forma alguma que padrões culturais e ideológicos
nacionalistas, antisemitas, racistas etc. não regressem ou que o recurso aos
mesmos não se torne mais frequente nos processos de crise da globalização.
Mas, contrariamente à época das guerras mundiais, estes padrões não se
encaixam no contexto de uma formação imperialista nacional, para a luta de
extermínio mútuo entre as grandes potências capitalistas em torno de "grandes
espaços geo-estratégicos". Já a imagem do inimigo do "império do mal"
soviético tinha sido formada num patamar diferente; ela já não reflectia a
concorrência mútua entre os estados imperialistas nacionais do centro
ocidental do capitalismo industrial, mas sim a concorrência do centro como um
todo com os retardatários históricos da periferia e o respectivo "contra-
sistema", que não deixava de se manter enquadrado no paradigma capitalista.